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Pouco passava do começo daquela manhã de Junho - sete horas e dez minutos no seu relógio de pulso - e o Sol continuava a subir, aquecendo lentamente a grande extensão de edifícios e a vásta faixa de terras da Califórnia do Sul.
Ele e o seu amigo ali estavam de novo, ambos deitados de bruços na vegetação raquítica à beira do penhasco, ocultos, por uma longa sebe de arbustos, de qualquer pessoa que morasse nas casas mais próximas ou que entrasse naquela rua sem saída chamada Stone Canyon Road, situada no cimo duma encosta, na zona exclusiva de Bel Air.
Ambos usavam binóculo, e esperavam.
Levantando mais o binóculo, perscrutando para além do objecto da sua vigilância, ele via claramente o Reservatório de Stone Canyon e as figuras miniaturais de vários excursionistas madrugadores passeando pelo lago artificial. Baixando-o ligeiramente, conseguia seguir o serpentear da Stone Canyon Road até esta encurvar para aquela alta elevação em Bel Air. Seguidamente, os binóculos apontaram de modo a captar de relance uma ruela estreita e íngreme - devia ser Levico Way - que desembocava, segundo ele sabia, num beco onde se encontrava o portão de segurança que vedava a entrada da tão bem fotografada propriedade dela.
Então, mais uma vez, o seu binóculo sonda a propriedade, focando a isolada estrada de asfalto lá muito em baixo, o caminho que levava do portão aferrolhado entre feixes de árvores frondosas e um pomar até à mansão palaciana que se erguia mais ao longe numa pequena encosta. Para ele, tudo era mais imponente do que nunca. Noutros tempos e noutros lugares, apenas reis e rainhas viviam com tanto esplendor. Presentemente e neste sítio, as grandes casas e os palácios modernos estavam reservados para os muito ricos e os muito famosos. Nada sabia dos ricos, mas tinha a certeza de que ninguém em Bel Air tinha mais fama e renome do que a dona daquela propriedade.
A secção ampliada da estrada de asfalto, entre o portão e os ulmeiros e álamos, continuava focada, enquanto ele olhava e esperava contendo a respiração.
Subitamente, alguém apareceu no seu campo de visão. Com a mão livre bateu no ombro do seu companheiro.
- Kyle - disse apressadamente -, lá está ela. Consegues vê-la aproximar-se entre as árvores?
Sentiu o seu companheiro desviar-se ligeiramente, e, após um breve intervalo, este falou:
-Sim, é ela. Exactamente à tabela.
Focaram em silêncio os binóculos a seguirem-lhe o rasto, firmemente, focando sempre a pequena figura que se aproximava do fim do seu passeio de meio quilómetro até ao portão aferrolhado. Continuaram a focá-la enquanto
se afastava do portão, parava, ajoelhava, acariciava e depois falava ao pequeno e excitado terrier Yorkshire, que a havia seguido às cabriolas. Por fim,
ergueu-se, e, rapidamente, retrocedeu em direcção à enorme mansão ao
fundo da estrada. Em poucos momentos, desapareceu de vista sob a espessura do arvoredo.
Adam Malone baixou o binóculo, rolou para o lado e guardou-o cuidadosamente no estojo de couro, preso ao seu cinto largo. Sabia que não
necessitaria mais dele para este fim. A vigília tinha principiado precisamente
há um mês. Tinha descoberto este posto de observação e utilizara-o pela
primeira vez na manhã do dia 16 de Maio. Estávamos na manhã do dia 17 de
Junho. Tinha estado ali em cima, quase sempre sozinho, mas ocasionalmente
com o seu camarada Kyle Shively, vigiando e anotando as horas dos passeios
matinais dela durante vinte e quatro dos últimos trinta e dois dias. Esta seria a última vez.
Olhou para Shively, que tinha guardado o binóculo e estava sentado a sacudir a erva e a sujidade da sua camisa desportiva listrada.
- Bem - disse Malone -, penso que é tudo.
- Sim - respondeu Shively -, agora estamos preparados.
Alisou o recente e duro bigode preto, e os seus olhos frios, cor de ardósia,
demoraram-se mais uma vez no cenário lá em baixo. Os seus lábios finos encresparam-se num sorriso de satisfação.
-Sim, pá, agora estamos preparados. Podemos actuar amanhã de
manhã.
- Lá em baixo? - murmurou Malone, ainda pouco convencido.
-Lá em baixo, podes ter a certeza. Amanhã de manhã. Tal como
planeámos.
Levantou-se, sacudindo a sujidade dos seus blue jeans desbotados. Sempre
que se levantava, Malone tinha a impressão de que ele era mais alto do que parecia. Shively tinha pelo menos 1, 90m de altura pernas compridas, era magro, ossudo, rijo. Nem um osso fora do lugar pensou Malone, olhando para ele. Shively baixou-se e deu-lhe a mão, ajudando-o a levantar- se:
- Vá, pá, ao trabalho. Acabou-se o jogo das escondidas. Já vigiámos e
falámos de mais. De agora em diante passamos à acção.
Virou-se para Malone, com um sorriso, antes de se dirigir para o carro.
- A partir deste momento, estamos comprometidos. Não podemos voltar atrás. OK?
- Está bem.
Quando retrocederam, em silêncio, em direcção ao carro, Adam Malone tentou encarar o projecto com realidade. Tinha-o na cabeça há tanto tempo como um sonho, um desejo, uma cobiça, que lhe era difícil aceitar a ideia de
que dentro de vinte e quatro horas tudo iria acontecer.
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Mais uma vez, para se forçar a acreditar, fez o que fizera frequentemente nos últimos dias. Tentou concentrar-se no princípio e rever, passo a passo, todo o processo de transformação da fantasia em realidade.
Recordava-se de que tudo tinha acontecido por acaso, num encontro acidental, certa noite, apenas há seis semanas, num confortável bar público do All-American Bowling Emporium, em Santa Mónica. Olhando o companheiro de relance, pensou com curiosidade se Shively também se lembraria....
Capítulo segundo
Tudo começara entre as dez e meia e as onze e um quarto, na noite de 5 de Maio. Nenhum dos quatro homens poderia esquecer o que se passou. Kyle Shively não se esqueceria certamente.
Tinha sido uma má noite para Shively. Às dez e quarenta e cinco, estava com a pior disposição que tivera desde a sua chegada à Califórnia, vindo do Texas. Depois de ter esperado no restaurante e de ter finalmente chegado à conclusão de que a ordinária daquela gaja rica o tinha levado à certa, saiu para lhe telefonar, e, depois da segunda tentativa, estava quase a explodir.
Mesmo agora, Kyle Shively fervia enquanto caminhava pelo Wilshire Boulevard em Santa Mónica, na direcção do All-American Bowling Emporium, todo iluminado a néon, e do Bar Lanterna, no interior, seu poiso habitual. Esperava que alguns copos naquele oásis o acalmariam.
Shively suportava muitas coisas, mas uma havia que não aguentava: era ser tratado como um cidadão de segunda classe - ser gozado - por uma presunçosa convencida de que se achava superior só porque o marido tinha alguma mássa. Ora, Shively já tinha conhecido várias dessas ricaças. Desde que começara a trabalhar, havia dois anos, como mecânico na Estação de Serviço de Jack Nave, já gozara o seu bocado. Nesse aspecto, não se queixava.
Na sua opinião, considerava-se um tipo que se conhecia muito bem a si próprio, por dentro e por fora. Ninguém precisa dos esclarecimentos dum psiquiatra a respeito de si próprio. Apenas é necessário ter inteligência, uma qualidade de que Shively se achava grandemente dotado. Podia não ter o que se chama cultura - desistira do liceu de Lubbock, Texas -, mas aprendera muito com a vida em si. Aprendeu como lidar com as pessoas durante aqueles dois anos em que foi soldado de infantaria no Vietname. Formou os seus critérios sobre o mundo e sobre si próprio quando viajou à boleia pelos Estados Unidos. E tornara-se ainda mais vivaço desde que se fixara na Califórnia.
Agora, com trinta e quatro anos, sabia o que era importante, pelo menos para ele. Pensando bem, reduzia-se ao essencial e ele tinha-o. Só duas coisas contavam: beber e fornicar. Gabava-se de ter feito muito das duas coisas, desde que começara a trabalhar na Estação de Serviço de Nave. Beber, ter 9
a sua casa e sair.... bem, lá conseguia arranjar-se com os 175dólares semanais
que o forreta do Jack Nave lhe pagava. Mas Shively também sabia que estava
a tornar-se indispensável a Nave. Trabalhava depressa, e o que fazia, fazia-o
bem feito, e tinha a certeza de que não havia em Santa Mónica melhor mecânico para afinar travões, fazer revisões ou arranjar válvulas. Sabia que
merecia mais do que os miseráveis 175dólares que recebia por semana. E
esperava conseguir mais. Nos dias mais próximos tencionava abordar o velho Nave para pedir um aumento.
Shively falou com outros mecânicos em Los Angeles, e descobriu que eles
ganhavam tendo como base 48 por cento sobre os arranjos de cada automóvel.
Isto quer dizer que se começava por receber sobre a quantia que o cliente
pagava péla reparação. Então, depois de deduzir o custo das peças, os outros
mecânicos praticamente dividiam o lucro com os patrões. Alguns conseguiam fazer cerca de 300dólares por semana. Shively sabia que
merecia essa quantia, e que a iria pedir e obter, mesmo que o velho Nave gritasse e se esfolasse. Isto significaria que a sua vida nas horas livres, o beber e
as farras, seriam facilitados e de nível mais alto.
Quanto a fornicar, não tinha problema, havia muito por onde escolher,
especialmente quando se trabalha numa estação de serviço movimentada e se
tinha um estilo e físico como os dele. De qualquer maneira, mesmo que a
qualidade não fosse boa, a quantidade existia. Mas, por vezes, até conseguia
um índice elevado de material de alta qualidade. A estação de Jack Nave tinha
uma freguesia de classe - donos de Cadillac, Continental, Mercedes - e,
por isso, todas as tardes, havia a possibilidade de conhecer as mulheres dos
clientes ricos, ou as suas jovens filhas que se escapavam para dar uma voltinha rápida.
Sim, ele tinha conseguido duas daquelas ricaças no mês passado. E
admitia que sair com aquelas fulanas dava satisfação. Fornicar com elas significava que ele era um igual, senão superior. Shively gostava de filosofar sobre estes assuntos, e era o que fazia enquanto se encaminhava para o All- -American owling Emporium. Era verdade, quando se conseguia levar uma
daquelas senhoras finas para o quarto, despi-la e tê-la nua em cima da cama,
então tudo o resto desaparecia janela fora. Já não se era um macaco gorduroso
com unhas sujas e só com 175dólares por semana. E a pequena, com as roupas rotuladas de Saks e Magnins espalhadas pelo chão, com o Cadillac, o
canudo universitário, a casa de quinze divisões e criados e o meio milhão no banco - tudo ficava esquecido. Era só mamas e rabo e com o mesmo desejo
que ele. Essa era a grande compensação, desejar e realizar, e nada mais ter
importância. O maior nivelador da terra, o maior fabricante de igualdade do
mundo, é o pénis do homem. Umas oito polegadas de tesão contribuíam mais
para a justiça social do que todos os cérebros do mundo.
E isto é que o estava a irritar tanto nessa noite. A injustiça de estar a ser
tratado como se não fosse suficientemente bom, como se não fosse um igual, nem o merecesse.
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Conhecera esta Kitty Bishop há um mês. Fora a primeira vez que a vira. O marido, Gilbert Bishop, era um dos clientes assíduos do Nave. O Bishop trazia geralmente o seu Cadillac ou mandava um dos criados levar o Mercedes da mulher. Era um velho patife rico, talvez andasse na casa dos sessenta, e Nave dizia que ele tinha feito os seus milhões em negócios de propriedades. O estupor.
De qualquer forma, há um mês atrás, a mulher do velho Bishop apareceu em pessoa, pela primeira vez. O velho andava em viagem de negócios, e ela, esta Kitty Bishop, conduzia o Mercedes para a praia em Malibu quando o motor começou a falhar e o carro a andar aos solavancos e ela decidira parar na estação do Nave para ver qual era a avaria. Bem, como os conhecimentos do cretino do Nave começavam e acabavam nas bombas de gasolina, ele passou a cliente e o seu Mercedes ao Shively.
Shively saiu detrás da cremalheira gordurosa, e ela lá estava a sair do carro para lhe falar. Não podia acreditar que aquela fosse a Sra. Bishop. Bolas, devia ter menos trinta anos que o velho! E uma estampa, ruiva, ali de pé, com o roupão aberto e o bikini às bolinhas, porque ia para a praia, a sorrir e a explicar-lhe o contratempo. Shively ouviu, olhando sempre, observando as mamas pequeninas de pele rija e o grande cu.
Em poucos minutos, levantou o capot do carro e começou a mexer nos pólos do distribuidor, ajustando o carburador e dizendo-lhe que dentro de pouco tempo ele precisava de uma revisão. Ela continuava a prestar atenção, à medida que ele trabalhava e falava. Apenas olhava, fumava e sorria. Por fim, ficaram amigos, ele gozava-a e ela já lhe respondia da mesma maneira. No fim do arranjo, não tentou nada. Mas, depois de ela se ter ido embora, continuou a pensar nela.
Passada uma semana, ela voltou à estação de serviço com outras avarias. Depois voltou outras duas vezes. Nessas ocasiões, as avarias não eram de importância; portanto Shively convenceu-se cada vez mais de que ela vinha só para o ver. Então, nessa manhã, ela apareceu mais uma vez, com um blusão azul transparente e shorts muito justos a condizer, a sorrir e a dizer-lhe que havia qualquer coisa a chocalhar na parte de baixo do carro e que pensava que talvez fossem os tubos de escape. Ele puxou um macaco e deslizou para debaixo do carro. Quando de lá saiu, depois de acabado o trabalho, olhou-a e ficou com a certeza, quase a certeza, de que ela estivera a olhar fixamente para a sua braguilha.
Quando se levantou, falaram amigavelmente, na brincadeira. Estava próximo dela, olhou em volta e viu que Nave estava suficientemente longe para não o ouvir. Pensou que raio, porque não? Mas, então, ela passou por ele, entrou no carro e fechou a porta. Kyle aproximou-se rapidamente da porta, baixando-se até perto da cabeça dela quando já estava a pôr o carro a trabalhar.
Olhou-a nos olhos.
- Devo confessar, Sra. Bishop, que gostei muito de falar consigo.
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Ela olhou-o da mesma maneira, e disse:
- Eu também gostei, Kyle.
- Gostaria imenso de continuar. Conhecê-la melhor. Largo o trabalho hoje às nove da noite. Que tal se nos encontrássemos para tomar uma bebida
hoje, à noite, às nove e meia em The Broken Drum?
- Não perde tempo com as mulheres, pois não, Kyle?
- Não, se ela for uma mulher como você.... Estarei lá às nove e meia.
Ela meteu a marcha-atrás e começou a sair.
- Está bem - disse ela, ou qualquer outra coisa no género, depois saiu, e
zap, de certeza que a tinha no papo.
Kyle passou o resto da tarde contente e a cantar baixinho. Durante as duas
horas que tinha para o almoço, foi fazer compras, foi deixar as bebidas caras
no apartamento, e arranjá-lo para a sessão daquela noite. Trabalhou até às
nove, depois lavou a sujidade das mãos e dos braços com LanLin. Fez a barba na casa de banho dos homens, com a máquina eléctrica que tinha sempre à mão, penteou os cabelos escuros e encaracolados, e vestiu roupas lavadas.
Às nove e meia em ponto, estava em The Broken Drum, prontó e à
espera de Kity Bishop.
Às dez e meia ainda continuava em The Broken Drum à espera de Kity Bishop.
Ela não apareceu. Tinha-lhe dado com os pés, a cadela. Tinha-o entusiasmado tanto, e agora deixava-o ali triste e abandonado. Ele percebia. Ela reduzia-o à sua insignificância. Mostrava-lhe que não estava ao nível dela.
Que o diabo a carregasse, ele havia de lhe dizer das boas.
Saiu intempestivamente do restaurante e dirigiu-se à estação de serviço. O
Nave estava ocupado nas bombas. Shively encaminhou-se para o escritório
dele e foi consultar o ficheiro dos clientes. Do cartão do velho Bishop, copiou
o seu número de telefone de Holmby Hills para um bocado de papel amarrotado. Em seguida, saiu e dirigiu-se para a cabina telefónica lá fora.
Meteu umas moedas e marcou. Ela atendeu. Reconheceu-lhe a voz. Fria, como se nada houvesse acontecido.
- Kitty? Fala Kyle. Que se passa? Tenho estado à sua espera há mais de uma hora.
- Quem é que fala?
-Kyle, Kyle Shively. Você conhece. Lembre-se, vi-a na estação de serviço hoje de manhã. Não se recorda? Combinámos beber um copo em The Broken Drum.
Ela desatou a rir.
-Ah, é você! Está a gozar, não está?
Sentiu-se ficar lívido.
- Que quer dizer com esse está a gozar? Convidei-a para beber um copo hoje, à noite, e você disse que sim. Aceitou.
- Oh! é uma situação mbaraçosa. Não percebo, Sr. Shively. Certamente não esperava que eu aparecesse. Palavra de honra, não sei como se convenceu. Percebeu mal, com certeza.
- Que diabo, não percebi nada mal!
- Livre-se de gritar comigo. Isto é ridículo. Vou desligar.
E, ao dizer isso, desligou.
Completamente fora de si, Shively procurou mais moedas, meteu-as na ranhura da caixa do telefone e marcou de novo o número dela.
Assim que esta atendeu, desatou logo a atacar.
- Olhe, Kitty, vai ouvir o que tenho a dizer. Gostei de si da primeira vez que a vi, e reparei que estava interessada em mim, quer o admita, quer não. Portanto, que mal é que tem duas pessoas que simpatizam uma com a outra irem beber um copo? Sendo assim, dou-lhe outra chance.
- Outra chance! Tem uma lata! Para mim não é senão a pessoa que me arranja o automóvel, e mais nada. O que é que pensa que eu sou?
-Pensei que fosse uma mulher, mas começo a pensar que talvez seja apenas uma dessas provocadoras ordinárias que julgam que são.
- Não estou para ouvir essa linguagem ordinária! Nem para o aturar mais. Se me aborrecer de novo, vai ver-se em apuros. Sou uma mulher casada, não saio com outros homens. E, se saísse, não seria, com certeza, com um grosseirão ordinário e de inteligência de amiba como você. Por isso aviso-o para seu bem. Se me incomoda mais alguma vez, faço queixa ao meu marido, e ele fará com que seja despedido!
Quando acabou de falar, desligou de novo, violentamente. A tremer por todos os lados, Shively desligou e saiu da cabina, raivoso com a injustiça do que se tinha passado, com o insulto ao seu machismo e ao seu orgulho vindo daquela presunçosa. Quando chegou ao passeio, a sua raiva tinha alastrado muito para além daquela cadela.
Não eram só as chamadas senhoras da alta, aquelas meninas mimalhas, e as suas atitudes para com aqueles que consideravam abaixo delas, que davam cabo do mundo. Todo o sistema de classes estava errado. Shively não percebia nada de política, nem queria saber, mas, melhor do que qualquer político, conseguia avaliar o que estava errado no mundo. O mal é que meia dúzia tinha demasiado, e o resto eram pobretões que pouco tinham e nunca chegariam a milionários. E o pior é que os ricos ficavam cada vez mais ricos
- mais ricos em dinheiro e miúdas, arranjavam as melhores - e os restos eram para o resto do mundo, para os Shivelys que não podiam passar para o outro lado e que tinham de se contentar em vasculhar e satisfazer-se com os cus de segunda classe.
Merda!
Tinha chegado às portas duplas de vidro do All-American Bowling Emporium. Através delas viu que, na maioria, as trinta e duas pistas estavam ocupadas. Lá em cima, ostentosamente colocado, estava um anúncio luminoso com o desenho de um copo onde se lia LANTERN BARCOCKTAILS, e uma seta vermelha a apontar para a direita.
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Graças a Deus , pensou. Ainda restam alguns prazeres. Três ou quatro cervejas e talvez se sentisse melhor.
Kyle Shively dirigiu-se para a entrada.
Lá dentro, no bar, Adam Malone ficara preguiçosamente recostado no
cadeirão, olhando sonhadoramente para a vela a tremeluzir dentro da lanterna vermelha na sua mesa. Com uma das mãos garatujava inconscientemente no bloco amarelo que levava para todo o lado, até para o
emprego. Durante o seu segundo ano pré-universitário, na áula de Literatura inglesa, disseram-lhe que muitos escritores famosos tinham a mania de tomar
notas, sempre que se sentiam inspirados ou quando observavam qualquer
coisa que, mais tarde, lhes poderia vir a servir para um trabalho. Como Henry James e Ernest Hemingway. Eles apontavam sempre o que pensavam
ou o que viam. A partir dessa altura, e de há seis anos para cá, Adam Malone nunca deixou de andar com um pequeno bloco e um lápis no bolso.
Por norma, Malone não frequentava bares. Não era grande bebedor.
Bebia pouco nas reuniões sociais, e, por vezes, quando estava sozinho no quarto, bebia um pouco de vinho ou uma golada de Jac Daniels, porque tinha lido uma vez que o álcool, quando não tomado em excesso, podia estimular a imaginação. A maioria dos autores americanos que ganharam o
Prémio Nobel - Sinclair Lewis, Ernest Hemingway, William Faulkner tinham sido bebedores, e, aparentemente, a bebida tinha incendiado e não
acalmado a sua criatividade. Mas, neste momento, Malone sabia que não precisava de uísque para estimular a sua imaginação. Não tinha problemas em arquitectar coisas na sua mente, inventando, criando, dramatizando.
Durante todo o tempo em que estava acordado, raramente se passava uma
hora sem dar consigo a sonhar, acordado, com qualquer coisa. A parte difícil
era captar todas essas fantasias e transportá-las para o papel, de forma
coerente e com interesse. Como Maupassant dizia, a parte mais difícil era pôr o preto no branco.
Não, ele não tinha vindo para o bar beber, apesar de ter à sua frente, na
mesa, um uísque meio bebido. Estava ali, naquela noite, porque não lhe tinha
apetecido ficar sozinho no quarto, e, além disso, já havia visto todos os filmes
antigos que iam transmitir na televisão, já tinha visto o que de melhor corria
nos cinemas lá do bairro e não tinha dinheiro para ir às estreias. Além disso,
de vez em quando, tal como nessa noite, sentia remorsos por passar tanto do
seu tempo livre no quarto, entre quatro paredes, a viver apenas com a imaginação. Um autor deve sair, ver coisas, ver pessoas, misturar- se, integrar-se e viver experiências. Um bar público era um óptimo cadinho, um
bom local para, casualmente, conhecer estranhos ou para observar a vida. A
única coisa que desejava era que deixassem as pessoas como ele fumar erva livremente. Umas passas teriam muito mais piada do que o uísque amargo que estava a sorver.
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Malone entrara na sala de bowling e, depois, viera para o bar, porque este parecia estar animado e divertido, cheio de gente, e também porque já lá tinha ido umas duas ou três vezes, o que tornara o ambiente seu conhecido. Tinha-se sentado sozinho a uma mesa, ao pé do bar, porque o seu objectivo, naquela noite, era mais observar do que participar, e, durante algum tempo, observara o vaivém dos clientes, homens na sua maioria, e bastante mais velhos do que ele (o que significava com mais de vinte e seis anos), e alguns casais que entravam, de braço dado, murmurando, rindo, e alguns deles que saíam um pouco tocados.
Quando se fornou, Malone introverteu-se e tentou imaginar a estrutura de um pequeno conto que tencionava escrever. Mas depressa a sua imaginação começou a vaguear, e achou-se a olhar fixamente para a chama da vela dançando na pequena lanterna vermelha, sentindo-se hipnotizado.
Agora, consciente do seu retrocesso, fez um esforço para avivar o seu interesse na actividade que o rodeava. Sentou-se direito na cadeira, tomou um gole de Jack Daniels, e examinou cuidadosamente a sala à meia- luz. A iluminação era indirecta e, portanto, suave. Os seus olhos passaram de um rapaz e de uma rapariga, que liam os títulos no fonógrafo, aos clientes que superlotavam o bar a seu lado. Era um bar bastante grande, talvez com uns dez metros de comprimento, e metade dos bancos estavam vazios quando Malone entrara, mas reparou que, agora, estavam todos ocupados menos um. O banco mais próximo de si estava vazio.
Malone ainda pensou se deveria ou não deixar a mesa e passar para o banco vazio do bar. Tinha acabado de decidir mudar-se, quando um homem alto e musculoso, de cara magra, comprida e maldosa, entrou na sala, com passos largos, e parou entre Malone e o banco vazio.
Com ar possessivo, o recém-chegado fez girar o banco, elevou o corpo, para cima dele, e voltou a girá-lo, ficando virado para o bar.
O intruso no banco de Malone fez estalar os dedos para chamar o velho barman, um negro amigável e eficiente, de testa alta, e cabelo que parecia algodão, muito encaracolado, que o atendeu prontamente.
- Como está esta noite, Sr. Shively? - perguntou o barman.
- Olá! Ein.
Ein - Malone sabia-o desde a sua última vinda ao bar - era uma abreviatura da alcunha do barman, que era Einstein, e que lhe fora posta em face da boa vontade de resolver qualquer problema que o cliente tivesse, por mais complicado que fosse. O recém-chegado Shively continuou:
- Se queres saber a verdade, esta noite estou pessimamente mal disposto.
- Bem, temos muitas curas para isso, Sr. Shively. Que quer tomar?
- O que eu gostaria - disse Shively - era um bom traseiro, mas contento-me com uma boa cerveja fresca.
Da sua mesa, Malone deixou de escrevinhar. Esse Shively tinha personalidade. Malone virou a folha do seu bloco. A última frase de Shively
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não era má. Malone hesitou um instante, pensou se Henry James tomaria nota duma frase dessas, teve dúvidas, mas acabou por assentá-la.
Shel estava curvado sobre o bar, à espera de outra cerveja. Quando lha deram, sugou ruidosamente a espuma branca, tomou um grande gole e ficou disposto
finalmente a contar as suas desgraças a alguém suficientemente esperto que o escutasse.
Olhou para o homem no banco à sua direita. As perspectivas não eram boas. Era um tipo bolorento, com aspecto de homem de negócios, idoso,
calvo, com uns cabelitos brancos, óculos, com aros de metal, na ponta do nariz, boca amaneirada, o peito atrofiado, vestindo fato clássico azul-pardo
camisa branca e laço. Agente funerário, pensou Shively, com uma cara destas!
- Como está? - perguntou Shivile.
O velho ficou um pouco assustado. Recompondo-se, deu a Shively um aperto de mão mole e breve.
-Como está? Eu chamo-me Brunner, Leo Brunner.
- Então, Brunner, o que pensa da minha resposta ao barman, quando ele me perguntou o que queria tomar?
Brunner estava perfeitamente assombrado.
- Eu.... eu não reparei na vossa conversa.
- Ele perguntou-me o que queria tomar, e eu respondi-lhe que gostaria de um bom traseiro, mas que me contentaria com uma cerveja fresca.
Shively sorriu.
- Estamos sempre a gozar. Mas eu digo sempre o que sinto. Que acha, Brunner?
Brunner mexeu-se, um pouco incomodado, e sorriu a medo.
- Tem muita graça, tem.
Shively decidiu desistir enquanto fosse tempo. Este tipo não ia, com certeza fazer do local uma Feira Popular. Devia ser do estilo que pensava que as cegonhas é que traziam os bebés. Sim, pensou Shively, é dos tais tipos
que, se alguma vez tivessem relações, levantavam pó.
Quando Shively virou costas a Brunner, um engraçadinho, no outro extremo do bar, pediu ao Ein para ligar o noticiário das onze da noite. Fazendo-lhe a vontade, Ein esticou o braço para o televisor a cores que estava
por cima do bar, ligou-o, procurou o canal respectivo, e ajustou o som.
Todo o écran reproduzia a face genial de Sky Hubbard, o comentador
mais em voga, que se referia a outra revolta comunista algures no Sudoeste da Ásia. Imediatamente apareceu no ecran um filme mostrando alguns amarelos
a fugir depois de terem sido atingidos por bombas napalm, e Shively desinteressou-se.
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É bem feito, pensou, quem os manda intrometer-se quando estamos a ajudá-los a civilizarem-se: " Ele havia-os conhecido de perto, e era de opinião que aqueles amarelos eram animais. Continuava a olhar de vez em quando para o televisor, quando Sky Hubbard começou a vomitar uma porcaria duma notícia da Casa Branca sobre uma nova reforma de impostos que ia ser decretada, o que, na linguagem de Shively, era, com certeza, mais um furo para todos os filhos da mãe ricos da América.
- Agora, mais um exclusivo Sky Hubbard - ouviu Shively o cretino do Hubbard anunciar.
- Amanhã à noite, pelas oito horas, Hollywood vai mais uma vez ter direito a ser The Glamour Capital of the World, com a estreia mundial do filme A Cortesã , com a única Sharon Fields, o símbolo número um do sexo internacional, recentemente eleita o melhor êxito de bilheteira pelas publicações tariety, Hollywood Reporter e Film Daily. Com este filme de quinze milhões de dólares, considerado o primeiro épico tradicional de há anos, a Aurora Films volta às receitas de bilheteira passadas - oferecendo ao público saturado de televisão um filme de fundo histórico. Aliado a isto, temos a inimitável sensualidade pura da figura principal desempenhada por Sharon Fields e a presença ofuscante da própria Miss Fields, a única actriz que nunca deixou de ser um sucesso de bilheteira.
Shively bebeu a cerveja e continuou a olhar para o écran, enquanto Sky Hubbard prosseguia o seu relato.
- Aos vinte e oito anos de idade, com inúmeros sucessos, Sharon Fields atingiu o píncaro da mais famosa deusa do amor do Mundo. No filme A Cortesã Real encontrou um papel que realça o seu maior talento - a sexualidade. Este filme é uma biografia da Imperatriz Valéria Messalina, terceira mulher do Imperador Cláudio da Roma da Antiguidade e a mais famosa adúltera e ninfomaníaca da História. Os amores de Messalina e o seu comportamento escandaloso ficaram lendários. Sabemos que Sharon Fields desempenha o seu papel mais memorável como a Imperatriz escandalosa. Finalmente, vamos apresentar o exclusivo prometido. Graças à cortesia de Aurora Films, vamos mostrar uma das cenas mais sensacionais do filme que promete ser o maior sucesso de Sharon Fields. Nesta cena, enquanto o Imperador Cláudio está ausente a comandar os seus soldados numa invasão à Grã-Bretanha, Sharon Fields, no papel de Messalina, dança seminua numa plataforma do Forum, em Roma, como prólogo para uma orgia pública.
Pela primeira vez, Shively mostrou-se interessado no écran do televisor.
Começaram a cena do filme, mostrando Sharon Fields ao longe subindo para uma plataforma, enquanto milhares de libertinos bêbedos aplaudiam. A câmara focava-a agora mais perto. Involuntariamente, Shively assobiou e arregalou os olhos ao ver a voluptuosa Sharon, os seus famosos seios brancos pouco ou nada tapados por alguns fios de pérolas, com a barriga, as ancas e as
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nádegas à mostra, praticamente nua, apenas com um fio de pérolas a tapar-lhe as partes mais íntimas. Ela deslizava, ondulante, os seios a balouçar, as ancas
brancas a oscilar, puro sexo, toda sexo, enquanto a câmara focava de perto o seu cabelo loiro e comprido, todo entrançado, os olhos verdes ardentes e
semicerrados, os lábios húmidos, semiabertos, depois a voz rouca e ansiosa,
chamando todos os homens de Roma e todos os deste século XX.
- Venham, venham e unam-se a mim!
O filme foi cortado de repente, e as câmaras focaram o comentador Sky Hubbard.
- Nunca na história do cinema existiu um símbolo do sexo tão admirado e desejado como Sharon Fields - dizia ele.
Seguiu-se uma série de imagens de Sharon Fields, bem como posters seus numa variedade de poses provocantes, despindo-se, enquanto a voz de Hubbard continuava:
- Nenhuma oútra deusa do passado - nem Clara Bow, nem Jean
Harlow, nem Rita Hayworth, nem Marilyn Monroe, nem Elizabeth Taylor - conseguiu captar a imaginação do público como Sharon Fields o faz.
Aquilo que uma autora inglesa chegou a dizer de Marilyn Monroe pode ser
aplicado duplamente a Sharon Fields: O que ela mais nos implorava era que nos deixássemos de fantasias e que assentássemos os pés bem firmes na terra.
Satisfazia o nosso desejo de enfrentarmos os desejos eróticos sem romance, sem diversões .
Como a própria Máss Fields disse com franqueza: No fundo, sou uma
criatùra sexual. Todos o somos. Mas a maioria das pessoas tem medo de
enfrentar esta face da sua natureza. Eu não receio. Penso que gostar de sexo é
normal. Não o escondo. Talvez seja por isso que os homens acham que sou sedutora .
Ainda hoje entrevistei o produtor do seu último filme épico, Justin Rhodes, sobre este assunto.
- Sim, tudo isso sobre Sharon é verdade - disse-me ele. - Ela não
tem culpa de ser sedutora. Se tivesse vivido há uns séculos atrás, teria sido,
com certeza, a concubina dum rei. Podemos considerar-nos felizes por ela nos pertencer.
Estas foram as palavras de Justin Rhodes. É claro que avida particular e desinibida de Miss Fields e as suas escapadelas são bem conhecidas dos seus
fãs, apesar de ela andar ultimamente menos visível e de aparecer menos em
público. Mas regressará amanhã à noite, não só aos écrans, mas em pessoa, na estreia no Grauman's Chinese Theatre. Informaram-nos que dentro em
breve tenciona ir para Inglaterra repousar - mas pomos as nossas dúvidas se será para descansar ou para recomeçar o seu último romance com o actor inglês Roger Clay?
O noticiário das onze prosseguirá depois deste anúncio.
A última imagem de Sharon Fields projectada no écran do televisor Sharon reclinada sobre a cama, nua, com um lençol branco entalado
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entre as coxas e cobrindo-lhe os seios - fora abruptamente substituída pelo anúncio de um detergente.
- Bolas - exclamou Kyle Shively. - Estou com uma tusa . Olhou para o estúpido do Brunner à sua direita. Brunner estava emudecido, e passava a língua pelos lábios secos.
Shively virou-se para o tipo que estava do outro lado, um sujeito enorme, grosseiro, e espalhafatosamente vestido, com um pouco mais de quarenta anos, e viu que esse alinhava. Via-se que o grandalhão tinha estado também a ver a Sharon Fields, porque os seus olhos esbugalhados e sedentos ainda estavam fixos no écran do televisor.
- Chamo-me Kyle Shively - disse. - Que tal a acha?
O grandalhão deu meia-volta.
- Chamo-me Howard Yost, e acho que nunca houve no Mundo mulher com um arcaboiço daqueles.
- Sim - disse Shively -, nem mais Bem, só de olhar para ela, digo- lhe daria tudo para passar nem que fosse só uma noite com uma pequena daquelas. Puxa! Tê-la, era atingir o máximo na minha vida. Não concorda?
- Concordar! - repetiu Yost. - Olhe, trocaria a minha mulher, dois filhos e todos os meus clientes só para ter uma vez um pedaço como a Sharon Fields. Dêem-me só uma noite inteira com ela. Depois disso nada mais seria importante. Já podia morrer feliz.
Inesperadamente, o cangalheiro, ou lá o que era, que estava à direita de Shively, inclinou-se sobre o balcão para o lado deles. Leo Brunner, puxando os óculos para cima, recobrou a voz.
- Sim, concordo convosco. Uma aventura, tal como essa de que falam, com Sharon Fields, parece-me merecer tudo. Mas, pessoas como nós. - Abanou tristemente a cabeça, pequena - não temos hipótese de realizar um sonho desses.
- Claro que temos - disse uma voz calma e segura que vinha detrás deles.
Surpreendido, Shively olhou por cima do ombro, e tanto Brunner como Yost se voltaram para ver quem tinha falado.
Quem falara era um homem novo, na casa dos vinte , pensou Shively - estava sentado a uma mesa mesno abaixo deles, um rapazinho bonito, de cabelos castanhos-escuros, queixo quadrado, que vestia um casaco cinzento de veludo, comprido e gasto, com cinto de cabedal, largo, e calças de malhas azuis muito justas. Sorria para eles, guardando uma espécie de bloco enquanto se levantava.
- Olá! - cumprimentou, aproximando-se. - Chamo-me Adam Malone. Desculpem, mas não pude deixar de ouvir o que diziam acerca de Sharon Fields.
Olhou para Brunner e atirou logo:
- Está muito enganado, Sr. Brunner. Homens como nós têm, com certeza, uma hipótese com uma mulher como Sharon Fields.
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Depois, fixou o olhar em Shively.
- Falava a sério quando afirmou que dava tudo para fazer amor com ela?
- Se falava a sério! - disse Shively. - Se realmente faria tudo, renunciaria a tudo para fazer amor com ela! Isso lhe garanto eu, homem! Seja o
que for. Daria tudo para ir uma vez para a cama com ela.
- Bom, o seu desejo pode tornar-se uma realidade - disse Malone, com confiança. - Se quiser mesmo muito dormir com ela, isso realizar-se-á. Isso
pode-se arranjar.
Shively e os outros dois olharam para o estranho, ainda admirados com a sua autoconfiança.
- Mas que homem é você? - perguntou Shivyle.
- Sou alguém que conhece muito bem Sharon Fields. Acontece que sei que ela iria para a cama com qualquer um de nós, se tivesse essa oportunidade. Como vos disse, pode-se arranjar. Assim, se.
Yost interrompeu.
- Um momento, homem. Está a falar de mais. - Olhou para o copo meio vazio em cima da mesa, e perguntou - Tem a certeza de que não bebeu de mais?
- Estou no meu juízo perfeito - disse Malone, sinceramente. - Nunca estive tão sóbrio e tão sério. Pensei nisto durante muito tempo. Só falta es tudar os pormenores. - Hesitou. - E há um mínimo de riscos.
Shively olhou para Yost.
- O miúdo parece que está a falar a sério.
Brunner tirou os óculos e perscrutava Malone com os olhos míopes.
- Eu. eu não o quero contrariar, Sr. Malone, mas pessoalmente, custa-me acreditar em si. Que é que Sharon Fields veria em tipos como nós? Na
escala social não somos ninguém. Eu, pelo menos, confesso-o. Acabou de vê-la no aparelho de televisão - ela é alguém, uma celebridade internacional.
Talvez seja, até, a ra pariga mais famosa e desejada do Mundo. Tenho a certeza de que pode ter quem quiser. Bastará fazer um sinal com o dedo e terá à
sua disposição os homens mais ricos, mais poderosos, quer sejam chefes de
nação ou cabeças coroadas. Tem todos os homens do Mundo a seus pés. Portanto, porque é que estaria interessada em nós?
- Porque nunca teve ninguém com quem se identificasse - respondeu Malone. - Conheço as pessoas que a rodeiam. Ela nunca teve na vida um ser
humano e honesto. No entanto, é isso o que mais deseja. Não homens famosos. Não homens da sua classe, que se aproveitam para a usar só pelo
nome. Não. Ela deseja homens verdadeiros que a queiram por si e não por aquilo que representa.
- É difícil de perceber. De qualquer maneira, mantenho o que disse. Por
mim, pago a minha parte. Largaria a minha mulher e os dois miúdos num
abrir e fechar de olhos. Dou todo o dinheiro e, ainda, a casa. Por uma noite
com a Sharon Fields? Daria tudo. É o que tenho a dizer.
- Então é como vos digo - insistiu Malone. - Podem tê-la. E
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provavelmente sem terem de abdicar dos bens materiais. Somente, como vos disse, têm de correr um pequeno risco. Porque há apenas um pequeno obstáculo, que é conhecê-la.
Shively franziu o sobrolho.
-Não percebo. Pensei que você a conhecia.
-E conheço. Conheço-a melhor do que qualquer outra mulher no Mundo. Sei tudo sobre ela. Só que ainda não a conheci pessoalmente. Mas posso fazê-lo. Vocês também. Sei como consegui-lo.
- Como? - Shively puxou por ele. - Se é assim tão esperto, diga como é.
Adam Malone ia recomeçar a falar, mas reparou nos outros clientes que estavam perto, e baixou a voz.
- Não acho que este seja o local indicado para discutirmos o caso. Será melhor falarmos sobre o assunto em particular.
Olhou em volta.
- Há ali um cubículo vazio, ao fundo da sala. Querem ir para lá?
Havia um quarto de hora que estavam relativamente isolados no cubículo cinzento, e a conversa interrompeu-se quando a jovem criada de mesa, gorda e ruiva, de meias pretas, veio tirar os copos vazios, deixando bebidas frescas e guardanapos na mesa semicircular de tampo de fórmica.
Adam Malone estava sentado, muito direito, no meio do cubículo, com os ombros encostados à parede. À sua direita, achava-se Kyle Shively, fumando cigarros uns a seguir aos outros. À sua esquerda, via-se Howard Yost, mastigando um charuto apagado. Em frente de Malone, estava Leo Brunner, muito nervoso, empoleirado no banco que tinha trazido para o cubículo.
Um pouco embaraçados, tinham-se apresentado de novo uns aos outros, sem adiantar muito. Shively era mecânico de automóveis, e, por vezes, para ganhar mais algum dinheiro e para se entreter, arranjava carros usados que haviam sido abandonados, vendendo-os depois. Yost era angariador de seguros, trabalhava para a Everest Life Insurance Company e oito firmas suas associadas. Brunner era contabilista e tinha escritório próprio e os seus clientes. Malone era um escritor e colaborador em algumas revistas, e, por vezes, arranjava outros trabalhos para sobreviver, ou apenas para ganhar experiência.
Pouco à vontade, Malone voltou ao assunto de Sharon Fields. Havia sete ou oito minutos que falava sobre este assunto. Confessou que fora sempre um louco por cinema. Desde o momento em que vira Sharon Fields no seu primeiro filme, oito anos antes - num papel reduzidíssimo numa comédia frívola chamada O Sétimo Véu -, havia-se tornado seu escravo. Seguiu a sua subida vertiginosa a superestrela. Tinha visto cada um dos seus vinte e três filmes não uma vez, mas duas e, frequentemente, três e quatro vezes. A
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sua paixão por ela já vinha de longa data, o seu entusiasmo por ela nunca diminuíra. A sua vocação tinha sido observar Sharon Fields. Era um es tudioso da sua vida e da sua carreira. Especialmente nestes três últimos anos
tinha dedicado horas sem fim a estudá-la. Estava certo de que ninguém posssuía uma colecção Fieldsiana tão extensa como a sua.
- Portanto, quando afirmo que a conheço, podem acreditar em mim - repetia Adam Malone. - Conheço todas as afirmações que tem feito em público. Sei o que fez, praticamente tudo o que pensa. Sei como vive. Conheço os seus sentimentos, as suas aspirações e as suas necessidades. Por muito
pouco modesto que vos possa parecer, eu sou a autoridade máxima no que diz respeito a Sharon Fields.
- Porquê? - perguntou Yost.
- Porquê? Porque está aqui. Porque
conhecê-la como eu a conheço
tem enriquecido desmedidamente a minha vida.
- Mas ainda não a conheceu pessoalmente? - perguntou de novo Shively.
- Não, mas sempre tive o pressentimento de que viria a conhecê- la. E quando isso acontecer, quero estar preparado.
Brunner tinha-se mexido.
- Não acontecerá nunca - disse. - Todos têm esse género de sonhos. Mas nunca se transformaram em realidade.
- Este transformar-se-á - disse Malone, enfaticamente. - Há cerca de
um ano eu imaginei como consegui-lo. Com alguma ajuda, sei que o podia transformar em realidade.
- Está bem, basta de conversa - disse Shively. - Diga-nos como.
- Terei muito prazer nisso....
Mas a empregada tinha aparecido com mais bebidas frescas, e Malone e os
outros esperaram que ela os servisse e se fosse embora.
Agora, os olhos estavam todos postos em Malone, esperando que ele revelasse como pretendia realizar o seu sonho.
Em voz baixa, de conspiração, mas sem vacilar, Adam Malone disse- lhes
como poderiam conhecer Sharon Fields. Escutaram em silêncio sem compreenderem, e Malone, encorajado, e pensando que quem cala consente,
preparou-se para explicar o seu plano.
Foi Howard Yost, o vendedor que não tinha ido no jogo, que o interrompeu, não o deixando prosseguir.
- Alto lá, um momento - disse Yost. - Só apanhei a última parte do que disse. Só agora é que percebi, penso eu. Que quer dizer exactamente?
Quero ter à certeza de que percebi bem.
Malone aceitou a interrupção não como reprimenda ou desafio, mas apenas como um pedido de esclarecimento.
- Repito, com muito gosto - disse, agradavelmente. - Apenas afirmei
que, para ser absolutamente realista, não poderíamos possivelmente conhecer
Sharon Fields dum modo normal. É pouco provável que houvesse uma
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oportunidade para que qualquer de nós pudesse chegar ao pé dela, apresentar-se, e sair com ela. Ela está rodeada dum muro protector de sócios, parasitas, servos. E estes vão desde o seu agente pessoal, Felix Zigman, e a sua secretária particular, Nellie Wright, até ao seu homem de relações públicas, Hank Lenhardt, e ao cabeleireiro, Terence Simms. Há uma maneira de a conhecermos - de modo a dar-lhe uma oportunidade para nos conhecer e vir a gostar de nós. Teríamos de criar uma situação em que a arrancássemos ao seu meio. Teríamos de criar uma situação em que forçássemos o encontro, num momento em que não houvesse mais ninguém entre ela e nós.
Cautelosamente, Yost pôs o copo na mesa e inclinou-se para a frente.
- Que quer dizer com forçar o encontro? Que quer isso dizer, exactamente?
-Quer dizer: ir buscá-la.
- Ir buscá-la! - disse Yost. - Continuo sem perceber.
- É simples - disse Malone, com surpresa. - Ir buscá-la e trazê-la connosco. Só isso. Chame-lhe o que quiser.
Yost semicerrou os olhos.
-Quero saber como chama a isso, Malone.
- Bem. - Malone pensou um bocado. - Penso que. quero dizer que a mandamos parar e. bem, eu não quero dizer raptar. não interprete mal, não iríamos exactamente raptá-la, mas.
- Rapto foi o que pensei que tinha dito logo de princípio - disse Yost, em tom triunfante. Olhou para Malone. - Raptá-la? Raptar Sharon Fields? Nós? Quer dizer que é esse o seu grande plano?
Olhou para os outros com asco, depois olhou de novo para Malone.
- Olhe, caro senhor, não sei realmente quem você é ou de que manicómio fugiu. Mas se é a isso que se refere.
Abanou a cabeça, puxou da carteira, e começou a pôr em cima da mesa a sua parte da conta.
- No meu género de trabalho, conhecem-se muitos estilos de tarados e ouvem-se muitas propostas estranhas. Mas esta ultrapassa todas. Se bem o entendi e se quer fazer aquilo que realmente penso que quer. bem, sem ofensa, você é completamente louco.
Malone permaneceu calmo e sereno.
-Sim, suponho que me entendeu bem. Penso que era isso o que eu queria dizer, excepto que, este caso seria diferente. O acto em si não teria significado. o acto de raptar no sentido vulgar, porque a nossa intenção e a reacção dela não seriam vulgares. Você havia de concordar que isto não tinha mal nenhum, nem iria trazer complicações, se tivesse a mesma certeza que eu da maneira afirmativa como ela reagirá.
Yost continuou a abanar a cabeça, guardando cuidadosamente a carteira.
- Você não deve estar bom da cabeça para pensar desse modo. Desculpe. Acabo de o encontrar. Não o conheço. Apenas sei o que ouvi. E rapto, e raptar é um dos piores crimes que existem.
- Mas não percebe que não seria um crime? - Malone protestou
convictamente. - Seria apenas uma maneira romântica e honesta de a termos e torná-la consciente da nossa existência.
Yost olhou para o outro lado da mesa.
- Shively, faça o favor de lhe dizer que ele é louco.
Malone ignorou Shively e continuou a falar febrilmente com o vendedor.
- Você não compreende, Sr. Yost. Se tivesse os meus conhecimentos sobre ela, também seria simples para si. Raptá-la seria incidental, seria apenas
um meio para atingir um fim. Uma vez isso feito, se chegássemos a um
acordo com ela, ela alinharia. Acredite que sim. E quando ela concordasse,
todas as consequências seriam voluntárias da parte dela. Tudo o que acontecesse era porque ela o queria. Você poderia dormir com ela. Eu também. E
posssivelmente todos nós. Pelo que dela sei, tenho a certeza de que se sentirá feliz por cooperar. Ela é mais livre e liberal sobre estes assuntos do que a maioria das mulheres. Acredite, Sr. Yost, no fim, não haveria crime
nenhum. Ela ficaria lisonjeada. Adoraria.
- Quem é que lhe disse? - perguntou Yost, fazendo um sinal a Brunner
para afastar a cadeira. Brunner levantou-se, e Yost desviou-se e pôs-se de pé.
- Digo eu - afirmou Malone, com veemência. - Sei que não haverá sarilho. Posso prová-lo.
Yost ignorou-o, mas Brunner falou em tom paternal.
-E se estiver enganado, Sr. Malone?
-Não posso estar enganado. É impossível que esteja.
Shively tinha estado ocupado a contar os trocos. Dirigia-se agora para a extremidade do cubículo.
- Olhe, amigo - disse ele -, acho que já brincou de mais.
Levantou-se, acrescentando:
- Além disso, mesmo que fosse a fingir, e para já como pode ter a certeza de que conseguia isso?
- Não há problema. Seria simples. Como vos disse, há muito que ando a
planear. Todos os pormenores. Posso mostrar-vos.
Yost deu uma risadinha.
-Não, obrigado. Terá de procurar outros parvos com quem possa
brincar aos sonhos.
Virou-se para o homem mais velho.
ì - Concorda, Brunner?
O contabilista baixou a cabeça, cumprimentando Malone amigavelmente e como que a desculpar-se.
- Receio que tenha estado a brincar connosco, Sr. Malone. Foi isso, não
foi? Devo dizer-lhe que invejo a sua imaginação.
Shively foi menos amigável. Puxando para cima as suas calças apertadas, olhou fixamente para Malone.
- Houve uma altura em que me ia convencendo, rapaz. Mas vejo que só esteve a armar. Não gosto que me façam perder assim o meu tempo.
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Malone parecia aceitar, imperturbável, o descrédito pessoal que estavam a dar-lhe. Como escritor, já estava muito habituado a rejeições.
- Desculpem, mas falei muito a sério - disse.
Encolheu os ombros.
- De qualquer maneira, se algum de vocês mudar de ideias - e quiser saber como o faremos -, estarei aqui amanhã, no mesmo lugar, à mesma hora. É convosco.
Quando estava quase para sair, Yost pôs a mão ao lado da boca, como se a despedida para Malone fosse confidencial.
- Olhe, rapaz, para bom entendedor, meia palavra basta. Piscou ostensivamente o olho.
- Siga o meu conselho e desapareça. O tipo do colete-de-forças está lá fora à sua espera.
No dia seguinte, terça-feira, às cinco e meia da tarde, Kyle Shively estava mesmo a acabar o último trabalho para Nave, uma revisão importante num Cadillac com três anos.
Como tinha sido outro mau dia, uma verdadeira chatice, concentrou-se com o dobro da atenção no seu trabalho para não pensar no que o atormentava. Tinha acabado a parte mais morosa - a verificação da pressão nos cilindros - e estava agora a limpar as velas com uma bomba de areia e a colocá-las de novo cuidadosamente. Dava-lhe uma certa satisfação encaixar as velas com perfeição, e esta parte do trabalho requeria menos raciocínio e concentração.
Enquanto se ocupava sob o capô, o pensamento de Shively retrocedeu para aquela manhã em que tinha acordado com uma grande erecção. Não tinha tido vontade de ir à casa de banho, portanto não era isso. Aparecera uma mulher nua na última parte do seu sonho, mas tinha-se dissolvido, evaporado, quando acordou. Não conseguia lembrar-se se seria aquela actriz, Sharon Fields, por a ter visto seminua na televisão na noite anterior ou porque ouvira aquele lunático no bar, aquele pequeno Malone, e tinha desejado acreditar nele, continuando, por isso, excitado. Ou se fora aquela cadela da Kitty Bishop, que o provocara, fazendo-o acreditar que iria sair com ele para depois não aparecer e o ter ridicularizado.
Enquanto estava deitado na cama, naquela manhã, à espera que baixasse a erecção, chegou à conclusão de que não podia ter sido a visão de Sharon Fields que o estimulara. Não, ela não fora real, nem palpável, nem mesmo fruto da sua imaginação, apesar daquele tarado do bar. Portanto, fora com certeza aquela cadela, a Sra. Bishop, que lhe ficou na mente.
Saltando da cama, espreguiçou-se e chegou a uma conclusão sobre Kitty Bishop. Ainda não estava convencido de que tinha interpretado mal as suas intenções. A princípio, mostrara-se provocadora, sem dúvida, e, apesar da contradição das suas reacções nas duas vezes que lhe telefonara no dia
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anterior, ainda estava convencido de que tinha razão sobre a primeira opinião
que formara a seu respeito. Talvez as reacções dela ao telefone fizessem parte
da rotina, automaticamente a fazer-se cara, a fingir-se ingénua e chocada para
que ele visse que não era uma qualquer, que era uma senhora, e que ele teria
de procurá-la e esforçar-se, se realmente a desejava.
Bolas, e desejava-a mesmo!
seguindo um impulso, decidiu fazer o jogo dela. Telefonar-lhe-ia mais
uma vez, experimentaria de novo, dar-lhe-ia uma oportunidade para que
confessasse que realmente o queria ver. Ele esqueceria o que se tinha passado.
Iria lisonjeá-la, provocá-la e usar, talvez, um pouco de conversa sobre sexo.
Isso arrumava-a, com certeza. Resultava sempre.
Depois de beber uma golada de sumo de laranja pelo gargalo da garrafa,
acendeu um cigarro, dirigiu-se ao telefone e ligou o número da residência Bishop.
Ena! Lá estava ela ao terceiro toque, ela mesmo, não a criada, nem o velho, mas a própria Kitty. Começou logo a atacar, meio a desculpar-se, meio
adulador, a dizer que não tinha conseguido dormir quase nada durante a noite só a pensar nela. Não dissera ainda mais do que três ou quatro frases, quando ela o interrompeu. Descompô-lo até quase lhe rebentar com os
tímpanos. Avisou-o de que ele é que tinha querido assim, e que iria tomar
uma atitude por ele a ter incomodado e por ter invadido a sua intimidade, desligando-Lhe o telefone.
Desta vez, a fúria foi substituída pelo medo da represália.
Foi trabalhar, sentindo-se meio furioso meio apreensivo. Mas houvera
uma grande afluência de carros para reparar, por isso não teve tempo para incentivar o seu furor, e, à medida que as horas passaram, sem reclamações dos estupores daqueles ricalhaços, a sua apreensão desapareceu.
Colocou a última vela no motor do Cadillac, e estava quase a pô-lo a tra balhar, quando ouviu Jack Nave gritar pelo seu nome.
Shively levantòu a cabeça na altura em que Nave travava o reboque....
Shively nem reparara que o patrão tinha saído. Viu Nave abrir a porta, saltar
para o chão, e dirigir-se para ele, bamboleando-se. Vendo o olhar de Nave
Shively concentrou-se. Conhecia bem o patrão, e sabia que fervia sempre em
pouca água, e, nesse momento, estava prestes a rebentar. A cara forte de
Nave estava carrancuda, a sua enorme barriga pendurada sobre o cinto fazia-o parecer um tanque do exército, as mãos estavam fechadas nos punhos.
Antes que Shively tivesse tempo de reagir, Jack Nave atacou- o:
- Seu estúpido, seu cretino - gritou-lhe Nave, furioso. - Começas a dar-me mais prejuízo do que lucro, com os sarilhos que arranjas!
- Mas que diabo de mosca lhe mordeu - reclamou Shively, orientando o seu terreno, tentando fazer frente. - Que é que tem, Jack?
- Eu não tenho nada.... és tu, tu é que andas a fazer ondas - Nave reteve a respiração, recuperando o fôlego. Então, reparando que a discussão
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estava a ser ouvida pelos empregados que aviavam dois clientes nas bombas, Nave baixou a voz, mas não mudou o tom.
- Ouve o que te digo, minha besta, vou-te dizer onde estive por tua causa.
Shively já calculava onde Nave tinha estado, mas continuou com cara de inocente.
- Estive em casa do Sr. Gilbert Bishop, é o que foi. Estive lá meia hora a levar uma descompostura da Sra. Bishop. E não me perguntes porquê, grande besta. Sabes bem porque foi. Temos um regulamento neste negócio, e avisei-te, no teu primeiro dia de trabalho, que não se namorica com as clientes. Não misturamos trabalho com prazer. Nunca. Portanto, qual foi a tua ideia, Sr. Romeu? Tentar conquistar uma senhora como a Sra. Bishop? Que raio te fez pensar que ela havia de querer um tipo como tu? Ela desfiou-me o rosário todo. A tentares fazer-te com ela, como se ela fosse uma ordinária qualquer que quer enganar o marido, e, ainda para mais, com um macaco sujo de óleo. Ainda por cima a aborrecê-la ao telefone - três vezes, disse-me ela -, incomodando-a, não a deixando em paz.
- Ela é que é a culpada, não eu - interrompeu Shively, imediatamente. - Não fiz absolutamente nada de mal. Não saí da linha nem uma vez. Foi ela. Ela é que se atirava a mim, convidando-me para a levar a tomar uma bebida. Geralmente, ignoro essas coisas. Conheço o regulamento, Jack. Mas pensei em si, isso é que foi. Se não fizesse o jogo, ela podia ofender-se e fazer com que o velhote passasse a ser cliente doutra estação. A verdade é que estava apenas a pensar em si, Jack.
-És o gajo mais lixado desta terra, Shiv. Agora queres-me convencer que foi por mim que o fizeste, pela nossa velha Economy Station. Foram as tuas boas intenções que te fizeram convidá-la a sair? Foram as tuas boas intenções que te fizeram telefonar-lhe uma, duas, três vezes? Deixa-te de histórias, Shiv, não me lixes.
- Não estou a lixá-lo, juro.
Estava um carro a buzinar na zona das bombas. Nave virou-se, viu o dono a chamá-lo, e gritou-lhe que já ia.
Virou-se novamente para Shively.
- Ouve, meu espertalhão, mas ouve-me bem. A Sra. Bishop avisou-nos, estás a ouvir? Foi suficientemente decente em dizer que, desta vez, não faria queixa de ti ao marido. Mas se tentas mais alguma vez, quer ela esteja na estação, quer seja pelo telefone, ela diz ao marido. E isso seria o fim. Ele iria para cliente de outra estação. Sabes o que a conta dele representa para mim. É um dos nossos melhores clientes. E também manda os amigos ricos para cá. Não posso arriscar-me a perder um cliente desses. Prefiro perder dez vagabundos como tu a perder um cliente como o Bishop. Se tivesse juízo, despedia-te imediatamente. Mas já cá estás há algum tempo, e tens feito o teu trabalho, portanto tomo isso em consideração. Não gosto de me precipitar. Mas ouve com atenção, Shiv, aviso-te, vou-te pôr à experiência a partir de
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hoje, tal como a Sra Bishop me fez a mim. Mais um passo em falso com ela
ou outra cliente qualquer, e vais para o olho da rua. Portanto, a partir deste
momento, o melhor é conservares a boca e a braguilha fechadas, só trabalhar enquanto cá estiveres, e mais nada. Será melhor não o esqueceres.
Tendo dito isto, Nave dirigiu-se a passos largos para as bombas, e Shively
ficou espumando com o peso de uma injustiça sobre outra.
O que mais irritava Shively era o facto de mesmo ontem ter estado a magicar a maneira como iria fazer uma proposta a Nave, pedir-lhe o aumento que merecia há muito tempo. Tinha pensado ameaçar despedir- se se Nave
não lhe desse, em vez do ordenado, uma percentagem sobre as reparações em
todos os carros que ele arranjasse. Agora, essa ameaça não fazia sentido, a sua
vantagem desaparecera. Em vez de estar em posição de pedir aumento, tinha sido castigado e voltava ao ponto em que podia ser despedido de um dia para o outro. Tudo por causa daquela ricalhaça irritante que o desejava, mas que
não o admitia por considerá-lo inferior. Como se o marido, que
provavelmente não lhe ia para cima há dez anos, fosse melhor só porque tinha um milhão de dólares ou mais ganhos a enganar o público e o Governo.
Shively recordava-se de ter lido algures que, num dos últimos anos, 112 pessoas haviam tido rendimentos anuais superiores a duzentos mil dólares e não
tinham pago um centavo de impostos. O gordo do Bishop devia ter sido um desses. Bolas!
Shively voltou para o carro para despachar o serviço e sair dali o mais
depressa possível. Estava farto do Nave, da sua estação de serviço e dos
clientes piolhosos. O que ele queria agora era uma boa bebida, e, quanto mais forte, melhor.
Meia hora depois, lavado por fora, mas não por dentro, Kyle Shively
entrou no All-American Bowling Emporium, dirigiu-se para o Lantern Bar,
cujo balcão se encontrava meio vazio. Sentou-se num banco do bar, e cumprimentou o barman.
- Que toma, Sr. Shively - Perguntou Ein. - O costume?
- Não. Uma cerveja não me serve esta noite. Dá-me um teguilla duplo. Só com gelo.
- Mau dia?
- Sim. Péssimo.
Enquanto esperava pela bebida, Shively examinou a sala escurecida.
Normalmente encontrava sempre alguém conhecido. Mas, nesse momento, como era hora de jantar, não reconheceu ninguém. Os seus olhos pousaram
no cubículo do fundo, onde estivera com aquele tarado e os outros dois parvalhões. Estava vago. Ninguém lá estava, nem sequer aquele maluco com as suas tolices sobre Sharon Fields.
Ein pousou ocopo de tequilla e o guardanapo.
- Onde é que se meteu esta gente hoje? - perguntou Shively.
- Bem, é um pouco cedo. Queria ver alguém em especial?
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- Não sei. Que é feito daquele tipo com quem estivemos ontem à noite, aquele miúdo que diz que é escritor?
-Ah, refere-se ao Sr. Malone?
- Penso que sim. Sim. Adam Malone. Ele é mesmo escritor, ou estava a enfiar-me o barrete?
- Bem, sim, penso que o pode classificar como escritor. Não o conheço
muito bem. Tem cá vindo poucas vezes. Já me mostrou uma vez um artigo
dele. Numa daquelas revistas intelectuais. Duvido que lhe tivessem pago
bem, se é que lhe pagaram alguma coisa. Quero dizer, era uma revista que
nunca vi na tabacaria. Mas penso que isso o torna um escritor.
- Sim.
- Por acaso, ele passou por cá há uma hora. Bebeu só um copo de vinho
branco, e sentou-se para escrevinhar umas notas. Disse que estava com
pressa. Ia acabar um trabalho e, depois, ia para o Hollywood Boulevard ver a
Sharon Fields. Parece que ela vai aparecer pessoalmente na estreia do seu novo filme.
Ein bateu com um dedo na cabeça.
- Agora me lembro. Antes de sair, o Sr. Malone avisou-me de que, se
alguém perguntasse por ele esta noite, bem, que dissesse que voltaria mais
tarde. Quase me ia esquecendo. Portanto, penso que o recado era para si ou
para qualquer outra pessoa que perguntasse por ele. Se quiser falar com o
sr. Malone, talvez o encontre lá, na estreia. E também terá oportunidade de ver Sharon Fields em carne e osso. Aquela rapariga é mesmo uma beleza.
- Não tenciono ver o Sr: Malone nem mais cedo, nem mais tarde - disse Shively. - Quanto a Sharon Fields....
-Se me dá licença, Sr. Shively; tenho um cliente com sede na outra extremidade do bar.
Shively acenou com a cabeça, pegou no seu tequilla, e engoliu quase metade do líquido de uma só golada. Sentiu imediatamente o calor do álcool, e
esperou que este se espalhasse pelo peito, pelas tripas e lhe chegasse às virilhas.
Fixara qualquer coisa que o Ein lhe dissera. O ver Sharon Fields em carne e osso.
Em carne e osso. Aquela carne sem nada por cima. Que espectáculo!
A sua cabeça logo se encheu com a imagem em tamanho natural do corpo
nu de Sharon Fields, a mulher mais sexy do Mundo, a quem ele tinha visto
no dia anterior na televisão e tantas outras vezes em milhares de revistas e
jornais. Lá estava ela, toda esticada, deitada ao comprido no seu pensamento, e sem nada por cima.
Com surpresa e prazer, Shively reconheceu-a imediatamente.
Tinha sido com ela - ela, Sharon Fields e não Kitty Bishop - com quem
tinha sonhado antes de acordar naquela manhã com tesão. Fora ela que o
tinha excitado nessa manhã, tal como o fazia de novo agora.
Tomou outro golo de teguilla e decidiu o que queria fazer naquela noite.
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Comeria qualquer coisa rapidamente em qualquer lado, saltaria para o carro e iria ao Hollywood Boulevard ver com os seus próprios olhos Sharon Fields em carne e osso. Sim. Em carne e osso, para ver se ela correspondia, de facto, à realidade.
Nessa mesma terça-feira, às seis menos um quarto da tarde, Howard Yost
estava sentado na sala de estar ricamente mobilada de uma casa de estilo
rústico francês na pretensiosa Brentwood Park, um subúrbio exclusivo situado na parte oeste de Los Angeles.
O seu corpo ocupava confortavelmente a grande poltrona forrada de tecido escocês, sentia-se à vontade, sociável, conversador - pelo menos esperava
manter essa disposição -, porque viera para esta entrevista com possíveis
clientes prósperos, debaixo de uma tensão e ansiedade que tinha aumentado durante o dia.
O distinto e bem vestido casal, sentado do outro lado da mesa, os Livingstones, era contra o correr riscos e mostrava-se receptível a um extenso
programa de seguros. Yost tinha-lhes sido recomendado por um amigo mútuo, correspondente de uma revista desportiva em Nova Iorque, que o conhecera há cerca de vinte anos nos seus bons tempos de atleta e que se
tornara amigo do Sr. Livingstone ao participar dum documentário deste sobre
futebol. O Sr. Livingstone, um homem calado, atencioso, amável, de cinquenta e oito anos, era um produtor independente de documentários televisivos, de muito sucesso. Yost fora informado que o Sr. Livingstone, que
tinha quatro filhos, tencionava fazer um seguro grande para proteger a família
contra o imposto sobre heranças que, um dia, com a sua morte, viria absorver grande parte da sua propriedade.
Yost sabia que o Sr. Livingstone tencionava fazer um seguro de vida
completo de duzentos mil dólares. Ele confirmara isso mais tarde numa primeira conversa telefónica em que combinaram a entrevista dessa tarde.
Também sabia que o Sr. Livingstone contactara outros agentes de seguros
recomendados por amigos da Califórnia. A quantia em jogo era grande para
Yost. Se ele lhe vendesse uma apólice de duzentos mil dólares, os prémios
brutos nos dez anos seguintes somariam 137060dólares. Como a comissão
de Yost era de 55 por cento sobre o prémio do primeiro ano, e de 5 por cento
sobre cada prémio anual dos nove anos seguintes - cinquenta e cinco e
nove vezes cinco, foi como ele pôs o problema à sua mulher, Elinor, que
logo se agarrou à ideia e também ficara ansiosa -, isso significava que Yost
só com aquela apólice receberia imediatamente 7538dólares limpos.
grande negócio. Grande de verdade. Talvez não o fosse para aqueles
agentes especialistas da sorte que pertenciam à Million Dollar Round Table,
cujos membros vendiam anualmente um milhão de dólares ou mais de
seguros. Mas para Howard Yost, que ganhava cerca de 18000dólares por
ano (mais do que os veteranos que ele conhecia e que não tiravam mais do que
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10 000 dólares por ano), um só golpe como o de Livingstone significava muito; poderia liquidar as dívidas, poderia viver mais à vontade. Quase não conseguia sobreviver com o ordenado que tirava presentemente, com a subida dos impostos, a subida de preços da comida e vestuário, as despesas com a casa em Encino, as lições de ballet da Nancy e as lições de ténis para o Tim, a manutenção do carro, o levar Elinor a sair de vez em quando. Era duro. Era impossível. Só para conseguir sobreviver, era necessário trabalhar não oito mas dez ou doze horas por dia.
Por conseguinte, durante toda essa semana, a grande preocupação de Yost tinha sido o causar boa impressão aos Livingstones. Nos últimos anos, frustrado e aborrecido pela sua falta de habilidade em melhorar o negócio, Yost tornara-se um pouco indolente, complacente e, até, desleixado no seu trabalho. Mas, para os Livingstones, treinara-se como costumáva fazer na Universidade antes de um jogo importante. Ocorriam constantemente alterações drásticas nos prémios, nas regras, nas taxas e no processamento de dados dos seguros, e Yost estudou-as a fundo. Estudou as taxas e os contratos das apólices. Tirou informações sobre o seu possível cliente, e elaborou vários programas de alternativa, bem apresentados e escritos à máquina, preparados para satisfazer as necessidades do cliente.
Yost até se aperaltou cuidadosamente para a entrevista. Sabia que, quanto ao peso, quanto a parecer elegante, nada podia fazer. Pesava 100 quilos, e teria de fazer uma grande dieta para diminuir para os oitenta, peso ideal para a sua altura de um metro e oitenta. No entanto, foi ao barbeiro (gastara dezoito dólares), para cortar e pentear para o lado o seu cabelo cor de areia. Comprou também um fato novo e gabardina, à última moda, com sapatos Gucci a condizer, compras essas que estavam fora do seu orçamento.
E ali estava, na casa dos Livingstones, sincero, polido, irradiando autoconfiança e segurança.
Durante o primeiro quarto de hora falou quase exclusivamente de Los Angeles, de como os Livingstones viriam a adorar a cidade, tal como acontecera com ele e a mulher, Elinor, e as suas duas crianças.
- Um paraíso para os jovens - afirmou.
Abordou intencionalmente a educação das crianças, pois sabia que estava a lidar com um cliente preocupado em defender a herança dos seus próprios filhos.
Então, sem ter a certeza se tinha ou não causado boa impressão aos Li vingstones quanto à sua posição de potencial defensor e conselheiro familiar, decidiu descrever em linhas gerais a sua autobiografia de maneira breve e slectiva, dando ênfase aos anos efémeros (apesar de ultrapassados), em que teve fama e admiração junto do público. Mas, antes que tivesse tempo de começar, o Sr. Livingstone olhou para o relógio e disse:
- Temos um jantar um pouco cedo, Sr. Yost. Porque não tratamos já do assunto? Que propostas preparou?
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Momentaneamente apanhado de surpresa, Yost recompôs-se rapidamente, abriu a pasta e tirou o dossier cinzento que continha três planos
para apólices, os quais, explicou, haviam sido elaborados para satisfazer as necessidades pessoais do Sr. Livingstone.
Passando a pasta ao cliente em perspectiva, Yost prosseguiu rapidamente:
- Se estudar cuidadosamente a primeira proposta, Sr. Livingstone, compreenderá porque a recomendo em especial. É um contrato de Seguro de
Vida Permanente que tem um valor em dinheiro garantido. Pode ver como
esse valor aumenta no primeiro mapa, e, na última coluna, vê-se como esse
valor em dinheiro contribui todos os anos para o pagamento do seu seguro,
sem que sejam necessários mais pagamentos de prémios.
Fez uma pausa. O que se seguia era o mais difícil, mas tinha de continuar.
- Tente compreender, Sr. Livingstone. Se tiver esta apólice durante dez
anos - uma apólice de protecção de 200000dólares por dez anos -, o valor
em dinheiro de 64800dólares que receberia de juros contrabalançaria o
prémio total de 137060dólares, e, portanto, para si o custo líquido ascenderia somente a 72260dólares contra os 200000de protecção à sua
família. Numa base anual, isto significa que o prémio começa em 13706
dólares, mas decresce uniformemente, de modo a permitir que a sua despesa total seja relativamente baixa em relação a uma apólice destas.
O Sr. Livingstone abanava a cabeça aprovadoramente enquanto ele e a mulher examinavam o programa no dossier.
Encorajado, Yost ia principiar a explicar a maneira como o Sr. Livingstone poderia fazer uma apólice dele em nome da mulher - para, no caso
de ele desaparecer (o eufemismo usado pelos agentes de seguros para referir a morte), os benefícios não ficarem sujeitos ao imposto sobre as sucessões.
Mas, antes que tivesse tempo de começar, a sua atenção foi desviada pelo
barulho de passos de alguém que descia as escadas para o hall, e que entrou aos saltos na sala.
Era uma rapariga linda, morena, rosto angular, corpo todo às curvas,
pouco tapado, em pleno esplendor dos seus vinte anos.
- Pai - vinha a dizer quando entrou, depois parou, vendo que estava
mais alguém na sala. - Oh! - disse ela. - Desculpe. Eu....
O Sr. Livingstone levantou os olhos do dossier.
-Olá, Gale.
E virou-se para Yost.
- Sr. Yost, apresento-lhe a nossa filha mais velha, Gale Livingstone.
Yost levantou-se desajeitadamente.
- Muito prazer em conhecê-la, Miss Livingstone.
- Olá - disse ela, sem cerimónias, ignorando-o.
Aproximou-se do sofá.
-Pai, se não se importa, gostava de falar consigo sobre um assunto urgente. Em particular.
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- Mas é claro que me importo - disse o Sr. Livingstone. - Tenho a certeza de que não é assim tão urgente que não possa esperar uns quinze ou vinte minutos. Bem vês que, agora, estou ocupado com o Sr. Yost. Quando terminar, atender-te-ei. Portanto, espera.
- Está bem - disse ela, contrariada. - Esperarei aqui.
-Espera onde quiseres, mas não nos interrompas.
O Sr. Livingstone fez sinal a Yost para se sentar de novo, e fixou a atenção no dossier.
Yost sentou-se. Os seus olhos, como que impelidos por uma força magnética, fixaram-se novamente na rapariga.
Ela estava de pé, a menos de três metros de Yost, com as mãos nas ancas, a olhar furiosa para os pais.
Cheia de mimo - pensou Yost. - Mas tem cá um corpo! Trazia uma blusa quase transparente, de seda branca, meio abotoada à frente. Estava notoriamente sem soutien. Os mamilos, por baixo da blusa, apontados directamente para ele. Trazia uma saia plissada, de ténis, mais curta que uma mini-saia, por cima das pernas nuas, e sandálias. Os olhos dele fixaram-se no sinal vermelho de nascença que tinha na coxa larga e bronzeada.
Começou a andar, com os seios a bambolearem-se livremente sob a blusa. Encaminhou-se para a poltrona funda igual à de Yost; mesmo à sua frente, e deixou-se cair petulantemente, afundando-se nela, os joelhos e as pernas levantadas e afastadas, de pés no bordo da mesa de café.
Os olhos dardejantes de Yost não conseguiam desviar-se do que se podia ver entre as pernas afastadas. As coxas nuas e grossas totalmente à mostra até à parte mais fina do biquini que se avolumava um pouco entre as virilhas.
Sentiu a boca e a garganta secas; e pôs logo as mãos no colo para que ninguém se apercebesse do que se passava ali em baixo. Há muito tempo que não se deixava excitar assim por nenhuma rapariga ou mulher. Tinha andado tão preocupado com as dificuldades do negócio, a tentar equilibrar o orçamento, com os problemas dos filhos, a acalmar Elinor por causa do horário, das suas desatenções e descuidos com as contas, que não tinha tido tempo nem para pensamentos nem desejos desses. Excepto uma vez, aquela vez há pouco tempo, e fora na noite anterior no Lantern Bar, quando estava com os outros tarados, a ver Sharon Fields na televisão.
Mas esta, a Gale, estava sentada mesmo à sua frente. Quase que bastava esticar o braço para lhe tocar.
Levantou os olhos para a rapariga, para ver se ela se apercebia do que estava a provocar-lhe. Ela nem sequer olhava para ele. Continuava a olhar furiosamente para os pais.
Aquela sua expressão, a boca amuada, aquele ninho entre as pernas, estavam a pô-lo louco de desejo. Por um momento, fechou os olhos e a tira entre as pernas foi rasgada, a saia e a blusa desapareceram, e ele estava por cima dela, completamente desvairado.
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Puxa! há muito tempo que não se dava ao luxo de ter este tipo de sonhos
e prazeres. Mas pensando bem, isso, sim, é que era importante. E não esta
história piolhosa de seguros, negócios e dinheiro. Viemos a este mundo para nos divertirmos, e ele tinha esquecido ou reprimira isso e, agora, a lembrança
do que era essencial abalou-o. Ao abrir os olhos, percebeu com súbito
desespero o abismo que existia entre a pessoa que era e a que gostaria de ser.
Evitou olhar para Gale, enquanto tentava ordenar os pensamentos.
Tentou pensar em Elinor e relacionar factos. Elinor era o que ele possuía, e
já era qualquer coisa. Até nem era nada mau. Catorze anos antes, ao
casar com Elinor, havia-se entusiasmado por ela. No entanto, era-lhe difícil
recordar como ela era, e imaginá-la tal como ela era nessa altura. Tentou,
desesperadamente, recordar-se. Uma rapariga nova, alta, com peitos pequenos e maduros, pernas compridas e bonitas. Ele, ainda com a sua fama de
herói do futebol, e ela a adorá-lo. Tinha sido concupiscente, casara com ela
em Las Vegas, fizera com que ela deixasse o emprego numa agência de
publicidade para estar sempre disponível, para lhe dar um verdadeiro lar e
eventualmente, alguns filhos.
Elinor e ele viveram em efervescência durante cinco, seis, talvez mesmo
sete anos. O que aconteceu depois? Provavelmente o que acontece a todas as
pessoas que casam. Demasiada uniformidade e intimidade, com as fraquezas e
defeitos cada vez mais em evidência, e a necessidade de querer, de agradar,
reduzida pelo amor que se transforma em camaradagem. Claro, ele ainda
gostava dela. No entanto, o correr dos anos e os atritos matrimoniais estavam
à vista. Ela, cansada das crianças, da casa, do orçamento. Ele, exausto de trabalho, mais trabalho, demasiado trabalho, e frustrado por nunca ter
conseguido segurança.
Mas é sempre assim - pensou para si - excepto para os poucos privilegiados que são ricos ou famosos.
E, dada a monotonia criada pelo tempo que passa e pela intimidade da vida
em comum, esta Gale, que se achava à sua frente, transformar-se-ia numa
outra Elinor, e o que ele agora ambicionava transformar- se-ia numa longa conversa muitos anos depois.
Tendo posto em ordem as suas ideias, achou que já podia olhar para Gale sem ficar tão excitado ou perturbado.
Levantou a cabeça e olhou-a. Ela lá estava, as pernas levantadas e abertas,
com a tira das cuecas a provocá-lo. Sentiu o coração começar a bater descompassadamente. Esquecer Elinor. Esquecer que esta poderá crescer e
transformar-se noutra Elinor. Vê-la como é e o que tem neste momento. Ele
desejava-a, uma noite com ela, ou uma aproximação razoável. Quem lhe
dera, de novo, a época das conferências, Fairmont em San Francisco,
Fontainebleau em Miami Beach, Chase-Park Plaza em St. Louis, com todas
aquelas lindas pegas que vinham para o quarto a um sinal do dedo.
Mas, até lá, ia uma grande espera, e talvez desnecessária. Esta miúda,
esta Gale, era com certeza esperta. Devia estar consciente do que lhe estava a fazer, a ele, um estranho, a provocá-lo dessa maneira, a querer transmitir-lhe qualquer coisa, nitidamente a provocar.
Subitamente, Yost sentiu como era importante falar com ela, dizer-lhe que estava a perceber aonde ela queria chegar, dizer-lhe quem era e o que poderia receber dele. Os Livingstones que fossem para o diabo, com aquela apólice, piolhosa e chata. O seu negócio era Gale. Ela tinha de saber que Howard Yost era mais do que um miserável agente de seguros. Era uma estrela, uma pessoa importante, alguém, ou, pelo menos, já o tinha sido, e não há tanto tempo como isso, não antes de ela ter nascido.
Olhou de relance para os Livingstones. Continuavam concentrados no dossier. Bem, podia fazer de conta que estava a falar com eles, mas as palavras seriam dirigidas à filha. Mostrar-lhe quem era o verdadeiro Howard Yost, e observar a reacção dela. Daí em diante faria o seu jogo intuitivamente.
- Sabe - disse Yost em voz baixa, falando algures em direcção ao espaço que separava os Livingstones de Gale -, estava agora a pensar nos meus tempos de estudante, não há muitos anos, na Universidade da Califórnia em Berkeley. Nunca então pensei que poderia vir algum dia a fazer contratos de seguros. Sempre pensei vir a ser eventualmente. - Hesitou:
"O que é que Gale desejaria que ele fosse? Colunista dum jornal ou comentador de televisão, por mais impossível que possa parecer?
Deu uma risadinha, com ar modesto. O Sr. e a Sra. Livingstone olharam- no sem ligar grande importância, e continuaram a sua leitura. Yost não queria ver ainda se Gale estava ao menos atenta, curiosa ou interessada.
Continuou rapidamente.
- Mas, em vez disso, o meu destino foi traçado pela glândula pituitária. Era um rapaz bem constituído. Alto, musculoso, com força, todos reparavam em mim, os rapazes, as raparigas, e convenceram-me a alinhar na equipa de futebol. Fiz logo sucesso, tinha um instinto natural para o jogo. Joguei na posição de médio-esquerdo. No meu último ano - bem, talvez já tivessem lido -, fui assistente do capitão na equipa Rose Bowl e fui eleito pelos redactores desportivos do país para a segunda equipa do All-American. De qualquer modo, todos os bacharéis importantes queriam convencer-me a associar-me aos seus negócios, e foi nessa altura que um homem, um executivo na Companhia de Seguros Everest Life.
- Pai - disse Gale, sentando-se, impacientemente. - Quanto tempo mais é que isto vai demorar? Só me restam dez minutos antes de telefonar.
- Está calada, e não nos interrompas outra vez - retorquiu o Sr. Li vingstone, severamente. - Isto vai demorar o tempo que eu achar necessário.
Não escondendo a sua fúria, Gale pôs-se de pé num salto, preparando-se para sair bruscamente.
Nesse momento, Yost compreendeu que ela o tinha ignorado completamente. Para ela, era tão importante como um troféu ferrugento sobre a lareira.
- Um momento, Miss Livingstone - disse-lhe, impulsivamente. Já não
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se sentia com vontade de continuar ali nem de discutir o programa do seguro. A venda da apólice não vinha resolver nada de importante, nem, por
certo, a frustração e agitação que sentia. A venda da apólice seria o mesmo
que tentar consertar com um penso-rápido um sonho quebrado. Virou-se
para os Livingstones, apontando de propósito para o seu rico relógio de prata.
- Não fazia ideia de que fosse tão tarde. O melhor será retirar-me, deixá-los falar com a vossa filha, e irem para o vosso jantar. O programa que
recomendo está aí todo pormenorizado. Talvez seja melhor dar- vos tempo
para o absorverem e discutirem em conjunto.
Reuniu os seus papéis, meteu-os na pasta e levantou-se.
- Posso-lhe telefonar amanhã para o escritório, Sr. Livingstone? Se tiver
alguma dúvida, ou se necessitar de algum esclarecimento, terei muito prazer
em responder ou explicar o que for preciso pelo telefone. Ou também poderei
voltar a vê-lo de novo. Agradeço-lhe sinceramente todo o tempo que me concedeu.
Alguns minutos mais tarde, depois de o Sr. Livingstone o ter acompanhado à porta bastante surpreendido, Howard Yost sentou-se ao volante do
seu Buick, tentando perceber o que lhe tinha acontecido. Isto nunca lhe sucedera anteriormente. Mas também nunca tinha tido quarenta e um anos. Nem
estivera casado catorze anos. Nem pensara que jamais teria sucesso. Nem
nunca se apercebera com tanta clareza do que se passara, e do que nunca viria a ter.
Rodou a chave e pôs o carro a trabalhar. Não tinha disposição de ir para
casa. Mas, por outro lado, não tinha para onde ir.
Meia hora depois, estava em casa. O percurso através da auto- estrada e no
Boulevard Ventura até Encino tinha-o acalmado um pouco e restaurado o
equilíbrio e o sentimento de culpa.
Quando entrou em casa, ao arrumar a pasta, tirar o casaco e desapertar a
gravata, viu Elinor, na sala de jantar, a pôr a mesa.
-Olá, querida. Olha quem chegou.
- Até que enfim - disse ela. - É a primeira vez.
-Que queres dizer?
-Jantaremos a horas normais como as outras pessoas.
Acabou de arranjar a mesa, e veio para a sala. Ele olhou para ela, sentindo-se culpado por causa de Gale, sentindo pena por não ter continuado o assunto com os Livingstones até ao fim, sentindo que lhe devia qualquer
compensação pelos seus falhanços. Abriu completamente os braços,
romanticamente, à espera dela.
- Tive saudades tuas - disse ele. - Vim para casa mais cedo, porque
tive saudades tuas. Estás maravilhosa.
Ela alisou o cabelo.
- Estou pavorosa, e tu bem o sabes. Não me trates como se fosse um dos teus clientes.
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Deixou cair os braços, enquanto ela veio ter com ele e o beijou, dando-lhe um pequeno abraço como prova de estar arrependida da sua brusquidão involuntária.
- Como estão os miúdos? - perguntou Howard.
- O Tim está a perder-me o respeito. Gostava que falasses com ele. Ele, a ti, obedece. A Nancy não foi à aula de ballet. Acho que está a chocar uma constipação. Bem, já que estás aqui, achas que estarás pronto para jantar dentro de quinze minutos?
- Gostaria de tomar uma bebida primeiro. Queres tomar uma comigo?
- Não, obrigada.
Ele encolheu os ombros, dirigiu-se para o armário de cerejeira, abriu-o. Tirou a garrafa de gin e a de vermute.
-Que tal te correu o dia?
-O costume. Ocupado. Nem dei por ele passar. Arrumei a casa de manhã. Aspirei-a. Esvaziei as gavetas das cómodas do quarto de dormir e forrei- as de novo. Deixei de fora uma série de peúgas e camisas velhas que já não usas. Gostava que desses uma vista de olhos e dissesses o que posso deitar fora. Depois, deixa ver, fiz umas compras no mercado. O teu pai telefonou e obrigou-me a estar uma hora ao telefone. Lamento, mas temos que encarar a realidade, Howard. Ele está a ficar senil. Ah, sim, telefonou a Grace. Acabam de regressar da viagem de quatro dias que fizeram a Las Vegas. Fartaram-se de se divertir. Gostaria que pudéssemos dar uma volta, de vez em quando, como os outros fazem.
Ele acabou de preparar o seu martini.
- Gostaria que, às vezes, pudéssemos ter dinheiro como as outras pessoas têm - disse, amargamente.
-Que queres dizer com isso? Que gasto muito?
- Não estou a dizer nada disso, Elinor. Porque não me deixas tomar a minha bebida em paz e passar os olhos pelo jornal da manhã?
-Agora passo por chata.
- Não disse que eras chata. Apenas disse que queria descansar alguns minutos antes de jantar.
Elinor olhou-o furiosamente, mordeu a língua, fez meia volta e foi para a cozinha.
Exausto, Yost procurou a secção desportiva do jornal, e, sorvendo o seu martini, enfiou-se na poltrona demasiadamente estofada.
Leu os resultados do baseball, enquanto acabava de beber o martini, e sentiu-se muito melhor. Pensou que, se um martini o fazia sentir-se melhor, dois talvez o pusessem bom. Levantou-se, encheu o copo quase todo com gin, juntou um bocadinho de vermute, e, depois, foi à cozinha à procura duma azeitona.
Assim que entrou na cozinha, Elinor olhou para a bebida e franziu a testa.
- Não vais beber outro, pois não? Esse quase parece um triplo.
-Porque não? Vivemos num país livre.
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- Porque sei quais são os efeitos que produz em ti. De qualquer maneira
o jantar está quase pronto.
- Pode bem esperar.
-Não pode, não. Vai arrefecer tudo. Não podes, ao menos uma vez,
deixar de beber a segunda dose?
- Não, que diabo! Não me irrites, Elinor, está bem? Tive um dia muito estafante.
Esperou que ela, solícita, lhe perguntasse que tal lhe tinha corrido o dia
estafante, para lhe dar um pouco de carinho. Mas ela voltara- se para o guisado de carne. Reparou que também não se tinha mostrado compreensivo em
relação ao dia exaustivo que ela tivera. O jogo estava empatado ao intervalo.
Voltou para a sala, com andar despreocupado, e com intenção de ficar tocado.
Bebeu conforme lhe apeteceu, sem pressas. Elinor veio várias vezes da
cozinha para lhe deitar olhares de desacordo e perguntar-lhe se já estava
pronto. Não estava, e disse-lhe que não estava, mas, meia hora depois, meio
anestesiado, começou a sentir-se mais compreensivo em relação a Elinor e,
finalmente, foi ter com ela à mesa.
Durante a refeição, olhou-a de olhos brilhantes e abanou a cabeça enquanto comia, ouvindo só metade do relato minucioso que ela fazia do seu dia de trabalho.
A sua capacidade de conversa - pensou para consigo - era terrível.
Um tratado sobre como fazer camas. Uma história sobre chamadas telefónicas inconsequentes. Uma crítica acerba sobre os preços da comida no
supermercado. Um relatório psicológico acerca dos filhos e os seus problemas.
Uma fiscalização sobre a situação financeira da família, dando ênfase a contas
por liquidar e aos credores. Uma genealogia desfavorável contra a família dele.
Um desejo de fugir, descansar, encontrar um pouco de paz.
Isto percebeu ele.
Por um instante, sentiu vontade de lhe dar carinho e de receber carinho
em troca. Ela também era um ser humano, o seu ser, e, pensando bem, ele
até podia ter feito pior na vida, muito pior.
Sentia-se mesmo bêbedo, e Elinor começou a parecer-lhe tão jovem e tão
atraente como fora outrora. Ficou muito mais bem disposto. Inclinou-se para
ela, e deitou-lhe um olhar furtivo, provocador.
-Olha, querida, que tal se fôssemos mais cedo para a cama para fazermos amor? Ela fez um trejeito e pôs um dedo nos lábios.
- Eles sabem que não foi a cegonha que os trouxe. Que dizes?
- Digo que já não era sem tempo. - Limpou a boca com o guardanapo,
levantou-se e começou a tirar a loiça. - Veremos.
De repente, sentiu-se desencorajado, sóbrio e de novo no lar. Afastou a
cadeira, levantou-se da mesa e foi procurar um charuto. Quando o encontrou
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e o acendeu, pensoú se o mesmo se passaria noutras casas com outras mulheres. Seria que se passava o mesmo com o casal da Casa Branca ou do Palácio de Buckingham ou com o Presidente da Companhia de Seguros Everest Life e a mulher, na sua vivenda em Manhattan? Aconteceria a mesma coisa com aquelas estrelas de cinema excêntricas na Holmby Hills e em Bel Air?
Não poderia, de maneira nenhuma, acontecer quando se é Alguém, com poder e dinheiro e com todas as liberdades e opções no mundo.
Elinor voltara da cozinha para a casa de jantar, e estava a arrumar os suportes para os pratos.
- Há alguma coisa de especial para esta noite? - perguntou-lhe ele.
- Se perguntas se temos visitas. não, só no sábado à noite.
- Que há no sábado à noite?
- Prometemos ir a casa dos Fowlers jogar o sete e meio .
- Outra vez?
- Que se passa contigo, Howard? Julguei que gostasses deles.
- De vez em quando, de vez em quando. Que vais fazer agora?
-Tenho de acabar de arrumar a cozinha. Depois, só quero esticar as pernas. Tenho umas coisas para coser. E, se não tiver muito sono, gostaria de acabar aquele romance para o devolver à biblioteca antes de acabar o prazo.
-Onde estão os miúdos?
- Colados ao televisor, onde é que haviam de estar? Às vezes penso que somos demasiadamente transigentes em deixá-los ver aquela eterna porcaria todas as noites. Devias impor-te. Autorizá-los a ver só depois de terminarem os trabalhos de casa e de limparem os quartos. Devias ver a balbúrdia em que estão os quartos deles.
- Está bem, está bem - anuiu ele.
Elinor voltou outra vez para a cozinha, e ele dirigiu-se à sala de entrada para falar ao filho, Tim, de doze anos, que estava tão alto como ele quando tinha a mesma idade, e a Nancy, de dez anos, que estava a tornar-se uma rapariga muito bonita, apesar do aparelho nos dentes.
Entrou no quarto-de-hóspedes que nunca fora completamente mobilado e que era utilizado como quarto-de-brincar para isolar as crianças, especialmente quando tinham visitas. Tim e Nancy estavam sentados, de pernas cruzadas, sobre a carpeta castanha, com a atenção concentrada no aparelho de televisão a cores.
- Olá, monstros - saudou ele.
Tim levantou a mão e acenou sem se virar. Nancy pôs-se logo num joelho para o beijar.
Ele apontou para o aparelho.
- Que estão a ver?
- É uma porcaria duma cowboyada - atirou Tim. - Estamos à espera do que vem a seguir.
- A estreia - acrescentou Nancy. - Vai haver um programa de uma
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hora sobre a estreia do novo filme sensacional de Sharon Fields.
Sharon Fields vai aparecer em pessoa
- disse Tim, com os olhos ainda no écran do televisor.
- É a minha preferida - disse Nancy.
Lembrou-se da conversa sobre ela com os outros malucos. Se alguma vez se atrevesse a contar essa história a alguém, diriam que a tinha inventado Teve novamente a visão de Gale, de pernas abertas, a tentá-lo. Depois tal visão foi substituída pela de Sharon, com o corpo mais bonito e provocante do Mundo, à sua frente com as pernas abertas, revelando o que tinha guardado entre elas. Por um instante na noite anterior, aquele jovem louco o Malone
atirara cá para fora a sua fantasia, conseguira transformar
a sua vida. Mas a imagem de Sharon Fields continuava no seu espírito.
Será que Sharon, nas fotografias e na tela, que era tão sensacional, o seria de facto na realidade? Duvidava. Nunca o era.
- A que horas é que começa a estreia?
- perguntou aos filhos.
Tim levantou o pulso com o seu relógio de astronauta.
-Dentro de dez minutos - disse.
Yost levantou-se.
- Divirtam-se, mas deitem-se logo a seguir.
Dirigiu-se para a cozinha. Elinor estava a empilhar os pratos.
Aproximou-se por detrás dela e deu-lhe um beijo na face.
- Querida, só agora me lembrei! Tenho de sair por uma hora ou duas.
- Mas acabaste de chegar a casa. Para onde vais agora?
- Tenho de voltar ao escritório. Tenho de ir buscar uns papéis de que me esqueci. Tenho de trabalhar a sério num plano para atacar a sério um grande cliente em perspectiva. Pode ser um bom negócio.
Elinor ficou um pouco exasperada.
-Porque é que não podes ser como os outros?
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Os outros homens arranjam outras coisas para fazer além do trabalho. Nunca nos sobrará.
- É o meu modo de vida - disse ele. - Se conseguir levar avante algum destes programas, talvez nos seja possível descansar um pouco mais. Bem sabes que não faço isto só por mim.
- Eu sei, eu sei. Fazes isso tudo só por nós. Bem, vê lá se não ficas fora toda a noite.
- É só ir ao escritório e voltar - prometeu ele.
Dirigiu-se ao armário para tirar o casaco. Se o trânsito na auto- estrada não fosse muito, poderia chegar a Hollywood dentro de vinte minutos, mais ou menos.
Tinha a certeza de que não estaria atrasado para a ver pessoalmente.
Nessa mesma terça-feira, às seis e meia da tarde, Leo Brunner ainda se achava a trabalhar no canto do fundo do escritório particular de Frankie Ruffalo sóbre o concorrido clube principal de Ruffalo, The Birthday Suite, situado no Sunset Strip na parte oeste de Hollywood.
The Birthday Suite , que oferecia aos seus clientes almoços, jantares, cocktails, e uma sucessão de divertimentos a cargo de um conjunto de três elementos e uma variedade de bailarinas, despidas da cintura para cima ou commpletamente nuas, era o melhor trabalho de contabilidade que Brunner tinha e, de longe, o seu preferido. Com muitos dias de antecedência sobre a sua visita mensal para verificar o activo e o passivo do livro Razão de Ruffalo, Brunner pensava no trabalho aborrecido com uma expectativa crescente.
Como contabilista oficial, o trabalho de Leo Brunner resumia-se a uma pequena escala e os seus clientes tinham rendimentos modestos. Havia um escritório com duas divisões, e uma empregada, no terceiro andar de um lúgubre e sujo prédio de estabelecimentos comerciais, situado numa zona de rendas de baixo preço na Western Avenue, onde ele fazia a maior parte do seu trabalho. No seu próprio escritório, cercado por uma máquina de escrever e uma calculadora electrónica (tão imprescindível para ele como um dos seus braços), Brunner elaborava as suas escritas, preparando e enviando pelo correio os seus relatórios, os seus pedidos de confirmação aos fregueses ou aos credores dos seus clientes, sugestões e recomendações às firmas que representava, no sentido de melhorar a contabilidade e os serviços de arquivo: A parte do seu trabalho que mais apreciava era a que o levava a deslocar-se às firmas dos clientes ou examinar os livros em suas casas. Mas, exceptuando a que fazia mensalmente ao audacioso clube privado de Frankie Ruffalo, essas visitas não o satisfaziam totalmente.
Várias vezes, à saída do clube, ao descer as escadas que davam para a saída das traseiras, Brunner deixava-se ficar pouco tempo nos bastidores a ver a exibição das coristas nuas do Ruffalo. Por vezes, havia uma única rapariga, a dançar sozinha. Outras vezes, era uma fila delas. As raparigas eram sempre
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novas bonitas e extremamente bem feitas. Entravam com o peito nu e começavam a deslizar, a bambolear-se e a girar ao som da música, e, a meio do
número, tiravam as calcinhas ou as mini-saias, exibindo a frente e o traseiro totalmente nus e completamente visíveis. Brunner nunca tinha tido oportunidade de as ver de perto, tal como os clientes - elas dançavam no palco, seguindo ao longo de uma plataforma a um nível mais alto e que ia dar mesmo ao centro do clube - porém, mesmo à distância, achava-as estimulantes.
Naquela noite, curvado sobre a secretária, a segunda por detrás da de Ruffalo, o lápis seguindo as contas no livro Razão, Leo Brunner estava particularmente distraído e era-lhe cada vez mais difícil concentrar-se. Através da porta fechada do escritório ouvia a música lá em baixo, o animado bulício de piadas e risos, alegria e aplausos, e era difícil prestar atenção àqueles números de débito e crédito que continuavam a confundir-se uns com os outros.
Naquela noite, tinha levado quase o dobro do tempo que habitualmente, mas, se se dedicasse realmente ao trabalho, poderia terminar tudo dentro de vinte minutos. No entanto, parecia incapaz de concluir as contas com a sua
usual e pertinaz eficiência, e, finalmente, encostou-se para trás, na cadeira giratória, perguntando a si próprio o que estaria a passar-se com ele e porquê.
Alisou a franja do cabelo que começava a branquear em volta da careca, tirou os óculos de aro de metal a fim de descansar um pouco os olhos, e, involuntariamente, passou revista aos seus pensamentos. Tinha estado a pensar que talvez fosse a idade que o tornava mais lento. Tinha cinquenta e dois anos, casado durante trinta deles com a mesma mulher, e sem filhos. Mas não podia ser da idade, nem da saúde. Como o seu trabalho era sedentário, sempre tivera cuidado em vigiar o peso. Tinha um metro e setenta e cinco de altura e pesava 70 quilos, o que era praticamente bem. Há anos que fazia três exercícios todas as manhãs para se manter em forma. Comia regularmente alimentos dietéticos e iogurtes. Duvidava que fosse a idade ou a condição física que o estava a tornar mais lento. Segundo ele tinha lido, mui tos homens de cinquenta e dois anos eram grandes amantes e muito admirados pelas mulheres mais novas.
Ao reflectir sobre a sua situação, foi assaltado por uma ideia e, de repente, apercebeu-se de onde vinha o seu mal. Muito simplesmente, o que roubara a sua concentração era a emoção que acabava de isolar. Duas sensações negativas, de facto - uma de ressentimento, e, a outra, de autocompaixão. Brunner era um homem comedido, calado, um homem tímido, sem inveja ou sentimentos de ciúme. Nunca se tinha considerado uma pessoa que se ressentisse contra alguém ou alguma coisa. No entanto, esse sentimento encontrava-se dentro dele como se fosse uma úlcera flutuante, o ressentimento e verificou que não tinha ressentimentos contra ninguém ounenhuma coisa em especial, mas sim, contra a própria vida, contra o modo de vida que o tinha marcado como um passivo a longo prazo e não como um activo. A vida tinha-o apagado e passado por ele, enquanto lá em baixo havia
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homens da sua idade, alguns até com mais de cinquenta e dois anos, desinibidos, desembaraçados, com carteiras recheadas e os copos de uísque sempre cheios, olhando para as lindas raparigas nuas e, por vezes, levando-as para as suas mesas e depois para os seus quartos, não ligando grande importância ao facto, excepto a que a vida poderia ser muito divertida para as pessoas que sabiam divertir-se e tinham dinheiro para o fazer.
Ressentiu-se contra a injustiça do facto de algum Criador, ou alguma Força Cósmica, ter dado à maioria das pessoas os meios e direitos para terem prazeres, e a uma minoria, a que pertencia, os meios e direitos limitados para serem burros-de-carga, sendo-lhes apenas permitido o minimo indispensável de indulgência hedonística. Havia nisto uma terrível desigualdade e, isso, sim, ressentia-se contra essa injustiça.
Procurando nos bolsos o pacote de caju que sempre trazia consigo, abriu-o, pôs alguns feijões na boca, e continuou a reflectir sobre o seu estado de espírito, decididamente negativo.
A autocompaixão era a sua maior dor.
Havia cometido um erro quando era novo, muito novo, quando tinha vinte e dois anos, e estava ainda a pagá-lo. Queria culpar Thelma, mas verificou que culpá-la seria injusto. A escolha fora sua. No entanto, também não tinha sido culpa sua. Tinha sido vítima do passado, dos seus pais sem amor, da sua educação sem amor, tal como muitos eram vítimas, e, ao apaixonar-se por Thelma no seu último ano da Universidade de Santa Clara, quando esta retribuiu o seu amor como nunca ninguém o havia feito, resolvera agarrar-se a esta hipótese de ter alguém que o acarinhasse.
Tencionava ser advogado, queria sê-lo, sentia-se qualificado para a profissão, e tinha planeado segui-la. Além disso, o seu pedido de entrada para a Faculdade de Direito na Universidade de Denver fora aceite. Em vez disso, casara com Thelma, e, quando esta engravidou, orgulhou-se do facto de ela depender dele e sentira-se responsável por ela e pela criança que ainda estava por nascer. O mínimo que poderia fazer por aqueles dois seres era ajudá-los a viver. Portanto, resolvera desistir da Faculdade de Direito de Denver, tornara-se menos ambicioso e decidira ser contabilista, tal como um seu respeitável primo em segundo grau por afinidade, acabando por atingir a posição de guarda- livros oficial. Nas aulas nocturnas conseguira completar as quarenta e cinco semanas de curso necessárias, de acordo com a Lei do Estado da Califórnia, antes de fazer os exames do Departamento de Contabilidade do Estado. Preparara-se com afinco para os exames, que tiveram lugar em San Diego, passara com óptimos resultados, transformando-se, assim, num guarda-livros escapatório. Entretanto, a criança nascera prematura, morrera no parto, e Thelma não pudera ter mais filhos.
Depois de ter trabalhado três anos numa firma comercial em Beverly Hills
-firma demasiadamente grande para dar oportunidade de progredir e demasiadamente poderosa para a sua personalidade infeliz -, montou um negócio próprio, trabalhando num apartamento, com Thelma como secretária.
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Sonhando com a glória, tinha, eventualmente, aberto o seu próprio
escritório, a mesma porcaria de escritório que há tantos anos possuía.
Não teve êxito, ou, pelo menos, não teve o êxito que ele esperava, como
podia verificar agora. Havia outras pessoas com a sua profissão, guarda-livros
com uma preparação não superior à sua, que tinham feito sucesso. Tinham
clientes com nome, firmas importantes e os seus próprios escritórios de luxo.
Por vezes, até se intitulavam directores de empresa, e ganhavam mais
dinheiro e eram mais respeitados.
Leo Brunner nunca teve essa sorte. Partira do princípio que talvez não
fosse suficientemente extrovertido, um vendedor, um jogador. Não tinha
esse estilo de personalidade nem feitio. Não estava destinado a ser uma
legenda, mas um número, um número muito próximo do zero. Mais especificamente, se desejasse realmente forçar a autocompaixão, sentia que não
era mais do que uma calculadora que, por acaso, também andava e falava.
Tinha-se virado, e por isso estava satisfeito, para escritas pequenas, pouco
românticas e plebeias. Fazia a escrita para um mercado de carne, uma
companhia de camionagem, um pequeno fabricante de brinquedos, uma cadeia de barracas de venda de hamburgers, uma loja de alimentos dietéticos
onde, em troca do pagamento total, tinha o direito de comprar os alimentos
ao preço de revenda).
A contabilidade de Ruffalo, o fazer a escrita para The Birthday Suite,
apareceu-lhe por acaso, pela recomendação de um dos seus clientes que era
sócio do clube. Durante uma rusga feita pela polícia dos costumes, Ruffalo
teve necessidade de um guarda-livros conservador e que não fosse inoportuno, para lhe pôr rapidamente a escrita em dia, no caso de a Polícia resolver
utilizar os lucros da casa como meio de lhe fechar as portas. Brunner servia
perfeitamente para o cargo, e havia sido logo admitido.
Sentia agora que as mesmas qualidades que o haviam desencorajado no
seu trabalho como guarda-livros o teriam ajudado se fosse advogado. A contabilidade oficial era uma profissão descolorida, e se uma pessoa de personalidade apagada entrasse nela tornava-se invisível. Mas a advocacia era uma
profissão mais alegre, brilhante e importante em si, e a própria personalidade
triste tornava a pessoa mais confiante, honesta, respeitável, e, portanto, bem
sucedida. Tivesse ele dado esse passo antes, tivesse ele seguido o curso de
Direito, e sentir-se-ia realizado. Hoje, seria rico e teria nome. Estaria lá em
baixo numa das mesas em volta da pista de The Birthday Suite, bebendo
champanhe, vivendo a vida à grande, em vez de ali estar encerrado num
escritório horrível e anónimo.
Desde o princípio que a culpa fora toda dele. Não culpava mais ninguém.
Apesar do seu vizinho em Cheviot Hills e seu melhor amigo, Parmalee, que
levava uma vida idêntica à sua, se justificar de outra maneira. Sempre que se
falava no assunto, Parmalee gostava de dizer que Brunner e ele - ambos
tinham abdicado de estudar advocacia para casar cedo - haviam sido vítimas
do conceito moral da sua época. Era uma época em que, para se poder fazer
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amor com uma rapariga, se tornava necessário primeiro casar com ela.
Portanto, Parmalee e Brunner haviam trocado as suas carreiras e o seu futuro
para terem sexo sem sentimento de culpa. Hoje, as coisas seriam diferentes.
Já não sentiriam a obrigação de casar para dormir com as namoradas.
poderiam ter tido as suas profissões e sexo sem sentimento de culpa. Por isso,
para ali estava Brunner, à deriva, modesto guarda-livros sem rumo na vida. É
lá estava Parmalee, pregado nas Finanças, como agente, há vinte anos, sem
oportunidade de subir. Era tudo muito triste.
Com um suspiro, Leo Brunner voltou a pôr os óculos sobre o nariz
pontiagudo, inclinou-se para a frente na sua cadeira giratória, e preparou-se
para retomar o trabalho a fim de o acabar o mais depressa possível.
Assim que pegou no lápis, a porta do escritório abriu-se repentinamente e
Frankie Ruffalo entrou violentamente na sala. Brunner começou a cumprimentá-lo, mas Ruffalo nem deu pela sua presença ao dirigir-se apressadamente para a sua grande secretária de carvalho. Ruffalo era um homem pequeno, moreno, com olhos grandes e redondos e um bigode direito e fino
parecia ter sempre um fato novo e caro, tal como o conjunto desportivo de
calças e casaco de camurça que vestia nesse momento. Era bastante novo para
empresário de renome, devia estar com trinta e poucos anos , pensou Brunner.
Despindo o casaco sem bolsos, Ruffalo atirou-o para cima do divã, e só
nessa altura reparou que não estava sozinho na sala.
- Ah, Sig disse-me que você estava cá. Pensei que já tinha acabado e ido embora.
-Houve uma acumulação que tem de ser acabada, Sr. Ruffalo. Posso
despachar-me em meia hora.
- Não, não faz mal. Deixe-se estar e faça o seu trabalho. Tenho outros
assuntos para tratar. Uma das minhas melhores raparigas foi-se embora.
Tenho agora uma entrevista para a poder substituir rapidamente.
- Posso mudar-me para outra....
-Não, não, deixe-se estar. Não incomoda nada. Ninguém reparará
em si.
Brunner não podia crer que não reparassem nele.
- Sinceramente, Sr. Ruffalo, se vai entrevistar raparigas, talvez prefira
ficar sozinho com....
Ruffalo interrompeu-o impacientemente.
- Eu disse-lhe que ficasse. Por amor de Deus, Leo, será que tenho de lhe
dar a ordem por escrito? Desculpe, mas tê-lo aqui é o mesmo que estar sozinho. Isto é um elogio. Portanto, continue com o seu trabalho.
Para Brunner, aquilo não tinha sido um elogio, nem pouco mais ou menos. Sentido, inclinou-se para o livro de contas. Normalmente, conseguia
alhear-se dos ataques que contra a sua dignidade lhe faziam diariamente. Já há
muito tempo que se conformava com o facto de ser um zé-ninguém, um motivo decorativo sobre o papel de parede. Mas, hoje, a sua sensibilidade
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encontrava-se excessivamente susceptível, e a observação de Ruffalo fê-lo
sentir-se amargurado. Tentou recomeçar com a sua contabilidade de devedores-credores, mas os movimentos e a conversa de Ruffalo interrompiam-no.
Ruffalo levantou o auscultador do telefone, parecendo ligar para os camarins ao fundo do corredor.
- Olá, Sig. Quantas apareceram? - Ficou à escuta. - Está bem, manda cá três delas, imediatamente.
Quando acabou de falar ao telefone, Ruffalo andou um pouco, depois
dirigiu-se para a porta, abriu-a e espetou a cabeça para fora.
- Pronto, meninas, vamos a mexer esses rabos gordos. Já cá para dentro.
Voltou para a sua secretária, tamborilando no tampo com as unhas arranjadas, enquanto esperava.
Entraram no escritório, rapidamente, três delas, uma a seguir às outras,
cada uma delas cumprimentando Ruffalo cordial ou distraidamente. Ruffalo
respondeu com um gesto de mão. E ordenou à última que fechasse a porta.
- Vamos lá, meninas, não vamos perder tempo - disse Ruffalo. Alinhem-se ali em frente do sofá.
Obedecendo, as três mulheres dirigiram-se para o sofá, e puseram-se em pé.
Eram todas lindas, talvez um pouco evidentes no traje e modos, mas todas novas e vistosas.
- Sabem porque estão aqui? - disse Ruffalo bruscamente. - Estou certo
de que Sig vos deu instruções. Preciso de uma de vós. Vou contratar apenas
uma. Preciso de uma para o último espectáculo desta noite. Percebem?
As raparigas assentiram com a cabeça em sinal de concordância.
- Então, vamos lá, comecemos contigo - disse Ruffalo, apontando para
a rapariga de cabelos platinados que estava mais perto dele - digam-me os
vossos nomes, só o primeiro nome por enquanto, o vosso último trabalho de
espectáculo, a razão por que se despediram ou foram despedidas e o vosso
melhor número de dança para um clube destes. Vamos lá, sou todo ouvidos.
Brunner fez rodar a cadeira um pouco para a esquerda, para ver melhor as
raparigas no outro lado da sala. Os seus olhos banquetearam-se em cada uma
delas à medida que iam falando.
A primeira, a loura platinada, tinha boca rosada, os lábios húmidos, com
aspecto nórdico. Vestia uma camisola de gola alta roxa, uma saia amarela
muito curta, collants e botas de cabedal lilás. O timbre da voz era alto.
- Chamo-me Gretchen. Trabalhava como modelo na Agência Grosser.
Passava modelos de roupa interior. Um dos fabricantes para quem passava
modelos.... a mulher não gostou de mim, tinha ciúmes, suponho.... por isso
fui despedida. Isto foi há uns meses atrás. Ultimamente não tem havido muito
trabalho na indústria de confecções.
- Qual é o teu melhor número de dança - perguntou Ruffalo.
-Sei bambolear-me e dar voltas contínuas.
-Está bem. A seguinte.
Os olhos de Brunner fixaram-se na rapariga do meio, mais baixa que as
outras duas, mais cheia de corpo também, talvez medisse um metro e
sessenta e dois de altura. Tinha o cabelo castanho cortado curto, narinas dilatadas, e, de todas, era a que exibia maiores seios. Vestia uma blusa à pescador, larga, e calças de veludo da mesma cor dos cabelos.
-Chamo-me Vicky. Fazia duas vezes por noite um número a solo no
Al's Eatery, perto do aeroporto. Um sítio onde se anda com o peito à mostra.
Clientela rica. Desisti quando um dentista, um cliente habitual, começou a
sair comigo e disse que queria casar. Despedi-me e fui viver com ele por um
ano. Tivemos uma briga e ele foi-se embora. Estou decidida a recomeçar a
minha vida. Sei dançar o género dança do ventre.
- Muito bem. Estás em forma?
Vicky sorriu.
- Pode ver com os seus próprios olhos, Sr. Ruffalo.
- Verei - prometeu Ruffalo. - Está bem, tu - disse ele, fazendo sinal para a terceira.
Essa tinha cabelos ruivos e brilhantes caídos sobre os ombros, de cara
ingénua, redonda e muito branca, ombros e ancas largos, mas a cintura
estreita e pernas compridas. Trazia um vestido muito justo, pelo joelho, sem
meias e calçava sandálias. Falava pausadamente, enquanto brincava com o cabelo.
-Pode chamar-me Paula. Sou modelo fotográfico. Estou tesa.
Engaiolaram-me por me terem apanhado com droga em San Francisco. Era a
segunda vez; portanto, - puseram-me fora de circulação por algum tempo.
Depois, pensei que seria melhor vir até aqui. Só agora comecei a procurar trabalho. Pensei que seria melhor experimentar uma coisa diferente.
- Já não tomas droga? - perguntou Ruffalo.
-Que é que pensa? Claro que não. Estou curada. Nunca dancei profissionalmente, mas tive lições. Dança expressionista; estilo Isadora Duncan.
É claro que posso melhorar e tirar mais partido do meu corpo. Gostaria de trabalhar aqui.
Ruffalo, que estava meio sentado na ponta da secretária, levantou-se.
- Está bem, até aqui tudo certo. E, agora, vamos ao mais importante.
Deslizou a mão na direcção das três raparigas.
- Então, vamos lá a ver o que vocês têm. Dispam-se.
No canto ao fundo do escritório, Brunner engoliu em seco, e afastou- se
do livro de contas, afundando-se na sua cadeira, olhando furtivamente para as
raparigas a fim de ver se tinham dado por ele ou se se mostravam perturbadas
com a sua presença. Mas nenhuma delas parecia ter notado que estava mais
alguém na sala, além de Ruffalo e das outras rivais.
Cada uma delas despiu-se agradável e vagarosamente.
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Brunner nunca se havia encontrado numa situação daquelas, três raparigas lindas a despirem-se simultaneamente, sem hesitações, possivelmente com prazer. Os olhos de Brunner saltavam de uma para outra, não sabendo qual delas focar, tentando concentrar-se ao mesmo tempo em todos os bocados de pele expostos.
Gretchen levantou devagarinho e cuidadosamente a sua camisola de gola alta, para não despentear os seus cabelos platinados. Tinha um soutien branco almofadado que desapertou e pôs em cima do divã. Os seios eram pequenos, altos e cónicos, de pontas rosadas pequeninas e espetadas. Desapertou o fecho da saia e tirou-a. Depois, tentou equilibrar-se para tirar as botas, pô-las ao lado. Em seguida, despiu os collants, e tirou-os também. Endireitou-se. Tinha a barriga achatada, as costelas salientes, e uma linha fina de cabelos púbicos que não escondia a linha da vulva.
Vicky, a mais pequena, tinha despido a camisola, e, quando tirou a tira transparente que fazia de soutien; os seios, pesados, caíram um pouco. Atirou fora os socos, e tirou as calças de veludo com profissionalismo. Só usava uma cueca-biquini por baixo. Puxou-a para baixo, e tirou-a. Alisou os cabelos púbicos castanhos, e sorriu para Ruffalo, à espera.
Ruffalo tinha estado a dar atenção à terceira, Paula, a mais vagarosa, que preguiçosamente estivera a desapertar a parte de trás do vestido e a sacudir-se para o tirar. Não tinha nada por baixo, nem soutiien, nem cuecas. Só o vestido.
Do seu canto, Leo Brunner olhou-a, boquiaberto.
Paula parecia a mais despida e a mais excitante das três, com aqueles ombros largos e carnudos, grandes e redondos seios com pontas en carniçadas, coxas largas que enquadravam um grande tufo de cabelos que subia até quase a meio do ventre.
Brunner notou que o que se passava consigo não lhe acontecia há meses. Sentia que estava a ter uma erecção. Aproximou-se mais da secretária, re zando para que ninguém o visse. Mas então tornou a lembrar-se de que elas nem sabiam que ele existia.
Olhou para Ruffalo, que se tinha levantado da cadeira de executivo e passeava mais perto das raparigas, inspeccionando-as minuciosamente. Ficou silencioso em frente de Gretchen. Quando chegou a Vick, deu-lhe uma
palmadinha na barriga e, depois, baixou-se e apalpou-lhe uma das coxas.
- Parece que tens mantido a forma - disse.
- Que é que eu te disse?
Pôs-se em frente de Paula, deu um passo atrás, examinou o seu corpo nu de cima a baixo, enrugou as sobrancelhas.
- Vira-te, Paula.
Ela virou-se, mostrando as nádegas e voltou depois à posição inicial, dando uma volta completa.
- Todos me dizem que tenho um belo traseiro - disse, intencionalmente.
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- Nada mau - murmurou Ruffalo. Semicerrou os olhos. - Tens a certeza de que já não tomas droga?
- Juro. Não me arrisco a ser apanhada outra vez.
-Veremos. Pronto, miúdas. A Paula fica. Mas vocês duas estejam de prevenção nas próximas quarenta e oito horas. Se ela não servir, ou se me enganar, telefonarei para uma de vós. Podem vestir-se.
Enquanto Gretchen e Vicky começaram a vestir-se rapidamente, Paula deu um passo em frente.
-Oh, obrigada, Sr. Ruffalo. Não se arrependerá.
- Veremos. Estás livre nas próximas duas horas. Mas está cá sem falta às nove e meia. Às dez horas entras em cena. Fala com o Sig primeiro. Dar-te-á instruções acerca do teu papel e ensaiará os movimentos. Dar- te-á também informações sobre o vencimento e horas de trabalho para o resto da semana.
-Dirigiu-se para a porta. -Obrigado, miúdas, muito obrigado. Ruffalo retirou-se.
Agora, sozinho no escritório com as raparigas, duas parcialmente vestidas e uma toda nua, Brunner sentiu-se encalorado e corado. Tentou fingir que as ignorava, devotando-se ao trabalho, mas sentiu que elas tinham os olhos postos nele, e um mundo de loucas possibilidades passou- lhe subitamente pela cabeça.
Levantou a cabeça disfarçadamente, só para ver que não havia olhar nenhum em cima dele, que Gretchen e Vicky estavam agora completamente vestidas, e a despedirem-se de Paula, desejando-lhe boa sorte. Saíram, e Paula, ainda toda nua, continuou ali.
Brunner sentia que era impossível encarar a situação. Tentou não olhar para ela e não ser demasiado directo.
Podia vê-la, meio a valsar, meio a andar em volta da sala, cantarolando alegremente baixinho. Depois, parou e examinou o escritório. Correu os olhos pela sala, passando por Brunner, sem sequer parar, passando por ele como se ele fosse um objecto inanimado, como se fosse uma calculadora, digamos. O seu olhar brilhou quando encontrou o que queria.
Começou a atravessar a sala, aproximando-se de Brunner, uma torre de carne perfeita, cada vez mais perto, os seios impelidos para a frente, trepidando muito pouco. Brunner conteve a respiração, e ela passou por ele sem o olhar, sem dizer uma palavra. Parou em frente do filtro de água, pegou num copo de papel, encheu-o e bebeu com visível prazer. Por fim, deitou o copo no cesto dos papéis, passou de novo por Brunner, completamente alienada deste, chegou ao divã, calçou os socos, agarrou no vestido, e vestiu-se alegremente, sem parar de cantarolar.
Cinco minutos depois, saíra da sala.
E Brunner ficou. com quê? Com uma nódoa pequenina e húmida na braguilha, e a amarga sensação de que não existia para nenhuma daquelas pessoas que lhe enchiam o pensamento e lhe agitavam os desejos. Aquelas raparigas, aquela boa vida lá fora, tudo aquilo era para pessoas a sério; pessoas
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visíveis, com identidade, os vencedores, os alguéns. Ele não era ninguém. Era um zero. E não havia direito, não estava mesmo certo, porque havia tanta coisa dentro dele, escondida mas em ebulição, que lhe dizia que ele era uma pessoa, uma pessoa verdadeiramente interessante, com a qual os outros não se preocupavam. Era uma pessoa que merecia qualquer coisa, que merecia mais.
Sentindo-se infeliz, tentou retomar o trabalho. Levou quase uma hora para conseguir fechar as contas.
À hora a que acabou, sabia que era muito tarde para ir jantar a casa. De facto, tinha dito a Thelma para não o esperar se não chegasse a casa até às sete e meia. Mas já passava das sete e meia. Thelma e a irmã mais velha, Mac, que vivia com eles, já haviam, certamente, jantado. Decidiu telefonar à mulher, dizer-lhe que ia comer uma sanduíche num restaurante dois quarteirões abaixo, e depois iria para casa:
Brunner marcou o número do telefone de sua casa. Quis o azar que fosse a cunhada Mac a atender. Isto queria dizer que tinha de aturar a conversa que sempre se repetia quando, uma vez por mês, ia trabalhar para The Birthday Suite". Ela iria provocá-lo, falando-lhe da vida difícil que alguns homens levavam ao terem de trabalhar num sítio onde estavam rodeados por mulhéres despidas, chamando a isso trabalho.
Refilando interiormente, recostou-se na cadeira e ficou à espera que Mac acabasse de desfiar o seu rosário. Quando ela, finalmente, terminou, pediu-lhe que chamasse Thelma.
A mulher veio ao telefone.
- És tu, Leo? Onde estás? Já viste como é tarde?
- Ainda estou no clube. Estou a terminar. Já jantaram?
- Já sabes que sim. Há, pelo menos, uma hora.
- Então, vou comer uma sanduíche ao fundo da rua, a alguns quarteirões daqui.
- Tem cuidado com o que comes fora de casa, Leo.
- Está bem, está bem. Devo chegar a casa dentro de uma hora. Queres ir hoje ao cinema? Há um bom filme no Culver City.
- Obrigada por te teres lembrado de mim, mas hoje não, Leo. Se sentisses o que sinto, só te apeteceria meter na cama e morrer.
Já estava habituado a isto.
-Como te sentes? Estás mal disposta?
- É, outra vez, a artrite. Nos ombros e nas costas. Tem-me dado dores de morte todo o dia. Nem sequer vou lavar o cabelo hoje à noite. Vou deitar-me e descansar. Se quiseres, vai tu ao cinema, Leo. Não me importo.
-Vou ver. Bem, não voltarei tarde, Thelma.
- Quando chegares, estarei a dormir. Se tiver essa sorte.
- Boa noite, Thelma.
Pousou o auscultador, e continuou imóvel na cadeira. Não tinha fome. Não lhe apetecia comer nada. Talvez fosse a um cinema. Pelo menos, era um escape.
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Pegou no jornal da manhã que estava dobrado em cima da secretária. Abriu-o na secção de espectáculos, e esquadrinhou os anúncios. Subi tamente, os seus olhos prenderam-se num título sublinhado e enquadrado com estrelas
GRANDIOSA ESTREIA HOJE À NOITE SHARON FIELDS EM PESSOA!
Leo Brunner endireitou-se, olhando fixamente para a fotografia de corpo inteiro da seminua Sharon Fields numa posição lânguida e encantadoramente indolente.
O seu pensamento voltou-se repentinamente para a fantástica aventura da noite anterior no clube de bowling em Santa Mónica. O estranho rapaz que pensava que podiam conhecer Sharon Fields, e até. mas o rapaz era, por certo, um psicopata.
Leo Brunner fixou, de novo, o olhar no anúncio.
Nunca assistira a uma estreia em que os artistas estivessem presentes. Nunca vira Sharon Fields em pessoa. Se as três raparigas que tinham estado neste escritório conseguiram ser sexualmente provocantes, Brunner imaginou que Sharon Fields seria cem vezes mais excitante.
Estava mesmo em baixo, envolto em autocompaixão, e um pouco deprimido. Aqui estava um acontecimento, um brilhante acontecimento, para o público e à borla. Aqui estava a oportunidade de ver a rapariga mais desejada do mundo. Assistir a este acontecimento, gozar o prazer de ver tal mulher, talvez fosse uma actividade que enriquecesse uma vida monótona e compensasse um dia particularmente infeliz.
Brunner decidiu-se. A noite era ainda uma criança. Afinal, ainda havia tempo de ir ao cinema.
Nessa mesma terça-feira, às sete horas e vinte minutos da tarde, Adam Malone, com os olhos a fixar constantemente o relógio na parede, ajoelhou entre as caixas de cartão com latas de comida para gatos, entre a segunda e a última estantes do supermercado Peerless, situado no Boulevard Olimpic, sempre consciente de que tinha de se despachar, se queria chegar a horas à estreia.
Desde que estava a trabalhar empart time como paquete - por sua iniciativa, pois o precioso resto do seu dia era dedicado à escrita -, as suas horas de trabalho eram bastante flexíveis. No dia anterior tinha avisado o gerente do supermercado que sairia às sete e meia em ponto, e o gerente havia concordado bastante contrariado.
Nesse momento, Malone verificou que só tinha mais dez minutos para marcar e empilhar o resto da comida para gatos. Rapidamente, Malone cortou as tampas das restantes quatro caixas de cartão. Em seguida, consultando a
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última lista de preços, seleccionou os correspondentes carimbos de borracha,
e começou a carimbar as latas de atum, de miúdos de galinha, derivados de
carne, peixe e fígado.
Em oito minutos, carimbou cada uma das latas e empilhou-as nas pra teleiras correspondentes.
Estava agora de largada. Depois de se desfazer das caixas, vazias, de
cartão, dirigiu-se a passos largos para a área reservada aos empregados, por
detrás da secção de especialidades alimentares importadas. Despindo o avental
sujo, foi à casa de banho. Atirou com água para cima do cabelo, lavou e
esfregou a cara e as mãos, e, depois, penteou, cuidadosamente para trás, o
longo cabelo, castanho-escuro, encaracolado. Limpando a cara e as mãos, estudou-se ao espelho.
Nestas raras ocasiões, Malone aprontava-se todo como se, por acaso,
pudesse vir a conhecer Sharon Fields. Se tal acontecesse, queria parecer o
melhor possível. O reflexo no espelho mostrou-lhe o que Sharon Fields veria: a cabeça cabeluda, a testa alta de criador, olhos castanhos bondosos,
nariz direito, boca simpática, um queixo bem definido, apenas desfigurado
por uma borbulha inoportuna, um pescoço forte com uma maçã-de-adão
saliente. E parecia ter mais do que um metro e sessenta de altura por ser magro.
Satisfeito, Malone puxou para cima as calças azuis de malha, tirou o
casaco do cabide, saiu rapidamente da loja pelas portas de vidro automáticas,
dirigindo-se para o parque de estacionamento do supermercado.
Tentou lembrar-se onde tinha deixado o seu pequeno carro estrangeiro
usado, um MG verde, e descobriu-o na terceira fila de automóveis, mesmo à sua frente.
Ao dirigir-se para o carro, ouviu uma buzina, e uma voz feminina gritou:
- Olá, Adam!
Abrandou o passo, tentando localizar quem o chamava, e viu a rapariga
que acenava da janela do lado do volante do seu Volkswagen. Voltando-se
para ela, viu que era, de novo, a Plum. Era uma rapariga simples, simpática e
encantadora, cliente regular do supermercado. Conversavam muitas vezes no
armazém, quando ela ia fazer compras. Trabalhava como caixa num banco,
ali perto. Calculava que ela estivesse na casa dos trinta. Vivia sozinha, e
Malone sabia que ela tinha um fraquinho por ele. A moça gostava da sua
timidez e do facto de ele ser inteligente. Nunca tinha conhecido um autor e
estava fascinada por ter, enfim, conhecido um. Várias vezes tinha insinuado
que seria agradável se ele fosse ao seu apartamento tomar umas bebidas e
jantar, mas ele nunca lhe havia dado uma oportunidade. Sabia que não teria
problemas em levá-la para a cama, mas nunca se tinha decidido a ir até ao fim da questão.
- Olá! Plum - cumprimentou-a, quando chegou ao carro. - Que há?
- Para ser sincera, há um quarto de hora que estou à tua espera. Um dos
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ajudantes disse-me a que horas saías. Vou-te dizer o que é. Espero que não me leves a mal.
Malone sentiu-se imediatamente embaraçado.
-Claro que não, Plum.
- Ainda bem. Uma pessoa lá do banco - aliás a moça que é chefe da secção de títulos - dá uma festa esta noite. Acho que é o aniversário do namorado dela, ou coisa parecida. Dá também uma ceia, convidou-me e pe diu-me para levar par. Portanto, tentei lembrar-me de alguém com quem gostasse realmente de estar e pensei imediatamente em ti.
Plum olhou para ele ansiosamente e disse:
- Eu. espero que não tenhas outros planos para esta noite. Atrapalhado, Malone pensou qual seria a melhor maneira de recusar o convite. Ela era uma pessoa decente, e Malone, que era incapaz de magoar fosse quem fosse, achou difícil livrar-se dum convite destes. Deveria modificar os seus planos? Plum não significava absolutamente nada para ele. Era-lhe indiferente. Comparando uma noite com ela a uma noite com Sharon Fields, bem, a escolha era fácil.
- Tenho, realmente, muita pena, Plum - disse ele -, mas já tinha outros planos. Ia agora mesmo para outro encontro. Se tivesse sabido mais cedo, bem.
Encolheu os ombros sem saber o que fazer, e ela também. -est la guerre - disse ela. - Fica para a próxima.
- Claro - disse ele. - Passa bem.
Afastou-se desajeitadamente, depois virou-se e deixou-a. Quando chegou ao MG, olhou para o relógio. Chegaria mesmo à hora. Pôs o carro a trabalhar, meteu a marcha atrás, e acelerou pelo Olympic em direcção à Fairfax Avenue, apercebendo-se de que realmente, não mentira a Plum. Ele tinha, de facto, planos e uma noite em cheio à sua frente.
Em primeiro lugar, claro, a estreia e mais uma olhadela a Sharon Fields, a luz da sua vida. Só a tinha visto em pessoa duas vezes, e das duas vezes, a uma certa distância. Há três anos, vira-a entrar no Century Plaza Hotel, aonde ia assistir a uma festa de caridade. Em princípios do ano anterior, quando ela saía apressadamente dum estúdio de televisão, após ter sido filmada para um programa de variedades de luxo, vira-a do outro lado da rua, pois a polícia havia bloqueado o caminho. Nesta noite esperava ver mais de perto aquela que considerava a única mulher no Mundo. A seu lado, todas as outras mulheres pareciam rapazes.
Depois disso, tinha outro encontro a que não podia faltar. Não se esquecera da promessa que havia feito aos outros três cavalheiros - Shively, Yost e Brunner - no cubículo particular do Lantern Bar no All-American Bowling Emporium. Ele tinha-lhes dito - recordava-se quase textualmente das suas palavras -, havia dito:
- Se algum de vocês mudar de ideias, se quiserem realmente saber commo o poderemos fazer, estarei amanhã, no mesmo lugar, à mesma hora.
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Era arriscado meter estranhos no plano, mas ele sempre soube, desde a primeira vez que imaginou o rapto de Sharon Fields, que não poderia fazê-lo sozinho. Era necessário um colaborador, possivelmente vários. Num trabalho tão complexo como este, havia que tomar precauções.
No entanto, não falara neste assunto a ninguém. Nunca confiara em mais ninguém. Se fizesse confidências à pessoa errada, e não fosse compreendido, poderia ser seriamente incomodado pela Polícia. Então, o que o levara, na noite anterior, a confiar, tão impulsiva e abertamente, o seu projecto do golpe àqueles três indivíduos completamente estranhos?
Vieram-lhe duas razões à cabeça. Uma era interior e pessoal. Estava farto de viver e reviver o seu desejo por Sharon Fields em sonhos. Tinha chegado ao estado em que queria pôr em prática o seu desejo, e sentiu que o poderia realizar. A razão exterior fora acidental. Três homens num bar que, depois de terem visto Sharon Fields na televisão, haviam, espontaneamente e em uníssono, expressado o seu desejo por ela, tendo, de facto, dois deles admitido em público que dariam e arriscariam tudo para a possuírem. Haviam exprimido o que lhes pairava secretamente no espírito há tanto tempo.
Nesse mesmo instante, imaginou-se como os três mosqueteiros, sendo ele D'Artagnan - um por todos e todos por um -, e todos por Sharon Fields. E portanto, aproveitando a deixa, abriu-se, quebrou o silêncio, e confiou a outrem os seus segredos mais pessoais.
Que o tivessem rejeitado, após a primeira audição, era compreensível. Eram homens, como a maioria, que não estavam habituados a acreditar que um sonho impossível podia tornar- se realidade se actuassem directamente. Por outro lado, se os seus desejos de mudar de vida fossem suficientemente fortes, se as suas frustrações crescentes estivessem a ponto de rebentar, talvez se encontrassem em condições de reconsiderar, de irem ter com ele ao bar nessa noite, a fim de aderirem à sua causa e, lado a lado, realizarem a missão de aventura.
- Se assim não for - disse Malone para consigo -, nada se havia perdido! Restava-lhe ainda o seu sonho. Poderia esperar, vigiar, e, um dia, algures, encontraria outro Byron, suficientemente romântico, que o ajudasse na conquista de Sharon Fields.
Virou o carro para Fairfax e acelerou em direcção a Hollywood Boulevard.
Estacionara numa rua secundária, a três quarteirões do Grauman's Chinese Theatre, e, meio a andar, meio a saltitar, dirigiu-se para o centro de actividade. Os projectores lançavam os seus feixes de luz para os céus, e foi por eles que Malone se guiou às cegas, ofuscado. Chegou à zona congestionada já sem fôlego. Só se atrasara cinco minutos, e as brilhantes limusinas de motorista começavam a despejar as suas celebridades. De ambos os lados da entrada do teatro, viam-se bancadas superlotadas de fãs aos guinchos e aplaudindo. A multidão amontoava-se nos passeios entre o teatro e a bancada,
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e os mirones, de pé e a um metro mais abaixo, estavam afastados por um cordão de polícias.
Malone encontrou-se por detrás da multidão de espectadores, sem poder ver claramente as limusinas que chegavam e, muito menos, as cerimónias na entrada do teatro. Então, lembrando-se do truque que havia utilizado numa outra ocasião, tirou da carteira o seu cartão de sócio do Grémio dos Autores Americanos, levantou-o bem alto, por cima da cabeça, e começou a espremer-se entre os fãs, aos encontrões, gritando - Imprensa! Deixem-me passar, sou da Imprensa!
O reflexo condicionado foi instantâneo. Tal como os cães de Pavlov, os plebeus reagiram, os espectadores abriram alas, respeitosamente, para deixar passar o Quarto Estado. Foi uma caminhada exaustiva, mas levou-o até à primeira fila atrás dos cordões, um sítio muito vantajoso, e do qual podia ver os artistas a sair das viaturas. Podia vê-los atravessar a praça maravilhosamente iluminada, à entrada do teatro, onde duas câmaras de televisão e Sky Hubbard entrevistavam as celebridades antes de entrarem no cinema.
Esforçando-se por ter uma visão ainda melhor, Malone empurrou o homem que estava ao seu lado quase o desequilibrando. O homem endireitou-se, virando-se, zangado, para Malone.
- Deixe-se de empurrões, está bem? Quem pensa você que é? Malone reconheceu imediatamente o espectador resmungão. Shively - exclamou. - Que surpresa.
Shively olhou de soslaio, e a sua má disposição dissipou-se.
- É você? Olhem esta, que coincidência.
Naquela barafunda, Malone tentou fazer-se ouvir.
- É a última pessoa que esperava ver aqui. Que é que o trouxe? Shively inclinou-se, murmurando com voz grossa ao ouvido de Malone.
- A mesma razão que o trouxe aqui, rapaz. Para ver de perto um magní fico pedaço. Parece que você conseguiu despertar-me interesse, só isso.
- Óptimo. Não ficará desapontado. - Malone olhou para o lado, preocupado. - Ela já chegou?
- Ainda não, mas deve chegar de um momento para o outro. Ambos desviaram a atenção para a fila de compridos e elegantes automóveis que estavam a chegar um Cadillac, um Jaguar, um Lincoln Continental com motorista, cada um largando raparigas bonitas com os seus pares de vidamente embonecados, a elite da indústria cinematográfica. Uma das que haviam chegado, sem maquilhagem na cara sardenta e com ar de quem tinha acabado de sair da cama, recebeu alguns aplausos diversos. Malone ouviu identificarem-na como sendo Joan Dever, e lembrou-se de que ela era uma das novas actrizes naturalistas que granjeara muita publicidade por ter filhos ilegítimos.
Subitamente, e acompanhada dum enorme murmúrio de antecipação vindo das bancadas, um magnífico Rolls-Royce Corniche, acastanhado, descapotável, parou à entrada.
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Excitado, Malone puxou pelo braço de Shively.
-Chegou. Aquele é o carro dela.
O porteiro do teatro abriu a porta de trás do Rolls-Royce, e um homem de óculos, forte e elegante, talvez de quarenta e muitos anos, saiu, piscou aflitivamente os olhos para o mar de rostos e para as luzes ofuscantes.
- É o agente particular - anunciou Malone, com respeito. - Felix Zigman. Trata de todos os seus assuntos particulares.
Zigman tinha-se inclinado para a parte de trás do Rolls-Royce para ajudar alguém, e, gradualmente, quase em ritmo de câmara lenta, ela emergiu, primeiro a mão com anéis, o braço nu, o pé fino e a perna clássica, depois o cabelo louro, comprido e solto, a seguir, o conhecido perfil maravilhoso, a projecção deslumbrante do famoso peito, por último o torso sensual.
Ela havia saído totalmente do carro, e estava de pé, direita, os olhos verdes e os lábios húmidos semiabertos a sorrir, agradecendo o clamor crescente de vivas e gritos.
- Sharon Sharon Sharon - foi o grito tumultuoso que saiu de centenas de gargantas.
Majestosamente, uma estola de arminho em volta dos ombros, um vesti do coleante de lantejoulas com uma abertura de lado brilhando a cada mo vimento das ancas e coxas, Sharon Fields agradeceu de novo a retumbante recepção com um leve trejeito de lábios.
Magnetizado pela sua proximidade - nunca estivera tão perto dela -, Malone ficara momentaneamente mudo. Ali estava ela em toda a sua dimensão, sem filtros de lentes fotográficas. Os seus olhos brilhantes fixaram-se nos dela enquanto ela fazia um dos seus gestos tipicamente teatrais. Tirou a estola dos ombros, atirou-a a Zigman e, sem abafo, revelou o vestido decotado, uma linha funda entre os seios, os ombros lisos e as costas nuas. Endireitando-se, atirando com o peito para a frente até o projectar contra o vestido de lantejoulas, virou-se graciosamente para um lado, depois para o outro, levantando um braço para agradecer mais uma vez a ovação contínua dos fãs que a adoravam.
Depois, languidamente, com uma expressão de alegria orgásmica, começou a andar naquele seu passo famoso, desde o passeio até às câmaras de televisão na entrada do cinema. Era um andar sensual, deslizante, as nádegas ondulando vagarosamente sob o vestido justo, os movimentos furtivos das coxas perfeitas quase transformando a roupa em carne feminina.
- Ela. ela não usa nada por baixo, sabe - disse Malone, com um suspiro de admiração. - Tal como Harlow e Marilyn Monroe.
Em pouco tempo, ela perdeu-se no meio dos fotógrafos, as lâmpadas das máquinas fotográficas iluminando o círculo como se fosse uma árvore de Natal. Mais uma vez, a deusa do sexo fora pouco visível, respondendo a algumas perguntas feitas por Sky Hubbard para uma transmissão nacional na televisão. Depois, com mais um aceno à multidão aos gritos, desapareceu no interior do Grauman's Chinese Theatre.
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Shively e Malone olharam-se emudecidos.
Malone recobrou a voz.
- Que acha?
Shively abanou a cabeça.
- Bolas tenho visto muita coisa boa, mas nunca vi um cu como aquele. Como é que Deus fez umas mamas e um cu daqueles só para uma rapariga?
- É perfeita - acentuou Malone.
- Vamos embora - disse Shively. - Quanto a mim, já não há mais nada para ver.
- Concordo - disse Malone.
As outras pessoas pareciam também ser da mesma opinião, porque a maior parte da multidão tinha começado a dispersar e a desaparecer.
Shively e Malone retrocederam vagarosamente, por entre os espectadores que ficavam, ambos perdidos nos seus pensamentos.
Abruptamente, Shively parou, apontando para a frente.
- Olhe lá. Aqueles não são os tipos com quem estivemos ontem à noite? Malone perscrutou à volta, e, numa clareira do passeio antes de uma casa de gelados, viu Howard Yost e Leo Brunner, entretidos a conversar.
- São, sim, são eles mesmos - afirmou Malone.
- Bem, é uma surpresa, e, quanto a mim, parece uma reunião - disse Shively. - Vamos ver o que eles estão a fazer.
Em pouco tempo, estavam os quatro juntos, Yost e Brunner explicando, atrapalhadamente, que tinham tido um pouco de tempo livre nessa noite e pensaram passar por lá para ver como era, realmente, uma estreia.
- Conversa. - disse Shively, a rir. - A quem é que pensam que estão a enfiár o barrete? Nenhum de nós estava nada interessado na estreia. Viemos cá ver, com os nossos próprios olhos, se ela era o que toda a gente dizia, o pedaço mais maravilhoso que Deus pôs na Terra.
Yost escangalhou-se a rir.
- Pelos vistos, não lhe podemos deitar poeira nos olhos, Shively. Eu confesso. Tinha de ver se ela era assim na realidade. E é.
- Caramba, se é - disse Shively. - Tudo o que me veio à cabeça quando ela tirou aquela pele e começou a andar foi o que seria ter o sexo dentro dela. Meus senhores, tudo o que posso dizer é o que disse ontem à noite no bar. Mas, agora, duplico a aposta. Daria tudo o que tenho ou o que possa vir a ter para passar uma noite, notem bem, só uma noite com aquela rapariga maravilhosa.
- Igualmente e amen! - disse Yost.
Brunner sorriu levemente, e abanou a cabeça.
Shively apontou um dedo para Malone, dirigindo-se aos outros.
-Deixemo-nos de fitas. Devemos o facto de estarmos aqui ao nosso amigo Malone e a mais ninguém. Ele entusiasmou-nos com esta Sharon Fields. Excitou-nos com a possibilidade de, realmente, conseguirmos
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possuí-la, tê-la para nós. - Olhou para Malone. - Ainda continua com a mesma opinião, meu rapaz?
- Qual opinião?
- Que podemos conhecer a Sharon Fields em pessoa?
- Certamente - disse Malone. - Nada se alterou. Nunca tive dúvidas. Disse- vos isso ontem à noite, e repito-o. Se quiserem chegar a conhecê-la, podem fazê-lo - todos podemos - cooperando e seguindo o meu plano.
Shively encolheu os ombros para os outros.
- Que temos a perder? Estou desvairado há vinte e quatro horas só de pensar nessa Sharon Fields. Só quero saber se valeu a pena. Acham que podemos ver se, aqui, o nosso amigo Malone está só a mandar bocas ou se está a dizer qualquer coisa de jeito?
Yost resmungou.
- Hoje estou por tudo, só por graça. E você, Brunner?
-Estou em liberdade por algumas horas.
- Boa! - disse Shively. Pôs um braço em volta dos ombros de Malone.
- Vá lá, espertalhão, vamos os quatro estreitar relações. E talvez falar um pouco mais sobre o que tem em mente. Conhece algum sítio, aqui perto, onde se possa beber qualquer coisa sem sermos incomodados?
Meteram-se todos no grande Buick de Yost e, como se sentiam agressivos e desinibidos, concordaram em ir ao bar do Hollywood Brown Derby, em Vine Street.
Apesar de o restaurante estar cheio e barulhento, o bar do Derby achava-se relativamente calmo e com poucos lugares ocupados. Não tiveram muito trabalho para encontrar um compartimento confortável que os isolasse da mão-cheia de clientes que lá se encontravam.
Depois de encomendarem as bebidas e de terem sido servidos, houve um intervalo de silêncio embaraçoso, como se nenhum dos três ali reunidos por Adam Malone estivesse ainda preparado para imaginar a sua improvável fantasia.
Finalmente, e olhando de soslaio à volta daquele lugar luxuoso usado pelas celebridades, foi Kyle Shively quem começou a conversa, enveredando para o tema que Malone rapidamente compreendeu ser o preferido do mecânico.
- É a primeira vez que entro neste sítio caro - admitiu Shively. - Agora já sei porque sempre passei ao largo. Já viram quanto levam por uma porcaria duma bebida? É preciso ser um Onassis ou um Rockefeller para vir a um sítio destes. Alguém que diga que não há sistema de classes sociais nesta chamada democracia é completamente parvo.
Depois disto, desbobinou várias vezes a injustiça que lhe tinham feito nesse dia, como a Sra. Bishop o tinha desprezado, como lhe dissera, sem
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rodeios, que ele não lhe servia, quando ele tinha mais para lhe dar do que o marido ou qualquer dos seus amigos ricos.
- A única coisa que não tinha para dar - disse Shively - era o facto de ter pouco no departamento de contas correntes. Sim, um pénis comprido não conta quando se tem uma conta bancária pequena. Este género de discriminação lixa-me completamente. um crime, é o que é. E, como sempre disse, não há maneira de acabar com o abismo e ter igualdade, porque os ricos cada vez enriquecem mais.
- Na verdade, é assim - concordou Leo Brunner. Pontificalmente, tirou os óculos, começando a limpá-los com a ponta do seu guardanapo, e a recitar os factos da vida.
- Num destes anos mais recentes, houve cinco pessoas neste país que ganharam mais de cinco milhões de dólares cada, mas que não pagaram nem um tostão de imposto de rendimentos. Neste mesmo período, houve um dono de uma companhia petrolífera que obteve um rendimento de vinte e seis milhões de dólares em doze meses e que legalmente conseguiu não pagar, sequer, imposto sobre rendimentos. De facto, num só ano, a United States Steel teve um lucro de cento e cinquenta e quatro milhões de dólares e não pagou nem um tostão de imposto. Com os métodos legais de isenção de taxas, cerca de cinquenta e sete biliões e meio de dólares por ano são isentos de taxa em benefício de indivíduos ou empresas ricas, e, para contrabalançar, cada família dos Estados Unidos é penalizada em cerca de mil dólares por ano. Mas reparem, tudo isto se passa numa nação onde quatro de cada dez pessoas vivem com privações ou na pobreza. Sou tudo menos um radical, meus amigos. Aliás sou um conservador no que diz respeito à maioria dos assuntos, incluindo a política fiscal. Concordo sem reservas com o sistema de livre inicia tiva, mas há graves injustiças na nossa estrutura fiscal.
Tendo dito tudo o que tinha a dizer no seu monólogo, Brunner ficou commo um balão de gás que acabasse de perder todo o seu hélio. Deixou-se cair para trás, parecendo mais vazio e mais pequeno.
- Assim é que é, amigo! - exclamou Shively, satisfeito por ter a con firmação de um perito. - É exactamente o que eu sempre tenho dito.
- Bem, ninguém nega isso - disse Yost, massajando a face rosada, pensativamente. -No entanto, sempre pensei que todos tinham uma oportunidade de se realizarem, se para tal trabalhassem duramente. Conheço muitos indivíduos bem colocados na vida que não nasceram ricos. Bolas, eu não nasci rico mas quase o consegui. Depois de, no meu último ano em Cal, ter sido escolhido para a segunda equipa de futebol do All- American, todas as portas se abriram para mim. Para algumas pessoas lá da alta; eu era alguém.
- Então, porque não é alguém agora - perguntou Shively. - Que lhe aconteceu pelo meio?
Yost pareceu nitidamente confuso.
- Não sei, realmente não sei. Penso que temos de malhar no ferro en quanto ele está quente, e eu não malhei nem com rapidez nem com força
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suficientes. Porque, depois disso, o tempo passa, e as pessoas esquecem, esquecem quem nós fomos, o que fizemos. Então aparecem novos jovens destemidos, de fama mais recente, e somos esquecidos, como se fôssemos um chapéu velho. Muitos dos casais novos que tento arranjar como clientes nunca ouviram falar de mim. Tudo o que posso dizer, é que é frustrante. Podia-vos contar uma que me aconteceu há umas horas. Não sei se vos deva contar, é um pouco embaraçoso, faz-me fazer figura de parvo.
Adam Malone, que tinha estado a sorver o seu vinho e a ouvir, falou pela primeira vez.
- Pode confiar em nós, Sr. Yost - disse, amigavelmente. - Penso que todos estamos de acordo em que tudo o que dissermos uns aos outros será estritamente confidencial.
- Claro! - afirmou Shively.
Hesitantemente, com os olhos fixos no seu uísque, Howard Yost des prendeu-se da sua extroversão, da sua fachada aparente, e tornou-se quase verdadeiro, ao relatar a sua visita à casa dos Livingstones, de como fora atraído e ignorado por Gale, a filha deles, e de como nem no próprio lar tinha encontrado conforto para as suas mágoas.
- É isso mesmo que tenho estado a tentar explicar - disse Shively.
- Atenção, não estou a censurar a minha mulher - acrescentou Yost, rapidamente. - Ela não tem culpa dos meus falhanços. Quero dizer, ela tem os seus próprios problemas para resolver. Só que há uma altura da nossa vida em que ficamos entre a espada e a parede, e não temos para onde nos voltarmos, nem possibilidade de sair da panela de pressão.
Malone concordou abanando a cabeça, e disse, em voz baixa
- A maioria dos homens vive num desespero retraído. Não fui eu que o disse. Foi Thoreau.
Mais uma vez, Brunner pareceu vir ao de cima
- Sim, essa frase de Thoreau é muito perceptiva. Suponho, bem, penso que de uma maneira ou de outra ela se aplica a cada um de nós. Você mencionou o seu casamento, Sr. Yost. Diria que sou o mais velho de nós - vou fazer cinquenta e três anos no meu próximo aniversário - e penso que sou o que tem mais anos de casado. Trinta anos com uma só mulher, se querem saber. Em muitos aspectos, tem sido um casamento satisfatório. Quando olho para as companheiras dos outros homens, muitas vezes penso que devo dar graças a Deus. No entanto, já tenho pensado se o homem teria sido destinado à monogamia. Toda a excitação e novidade dos primeiros anos de casamento
tende, inevitavelmente, a desaparecer com o passar do tempo. Os parceiros tornam-se demasiado íntimos. A paixão desaparece. As relações tornam-se fraternais ou quase. E se, ainda por cima, o nosso trabalho se transforma numa rotina cansativa, com poucas esperanças de melhorar, um homem fica cada vez mais desapontado e desmoralizado. Restam-lhe muito poucas opções. Ele fica sem possibilidade de mudar ou variar. Fica despojado de esperanças. De qualquer modo, não é justo.
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Shively parecia não ter compreendido.
- Bem, Leo, se é que o posso tratar assim, eu nunca fui casado, portanto não sei bem como isso funciona. Mas não vejo porque não há-de ter também um pedaço daquele traseiro de vez em quando. Só para variar, para alegrar um pouco as coisas. Na maioria, os tipos casados que conheço fazem isso.
Brunner encolheu os ombros.
- Não é assim tão fácil para todos, Kyle. Não somos todos igualmente afirmativos ou mesmo atraentes para as mulheres. Acho que me seria muito difícil ser infiel. Talvez seja o sentimento de culpa que me inibe.
- Quer dizer que nunca foi infiel, nem uma única vez, à sua velhota perguntou Shively.
Brunner esgravatava o seu guardanapo de papel, hesitando na resposta. Por fim, pôs de lado o guardanapo esfarrapado e falou
- Bem, já que estamos em confidências, eu. eu fui infiel à Thelma duas vezes, em duas ocasiões durante o nosso casamento. Da primeira vez, de facto, não foi por minha culpa. Foi como por acaso, há cerca de dez anos. Eu tinha uma secretária nova e bonita, e ficámos a trabalhar até tarde. Foi durante a época dos impostos, na altura em que havia mais trabalho. Acabámos de trabalhar depois da meia-noite, e ela disse-me: "- Bem, já é amanhã e faço anos. Trouxe uma garrafa. Espero que possa celebrar este acontecimento comigo. - Portanto, para nos animarmos, e para celebrarmos, começámos a beber. Receio que tenha ficado bastante bêbedo. Tudo o que me lembro é de estarmos em cima do sofá e ela ter o vestido puxado para cima e eu a fazer-lhe aquilo. Foi inacreditável. Foi só essa vez. Despediu-se pouco tempo depois para ir para um emprego mais bem pago.
Brunner hesitou, olhou furtivamente para os outros, corando.
- Eu. eu suponho que isto não é um caso por aí além. Na segunda ocasião. bem, confesso que já foi no ano passado. Aconteceu ver um daqueles jornais proibidos muito chocantes. Conhecem?
- Leio-os todas as semanas - afirmou Malone.
- Bem, este era novidade para mim. Aqueles anúncios salões de massagem, e mais não sei quê. Bem, havia o anúncio dum sítio na Merlose Avenue dizendo que, se a fotografia fosse o seu passatempo, poderia ter várias raparigas bonitas a posar nuas para si. Por coincidência, o meu passatempo é tirar retratos Polaroid. Por isso, uma noite, quando a Thelma não se encontrava na cidade, pois fora visitar um familiar em convalescença, peguei na minha máquina e fui à morada indicada no anúncio. Bem, paguei e eles mandaram-me para um quarto particular com um modelo muito bonito. Ela não tinha mais do que vinte anos. Era muito directa. Tirou o vestido - o vestido e as cuecas -, deitou-se na carpeta espessa e disse-me para lhe indicar que pose queria que fizesse. Fiquei confuso. Estava demasiado. demasiadamente estimulado para montar sequer a máquina. Ela reparou no que estava a acontecer, ficou muito divertida e mostrou-se muito simpática. Disse qualquer coisa como - Venha cá e deite-se ao pé de mim. Não veio só
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realmente para tirar fotografias, pois não? - Fiz o que ela me mandou fazer. Depois ela desapertou-me a braguilha, saltou para cima de mim e fizemos assim mesmo. Eu. foi uma experiência bastante memorável. Correndo o risco de lhes parecer ingénuo, nunca tinha experimentado daquela maneira. Quer dizer, na posição inversa. Foi bastante estimulante.
- Se gostou tanto - disse Malone -, porque é que não voltou lá mais vezes?
-Não sei. Penso que me sentia envergonhado, um homem da minha idade. um homem casado, além do mais. Não me parecia honesto. Shively engoliu o resto da bebida.
- Bem, não consigo imaginar, Leo, não compreendo essa história de viver sem uma mulher de vez em quando. Para que é que está a poupar-se? Não
sente desejos de sair e de se divertir mais?
Brunner assentiu violentamente com a cabeça.
-Claro que tenho desejos de ceder a esses prazeres. Suponho que me sinto retraído por várias razões. Uma coisa é desejar, e outra é satisfazer esses desejos. Suponho que tive educação diferente, numa época diferente, quando o sexo era considerado uma coisa vergonhosa e quando a castidade, ou, antes, a fidelidade, nos homens, era elogiada. Nesse aspecto, sou uma vítima do meu passado. Muitos homens da minha idade o são. Somos deficientes psicológicos. Além disso, tenho sempre medo de que uma mulher mais nova não me queira, que possa rir de mim. Mas desejos. sim, Kyle, se tenho desejos!
- Para mim, é tudo um pouco mais fácil - disse Yost. - Quero dizer, tendo o meu género de trabalho. Estou sempre a ter entrevistas em casa de prováveis clientes. Algumas são divorciadas ou jovens viúvas. De vez em quando, acerto em cheio. Recebo um convite para misturar negócios com distracção. Não é mau. - Riu. - Puxa! houve algumas inesquecíveis. Mas, para vos ser franco, às vezes pode ser muito complicado. Por vezes, elas querem-nos ver regularmente, e isso não é fácil para um pai de família. Francamente, falando verdade, prefiro tudo limpo. Sem compromissos emocionais. Paga-se e vai-se embora.
- Quer dizer pegas e putas? - perguntou Malone.
- Isso mesmo, amigo. Por um lado, tenho sorte, tenho sempre, pelo menos, uma convenção de seguros por ano, às vezes duas. Estatais e nacionais. No ano passado, tivemos o congresso no Fontainebleau em Miami Beach. Havia miúdas por todo o lado. Havia uma pega em especial, uma beleza clássica cubana, tinha talvez vinte e nove, trinta anos, engatéi-a no Poodle Bar. Cem dólares pela noite toda. Mas essas são as noites que fazem com que a vida valha a pena. Isso é que é viver como os outros.
Shively fez uma careta.
- Cada um come o que quer, Howie. Não estou a desprezar o que cada um faz para o conseguir. Pela minha parte, sou contra o pagar para isso. Porquê pagar, quando há tantas caçadoras por aí a pedir por favor? Que diz a
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isto, Malone? Como nosso presidente não está muito comunicativo. As miúdas andam atrás dos escritores?
- Oh, sim - disse Malone. - As mulheres parece que ficam intrigadas com quem temtalento criador. Quando estou com disposição, nunca tenho dificuldade em encontrar uma livre. De facto.
- Que é que já escreveu? - interrompeu Yost. - Será que já li alguma coisa escrita por si?
Malone sorriu, envergonhado. - É pouco provável que tenha lido. Não tenho nada de importante publicado, nem livros, nem contos em publicações de grande circulação. Até agora, o meu trabalho apareceu só em periódicos de pouca tiragem, publicações literárias trimestrais. Dá prestígio, mas o prestigio não se come. Portanto, sou obrigado a ter outros trabalhos, até um dia conseguir publicar uma coisa em grande.
- Que espécie de trabalhos? - perguntou Brunner.
- Não sou muito esquisito. Qualquer trabalho que me dê de comer e me deixe tempo suficiente para continuar a escrever satisfaz-me. Comecei como professor primário de gramática, substituto. Mas era muito restrito e mal pago. Durante um ano trabalhei num armazém, a vender sapatos de senhora, mas cansei-me de olhar pelas saias das senhoras a cima.
- Puxa, pá, deve ser maricas - disse Shively.
Malone sorriu.
-Não. Sou bastante direito. Entretanto, neste último ano, tenho tra balhado em part time como arrumador num supermercado no Olympic. Tra balho bruto. Não é necessário concentração. Portanto, dá-me muito tempo para pensar nos meus contos enquanto ganho umas massas. E, por acaso, o trabalhar num supermercado é uma boa maneira de conhecer muitas raparigas solteiras que vivem nas redondezas. E, além disso, são muito atiradiças, do estilo que Kyle Shively disse. Com esta história dos movimentos de libertação da mulher, elas são, afinal de contas, tão agressivas como os homens. Vêm ter connosco e dizem Então, como é? Assim mesmo.
- Então, como é? - repetiu Shively.
-Que quer isso dizer?
- Quer dizer isso mesmo. Quer dizer que tal se fôssemos directamente ao assunto que nos levou a reunir hoje à noite? Olhe, rapaz, reavivar conquistas são águas passadas, não movem moinhos. Já há muito que descobri que engatar raparigas três ou quatro vezes por semana não é nada de especial. Aprendi o essencial há muito tempo. As miúdas querem-no tanto como os homens. Se não formos esquisitos, e eu não o sou. bolas qualquer coisa que se mova e tenha um buraco. então temos tudo o que queremos. Mas essa não é a razão, por que vim cá esta noite. Sabe porque foi?
- Tenho uma ideia - disse Malone, calmamente.
-Não é para discutir as pegas e as puritanas. As ninfomaníacas que passam pela estação de serviço todos os dias - uma secretária, uma empregada de mesa, uma simples empregada -, isso são miúdas ordinárias. Estou
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aqui para falar não do que tenho, mas daquilo de que estão a privar-me, porque não sou o que as pessoas chamam um homem importante, percebe?
Estou a falar de material de primeira que, pelos vistos, é bom de mais para Kyle Shively. Estou a falar de uma supermiúda. - Parou significativa mente. - Como Sharon Fields, por exemplo. Certo?
- Certo - disse Malone.
- Vi-a esta noite na estreia. O meu membro levantou-se uma milha. É nela que quero penetrar. É com ela que quero ir para a cama. Ouviu-me dizer que daria o meu braço esquerdo, o meu membro, tudo no Mundo, para ir uma vez a um pedaço daqueles. Quero metê-lo numa pessoa como a Sharon Fields. Agora, você é a grande testa-de-ferro que disse que era fácil. Quase me convenceu ontem à noite. Depois desapareceu. Mas pensei duas vezes, ouviu? Estou todo receptivo. Só não quero é que me lixem.
-Não tenho razões para o lixar, Shively.
- Então, responda-me a uma pergunta e eu verei se está ou não a em barretar-nos. Aceito que esteja doido por essa rapariga e que saiba muita coisa a respeito dela. Aceito, até, a possibilidade de que tenha um plano viável para a conhecer. Até aqui, tudo certo. Mas diga-me uma coisa. Se tem esse plano fabuloso há tanto tempo, porque é que nunca o usou nem o pôs em prática para si próprio? Porque é que nunca conseguiu nada com essa Sharon Fields?
Todos esperavam a resposta de Adam Malone.
Ele começou a falar devagar, medindo as palavras.
- Ao princípio, tinha um plano menos audacioso, que pensava conseguir realizar sozinho. Sim, tentei conhecê- la seguindo o meu plano original. Imaginei-o da seguinte forma sou escritor. Muitos escritores estão a escrever artigos acerca de Sharon Fields. Devem encontrar-se com ela e entrevistá-la para os poderem escrever. Portanto, apesar de as revistas cinematográficas não corresponderem ao género de publicação onde queria ter o meu nome, pensei que valeria a pena rebaixar-me só para ter a oportunidade de ver Sharon Fields. Por isso, imaginei umas histórias para escrever sobre ela, sob vários ângulos, e fui à Aurora Filmes para a conhecer. Nunca consegui ir além do seu departamento de publicidade. Aparentemente, eu não era bastante conhecido, não tinha méritos suficientes para me concederem uma entrevista. Além disso, disseram-me que ela era agora tão famosa que toda a gente queria ocupar-lhe o tempo, e que tinha tanto que fazer que não tinha tempo disponível. Por isso, deram-me fotografias e o estilo de material publicitário pré-fabricado e mandaram-me embora, dizendo-me que tinha material suficiente para trabalhar. Bem, depois fiquei a pensar. Sabendo tanto a respeito dela e conhecendo-a tão bem, melhor do que muitas raparigas com quem namorei e com quem fui para a cama, vi logo que assim que tivesse a oportunidade de a conhecer, a coisa resultaria. Ela quereria amar-me da mesma maneira que eu desejava amá-la? E foi nessa altura que comecei a trabalhar no meu segundo e mais audacioso plano, o meu plano actual.
Reparou que Shively estava definitivamente mais receptivo, mas ainda não totalmente satisfeito.
- Está bem, então porque é que ainda não fez o que nos disse que poderia ser feito, ir lá buscá-la e tentar convencê-la a ter relações?
- Porque era um esquema demasiadamente complexo para uma só pessoa o pôr em prática. Sendo ela quem é, torna-a menos acessível do que a maioria das mulheres. Há também outras complicações, mas não há nem um só obstáculo que eu não tenha enfrentado e resolvido por escrito. São necessárias algumas pessoas com capacidade, uma organização de homens como nós.
- Fez uma pausa. - E já agora que estamos todos a ser francos, digo-vos que houve outra razão que me refreou, não muito diferente da que Leo Brunner referiu quando falou das mulheres. Eu sou bom a criar, a imaginar ideias e planos. Mas não sou bom na sua realização, não sou basicamente um homem de acção. Portanto, sempre tive esperanças de encontrar outros que ajudassem a concretizar as minhas ideias.
Shively continuou a olhar para Malone.
- Talvez tenha encontrado o que sempre quis. em mim, no Yost e até no Brunner.
-Espero bem que sim.
- Está bem, meu rapaz, não percamos mais tempo. De agora em diante, quero ser prático. Acabaram-se os jogos. Estou a ver-nos a deitar-lhe a mão. Isso vejo eu. Mas depois disso, do que se segue, é que queria ter a certeza. Suponhamos que nós os quatro continuávamos unidos, realizávamos o plano e lhe deitávamos a mão. Quem é que nos garante que conseguimos ir para a cama com ela, que ela não levantará objecções, que não se irá embora? Se me responder a isto, pode contar comigo.
- Posso responder a isso de modo completamente satisfatório - insistiu Malone. - Tenho provas documentais de como ela cooperará totalmente logo que a enfrentarmos.
- Ver para crer como São Tomé.
- Provas!
- Provas!
- Eu mostro-lhe, mostrar-lhe-ei tudo - disse firmemente Malone. Não aqui. Se quiserem ver, está tudo no meu apartamento. Depois não terão mais dúvidas. Tenho a certeza de que alinham comigo. E se forem ao meu apartamento amanhã à noite, depois de jantar? Digamos, às oito horas.
Shively pôs as palmas das mãos sobre a mesa.
- Quanto a mim, estou de acordo. - Olhou para os outros dois. - Vocês querem ou não?
Yost franziu o sobrolho.
-Claro que quero. Quem não quereria, estando em jogo aquilo de que falamos? Eu vou lá. Só para ver o que ele tem em mente. Malone, se você me consegue convencer, é porque é viável, vou até ao fim.
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Ficaram então à espera de Brunner. Os olhos do homem mais velho piscaram várias vezes por detrás dos óculos. Por fim, falou:
- Eu. eu não sei. Mas, já que cheguei até aqui, porque não ir mais além?
Shively fez um grande sorriso.
-Unânime. É assim que eu gosto.
- E eu também - disse Malone, satisfeito. - Deverá ser o nosso lema. Um por todos e todos por um.
- Sim, não é mau - respondeu Shively. - Está bem, Malone, dê-nos a sua morada. Estaremos lá, de certeza. Chamar-lhe-emos a primeira reunião oficial da Sociedade Vamos-Fornicar- Sharon-Fields.
Malone estremeceu, depois olhou rapidamente à sua volta para ver se alguém os tinha ouvìdo. Mas não. Inclinou-se, aproximando-se mais dos outros.
- Acho que, de agora em diante, devemos ter mais cuidado - murmurou. - Se isto vai ser a sério, terá de ser absolutamente confidencial.
Shively fez um círculo com o polegar e o indicador.
- Está bem, vou guardar segredo - prometeu. - De agora em diante, tudo é secreto. Sinto no meio das virilhas que isto se vai realizar.
- Oh, sim, realizar-se-á! - concordou Malone, baixinho. - E já que assim será, gostaria de sugerir outro nome para o nosso grupo, um nome muito inocente.
- Como, por exemplo - perguntou Shively.
- Como. como. o Clube de Fãs.
- Sim - disse Shively, com os olhos brilhantes. - Essa é bestial. É o que nós somos, companheiros! De agora em diante, seremos o Clube de Fãs.
Capítulo Terceiro
Quarta-feira à noite. Passavam dez minutos das oito horas. Chegara o momento com que Adam Malone sonhava há um ano.
Da bandeja com garrafas, copos, e cubos de gelo que estava em cima do aparelho de televisão, Malone serviu e passou as bebidas, sentindo um certo conforto e uma certa afinidade em relação aos três novos amigos que descansavam no seu apartamento de solteiro em Santa Mónica.
Lá estava Kyle Shively, recostado para trás na cadeira de couro castanho já estalado, com uma perna por cima do braço da cadeira que Malone havia comprado num armazém do Exército de Salvação. Leo Brunner, sentado, muito direito e incomodado, num canto da cama articulada, e Howard Yost, sem gravata, andando à volta do quarto a examinar as fotografias e posters de Sharon Fields que cobriam duas das paredes.
- Eh Adam - disse em voz alta o vendedor de seguros -, você está mesmo obcecado pela Sharon Fields. Nunca vi uma colecção destas em lado nenhum, o seu apartamento parece um museu de garotas. Onde é que arranjou este material?
- Na Aurora Filmes e noutros estúdios onde Sharon trabalhou - disse Malone. - Umas coisas comprei-as em lojas de artigos em segunda mão especializadas em arte cinematográfica. Outras consegui-as fazendo trocas com outros malucos por cinema. Sim, suponho que é uma das maiores colecções do país.
Yost parou em frente de uma fotografia enorme e assobiou.
- Olhem para esta. Olhem só. - Apontou para a fotografia de Sharon Fields, em tamanho maior que o natural, de pé, de pernas afastadas, com
uma das mãos na anca e a outra a segurar, de lado, um vestido amarrotado, e só com um soutien branco, pequeníssimo, e cuecas justíssimas, a piscar o olho audaciosamente para uma audiência invisível.
- Eh, pá, não gostariam de a ter nos braços tal e qual como ali? Malone afastou-se do aparelho de televisão, serpenteou entre o seu arquivo e a mesa de casa de jantar, e juntou-se a Yost para admirar o poster.
- Uma das melhores que possuo - disse Malone. - Foi utilizada para publicidade do filme Você É Decente , uma comédia que Sharon fez há cinco anos, em que desempenhou o papel de um membro moralista da censura, que se dedicava ao trabalho de desmascarar e arruinar um produtor de espectáculos pornográficos de raparigas, cuja companhia andava em lourenza através da Nova Inglaterra. Para desmascarar o produtor, Sharon teve de fingir que era uma strip-teaser e entrar na companhia. Esse é um instantâneo do filme, a primeira vez que ela se despe. Lembra-se do filme?
- Como poderia esquecê-lo? - disse Yost, ainda a admirar a reprodução, em ponto grande, de Sharon Fields. - E você diz que tem mais?
Malone acariciou com orgulho o seu arquivo.
- Quatro gavetas cheias daquilo que se pode saber de Sharon. Está tudo cuidadosamente arquivado: artigos de publicidade, recortes de jornais e revistas, gravações de entrevistas na Rádio e Televisão, fotografias, tudo. E isto sem contar com os meus apontamentos.
Shively baloiçou a perna, tirando-a de cima do braço da cadeira.
- E se vocês os dois se deixassem de divagações e de perder tempo e começássemos a falar a sério? Você, Adam, ia dar-nos informações com pletas sobre essa miúda. Portanto, vamos a isso.
- Ia começar mesmo agora - disse Malone.
Abriu a gaveta de cima do arquivo e tirou três pastas, enquanto Yost foi sentar-se na cama ao lado de Brunner.
Malone arranjou espaço na sua pequena mesa redonda, abriu as pastas,
espalhou o conteúdo, e começou a escolher e a examinar o material. Finalmente, virou-se para enfrentar os outros.
-Aqui está o nosso objectivo, Sharon Fields em versão condensada.
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Nasceu há vinte e oito anos numa quinta estilo plantação, nos arredores de
Logan, West Virginia. Boas famílias, aristocratas. O pai era um senhor, um
advogado nascido na Geórgia. Ela começou por estudar na Escola de Formação da Sra. Gussett no Maryland. Uma escola distinta. Depois foi para a
Universidade de Bryn Mawr, na Pensilvânia. O seu curso principal era
Psicologia, e a sua dedicação o Teatro. Na Universidade, desempenhou os
papéis de Mrs. Erlynne na peça Lady Windermere's Fan, de Oscar Wilde,
e de Wendy no Peter Pan, de Barrie. No seu terceiro ano de Faculdade
sem os pais saberem, participou num concurso de beleza de que saiu vencedora; parte do prémio foi uma viagem a Nova Iorque para fazer um anúncio
de televisão para um fabricante de malhas. O anúncio teve tanto sucesso que
Sharon foi persuadida a deixar os estudos e começar uma carreira de actriz na
Televisão. A parte isso, teve lições baseadas nos métodos de Stanislavsky que
lhe foram dadas por um professor particular de drama. Um dia, juntamente
com outras jovens artistas, passou modelos de fato de banho para uma festa de
caridade no Plaza. Por acaso, encontrava-se ali um agente de Hollywood,
com a mulher, que viu instantaneamente a possibilidade de transformar
Sharon Fields numa estrela. Preparou-lhe um teste cinematográfico. O estúdio contratou-a por um ano com um salário mínimo. Trouxeram-na para
Hollywood, onde lhe deram um pequeno papel, num filme de susense
chamado Hotel do Terror, o de noiva de um gangster. Só entrou em duas
cenas. Vocês conhecem o resto. O pequeno papel atraiu uma correspondência
dos admiradores, homens na sua maioria, mais volumosa do que a que
qualquer grande estrela havia recebido até então. Fizeram Sharon assinar
imediatamente um contrato a longo prazo. E agora, ao fim de vinte e três filmes, ela é a maior estrela e o maior símbolo do sexo da história do cinema.
Malone fez uma pausa para recobrar o fôlego, e para vasculhar na sua
papelada mais pormenores sobre a carreira de Sharon.
- Quanto a alguns dos filmes, ela....
- Chega dessa história - interrompeu Shivey. - Não é necessário impingir-nos mais propaganda dela. Não somos nenhuns parvos. Por mim,
quero saber mais qualquer coisa sobre a vida sexual da miúda. Deve ter
uma.... do tamanho de uma pista de aterragem.
- A vida sexual dela? - disse Malone. - Com certeza. As suas relações
com homens têm sido propriedade pública. uma das coisas boas que Sharon
tem. Não tem nada a esconder. É franca sobre tudo o que faz ou que fez.
Quanto a homens.... bom, foi casada duas vezes, quando ainda era miúda, e
os casamentos foram feitos à pressa. Da primeira foi com um estudante universitário, que foi para a tropa assim que acabou de se formar, um mês depois
de terem casado. Mandaram-no para o Vietname onde morreu. Passado
pouco tempo, casou com o brilhante agente que a tinha descoberto. Chamava-se Halen. Desfizera-se da mulher por causa de Sharon, mas, após terem
chegado a Hollywood, divorciaram-se. Penso que este casamento durou seis meses.
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Yost riu à socapa. - Pelo menos sabemos que não é virgem.
-O casamento não é necessariamente uma prova de perda de virgin dade - disse Brunner, muito sério.
- Bem, penso que não devemos preocupar-nos com isso - disse Malone. - Embora não ache que possamos rotular a nossa amiga de promíscua, devo dizer que ela sempre se portou na vida real tal como lhe apeteceu, sem inibições de qualquer espécie. Tem sido sempre uma hedonista. Nunca reprimiu as suas necessidades sexuais, sempre as satisfez. Vocês já leram, com certeza, algo sobre os seus romances sentimentais que costumam vir nas primeiras páginas dos jornais, sobre a sua tendência de ir para a cama com tipos famosos. Há, pelo menos, meia dúzia de casos escandalosos que ti veram imensa publicidade. Três foram com actores famosos, dois dos quais eram casados. Depois foi com um lutador, um campeão de meio-pesados. pois, aquele bilionário de Boston. A seguir, recordam-se, aquele elegante senador de Midwest.
- Sim - disse Brunner. - A mulher divorciou-se, e arrumou-lhe a reputação quando ele se candidatou à reeleição.
- E o seu último caso, suponho que foi um caso, com o actor britânico Roger Clay - disse Malone. - Esteve para casar com ele há pouco tempo. Aparentemente, zangaram-se, e ele regressou a Londres. Ela própria vai a Londres no dia 24 de Junho - isto é, daqui a seis semanas, mais ou menos -, mas acho que não é para ir ter com ele. De qualquer forma, podemos concluir que ela agora não anda sexualmente activa. E podemos também deduzir que ela gosta de estar sexualmente activa.
Shively mexeu-se.
-Quem é que diz isso?
- É do conhecimento geral - respondeu Malone. - Disso não faz ela segredo. Li a análise de um psiquiatra sobre a atitude de Sharon em relação ao sexo, é bastante esclarecedora. Desde muito pequena, apesar dos seus exemplares princípios de educação, e sem que se saiba porquê, sentiu sempre falta de confiança em si própria, sentiu-se sempre insegura, como se não pertencesse a ninguém. Uma maneira de pertencer, de ser aceite pelos outros, era a de se sentir desejada pelos homens. Foi idêntica a interpretação de um famoso fotógrafo quanto a Marilyn Monroe - Ao enfrentar um homem que não conhecia, só se sentia salva e segura quando via que o homem a desejava. Portanto, tudo na sua vida era engrenado para provocar esse sentimento. A única maneira que conhecia para se tornar aceite era a de ver-se desejada. Procedia do mesmo modo frente à máquina fotográfica. Tentava seduzir a máquina como se fosse um ser humano. Sharon Fields é assim.
- Raios me partam - murmurou Yost, levantando-se para encher de novo o copo.
- Como vêem, este é o género de pessoa com quem estamos a lidar - disse Malone.
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- Até aqui, tudo certo - disse Yost, enquanto deitava uísque no copo
vazio. - Já nos deu provas de que a senhora é uma vivaça, já nos disse que ela
mostra bem o que é. Mas ainda não nos deu a mínima prova em como ela
aceitaria homens como nós, homens que não são importantes no mundo
cinematográfico, nem actores bonitos, nem bilionários, nem políticos. Isso é o que queremos ouvir.
- Claro, é isso que queremos ouvir - ecoou Shively. - Chega de
paleios, rapazinho. Queremos ver as provas que você tem, ou então é melhor
que se cale de uma vez para sempre.
- Estava apenas a dar-vos informações que estimulassem os vossos desejos - explicou Malone. - Eu tenho o material. Prometi-vos provas. Agora
vão vê-las.
Sem mais palavras, arrancou uma pasta grossa de cima da mesa, levantou-se, tirou uma série de recortes e deu-os a Yost, que os agarrou e se
sentou para os ler. Malone passou outra série de recortes a Brunner e, depois,
entregou a pasta com os restantes a Shively.
Logo que os três os começaram a ler, colocou-se no centro da sala,
observando as suas reacções e esperando os veredictos. Sem se poder conter
por mais tempo, Malone começou a falar, mesmo com os outros a ler e a
ouvir só metade do que lhes dizia:
- Como já vos disse, acompanhei essa rapariga desde o princípio da sua
carreira - disse Malone. - Conheço todas as mudanças dos seus ditos, todas
as suas subtis mudanças de atitude. Podem crer que, como maior observador
do mundo de Sharon, nada me escapa. Portanto, podem acreditar em mim
quando vos digo que detectei uma mudança drástica em Sharon Fields
durante os últimos dois anos. Ela era o que vocês pensam que é, uma rapariga
que só aceita como amantes os indivíduos famosos, os ricos e os poderosos.
Mas isso já acabou. Acabou tudo. Com a excepção do Roger Clay, ela mudou
a sua atitude em relação ao género de homem que quer que a ame. Isto está
claramente revelado nas francas entrevistas que lhe fizeram e que vocês estão
a ler, nos artigos que, sobre as suas confissões, ela própria escreveu, nas
reproduções das fitas que gravei dos seus programas emitidos na rádio e na
televisão. Podem ver e ouvir com os vossos próprios olhos e ouvidos.
- Sim - murmurou Shively, afundado no material que se achava na pasta.
- Vejam como ela se tornou mais aberta, mais honesta, mais reveladora
da sua inquietação com a sua vida de celebridade e os seus amantes célebres.
Notem como ela repudia a sua vida passada....
Shively levantou os olhos.
- A sua vida passada? Ah, refere-se à época em que ela ia para a cama
com os nomes, não com os homens!
Malone torceu-se.
-Bem, não é exactamente isso. Ela agora afirma que só porque um
homem tem fama pelo seu talento ou por qualquer outro motivo, ou lá porque
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tem dinheiro ou poder, isso não o transforma automaticamente no homem que ela gostaria de amar ou a quem gostaria de se entregar. Podem ler como ela está a aborrecer-se cada vez mais desse género de relações. Verão, pois é óbvio, como ela está farta da multidão estérilintelectual, dos materialistas, dos homens egocentristas que a rodeiam. Na sua maioria, não sabem dar nada, de tão narcisistas que são. - Algumas das mais maravilhosas relações amorosas que tive envolveram um actor isolado, cita ela de Wilson Mizner, ao referir esse tipo de homens.
- Muito interessante - disse Brunner, com um sorriso disfarçado.
- Os presunçosos que se amam a si próprios mais do que a uma mulher, não são os únicos de quem ela já está farta - continuou Malone. - Há outro estilo mais dentro da sua convivência do dia-a-dia, de que ela também já está cansada. Há muitos homens que só querem conviver com ela por ela ser o que é - mundialmente conhecida como um símbolo do sexo.
- Pode incluir-me nesse grupo - interrompeu Shively.
e outros querem a publicidade que adquirem ao serem vistos na sua companhia. E há, ainda, aqueles dentro das suas relações que têm medo dela, que são uns fracos servos. Ela disse que se tinha livrado de todos eles, porque, de um ou de outro modo, eram incapazes de lhe dar a única coisa que ela mais deseja e precisa dos homens: amor - puro, honesto e aberto.
Malone, vendo os outros absorvidos na leitura, pôs-se atrás de Yost e espreitou por cima do ombro, vendo-o a perscrutar uma página inteira do suplemento de um jornal de domingo ocupada por uma entrevista com Sharon Fields.
- Repare nisto - disse Malone, sem se dirigir a ninguém em especial -, esta, aqui, só de há um mês atrás. Vejam como Sharon o diz claramente. "-Necessito de um homem agressivo, que me faça sentir fraca, que me domine, que me faça sentir segura e protegida. Estou farta dos homens que continuam a ser meninos-da-mamã, que fingem ser muito fortes, mas que, por dentro, são uns medricas e uns fracos. Estou igualmente farta dos Casanovas com muita publicidade que estão constantemente a querer provar a sua virilidade tentando seduzir todas as mulheres que conhecem, criando relações onde não existe nenhum desejo que não seja o de reforçar o seu machismo e melhorar as suas médias para o consumo do público. Granjeiam falsas reputações de serem grandes amantes, quando nada sabem sobre o amor. Conviver com um homem desses é o mesmo que ter um caso amoroso com um computador.
Malone fez uma pausa e continuou a ler. Naquele momento, tanto Shi vely como Brunner estavam atentos, e Yost seguia as palavras que Malone lia alto. Este apontou para a metade de baixo do jornal.
- Vejam este parágrafo. O entrevistador diz Para mim é evidente que tudo o que Sharon Fields me disse reflectia o seu sentimento mais profundo, acrescido da mais sincera convicção. Revelou-me que a sua atitude em relação ao sexo oposto levou uma reviravolta nestes últimos meses.
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Malone levantou a cabeça: - Oiçam todos, oiçam o que vem a seguir. E repete textualmente o que Sharon Fields disse - Quando encontrar um
homem interessado em mim, espero que ele me diga directa e objectivamente
quais os seus sentimentos. Francamente, se estamos a falar de um homem que por acaso me deseja, prefiro que ele me leve à força a que tente seduzir-me com jogos pouco sinceros. Outra coisa que agora acho é que.... não
estou interessada no tipo de homem do Dun and Bradstreet. Estou interessada no homem em si, não me interessam o seu aspecto
físico, a sua educação, a sua posição social. Só me interessa o que ele é por
dentro, as suas qualidades interiores, e, é claro, o seu interesse por mim e a
sua prontidão em expressar esse interesse, preocupando-se comigo não só
como pessoa, mas também como criatura sexual. Procuro, cada vez mais, um
homem que seja homem, se é que me percebe, e que tenha como interesse
principal satisfazer-me como mulher, não só a si próprio, mas também a
mim. Abri as portas do meu coração a isto, a este desejo de deixar entrar
qualquer homem que me queira mais do que a qualquer outra coisa no
mundo, que arrisque tudo o que possui para me ter, por aquilo que eu sou, e
mais nada. Gerou-se uma tremenda revolução nas relações humanas, e eu fui
levada por ela. Existe uma nova liberdade sexual, uma igualdade, uma sinceridade, e eu sou a favor delas, desejo participar nelas. A maioria dos
homens não compreende o que está a suceder às mulheres, a uma mulher
como eu. Mas talvez haja alguns que percebam, e, para eles, digo estou
preparada, Sharon Fields está pronta e à espera. "
Malone endireitou-se e deu uns passos, voltando de novo ao centro da sala
para observar as reacções na cara dos amigos.
- Bem - disse ele -, bem.... isto já é qualquer coisa, não acham?
A expressão de Yost não escondeu a sua reacção. Mostrava-se impressionado.
- É, de facto, qualquer coisa. - Olhou de novo para o artigo. - Que tal?
Mesmo a pedir directamente.
Shively pôs de lado o seu monte de recortes.
- Sim, não há dúvida. - Dirigiu-se a Yost. - Howie, sabe que mais ....
parece que o nosso anfitrião tem sido mesmo sério connosco.
O rosto de Malone iluminou-se.
- Não vos disse? É só questão de conhecê-la. Assim que a conhecermos,
ela alinhará. É isso que ela dá a entender em cada uma das suas entrevistas.
Leo Brunner levantou-se e esticou um dedo fazendo sinal - parecia que
estava a tentar dizer ao professor que queria ir à casa de banho, mas estava
apenas a fazer um esforço para atrair a atenção de Malone, assim como a de
Yost e de Shively. Sozinho, parecia não estar certo do que tinha lido e ouvido.
- Sim, Leo? - disse Malone.
Divertido, Yost acrescentou.
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- Tem a palavra, Leo. Não estamos aqui a seguir os regulamentos de uma assembleia.
- Obrigado - disse Brunner, formalmente. - O que temos estado a ler acerca de Sharon Fields. ah. próva que ela está interessada em. em homens simples como nós. Dando-lhe o seu verdadeiro valor, isto vem confirmar o que Adam tem estado a dizer. Mas, por outro lado, como podemos ter a certeza de que ela disse, realmente, o que estamos para aqui a ler? Todos sabemos como os meios de informação deformam constantemente as notícias, até mesmo as entrevistas, quer fazendo omissões, quer jogos de palavras. Eu. eu acho que sobre isso posso falar, embora modestamente. Fui uma vez entrevistado pela publicação semanal da minha zona sobre o futuro da economia. Havia um parágrafo inteiro que transcrevia textualmente as minhas palavras atribuindo uma afirmação como sendo da minha autoria. No entanto, o repórter acrescentou três palavras que eu não tinha dito, e que alteravam completamente o sentido da minha afirmação. Portanto, como podemos ter a certeza de que repetiram exactamente as ideias de Miss Fields?
- Podemos ter a certeza de que não há fumo sem fogo - respondeu Malone, fervorosamente. - Se estivéssemos a falar de um ou dois en trevistadores, seria uma coisa, Leo. Mas mostrei-lhe aqui literalmente uma dúzia. Todos a ouviram dizer o mesmo. Não vai acreditar que tantas histórias diferentes possam ter sido, todas, deformadas ou aumentadas, ou acredita?
- Realmente, tem razão - admitiu Brunner.
-Tantos entrevistadores a repetirem o que Sharon disse, todos da mesma maneira - continuou Malone. - Tem de haver uma afinidade. Mas, mesmo que não acreditasse nessas histórias, que diz das gravações feitas directamente da rádio e da televisão? Eu tenho as cassettes. Podem ouvi- las sempre que quiserem. Néssas, não há repórter entre ela e o público, podem ouvir a sua própria voz falando directamente para todos, e, geralmente, a revelar as mesmas coisas quanto aos seus desejos e sentimentos. Em minha opinião, dirige-se a homens como nós, que se preocupam com ela, afirmando que somos o género que lhe interessa. E uma das qualidades que sempre lhe tenho notado é a mais absoluta franqueza. Ela diz o que pensa.
Fez um sinal apontando para as fotografias em volta da sala. - E ali está ela a dizer-nos, bem. com efeito, a dizer-nos para a irmos buscar. Pelo menos, é isso que eu vejo.
Shively levantou-se e apertou o cinto.
- Sim, é isso que eu também penso. - Apanhou os recortes, dobrou-os um pouco, e pousou-os de novo. Avançou, pôs um braço em volta de Malone, e olhou para ele com admiração.
- Quer saber uma coisa, não me importo de já lhe ter dito uma vez que você devia ser algum tarado que estava a gozar-nos. Agora vejo que tinha aí qualquer coisa, tudo faz sentido. Estou pronto - nem que seja só para ver o que vai sair daqui - a dar o próximo passo.
- O próximo passo - repetiu Malone.
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Shively desprendeu-se de Malone, olhou-o nos olhos.
- Sabe muito bem do que estou a falar. Do seu plano. O plano que você
inventou para levar a coisa até ao fim. O que nos disse até agora foi que começaríamos por raptá-la. Mas isso não chega. Portanto, o melhor é sentar-se e
contar-nos o que se segue.
Shively deixou-se cair de novo na cadeira de couro, e Malone arrastou o
sofá rasgado para o meio do semicírculo, sentando-se nele.
- Está bem - disse ele. - Nós os quatro, qualquer dia, vamos buscá- la e
tirá-la dali para fora.
Brunner abanou vigorosamente a cabeça.
- O Sr. Yost já o disse anteriormente. E eu vou de novo acentuá- lo. Isso é
um rapto, um crime muito grave, não tentem dar-lhe outro nome.
- Talvez, em princípio, se lhe possa chamar rapto, e seria mesmo rapto
se insistíssemos em retê-la contra sua vontade - disse Malone. - Mas, se ela
não se importar, então deixa de ser um rapto.
- E depois? - perguntou Shively.
- Depois, levamo-la para um local confortável e seguro, talvez por um
fim-de-semana. Temos de a conhecer intimamente. Ela tem de nos conhecer.
Depois disso, nós.... bem, suponho que iríamos para a cama com ela.
- E a isso, devo dizê-lo, chama-se violação - disse Brunner, com uma firmeza inesperada.
- Se ela consentir, não é - respondeu Malone. - Não será, se ela
cooperar voluntariamente. Não será violação.
- Mas partamos da hipótese que ela talvez não venha a gostar da situação
e se recusa a cooperar connosco - acrescentou Brunner, ainda pouco convencido.
- Isso não acontece.
- Mas suponhamos que acontece.
- Bem, então seria um falhanço - disse Malone. - Não teríamos outra alternativa senão soltá-la.
Brunner pareceu satisfeito.
Shively levantou-se de novo.
- Só mais uma coisa, miúdo, antes de me despedir - disse ele a
Malone. - Tenho de chegar amanhã cedo ao trabalho, portanto o melhor é ir
dormir um pouco. Mas, antes de sair, só mais uma coisa. Você tem estado a
falar em generalidades, nada de positivo, percebe? Se vamos levar isto por
diante, é melhor sabermos exactamente o que estamos a fazer.
- Quer dizer, pormenores do plano? - disse Malone. - Eu tenho-os.
Páginas e páginas de apontamentos sobre o modo de proceder. Poderei explicá-los assim que tiverem tempo disponível.
- Óptimo - disse Shively. - É aí que quero chegar. Como o faremos,
se.... se viermos a fazê-lo? - Dirigiu-se para o centro da sala. - Vocês
querem reunir-se para outra sessão? Quero dizer, quando é que vamos tratar
do assunto mais importante?
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- Diga a hora e o local e eu irei lá ter - disse Yost.
- E você, Leo? - perguntou Shively.
Brunner hesitou, depois encolheu os ombros.
- Porque não?
Dirigindo-se para a porta, discutiram o local e a hora. Devido ao fim-de- semana, ficou resolvido que a melhor altura seria a segunda-feira seguinte, à noite, cinco dias depois. Também ficou decidido encontrarem-se no escritório de Leo Brunner na Western Avenue, porque a mulher dele sabia que ele trabalhava muitas vezes até tarde, e, além disso, porque, no escritório, à noite, estariam completamente sós.
Ao despedir-se, Malone prometeu-lhes que não ficariam desapontados.
- Assim que virem o meu plano, ficarão sabendo que estamos a trabalhar a sério.
Foi só bastante tarde, na segunda-feira seguinte, à noite, após se ter demorado no trabalho, que Adam Malone chegou à porta de vidro do terceiro andar de um escuro edifício de escritórios na Western Avenue, na qual se lia em letras pretas
LEO BRUNNER - GUARDA-LIVROS OFICIAL.
Segurando por baixo do braço uma pasta a imitar cabedal, Malone abriu a porta e entrou. A saleta exterior, que, pelos vistos, servia de recepção e de secreariado, encontrava-se vazia e escura, excepto num feixe de luz que brilhava através da porta que ligava ao escritório.
Malone conseguiu discernir o vulto corpulento de Yost e a figura esguia de Shively numa poltrona. Subitamente, a luz ficou parcialmente encoberta quando Brunner apareceu no espaço que separava as duas salas.
- Quem é? - perguntou Brunner em voz alta. - É você, Adam?
- Quem é que havia de ser?
Brunner chegou, apressado, à sala escura.
- Estávamos a ficar preocupados a pensar que não aparecia. Já cá estamos todos há quarenta e cinco minutos.
- Desculpem. O meu patrão reteve-me com um trabalho de última hora. Depois, tive de ir a casa buscar os meus papéis.
Brunner apertou a mão a Malone.
-Bem, já cá está. Entre. Acho melhor fechar a porta de entrada por dentro. Não queremos ter visitas inesperadas.
- Claro que não. Esta reunião tem de ser absolutamente secreta - disse Malone. Esperou enquanto o via rodar a fechadura de segurança, e entrou no escritório interior com Brunner, cumprimentando e pedindo desculpa aos outros.
Dirigiu-se para a cadeira destinada aos clientes, em frente da secretária do guarda-livros, mas Brunner fez-lhe sinal que se sentasse atrás da secretária.
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- Você é que tem todos os documentos, portanto use a secretária, Adam.
Deixe-me só arranjar-lhe espaço.
Empurrou, apressadamente, a máquina de calcular e os livros para um lado, virou a cadeira giratória para Malone e foi ele próprio sentar-se na cadeira em frente.
- Há cerveja fresca - disse Brunner.
Malone abanou a cabeça.
-Não, obrigado. Quero concentrar-me no que aqui tenho.
Começou a esvaziar a pasta que continha vários apontamentos dactilografados e vários envelopes. O que tinha reunido ocupara-lhe o tempo livre
dos últimos cinco dias. Normalmente, o tempo precioso de que dispunha
antes e depois do trabalho no supermercado era dedicado ao desenvolvimento
de uma série de contos reduzidos que escrevera, e à composição de uma novela que tinha em mente. Mas, nos últimos cinco dias, na sua máquina de
escrever só tinham passado folhas de papel, nas quais descreveu todos os
passos da missão Sharon Fields. Ele tinha-a imaginado, escrito e tornado a
escrever, tão cuidadosamente como se se tratasse de um trabalho criativo de
arte. Na realidade, tinha ele dito a si próprio, aquilo era mesmo uma obra de
arte, uma obra superior, com todos os ingredientes de um conto feito com
esmero. Desde o momento em que nela se acreditasse plenamente, restava
o rapto, a acção, o conflito, o romance, o sexo e, até, um fim feliz. Malone não
se lembrava de alguma vez ter escrito com tanto gosto como agora ao elaborar
a preparação do rapto de Sharon Fields.
Agora, com os seus apontamentos e exposições espalhados em leque sobre
a secretária de Brunner, encarou os companheiros.
- Para começar, o plano da propriedade dela em Bel Air. Está localizada
por detrás de um portão logo a seguir a um pequeno beco chamado Levicc
Way. Para se chegar lá, vira-se do Sunset Boulevard para norte em direcção à
Stone Canyon Road, e, em seis ou sete minutos, chega-se ao Levico Way que
é à esquerda. Já estudei a zona, e, para ver completamente a casa de Sharon,
segue-se pela Stone Canyon Road, subindo sempre pela mesma estrada até às
colinas de Bel Air. Por fim, passa-se por Lindamere Drive, chegando-se ao
ponto mais elevado de Stone Canyon. Olhando para bàixo, vê-se toda a
propriedade de Sharon e a sua casa mesmo em baixo.
- Já lá esteve? - perguntou Brunner, surpreendido.
- Várias vezes - confirmou Malone. - Tenho aqui um daqueles mapas
turísticos que indicam as residências das estrelas de cinema. Estão à venda ao
longo do Sunset Boulevard. Bem, com um lápis vermelho tracei o caminho
até à propriedade de Sharon e o caminho para a elevação de onde se pode
observar a propriedade. Como poderão ver marcado no mapa, a área de Bel
Air, que fica perto e em volta da propriedade de Sharon, está rodeada de casas
de estrelas de cinema. Se observarem cuidadosamente, a caminho da vivenda
de Sharon Fields encontram-se as casas que pertencem ou que pertenceram a
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Greer Garson, Ray Milland, Louis B. Mayer, Jeanette MacDonald, Mario Lanza, Alan Ladd e Frank Sinatra.
- Muito imaginativo - disse Yost.
- Sim. E para vos dar uma ideia do que iremos encontrar, temos aqui um plano fotográfico da casa de Sharon Fields, quer do exterior, quer do interior, bem como dos terrenos que rodeiam a residência palaciana. É grande que se farta. Ouvi dizer que valia cerca de quatrocentos e cinquenta mil dólares.
Shively assobiou.
-Ninguém vive assim.
- Vivem muitas pessoas - disse Malone -, e Sharon é uma delas. É uma casa de dois pisos, com vinte e dois quartos, no chamado estilo renas cença colonial espanhola. Verão com os vossos próprios olhos o tecto de telhas vermelhas, janelas gradeadas, pátios, varandas abertas, cornijas de madeira trabalhada por cima das lareiras, uma sala de bilhar, uma sala de projecção privativa. E, nas traseiras, uma cascata artificial e um pavilhão com colunas de madeira onde se encontra apoiada uma cobertura de barro que, segundo penso, o decorador comprou ou copiou da fazenda do velho John Barrymore. Está aqui, vejam.
Malone rodou a cadeira giratória até ao sofá, entregando a fotografia a Yost e o mapa a Shively. Retrocedeu para a secretária, procurando a folha com o procedimento a seguir.
- Há uma coisa que quero que vejam com atenção - disse Malone -, porque é da maior importância para nós. Notem que há uma estrada ou um cámninho estreito de asfalto que começa na vivenda, passa por uma pequena área de álamos, ciprestes e palmeiras, fazendo uma curva em direcção ao portão de entrada, de ferro forjado. Vêem?
Tanto Yost como Shively abanaram afirmativamente a cabeça, e chamaram Brunner para se chegar a eles. Este encaixou-se, rapidamente, no sofá, ao lado deles, e esticou o pescoço para observar a fotografia.
- Está certo - disse Shively -, e que tem isso?
- É lá que Sharon Fields faz o seu exercício diário - explicou Malone. Conheço quase todos os seus hábitos, e o que ela segue mais à risca, desde que se mudou para aquela casa, é o seu passeio matinal. Todas as informações confirmam este facto. Levanta-se de manhã cedo, toma o seu duche, veste-se, e, antes do pequeno-almoço, dá um passeio a pé desde a casa até ao portão e volta para trás, um passeio diário para apanhar ar, para fazer exercício, ou lá para o que é. Bem, sempre fui de opinião que este é o melhor local para qualquer estranho a conhecer.
- Quer dizer raptá-la durante o seu passeio - disse Shively.
- A meio caminho, na altura em que ela chegar ao portão antes de voltar para trás. É aí que podemos. bem. apanhá-la, com a melhor hipótese de não sermos vistos. Isso acontece geralmente entre as sete e as oito da manhã. Devemos estar preparados para nos aproximarmos dela e a levar.
Yost encostou-se para trás.
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-Talvez ela resista. Já pensou nisso?
- Sim, pelo menos ao princípio, talvez resista com medo, não compreendendo o nosso motivo - concordou Malone. - Mas já previ isso.
Receio que seja necessário torná-la inconsciente por algum tempo.
A cara de Brunner contorceu- se.
- Quer dizer, darmos-lhe éter?
- Éter ou clorofórmio. Só um pouco. O passo seguinte seria levá-la para
um esconderijo seguro, um local qualquer isolado. como, por exemplo, uma cabana que não seja utilizada ou que esteja abandonada.... afastada de
qualquer zona residencial e longe de qualquer tráfego.
- Não é assim tão fácil de encontrar - disse Shively. - Acha que podemos arranjar um lugar desses?
- Temos de arranjar - insistiu Malone. - Porque....
- Não se preocupem com isso - interrompeu Yost. - Não vamos perder
tempo com isso. Tenho uma ideia brilhante para resolvermos esse assunto.
Podemos tratar disso mais tarde. Continue, Adam. Qual é o passo seguinte?
Malone não respondeu logo. Reclinou-se na cadeira giratória, tentando
visualizar a realização. Imaginara-a tantas vezes sozinho que não lhe era difícil rever de novo a cena.
- Bem - disse ele, em voz baixa, como se estivesse a falar sozinho -, o
enredo segue o seu curso natural. Lá estamos nós com Sharon, e ela connosco, sem mais ninguém à nossa volta. Estaremos juntos, à vontade. Começamos a conhecê-la, e ela a nós. Passamos dois, três, quatro dias a conversar,
a falar de nós próprios, uns dos outros, da vida em geral, de amor em particular, até ela se sentir à vontade connosco, se sentir confortável. Logo que
deixe de se sentir desorientada ou ameaçada, assim que souber que somos
tipos honestos e decentes que gostam dela, pessoas honestas que a tratam
como ele sempre desejou ser tratada por um homem ou pelos homens, então
o gelo quebrar-se-á.
- Fale de modo que se perceba - disse Shively. - Que quer dizer com isso?
- Quero dizer que estaremos preparados para lhe dizer o que queremos,
apesar de ter a certeza de que ela o compreenderá muito antes. Nós dizemos-Lhe tudo, o resto será com ela. Ela poderá preferir ir para a cama com
um ou com dois de nós, ou com todos, o que ela preferir. Não vejo problema
nisso depois de estar tudo esclarecido.
- Um momento, pá - interrompeu Shively, antes que Malone pudesse
prosseguir. - Você talvez não veja nenhum problema nisso. Mas eu vejo
um, muito claro. Quer saber qual é?
- Claro, com certeza....
- Não vou esforçar-me assim tanto para a agarrar - disse Shively - e
arriscar-me a não receber nada em troca. Percebe o que estou a dizer? Não
vou passar por isto tudo e depois sujeitar-me a que ela diga de repente que não
se importaria de se despir para você e para o Yost, e não para mim, talvez
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nem para mim nem para o Brunner. Percebe? Isto recorda-me uma frase que, sobre nós, você disse uma vez - será que se lembra - é tudo ou nada.
- Refere-se ao que Dumas escreveu em Os Três Mosqueteiros?
- Um por todos e todos por um!
- É isso mesmo - exclamou Shively. - Uma vez que vamos entrar neste jogo juntos, esse é o meu lema e mais nenhum.
- Sr. Shively - disse Brunner -, está, por acaso, a sugerir que, se Miss Fields não o quisesse a si ou a mim, estaria disposto, fosse lá como fosse, a ter relações sexuais com ela?
-Isso garanto-lhe eu.
Brunner ficou bastante perturbado.
- Não poderia, nunca, perdoar uma coisa dessas, Sr. Shively - disse. - Lamento repetir a mesma palavra, mas sinto-me na obrigação de o fazer. Você está a falar de violação, de violação criminosa, Sr. Shively.
- Chame-lhe o que quiser - respondeu Shively, bruscamente. - Está bem, violação. E depois? Mas o que eu digo é que não alinho sem uma certeza de que, de uma maneira ou de outra, vou gozar um pouco.
Brunner continuava em desacordo.
- Bem, Sr. Shively, se você está a considerar a violação, então acho que devo preveni-lo do que daí poderá advir. - Levantou-se da cadeira. - Além de achar o acto de violação censurável e moralmente errado, também acontece que sei que, em face da lei, é um dos crimes mais graves que existem, quase tão grave como o de homicídio. Deu a volta à mesinha e aproximou-se da sua secretária. - Previ que isto iria acontecer de novo, e decidi estar preparado. Estudei, Sr. Shively. Durante o fim-de-semana, e com os conhecimentos que ainda possuo sobre a lei, fiz um estudo sobre o assunto. Quer ouvir os factos?
- Não estou lá muito interessado - respondeu Shively.
Enquanto Malone afastava a cadeira, Brunner abria a gaveta do meio, da sua secretária.
-Em todo o caso, já que estamos a falar de unidade neste empreendimento, acho que, não só você mas todos nós, devemos estar devidamente ao corrente dos factos. - Tirou um monte de papéis azuis, de
tamanho oficial. - Tenho aqui alguns extractos do Código Penal do Estado da Califórnia.
- Está a perder tempo, Leo - disse Shively. - Não estou interessado.
- Deixe-o ler, Shivil - disse Yost, fazendo um gesto conciliador para Shively. - Não faz mal estarmos ao corrente de tudo. Vá, Leo, leia lá o livro de regras cá do sítio.
- Para poupar tempo - disse Brunner -, vou apenas ler as partes mais importantes que descobri no Código Penal do Estado da Califórnia. - Aliviou a garganta e começou a ler em tom monocórdico. - Secção Duzentos e Sessenta e Um. Definição de violação. A violação é um acto de relações sexuais, tidas com uma mulher que não seja a mulher legal do criminoso, sob
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as seguintes condições: Quando a mulher tem menos de dezoito anos de idade, quando ela é incapaz de dar o seu consentimento legal, devido a demência
ou qualquer outra doença mental, quando ela resiste, mas a sua resistência
for dominada pela força ou pela violência, quando ela não puder resistir por
estar sob ameaça que ponha em causa a sua integridade física, quer devido a
qualquer poder de execução aparente, quer devido a narcóticos, ou anestésicos, substâncias administradas por ou com o conhecimento do réu,
quando ela não tiver consciência da natureza do acto, e este for do
conhecimento do réu, quando ela se submeter por acreditar que a pessoa com
quem está a praticar o acto é o marido, e este estado lhe for induzido por
qualquer artifício, simulação, ou encobrimento feito pelo réu, com a intenção
de lhe induzir essa ideia.
Shively achou muita graça à última alínea.
- Aí está a solução, pá. Fingimos todos que somos o último marido de
Sharon e nunca lhe dizemos a verdade.
Brunner não achou graça. Olhou para Shively, com ar carrancudo, e retomou a leitura do seu resumo.
- Secção Duzentos e Sessenta e Três, sobre violação. Casos essenciais.
Penetração. A maior culpabilidade na violação consiste em ultrajar a pessoa e
os sentimentos da mulher. Qualquer penetração sexual, por mínima que seja,
é o suficiente para consumar o crime.
Shively recusava-se a levar a coisa a sério.
- Penetração! - exclamou ele. - Com Sharon Fields, garanto-lhe que não será ligeira.
Ignorando-o, Brunner continuou.
- A Secção Duzentos e Sessenta e Quatro define as penalidades aplicáveis
ao crime. Vou apenas ler o que se aplica aos casos que mencionei. O mínimo
por uma violação simples é detenção na prisão do Estado por um período
mínimo de três anos . Se houver atentados contra a integridade física da vítima, que sejam testemunhados em tribunal, o réu ficará recluso na prisão
do Estado por um período mínimo de quinze anos até prisão perpétua .
- Não haverá atentado contra a integridade física - disse Yost -, portanto nada disso nos afecta. Quanto a....
Brunner levantou a mão.
- Um momento, Howard, estava a ler isto por engano. Aqui está a parte
que se aplica exactamente ao nosso caso. A parte em que mais do que uma
pessoa participa no acto. É a Secção Duzentos e Sessenta e Quatro, ponto
Um, do Código Penal - Qualquer que seja o caso em que o réu, actuando
voluntariamente de acordo com outra pessoa, usando a força e a violência e
contra o desejo da vítima, cometer acto de violação, pessoalmente ou
auxiliando e instigando qualquer outra parte, tal acto será punido caso haja
acusação ou informação que seja comprovada.... e o réu ficará recluso na prisão do Estado por um período mínimo de cinco anos até prisão perpétua.
Brunner levantou a cabeça e ajustou os óculos.
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- É disso que estamos a falar. De cinco anos até prisão perpétua. Talvez isso os arrefeça um pouco.
Malone inclinou-se para a frente na sua cadeira giratória e puxou pela manga de Brunner.
- Leo, o que nos esteve a ler é inútil, porque aquilo que nós estamos a falar nunca chegará a esse ponto, não será uma violação feita em grupo. Quero dizer que, apesar do curto discurso que Kyle fez há pouco, isso não é de maneira nenhuma, o que nós vamos fazer. Mas suponhamos, vamos só imaginar, vamos supor que Sharon nos traía depois, e fosse às autoridades apresentar queixa de que havia sido violada. Sabe que mais Ninguém a acreditava, e eu posso prová-lo. Você não fui o único que procurou estudar o assunto.
Deslizou na cadeira até à secretária e começou a vasculhar entre os seus papéis.
- Saia da frente, Leo, o Leão - disse Shively. - Está a tapar a vista. Irritado, Brunner passou de propósito em frente do sofá e foi sentar-se na cadeira, do outro lado da secretária.
Malone tinha encontrado o que queria.
- Vou resumir as informações que colhi. Para começar, e de acordo com os peritos, setenta por cento de todas as violações nunca são apresentadas à polícia. As vítimas têm, geralmente, vergonha, não querem que se saiba, fogem à publicidade, e não querem sentir-se incomodadas em tribunal. A última lista de números do FBI indicava trinta e oito mil casos de violação apresentados nos Estados Unidos - cerca de trinta e seis mulheres violadas em cada cem -mil. Mas o FBI fez para esse ano uma estimativa cinco vezes superior. Como vêem, na maioria, as mulheres escondem o caso. Se uma pessoa como a Sharon Fields fosse, de facto, violada, na melhor das probabilidades ela não apresentaria queixa.
- Penso que ela seria uma das poucas vítimas a fazê-lo - disse Brunner.
- Está bem - concordou Malone, amavelmente - vamos por si. Suponhamos que Sharon é violada e que apresenta queixa. Quais são as possibilidades que os seus violadores têm de ser acusados e condenados? Pequenas, mínimas. Tenho aqui, oiçam. Por exemplo, no distrito de Los Angeles, num dos últimos anos, houve três mil quatrocentas e noventa violações apresentadas. Em relação a essas, só mil trezentos e oitenta suspeitos foram detidos. E daqueles que foram detidos, apenas trezentos e vinte foram considerados culpados e presos. Portanto, como vê.
- Alto aí, isso tem interesse - interrompeu Yost. - Não sabia dessa. Porque é que é tão difícil ser-se condenado num caso de violação?
- Por várias razões - respondeu Malone. - O factor principal é psicológico. Os Júris têm todos uma noção ultrapassada sobre sexo, segundo a qual, uma mulher não pode ser violada contra a sua vontade. Parte-se do princípio que, se uma mulher foi penetrada, foi porque o quis, e
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até gostou, porque essa é a natureza biológica das coisas. Temos como
exemplo um promotor público do Gabinete do Advogado do distrito, que
disse uma vez - A menos que rachem a cabeça à vítima ou que ela tenha
noventa e cinco anos de idade ou em qualquer outro caso extremo, os
membros do Júri não podem, de maneira nenhuma, acreditar que uma
mulher foi violada. Pode-se suspeitar que foi culpa dela, que ela excitou o
homem, ou que consentiu - o consentimento é o factor mais difícil de
contestar. É apenas a palavra dele contra a dela. Desde que o réu diga que
não forçou, que diga que ela concordou em ter relações sexuais, será difícil
contestar o facto. Outra coisa. O testemunho físico. Quando uma mulher é
violada, a Polícia leva-a imediatamente ao Hospital Central onde a submetem
a um exame pélvico, fazem uma colheita de espermatozóides, e dão- lhe um
duche antisséptico, mas precisam de obter espermatozóides recentes como
testemunho. No entanto, isso só se consegue se a vítima for encontrada logo a
seguir ou se for imediatamente apresentar queixa. No entanto, só duas em
cada cem mulheres vão imediatamente à Polícia. As restantes vão geralmente
para casa ou a outro sítio qualquer para se refazerem do choque, para se
acalmarem, e a primeira coisa que querem fazer é lavarem-se. Desse modo,
limpam também todas as provas. Portanto, Leo, como pode ver, se Sharon
alguma vez sonhasse em apresentar uma queixa contra nós, alegando violação, teria muito poucas possibilidades de ganhar a questão.
- Não concordo - disse Brunner. - Ela não é uma vítima vulgar. Ela é a
actriz mais famosa do Mundo. Eles dar-lhe-iam importância. E, tanto a Polícia como o Júri, acreditariam nela.
- Não pode estar mais enganado - disse Malone, com ênfase. - O facto
de ela ser quem é só a prejudicaria num caso destes. Já investiguei o processo
utilizado pela Polícia. Uma das primeiras coisas que a Polícia faz é pesquisar - uma expressão da Polícia que significa verificar a conduta anterior
da vítima, o seu passado sexual e a história da sua vida. Bem, e nós
conhecemos a história de Sharon. Existiram vários homens. Inúmeros escândalos sexuais que serviram de publicidade. Não acredito que a acusação a
possa apresentar em tribunal com um ar ingénuo e de virgem. Por amor de
Deus, ela é o maior símbolo do sexo do mundo. Não, Leo, não temos hipótese de vir a sofrer por isso.
- Bem, talvez - disse Brunner, ainda duvidoso.
- De qualquer modo, isso não tem importância. Como já disse antes,
nunca chegaria a isso. Não vamos tomá-la à força. Não somos como os tipos
completamente doidos, ignorantes e doentes que fazem essas coisas. Somos
homens normais. Somos seres humanos civilizados. Além disso, e como
sempre disse, a violação nem sequer faz parte dos nossos planos, porque não
será necessária. Claro, a Sharon talvez fique um pouco irritada a princípio,
ressentida com o facto de ter sido levada contra vontade e de termos interferido nos seus projectos, mas assim que nos conhecer, bem, penso que
acalmará. Ela é, apesar de tudo, louca e aventureira, o género de rapariga que
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apreciará o que fizermos e até respeitará a nossa audácia. Temos todas as possibilidades de ela ficar receptiva. Portanto, penso que pode deixar de se preocupar, Leo. Não há nenhum crime em vista no nosso plano.
Mas existe um crime - disse Brunner. Virou-se para Yost e para Shively. - Lamento ser tão insistente. Mas acho que não ganhamos nada em ser tão impulsivos, em nos lançarmos nisto sem tomar em consideração os factos e os riscos de tal empreendimento. Porque mesmo que ignoremos a violação, repito-o, há outro crime a considerar. Há o crime de rapto.
-Diabo, Leo, se depois de nos conhecermos ela cooperar, não nos vai lixar por causa do rapto - disse Yost. E levantou-se. - Vou buscar outra cerveja.
- Mas pode fazê-lo, é possível - insistiu Brunner, logo a seguir. Sabem qual é a lei sobre raptos neste Estado? - Tirou um monte de papéis do seu colo e folheou-os rapidamente. - Devem estar ao corrente de tudo.
- Por amor de Deus, Leo, não nos dê mais cabo dos ouvidos com essa maçada das leis - grunhiu Shively com desdém.
Mas Brunner não se calou.
- Secção Duzentos e Sete do Código Penal da Califórnia. Um raptor é
todo aquele que, por meio da força, roube, leve, ou prenda qualquer pessoa neste Estado, e a leve para qualquer outro País, Estado, ou distrito, ou para
qualquer outro lado no mesmo distrito. Penso que isto é suficientemente claro. Tão simples como a Secção Duzentos e Oito que transcreve a lei em aditamento sobre a penalização para tais factos. Se levarem alguém à força, o crime é punido pela retenção na prisão do Estado por um período não inferior a dez anos nem superior a vinte e cinco . - Assentou os papéis em cima da secretária. - Vocês estão todos dispostos a arriscar vinte e cinco anos da vossa vida para passar um fim-de-semana com esta mulher? Porque esta é a penalidade para o rapto, e vocês não estão a falar de outra coisa.
Malone levantou-se da cadeira giratória.
- Leo, você não está a ver bem o problema. Claro que o acto seria um rapto se levássemos Sharon à força, contra a sua própria vontade e se ela apresentasse queixa. Mas não percebeu ainda o que eu disse, não lhe dei provas suficientes de que, assim que a tivéssemos na mão e lhe falássemos, e não a magoássemos, ela não teria razões para nos acusar de tal crime? Ela nunca faria isso. Não teria razões para o fazer.
Brunner mexeu-se incomodado.
-Gostaria de estar tão seguro como você.
-Está bem. Irei ainda mais longe. Suponhamos, suceda o que suceder que, assim que a libertarmos, ela ainda está suficientemente zangada para nos castigar. Suponhamos que ela vai à Polícia. Quem é que ela acusaria? Como vê, previ isso no meu plano. Quando a formos buscar, usaremos máscaras. Usaremos máscaras sempre que estivermos com ela. Nunca mencionaremos os nomes uns dos outros. Ela não terá nenhuma possibilidade de vir a saber
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quem somos ou de nos ver o rosto. Não, Leo, ela não terá nenhum ponto de
referência, se alguma coisa de mal vier a acontecer.
- Parece que pensou em tudo - disse Brunner.
- Claro que pensei. É necessário prever qualquer percalço. Não, nada
pode correr mal. Tudo será muito bem planeado. - Virou-se um pouco para
os outros, e sorriu. - Vamo-nos divertir com ela, depois soltamo- la ao fim de
uma semana ou ao fim do tempo que quisermos, e ela esquecerá tudo, só
pensará nisso como uma aventura estranha, e voltará à sua vida. Nós
separamo-nos e vamos à nossa vida. - Fez uma pausa. - Mas teremos uma
coisa especial que muito poucas, muito poucas pessoas vulgares tiveram.
Teremos atrás de nós uma experiência inesquecível. Sim, uma experiência
com que milhões de homens têm sonhado toda a sua vida sem nunca
chegarem a realizá-la. Estaremos entre o número dos privilegiados. Disso é
que não nos devemos esquecer. A recompensa.
Shively deu uma palmada com força no joelho, e todos se voltaram para ele.
- Merda, chega de paleio! - exclamou ele. - Vamo-nos concentrar no
fim, e não nos preocupar com os meios. Eles aparecem de qualquer maneira.
- Fez uma pausa. - Vou-lhes dizer o que penso. Gosto do plano. Sou todo a
favor, não sei o que vocês pensam, mas, eu, eu alinho aqui com o Adam.
Ele fez os preparativos como um verdadeiro general e tudo o que ele diz faz sentido. Penso que se pode fazer e a recompensa merece o risco.
Yost abanou a cabeça.
- Tenho a impressão de que concordo consigo.
- Portanto está certo, o que temos nós a recear? - disse Shively expansivamente. - Basta planearmos tudo até ao ínfimo pormenor. Se
desenvolvermos o plano de Adam, não correremos riscos, podem crer. Eu era
assistente do nosso chefe do pelotão de infantaria no Vietname. As únicas
coisas que interessam para levar a cabo uma missão são a organização, o
planeamento e a coragem. Todos os assaltos e ataques repentinos que o nosso
grupo efectuou foram planeados com antecedência e extremamente bem
sucedidos e, como vêem, cá estou. O que estamos a discutir é dez vezes mais fácil de fazer, há-de resultar da mesma maneira.
Brunner continuava pouco convencido. Teimosamente, continuou a resistir.
- Meus senhores, o estarmos aqui sentados a falar e a beber, a especular
abandonando-nos à nossa fantasia, é uma coisa, a realidade nua e crua é
outra. Falar não custa nada, especialmente quando se especula desinibidamente. Mas, assim que transformarem este género de sonho numa
aventura real, assim que tentarem pô-la em prática, surgirão centenas de
obstáculos e perigos imprevistos, talvez mais. Eu.... eu detesto fazer o papel de advogado do Diabo, mas....
Shively virou-se para Brunner, furioso, perdendo a paciência.
- Então, Diabo, páre lá de torpedear o nosso projecto. Se não quer
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participar, e se quer desistir, é agora a altura indicada. - Fixou o olhar no contabilista. - Por que raio nos convidou a vir aqui ao seu escritório se não acredita no que estamos a fazer?
Pela primeira vez, Brunner sentiu-se perplexo. Atrapalhado, tentou encontrar uma resposta.
- Eu. eu não sei. Realmente, não sei. Talvez. bem, talvez pensasse que seria divertido conversar.
- É mais do que isso - disse Shively, furioso -, e eu vou dizer-lhe porquê, por que diabo está você aqui, porque estamos aqui nós, Yost, Malone e eu próprio. Porque, tal como acontece à maioria das pessoas, sempre fomos lixados pela sociedade durante toda a vida. Encontramo-nos cercados para o resto da vida, porque nascemos num sistema de classes sociais.
- Esse é o ponto de vista radical - protestou Brunner -, e não me parece que.
- Só estou a dizer que sou positivo - afirmou Shively, com um tom de voz que abafava o de Brunner. - E também não sou nenhum radical. Não estou interessado em política, só estou interessado em mim próprio, e não gosto da maneira como o sistema me rebaixa. Os verdadeiros criminosos neste país são os tipos poderosos e ricos, que nos exploram. Eles usam-nos, não nos dão nada, para poderem guardar tudo para si próprios. Porque eles já têm tudo e continuam a ter cada vez mais. Têm as melhores casas, as melhores férias, os melhores carros, as melhores mulheres. E cagam-se para nós cá em baixo, como se merecêssemos ir pelo cano a baixo. Mantêm um círculo fechado onde não podemos entrar. E digo- lhe francamente, Brunner, pela primeira vez na vida estou farto. Também quero o meu bocado. Se não posso ter dinheiro, então quero o meu bocado. Se não posso ter dinheiro, então que seja um cu de primeira, o melhor que houver, do género que eles sempre têm quando lhes apetece.
Shively levantou-se, agitado, a cara magra contorcida, as veias da testa salientes. Encarou Brunner, de pé à sua frente, fez um gesto com as mãos circundando o escritório.
-Olhe esta sala, Brunner, olhe bem. Quatro estranhos que se encontraram por acaso. Nenhum escolhido em especial. Apenas quatro tipos vulgares de Lineu, certo?
Apontou para Yost que estava no sofá.
- Ali está Howard Yost. Estudou na Universidade, educado, uma estrela de futebol. O que resta agora dele? Amarrado dia e noite a trabalhar que nem um cão para sustentar a mulher e dois filhos. E tem de lutar para ganhar todos os tostões de que precisa, pode crer que sim. Se se quiser divertir um pouco, variar um bocado a vida, tem de pedir por tudo para ter sorte, para que lhe calhe uma possível cliente esfomeada de amor. Ou tem de sair da cidade para arranjar mais trabalho, e, no seu tempo livre, quando não tiver que fazer, tem de pagar, pagar para arranjar uma miúda mais que estafada.
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O dedo de Shively dirigiu-se na direcção de Malone, que o escutava, fascinado, atrás da secretária.
- Olhem para Malone, Adam Malone. Um rapaz esperto, de muita
imaginação. Um escritor que devia ter tempo para escrever, mas que, em vez
disso, tem de passar metade do seu tempo a empilhar latas de sardinha numa
porcaria dum supermercado qualquer para poder ganhar umas massas. E,
para descansar, que faz ele? Aposto que tem de se contentar com uma
gorducha desengraçada e de pernas tortas que, uma vez por outra, encontra
no supermercado. O mais perto que chega ao que um rico tem, a sua Sharon Fields, é vir-se em sonhos sozinho na cama.
Shively bateu no peito.
- Olhem para mim, Kyle Shively do Texas. Não tive instrução, mas sou
esperto. Aprendi muito à minha custa. Tenho o que se chama bom senso e
conhecimento da natureza humana. E também tenho habilidade. Com este
par de mãos que aqui tenho, posso fazer tudo. Se me tivesse surgido uma
oportunidade, talvez tivesse conseguido ser um fabricante de automóveis
milionário, tal como o Ferrari ou outros estrangeiros. E já que estamos a falar
de habilidades, não as tenho só nas mãos, mas também entre as pernas. Mas
que ganho eu com isso? Se me quiser divertir um pouco com umas garotas,
quem é que eu arranjo? Umas adolescentes parvas ou umas caixeiras ali da
área. As miúdas da alta-sociedade que vejo todos os dias, olham-me com
desprezo, como se eu fosse um zero, um macaco oleoso, um criado ignorante. Não perderiam tempo comigo, sou um nada. E, agora, vamos a si, Brunner....
Fez uma pausa, com as mãos nas ancas, contemplando Brunner, que se recusava a olhá-lo de frente.
- E você, Sr. Léo Brunner, nesta luxuosa sala de entrada na porcaria da
Western Avenue? Não me diga que é feliz, ou que está satisfeito sequer com
a sua vida. Não me diga que tem tudo o que quer da vida, tudo o que há de
bom, pelo simples facto de ter a sua velhota, por estar casado com a mesma
mulher há trinta anos. Nesses trinta anos só por acaso experimentou duas
coisas diferentes, e porque elas tiveram pena de si.
Brunner pestanejou, a cabeça a enterrar-se nos ombros como se fosse uma tartaruga, mas não disse nada.
- Olhe, a mim não me engana - continuou Shively. - Não me diga que
o seu membro não lhe tem dado comichão durante os anos de seca e que não
deseja enfiar no material que os ricos têm só para si, no material que você
em fotografias ou nos jornais. Bem, pá, vou-lhe dizer a coisa mais honestta
que ouviu até hoje. Quanto tempo lhe resta de vida? O seu pobre pénis está
a murchar cada vez mais. Nunca sentiu o prazer de ter a boa vida que têm os
chamados superiores. Daqui a dez anos, já não poderá levantá- lo, estará liquidado. Daqui a vinte anos, já não o levantará, porque será pó, porque estará
morto, e, um dia antes de morrer, constatará que nem uma vez experimentou o prazer que sabia que os outros tinham. Que diz a isto, Brunner?
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Respirando ruidosamente, Shively ficou à espera. A sala estava silenciosa como um túmulo. Brunner estava sentado, abatido, com a cabeça caída, de olhar distraído.
Passado um bocado que mais pareceu interminável, Brunner suspirou profundamente.
- Eu. que posso eu dizer? Suponho que, em certos aspectos, você. você tem razão. Eu. eu tenho de ser honesto para comigo mesmo. Suponho que nunca tive, realmente, grandes oportunidades para. para viver.
- Pode ter a certeza que não, velhote. Mas apenas lhe digo que, agora, sim, tem uma oportunidade, talvez até seja a última, e aconselho-o a agarrá-la. Não pense em nada. Venha divertir-se. Feche os olhos, atire-se de cabeça. e talvez consiga justificar a sua existência, talvez valha a pena viver o resto da sua vida. Está bem?
Brunner concordou, - quase despercebidamente.
Do sofá, Yost manifestou-se.
- Concordo consigo, Shiv. Você expôs bem, mas, se não se importa, eu prefiro alterar um pouco. Não vamos fechar os olhos e mergulhar de cabeça. Eu diria, vamos abrir bem os olhos antes de mergulhar. Abri-los o mais
possível para podermos ver para onde e como vamos.
- É-me indiferente - disse Shively, encolhendo os ombros, enquanto pegava numa cerveja, tirava a tampa, e voltava para o sofá. -Só me interessa começarmos já.
Yost, dirigindo-se agora a Malone, disse: -Sou um jogador, Adam. também sou um estatístico. Gosto de arriscar quando tenho boas hipóteses, portanto, vamos fazer com que elas sejam boas neste pequeno in vestimento. Vamos pegar no plano geral, examinar todos os pontos, passá-los a pente fino, descobrir todos os buracos e tapá-los, e torná-lo totalmente seguro.
- Plenamente de acordo - respondeu Malone. - Estou pronto para uma visão completa. Por onde quer começar?
- Pelo princípio - disse Yost. - Precisamos de respostas directas e de testemunhas oculares para as perguntas que vou fazer.
- Só um segundo - propôs Malone, aproximando-se da secretária,
pegando num lápis e abrindo o seu bloco. - Deixe-me anotar tudo. Yost esperou e então continuou:
-Já está? Antes de mais os hábitos e a rotina de Sharon Fields. Não me
contento com as notícias dadas pelos jornais e pelas revistas, quero relatórios de testemunhas oculares. Qual é a sua rotina diária? Ela passeia, realmente todas as manhãs? E a que horas, exactamente, passeia sozinha? Quem está dentro de casa e cá fora, no jardim, durante os seus passeios? Percebe?
Malone levantou os olhos.
-Quer dizer que teremos de vigiá-la pessoalmente?
- Pessoalmente. Não só uma ou duas vezes, mas várias, para termos a certeza. Você diz que há um ponto alto de onde se pode observar o jardim?
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- Sim. Do alto da Stone Canyon Road.
-Está bem. Excelente. Segunda questão, o dia. Quando poderemos
actuar? De hoje a uma semana? Daqui a seis semanas? Temos de saber os seus planos, sem erro.
- Posso arranjar um plano das suas actividades - prometeu Malone.
Yost continuou:
-Quanto tempo estaremos ausentes para nos dedicarmos a Sharon Fields? Como poderemos coordenar as nossas actividades individuais de modo
a podermos todos tirar uma semana ou, mais precisamente, dez dias na
mesma altura? Assim que a agarrarmos, para onde a levamos? Efectivamente conheço o local ideal, mas, como vos disse, tratarei disso mais
tarde. Depois, como arranjaremos um veículo para a escondermos, no caso de
sermos localizados, e que género de veículo deverá ser? Como havemos de
nos disfarçar de modo viável? Quando estivermos no esconderijo para onde
formos, que abastecimentos serão necessários? E depois há mais....
A voz morreu-lhe.
- Bem, temos de prever uma série de outros problemas difíceis - disse
Yost, calmamente. - Por exemplo, quem dará por falta dela quando a levarmos? Que farão quando repararem que ela desapareceu? Quanto a nós,
que planos de emergência e alternativas temos, se alguém nos vir enquanto a
raptarmos e fugirmos? Como podemos ter a certeza de que as pessoas que nos
são mais chegadas, patrões, mulheres, amigos, não registarão a altura e o
lugar para onde nos vamos ausentar? E, por fim, há a parte psicológica do empreendimento....
O lápis de Malone parou.
- Que quer dizer?
Yost mordeu os lábios, pensativamente.
- Admitamos que somos bem sucedidos. Temos a Sharon sozinha num
local isolado. Agora, penso que o Adam tem razão, tenho um pressentimento
de que ela alinhará, nem que seja só por gozo. Gostará da excitação, da novidade, ou talvez só por medo.
- Ou apenas porque não conseguirá resistir-nos - disse Shively, com um sorriso.
- Pode ser - disse Yost, ainda a pensar -, mas é aí que quero chegar.
Que acontecerá se, no fim, ela ficar ressentida por a termos raptado, ou,
como já se disse, se ela só estiver receptível a um ou a dois de nós e não aos
quatro? Como resolveremos o caso? Temos de chegar a acordo unânime
antecipadamente, temos de agir de acordo com o combinado.
- Penso que tenho a resposta para isso - disse Malone. - Mas temos todos que jurar cumpri-lo, agora, com bastante antecedência, e não o
desrespeitar mais tarde. Sugiro que o único acto involuntário da parte de
Sharon seja a sua captura.
Brunner resolveu falar.
- Há.... há um outro acto involuntário da parte dela. Quando acordar, no
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esconderijo, e, quer ela queira ou não ficar, nós a prendermos por um dia ou dois, até travarmos conhecimento.
- Tem razão, Leo - disse Malone. - Será esse o outro acto involuntário da parte dela. Depois disso, sugiro que tudo o que ela faça seja volun tariamente, por sua própria vontade, sem compulsão da nossa parte. Se ela preferir ficar, e fazer amor, retribuir o nosso amor, terá de ser com todos nós, não com um, dois ou três, mas com todos nós. Terá de ser com todos ou com nenhum de nós. - Fez uma pausa. - Deixem-me sublinhar bem isto. Se ela quiser cooperar connosco - como penso que quererá -, não haverá problema, ganharemos. Será o arco-íris, o pote de ouro. No entanto, se ela só quiser cooperar com um de nós e não com todos, temos de acordar, desde já, que esqueceremos todo o projecto e que a soltaremos sem mais conversas. Nãoempregaremos a força, nem lhe faremos mal nenhum, não haverá crime. Esse será o nosso acordo básico e absoluto. O que acham? Você, Howard?
- É justo - disse Yost. - Concordo.
- E você, Léo?
- Eu. eu acho que seria a melhor coisa. Nessa base posso alinhar.
- Shiv?
Shively sorriu abertamente, e pôs uma das mãos entre as pernas.
- Porque estamos nós a perder mais tempo? Desenhem-me um mapa, e virem- me para a direcção exacta. - E apertando a mão com mais força. Está tudo pronto a partir.
Eles tinham os seus compromissos, e precisavam de tempo. Só no sábado seguinte, cinco dias mais tarde, é que se reuniram de novo, e desta vez no apartamento de Adam Malone em Santa Mónica às nove horas da noite.
Malone observou que chegaram todos com uma excitação reprimida, cada um com qualquer coisa nas mãos, tal como os Reis Magos levando ouro, incenso e mirra.
Assim que foram servidas as bebidas, sentaram-se rapidamente para tra balhar. Yost e Brunner empurraram as cadeiras para o lado de Malone à mesa da casa de jantar, e Shively sentou-se confortavelmente na cadeira de couro, partindo as cascas dos amendoins e mastigando-os entre goladas de cerveja.
- Se não se importam, eu faço de secretário da organização - começou por dizer Malone.
- Organização? Que raio é isso? - quis saber Shively. Um por todos, e todos por um - explicou Malone.
- Ah! - disse Shively. - Então, está bem. Por pouco pensei que es távamos a organizar qualquer coisa comunista.
Malone sorriu, tolerante.
-Não se preocupe, somos uma organização democrática. O Clube de Fãs, lembra-se?
Abriu o seu bloco de apontamentos e pegou no lápis, à medida que comnsultava a folha de papèl à sua frente, e continuou:
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- Passei à máquina as perguntas que Howard fez há cinco dias. Penso que
ficou combinado trazermos algumas respostas para esta reunião. Vou ler as
perguntas uma de cada vez, e, depois, resolvemo-las, e eu assentarei a nossa
decisão quanto ao procedimento a adoptar. Vamos começar?
- Estou pronto - disse Yost, ansiosamente.
- Muito bem. Primeira pergunta. Quem são as pessoas que se poderão encontrar na casa de Sharon ou na sua propriedade em qualquer dia da
semana? É essencial saber isso. Alguém tem alguma informação certa sobre o
assunto?
Leo Brunner, com os olhos a brilhar por detrás das lentes convexas, levantou timidamente a mão.
- Eu.... penso que posso dar uma ajuda - disse, um pouco envergonhado. - Creio que sei quem são as pessoas que trabalham para Miss
Fields, pelo menos desde Abril. - Hesitou. - Nunca tinha feito uma coisa
destas. Receio ter infringido a lei federal para conseguir esta informação.
Baixou-se, abriu a sua pasta castanha de executivo, e tirou para fora o que
parecia ser cerca de vinte fotocópias de formato legal.
-Consegui uma cópia da última declaração de impostos sobre rendimentos que Sharon Fields entregou nas Finanças.
Yost estava impressionado.
- Palavra de honra, Leo? Como diabo....
- Não percebo - disse Shively. - Que é que isso nos vai indicar?
- Muito, bastante até - disse Brunner, orgulhosamente. - Um leigo
pode pensar que as declarações das Finanças são apenas uma série de números
sem interesse. Mas eu passei muitos anos da minha vida a elaborar declarações de impostos, e, para um guarda-livros experiente, a declaração de
impostos de uma pessoa é o equivalente a uma biografia. Asseguro-vos que,
se soubessem ler uma declaração de imposto, veriam que é tão fascinante e
reveladora como o relatório de um detective particular. Uma declaração de
impostos minuciosa, com os respectivos planos e declarações, quando bem
interpretada, pode mostrar o verdadeiro perfil da vida e das actividades de um
indivíduo. - Folheou as fotocópias. - Sim, a declaração de imposto de Miss
Fields divulga muitas das coisas que queremos saber. Nem sei como me lembrei de.... de a arranjar.
- Essa foi brilhante, Leo - disse Malone, com sincera admiração.
Brunnner agradeceu, satisfeito.
- Agora, em resposta à pergunta Quem são os empregados de miss Fields que poderão estar dentro da casa dela ou na sua propriedade durante
qualquer dia da semana? , marquei as páginas respectivas. - Folheou as
páginas. - Cá está. Em anexo à rubrica Deduções de Encargos. Salários e
Ordenados está uma explicação detalhada. Cá temos a Sr á.... sim, está
inscrita como Sr á. Nellie Wright, secretária em regime de tempo inteiro.
Pelos vistos vive na mansão, porque este documento revela que duas salas da
casa, uma para uso pessoal, e a outra que serve de escritório, estão deduzidas
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como sendo despesas relacionadas com trabalho. Incluídos na lista como despesas parciais relacionada com trabalho temos Pearl e Donel, pelos
vistos marido e mulher, um casal que serve de motorista a Miss Fields. Também vivem na propriedade.
Não há nada que indique que o Sr. Lenhardt ou o Sr. Zi man vivam na propriedade, mas suponho que visitam frequentemente a casa. Agora, deixem-me ver:
Brunner virou as páginas, à medida que Malone tomava notas.
- Olhem, isto pode ser importante - continuou.
Indicados como despesas parciais relacionadas com trabalho temos os jardineiros ou guardas, da K. Ito & Sons. - Esse material é fantástico, Leo - disse Yost cada vez mais admirado. Brunner aceitou os elogios com modéstia.
- Bem, espero ter ajudado um pouco, pois isto é tudo o que consegui saber desta fonte de informação. Meteu a declaração de impostos no bolso.
- Como é que conseguiu arranjar isso? - perguntou Malone.
- Eu. prefiro não revelar os meios - disse Brunner. - Basta dizer que contto ligações nos escritórios das Finanças em Los Angeles.
Yost ficou momentaneamente preocupado.
- Quem quer que fosse que lhe deu isso, Leo, não estava interessado em saber porque é que queria a declaração de impostos de Sharon Fields?
- De facto, não. - Brunner hesitou antes de continuar.
- consegui esta declaração por intermédio de uma pessoa a quem fiz favores no passado. Disse-lhe que tinha
tido uma oportunidade de arranjar como cliente uma jovem estrela de cinema.
Disse-lhe que planeava ter brevemente uma entrevista com
ela e que, antes disso, gostaria de me familiarizar com os problemas especiais de impostos sobre rendimentos que teria de enfrentar se trabalhasse para alguém do mundo do espectáculo. 91
- Ainda não posso perceber como é que o seu amigo conseguiu arranjar
uma coisa dessas, que é tão particular - disse Malone.
-Tal como você, também pensei que seria difícil. Para falar com
franqueza, este meu amigo, e digo isto confidencialmente, que trabalha nos
escritórios locais das Finanças, contou-me que todos os habitantes de Los
Angeles remetem a sua declaração directamente para a Central de Finanças
em Ogden, no Utah. Se o departamento em Los Angeles necessitar de uma
cópia por qualquer motivo, eles contactam Ogden e recebem uma cópia em
três ou quatro semanas. No entanto, quando é necessária uma revisão, Los
Angeles recebe uma cópia das declarações a serem revistas, e estas, em seguida, são guardadas nos arquivos. Escusado será dizer que uma pessoa que
atinge um escalão de impostos como o de Miss Fields está sujeita à revisão
anual. Portanto, tinham cá um arquivo completo de todas as suas declarações.
O meu amigo conseguiu arranjar-me uma cópia de um dia para o outro, sem
fazer a menor ideia do motivo pelo qual eu a queria.
Yost ficou, momentaneamente, perdido nos seus pensamentos.
- As informações que Leo nos acaba de dar alertam-nos para três obstáculos que teremos de transpor. A saber: até que ponto irá o sistema de
alarme da casa de Sharon Fields.... quero dizer, será extensivo ao portão de
entrada? Depois, os carros de patrulha. Quantas vezes é que passam pelo local
e a que horas do dia e da noite? Seguidamente, em que dias e a que horas é
que os jardineiros, o Sr. Ito e os filhos, vêm cortar e aparar a relva e não sei que mais?
- Posso responder a essas perguntas, pelo menos parcialmente - disse Malone, pousando o lápis.
Explicou que tinha tomado a iniciativa de espiar. as actividades em torno
da propriedade de Sharon Fields durante a semana anterior. Estivera no seu
posto de observação todas as manhãs e parte de três tardes em que não trabalhara. Tinha pedido emprestado um binóculo e levara também uma máquina fotográfica para fingir que era fotógrafo profissional, no caso de alguém
nas vizinhanças estranhar a sua presença. Tinha-se dirigido ao ponto mais
alto da Stone Canyon Road, em Bel Air, ao seu esconderijo, e observara toda
a actividade que se desenrolava lá em baixo.
Teve a satisfação de declarar que a vigília tinha sido bàstante produtiva.
- Que é que descobriu? - perguntou Shively.
- Para começar, Sharon Fields dá, de facto, os passeios matinais que se
referiram. Saiu todas as manhãs em que lá estive. Começava o passeio por volta das sete da manhã, mais minuto, menos minuto, andava bastante devagar, apenas acompanhada do seu cão, um terrier Yorkshire.
- Que género de cão é esse - perguntou Shively, preocupado.
Malone sossegou-o.
- Para os cães vulgares, o Yorkshire é um mosquito. Consegue-se enfiar um Yorkshire na pasta do Leo.
- Está bem - disse Shively. - Que mais?
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- Não consegui despregar os olhos dela - disse Malone. - Oh, meu Deus, ela é linda! De qualquer modo, ela passeou desde a casa até ao portão de ferro. Só deixei de a ver durante um pedaço quando vinha e outro quando regressava, pois há um grupo de árvores a cerca de dois terços do caminho para o portão. Ela chegou ao portão quase sempre por volta das sete e quinze, deu meia volta e retrocedeu em direcção à casa.
- Só estamos interessados em saber onde ela está às sete horas e quinze mmutos - disse Shively. - Certo?
Malone acenou com acabeça.
-Sim. Agora, quanto às suas perguntas, Howard. Vi uma vez os três jardineiros. Nunca da parte da manhã, nem à sexta-feira, nem ao domingo, e esta tarde não pude lá estar. Mas no sábado à tarde, logo depois da uma hora, esse velhote Ito e os seus dois filhos, já homens, chegaram e separaram-se, trabalhando no jardim da uma às quatro horas.
- É bom saber isso - disse Yost. - Mas é melhor vigiá-los mais.
- É o que tenciono fazer - prometeu Malone. - Como vêem, penso que sendo a propriedade de Sharon Fields tão grande como é, Ito e os seus filhos não podem fazer o seu trabalho aparecendo só uma vez por semana devem vir mais uma ou duas vezes na semana. Portanto vou vigiá-los. Quanto ao carro de patrulha particular, também tenho uma informação sobre ele. Parece um carro de patrulha da Polícia, é preto e branco. Uma pessoa no carro, um guarda de uniforme que faz a ronda. Passou pelo portão da frente por volta das dez horas todas as manhãs, e cerca das três horas todas as tardes.
- Ele saiu do carro e andou pelos jardins? - perguntou Brunner.
- Mais importante ainda, anda armado? - perguntou Shively.
- A resposta a isso está na resposta que vou dar à pergunta de Leo. Não sei se está armado, porque nunca saiu do carro. Só reduzia de velocidade perto do portão, olhava para o jardim em redor, depois dava uma volta a meio da estrada e ia-se embora.
Shively deu uma palmada na perna.
- É esse o género de patrulha eficiente de que gosto.
- Concordo - disse Malone. - O que temos a fazer é aparecer lá quando eles lá não estiverem. E agora quanto ao alarme.
- Sim, estava à espera disso - disse Yost.
- Só vos posso dar informações sobre o que vi e as minhas conclusões. Quando o jardineiro, o Ito, chegou, falou para uma espécie de alto- falante que está num poste em frente ao portão, e, em poucos segundos, as duas secções do portão duplo abriram-se automaticamente para dentro. E hoje de manhã, cerca das dez e dez, uma daquelas camionetas distribuidoras de água, penso que era a Puritas, chegou ao portão, o condutor falou para o alto-falante, e aquele abriu-se automaticamente, por completo. Que conclusões tiram disto?
- A mim, em princípio, diz-me bastante - afirmou Shively, empurrando a cadeira para a frente. - Nesse género de coisas sou especialista.
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Posso concluir que o portão abre e fecha por um sistema electrónico colocado
dentro de casa. Apesar de não podermos tirar conclusões só com isto, tudo
me indica que o alarme, em si, funciona apenas dentro da casa. Há centenas
de espécies diferentes de alarmes. Se essa Sharon tiver o sistema de alarme
extensivo ao portão da frente, então estaremos metidos num sarilho. Porque o
próprio sistema de alarme, se for forçado, continuará sempre a emitir um
alarme silencioso, a registar um canão electrónico ou a avisar a sede da
Polícia, de onde enviam um alerta para os carros de patrulha. Portanto, esta é
uma das coisas de que devemos ter completa certeza.
- Estou plenamente de acordo consigo, Shiv - disse Yost. - Temos de estar perfeitamente seguros de tudo o que vamos fazer. Não podemos correr
quaisquer riscos, especialmente com uma coisa tão perigosa como um sistema de alarme.
Procurou um charuto no bolso de cima, tirou o invólucro, mordeu a
ponta, e continuou a pensar sobre o obstáculo. De repente, o seu semblante iluminou-se.
-Olhem, tenho uma ideia sobre como poderemos verificar tanto o
sistema de alarme como o carro de patrulha. -Apontou o charuto para Malone. - Vou precisar da sua ajuda, Adam.
- Diga.
-Na próxima vez que estiver no seu posto de observação, foque o binóculo na parte lateral do carro patrulha. Isso dar-nos-á o nome da companhia. Faça isso, que eu trato do resto.
-Não me esquecerei.
-Depois telefone-me para o escritório para me dizer. O que farei é o
seguinte: telefonarei para a companhia da patrulha, dou-lhes um nome e uma
morada quaisquer em Bel Air, ou uma morada de uma casa qualquer perto da
de Sharon. Direi que tenho uma casa grande, jardins, um portão de entrada - descrevo mais ou menos as instalações de Sharon Fields - e pedirei
informações preliminares sobre os vários sistemas que eles têm, como trabalham, quais as garantias, quanto custa, e que queria essas informações antes de marcar uma entrevista para me darem os preços exactos.
- Acha que eles vão nisso? - perguntou Brunner.
- Claro, Leo, eles estão com certeza à caça de clientes. De qualquer modo, tenho jeito para convencer as pessoas. a minha especialidade, não é?
Farei com que falem. Desse modo, saberei se o sistema de alarme principal
que eles instalam protege apenas a casa ou se está de qualquer modo ligado ao
portão ou à cerca. Se estiver, teremos então de pensar noutro modo de entrar,
se é que há alguma alternativa possível. Esperemos que a fechadura elec trónica do portão seja independente e que não tenha nada a ver com o sistema
de alarme interior. Geralmente são independentes, mas quero ter a certeza.
Terei essa informação na nossa próxima reunião.
- Sim, arranje isso - disse Shively. - Porque, se o portão tiver um
sistema electrónico independente, posso manejá-lo facilmente. Posso desligá-lo em poucos minutos na noite antes de entrarmos em acção. Poderemos
então abrir o portão manualmente e entrar.
- Perfeito - disse Malone, escrevinhando os seus apontamentos. - E eu
posso continuar a minha vigília sobre a propriedade daquele ponto alto de
observação que encontrei. Agora não o posso fazer diariamente, mas, duas
semanas antes de estarmos preparados, estarei de vigilância diariamente
quase todo o tempo. Conseguirei saber o horário dos jardineiros, tratarei
igualmente do carro-patrulha, e estarei atento a qualquer outro tipo de visitantes que possam aparecer regularmente.
- Quando estivermos perto da data de arranque vou lá consigo - disse
Shively. - Quatro olhos vêem mais do que dois. Além disso, quero ver outra vez o objecto da nossa afeição.
Malone voltou às perguntas escritas à máquina na folha da agenda.
- O esconderijo - disse. - Parece-me que é um dos pontos cruciais a ser
resolvido. Assim que a tivermos na mão, para onde a poderemos levar, de modo que esteja isolada e segura?
Yost acabou de acender o charuto. Apagou a chama do fósforo.
-Não há problema. Lembram-se de eu ter dito que tinha um sítio
planeado?
Os outros acenaram, e ficaram pacientemente à espera que Yost continuasse a falar.
Por detrás de uma nuvem de fumo, Yost disse:
- Estamos com sorte, nem vão acreditar. O local perfeito, feito à medida para a nossa operação.
Sem pressas, tentando valorizar a sua contribuição, Yost começou a falar
da sua amizade de longa data com um homem chamado Raymond Vaughn,
um engenheiro famoso. Todos os anos, até ao ano passado, Vaughn e Yost
tinham ido muitas vezes juntos à caça. Até os filhos tinham frequentado a
mesma escola. De qualquer maneira, este Vaughn estava sempre disposto a
mudar de ares, fugindo da cidade e passava longos fins-de-semana ou as férias
vivendo uma vida primitiva com a família em qualquer local remoto e relativamente isolado.
Há cerca de oito anos, quando, uma vez, fazia alpinismo num local
deserto em Gavilan Hills, perto de Arlington, na Califórnia, Vaughn viu um
bocado de terreno com uma placa em mau estado, quase ilegível, que dizia Para Venda. Decidiu que esse era o sítio ideal para passar as férias.
Comprou o terreno, e, em dois anos, nele construiu uma cabana com oito divisões, usando as pedras de granito que havia na zona e blocos de cimento
mobilou-a completamente e equipou-a com uma fossa séptica e poço; a
energia eléetrica era fornecida por um motor portátil. Vaughn gastara imenso
dinheiro e despendera bastantes energias nesse esconderijo dos seus sonhos
mas ele e a família tinham tirado bom partido do seu conforto e isolamento
pelo menos duas ou três vezes por ano. Porque, apesar do seu isolamento, a
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cabana rústica de Vaughn situava-se a menos de duas horas de carro do centro de Los Angeles.
- Depois, há pouco mais de um ano - e aqui é que estamos com sorte -, o meu amigo foi transferido de Los Angeles - continuou Yost. - A companhia dele arranjou um grande contrato de construção na Guatemala, e
Vaughn foi convidado a supervisar o projecto, com todas as despesas pagas
um aumento de ordenado e um bónus. Naturalmente, não pôde resistir, até
porque desejava uma mudança. Alugou, portanto, a sua casa em Los
Angeles, fez as malas, pegou na família, e mudou-se para Antígua. Antes de
partir, resolveu não vender a cabana em Gauvilan Hills, o que de qualquer modo não lhe seria fácil, pois é tão inacessível. Portanto, deu-me as chaves
daquilo, para o caso de eu a querer utilizar durante a época de caça. Só lá fui
uma vez, depois de ele ter ido embora, apenas para verificar se estava bem trancada e segura.
Yost fez uma pausa, com os olhos a brilhar para os outros, enquanto fazia a sua oferta.
- A casa é nossa, e lá nos espera - disse ele. - feita de encomenda
para nós, ninguém lá vai, nem ninguém sabe da sua existência.
- Alguém a construiu para ele - disse Shively. - Esses saberão onde está situada.
Yost abanou a cabeça.
-Garanto-lhe que ninguém sabe. Vaughn construiu-a com as suas
próprias mãos, e esse foi um dos seus grandes prazeres, nisso é que ele é bom.
Usou as pedras de granito que havia ali mesmo na zona, e alguns blocos de
cimento que levou para lá. Assim eliminou o trabalho dos carpinteiros;
estucadores, e tudo o mais. Fez o chão de madeira tosca, cobriu-o com azulejos de linóleo e pôs carpetes. Nas paredes interiores utilizou painéis de madeira pré-fabricados. Pôs telhas de betume no telhado, e, do lado de dentro,
deixou as vigas do tecto à vista, apenas as pintou. Ah, agora me lembro, teve uma certa ajuda. Contratou dois vagabundos mexicanos para o ajudarem.
Mas isso foi há muitos anos, e esses mexicanos só estavam de passagem, e muito provavelmente nem sabiam ao certo qual a situação do local, mas, de
qualquer modo, já, com certeza, regressaram há muito ao México ou estão presos. Não, Shiv, eu não me preocuparia com isso.
- E os inspectores de construções? - perguntou Malone. - Ou facturas
de serviços públicos que se encontrem nalgum arquivo?
Yost riu.
- Está a gozar, Adam? Olhem, o meu amigo Vaughn construiu aquilo
fora das vistas, longe e sem conhecimento de ninguém. Nenhum inspector
soube da sua existência. Nem as companhias de serviços públicos. Também
não há facturas de telefone, gás, água ou electricidade, porque não há telefone nem gás, e a água é tirada do poço do quintal; eu disse que o local tem
o seu próprio gerador portátil de electricidade. Olhe, já era bastante difícil
para ele chegar ao local, quanto mais os fornecedores. Havia uma estrada de
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areia que seguia sinuosamente pelas colinas até meio caminho e, a partir daí, só havia mata e arbustos até à propriedade dele. Ele teve de trabalhar meses para abrir uma estrada estreita desde a estrada de areia até lá, só com a largura de um veículo, que contorna o monte Jalpan, e desce até ao esconderijo, no vale. Podem acreditar em mim, aquilo é tão remoto e seguro como. como a ilha deserta de Robinson Crusoé, ou lá como se chamava.
- Chamava-se Más a Tierra, a ilha de Crusoé - disse logo Malone.
- Está bem, então temos agora a nossa própria Más a Tierra E, em vez do criado Sexta-Feira , temos a nossa Sharon - disse Malone. Pegou no lápis. - De agora em diante Más a Tierra é o nosso código para o esconderijo.
Brunner tossiu nervosamente.
- Howard, e se o seu amigo, Sr. Vaughn, regressasse de repente e fosse ver como estava a. a Más a Tierra?
-Fique descansado, Leo, que não há hipótese. O meu amigo tem umcontrato de cinco anos na Guatemala e tem os filhos na escola na Cidade do México. Na última carta que me escreveu, disse-me que, se conseguisse tirar uns dias de férias, queria utilizá-los para passar mais tempo com os filhos no México. Vaughn não estará de volta a estes sítios nos próximos três ou quatro anos.
- Bem, temos esse problema resolvido - disse Shively. - Se é assim tão fora de mão, como raio vamos nós chegar a essa cabana?
- São necessários dois veículos diferentes para lá chegar. Um carro vulgar ou uma camioneta de tamanho médio consegue andar na estrada de areia até meio caminho dos Gavilan Hills. Daí em diante, o resto do caminho á volta do monte Jalpan é feito na estrada artesanal que Vaughn abriu, por isso será necessário um veículo mais pequeno e mais resistente. Pode-se subir a pé a última metade do caminho, mas devo dizer que é uma verdadeira estopada no Verão, a não ser que se esteja em boas condições físicas. Nós experimentámos uma vez, mas depois alugámos uma motorizada, ainda me lembro, e transportámo-la até meio caminho numa camioneta de aluguer. Deixávamos a camioneta e fazíámos o resto na motorizada. Quando regressávamos a casa, levávamos a motorizada, que escondíamos na mata, metíamo-nos na camioneta para descer a montanha até à auto-estrada de Rirerside e daí para casa. Ah, agora me recordo! Vaughn deixou de usar a motorizada porque tinha de fazer duas viagens para cima e para baixo a fim de levar a família toda. Substituiu a motorizada por um jipe, que remodelou, acrescentando-lhe atrás dois bancos móveis e pondo-lhe uma capota de lona. já alguma vez viram um desses jipes em acção? Passam por cima de rochas, barrancos, dos montes mais íngremes, estradas de trilhos, areia, tudo. E procuro agora lembrar-me.
- Lembrar-se de quê - incitou Malone.
que teria ele feito ao jipe antes de partir para a Guatemala? 97
Não, tenho a certeza de que não o vendeu. Que estou eu para aqui a dizer? Vi lá
aquela porcaria depois de o Vaughn se ter ido embora. Claro, deixou-o atrás
da casa, estacionado sob um alpendre e até pediu para o pôr a trabalhar de vez
em quando para o manter em condições. Mas, da última vez que lá estive,
aquela porcaria não queria pegar....
- Bateria descarregada - disse Shivel.
Bom, Shiv, a estas horas já deve ter mais avarias além da bateria descarregáda, pois que há um
ano ninguém mexe nele. Não tenho a certeza se poderá ser arranjado de modo a poder andar.
- Não pense nisso - disse Shively. - Eu consigo pôr tudo a andar.
- Está bem - disse Yost, recobrando o entusiasmo -, vamos lá vê- lo
com os nossos próprios olhos. Que diz, Shiv? Uma manhã da semana que
vem, bastante cedo, podemos fazer um reconhecimento da estrada para Arlington, e depois para as montanhas até à cabana ou abrigo....
- Más a Tierra - recordou-lhe Malone.
- Claro, claro, isso mesmo. - Virou-se de novo para Shively e continuou. - Podemos fazer o reconhecimento e cronometrar o tempo de ida e
volta, até ao último segundo. Vamos no meu Buick até meio caminho da
serra, e levamos umas latas de gasolina extra para o jipe. Pode também
levar todas as ferramentas e sobressalentes que achar necessários. Podemos
levar o resto do material para a cabana a pé - não estou lá muito entusiasmado com a ideia, mas espero que seja a única vez - e você pode arranjar
o jipe enquanto eu dou uma vista de olhos à cabana para ver se está tudo
pronto a funcionar e quais os abastecimentos que serão necessários. Que tal?
- Qualquer manhã serve - disse Shively. - Mas avise-me com um dia de antecedência.
O lápis de Malone batia impacientemente na agenda escrita à máquina para a reunião dessa noite.
- Está bem, isso resolve o problema do segundo veículo. E o outro? O que utilizaremos para raptar a Sharon e levar pela auto- estrada até às montanhas; penso que nenhum dos nossos carros vulgares serve. Talvez
pudéssemos arranjar uma dessas utilitárias fechadas, como uma carrinha
VW, ou utilizar uma lona para a tapar.
- Você nem sabe distinguir o cu das calças - interrompeu-o agressivamente Shively, furioso por Malone ter invadido o seu precioso território.
Quando toca a saber o que é bom em matéria de carros, o melhor é deixarem
isso comigo. Esses carros esquisitos e as lonas que você mencionou custar-nos-iam um dinheirão, mesmo em segunda mão, e onde iríamos arranjar
o dinheiro, a menos que faça tenção de pagar tudo? Não, deixe isso comigo.
Vou deitar a mão a uma pequena camioneta velha e abandonada (talvez uma
velha carrrinha Yamahauler ou Chevrolet) ainda há algumas por aí, todas
estragadas e abandonadas nas lixeiras. Escolho-a a dedo, caço algumas peças
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necessárias de outras, arranjo-a, ponho-a a funcionar, e não cobro nada pelo trabalho. Está bem, pá?
- Claro que sim, Shiv. Isso é bestial. Talvez até depois possamos pintar na parte lateral da camioneta qualquer coisa que leve a pensar que pertencemos a uma firma fictícia qualquer, um nome inventado. Depois, podemos apagar a inscrição.
Tendo-se reconciliado com Shively, Malone olhou de novo para a agenda.
- Agora passemos aos abastecimentos - continuou. - Que espécie de abastecimentos iremos precisar em Más a Tierra?
Depende muito - disse Yost. - Depende de quanto tempo nós os quatro, os cinco, aliás, iremos lá passar. Ainda não decidimos o período de tenpo, e parece-me que teremos de assentar isso o mais depressa possível.
- Que tal uma semana? - perguntou Malone.
- Não, não chega - objectou Shively. - Tenho estado a dar voltas ao miolo, e uma semana não chega. De acordo com o plano estipulado pelo Adam, temos de calcular - dois, três ou quatro dias serão perdidos a acomodar a rapariga e a torná-la receptiva. Ficaríamos, pois, com três dias para nos divertirmos. Não estou para passar tudo isto para depois ficar com a miúda só três dias.
- Ao princípio você dizia ficar satisfeito só com uma noite - disse.
- Isso era nessa altura, agora a coisa está a tornar-se mais real. Portanto porque não tirar partido da situação? Eu sou de opinião que devemos tirar duas semanas de férias, o ideal para o Verão. Que acham?
- Não tenho objecções - disse Malone. - Estou pelo que for combinado, e você, Howard?
Yost pensou nas duas semanas.
- Bem, suponho que é possível. Os meus clientes passam sem mim duas semanas sempre que levo a Elinor e os miúdos de férias. Suponho que a minha clientela sobreviverá de novo por esse período de tempo.
Malone, olhando para o outro lado da secretária, disse:
- E você, Leo?
Brunner ajeitou nervosamente os óculos.
- Não sei. Devo dizer que não será fácil, pois raramente se passa uma semana sem que um dos meus clientes me telefone por causa de um problema qualquer. Para ser franco, nunca deixei o escritório por mais de uma semana.
- Então, é altura de começar - disse Shively.
- Bem, se essa for a opinião da maioria, não quero ser o único dissidente - disse Brunner. - Terei de resolver o caso.
- Combinado - concluiu Malone. Girou em direcção a Yost. Precisaremos de abastecimentos para cinco pessoas durante duas semanas.
- Não vejo problema em ter tudo arranjado com antecedência - Provavelmente iremos lá acima, à cabana, umas duas vezes antes do ideal dia, e, das duas vezes, podemos levar o que vamos precisar e armazenar
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lá. Segundo me lembro, a cabana está completamente mobilada, já
há lá muitos talheres e pratos. Há também dois quartos de dormir. Vaugh
tinha um quarto grande com uma cama a sério para ele e a mulher, e um
armário de roupa com lençóis, almofadas, cobertores e toalhas. Depois há um
quarto mais pequeno com beliches, um em baixo e outro em cima, para os miúdos. Teríamos de arranjar um terceiro quarto.
- Porquê três? - quis saber Shively.
- Bem, suponho que deixaremos a Sharon ficar com o quarto de dormir grande - disse Yost. - Dois de nós ficaremos no quarto dos beliches, mas
precisamos de outro sítio para mais dois dormirem. Há uma parte, uma
espécie de quarto de hóspedes entre o quarto dos miúdos e o alpendre, que
Vaughn usava como oficina e despensa. Poderíamos mudar as coisas, transformá-la num quarto de dormir, e dormirmos lá por turnos em sacos de
campismo. Teríamos de arranjar dois sacos, mas isso é fácil. Eu tenho um, e entre todos podíamos arranjar o outro.
- E a comida? - perguntou Shively.
- Teríamos de comprar os géneros com antecedência - disse Yost. -
Quase tudo dura duas semanas. Há um frigorífico para o que se possa estragar. Se esgotarmos os géneros antes das duas semanas, posso ir até
Arlington ou Riverside e trazer mais comida. Aliás, recordo-me, há um pequeno centro de compras em Arlington com um supermercado e, em frente,
há lojas de bebidas e de roupas, bem como uma ou duas farmácias ao longo da
rua principal, portanto não haverá problema se esgotarmos os géneros.
- Isso não me agrada - disse Shively, agressivamente.
Os outros pareceram surpreendidos.
- Que é que não lhe agrada, Sh - perguntou Yost.
- Qualquer um de nós sair do esconderijo e andar à vista naquela vila. E perigoso.
- Que raio, Shiv - protestou Yost. - Isso é ser demasiado cauteloso.
Ninguém andará à nossa procura, portanto ninguém em Arlington estaria no
mínimo interessado nas compras que um estranho fosse lá fazer. As pessoas , em férias fazem isso todos os dias quando passam na auto-estrada.
- Continua a não me agradar - persistiu Shively.
Yost levantou alegremente os braços.
- Está bem, se isso o incomoda, não o faremos. Compramos tudo com antecedência.
- Assim é melhor - disse Shively.
- Só teremos de organizar uma lista completa com antecedência,
assentando tudo o que vamos precisar, até ao último pormenor. Até.... - Yost fez estalar os dedos de repente. - Isso faz-me lembrar.... quase me
esquecia. Tenho aqui uma coisa interessante.
Pôs a pasta no colo, abriu-a, e tirou uma coisa que parecia um documento metido numa capa de plástico, desdobrando os papéis que lá se encontravam.
- Talvez não sejam tão interessantes como a declaração de impostos que
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o Leo arranjou, mas penso que poderão ser úteis. - Fez uma pausa drama ticamente e agitou os papéis em frente deles. - Aqui está, meus senhores, estão a olhar para uma coisa muito confidencial que muito poucas pessoas se podem gabar de conseguir ver. A apólice de Seguro de Vida particular e pessoal de Sharon Fields, n ó 17131-90.
Os olhos de coleccionador de Malone abriram-se espantados.
- A apólice da própria Sharon? - perguntou.
- Nem mais, tirada há dois anos, com o relatório médico anexo.
- Como é que conseguiu arranjar isso? - perguntou Malone, ainda impressionado. -Pensei que essas apólices eram confidenciais.
Yost riu.
-Já não há nada que seja confidencial, meu rapaz. É possível saber-se tudo sobre uma determinada pessoa, e neste caso foi fácil. Não se esqueça de que trabalho nos seguros. Bem, a minha companhia, a Everest Life Insurance Company, é apenas uma das subsidiárias pertencentes a um grupo. Uma das outras Companhias que pertencem ao grupo é a Sanctuary Life Insurance and Annuity Company. Todos temos uma secção de informação comum sobre todas as pessoas que fizeram um seguro, e Sharon Fields tem um seguro na Sanctuary. Sendo agente da Everest, fui à nossa secção de informação, encontrei a última apólice de Sharon e tirei uma cópia.
- Que é que ela diz? - perguntou Shively, indo directamente ao assunto. -Em primeiro lugar, diz-nos que Sharon Fields nunca teve epilepsia, nem esgotamento nervoso, nem tensão alta, nem tuberculose. Nunca teve nenhuma doença ou anormalidade dos seios ou de menstruação. Nunca tomou LSD ou outras drogas semelhantes. Indica-nos a sua altura, peso e medidas. Tem um físico bom, como devem calcular.
- Leia-as alto - disse Shively.
- Claro, pá - Yost virou várias páginas da apólice. - Cá temos a maneira como o médico a descreveu: Sharon Fields. Altura - um metro e sessenta e sete. Peso - cinquenta e cinco quilos.
Levantando os olhos, acrescentou:
- Vou dar-vos de seguida algumas estatísticas à parte, que vi numa revista cinematográfica que comprei ontem à noite num drugstore. - Fez uma pausa para dramatizar. - As medidas de Sharon Fields - estão prontos? -, então aí vai - noventa e sete, sessenta e um, noventa e quatro.
- Ena! - exclamou Shively.
- Desculpe - interrompeu Brunner -, mas não se importa de me definir as medidas?
- Com todo o prazer, Leo, com todo o prazer! - respondeu Yost. Seios com noventa e sete centímetros, muito cheios. Cintura, sessenta e um centímetros. Ancas, noventa e quatro centímetros. - Sorriu para os outros. - Há que chegue para todos.
- Bolas - disse Shively -, isso excita-me mesmo. Yost abanou a cabeça, e pegou novamente na apólice.
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- A única coisa que é importante saber, quando estivermos a comprar os abastecimentos, está aqui sob a rubrica Nos últimos dois anos tomou barbitúricos, sedativos ou tranquilizantes? " O médico da companhia de seguros
escreveu a resposta dela - Nembutal, prescrito pelo meu próprio médico. Não sei se ela os toma para os nervos ou para dormir, mas acho
melhor termos alguns à mão para lhe dar.
Os lábios finos de Shively torceram-se.
- Bolas, ela não vai precisar de comprimidos para dormir quando eu acabar de estar com ela.
Malone franziu o sobrolho a este último reparo, agradeceu a contribuição de Yost, e pegou de novo nas suas notas escritas à máquina.
- Passemos adiante - disse. - Chegámos assim à decisão vital que tem
de ser tomada: a data exacta do projecto. Aqui está a informação correcta que
possuo. A declaração mais recente que apareceu no Daily Variety é que
Sharon parte de avião de Los Angeles para Lhondres na terça-feira de manhã,
dia vinte e quatro de Junho. Sugiro que a raptemos no dia anterior, segunda-feira, de manhã cedo, a vinte e três de Junho. Estão de acordo?
Os outros três concordaram.
- Muito bem - disse Malone. - Se a manhã de vinte e três de Junho é a
nossa data de partida, isto quer dizer que cada um de vocês tem de planear
tirar as duas semanas de férias a começar nessa data até sábado, cinco de
Julho, incluindo o fim-de-semana do feriado de quatro de Julho, que é uma
boa altura de a trazermos de volta e regressarmos, nós, a casa. Bom, conseguem todos estar livres nessa altura?
Malone esperou, enquanto Yost e Brunner ficaram silenciosos a ruminar. Só Shively reagiu.
- Eu posso - disse. - O meu patrão deve-me umas férias. Claro que ele
agora anda lixado comigo, mas sabe que será difícil substituir- me, portanto
tenho a certeza que ele alinhará. Se ele não alinhar.... bem, que se lixe, porque arranco na mesma.
- E, obviamente, as datas servem-me - acrescentou Malone. - O meu
trabalho no mercado é em part táme e temporário. Apenas avisarei com
antecedência o gerente de que me vou embora. Conseguirei arranjar outra
coisa daquelas quando voltar. - Olhou para o par que estava em silêncio. - E
Os nossos homens casados? Têm algum problema em tirar duas semanas de férias sem as mulheres?
Yost passou a mão pelo queixo.
-Penso que sim. Já o fiz uma ou duas vezes, mas desta talvez seja
melhor não dizer à Elinor que é um congresso de seguros. Pode ser que ela se
lembre de verificar as datas dos congressos na Mutual Review.- um dos
periódicos que recebo sobre o meu trabalho - e depois estaria bem arranjado.
Estava só a pensar.... há outra maneira. Poderia mandá-la para Balboa, de
férias com os miúdos - não há escola nessa altura - e poderia dizer-lhe que
terei de passar esse tempo com dois possíveis clientes ricos acompanhando-os
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a pescar no. no rio Colorado. Posso dizer que eles me convidaram. Elinor é muito crédula e acreditará. Até eu estou quase a acreditar nisso.
- Só vejo uma falha na sua história, Howard - disse Malone. - E se a sua mulher quiser que você lhe telefone? Não ficará à espera de receber notícias suas?
- Sim, claro, bem, deixe ver. Ela sabe, por experiência, que, quando vou à caça ou à pesca, estou geralmente em zonas semi-selvagens onde não há telefones. Dir-lhe-ei que estarei nas matas, sem contacto. Mas claro, poderia telefonar-lhe só uma vez suponho que no dia em que entrarmos em acção, poderíamos parar perto de Arlington, por um bocado, antes de irmos para as montanhas. Poderia falar-lhe de um telefone público, para o Motel de Balboa, dizer-lhe que tinha chegado a Grand Junction, perguntar-lhe pelos miúdos, e dizer-lhe que estávamos para partir rio a baixo para pescar e acampar. Penso que isso me cobriria de rosas.
Malone ficou satisfeito. Desviou a sua atenção para o último dos quatro.
- E você, Leo?
Abanando a cabeça, a, preocupado, Brunner respondeu:
-Receio que para mim não seja assim tão simples. A altura é boa, a ocasião dos impostos já terá acabado, e eu geralmente tiro uma semana de férias depois disso, entre Maio e o quatro de Julho, para fazer uns arranjos em casa e levar a minha mulher e a minha cunhada a uma pequena excursão a Disneyland ou a Marineland. Como raras vezes tiro férias sem a minha mulher, Thelma pode investigar qualquer pedido meu para passar um tempo longe dela, pois que é muito pouco vulgar. Disso é que eu tenho medo.
- Sim - disse Malone. Depois falou para Yost e Shively. - Acho que a dificuldade do Leo deve ser seriamente considerada. Ele deverá convencer muito bem a mulher, senão poderá levantar suspeitas e estaríamos todos metidos num sarilho. É este o género de coisas para as quais Sherlock Holmes chamava sempre a atenção. Acautelai-vos sempre que uma pessoa modifica a sua maneira de ser, ou não actua nem responde em estado normal. Previnam-se contra os imprevistos, contra o que for diferente. Tal como o nosso incidente no conto de Conan Doyle, o Silver Blaze. O inspector pergunta a Holmes - Há mais algum ponto para o qual me quer chamar a atenção? Sherlock Holmes responde: - Ao curioso acidente do cão à 1te. E o inspector diz - O cão não fez nada à noite. E Sherlock Holmes replica - É esse mesmo o acidente curioso. Bem, a mesma coisa se aplica à situação de Leo. Ele nunca deixou a mulher fora de vista por uma semana, muito menos duas. Agora, de repente, tem de se ausentar por duas semanas, e sozinho. A Sra. Brunner achará isso tão suspeito como o cão não ladrar à noite. Temos de ter a certeza de que Leo trata a Sra. Brunner com a maior prudência.
- Que raio podemos fazer? - interrogou-se Shively em voz alta. Yost virou o corpanzil para Brunner - Leo, quer você dizer que 103
os contabilistas não têm congressos ou seminários fora da cidade, tal como os agentes de seguros?
- Claro que temos reuniões e seminários - disse Brunner. - A Associação dos Contabilistas da Califórnia faz sempre reuniões regionais para o
planeamento de impostos. Mas são geralmente em Novembro ou Dezembro, não em Junho.
- Já foi a alguma? - perguntou Yost.
- Se já fui? Claro que sim há três ou quatro anos, assisti a um seminário
de quatro dias, subsidiado pelo Instituto Federal de Finanças. Realizou-se no.... no Utah.
- A sua mulher foi consigo? - perguntou Yost.
- Claro que não. Ela não está interessada nessas coisas.
- Então, aí está, disse Yost. - Suponhamos que o Instituto Federal de
Finanças subsidiava uma série de seminários em Washington, D. C. para
informar os guarda-livros das novas leis sobre impostos. Suponhamos que
você foi convidado e que decide aceitar, para aumentar os seus conhecimentos
e, por conseguinte, o seu negócio no futuro. A sua mulher quereria ir? Você
disse que ela não se interessa por essas coisas.
- Não - disse Brunner, vagarosamente -, não, ela não se interessa. E de qualquer maneira nem sequer gosta muito de viajar.
- Acha que ficaria desconfiada?
- Não teria razões para isso. Talvez ficasse preocupada com o período de tempo em que eu estaria ausente, mas não deixaria de ter confiança em mim.
- Então, está decidido - disse Yost. - Acaba de ser convidado e de aceitar assistir a seminários subsidiados pelo Instituto em Washington, pelo que
estará ausente de vinte e três de Junho a cinco de Julho. Diga- lhe só isso.
Brunner tomou isso em consideração.
- Sim, poderia fazer isso, mas ainda vejo uma dificuldade. Minha mulher
ficaria à espera que eu entrasse em contacto com ela, de Washington, e eu não sei como poderia fazer isso.
- Washington! - Shilevy fez estalar os dedos. - Resolvido. Posso
dar-lhe uma ajuda nisso. Tenho uma antiga namorada - Márcia, ainda
somos amigos -, que vive em Baltimore. Tudo o que tem a fazer, Leo, é
escrever com antecedência à sua mulher dois ou três postais do estilo
" - Querida, estou tão ocupado, estou a achar isto interessantíssimo, gostava que cá estivesses, esse tipo de conversa. Eu mandaria os postais à Márcia
com alguns dólares para ela ir de autocarro duas ou três vezes até Washington e enviar os seus postais com o carimbo dos Correios de lá. Que tal?
Brunner estava interessado, mas tinha as suas reservas.
-Que pensaria Márcia? Ficaria desconfiada com o caso?
- Ela! - Shively deu uma risada. - Não, bolas! é uma rapariga da
rua, droga-se dos pés à cabeça, e a única preocupação que tem é a de arranjar
alguns dólares seja lá como for. Leo, dê-me apenas cinquenta dólares para lhe
mandar com os postais, e ela está-se nas tintas para o resto.
104
- Concordo com isso - disse Brunner.
Shively refreou-se.
- Só há um pormenor que estraga tudo. Você terá de dar à sua mulher o nome de um hotel onde irá ficar, não é assim? Digamos o Mayflower. Bem, o que me preocupa é. se a sua mulher lhe telefona para lá?
- A Thelma telefonar-me daqui para Washington - Brunner estava genuinamente chocado com essa probabilidade. - Oh, não, nunca! Nunca faria uma chamada tão cara. Ela é, por natureza, muito poupada. Nem sequer estaria à espera de que eu fizesse uma extravagância tão grande, telefonando- lhe. Não, Kyle, isso não é problema. Penso que os postais serão mais que suficientes para a satisfazer.
Na secretária, Malone, suspirou aliviado.
- Portanto, isso está arrumado. Todos nós podemos estar presentes nas datas combinadas - fez um sinal com o lápis na folha da agenda. - O que nos deixa apenas três problemas a serem resolvidos. Há a questão de mudarmos de fisionomia antes de vinte e três de Junho para parecermos diferentes quando estivermos com a Sharon. Isso proteger-nos-ia quando retomássemos as nossas fisionomias habituais ela não teria possibilidade de nos reconhecer, se pudesse existir esse perigo. Que sugerem? Para mim, é simples. Posso deixar crescer o cabelo e igualmente a barba. Temos muito tempo, há cinco semanas.
- Está bem - disse Shively -, você tem a barba. Eu posso deixar crescer um grande bigode. Já usei, modifica-me completamente.
Malone apontou para Yost e, depois, para Brunner. -Se vocês experimentassem isso, as vossas mulheres fariam perguntas?
- A minha talvez - disse Yost. - Prefiro não experimentar. Não seria melhor enfiarmos meias de seda pela cabeça sempre que estivéssemos com ela?
- Acho que isso seria muito pouco confortável e assustador - respondeu Malone.
- Bem disse Yost. - E se puséssemos à Sharon uma venda nos ólhos durante as duas semanas?
Malone não aprovou.
-Penso que isso a assustava ainda mais, e afastava-a. Complicaria a nossa tentativa de comunicação.
- Além disso - disse Shively, com um sorriso maldoso -, eu quero que ela veja o que vai ter a felicidade de apanhar. Só isso é metade do gozo.
- Bem - disse Yost -, suponho que o Leo e eu poderíamos arranjar disfarces no último momento. Quero dizer, podíamos continuar na mesma antes de sair de casa, e depois, à última hora, mudar a nossa fisionomia com disfarces. Eu poderia usar óculos escuros na maior parte do tempo, e, talvez, pintar o cabelo e penteá-lo de maneira diferente antes de a raptarmos.
- Isso serve - disse Malone. - E quanto a si, Leo, eu diria que podemos modificar o seu aspecto com uma espécie de peruca, e até mesmo com um
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pequeno bigode postiço. E talvez possa passar sem os óculos à frente dela e á
usar.... bem, roupas menos formais, nada de gravatas ou camisas vulgares, talvez camisolas de gola alta. Importa-se?
Brunner parecia excitado com a perspectiva. - De maneira nenhuma,
excepto no que respeita aos óculos. Sou muito míope, estaria perdido sem eles. Mas, tirando isso, alinho.
- Porque não arranja outro par de óculos, com uma armação diferente? - sugeriu Yost. - Uma armação grossa e preta.
- É uma ideia - disse Brunner.
- só duas semanas - lembrou Malone. - Assim que acabarmos,
assim que soltarmos a Sharon, pode desfazer-se do cabelo postiço e do bigode
falso e voltar a usar os óculos com aros de metal e as roupas mais conservadoras. Howard pode livrar-se dos óculos escuros, tirar a tinta do cabelo e
voltar a penteá-lo como habitualmente. E tanto eu como Kyle, rapamos
simplesmente o bigode e a barba e cortamos o cabelo. Penso que é absolutamente seguro.
- É canja! - disse Shively. Apontou para a folha da agenda de Malone.
-Que falta resolvermos?
- O penúltimo problema - disse Malone. - Quando a raptarmos, como é que a levamos inconsciente todo o caminho?
- Fácil - disse Shively. - Levamos um frasco de éter ou um pouco de clorofórmio.
- Éter, não! - disse Brunner, rapidamente. - Clorofórmio é mais
seguro. E pigarreou. - Ah, são esses os assuntos que tenho orgulho de
conhecer um pouco. É que a minha mulher tem sido hospitalizada várias vezes ou tem estado sob vigilância do médico devido a várias complicações. Por
várias vezes tomei conta dela na convalescença. Estou bem informado sobre o
Manual de Diagnóstico e Terapêutica de Mer e sobre o Guia de Medicina Caseira. Dos dois anestésicos mencionados, o éter é o mais perigoso, pois é
explosivo as emanações podem-se espalhar numa área fechada, e uma faísca
pode incendiá-las. O clorofórmio, por outro lado, faz o mesmo efeito e não é explosivo.
- E onde é que o arranjamos? - quis saber Yost.
-Em qualquer farmácia, se tivermos uma desculpa legítima para o comprar - disse Brunner. - Pode-se dizer que precisamos dele para as
borboletas que queremos integrar numa colecção. Ou....
- Não interessa - interrompeu Shively. - Não vamos a nenhum farmacêutico....
- Não é necessário, disse Malone. - Posso arranjar clorofórmio sem
problema nenhum. Um casal novo que conheço em Venice, completamente
viciados na droga, toma tudo desde estimulantes e tranquilizantes até mescalina e óxido nítrico, clorofórmio e éter. Arranjam parte daquilo que querem
porque ela trabalha numa dessas clínicas de assistência, e rouba tudo o que
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lhe interessa da clínica. Dir-lhe-ei que quero experimentar um pouco de clorofórmio no meu apartamento. Eu trato disso.
- Talvez seja melhor dizer mais uma coisa - disse Brunner. - Não pretendo criar mais problemas, mas tudo tem de ser tomado em consideração. Devem compreender que nem o clorofórmio, nem o éter, têm efeitos prolongados. Se for aplicada uma máscara, um pano ou um lenço, pode deixar a pessoa recuperar a consciência muito depressa, a não ser que se continue a aplicar a droga mas, se acontecer dar-se acidentalmente uma dose demasiado forte, pode ser mortífero. Portanto, tudo depende do período que Miss Fields tenha de permanecer inconsciente.
- Ainda não cronometrámos a viagem de Bel Air até ao esconderijo em Gavilan Hills, Leo - disse Yost: - Saberemos isso dentro de uma ou duas semanas, mas diria que devemos assegurar-nos de que ela fique inconsciente entre quatro a cinco horas, jogando pelo seguro.
- Então o clorofórmio só não nos servirá - respondeu Brunner. Poderá ser aplicado como rápido agente anestésico na primeira fase. Depois disso, teremos de ministrar uma injecção hipodérmica com um anestésico de maior duração. Vou ver o que tem melhor efeito. Quanto à utilização duma seringa, tenho experiência disso, porque já fiz injecções de insulina na minha mulher, em casa.
- Contamos consigo para averiguar isso, Leo - disse Malone. Estudou a folha da agenda pela última vez, e afastou-se para o lado.
-O último problema a enfrentar, meus senhores. Raptamos a Sharon, levamo-la para Más a Tierra por duas semanas. Durante esse período, nem ela nem nós estaremos em contacto com mais ninguém, e aí está o problema: vão dar pela falta dela. A sua partida para Londres estava planeada para o dia seguinte ao do seu desaparecimento, e ela tem com certeza enconntros marcados com associados e amigos. Depois, evapora-se. É mun dialmente famosa. Poderá levantar burburinho ou fazer com que alguém chame a Polícia.
- Claro que sim - concordou Brunner.
- Mas eu tenho uma ideia para resolver este problema - afirmou Malone. - Depois de a termos como prisioneira, aconselhamo-la a escrever uma carta ao seu agente, Félix Zigman, ou a Nellie Wrigt, a secretária, explicando que mudou de ideias, decidiu escapar-se por duas semanas para
um repouso absoluto, e para não se preocuparem com ela porque entraria brevemente em contacto. Ou nós.
- Acho que uma carta de Miss Fields seria um erro - disse Brunner. Poderia desmascarar.
- A carta está fora de questão - retorquiu Shively, decidido.
- Bem, então só nos resta mais uma alternativa - prosseguiu Malone.
- Contarmos com a informação sobre o comportamento anterior de Sharon que era impulsiva e excêntrica. Desde que se tornou conhecida, também se tornou notada por quebrar compromissos, por ser caprichosa, desaparecendo
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por curtos períodos num impulso momentâneo. Houve uma vez, há alguns
anos, em que desapareceu sem mais nem menos durante uma semana. Tenho
os recortes que comparam o seu desaparecimento com o da evangelista Aimee
Semple McPherson - lembram-se? - que desapareceu durante alguns dias e
voltou, de repente, sem nenhuma explicação.
- Gosto mais disso do que obrigá-la a escrever cartas aos amigos afirmou Shively. - Eles podem pensar que ela resolveu partir, e, de qualquer maneira, ela estará de volta antes que eles fiquem demasiadamente ansiosos.
Yost, que chupava sem cessar o seu charuto, tirou-o da boca para falar.
-Só estou a especular sobre o que poderá acontecer quando derem
mesmo pela falta de Sharon nessa manhã. Quanto tempo levariam a sua
secretária, a governanta ou o agente a ficarem realmente preocupados e a
chamarem a Polícia?
- Penso que eles passariam pelo menos um ou dois dias a tentar localizá-la entre os amigos ou a ver se não estaria com um dos antigos namorados - respondeu Malone.
- Mas se não a encontrassem depois disso, iriam certamente à Polícia insistiu Yost.
- Muito provavelmente iriam - concordou Brunner -, mas não terão
muita sorte com a Polícia. Tenho conhecimento de muitos casos, em que as
crianças ou familiares dos meus clientes desapareceram por um determinado
período. Ao fim de algum tempo, os meus clientes telefonavam para a Polícia.
Primeiro falavam com o Departamento de Participações; desde que não
houvesse provas de rapto ou jogo sujo, eram passados ao Departamento de
Pessoas Desaparecidas; na Secção de Detectives. Pediam-lhes uma descrição
física completa e as características invulgares da pessoa desaparecida, e diziam-lhes simplesmente que esperassem. O Departamento de Pessoas
Desaparecidas fazia então uma busca minuciosa nas morgues, hospitais,
prisões. Tudo isso seria feito se Sharon Fields desaparecesse. Quando não a
encontrassem, as pessoas que lhe são mais chegadas pouco mais poderiam fazer além de pedir à Polícia para estarem atentos. Desde que não houvesse uma
insinuação, um indício, ou prova de crime, a Polícia não teria poderes para
actuar. Claro que poderão reagir de maneira diferente neste caso, visto Miss
Fields ser tão famosa....
- Mas aí é que está, Leo - interrompeu Malone. - Por a Sharon Fields
ser uma estrela de cinema é que a Polícia não actuará. Eles simplesmente não
levariam a sério qualquer participação do seu desaparecimento. Os polícias
não são parvos de todo, sabem da vida anterior de Sharon. Também sabem
que a Sharon tem um grande filme épico, a estrear brevemente, A Cortesã,
Real", e poderiam tomar qualquer participação do seu desaparecimento como
outro golpe publicitário, e que é de facto um dos mais antigos na história, um
dos que sempre têm sido usados com frequência para adquirir só publicidade
nas bilheteiras. Pode estar certo disso. Não temos que nos preocupar com a
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possibilidade de a Polícia se meter no caso. E mesmo que se metesse, por onde começariam a procurar?
- Certíssimo - disse Yost. - Acho que todos concordamos que esse problema é de somenos importância.
Malone levantou-se da cadeira e espreguiçou-se.
-Acho que estamos prontos, já fizemos todas as perguntas possíveis e sabemos como lidar com cada uma delas. Responderemos a todas e resolveremos os todos os problemas nas próximas três ou quatro semanas. Acho que
devemos fazer os nossos trabalhos, e depois reunirmo-nos pelo menos duas vezes por semana no próximo mês para trabalhar os pormenores finais. Todos estão de acordo?
Todos se puseram de pé e concordaram.
Shively estendeu o braço para segurar o de Brunner.
-Leo, meu velho, antes de partirmos, uma última pergunta. Sabe, aquela declaração de impostos da Sharon Fields que estava a ler há bocado?
- Sim, porquê?
- Só mais uma coisa que não disse. Sou um pouco curioso em relação a uma miúda daquelas. Quanto é que ela ganhou no ano passado?
- Ganhou - Brunner levantou a pasta, abriu-a, e tirou o relatório das finanças. - Quer dizer o rendimento bruto ou o rendimento líquido tributável?
- Diga-me só, sem mais rodeios, quanto é que ela ganha por ter o aspecto que tem.
- Bem - disse Brunner, virando as páginas do impresso das Finanças Ganhos de Miss Fields , o último rendimento bruto tributável foi de um o e duzentos e vinte e nove mil quatrocentos e cinquenta e um dólares e noventa cêntimos.
Shively não queria acreditar.
-Está a brincar.
-Sr. Shively, Miss Fields ganhou cerca de um milhão e duzentos e cinquenta mil dólares, só nesse ano.
Shively deu um assobio baixo e longo, e olhou para cada um dos outros, com um sorriso de gato Chesire, dizendo - Não é bestial, rapazes! Não vanos ter só o bocado de carne mais desejado do Mundo, mas vamos ter o cu mais caro da terra à borla. Quanto tempo é que disse que faltava, Adam? Só mais cinco semanas? Bem, só vos digo é que nem posso esperar. Sempre quis ter uma mina de ouro. Só consigo pensar como é que vai ser?
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Capítulo Quarto
AGENDA DE ADAM MALONE -18 a 24 de Maio
Num livro que comprei em segunda mão, com o título Mais Vermelho que a Rosa" e escrito por Robert Forsythe, encontrei a seguinte passagem
transcrita do dramaturgo Robert E. Sherwood:
Imaginem a situação duma heroína de Hollywood, uma beleza não muito complicada, que foi subitamente elevada a uma eminência estonteante e se encontra completamente confusa. Ela acorda durante a noite com o pensamento: Neste momento estou a sujeitar-me à violação de inúmeras hordas de jugoslavos, peruanos, birmaneses, abissínios, curdos, letónios e de homens da Ku Klux Klan! Haverá alguma dúvida que uma rapariga nestas condições acha difícil levar uma vida normal, que o seu sentido de equilíbrio possa ser um pouco excêntrico?
Tenho estado a pensar nestas palavras em relação à Sharon Fields. À primeira vista, parecem discernir a vida de muitas actrizes de cinema jovens e bonitas que se tornaram símbolos internacionais do sexo. Têm tendência para explicar em público o seu comportamento por vezes confuso e fora do normal. Mas tendo eu investigado tão profundamente o psíquico de Sharon Fields, não acho que o reparo ou comentário lhe seja aplicável. Ou pelo menos a conclusão não o é.
Talvez seja verdade que Sharon acorde de vez em quando, a meio da noite, consciente, por assim dizer, de que milhões de homens, pelo Mundo fora, apaixonados pela sua imagem vibrante no ecran de prata, a desejam, e que, nas suas mentes, a sujeitam à violação. Mas, daquilo que sei dela, esta situação, ou o ela aperceber-se da mesma, nunca afectou o seu equilíbrio mental.
Ela continua com bastante bom- senso como qualquer outra rapariga da Terra que sabe que é atraente para os homens, e aceita o facto como um acidente da natureza, como poderia aceitar outros dotes naturais, tais como inteligência, imaginação e porte.
Se alguma vez, no passado, a Sharon se comportou exorbitante ou impulsivamente em público, penso que isso é devido ao facto de ela se recusar a ser agrilhoada a uma imagem irreal. Quer ser quem é, não quem deve ser, portanto revolta-se. Ela afirmou a sua independência. Aliás, tenta dizer a toda a gente Eu sou eu.
O facto de, inúmeras vezes, ter dito desafiadoramente ao mundo que pre fere homens como nós a figuras fascinantes com quem se espera que ela se associe, apenas torna válido o meu ponto de vista.
Em cada dia que passa, à medida que o nosso projecto avança, sinto-me
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cada vez mais próximo de Sharon Fields, como realmente me devo sentir. Porque cada passo que damos me aproxima cada vez mais dela.
Desde aquela fatídica reunião do Clube de Fãs no sábado, 17 de Maio quando nos comprometemos a resolver os problemas mencionados na agenda que tinha preparado, o nosso projecto passou do dominio do desejo ao domínio da realidade.
Em vez de seguir os moldes anteriores de longas reuniões, começamos a reunir-nos mais frequentemente por períodos mais curtos, para facilitar as reuniões aos dois homens casados. Além disso, parece que temos necessidade de
estar mais tempo juntos. Como temos um alvo a atingir em comum, brotou
entre nós um verdadeiro sentimento de camaradagem.
O mais importante, nesta manobra complexa, é que tudo se está a copor. Vou descrever, resumidamente, as nossas actividades desde domingo até hoje, que é sábado.
Reunimo-nos duas vezes durante a semana, uma vez aqui no apartamento, e, no outro dia, no escritório do guarda-livros. (Serei discreto ao referir-me a cada personagem Empregarei um nom de guerra ao referir-me a cada um dos participantes do nosso trabalho em comum. )
Resumindo: estes foram os nossos feitos da semana.
Como tinha prometido, o Homem dos Seguros, fazendo-se passar por um rico residente da localidade que nos interessa e como possível cliente, telegrafou a um serviço de segurança chamado Patrulha Privativa de Protecção. Eu tinha conseguido dar-lhe o nome da firma por ter visto o emblema pintado num dos carros que vigiavam a zona.
De qualquer modo, o Homem dos Seguros achou o gerente do serviço de segurança surpreendentemente cooperador e informativo ao telefone. Claro que o Homem dos Seguros tem uma forte personalidade e, mesmo quando está só a fingir, é difícil duvidar dele ou desmenti-lo. Por isso é que penso que o nome que lhe escolhemos está muito bem aplicado.
Ficou a saber que a Patrulha Privativa de Protecção só monta um tipo de sistema de alarme de segurança na zona em questão. Este é essencialmente um alarme silencioso. Sobre as dobradiças de cada porta de uma casa instalam-se pequenos controlos metálicos de botões de pressão chamados ratoeiras, ligando-os por fios a um transmissor central numa secção da casa, tal como a zona de serviço ou a garagem. Os mesmos controlos de botões são também montados nas molduras das janelas. Para as janelas duplas, um mterruptor do mesmo metal de contacto magnético activa o alarme. Outras janelas são cobertas com redes especiais feitas à medida que têm os fios enelaçados nas malhas e estes estão também ligados à caixa de controlo principal. Quando o dono da casa, antes de sair ou de se ir deitar, desejar ligar
Em Italiano no original. Em Francês no original.
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o alarme, introduz uma chave numa fechadura aberta na parede dum
aposento, roda-a, ligando assim o alarme. Se algum intruso tentar entrar em
casa nessa altura, ao abrir uma porta ou uma janela ou ao cortar uma rede
corta o circuito e transmite um alarme silencioso aos serviços centrais de patrulha. Imediatamente, a central de patrulha contacta pela rádio um dos
carros da sua frota, e um carro com um motorista armado segue para o local em questão.
Quando o Homem dos Seguros perguntou se tal sistema poderia ser
desmantelado ou desactivado por um criminoso esperto, responderam- lhe
que era impossível. Assim que as redes ou a caixa de controlo fossem mexidas, o alarme silencioso dispararia logo.
Então o Homem dos Seguros fez a pergunta crucial. Disse que a sua
própria casa estava limitada por um muro e um portão de ferro (descreveu
com exactidão o plano do portão e dos jardins do Objectivo). Queria saber se o
alarme silencioso que protegia a casa poderia também ser extensivo ao portão
e ao muro. Responderam-lhe que não, que não faziam isso. Que não era
necessário. Uma vez que a casa estava protegida com o alarme, não havia razão para ter o custo excessivo de o ligar a um portão ou ao muro. Mesmo se
alguém forçasse o portão ou subisse o muro, não conseguiria entrar em casa sem por ele ser detectado.
O Homem dos Seguros fingiu que ainda estava perplexo. Explicou que
tinha vizinhos com portões de ferro forjado semelhantes ao dele, e que estes
abriam e fechavam automaticamente. Como é que faziam aquilo? O gerente
dos serviços de segurança, desejoso de fazer gala dos seus conhecimentos,
explicou a operação minuciosamente. "Aliás é bastante simples. Não tem
nada a ver com o nosso sistema de alarme silencioso, mas teríamos muito
gosto em arranjar-lhe uma dessas instalações. É composta apenas por um
intercomunicador perto do portão, que está ligado a um alto-falante dentro de
casa. A pessoa no portão identifica-se. Alguém dentro de casa prime um botão que activa electronicamente um motor coberto instalado atrás de um dos
postes do portão. Nessa altura, um mecanismo rígido ou um cinto de corrente
fixado ao motor de redução abre os portões automaticamente, deixando o
interlocutor entrar, e volta a fechá-los automaticamente. "
Portanto, sabemos agora quais os dois sistemas utilizados na casa do nosso
objectivo - e assim que o Homem dos Seguros nos informou, o Mecânico,
que é extremamente conhecedor de qualquer espécie de maquinaria, ficou
logo a saber exactamente o que tinha de fazer para abrir o portão. Ele explicou
(eu, pessoalmente, estava um pouco fora do assunto, no entanto espero ter
compreendido bem) que todos os tipos de motores têm uma embraiagem no
sistema de engrenagem. Esta solta-se quando o portão encontra algum
obstáculo pela frente, tal como um carro que não tenha conseguido ultrapassá-lo. Então o sistema começa a trabalhar no sentido inverso.
- Tudo o que terei de fazer na altura exacta - disse o Mecânico é levar comigo um par de fortes alicates, subir o muro, e chegar ao motor.
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Com o alicate poderei cortar o cadeado que provavelmente estará na tampa do motor. Depois, tiro-lhe a tampa e, lá dentro, solto a embraiagem. Desengatando as engrenagens, o sistema funcionará em roda livre. Depois disso, podemos empurrar a porcaria do portão à mão. Portanto, não há problema. Parece que estamos prontos para a entrada. "
Houve outra coisa: o Homem dos Seguros foi bastante esperto procurando informar-se junto do gerente dos serviços de segurança. Perguntou qual o programa do carro-patrulha. Disseram-lhe que depois de instalarem o sistema de alarme silencioso por 2000 dólares, havia um pagamento mensal de 50 dólares pela conexão do alarme à central. - No entanto, também há um serviço suplementar - continuou o proprietário"e todos os clientes subscrevem para isso. Por mais cinquenta dólares por mês, mandamos um dos nossos carros-patrulha até à sua casa para ver se tudo está em ordem. E é uma vez de manhã, uma vez à tarde, e uma vez à noite.
Na quarta-feira passada, ao amanhecer, o Homem dos Seguros e o Mecânico, no Buick do primeiro, com um carrinho de mão no porta- bagagens, dirigiram-se a Más a Tierra para cronometrar o tempo de viagem e estudar os arredores, bem como verificar as condições das coisas no local.
Foram por uma auto-estrada, e, depois, por duas estradas secundárias até ao cimo do monte Jalpan onde tiveram de estacionar e deixar o carro. A primeira parte do percurso levou-lhes 2 horas e 2 minutos. Depois disso, tiveram de subir até Más a Tierra. Como o Mecânico tinha de carregar ferramentas e peças sobressalentes de automóvel que pudessem vir a ser necessárias, e o Homem dos Seguros tinha de empurrar o carrinho de mão carregado com duas latas de gasolina e a bateria, a marcha foi lenta. A subida levou-lhes 1 hora e 10 minutos.
Encontraram o jipe intacto sob o alpendre, sem ter sido mexido, nem mudado de lugar, provando com bastante certeza que nem estranhos, nem alpinistas, nem visitantes tinham estado perto do sítio desde a última vez que o Homem dos Seguros lá estivera há um ano atrás. Uma inspecção feita na zona circundante também não mostrou nenhum indicio de que lá tivesse pousado um único intruso num ano.
O Mecânico fez uma revisão geral ao jipe; o carro parecia encontrar- se em perfeitas condições, excepto algumas peças que precisavam de ser substituídas, o que ele já tinha previsto. A bateria estava descarregada, e um dos pneus estava em baixo a bateria foi substituída pela nova. Como o pneu era especial - com largura feita à medida e do tipo flutuação, ou lá o que é -, o Mecânico decidiu que seria mais fácil repará-lo no próprio local do que trazer para ali outro para substituí-lo. Tirou o pneu, examinou-o, e ficou satisfeito ao verificar que só precisava de ar encheu-o com a bomba de mão e colocou-o de novo no jipe. Depois meteu um pouco de gasolina no tanque. O Mecânico sentou- se ao volante, ligou o carro - que até pegou - e experimentou-o, dando voltas no local. Tirando umas chiadelas e ruídos - da
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próxima vez ele vai-lhe fazer uma lubrificação completa -, andou perfeitamente. Estamos com sorte.
Entretanto, o Homem dos Seguros tinha levado as chaves de Raymond Vaughn e abriu a cabana. Tirando uma certa acumulação de pó e sujidade, o
interior encontrava-se em boas condições, com todas as mobílias no seu lugar
adequado. Passou três horas a limpar superficialmente o interior com panos
de pó e uma vassoura que lá se encontravam. Após ter ligado a bomba de
água, experimentou as torneiras e puxou os dois autoclismos, e, apesar de a
água ter corrido com um pouco de ferrugem, brotou livremente, acabando
por sair mais límpida. De qualquer maneira, o fornecimento de água do poço
particular, e a fossa séptica para as águas do esgoto achavam-se ambos a
funcionar perfeitamente. No entanto, havia um contratempo: as luzes não
acendiam. Havia uma avaria na electricidade. Portanto, o Mecânico, depois
de ter posto o carro a funcionar, foi dar uma vista de olhos ao gerador que
alimentava o sistema eléctrico. Não levou muito tempo a descobrir onde se situava a avaria. A caixa principal precisava de um arranjo, e o depósito de
gasolina subterrâneo precisava de ser enchido. Como se estava a fazer tarde,
decidiram que os arranjos seriam efectuados na próxima visita, altura em que trariam mais latas de gasolina.
Além disso, uma pequena parte das telhas tinham-se soltado, provavelmente durante um vendaval, e era preciso pregá-las de novo.
O mais importante é que ambos os membros do clube ficaram aliviados
com as condições excelentes de Más a Tierra . Com excepção dos pequenos arranjos que mencionei, e várias outras coisas às quais farei referência
mais tarde, o lugar estava pronto a ser habitado. E, é claro, a receber os abastecimentos.
Na nossa última reunião, discutimos mais em pormenor a disposição da
cabana. Foi decidido que o quarto principal seria destinado à nossa hóspede.
Como as duas janelas do quarto principal poderiam constituir um meio de
fuga, ficou decidido que seriam tapadas com tábuas e, por precaução, colocar-se-iam no exterior barras de ferro que as tapassem completamente.
Por acaso, os dois membros do clube cronometraram as duas partes da
viagem de regresso de Más a Tierra a Los Angeles. A primeira parte
foi dramaticamente rápida, e a outra mais demorada. Em vez de descerem a pé
até ao Buick, distância que anteriormente haviam percorrido em 1hora e 10
minutos, vieram os dois no jipe, demorando no trajecto 19minutos. No
entanto, no regresso a casa pela auto-estrada, apanharam o trânsito que saía
dos empregos e da hora de jantar, e esta parte da viagem acabou por lhes levar
2horas e 34minutos, em vez das 2horas e 2minutos que tinham gasto de
manhã cedo. De qualquer maneira, não é provável que façamos a viagem a essa hora de ponta.
Quanto aos outros assuntos, o guarda-livros participou orgulhosamente
aos outros membros do clube que já tinha preparado o terreno para efectuar a
sua visita de duas semanas a Washington, D. C. para assistir a um seminário
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sobre impostos, não tendo havido, para grande espanto seu, quaisquer complicações sérias. A mulher recebeu a notícia com serenidade. Sentia-se muito orgulhoso de si mesmo, da maneira como lidou com o assunto, e parecia bastante aliviado. Entretanto, o Homem dos Seguros ainda não tinha avisado a mulher de que iria passar duas semanas no rio Colorado a pescar com dois possíveis clientes abastados. Disse que tinha estado demasiado ocupado para o fazer, mas, finalmente, e depois de o termos pressionado
admitiu que não tinha tido ainda coragem. Prometeu tratar deste assunto na semana que vem.
Informei o clube de que no princípio da semana estivera de novo no meu posto de observação com vistas para a área do nosso alvo, para verificar os passeios matinais do nosso Objectivo e a equipa de jardineiros, à tarde. Ambos apareceram à tabela como anteriormente.
Prometi que, a partir de segunda-feira, iria para o meu posto de observação quase diariamente, seis vezes por semana, e que assentaria tudo o que visse. O Mecânico ofereceu-se para me acompanhar uma ou duas vezes por semana, acrescentando que, sempre que eu não pudesse ir, me substituiria quando estivesse livre.
Nota final sobre os progressos feitos na semana passada deixei de fazer a barba no domingo passado, e, apesar de já estar a precisar de cortar o cabelo e de o aparar, não fui ao barbeiro nem irei lá antes de isto tudo ter terminado. Tenho agora um bigode e uma barba a despontar rebeldemente. Aimda não têm bom aspecto, e o gerente da loja já fez um comentário sarcástico sobre os meus adornos eriçados. O Mecânico também está a fazer o mesmo, não a deixar crescer a barba, mas o bigode; e o aspecto dele já se está a alterar.
Resumindo, eu diria que foi uma semana rentável.
AGENDA DE ADAM MALONE - 25 a 31 de Maio Copiei uma citação. É de Shakespeare:
O amor não é mais que uma loucura e, digo-vos, merece uma casa escura e um chicote como merecem os loucos e a razão por que não são tão castigados nem curados é porque a loucura é tão vulgar que os Carrascos também estão apaixonados.
Cada vez que analiso e considero objectivamente o que estou a planear e a realizar em nome do amor, consolo-me com a citação acima mencionada.
Tenho estado a pensar numa citação atribuída a Sharon Fields que ela admite ter pedido emprestada a Lana Turner, mas na qual acredita com todo o seu coração. É a seguinte Gosto de homens e eles gostam de mim. Qualquer mulher que não admita que realmente deseja e gosta do sexo ou é doente, ou é feita de gelo, ou é uma estátua.
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Muito provocador, devo dizer.
Outra coisa que me veio à cabeça um dia destes, quando tive oportunidade
de rever os meus arquivos sobre Sharon Fields. Segundo parece, todos os
famosos símbolos do sexo dos tempos modernos gostavam de andar nus sob as
roupas exteriores. Já li que Jean Harlow nunca usou roupa interior, gostava
de excitar os homens. Marilyn Monroe também nunca usou um fio de nada
por baixo dos vestidos. Queria que os homens a desejassem. Sharon Fields é
exactamente a mesma coisa. Ela diz que, seja o que for que vista por fora, saia
blusa, vestido, fato de calças e casaco, raramente usa soutien ou calcinhas,
meias-calças ou qualquer roupa interior. Prefere andar nua por baixo. Mas no
seu caso não pretende provocar os homens. Os amigos dizem que ela prefere
esta maneira de vestir porque é uma pessoa desinibida e natural, que não
acredita em falsas modéstias. Se pudesse, dizem eles, até se desfazia das vestes exteriores.
É uma mulher como não há outra no Mundo, e a ideia de a conhecer intimamente obceca-me a toda a hora.
Os outros três do grupo sentem o mesmo, mas sem a compreensão nem a paixão profunda que sinto por ela.
Desde domingo passado, o nosso grupo teve três reuniões, todas elas breves, e para pôr as coisas em dia. Uma das reuniões foi no meu apartamento,
outra no cubículo do fundo, no Lantern Bar do All-American Bowling
Emporium, e uma terceira no escritório do Guarda-Livros.
As coisas estão a progredir satisfatoriamente. A soma total dos nossos
esforços da semana passada foi a seguinte:
Estive vigilante no meu posto de observação e informei o grupo de tudo o
que tinha visto ou detectado durante a minha vigília de seis dias consecutivos.
O Objectivo fez o seu passeio matinal todas as manhãs impreterivelmente. Só
uma única vez é que não percorreu a distância toda até ao portão e o regresso.
Nessa manhã, perturbada, parou a nove metros do portão e voltou para trás.
Com excepção do terrier, ninguém a acompanhava nesses passeios.
Além disso, pude constatar que um carro particular de patrulha apenas
com um motorista fardado passeou pela propriedade todas as manhãs entre as
10horas e as 10horas e trinta minutos, e todas as tardes entres as 3 e as 4 horas.
Mais ainda, o Sr. Ito, o jardineiro, e os seus dois filhos crescidos
apareceram duas vezes durante a semana, na quarta-feira, ao princípio da
tarde por volta da 1hora, e de novo hoje, sábado, à mesma hora. Trabalharam no jardim quase três horas. Prometi aos outros continuar a minha
vigília na próxima semana com a mesma incansável dedicação.
Um Relatório do Homem dos Seguros e do Mecânico levantou muito o moral.
Foram de carro até "Más a Tierra" na madrugada de quinta-feira. O
tempo feito foi o melhor até agora. Chegaram ao local da transferência em 1
hora e 53minutos. Deixaram o Buick e meteram-se no jipe, que andou muito
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bem, conseguindo chegar ao destino em mais 18 minutos. Estou apenas a registar o tempo gasto no percurso, não estou a contar o consumido a transferir as mercadorias de um veículo para o outro. Penso que isso demorou 15 minutos, apesar de nenhum deles ter cronometrado o tempo.
O primeiro trabalho a executar em Más a Tierra era o de pôr o gerador a funcionar. O Mecânico, após várias tentativas infrutíferas, conseguiu arranjar a caixa principal. Em seguida, o depósito foi parcialmente cheio com gasolina transportada em latas para o local. Como resultado disso, todos os
aparelhos eléctricos começaram a funcionar: as luzes funcionavam, bem como o frigorífico, o pequeno fogão, e a máquina de lavar e de secar. No entanto, segundo as explicações do Mecânico, teremos de ter cuidado com a utilização da electricidade. Se todas as luzes e todos os aparelhos eléctricos estivessem a funcionar simultaneamente, precisaríamos de 11000 W. Contudo, o gerador portátil só tem capacidade para 8000 W. Portanto, não poderíamos pensar em usar mais do que metade das luzes de
parede e dos candeeiros de mesa ao mesmo tempo.
Poderemos ter o frigorífico sempre ligado, mas não devemos, nunca, utilizar a máquina de lavar, a torradeira, o ferro de engomar e o televisor ao mesmo tempo, porque consomem cerca de 3500 W. Vamos precisar de mais
energia do que pensávamos para o depósito do gerador. Visto que nos estamos a preparar para umas longas férias numa zona deserta, ficámos satisfeitos por saber que os Vaughns deixaram lá ficar um televisor com uma antena ligada a um poste de alumínio no cimo de um onte por detrás da cabana, a cerca de dezasseis metros e meio acima do nível da
casa. O Mecânico era de opinião que se retirasse a antena, mesmo que isso significasse ter de renunciar a ver televisão. Estava preocupado com o facto de aantena poder ser vista do ar. Além disso, ele achava que o Objectivo poderia dar-nos bastante divertimento e que ninguém iria ver televisão. O Homem dos Seguros argumentou que a antena estava camuflada por duas árvores altas e frondosas, e que alguns de nós ficaríamos satisfeitos por ter um aparelho de televisão, pelo menos durante uma parte do tempo. Aliás, o Homem dos Seguros queria arranjar um segundo aparelho. Terminada a discussão por voto a favor da conservação da antena, o Guarda-Livros ofereceu-se para emprestar um pequeno aparelho portátil que tinha no seu escritório.
Nesta segunda viagem, os abastecimentos mais necessários foram levados para Más a Tierra. Colocaram-se alguns jantares pré- preparados no congelador. Uma caixa de comida enlatada, que pedi emprestada no armazém do meu supermercado, foi empilhada nas prateleiras dos armários da cozinha. Deixaram-se dois sacos de dormir na arrecadação. claro que será necessária mais comida para cinco pessoas.
O Homem dos Seguros e o Mecânico decidiram fazer mais uma viagem ao local na semana que vem. Nessa viagem vão levar dois carros, e o Mecânico disse que ia pedir emprestado um reboque a um amigo e atrelá-lo ao carro.
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Fizemos uma lista de todas as outras coisas de que iríamos precisar, desde latas extras de gasolina às várias espécies de comida, destinámos o que caberia a
cada um mendigar, pedir emprestado ou roubar, e combinámos a hora a que
iríamos entregar as coisas ao quarto do Mecânico em Santa Mónica.
O Homem dos Seguros contou-nos detalhadamente a sua conversa com a
mulher sobre a questão de passar as férias sozinho em Junho. Inventou uma
grande história sobre dois prováveis clientes, explicando como eles o tinham
convidado para ir pescar durante duas semanas no rio Colorado, e como lhe
não foi possível negar o convite e contrariá-los. Disse à mulher que, durante o
tempo em que estivesse ausente, reservaria quartos para ela e os miúdos num
hotel à beira-mar em Balboa. Ele confessou francamente que isto tinha provocado uma discussão terrível. A mulher passou-lhe uma descompostura por
ele a deixar sozinha com os selvagenzinhos enquanto ele ia beber copos e
andar atrás de miúdas com os amigos. Mas ele mantivera a sua, segundo
disse, mesmo quando ela quis que ele prometesse abreviar a separação por
uma semana. Argumentou que o fazia por ela, porque o facto de vender apólices de seguros a estes novos clientes os ajudaria a pagar as dívidas.
Manteve a sua posição até ela acabar por ceder, graças a Deus.
Cada vez que penso no casamento, e no medo de eu próprio ter esses
conflitos - inevitáveis quando se unem personalidades distintas, de classes
opostas e genes diferentes, e se espera que formem um só todo para toda a
vida -, fico sempre incomodado. Durante os primeiros anos de casamento, a
paixão une.... é também cega. Mas depois, a familiaridade, que ao princípio
origina um esforço, passado pouco tempo origina a satisfação, ou, pelo
menos, uma coisa que já está garantida, e que leva à indiferença. A medida
que o casamento vai passando, os companheiros começam a ter uma visão
mais real da sua desigualdade, e, aí, a guerrilha doméstica transforma-se numa necessidade para se ganhar a sobrevivência de identidade.
Além disso, se olharmos para a questão do casamento em geral, como já o
fiz, vê-se que se tráta de uma instituição social anormal criada pelo homem.
No princípio, não havia uma união tão formalizada como o casamento.
Grupos de homens viviam livremente com grupos de mulheres e criavam os
Seus filhos em comum. Eventualmente, a civilização, tal como a da antiga
Grécia, acabou com a poligamia e a poliandria e substituiu-as pela
monogamia. A formalização do casamento através da respectiva certidão, foi
criada num período em que os homens adquiriam mulheres como se fossem
um bem móvel por compra ou por troca. Sei de homens da tribo africana
Nandi que trocavam quatro ou cinco vacas por uma mulher adolescente.
Bem, a transacção exigia um recibo, e isto serviu de base para a certidão de
casamento dos nossos dias.
De facto, os Hebreus do primeiro século, e depois os Cristãos, exigiam
contratos de casamento. Isto não só aumentava a autoridade da Igreja sobre a
vida das pessoas, como também mantinha uma ordem por que estabelecia os
direitos dos parceiros. Mas os contratos não incluem cláusulas que prevejam
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os sentimentos do marido ou da mulher ao fim de dez ou vinte anos. É certo que, hoje em dia, existe uma cláusula de escape - o divórcio -, mas isso é uma questão que exige burocracia e é geralmente maçadora.
O casamento, hoje em dia, existe numa base de hipocrisia. Como instituição é arcaico. Uma senhora escreveu algures que um contrato de casamento poderia resultar se ninguém esperasse ser modificado por ele. Tal como se apresenta, o casamento significa a rendição à igualdade, e o fim da auto-evolução, uma morte anormal do espírito". Um Russo amigo do meu pai dizia sempre O casamento é o túmulo do amor. Melhor ainda, e
segundo Disraeli disse uma vez Todas as mulheres deveriam casar. mas não o homem. Claro que Disraeli era um apreciador de mulheres.
Podemos desde já imaginar novas formas de vida suplantando o casamento - uniões simples, fáceis, mais livres, sem certificados legais, - voltando ao acasalamento e à vida em comum que existia nos tempos primi tivos. Acho que ainda vamos voltar de novo ao princípio.
Por outro lado, justiça seja feita, há coisas boas sobre o casamento. Já vi casais mais velhos, casados há trinta anos ou mais, que parecem felizes.
Parece que descobriram um segredo, que merece ser trocado por metade da sua independência e mostram total esperança na promessa de que nunca
envelhecerão sozinhos. Conforme o meu professor de antropologia disse uma vez, a maldição mais horrível da velhice é a solidão. No entanto, nunca
conheci uma rapariga com quem sonhasse sequer passar o resto da minha vida. A única mulher no Mundo com quem consigo imaginar passar o resto da minhavida é o Objectivo. Ainda não a conheço, mas, em breve, muito em breve, virei a conhecê-la. Meu Deus, ela poderia transformar a Terra num
Céu.
Como consegui distrair-me com isto?
Voltemos ao trabalho. O bigode do Mecânico está cada vez mais espesso. O meu ainda está ralo, mas a barba cresce bem e o meu cabelo está comprido
como nunca. Cada vez me gozam mais por isso no supermercado, os clientes habituais querem saber porquê. Digo-lhes que vou participar no Vivekananda e nõ Vedanta e que o deixar crescer o cabelo naturalmente coaduna-se com uma melhor consciencialização. Os clientes olham-me como se eu tivesse enlouquecido.
AGENDA DE ADAM MALONE -1 a 7 de Junho
Durante uma reunião na semana passada, apenas a três semanas da partida, o Guarda-Livros, que ultimamente tem estado menos comunicativo, irritou- se a determinada altura por causa duma ninharia e explodiu, refilando pelo trabalho todo que estávamos a ter só por causa de uma coisa tão efémera e transitória como o sexo.
Um dos sistemas filosóficos da Índia (N. do T. )
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Acalmei a situação por me ter lembrado de uma frase de Lord Chesterfield, sobre aquilo a que os homens se sujeitavam para levar uma mulher
para a cama. E para quê?
Disse Chesterfield: "O prazer é momentâneo, a
posição é ridícula, e a despesa abominável .
Todos riram muito e até o Guarda-Livros achou graça.
Acho que a minha contribuição mais valiosa para o empreendimento,
além de ter sido eu a criá-lo, é a de servir de árbitro entre os meus colegas, refreando os choques entre as personalidades, e mantendo todo o empreendimento em perfeito equilíbrio.
Tivemos duas reuniões mais longas na semana passada, ambas no meu apartamento.
O Mecânico, apesar do mau temperamento, da sua grosseria e da sua hostilidade latente para com quase todos os seres humanos, tem dado provas
de ser o membro mais útil e dedicado do Clube de Fãs. A destreza que tem em
adquirir coisas, bem como a sua habilidade manual, são notáveis. Na reunião
do princípio da semana, chegou com um comunicado importante.
Tinha encontrado exactamente a carrinha que nos servia. Através dos
seus conhecimentos no vale, localizou uma carrinha velha e abandonada num
cemitério de automóveis em Van Nuys, um Chevrolet de 1964, de setecentos e cinquenta quilos. Depois de várias horas de labuta, usando o reboque da estação onde trabalhava, rebocou o Chevy abandonado até Santa
Mónica. Estacionando o seu próprio carro na rua, pôde guardar o Chevy na
garagem, fora das vistas. Disse que a carrinha se encontrava em boas condições gerais, que é sólida e tem boa suspensão. Necessitará de uns arranjos,
uma afinação no motor, as substituições normais de bateria e velas, outras
coisas mais, e um jogo completo de pneus extrapesados. Leva duas pessoas
confortavelmente instalados no banco da frente e leva à vontade outras três e
mercadoria na parte de trás que não tem janelas.
- É o género de carrinha vulgar utilizada para entrega de mercadorias e
que não dará nas vistas , disse o Mecânico.
Ele acha que, se dedicar todas as suas horas livres ao seu arranjo,
conseguirá pô-la a funcionar perfeitamente dentro de uma semana, no máximo dez dias.
Os outros três do grupo, que não são mecânicos, concordaram em contribuir para os pneus novos e os sobressalentes que o Mecânico não conseguisse
tirar ao patrão ou retirar de outros carros abandonados.
Como vai estar muito ocupado a dar nova vida à carrinha, o Mecânico
disse ao Homem dos Seguros que deviam considerar a viagem a Más a
Tierra que estava combinada para dali a dois dias como a última antes da
principal. Portanto, os restantes abastecimentos e provisões necessários,
especialmente os que eram em maior número, deviam ser adquiridos imediatamente. Qualquer outra coisa que faltasse seria levada com o Objectivo na
viagem principal.
Da minha parte da lista do mercado, comprei ao preço de retalhista uma
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série de conservas, fruta e vegetais enlatados, bolachas de água e sal, queijos tratados em frascos. À última hora, decidi juntar uma embalágem de ovos, e, quando o gerente se ausentou, consegui meter três caixas de bebidas, cerveja e refrescos no meu carro. Fui deixar tudo isto à casa do Mecânico. Claro, o Guarda-Livros, como era adepto da comida especial vitaminada, tinha feito as suas próprias compras. Num armazém de comida orgânica, do qual é cliente,
commprou para seu próprio consumo um pequeno fornecimento de pão de trigo, iogurte, chá de ervas, damascos secos, soja assada, bem como ervilhas secas, algumas batatas, abóbora, nabos e maçãs, criados em quintas que usam fertilizantes naturais. Em minha opinião, cada qual come do que gosta.
Outra coisa sobre a primeira reunião. Consultei um livro sobre Alphonse Bertillon, director dos Serviços de Identificação da Súreté Francesa em Paris entre 1882 e 1914. Nele, Bertillon explicava a sua invenção da antropometria, que é um sistema de medidas do corpo e da cara das onze feições inalteráveis de um criminoso. Aplicando a minha própria variação neste sistema, medi a cabeça e as feições do Guarda- Livros e do Homem dos Seguros. Com a ajuda de uma fita métrica e compassos tirei as medidas exactas do crânio, sobrancelhas, nariz, e do queixo de ambos. Eles pensaram que eu estava completamente maluco quando levantei esta questão, até que lhes expliquei as minhas razões para o fazer. Achei que não era conveniente serem eles a comprar os postiços que iam usar, seria melhor ser eu a comprá-los, e, para arranjar cabeleiras ou capachinhos, suíças e bigodes que parecessem verdadeiros, eu tinha de ter essas medidas.
O Mecânico e eu tínhamos deixado crescer as nossas próprias fantasias, alterando a nossa aparência com a cobertura facial que se achava agora completamente desenvolvida. Mas visto que os outros dois não o poderiam fazer devido à existência das respectivas mulheres e crianças que começariam logo a fazer perguntas, achei que deveriam usar cabelo postiço que lhes servisse à medida para não os incomodar. Para sua vantagem, viram a lógica desta ideia e cooperaram.
Também concordámos mais uma vez que na presença do Objectivo, e mesmo sem ser na sua presença (para nos habituarmos e não nos enganar mos), não nos trataríamos pelo nosso verdadeiro nome, nem sequer pelas alcunhas, nunca utilizando, por perigoso, o primeiro nome ou o apelido uns dos outros. Sugeri que não nos tratássemos por nome nenhum, mas se isso nos incomodasse, especialmente quando precisássemos de chamar a atenção uns dos outros, utilizaríamos as iniciais das designações que utilizei nestes apontamentos. Portanto, o Mecânico deverá ser sempre o Sr. M, o Homem dos Seguros seria o Sr. S, o Guarda-Livros seria o Sr. G, e o Escritor seria o Sr. E. Este capítulo ficou em aberto para discussões futuras.
A segunda reunião prolongada, há dois dias, foi animada pelo relatório
final sobre a situação em "Más a Tierra". O Mecânico e oHomem dos Seguros, guiando cada um o seu carro, o primeiro levando o reboque em prestado carregado com a última carga de abastecimentos, fizeram a viagem
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por uma outra auto-estrada sem contratempos. Chegaram ao local de
transferência exactamente em 2horas e 20minutos. Descarregaram os
abastecimentos e fizeram três viagens de ida e volta com o jipe entre aquele
local e o destino. Levaram a comida e as bebidas para a cabana, encheram completamente o frigorífico e puseram o resto nas prateleiras.
Também arrumaram uma série de coisas desde toalhas extras, sabão,
utensílios de cozinha, o aparelho portátil de televisão do Guarda-Livros, a
caixa de primeiros-socorros, e até lençóis limpos, uma almofada nova e
cobertores que eu tinha comprado para a cama de casal no quarto principal, o
que ia ser usado pelo Objectivo.
No meu próprio pensamento referia-me à cama dela, à melhor que havia
na cabana, àquela que tínhamos designado como A Cama Celestial. Descobri
esta expressão quando li um artigo sobre Emma Lyon, que veio a ser Lady Emma Hamilton e que, em 1798, se tornou amante do Lord Horatio Nelson.
Na sua juventude, Lady Hamilton foi considerada a mulher mais bonita de
Inglaterra, talvez como a actriz Sharon Fields é considerada actualmente a
mulher mais bonita do Mundo. Aos dezoito anos, Emma Hamilton tinha trabalhado para um curandeiro, o Dr. James Graham, que alugava o que
chamava uma cama celestial aos homens que desejavam rejuvenescer. Por
cinquenta libras por noite, o doente tinha autorização de se deitar à vontade
nesta supercama, apoiada em vinte e oito pilares de vidro e coberta por uma
abóbada ornada, enquanto uma Emma Hamilton nua executava danças eróticas em volta. Sempre fui da opinião que era a Emma, e não a cama, que fazia
o rejuvenescimento. De qualquer modo, quando imagino a cama em Más a
Tierra na qual o Objectivo, há tanto desejado, em breve se deitará, só posso
pensar nela como A Cama Celestial. Nunca acreditei no Céu, mas penso que
aquela cama me vai converter.
Chega de divagações.
Segundo o relatório do grupo que foi ao local, eles dedicaram muitas
energias à segurança do quarto principal, o que inclui terem retirado uma
fechadura velha da porta e instalado uma nova, fechando as duas portas de
ferro do lado de fora.
Partiram de Más a Tierra a meio da tarde, depois de terem feito uma
vistoria completa e estarem seguros de que tudo estava em órdem para a grande chegada.
Encheram o depósito de gasolina do jipe, e esconderam-no entre a densa
folhagem fora da estrada da montanha. Em seguida, cada um no seu carro,
regressaram a Los Angeles. O Mecânico fez o trajecto de regresso em 2horas
e 35minutos. O Homem dos Seguros, que não vinha carregado com reboque, fê-lo em 2horas e 10minutos.
Estou a tentar lembrar-me dos outros assuntos discutidos nessa reunião de
há dois dias. Sim, uma questão que tinha ficado por resolver. Um pouco
contrariado, o Guarda-Livros mostrou três postais ilustrados, onde se viam a
Casa Branca, o Capitólio e o Instituto Smithsoniano neles tinha escrito as
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mensagens de saudade à mulher e nos quais colocara demasiados selos de via érea. Timidamente entregou-os ao Mecânico, com duas notas de 20 dólares e uma de 10, para serem enviados à rapariga em Baltimore, que, por sua vez, iria enviá-los da capital à sua mulher em três datas diferentes, entre 23 e 30
de Junho.
Da minha parte, informei-os dos resultados da minha terceira semana consecutiva no posto de observação. As informações que dei não tinham alterações nenhumas, quer em relação ao que tinha observado nas duas semanas anteriores, quer em relação às minhas primeiras observações rnegulares. Ela deu os seus passeios matinais pontualmente, como de costume. Os jardineiros apareceram como de costume. O carro de patrulha veio e partiu como era usual. Tomei nota de um visitante em quem não tinha ainda reparado, o carteiro. Veio todas as manhãs, nunca antes das onze horas e só uma vez mais tarde, às 11, 50. Falou para o intercomunicador à frente do poste, e os portões abriram-se automaticamente. Guiando a sua carrinha dos Correios, entrou na estrada da propriedade, aos solavancos, até chegar à "hacienda" principal, onde uma mulher de meia-idade (provavelmente a governanta) pegou no monte de correio que ele lhe entregou. Durante a mesma semana, entraram na propriedade cinco carrinhas de distribuição - todas depois das 9 horas - e outros membros do clube acharam que isto lhes era favorável visto ser hábito haver carrinhas de distribuição na propriedade. Uma das carrinhas era de entrega de águas da Puritas, outra de um mercado em Beverly Hills, outra de uma firma de canalizadores, outra do Serviço de Mensagens Red Arrow, e ainda outra do American Express.
No final da nossa reunião, excitei os outros ao ler-lhes em voz alta uma pequena notícia que tinha aparecido na primeira página do Daily Tariety da quela manhã. Revelava que o filme A Cortesã Real se tinha estreado em seis das cidades principais do país ultrapassando todas as receitas de bilheteira. Terminava confirmando que a estrela, Sharon Fields, se preparava para partir de Los Angeles e, segundo dizia o Variety, voaria até Londres no dia 23 de Junho para fazer a promoção do seu último filme .
Ontem, tendo estado de folga à tarde - havia trabalhado no turno da noite no mercado - e demasiadamente estimulado por aquilo que nos espera para me poder concentrar na arte de escrever, fui comprar os disfarces para o Guarda-Livros e para o Homem dos Seguros. Gastei quatro horas, porque comecei mal. Não sei porquê, comecei por entrar em várias lojas de novidades e de brinquedos para crianças - lembrei- me de quando era miúdo e ia com a minha mãe a esses sítios antes do Carnaval ou qualquer festa de mascarilhas.
As cabeleiras e bigodes que vendiam eram de má qualidade, realmente inacreditável, e geralmente fabricados para que a pessoa ficasse com aspecto cómico.
Depois disso, mudei de táctica. Peguei nas Páginas Amarelas e procurei os sítios mais indicados - a Loja Mágica de Houdini em Hollywood, a Companhia de Fantasias do Oeste, o Salão de Cabeleireiro Beau em Beverly
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Hills. Telefonei para cada um deles, dizendo-lhes que estava encarregado da
produção de um anúncio para a Televisão e descrevi-lhes os artigos que
necessitava para a maquilhagem. Isso foi o abre- te, sésamo, como se
costuma dizer. Esvaziei a carteira a fazer compras nos três fornecedores - é
evidente que serei reembolsado -, mas consegui comprar o que realmente
queria, autênticos disfarces com as medidas certas. Claro que me disseram
que só poderiam ficar bem colocados se a própria pessoa lá fosse, mas respondi que os meus actores estavam demasiadamente ocupados para irem lá.
Por 60dólares comprei um capachinho maravilhoso com a cor exacta
para a careca do Guarda-Livros, bem como um pequeno bigode com alguns
cabelos cinzentos. Arranjei para o Homem dos Seguros umas suíças bestiais e
um soberbo bigode retorcido à guarda-granadeiro, por 50dólares. Também
lhe comprei uma tinta da melhor qualidade para tingir temporariamente o
cabelo. Como vai tingir para mais escuro, aplica-se só uma vez e é simples de
fazer. A cor é garantida por três semanas, se o cabelo não for lavado muitas
vezes. Portanto isso está resolvido, e estamos preparados para as transformações. Estamos quase prontos. Quase nem posso acreditar.
AGENDA DE ADAM MALONE - 8 a 14 de Junho
Não há precauções que cheguem para satisfazer o Guarda-Livros. A sua timidez explode devido a ter estado tanto tempo em gestação. Continua a preocupar-se com o facto de ainda haver muitos riscos. Por fim, citei- lhe uma frase do Marquês de Halifax Aquele que não fizer nada ao acaso fará poucas coisas mal, mas poucas fará".
Isto parece ter-lhe causado um efeito saudável.
Tivemos mais duas esgotantes e curtas sessões aqui, no meu apartamento. Recapitulámos tudo passo a passo, só para nos certificarmos de que não tinhamos falhado em nada todos os imprevistos pareciam eliminados.
Houve um debate sobre se era necessário fazer ou não mais uma visita preliminar a Más a Tierra . No fim, chegámos à conclusão de que não havia mais nada a fazer lá, só faltando ocupar a cabana.
O Homem dos Seguros fez-nos um esboço dos quartos da cabana. Decidimos onde e em que dias dormiria cada um. Até dividimos os afazeres da cozinha.
Li o meu penúltimo relatório sobre as actividades que observei no posto habitual, ao cimo da Stone Canyon Road. Mais uma vez, não tinha nada de novo ou que merecesse ser mencionado. O Objectivo adere ou compulsivamente ou por uma questão de religião aos seus exercícios matinais em contacto com a natureza. Estava sempre belíssima, fico sempre com a sensação de ter perdido qualquer coisa quando ela desaparece para dentro de casa. Os jardineiros, o carteiro e o carro-patrulha apareceram tão pontualmente como antes, não consigo prever quaisquer surpresas.
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Entreguei aos meus dois colegas casados os disfarces que lhes havia comprado, que me reembolsaram e experimentaram as cabeleiras postiças. O Homem dos Seguros ficou simplesmente formidável com as suíças um pouco compridas e o bigode caído. A única diferença residia no cabelo postiço que era mais escuro do que a cor natural dos seus cabelos. Garanti-lhe que ficaria bem quando aplicasse a tinta, o que ele prometeu fazer assim que saísse de casa e entrasse em acção.
Por outro lado, o Guarda-Livros ficou perfeitamente cómico quando o ajudámos a colar o bocado de cabelo despenteado e o bigode. Parecia um inofensivo Adolf Schickgruber, se é que se pode imaginar tal coisa. De qualquer modo, foi preciso dominar-me ao máximo para não rir, especialmente porque
o Mecânico fazia troça dele sem piedade. Contudo, pude verificar que o Guarda-Livros estava a gostar da ideia de a sua careca se achar tapada com cabelo, passando o tempo a levantar-se e a admirar-se ao espelho. O bigode do Mecânico é eriçado, rebelde e espesso fazendo-me lembrar
August Strindberg, mas mais feroz; não pode realmente comparar-se à pessoa que conheci no bar do boruling. O meu próprio aspecto, se é que o
posso dizer, é um pouco samsoniano, o que me dá uma certa aparência de grande força o bigode é um pormenor um pouco triste, um semicírculo para baixo, mas a barba castanho-escura já está crescida, a tal ponto que a tive de aparar um pouco durante a semana.
Já tive de aturar muitas chatices no mercado por causa do meu chamado aspecto de anarquista-revolucionário. Uma noite, a Plum veio comprar leite e, a princípio, não me conheceu. Mas quando me aproximei dela é que finalmente me reconheceu, mal podendo acreditar no que via. Ficou encantada com a minha nova flora facial.
Disse aos outros que tinha avisado o gerente de que deixava o emprego a 15 de Junho e ia até ao Este ver a família. O que significa que esta será a minha última noite na firma. Penso que terei de novo o emprego quando voltar, mas não sei se quero realmente voltar para o supermercado. Acho que essas duas semanas fora me vão dar inspiração suficiente para me permitir escrever todo o dia. Depois, talvez crie material suficientemente bom para conseguir vendas que me dêem rendimentos quando acabar o dinheiro que presentemente possuo.
O Mecânico disse que não ia assim tão bem com o seu patrão, o dono da estação de serviço. Pedira duas semanas de férias, e ele tinha-lhe feito a vida negra, dizendo que ele ia embora quando estava mesmo a começar a época turística e quando a estação devia ter mais trabalho do que nunca. Mas ele não desistiu e, por fim, o patrão deu-lhe as duas semanas de férias de má vontade, mas só lhe pagando uma. Ele ficou furioso, mas não insistiu.
Nós sabíamos que o Objectivo precisava de tomar determinado tranquilizante para aliviar a tensão ou para conseguir dormir. O Guarda- Livros tinha prometido arranjar os comprimidos prescritos, e trouxe- os aquando da nossa segunda reunião. Encontrou um frasco quase cheio de Nembutals no
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armário de medicamentos da mulher, tirara vinte comprimidos, transferindo-os para um frasco de plástico vazio, e entregando-os, em seguida, a
nós. Informei os outros de que tinha encomendado o clorofórmio, a seringa
hipodérmica, e o Sodium Luminal (que, viemos a saber, era um Nlickey Finn
perfeito) aos meus amigos em Venice, e que esperava recebê-los brevemente.
O Mecânico informou que ainda andava às voltas com a carrinha Chevy
que estava a restaurar, mas que em breve acabaria. Na manhã seguinte iria levantar uns pneus encomendados à medida.
Ontem, fiz sozinho uma coisa que não disse aos outros. Pensei em todas
as maneiras de fazer amor com ela, e, de repente, lembrei-me de que ela precisava de uma protecção qualquer. Era o mínimo que podíamos fazer, pois
ela, quando a raptássemos, não ia adivinhar, e talvez não estivesse preparada.
Estava um pouco preocupado com a ideia de comprar anticonceptivos para
mulheres, e entrei e saí de duas farmácias sem ter pedido nada. Depois, passei
por uma onde vi uma rapariga atrás do balcão, com ar simpático, moderno e
amigável, e pensei tentar a minha sorte com ela. Inventei uma razão para
explicar porque é que a minha namorada não tinha podido vir fazer a compra e
me tinha pedido para comprar o que fosse melhor para ela. A rapariga atrás do
balcão foi compreensiva e colaboradora, dizendo-me:
- Olhe, eu conheço essas situações. Dar-lhe-ei tudo o que quiser. Que
acha que ela prefere? Se for um esterilete, tem de ser um médico a colocá-lo e
a mostrar-lhe onde está o fio, portanto o melhor é nem pensarmos nisso.
Depois, temos o diafragma, mas há-os de medidas diferentes e é melhor ser o
médico a recomendar qual o tamanho, e mostrar-lhe como deve pôr um
espermicida e meter o diafragma, meia hora antes de ter relações. Quanto à
pílula, há várias marcas e é necessário uma receita médica, mas eu não sou de
burocracias, portanto, se quiser a pílula, eu vendo-lhe uma embalagem. Mas
lembre à sua namorada que a deve tomar oito dias seguidos antes de tentar ter
relações sem preocupações. Recomendo que dê à sua amiga um pouco de KY,
que é uma gelatina estéril e lubrificadora. Será muito mais agradável para ela e
mais simples para si. "
Não fazia a mínima ideia do que devia comprar, por isso acabei por
comprar um pouco de tudo. A rapariga vendeu-me um tubo de espermicida, e
deu-me uma embalagem de pílulas anticoncepcionais, quanto ao diafragma e
jogando pelo seguro, comprei três tamanhos diferentes, 65, 75, 85- meu Deus, só de pensar nisto, à medida que vou escrevendo, fico excitado.
Também comprei a gelatina lubrificadora e acabei por comprar um saco de
douche.
Seguidamente, como estava preocupado com os oito primeiros dias,
dirigi-me a outra farmácia, no outro lado do quarteirão, e comprei três dúzias
de preservativos.
Quando regressava ao meu apartamento, não consegui resistir a uma
extravagância. Ao passar por uma loja de roupas de senhora, vi uma camisa
de dormir exposta na montra. Nunca tinha visto outra igual. Era, soube
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depois, uma camisa de dormir estilo minitoga, de nylon branco transparente, com aberturas laterais. Era de facto provocadora. Como conhecia as medidas do Objectivo, entrei e comprovei que a loja tinha uma que lhe serviria. Imaginei-a deitada na Cama Celestial, tendo-a vestida. Comprei-a imediatamente para lha oferecer como prenda de admirador ardente e seu amante secreto de longa data.
Antes de nos separarmos depois da segunda reunião na semana passada, lembrei-me de que havia um assunto que ainda não tinha sido ventilado nem resolvido. Perguntei ao Mecânico se ele já tinha determinado o melhor trajecto final até Más a Tierra para o grande dia. Ele respondeu afir mativamente, e que tencionava trazer uma série de mapas de auto-estradas para recapitular connosco o trajecto, mas que se tinha esquecido deles. Contudo, disse que isso não era importante, visto que conhecia o caminho sem precisar deles.
No entanto, o Homem dos Seguros insistiu no assunto, dizendo que era importante.
- Se vai você a guiar - frisou ele - e lhe dá uma cãibra ou qualquer coisa, um de nós tem de estar preparado e conhecer bem o caminho para o substituir e pegar no volante.
Portanto, o Mecânico, que nunca é muito delicado, concordou de má vontade em trazer os mapas na semana seguinte para nós os vermos.
Daqui resultou o tema para a semana seguinte, a nossa última semana completa na cidade, antes de nos lançarmos na nossa inacreditável aventura. Falámos sobre isso e combinámos reunirmo-nos mais duas vezes entre 16 e 22 de Junho. Concordámos em que todos os pormenores tinham sido considerados e estavam sob controlo, mas que seria sensato ter mais uma reunião na quarta-feira, dia 18, só para rever os nossos procedimentos pela última vez e certificarmo-nos de que não havia falhas. E concordámos também em ter uma última reunião do Clube de Fãs muito curta, na noite anterior ao grande dia, só para levantar o moral e celebrar pela última vez.
O Mecânico telefonou-me agora, quando eu acabava de escrever esta última frase. Sentia-se muito satisfeito e orgulhoso de si mesmo, pois tinha acabado de arranjar a carrinha, de colocar os pneus, e havia ido dar uma volta até Malibu Canyon e voltado. Andava que nem um Rolls- Royce. Dei-lhe os parabéns, e lembrei-lhe que pintasse o nome de qualquer firma fictícia nos dois lados do veículo. Divergimos sobre qual seria o nome, mas ele acabou por concordar com a minha ideia inicial, de pôr um nome conservador nos dois lados da carrinha indicando um serviço de controlo de insecticidas inofensivos. Prometeu pintar as letras esta tarde.
Agora vou até Venice encontrar-me com os meus amigos para ver se eles já arranjaram o que lhes encomendei e também para dar umas fumaças com eles. O melhor é ver se têm um bocado de erva de boa qualidade a mais. Por aquilo que sei, o Objectivo é capaz de estar habituado e gostar de enrolar alguns de vez em quando.
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Mais à tardinha. Acabo de regressar de Venice. Consegui, consegui tudo o que precisávamos - frasco de clorofórmio, duas seringas hipodérmicas novas em pacotes esterilizados, agulhas para usar e deitar fora, quatro ampolas de 0, 13de Sodium Luminal que eles sacaram da clínica e dois frascos de erva da boa, já tratada. Estou a ler os apontamentos que tenho no meu bloco sobre como se deve utilizar a agulha hipodérmica, e ainda me cùsta a crer que
de amanhã a uma semana ela será utilizada. Continuo a pensar no que acontecerá depois disso, quando ela acordar e nós conseguirmos comunicar
com ela, e na noite de 23 de Junho, ela e eu na Cama Celestial, e, Deus, como a amarei e como me amará. Serei o homem mais feliz. Quantas pessoas poderão dizer que viram os seus sonhos realizados?
AGENDA DE ADAM MALONE -15 de Junho a.
Nada mais. Nada mais posso escrever. Hoje é segunda-feira, dia 16, e surgiu uma emergência terrível. Terrível Telefonei aos outros urgentemente e estou aqui sentado, à espera deles.
CapÍtulo Quinto
Adam Malone, com a cabeça a latejar, está sentado na beira da cadeira, junto da mesa no seu apartamento, olhando fixamente o telefone à sua frente, à espera que este toque.
Pela primeira vez, durante todas estas semanas, havia perdido a compostura.
Todas as contingências possíveis haviam sido previstas. menos uma. E agora, como um raio, o imprevisto e o inesperado haviam acontecido.
Tinha acontecido às onze horas e dezasseis minutos nessa segunda-feira, de manhã, quando ia a sair de Bel Air para almoçar rapidamente em Westwood. Passara toda a manhã escondido no seu posto de observação, de binóculo nos olhos, estudando tudo o que se passava na propriedade de Sharon Fields lá muito em baixo, apontando de vez em quando qualquer coisa que achava de mais interesse.
Então, pouco depois das onze horas, como não havia tomado o pequeno-almoço devido à pressa de chegar ao seu posto, no cimo do monte, a tempo de ver o passeio matinal de Sharon, começou a sentir o estômago a dar horas. Decidiu que podia arriscar-se a sair do seu posto de observação, durante hora e meia, para se recompensar com uma salada fresca e um
hamburger suculento antes de voltar para a sua vigília solitária. Bem, lá ia ele, ao volante do seu automóvel, com o rádio na estação de
noticiário nas vinte e quatro horas do dia, a descer Bel Air ao encontro do seu almoço, quando aquilo aconteceu.
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Levou o carro para a berma da estrada, carregou nos travões a fundo, escutando atentamente a rádio, pegou em seguida, e rapidamente, no seu bloco de apontamentos e anotou tudo quanto ouvira.
O almoço já estava fora de questão. O vazio provocado pela fome que sentia no estômago foi instantaneamente substituído por um nó de pânico. O imprevisto tinha surgido e o futuro e sucessos do empreendimento há tanto tempo preparado vacilavam à beira do desastre.
Malone tinha largado o travão, virara o carro de novo para a estrada e saíra disparado de Bel Air para o Boulevard Sunset. Mas, em vez de se dirigir
a Westwood, seguira directamente para o seu apartamento em Santa Mónica.
Assim que chegou à sala de estar, visivelmente perturbado, fechou a porta e dirigiu-se para o telefone.
O seu primeiro telefonema, apressado, tinha sido para Kyle Shively na estação de serviço. Atendeu-o outra pessoa, mas Shively apareceu na linha logo a seguir.
- Kyle, fala Adam, aconteceu uma coisa - disse ele, sem fôlego. - Isto é uma emergência muito importante que poderá afectar os nossos planos. Tenho de o ver, a si e aos outros dois, imediatamente. Não, não posso falar sobre isto ao telefone. Não pode sair durante a hora do almoço . Em minha casa? Estou cá. Fico à espera.
Depois, ligou para o escritório de Hóward Yost. Ouviu o sinal de interrompido duas vezes, mas à terceira Malone conseguiu ligação. Tinha atendido a secretária de Yost. Ele identificou-se como sendo um amigo íntimo de Yost e pediu para lhe passar a chamada.
A secretária tinha sido enlouquecedoramente lânguida.
- Lamento imenso, mas ele raramente está cá a esta hora, sabe? Está numa reunião fora, e, depois, penso que tem um almoço. Se ele me telefonar entretanto, eu.
- Olhe, minha senhora, aqui não há ses . Isto é uma emergência, percebe? e tenho de falar com o Sr. Yost antes do almoço. Faça o favor tente localizá-lo, onde quer que ele esteja, e diga-lhe que telefone para Adam Malone imediatamente - o que quer dizer já. Ele tem o meu número.
-Vou fazer os possíveis.
Frustrado, Malone pousou o auscultador, desligou, levantou o dedo até ter de novo linha. A seguir, ligou para Leo Brunner e escutou o retinir incessante cada vez mais impaciente.
Para seu espanto, o próprio Brunner atendeu o telefone.
- Ah, é você, Adam? Ia sair agora mesmo.
-Esqueça tudo o que tem para fazer, Leo. Surgiu uma emergência e tenho de o ver. Já telefonei aos outros, vamos reunir-nos aqui, ao meio- dia.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Brunner, apreensivo.
-Conto-lhe quando cá chegar. Vem?
- Sim, estarei aí ao meio-dia.
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Agora, Malone estava sentado a olhar para o telefone silencioso, rezando para que ele tocasse.
Passados dez minutos, impacientou-se, procurou o livro de apontamentos, que usava como diário semanal. Distraído, inscreveu a data do
início da semana, começou a escrever uma introdução, mas apercebeu-se de que estava a perder tempo, porque poderia não ser esta a semana.
Ao ouvir o telefone, largou o lápis e pegou no receptor.
- Adam. Fala Howard. A nossa secretária telefonou e....
- Bem sei, Howard. Ouça, tenho a certeza de que ela lhe disse que eu precisava de vê-lo imediatamente. Surgiu uma coisa muito grave.
- Não pode esperar? Tenho o dobro de entrevistas esta semana para poder tirar quinze dias de férias. Tenho um almoço de negócios....
- Cancele-o - interrompeu Malone. - Os outros estarão aqui ao meio-dia, aliás devem estar a chegar. A não ser que esteja cá, para podermos
arranjar solução para um obstáculo que se pôs no nosso caminho esta manhã,
bem, não haverá aquelas duas semanas nem para si nem para nenhum de nós.
-Está nesse pé?
- Tal e qual. Talvez possamos ainda consegui-lo. Mas tem de ser uma
decisão do grupo. E temos que decidir já, o factor tempo está em jogo,
Howard. Portanto cancele a entrevista e venha cá.
- É como se já tivesse cancelado. Vou a caminho.
Oito minutos mais tarde, Shively foi o primeiro a aparecer. Passados cinco
minutos, entrou Brunner, muito preocupado. Ambos queriam saber o que se
passava, mas Malone pediu-lhes para serem pacientes até à chegada de Yost,
a fim de não ter de repetir a história.
- Bem, enquanto esperamos por aquele grande fala-barato - disse Shively -, porque não preparo umas sanduíches? O que é que tem que se coma, Adam?
- Há alface e tomates no frigorífico - disse Malone. - Também há
umas salsichas e dois ovos cozidos. Há pão de trigo, fresco, na parte de cima.
- Que querem, pá?
- Qualquer coisa - disse Brunner. - Excepto.... carne, não.
- Eu também não - disse Malone, de olhos fixos na porta.
Dez minutos mais tarde, quando Shively estava a servir as sanduíches em
pratos de papel, deixando uma de parte para o colega atrasado, bateram à
porta. Rapidamente, Malone deixou entrar Howard Yost, sem fôlego e cheio de curiosidade.
Agradecendo, com indiferença, o prato que Shively lhe tinha dado, Yost
afundou-se na cadeira de couro e deu uma grande dentada na sanduíche.
- Vá lá, Adam, qual foi o grande obstáculo que surgiu? Que aconteceu?
- Mesmo há bocado, quando vinha a sair de Bel Air, tinha o rádio do
carro sintonizado na estação de noticiário - disse Malone. - Ao terminarem
com um resumo do noticiário nacional, ligaram para uma correspondente
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que é a editora da secção de espectáculos da estação. Ela anunciou.... isto é que me atingiu em cheio....
Pescou o livrinho de notas do bolso do casaco, abrindo-o. - Anotei tudo o
que ela disse, em primeira mão, palavra por palavra - informou.
- Última hora, para todos os fãs de Sharon Fields - anunciou ela.
- A imprevisível Sharon Fields fê-lo de novo. Devia partir para Londres na
sexta-feira, vinte e quatro de Junho, para comparecer na capital britânica àcerca do seu último filme épico, A Cortesã Real, e para conseguir,
segundo disse, um longo e bem merecido repouso. Até lá, ela deveria ficar
por aqui cooperando com a Aurora Films na promoção americana do seu
atractivo filme. Mas agora, como habitualmente, a excêntrica Sharon estragou
completamente os planos do estúdio. Recebemos esta manhã um exclusivo,
por um dos seus associados, segundo o qual Sharon tenciona
escapar-se de Los Angeles muito mais cedo, e voar já até à cidade de Londres.
De acordo com a nossa fonte secreta de informações, ela partirá na próxima quarta-feira, de manhã, dezanove de Junho. As perguntas que flutuam no ar são:
Porquê esta súbita alteração de planos? Porquê esta impulsiva partida
cinco dias antes da data planeada por ela e pelo estúdio? Só temos uma resposta, e as suas razões são Roger Clay. Parece que o romance atribulado
está de novo a aquecer. Bon voyage , querida Sharon!
Malone ergueu os olhos, com expressão tensa. O seu olhar passou do rosto carregado de Shively ao confuso de Yost e ao de Brunner, inexpressivo.
- Isto foi o que ouvi há uma hora - afirmou Malone. - Vem estragar por completo o nosso programa.
- Um momento, deixe-me recapitular - disse Yost, tentando engolir, com a boca cheia de comida.
- Quer dizer que a nossa miúda vai partir daqui a três dias, e não de amanhã a uma semana?
Malone abanou a cabeça.
- É isso mesmo. O que significa que, de repente, temos de apressar tudo,
o nosso programa de acordo com o que aconteceu, ou o projecto vai
todo por água a baixo. Quanto a mim, sou flexível, posso ajustar- me. Estou
preparado para me adiantar cinco dias. Era por vocês que eu estava preocupado. Por isso é que os tinha de reunir o mais depressa possível, porque, se
vamos levar isto avante, não temos tempo a perder.
Yost estava a falar hesitantemente, quase murmurando.
- Ela parte dentro de três dias, o que significa que temos de a raptar depois de amanhã.
- Certo, quarta-feira, de manhã - concordou Malone.
Vagarosamente, Yost pousou o seu prato de papel, vazio.
- Escutem, sempre fomos honestos uns com os outros não é altura de
deixarmos de o ser. No entanto, e falando por mim.... não sei
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como conseguirei alterar os meus planos. Tenho uma série de reuniões de trabalho marcadas para o resto da semana. Já tinha planeado despachar a minha
mulher e os miúdos neste fim-de- semana. Agora, tenho que pôr isso tudo de parte e ir embora depois de amanhã? Já passei um mau bocado a convencer a minha velhota a largar-me daqui a uma semana. Mas, depois de amanhã, de manhã, sem mais nem menos . Ela fica histérica.
- Conversa - exclamou Shively. - Você sabe que isso é conversa, Howie.
- Que quer dizer?
- Você é suficientemente esperto para inventar qualquer coisa para se safar esta semana em vez de na próxima. Inventou essa grande aldrabice da história com os dois clientes para de amanhã a uma semana, portanto, agora
só tem que dizer que os filhos-da-mãe dos ricos decidiram partir depois de amanhã. Pode convencê-la. Eu alinho aqui com o Adam, eu safo-me. Concordo em que se rapte a Sharon na quarta- feira, de manhã.... e lá vamos:
- Não, Shiv, espere, sejamos razoáveis - pediu Yost. - Talvez seja simples para si, deixar o seu patrão, sem mulher nem filhos para o preocuparem, mas, o Leo e eu, nós temos outras pessoas à nossa responsabilidade, além dos nossos negócios.
Hesitou e depois continuou.
- Olhe, não estou a propor que cancelemos o projecto. Só estou a sugerir que o adiemos por algum tempo. Sabemos que ela regressará em breve. Não há razão nenhuma para não esperarmos e o retomarmos quando.
Malone interrompeu.
-Duvido muito que o retomemos. Tenho mesmo a certeza de que se desmantelaria. Agora, estamos todos entusiasmados.
- Renovaríamos o mesmo entusiasmo daqui a um ou dois meses - insistiu Yost. - É mais fácil atrasar ou adiantar o nosso plano do que mergulhar de repente de cabeça num empreendimento arriscado sem que estejamos
completamente preparados.
- Mas nós estamos preparados, o mais preparados possível - replicou Malone. - Nada mais temos a planear ou a preparar. Está tudo estudado: decidido. Estamos tão preparados para fazer isto depois de amanhã, amanhã, como daqui a uma semana.
Yost recusava-se a desistir.
- Psicologicamente, Adam, é o que eu quero dizer. não estamos psicologicamente preparados. - Olhou em volta procurando um aliado. Não acha que eu tenho razão, Leo?
O aliado apareceu finalmente.
- Concordo consigo em absoluto, Howard - respondeu Brunner. Não gosto de me lançar num plano em que as regras se modificam de um dia para o outro. Seria um erro. Sim, estaria psicologicamente errado.
Shively levantou-se de repente, perdendo completamente a razão. - Que se lixe esta história do psicologicamente errado. A única
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alteração que houve foi que vocês tiveram um ataque de cagaço. Estão os dois a tentar escapar-se à última hora. Admitam!
Inexplicavelmente, todas as cabeças se viraram para Brunner. O guarda- livros estava sentado, muito direito, com o nariz a tremelicar, os óculos a andar levemente para cima e para baixo, a careca a mostrar as primeiras gotas de transpiração.
- Então, Leo - perguntou Shively -, não o quer admitir? Brunner mexeu-se, incomodado.
- Seria. seria um louco se não fosse franco com vocês numa. numa crise como esta. Nós. estivemos demasiado unidos nestas últimas semanas para admitir agora evasivas. Sim, durante o fim-de-semana, quando senti que
nos aproximávamos da data, tentei reprimir as minhas dúvidas, tentei concordar com vocês, porque. bem, como poderei explicar? Porque, suponho, me parecia demasiado, parecia irreal, como uma espécie de sonho maravilhoso, uma fantasia que tinha dado prazer especular, mas que não podia e não viria a realizar-se. Mas quanto mais interpretávamos essa fantasia, mais comecei a perceber que vocês estavam a levar a coisa a sério, que iam mesmo fazê-la.
- Você soube sempre que a estávamos a levar a sério - disse Malone, calmamente. - Tinha que saber. Passou-se à frente dos seus olhos, até cooperou. Podia ver o que estávamos a fazer. O esconderijo na cabana, os abastecimentos, a carrinha, os disfarces. Isso não era real para si? Brunner suspirou.
- Sim, bem sei, Adam. Ao mesmo tempo nunca os encarei como os meios de atingir uma realidade. Era como se fossem brinquedos e isto fosse um jogo, um div ertimento, uma espécie de relaxamento, que nada tinha a ver com a vida de um adulto. Até este momento, todas as nossas conversas sobre o projecto, o planeá-lo, o sonhar com ele. bem, mais parecia um escape, uma história de detectives e sexo a fingir. Compreendem?
Ninguém respondeu.
Brunner tentou sorrir para os conquistar, para lhes fazer compreender que continuaria a ser amigo deles. Procurou mais justificações.
- O que eu quero dizer é que me deixei levar por isto por desporto, por prazer, e gostei da irmandade que surgiu das nossas reuniões. Mas, por qualquer razão bem cá do fundo, sabia que nunca se realizaria, que não podia acontecer. Quero dizer, nunca deixei de pensar que éramos homens maduros. Somos homens respeitáveis, sempre nos comportámos como pessoas normais. Cumprimos as leis, pagamos impostos, ganhamos a vida hones tamente, vivemos vidas calmas e decentes. Não somos do estilo dos que cometem actos de violência. Não somos do género dos que raptam actrizes de cinema famosas e tentam prendê-las e seduzi-las. não, pessoas como nós, não. Mas, isso seria loucura. Eu. eu tencionava falar sobre isto na nossa próxima reunião, mas ainda bem que pôde ser hoje. - Mais uma vez os seus olhos a piscar procuraram a compreensão dos outros. -Certamente que
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compreendem. Falar sobre um projecto destes é uma coisa, tentar realmente realizá-lo é loucura.
Shively dirigiu-se a Brunner, de punhos cerrados, ameaçadoramente. Rodeou o contabilista com fúria incontrolável.
- Merda, não somos loucos.... você é que é, você é que é louco! Está
completamente taradinho. Está tão habituado a ser um zero que não pode
acreditar nos homens que querem ser alguma coisa.
Olhando fascinado para a cena, Adam Malone teve uma sensação de dejá vu - como se já tivesse vivido antes uma cena idêntica, uma já passada
entre Shively e Brunner - de modo que, conquanto o que se passava fosse
pior, parecia-lhe menos significativo por já lhe ser familiar. No entanto, continuou atento, todo o projecto dependia do que se estava a passar.
- E deixe-me dizer-lhe honestamente - dizia Shively a Brunner. - Da maneira como você põe a questão, nada está planeado a sério. Mas Sharon Fields existe a sério. É uma mulher viva, com mamas e vagina, que gosta de
fazer amor. Isso já foi demonstrado, ela própria o disse. E nós somos quatro
tipos normais que a querem acomodar, portanto planeámos o modo como nos havíamos de apresentar dramaticamente, de maneira que ela gostasse.
Depois, concordámos que o resto seria com ela portanto, o que tem isso
contra o sermos homens normais e maduros? Concordámos, não foi? Não há
aqui nenhum crime envolvido, tal como mutilação, morte ou assassínio.
Nem sequer há rapto em troca de resgate, ou por vingança, ou nada de ilegal
é só um rapto para conhecermos a senhora. Um rapto temporário, para ver se
nos podemos ou não divertir um pouco. Está mesmo lixado, Leo. Portanto,
não esteja para aí a interpretar mal as nossas intenções e a tentar convencer-nos de que não é a sério, que andamos a explorar os meios para nos divertirmos um pouco. O mal não é nosso, mas seu, Leo. Não quer ter o diabo
de um momento de prazer nessa merda dessa sua vida de eunuco?
Yost estendeu a mão e segurou o braço de Shively.
- Não o ataque tanto, Shiv, acalme-se. Ele tem o direito de ter as suas
ideias, o que não quer dizer que eu concorde em absoluto com Leo. Mas não
me importo de lhe dizer que concordo parcialmente com ele. Tem sido muito
divertido jogar com a possibilidade desta fantasia e imaginar como seria se ela
se realizasse. Mas, e permita-me que seja franco consigo, eu também tive as
minhas dúvidas, eu próprio sentia que quando chegasse a altura não teríamos coragem de realmente arrancar.
Shively virou-se contra Yost.
- Diabo, Howie, nós já arrancámos. Não vai também abandonar- nos,
porque você mesmo já arrancou. Já enfiou o barrete à sua mulher convencendo-a a dar-lhe as duas semanas livres, não foi? O que pensa fazer
nessas duas semanas, uma vez que já as conseguiu? Porque diabo as arranjou?
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- Bem, suponho que não sei - disse Yost.
- Sei eu - continuou Shively, levantando a voz - Sei eu por si. Porque no seu coração e entre as suas pernas desejava que isso acontecesse, queria ser amado. Queria realmente ir até ao fim, se alguém o levasse pela mão. Yost deixou-se absorver pelas palavras, e acenou quase involuntariamente. - Sim, eu. eu suponho que secretamente desejava que isso acontecesse. Penso que não queria instigar este plano, ou tomar a maior responsabilidade nas queria ser levado na onda se outra pessoa transformasse o sonho em realidade.
- Bem, nós transformámo-lo em realidade para si, Howie - disse Shily, refreando um pouco a tensão na voz. - Estamos quase lá. Adam e eu estamos embriagados com a ideia de ir avante, estamos dispostos a assumir todas as responsabilidades. A si só lhe falta alinhar e receber uma parte de qualquer bónus que haja. Portanto, já lhe facilitámos o caminho, amigo. Que mais quer?
Yost estava silencioso, os olhos iam de Shively para Malone, mas evi tavam o olhar intensamente fixo de Brunner. A cabeça de Yost moveu-se de cima para baixo, quase imperceptivelmente.
- Está bem - murmurou. - Suponho. bem, porque não? Talvez eu estivesse à espera que alguém me obrigasse. Obrigado. Com certeza, eu alinho. E, de uma maneira ou de outra, vou convencer a minha velhota que tenho de partir para o rio Colorado nesta quarta-feira, de madrugada, em vez de ser para a semana que vem.
Malone deu largas ao seu alívio.
- Maravilhoso, Howard.
Shively também pareceu satisfeito.
- Não se arrependerá nem um só segundo durante o resto da sua vida. Temos estado para aqui a construir há semanas os quatro maiores tesões da história e não tencionamos estragar tudo no último momento, nem pensar nisso! Ouça, Howie, quando acabar de montar pela primeira vez a Deusa do Sezo, você beijará os meus pés por ter insistido que continuasse connosco e por lhe ter dado a hipótese de igualmente obter tudo o que esses ricalhaços timham recebido em salvas de prata, ao longo dos anos. Você também o terá, talvez já na quarta-feira, à noite, e ficará bastante agradecido por ter tido a melhor experiência de toda a porca da sua vida.
Escutando, Malone achou-se inteiramente de acordo com o pedido de Shively, e, embora não concordasse com a sua linguagem grosseira e com os seus modos, aceitou de bom grado a finalidade que ele estava a promover. Shively, conforme Malone já analisara, era todo de acções impensadas, e que fossem para o diabo as consequências. O único incenttivo que existia para Shively era uma grande aventura sexual. O próprio Malone havia criado o projecto e queria que este fosse por diante, por um motivo mais forte, um motivo que até transcendia o seu amor por Sharon. Ele sabia o que era. um
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idealista, este projecto era uma experiência vital, uma experiência que provaria se a fantasia era apenas um sonho transitório, que não estava de modo algum relacionado com a existência material, ou se, por outro lado, a fantasia se poderia transformar em realidade concreta através da energia física. Se esta alquimia pudesse ser efectuada, talvez representasse uma descoberta com mais valor para a raça humana do que todas as descobertas de Galileu, Newton, Darwin ou Einstein.
Mas, para descobrir se esta hipótese era possível, a experiência não po deria abortar na véspera da arrancada.
Malone olhou de relance para Yost. Lá estava ele, sentado, o fortalhaço de bom coração, o fanfarrão, agora uma torre de gelatina. Havia resistido e depois capitulado, com medo de não agradar aos seus iguais. Fora conquistado com segurança. Três já se achavam prontos para actuar mais cedo do que o planeado. Faltava apenas um.
Malone considerou Leo Brunner.
O guarda-livros ficara realmente abalado, até intimidado, perante a po derosa influência de Shively sobre si e sobre Yost. Enfrentando sozinho o grupo unido, Brunner notaria, com certeza, que mantinha uma posição enfraquecida.
Malone tomou então, rapidamente, uma decisão. Antes que Shively planeasse outro ataque às defesas instáveis de Brunner, arriscando um exagero devido ao seu feitio, o que poderia ter um efeito inverso ao de quebrar a resistência de Brunner, Malone decidiu, ele próprio, lançar o segundo assalto. Uma aproximação mais subtil e indirecta, pensou, talvez causasse melhor efeito.
- Leo - disse Malone, calmamente -, você é o único que ainda tem escrúpulos quanto ao nosso projecto e ao adiantamento que temos de lhe dar. Você bem sabe que Kyle tem razão. Estas curtas férias podem ser uma das experiências mais compensadoras de toda a sua vida. Você bem vê que está tudo perfeitamente planeado. Não há imprevisto que não tenha sido pensado. Nada, absolutamente nada, pode falhar. Acredito sinceramente que valerá á pena o nosso esforço final. Que diferença tem fazê-lo depois de amanhã ou de amanhã a uma semana? Realizar o acto é que conta. E já tem a nossa palavra, se ela não aceitar a nossa tentativa, soltamo-la simplesmente e não lhe faremos nada de mal.
Podia ver que Brunner se agarrava a todas as palavras, deixando-as a todas penetrar e dar volta à sua cabeça.
Malone aproximou-se de Brunner e acocorou-se à sua frente, olhando-o com um sorriso compreensivo.
- Como vê, Leo - continuou Malone - nós não somos maus em nenhuma acepção da palavra. Nenhum de nós tenciona magoar outro ser humano. Somos pessoas boas e vulgares que. que só não temos tudo o que merecemos na vida. Portanto, queremos apenas fazer um pequeno esforço para agarrar um pouco mais daquilo que a vida tem para nos oferecer, só mais
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um bocadinho, se pudermos. Não queremos viver a melhor parte da nossa vida num sonho, e morrer com a recordação de que o que nos foi dado na Terra é mau, sem interesse ou plebeu. Você e eu, Leo, merecemos uma oportunidade para vivermos os nossos sonhos. Compreende o que estou a dizer? Aqui estamos nós, três de nós, homens normais, homens decentes, preparados para ir em frente, explorar, descobrir alguns prazeres que sempre pensámos que nos escapariam. Mas seria melhor, muito melhor, se houvesse quatro de nós, tal como houve desde o princípio.
Malone fez uma pausa, de olhar fixo e esperançado no seu amigo.
Em voz muito baixa, quase inaudível, Malone continuou.
- Fique connosco, Leo. Já que chegou até aqui, venha connosco até ao fim,, na quarta-feira, de manhã. Vai conseguir. Pode fazê-lo. E estará seguro. Se nós os três não temos medo, você também não tem que ter. Estaremos juntos. Por favor, fique connosco. Peço-lhe que alinhe.
Os olhos de Brunner exibiam um brilho estranho. Ali estava ele, sentado, como se tivesse sido transportado, desalgemado e libertado da velha carcaça flexível.
Acenou vagarosamente.
- Está bem - murmurou -, está bem, eu vou. - Engoliu em seco. Eu. suponho que nada há a perder quando já se perdeu tanto. Bom, arranjar-me-ei com a Thelma e com as contas. Estarei cá na quarta-feira, de madrugada.
Malone, todo excitado, apertou a mão de Brunner e levantou-se de um salto, todo sorrisos, agarrando depois a mão de Yost e depois a de Shively.
- Estamos a caminho - exclamou. - Amanhã, de manhã, Shiv, você e eu vamos a uma última visita ao posto de observação. Amanhã, à noite, vocês os três passam para cá para celebrarmos com um brinde. E na manhã seguinte. Paraíso Encontrado - Olhou em volta. - É isso, não é?
- Só se esqueceu de uma coisa - disse Brunner, levantando-se da cadeira, cambaleante. - Esqueceu-se de dizer que me serviria, já, uma bebida suficientemente forte, uma bebida realmente muito forte.
Na manhã seguinte, quando pela última vez regressava do posto de observação no cimo de Bel Air, em companhia de Shively, Adam Malone reecordara tudo o que se passara desde a primeira noite no bar do clube de botuling até ao encontro do meio-dia de ontem.
E do que ele não se tinha lembrado mais cedo nessa manhã de terça- feira, deitado no sofá lá mais para o fim da manhã, recordava-o ele agora ajustando tudo por ordem cronológica, fantasiando visões sobre Sharon, o seu calor, o seu toque e o seu amor.
Nessa noite de terça-feira, no seu quarto, na véspera da realidade, rodeado dos amigos que celebravam, Malone reviu mais uma vez a grandeza e o
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desdobramento do projecto, ouvindo a música sensual que saía dos altifalantes estereofónicos e as vozes distantes e abafadas dos seus três amigos.
Sabia que estava bêbado e aquele era o seu terceiro cigarro de erva. Mas
não tinha importância. O que importava é que Brunner estava ali, bem como
Yost e Shively, todos bebendo pelo seu sucesso e todos se achavam tão tocados como ele nestas últimas duas horas. Sim, sim, eles estavam tão tocados, tão bêbados e tão despreocupados como ele próprio, porque estavam na
véspera de ir para a frente numa grande aventura.
A experiência ia ser realizada.
Malone apercebeu-se vagamente de um ruído e conseguiu discernir Brunner a pegar no chapéu e no jornal. Tomou consciência das suas obrigações de anfitrião.
Com certa dificuldade, conseguiu levantar-se da cadeira, pôs-se de pé cambaleando, e tacteou e encontrou uma garrafa de uisque meio cheia.
- Tome lá, Shiv - murmurou -, mais um para um voo de alegria, mais um para o caminho.
Shively havia posto a palma da mão sobre o copo.
- Chega - disse, com voz rouca. - Tenho de me ir embora. Tenho de dormir, atendendo à hora a que temos de nos levantar.
Yost e Brunner já estavam a caminho da porta.
Malone foi atrás deles, aos tombos, acenando com a garrafa.
-Outro para o caminho!
Ambos recusaram. Yost disse animadamente.
- Já assim vamos ter o suficiente para o caminho. Olhem, amigos, antes que me esqueça. Venho cá amanhã, de manhã, pintar o cabelo.
- Não se preocupe - disse Malone -, não se esquecerá. Rapazes, já está tudo assente? Kyle vai até Bel Air às cinco da manhã e abre o portão. Certo? Depois vai a casa, troca o carro pela carrinha e vem cá buscar-nos às seis da manhã.
- Estarei aqui antes das seis, para pintar o cabelo - disse Yost.
- Claro! - disse Malone. - Portanto só falta o nosso encontro com Sharon Fields.
Yost sorriu.
- Sim, pá, amanhã, à noite, a esta hora, e ainda nem posso acreditar que temos um encontro com a mulher que todos os homens desejam e não podem ter, só nós.... nós.... vamos tê-la.... vamos ter a melhor coisa posta ao cimo da Terra.
- Nem mais - disse Shively, com o seu sorriso maligno, da porta
principal já aberta. - E tudo o que espero é que ela durma bem esta noite
porque de hoje em diante não vai ter tempo de dormir muito, não acham rapazes?
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Capítulo sexto
Ainda na terça-feira à noite, quase à meia-noite. Em breve, quarta- feira
de manhã. A grande mansão de estilo colonial espanhol com dois pisos e
vinte e duas divisões, numa elevação com vista para os campos que se alongavam até Levico Way, em Bel Air, refulgia como um chuveiro de luzes no
meio da escuridão que a envolvia.
Lá dentro, no canto ao fundo da enorme sala de estar, rectangular, longe
da multidão de convidados de todas as idades, dispendiosa e luxuosamente enfeitados, em frente da enorme lareira de carvalho trabalhado e da pintura a óleo
de Magritte, pendurada por cima, Sharon Fields continuava a sustentar a parada, de má vontade.
Quatro dos seus convidados - um produtor britânico, um play-boy sul-americano, um milionário de Long Island e um costureiro francês - haviam
formado um semicírculo à sua volta, tinham-na presa, numa armadilha
humana, contra a lareira. Como ela ia partir para Londres dali a dois dias
tinham estado a discutir os restaurantes sensacionais a que ela não deveria
deixar de ir. Como a conversa lhe era dirigida e era para seu benefício, fora
forçada a prestar uma atenção exagerada. Mas agora achava-se aborrecida de
morte e começava a ficar cansada, querendo, apenas, ver-se livre deles e ficar sozinha.
Com bastante optimismo e até com certa expectativa, Sharon Fields tinha
dado esta festa de despedida à última hora, para ter a oportunidade de poder ver alguns velhos amigos e associados antes da sua partida, para retribuir algumas
visitas sociais e como um gesto de agradecimento a alguns dos seus colaboradores no filme de Messalina. Sentira uma certa expectativa em relação à
festa, e agora apenas desejava que terminasse.
Tentando ouvir e responder ao sem-fim de futilidades que aqueles três
milionários idiotas lhe diziam sobre as especialidades do The Hungry Horse,
na estrada de Fulham, do Ceats, perto de
St. Martin's Lane, sentiu-se esmorecer. Pensou se se notaria alguma coisa.
Mas depois lembrou-se, por experiências passadas, que nunca dava a entender nada. O que sentia por dentro nunca se revelava ou reflectia no exterior. A máscara teatral, há tanto tempo em uso, passara a ser a sua pele
exterior e nada transparecia, nunca a atraiçoava.
Tinha a certeza de que o seu aspecto era o mesmo da altura em que dera as
boas-vindas aos seus primeiros convidados, cinco horas antes. Vestira-se com
simplicidade nessa noite: uma blusa branca, transparente, bastante decotada
sem soutien por baixo, uma saia, curta, de chiffon, com um desenho discreto, meias-calças, cor de carne, que exibiam da melhor maneira as suas
pernas compridas e bem moldadas, sem enfeitos nos braços ou na blusa
tendo apenas pendurado, ao pescoço, num fio de ouro, um pequeno e faiscante diamante que valia um quarto de milhão de dólares e que repousava no
sulco, fundo, entre os seios. Não se tinha dado ao trabálho de prender o cabelo, deixando as madeixas louras e sedosas caídas sobre os ombros. Tinha
posto um mínimo de maquilhagem à volta dos olhos, amendoados, para que
nada desviasse a atenção do seu verde felino. Só os seus lábios, carnudos e
húmidos, estavam mais retocados do que normalmente com um bâton carmesim-claro.
Sentira-se satisfeita, antes de a festa ter começado, ao ver o seu reflexo no
espelho, de úm metro e oitenta, situado no andar de cima, e ao ter reparado
como os seus magníficos seios nus se conservavam tão erectos e firmes, o que
era realmente incrível, considerando que tinha vinte e oito anos. É claro
que se tinha de dar certo crédito ao interminável regime de exercícios espartanos.
Sentira-se, portanto, calma, imaculada e atraente quando recebera os
primeiros convidados. Mas, agora, depois de longas e cansativas horas de
cocktails, jantar e conversa, doíam-lhe os ombros, doíam-lhe as pernas e os
pés, os ouvidos zumbiam e ela sentia-se pessimamente desarranjada. No
entanto, animou-se mais uma vez ao pensar que, provavelmente, parecia
agora tão fresca e viva como estivera às sete e um quarto.
Estava ansiosa por ver as horas, e, se fosse tão tarde como esperava, então
seria possível acabar a festa e ficar só.
Subitamente, Sharon notou que os quatro homens não estavam a falar
com ela, mas que se haviam envolvido em qualquer pequena discussão,
trocando impressões uns com os outros sobre Coventry. A distracção deles,
seu único intervalo de liberdade, foi suficiente. Pôs-se na ponta dos pés e
espreitou as horas no relógio de pêndulo antigo.
Dez minutos para a meia-noite.
Graças a Deus, podia actuar agora. Deu um passo para o lado, procurou a
sua secretária e companheira, Nellie Wright, levantou um pouco a mão
chamando a atenção de Nellie e fez-lhe então sinal.
Nellie acusou a recepção do sinal piscando os olhos afirmativamente. O
seu corpo cheio levantou-se do sofá. Com ar profissional, endireitou a parte de
cima do seu fato de calça e casaco, passou entre os dois grupos de conversa,
chegou até Félix Zigman e tocou-lhe no ombro. Afastando-o para o lado,
falou-lhe ao ouvido. Os óculos, com aros grossos, de Zigman, brilharam, à
medida que o cimo da sua grande cabeleira cinzenta se baixava e levantava
várias vezes, assentindo vigorosamente.
Aliviada, Sharon viu que ele tinha percebido e que ia actuar. Às vezes,
pensou ela, era muito brusco, muito pouco subtil, mas ela admirava- o. Nos
últimos anos, ao tomar a seu cargo os seus negócios e a sua carreira, havia
eliminado todas as carraças e sanguessugas que durante tanto tempo se
tinham agarrado a ela. O querido Félix tratava o tempo como uma fonte natural que não era possível desperdiçar. Para ele, com os seus modos bruscos
(oh, mas ele conseguira ser um maravilhoso judeu sentimental e carinhoso nas horas vagas), a distância mais curta entre dois pontos era a candura.
Ela conseguiu vê-lo desempenhar o grande papel de levantar o braço,
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olhando de soslaio o relógio de pulso, cacarejando à medida que regressava para o seu grupo.
- Olhem, a hora mágica - a sua voz ressoou por todos os cantos da sala. - Não sabia que era tão tarde. Acho melhor darmos à nossa Sharon uma hipótese para o seu sono de beleza.
Parecia um sino da escola a anunciar o fim das aulas e a hora de todos irem para casa.
O grupo mais próximo, ao qual Zigman se dirigira, começou a desin tegrar-se, e isto, por sua vez, provocou uma reacção em cadeia que fragmentou outros grupos, fazendo, assim, terminar a festa de despedida.
Sharon Fields esboçou um rápido sorriso e tocou em dois dos quatro homens que a bloqueavam.
- Parece que estão todos a ir embora - disse ela. - Talvez seja melhor voltar a brincar aos anfitriães.
Os homens deram-lhe passagem, e Sharon deslizou por entre eles em direcção ao centro da sala. Ali, parou por baixo do candeeiro, não querendo dar a entender que estava a despachar os que demoravam mais tempo a levantar-se, e esperou sozinha.
Sentia-se totalmente envolvida pelo cansaço. Não tinha sono, mas fadiga em relação às pessoas, não só a estas, mas a todas as pessoas em geral. Todas, excepto cinco das que se encontravam na sala, Nellie, a sua única amiga, Félix Zigman, um dos poucos homens em quem confiava totalmente, Terence Simms, o seu cabeleireiro negro, e Pearl e Patrick O'Donnell, o casal que vivia com ela, que já estavam a recolher os copos vazios e os cinzeiros cheios - e talvez uma sexta pessoa, Nathaniel Chadburn, amigo de Zigman e digno presidente do Banco Sutter National, que ela mal conhecia à excepção destas, sentia-se farta dos membros que constituíam o seu aborrecido círculo.
Os olhos verdes continuavam a não atraiçoar os seus sentimentos ín timos, revelando apenas o seu interesse gracioso à medida que es quadrinhavam as dramatis persone que se preparavam para deixar o palco. O seu olhar congelou por um instante cada uma delas numa moldura, enquanto a mente adicionava um título, e depois fotografava e rotulava a seguinte.
Hank Lenhardt, o publicitário mais famoso da cidade, com as suas ane dotas estúpidas e maçadoras e interminável má-lingua pretensiosa exposta em voz alta. Justin Rhodes, o produtor do seu actual filme, um legítimo senhor do teatro, mas outro aldrabão no negócio, não em relação a ela (era, certamente, maricas ou assexuado), mas em relação à sua dependência por ele e à utilização do seu nome como meio de intensificar a sua interminável ascensão ao poder. Tina Alpert, a grande colunista sindicalizada do cinema, rrindo sempre com uma faca à espreita, uma cadela que funcionava nas
vinte e quatro horas do dia, e a quem não se podia virar as costas ou ignorar ou até esquecer de cativar com prendas caras pelos anos e pelo Natal.
E todos os outros a partir daí, a miscelânia de celebridades, os que comem
e os que se deixam comer, a tournée permanente que representava as festas
desde Beverly Hills a Holmby Hills, de Brentwood a Bel Air, e, às vezes, a
Malibu e a Trancas.
Sy Yaeger, o novo e moderno realizador, um eufemismo de director, que alterava os textos dos escritores e tinha a arrogância de fazer o culto dos
mexeriqueiros do passado tais como Busby Berkeley, Preston Sturges e Raoul
Walsh. Sky Hubbard, o locutor da rede de noticiários da Rádio e Televisão,
um estúpido leitor labial e sereia de nevoeiro, uma cara tirada de um anúncio
de camisas, que o idiota do Lenhardt insistira em que ela convidasse como
investimento de boa vontade. Nadine Robenson, cuja única glória foi a de ter
contracenado uma vez com Charles Chaplin (o que não era pouco) e que era
agora uma velha da sociedade, toda esticada com silicone, promovedora de
bailes de caridade, uma grande dama que chorava por ser fotografada e que,
por aquele motivo, escapara de ser sepultada no Museu de Cera do Mundo Cinematográfico.
Mas havia mais.
O Dr. Sol Hertzel, o último analista a ser elevado à categoria de guru pela
nova vaga do cinema devido à sua nova Terapêutica Dinâmica, o que queria
dizer que quando ele acabava de ouvir uma doente se punha em cima dela,
esse Rasputine de segunda classe com diploma. Joan Dever, a Nova Actriz, a
Duce da contracultura, uma miúda sardenta de vinte e dois anos que já tivera
três crianças ilegítimas e que a respeito delas falava incessantemente à Imprensa, e que já estivera na Argélia e em Pequim e que era tão ardente que
dava vontade de dar gritos. Sam Bunon, o solteirão profissional de beleza
plástica e programada, o advogado preferido da cidade do cinema, que tem
servido de intermediário e organizador de contratos de filmes há tantos anos que já devia pensar que um julgamento era um novo prato mexicano.
E todos os outros - que iam agora desaparecendo -, todos fotocópias de
um verdadeiro original do passado, todos iguais, a mesma luminosidade,
as propostas em voz baixa, os sabichões com todo o calor dos seus Wilson
Miznerisms, os que fazem parte desta sociedade que só falam em Luis Buftuel,
Sergei Eisenstein e Satyajit Ray, os fiteiros e os que se rebaixam, dos négligés ao último grito da moda, os bobos estudados, os exploradores, os
chulos, pessoas que aparecem nas colunas mundanas dos jornais, tão chiques, tão previsíveis, tão exaustivas, tão irreais e tão-nadas.
Corpos que se movem em círculos. Corpos que partem.
E pensar que - dizia Sharon para si -, como uma vez, há uma eternidade, na Virgínia Oeste, em Nova Iorque, durante os primeiros meses ou
anos em Hollywood, a sua única ambição havia sido tornar-se uma estrela
suficientemente famosa para ser admitida no clube, e andar ombro a ombro
com estes seres legendários, para pertencer a ele. Agora, fazendo parte dele,
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sendo possivelmente o centro dele, ela só queria demitir-se. Mas não podia. Os sócios são vitalícios, a não ser que percam a fama e o dinheiro e acabem na Casa de Repouso do Cinema.
Estavam, agora, de facto, a partir, reparou ela.
Sharon moveu-se, abriu caminho rapidamente, atravessando a sala até chegar ao seu posto de anfitriã e despedir-se ao lado da escultura de Henry Moore e em frente de uma enorme e melancólica pintura, a óleo, de Giacometti.
Eles caminhavam, caminhavam, e em breve desapareciam. Ela estendeu firmemente a mão, apertou a deles, uma após outra, inclinou a cara para a frente sempre que era necessário para oferecer a face ou para ouvir toda a efusidade da duvidosa sinceridade e agradecimentos: estavas simplesmente ofuscante esta noite, Sharon - a melhor festa de sempre, querida - terei de passar um mês a perder tudo o que pus cá dentro à tua mesa, queridinha, - faz uma boa viagem, Sharon querida - tenho a certeza de que o teu filme será um enorme sucesso lá, querida" - "não te esqueças de nos mandar um postal do Soho, querida" "estás com um aspecto formidável, minha filha" - "se precisares de "erva, estou a abarrotar, maravilha - volta depressa, querida querida, querida, querida.
Finalmente, sentiu os dedos frescos de Félix Zigman a segurar-lhe o queixo.
- Estavas chateadíssima, não estavas? No entanto, todos se divertiram. Vê se descansas agora. Telefono-te amanhã.
Ela sorriu languidamente.
- Não me telefones, Félix. Telefono-te eu. Estarei em casa todo o dia. Tenho muitas malas para fazer, e ninguém as pode fazer por mim. Obrigado por teres despachado toda a gente tão subtilmente. És um anjo, Félix.
Ele partiu.
Ficou sozinha. Por um bocado, ouviu os últimos carros a começar a tra balhar, e a partir.
Falou alto em direcção à sala de jantar.
- Nellie, abriste o portão?
Nellie voltou para a sala de estar, com um cognac na mão.
- Há que séculos. Porque não vais para cima mergulhar na tua cama sobre rodas? Precisas mais de descansar. Eu fico a pé até eles saírem todos. Fecharei o portão e ligarei o alarme depois de Patrick levar as garrafas e o lixo lá para fora.
- Obrigada, Nell. Porcaria de festa, não foi?
Nellie encolheu os ombros.
- Nem por isso. O costume. Eles comeram foi todos os bocadinhos de pato no forno e todo o molho de laranja, e não sobrou nem uma colher de arroz. Mas ainda bem que fizemos isto em vez de carne assada outra vez. Quantó à festa, não te preocupes. correu bem.
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- Porque as damos? - perguntou Sharon. Contudo, não esperava outra resposta que não fosse a sua. - Penso que é para ocupar o tempo.
- Viste o Dr. Henzel a tentar hipnotizar Joan Dever, para conseguir que ela deixasse de fumar?
- Ele é parvo. - Começou a encaminhar- se para a escada. - Até amanhã, de manhã, Nell.
- Porque não ficas a dormir até mais tarde?
Sharon parou.
- Não. Acho que não. De manhã cedo é para mim a melhor parte do dia. quando me sinto realmente viva, com todos os corpúsculos aos saltos.
- Talvez te sintas ainda mais viva quando chegares a Londres, depois de resolveres os assuntos com o teu Sr. Clay.
- Talvez, veremos. Como dizem no misterioso Oriente. o que será, será. De facto, neste momento, não me sinto nada mal, Nell. Assim que me vi livre do Exército de Coxey, comecei a sentir-me bem, a sentir-me livre, oh, a sentir-me outra vez como um ser humano e não um automóvel!
Sharon tirou um sapato, depois o outro, e andou, em palmilhas, em círculo, seguindo um desenho da carpeta.
- Quando estou só - disse ela -, tenho sempre a surpresa de me reencontrar. Isso já é muito bom, como sempre pensamos, o reencontrarmo-nos, descobrir quem somos e o que realmente somos. Na maioria, as pessoas passam uma vida inteira sem conseguir isso. Graças a ti, Nell, eu estou a caminho.
- Não tive nada a ver com isso - disse Nellie. - Tu é que sim.
-No entanto, tive o teu apoio. É qualquer coisa, a descoberta do ser. Como plantar uma bandeira num território novo. Já não preciso de ser aprovada por todos, amada por todos. Que alívio. Só tenho de saber que me amo a mim própria, o que sou, o que sinto, o que posso realmente ser, como pessoa, não como actriz, apenas como pessoa.
Ela perdeu-se por momentos nas suas reflexões.
- Talvez precise de outra pessoa. Talvez todos precisem, ou talvez não. Hei-de descobrir. Mas não preciso do resto das cortes e armadilhas. Meu Deus, às vezes sinto que gostaria apenas de partir, ir-me embora. no último instante, ir-me embora, para. para onde ninguém saiba quem sou, onde ninguém se interesse por quem sou. estar sozinha por uns tempos, em paz, usar o que quero, comer quando me apetecesse, ler ou meditar ou andar entre as árvores ou preguiçar sem remorsos. Partir para onde não houver braços com relógio, nem calendário, nem agenda, nem telefone. O país dos sonhos, sem testes de maquilhagem, poses de fotografias, ensaios, entrevistas. Ninguém senão eu, independente, liberalizada, pertencendo só a mim própria.
- Então, porque não, Sharon? Porque não fazes isso um dia?
- Talvez o faça. Sim, talvez o faça em breve. A Sra. Thoreau na selva a conviver com as formigas. A Sra. Ramakrishna no cimo da montanha em
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busca do seu espírito. Sou capaz de apanhar um voo não-fretado sozinha a ver o que me acontece. - Suspirou. - Mas primeiro tenho de ver Roger outra vez. Ele está à minha espera. Tenho que descobrir se isso pode ou poderá resultar. Se resultar, melhor. Desisto de andar a solo e vou experimentar um dueto. Se não resultar harmoniosamente, bem, ainda há tempo para tentar outro estilo de vida. - Acenou com a cabeça para a secretária. - Pelo menos estou a raciocinar bem, não estou?
-Claro que estás.
- Portanto, posso escolher livremente. Há tanto por onde escolher, tantas opções. Essa apenas é mais uma. Muitas pessoas não têm nenhuma. Devia estar agradecida. Enfim. Importas-te de me desabotoar, Nell?
Nellie aproximou-se das costas dela e começou a desabotoar-lhe a blusa branca.
Sharon continuou, entregando-se a recordações.
- Lembras-te daquele psicanalista que conhecemos há uns anos, Nell. onde é que foi . ah, naquele jantar na Casa Branca, lembras-te? Aquele que disse que não gostava de tratar actores e actrizes. - Passa-se a vida a retirar as várias peles deles, a tentar chegar-lhes ao âmago, o verdadeiro ser escondido por baixo de todos os fingimentos. E, quando se chega lá, que se encontra? Nada. Ninguém. Não existe o verdadeiro ser. " Meu Deus, como aquilo me assustou durante meses. Suponho que é por isso que me sinto tão segura e reconhecida. Eu retirei as peles. E encontrei um verdadeiro ser, um ser humano, a minha identidade, e eu dentro de mim. E comecei a gostar e a respeitar esse ser, e vi que ele podia ser independente e fazer tudo o que lhe apetecesse. Isso já não é mau.
Virou-se, segurando a blusa desapertada nos ombros.
- Obrigada, Nell. - Apertou ligeiramente a secretária com um braço. Talvez seja independente, mas não sei o que faria sem ti. Boa noite. Descansa tu também.
Sharon Fields dirigiu-se para a escada atapetada que dava para o seu quarto no segundo piso. Ao subir as escadas, lembrou-se do plano da sua casa que havia sido publicado numa revista nacional dois anos antes. As duas páginas centrais ilustradas com uma fotografia do seu quarto dando relevo à sua cama, enorme, com uma cobertura e uma colcha de veludo. O título dizia Se o Gabinete Oval da Casa Branca em Washington, D. C. o Kremlin, de Moscovo, e a Casa do Estado de Pequim são as capitais políticas do Mundo, então este quarto de dormir em Bel Air é a capital do sexo do Mundo. O esplendor deste quarto único, cuja decoração custou 50 000 dólares, é o local onde Sharon Fields, a Deusa internacional do Estado do Amor, se refugia, fugindo da adoração e do desejo, para dormir sozinha.
Ela chegou a odiar esse estilo de idiotices, mas, recordando-se agora disso, achou que pelo menos era profético e a divertia.
Dormir sozinha.
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Graças a Deus , pensou ao chegar ao patamar. Obrigada, meu Deus, pensou, e toda animada dirigiu-se para o quarto.
Meia-hora mais tarde, Sharon Fields, enfiada na sua camisa de dormircor-de-rosa com rendas nas pontas, o Edredon de cetim puxado até aos
queixos, deitada sob a enorme cobertura na escuridão do seu quarto, estava ainda acordada mas ensonada.
Tinha engolido o seu Nembutal dez minutos antes de ir para a cama, e sa bia que isso só faria efeito dali a dez minutos ou mais.
Deitada confortavelmente, descansada, permitindo que o seu pensamento divagasse, deu-se conta de que nestas últimas noites andava cada vez menos preocupada com o passado - o que era bom, um sinal de boa saúde mentale cada vez mais interessada em examinar o presente e a pensar acerca do futuro.
Sentiu-se tão feliz, tão segura, ali metida na cama nessa noite. Ainda era uma sensação nova para ela, porque, até recentemente, a Cama havia sido símbolo de tudo o que ela tinha odiado na vida. A Cama havia sido a arena do desamor que lhe tinha servido de trampolim para o sucesso. Assim que se tornou um sucesso, a Cama transformou- se no símbolo público da sua personalidade e atracção para milhões de pessoas. Para todas elas ali fora, ela não era um ser humano como elas, mas um objecto, uma coisa, um objecto sexual - se bem que o mais desejado no Mundo - cuja presença era imediatamente comparada ao receptáculo perfeito do sexo e cujo lugar era na Cama e em mais lado nenhum.
Ao princípio, ela tinha procurado essa sinonímia, mas, assim que a conseguiu, tentou em vão livrar-se dela, separar-se da imagem da Cama. Mas o público não aceitava isso, e o seu próprio agente de imprensa, Hank Lenhardt, não o permitia.
Por fim, encontrou um meio de viver com essa imagem - ela superimposta na Cama de Todos os Homens -, e tinha-o feito por ter descoberto o seu eu, por verificar que era mais do que um Objecto da Cama, e, ao conseguir isso, tinha-se divorciado, na sua própria mente, desse odioso símbolo Cama. Aliás, conseguiu-o tão bem que agora podia encarar a sua própria cama como um amigo e bem-vindo céu de repouso, escape e descanso.
Sentia-se orgulhosa da sua realização, da força de vontade e da razão, que tinham finalmente feito com que ela conseguisse de novo encarar a vida com os seus próprios conceitos. Tinha-lhe levado muito, muito tempo, mas
finalmente ela controlava o seu ser e o seu destino. Estava segura pela primeira vez, abrigada pela primeira vez, livre, pela primeira vez, de homens e das suas exigências sexuais e da necessidade de moldar a sua personalidade e modos para lhes agradar.
E, pela primeira vez, podia fazer o que lhe apetecesse, quando lhe apetecesse, como lhe apetecesse. Era uma pessoa independente, e, quer
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quisessem, quer não, era agora mais do que igual aos homens. Era su perior.
Depois de vinte e oito anos de prisão e servidão, que a maioria das raparigas e mulheres conhecem, o seu espírito e o seu corpo - sim, espírito e corpo - não pertenciam a mais ninguém senão a si própria.
No entanto, talvez faltasse algo. Ou talvez não. Não existia um grande vazio presentemente. No entanto, talvez. Possivelmente o amor- próprio não era suficiente para se conseguir sobreviver, uma vez que a novidade passasse. Então o vazio talvez se tornasse mais notado. E então, talvez se sentisse necessidade de ter mais alguém, alguém decente, bom e carinhoso, com quem se compartilhasse os sonhos de cada despertar puro. Roger Clay havia sido um homem bom, atencioso, muitas vezes amoroso, apesar de ser actor e um ego. Aliás, haviam-se separado, porque ela tinha sido demasiadamente teimosa e defensiva quanto à sua independência que tanto lhe tinha custado ganhar para que Roger conseguisse aguentar.
Agora, a meio da noite, pensou duas vezes. Talvez um compromisso não fosse má ideia. Abdicar de um território livre em troca de um aliado que trouxesse uma oferenda de amor. Bem, depois de amanhã.... não, já era amanhã, de qualquer modo, em breve estaria com ele em Londres, iria conhecê-lo melhor e conhecer-se melhor, descobrir a importância que tinha o estarem juntos, e deixaria em aberto as suas opções.
Bocejou, e virou a cabeça na almofada fofa de penas.
Hum!
Aqueles livros franceses que tinha estado a ler ultimamente, em qual é que foi? Era. era. no Valéry, sim, Valéry. Longos anos deverão passar antes que as verdades que construímos para nós próprios, se transformem na nossa própria carne.
Está bem. E quem é que está com pressa? A metamorfose dar-se-á, está a dar-se, vai dar-se.
O último. o último pensamento antes de adormecer. Amanhã seria um dia maravilhoso, maravilhoso.
Adormeceu.
SEGUNDO ACTO
Capítulo sétimo
A carrinha chevrolet preta, com uma tonelagem de setecentos e cinquenta quilos e modelo antigo, de 1964, tinha pneus especiais acabados de estrear e legendas idênticas em ambos os lados dos painéis pintados de fresco, dizendo EXTERMINADORES DE FOGO - SEGUROS, INC. CONTROLO DE INSECTICIDAS DESDE 1938LOS ANGELES-OESTE.
A carrinha de entregas serpenteava na subida até Stone Canyon Road em Bel Air, e nada do seu aspecto levantava a mínima suspeita de que não estava a fazer o seu serviço de rotina.
Aliás, nesta hora cinzenta de uma manhã de quarta-feira, em meados de Junho (faltavam cinco minutos para as sete horas), não havia qualquer outro veículo ou pessoa visível nas imediações que a pudesse observar.
Sentado à frente, ao volante, Adam Malone dirigia a carrinha aproximando-se cada vez mais do destino. Apesar de ter dormido muito pouco e mal durante uma noite de tensão, Malone estava agora bem acordado e alerta. No entanto, sentia-se estranhamente afastado do papel que tinha vindo a desempenhar era como se estivesse escondido atrás de um vidro espelhado a observar uma pessoa parecida consigo a levar quatro pessoas de um mundo de desejo, de fantasia e imaginação para um mundo real perdido e abandonado onde o perigo e o acaso espreitam atrás de cada árvore ou arbusto agoirentos.
Ao lado dele, inclinado no banco de passageiros à frente, ia Kyle Shively, parecendo calmo e sereno, apesar de as saliências musculares da sua face magra e os cordões inchados do pescoço revelarem a própria ansiedade interior. Estava sentado, com um mapa de Bel Air aberto sobre os joelhos, os olhos a disparar, da estrada à sua frente, para todos os sinais brancos e azuis que nos cruzamentos apareciam e desapareciam da sua vista.
Atrás dele, agachados e escondidos na carpeta em segunda mão, na parte de trás da carrinha, estavam Howard Yost, todo aperaltado no seu fato para a pesca, e Leo Brunner, com ùm blusão e calças escuras.
Tinham vindo em silêncio absoluto desde o Sunset Boulevard, quando Shively se endireitou no seu banco e quebrou o silêncio. Apontou através do pára-brisas para a esquerda.
- Lá está - disse, muito alto, para Malone. - Vê Levico Way.
- Vejo - respondeu este, em voz baixa. - Que. que horas são? Shively olhou para o seu relógio de metal.
-Dois minutos para as sete.
Malone virou o volante à esquerda, e a carrinha Chevrolet entrou e começou a subir o Levico Way.
Lá de trás, uma voz tremendo disse:
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- Oiçam - pediu Brunner -, ainda estamos a tempo de voltar para trás. Receio que nós.
- Vá para o diabo, cale-se - resmungou Shively.
Tinham feito a subida e chegaram à zona plana e mais larga do fim do beco. O enorme portão de ferro forjado que guardava a propriedade de Sharon Fields apareceu logo em frente.
- Você. tem a certeza de que o portão se abre? - perguntou Malone, falando com dificuldade.
- Eu disse-lhe que tratava disso - respondeu Shively, contrariado, calçando as luvas de trabalho.
Estavam quase a chegar ao portão quando Shively ordenou:
- Vá, páre aqui, e deixe o motor a trabalhar ao ralenti.
Malone travou a carrinha, e, quando esta chiou, ao parar, deixou ficar o pé no travão.
Sem mais uma palavra, Shively empurrou o manípulo da porta para cima, abriu-a e saltou para o pavimento. Olhou por um instante para trás e, sa tisfeito, dirigiu-se rapidamente para o portão.
Do seu lugar, Malone olhava preocupadamente para Shively, enquanto este segurava uma barra do portão com uma das mãos enluvadas, e, com a outra, a outra metade do portão empurrou. Com aparente facilidade, as duas metades do portão abriram-se e à sua frente estava a estrada de asfalto que passava pelo grupo de árvores à esquerda e os altos álamos e ulmeiros maciços à direita antes de curvar e perder-se de vista para lá das árvores que também escondiam a mansão.
Shively voltou para a carrinha, reocupou o lugar e fechou a porta sem fazer ruído.
- Como vê - disse ele -, eu bem lhe disse que tinha feito o meu trabalho. - Tirando as luvas, consultou de novo o relógio de pulso. - Se ela for pontual, deverá aparecer dentro de três ou quatro minutos. Já sabe o que tem a dizer?
Malone assentiu nervosamente.
- Finja-se profissional, como se estivesse a trabalhar - avisou-o Shively. Se mostrar algum sinal de selvageria no rosto ou estiver nervoso, vai assustá-la. Portanto, lembre-se.... Um segundo. Deixe-me verificar o resto do material. - Baixou-se e agarrou o frasco de clorofórmio e um trapo e pô-los no assento ao seu lado. - Vá, miúdo. Está tudo pronto. Vá devagar.
O pé de Malone largou o travão. Meteu a mudança, acelerou, e a carrinha entrou pelo portão e começou a subir a estrada dentro da propriedade. A carrinha andava a passo de caracol, aproximando-se gradualmente da zona do arvoredo na curva da estrada.
Shively baixou a cabeça e segurou o braço de Malone.
- Consegue ouvir? Escute.
Malone escutou.
Ouvia-se distintamente o ladrar estridente de um cão vindo do arvoredo.
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O coração de Malone começou a bater com violência. Olhou para Shively.
- O cão dela - disse, baixinho.
- Continue - disse Shively, com excitação sufocada.
Malone acelarou um bocadinho o andamento da carrinha. Subitamente, os seus olhos ficaram esbugalhados, e pôs o pé no travão.
Um cão, um Terrier, todo despenteado, apareceu por detrás das árvores, parou, ladrou para alguém e, de repente, ela materializou-se.
Não deu logo por eles, por estar muito atenta ao cão. Corria atrás do cão, meio a rir, meio a ralhar, enquanto ele lhe escapava na brincadeira, parando por fim, ladrando alegremente, à espera dela.
Através do pára-brisas, com o coração na garganta, Malone continuou a seguir-lhe os movimentos, espantado e admirado.
Ela era mais bonita do que se podia imaginar, era tudo o que sempre soube que ela era - perfeita.
Havia agarrado o cão, de costas viradas para eles, sem se ter apercebido da sua presença, e estava de joelhos ao lado do animal fazendo-lhe festas e falando-lhe.
Em poucos segundos, Malone fixou-a toda. Era mais alta, mais magra e tinha mais curvas do que havia imaginado. O seu cabelo macio e loiro caía sobre os ombros. Trazia óculos de sol enormíssimos, cor de violeta, e vestia uma camisa de malha branca, muito fina e coleante, com decote e abotoada em baixo, à frente. Um cinto largo, de cabedal, com incrustações metálicas, encimava uma saia de cabedal bege-clarinho, extremamente curta, e botas de cabedal castanho, curtas e de tacão baixo. Estava sem meias, e, nesse momento, ajoelhada ao lado do cão, tinha metade das coxas à mostra. Trazia uma espécie de colar com um penduricalho pesado que balouçava por cima do animal.
Shively agarrou de novo o braço de Malone.
- Mexa-se, palhaço. Acelere para que ela nos oiça, e pare ao lado dela. Com os olhos ainda fixos nela, Malone fez as manobras automa ticamente acelerou o motor, até este fazer um grande barulho, meteu a mudança e começou a andar com a carrinha.
Sharon Fields, ao ouvir o barulho, olhou por cima do ombro, endireitou-se, e afastou-se da estrada, observando a inesperada carrinha com surpresa, à medida que ela se aproximava e parava a seu lado.
Da janela aberta ao lado do volante, Malone mirou Sharon Fields, apenas a uns centímetros de distância, tão perto que quase podia tocar- lhe. Os olhos curiosos dela ensombrados pelos óculos escuros, o lindo nariz e os lábios vermelhos, a curva cheia dos peitos acentuada pela blusa de malha apertada, a verdadeira presença dela em carne e osso, deixou-o momentaneamente mudo. Sentiu Shively dar-lhe um murro nas costelas, e voltou à realidade.
Com desespero, tentou reagir normalmente. Lá estava ela, a cabeça para trás, a olhar directamente para o seu rosto barbudo.
Engoliu em seco, e inclinou-se para fora da janela.
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- Bom dia, minha senhora. Desculpe incomodá-la, mas recebemos um telefonema muito cedo para um trabalho de exterminação nas vizinhanças e
perdemos o endereço certo. Temos andado à procura da casa Gallo.... num beco qualquer depois do quarteirão cento e doze de Stone Canyon. Como não
havia nenhum nome aqui, pensámos que talvez....
- Lamento, mas está na morada errada - disse Sharon Fields. - O
número de que andam à procura no Stone Canyon deve ser uns três ou quatro quarteirões mais acima.
Malone tentou parecer agradecido, e depois ficou preocupado.
- Eu.... eu suponho que estamos completamente perdidos aqui - disse
ele. - Nenhum de nós conhece as redondezas. Importa-se de indicar ao meu
colega o local exacto onde estamos, aqui, no nosso mapa?
Mesmo a falar, Malone conseguiu cheirar um bafo de clorofórmio do
frasco que tinha sido aberto e fechado por baixo do painel de instrumentos
enquanto ouvia os movimentos de Shively a abrir a porta da carrinha e a saltar para a estrada.
- Duvido que possa.... - começou Sharon Fields a responder, quando se
apercebeu da presença de Shively, com um mapa numa das mãos, a
aproximar-se com ligeireza pela parte da frente da carrinha em direcção a ela.
Ficou um pouco admirada, com os olhos ora em Shively ora em Malone,
fixando depois Shively que tinha chegado ao pé de si.
-Desculpe incomodá-la, minha senhora - começou por dizer Shively.
Pôs o mapa à frente dela. - Cá está o nosso mapa da área, portanto, se fizer o
favor....
Ela ignorou o mapa. Franziu o sobrolho e começou a falar para Shively.
- Como é que conseguiram entrar aqui? - perguntou ela, bruscamente. - O portão está sempre....
- Usámos o intercomunicador - interrompeu Shively. - Bem, minha senhora, se olhar aqui para o mapa....
Pôs o mapa mais perto da cara dela, e, desconcertada, ela olhou para ele automaticamente.
Como um relâmpago, a outra mão de Shively surgiu por detrás dela, deu a volta aos ombros, e bateu-lhe na cara com o punhado de trapo húmido. O
trapo, embebido em clorofórmio, encostou-se com toda a força sóbre o nariz e
a boca, de tal modo que só os olhos espantados, pouco visíveis por detrás dos
óculos escuros cor de violeta, ficaram destapados.
Os olhos dela abriram-se mais, aterrorizados, e ela tentou protestar, tossindo um inaudível:
- Ai, não....
Shively tinha a cabeça dela presa, e puxava-lha contra o peito com toda a
força, sufocando-a com o trapo saturado de clorofórmio. Ela lutou desesperadamente para se soltar, por usar as mãos para se livrar dele, mas o outro
braço de Shively tinha-a abraçado, prendendo-lhe as mãos contra o corpo, imobilizando-a.
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Mesmo assim, para grande espanto de Malone que a olhava contendo a respiração, ela tentou lutar e fugir. Mas, em poucos segundos, a sua resistência parou, os olhos fecharam-se por detrás dos óculos de sol, os braços amoleceram, os seus joelhos principiaram a dobrar-se, e ela começou a cair.
Malone tinha a porta do lado do volante aberta, e saltou para o chão. Quando Sharon Fields desmaiou completamente, Shively largou-a nos braços ansiosos de Malone. Segurando desajeitadamente o corpo desmaiado pela dobra de um braço, Malone deu uma pancada no painel lateral da carrinha com o punho livre.
A única porta que havia atrás abriu-se, de lá saindo Yost, acorrendo a ajudar Malone. Juntos, levantaram do chão a forma inerte de Sharon e, cambaleando com pressa, carregaram com ela até à porta traseira da carrinha. Ofegantes, levantaram-na até ficar meio metida lá dentro, onde Brunner encaixou as suas mãos por baixo das axilas dela e a empurrou completamente para dentro e fora das vistas. Yost entrou apressadamente, fechou e trancou a porta.
Rapidamente, Malone voltou para a parte dianteira da carrinha, onde Shively estava com o braço esticado e mão cheia de comida para o cão tentando acalmar o terrier que não parava de ladrar. Tentado, o cão cheirou o petisco na mão de Shively. Satisfeito, o Yorkshire calou-se, aproximou-se de Shively, e começou a comer da palma da sua mão.
Num gesto-relâmpago, Shively desfez-se da comida, agarrou no cão pela coleira, quase o estrangulando, e, com a outra mão, tapou-lhe o focinho com o pano embebido em clorofórmio. Em poucos segundos, o cão estava inerte. Dirigindo-se para a berma da estrada e vendo uma clareira, Shively, sem mais cerimónias, atirou o animal, inconsciente, para o meio da folhagem bem fora de vista.
Malone recolheu os restos da comida de cão espalhados no asfalto e meteu-os no bolso, apanhou o mapa de Bel-Air, e, depois, passeou o olhar pelo jardim para ver se havia testemunhas. Tanto quanto podia ver, não tinha havido.
Subiu de novo para o seu lugar ao volante ao mesmo tempo que Shively regressou ao assento no lugar do passageiro. Este passou o pano e o frasco do clorofórmio para Yost que estava atrás, e, em seguida, descalçou as luvas.
Malone, que tinha soltado o travão, meteu a marcha atrás, e, com cui dado, deixou a carrinha deslizar silenciosamente, pela passagem estreita, passando pelo portão aberto, até chegar à rua. Enquanto Malone ligava o motor e fazia inversão de marcha para que a carrinha ficasse virada para descer a Stone Canyon Road, Shively saiu de novo do veículo e dirigiu-se para o portão aberto.
Mais uma vez dentro da propriedade, Shively juntou as duas metades do portão. Foi até ao poste, destapou o motor e ligou a caixa, fechando o portão
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automaticamente. Durante alguns minutos, desapareceu de vista, e, depois, Malone, viu-o no cimo do muro, transpô-lo, e saltar para o Levico Way.
Em poucos segundos, estava novamente na carrinha. Fechando a porta com força, deixou-se cair no assento, respirando com dificuldade.
Virou a cara para Malone, e, pela primeira vez nessa manhã, fez-lhe um sorriso aberto e feio.
- Está feito, Adam, meu velho - anunciou triunfante, com voz gutural. - Vamos pôr-nos a mexer. Próxima paragem, a Terra Prometida .
Haviam descoberto um caminho mais curto de Bel Air à auto-estrada de San Diego. Em vez de seguirem o caminho normal até Sunset Boulevard e virarem a Oeste para a auto- estrada, descobriram uma estrada com menos trânsito que os levaria de Stone Canyon Road até Bellagio Road, e, finalmente, até ao Boulevard Sepúlveda à entrada da auto-estrada.
Percorreram este caminho com eficiência e sem incidentes. Ao subir a primeira ligação em direcção ao Sul, Malone meteu o Chevrolet no meio do trânsito compacto.
Deu-se então conta de que estava a segurar o volante com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Contrariamente ao que sucedia com os
seus companheiros, que já tinham começado a exteriorizar o seu alívio por tudo ter corrido bem, Malone sentia que ainda corriam perigo enquanto estivessem dentro dos limites da cidade.
Passados dez minutos, chegou ao ponto em que tinha de mudar de linha de trânsito seguindo a direcção que Shively apontara com o dedo e virou à direita para entrar na auto-estrada de Santa Mónica.
O nervosismo de Malone aumentava à medida que se aproximavam do cruzamento principal onde podiam escolher três auto-estradas em direcção a Este. Deixou Shively fazer de navegador e concentrou-se na condução. Todos os carros da Polícia, todos os barulhos de motorizadas, faziam com que o seu coração desse um pulo: era como se alguém soubesse da carga preciosa que
transportavam ou que tivessem avisado a Polícia, pela rádio, de que Sharon Fields tinha sido raptada por um grupo de vadios que guiavam uma carrinha
com dístico falso. Malone seguia rigorosamente os sinais de limite de velocidade. nem muito depressa, nem muito devagar, porque senão podia atrair as atenções. Tivera o cuidado de não ultrapassar os outros carros nem mudar de linha de trânsito excepto quando necessário, ao mesmo tempo que tentava seguir à mesma velocidade a que o tráfego estava a fazer-se. O cruzamento principal surgiu à frente. As três estradas de alternativa haviam sido bastante discutidas e debatidas previamente. A auto-estrada de Santa Ana-Riverside oferecia a vantagem de seis faixas de trânsito durante uma parte do trajecto, mas tinham chegado à conclusão de que era a mais longa das três e a que deveria ter mais trânsito. A de San Bernardino tinha
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sido uma das preferidas, mas acabaram por decidir que tinha muitos ramais de acesso e nós de ligação: Nestes desembocava um número tão grande de veículos que acabavam por atrasar o trânsito. Finalmente, estudaram e acabaram por escolher a auto-estrada mais nova de Pomona, porque era a mais directa, a mais rápida, e a menos concorrida das três estradas até Arlington e Gavilan Hills.
Sem que tivesse sido necessário recordar-lhe, Malone tinha-se metido na
linha de trânsito devida, e assim que entrou na auto-estrada de Pomona o seu coração e o trânsito ficaram mais aliviados.
O trajecto levara-os a passar entre o Parque Monterey, de um lado, e o Parque Montebello, do outro, e a auto-estrada a Este fê-los passar pelas localidades de ha Puente e de Hacienda Heights.
Neste momento, a auto-estrada serpenteava através das montanhas que a circundavam na área de Brea Canyon, e em breve passariam pelas cidades de Pomona e Ontário, o que significava que já haviam percorrido três-quartos do trajecto até Arlington. Malone permitiu, finalmente, que a sua atenção se desviasse da paisagem e da estrada, que percorriam rapidamente, para os seus companheiros, para a carga e para a realização inacreditável que tinham levado a cabo.
Shively tinha estado a espreitar para a parte de trás da carrinha para ver a figura inconsciente de Sharon Fields. Uma tira de gaze vendava- lhe os olhos
outra tapava-lhe a boca, e ela estava deitada de lado, relaxadamente, sobre a carpeta velha entre Yost e Brunner.
Deu um estalo com a língua.
- Não é uma maravilha? Já alguma vez viram um cu e um par de mamas iguais? - Virou-se, com uma expressão tão libertina como Malone nunca tinha visto, e deixou-se cair mais uma vez no banco da frente, acendendo um cigarro com a beata do que estava a acabar. - Dou-lhe todo o crédito, pá, pelo olho que tem - disse para Malone. - Não há dúvida que ela é uma beleza. Não posso esquecer a sensação que tive ao tê-la nos braços quando lhe apliquei o clorofórmio. Ela dobrou-se toda, e eu, ao tentar segurá-la, uma das minhas mãos segurou-lhe um seio. E digo-lhe, era a sério, não é póstiço, e, sabe que mais, aposto que a minha palma não tapou nem metade daquilo.
- Está a falar a sério? - gritou Yost lá de trás.
- Bolas, não confia em mim? - respondeu Shively. - Ela está mesmo ao seu lado, seu filho da mãe. Ponha as patas em cima dela e apalpe você mesmo.
Malone virou-se do volante, furioso.
- Não o faça, Howard, não lhe ponha a mão em cima! Lembre-se do nosso acordo!
- Ora, estava só a brincar, pá - disse Shively. - Pode confiar no velho Howie. Ele é um cavalheiro.
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- Olhe, lá - gritou de novo Yost -, deixe lá de usar o meu nome. Também concordámos com isso, lembram-se?
- Calma aí, Howie - respondeu Shively. - Ela está no país dos sonhos.
- Não estou assim tão seguro - disse Yost, de repente.
Malone virou-se meio para trás.
Que quer dizer? - perguntou, alarmado.
- Não sei, mas pareceu-me que ela se mexeu um pouco. Que diz? perguntou, dirigindo-se a Brunner.
Houve um breve silêncio, e, depois, Malone ouviu a voz de Brunner.
- Sim, não há dúvida. Ela está a mexer-se um pouco, mexeu um braço. Acho que o efeito do clorofórmio está a passar.
- Quanto tempo é que costuma durar? - perguntou Shively.
-De acordo com o que observei no hospital em relação à minha
mulher - respondeu Brunner -, talvez mais ou menos meia hora. Já estamos a andar há meia hora.
Malone martelou nervosamente o volante.
- O melhor é jogarmos pelo seguro - disse ele lá para trás. - Penso que
é altura de lhe fazermos uma injecção de Sodium Luminal. O material está no
estojo castanho pequeno, algures aí atrás. Tem a certeza de que o sabe ministrar?
- Anotei as instruções dos seus apontamentos e do meu Guia de Medicina Caseira - respondeu Brunner. - Tenho-os mesmo aqui no meu
bolso. Não se preocupe, já fiz dezenas de injecções à Thelma.... à minha mulher.
- Bem, então despache-se, antes que ela recupere a consciência incitou-o Malone.
Shively levantou-se parcialmente do banco e deu uma olhadela para trás.
- Veja lá se ela não fica inconsciente por muito tempo. Qual é afinal o poder dessa coisa?
- Varia de indivíduo para indivíduo - explicou Brunner. - É melhor
deixarem-me preparar. Estou a falar para o nosso condutor, avisá- lo-ei
quando estiver pronto para ministrar a injecção, para que possa abrandar e
evitar os desnivelamentos do piso. Estou agora a usar o meu lenço para fazer
um torniquete no braço dela - vamos levantar-lhe mais a manga.... está bem?
Agora deixem-me tirar do estojo o material necessário.
Houve depois uma pausa.
Em poucos segundos, Brunner voltou a descrever as suas actividades
como se fosse um professor numa Faculdade de Medicina a pormenorizar aos
estudantes os procedimentos numa operação de demonstração.
- Vamos ministrar-lhe 0, 26gramas de Sodium Luminal numa veia. É uma dose forte mas inofensiva. Portanto, estou a pegar em duas ampolas de
plástico de 0, 13gramas - o que dará os 0, 26gramas necessários - agora
para dentro da seringa.... dê-me, ali, aquele pequeno pacote de papel esterilizado, a agulha está dentro dele. Obrigado.... está bem, condutor, estou pronto para ministrá-la.
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Imediatamente, Malone desviou a carrinha para a faixa da direita e deixou o velocímetro baixar para menos de oitenta quilómetros à hora.
- Já está, já está, está feita - disse Brunner, em voz alta.
- Viu-a mexer os olhos? - era a voz de Yost.
- Vi, mas nem chegou a abrir - retorquiu Brunner. - Sabe que mais. - A voz sumiu-se, mas ele voltou a fazer-se ouvir. - Estive agora a rever as instruções. Houve uma coisa que me falhou. Como o Sodium Luminal vai levar quinze a vinte minutos a fazer efeito, receio que ela fiqueconsciente por uns momentos antes que ele se faça sentir.
-Bem, dê-lhe outra bofetada de clorofórmio enquanto o Sodium Luminal não faz efeito - sugeriu Malone.
- É uma boa ideia - disse Brunner.
- Bolas, como isso cheira mal - resmungou Yost.
- Mas é necessário - respondeu Brunner. - Muito bem, já ministrei a segunda dose de clorofórmio. Acho que não temos de nos preocupar mais com ela e, para ficarmos descansados, ainda temos mais duas ampolas de
anestésico e uma agulha sobressalente para a pormos inconsciente quando a levarmos para casa daqui a duas semanas.
- Não estou interessado na altura em que a vamos soltar - disse Shively, com uma risadinha. - Só me interessa o que temos agora. - Continuou a olhar para trás. - Só vos digo que só de olhar para ela agora. está a dar-me uma tusa. Olhem para esta toilette, não deve estar mais do que quinze a vinte centímetros abaixo do rabiosque. Ela deve mesmo gostar de o exibir. Howie, sugiro que troquemos de lugar, quero ir aí atrás um bocado. Quero levantar-lhe a sainha para ver pela primeira vez de perto o pedacinho mais famoso do Mundo. Que diz, Howie?
Malone virou-se, furioso, do volante.
- Acabe lá com isso, deixe-se dessas conversas, Kyle. Ninguém chegará sequer a tocá-la sem o consentimento dela, todos concordámos com isso. Foi um acordo unânime.
- Deixe-se disso - disse Shively. - O acordo fizemo-lo quando ela era um sonho. Agora ela é um cu vivo, e nós temo-la. O jogo é diferente.
- É diferente, um raio - respondeu Malone, zangado. - É o mesmo jogo, e as regras são as mesmas. E você não vai para junto dela enquanto ela estiver inconsciente e indefesa, ou mesmo depois de ela acordar, a não ser que ela o convide.
- Estão a ouvir isto? - gritou Shively lá para trás. - Temos entre nós um polícia feito à pressa para manter a lei e a ordem. Vocês vão deixar que ele vos dê ordens?
- Não estou a dar ordens a ninguém - disse Malone. - Estou apenas a recordar-lhe que estabelecemos regras e concordámos cumpri-las.
Shively abanou a cabeça, com pesar.
- Adam Malone, você é um estupor, um idiota cretino.
A cabeça de Leo Brunner apareceu no meio dos dois bancos da frente.
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-Porque é que vocês não acabam com essa briga desnecessária? E
deixem de se tratar pelos vossos nomes em voz alta. Se o fizerem agora, são capazes de se esquecerem mais tarde quando ela estiver acordada.
- Tocou no ombro de Malone. - Claro que sim, Adam, nós tencionamos
respeitar as regras. Você bem sabe que aqui o nosso amigo também está de acordo.
Shively acendeu outro cigarro e mergulhou num silêncio absoluto.
Ao volante, Malone procurou e encontrou o acesso que os levaria ao
Boulevard Van Buren e a Riverside Country e depois directamente para a cidade de Arlington. Enquanto os seus olhos se fixavam na nova estrada, os
seus pensamentos iam para o seu companheiro do lado. Estava irritadíssimo
com Shively; o Texano era o único elemento de discórdia no que talvez pudesse ser o dia mais perfeito.
Tentou, em vão, convencer-se de que Kyle Shively não era tão mau como
parecia. Porque, afinal, Shively havia sido o primeiro a ver a eficiência do
projecto de Malone e também o primeiro a alinhar. Nenhum deles se tinha
aplicado com tanta diligência ao trabalho de o transformar em realidade como
Shively. A maior dificuldade em relação a ele eram a sua personalidade e o seu
comportamento social, sempre na defensiva, provavelmente devido à sua
educação desprivilegiada. Era analfabeto e pouco educado (no sentido formal),
apesar de ser perspicaz e esperto. E era um ser braçal e físico, uma criatura de
impulsos. A maneira ordinária como tratava as mulheres e os assuntos
relacionados com o sexo faziam, sem dúvida, parte do seu exibicionismo, do
seu processo de cativar atenções. A sua obsessão pelo poder sexual e pela
tendência para simplificar reflectia, provavelmente, uma certa insegurança interior e uma falta de bases.
Pode-se compreender Shively, pensou Malone, mas não se pode gostar
dele. Então Malone pensou em mais uma coisa. Pensou se se poderia confiar nele.
- Bem, lá está ela! - cantou Shively. Levantou-se mais para ao pé do pára-brisas. - Ali em frente está Arlington, que porcaria de cidade.
Automaticamente, Malone abrandou o veículo.
- Olhe, lá - gritou Yost, da parte de trás -, não se esqueça de parar
numa estação de serviço onde haja uma cabine telefónica. Tenho que ligar
para a minha mulher, do Colorado, lembram-se?
- É melhor esquecer isso - disse Shively. - Não queremos andar por aqui com ar de vagabundos. É perigoso.
Yost aproximou-se do banco da frente, protestando.
- Será mais perigoso para mim se não avisar a minha mulher que estou em segurança, no rio. É só um minuto.
- Está bem, acalme-se, Howie - retorquiu Shively. Apontou pela janela
à frente de Malone. - Vá sempre em frente por Van Buren. Temos de atravessar o centro da cidade. Não é uma grande cidade, só tem uns dois quarteirões de lojas, por isso não pare. Atravesse depressa. Há umas duas
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bombas de gasolina a cerca de dois quarteirões para o Sul, perto do campo de baseball do Little League.
Malone conduziu, atravessando Arlington em velocidade moderada, acelerando para o verde do único semáforo, e, em poucos segundos, estava
fora da cidade, vendo em frente as bombas de gasolina.
Aproximou-se da berma, estacionando a carrinha meio quarteirão antes da bomba de gasolina.
Shively abriu a sua porta.
-Olhe, venha por aqui, Howie. Não mexa na porta de trás, não podemos correr riscos. - Saiu da carrinha, deixando Yost saltar para o banco da
frente, e meteu a cabeça de novo dentro da carrinha. - Olhem, vocês os dois,
guardem o nosso tesouro. Eu vou com o Howie para ver se ele não demora
mais do que um minuto e aproveito para urinar. Volto já.
- Despache-se - respondeu Malone.
Pelo pára-brisas, viu o par caminhar em direcção à bomba de gasolina.
Mas os seus pensamentos fixaram-se na figura esguia do Texano.
Malone pensou na rapariga que ia ali atrás e que não era só a jovem estrela
mais conhecida e amada da história do cinema, mas também um ser humano,
um ser precioso, frágil e querido que lhes merecia respeito e carinho. E também a protecção deles.
Malone ficou parado a morder o lábio inferior, pensando no que se iria
passar. Até agora, pelo menos até recentemente, ele tinha estado tão absorvido em chegar a este ponto do projecto que ainda não tinha, honesta e
realisticamente, projectado as relações deles com Sharon Fields, uma vez que
a tinham na sua companhia. Podia agora deduzir do comportamento irascível
de Shively durante a viagem, que o Texano era o único, entre eles, que teria
de ser controlado.
Sabia que ele era o único a recear. Quanto aos outros, podia-se confiar
neles. Nem Brunner nem Yost levantavam problemas. Eram chefes de família
e podia-se contar com um comportamento civilizado. Tal como ele próprio,
seguiriam as regras. Shively era o único que lhe causava apreensão; a sua atitude em relação às mulheres, mesmo em relação a uma inatingível como
Sharon Fields, podia ser rude e indelicada, talvez até violenta. Ele considerava
que as mulheres não eram mais do que um objecto sexual. A sua mentalidade
era tal que ele talvez considerasse a Sharon igual a uma prostituta. Além disso, já tinha dado provas de que estava pouco interessado em regras.
Sim, Shively era o que tinha de ser vigiado, aquele que se tinha de chamar
á ordem, de manter na ordem. Claro que podia ser que não viesse a haver
nenhum conflito a sério. Eram três alinhados contra Shively, e, de futuro, ele
teria simplesmente de estar de acordo com a maioria, tal como sempre acontecera no passado.
Malone sabia que a responsabilidade final sobre o modo como tratariam
Sharon Fields era sua. Ele tinha concebido a ideia de conseguir ter Sharon,
uma Sharon que seria convidada deles, uma Sharon transportada da fantasia
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para a realidade. Portanto, era obrigação sua, e de mais ninguém, assegurar que ela seria salvaguardada e que teria liberdade de escolha.
Viu ao fundo da rua os outros dois como que emergindo da bomba de gasolina.
E, nesse momento, tendo pensado em tudo, e sabendo que o futuro da carga que levavam estava nas suas mãos, sentiu-se melhor.
Pensou então no que iria acontecer nessa noite.
Vinte minutos mais tarde, Adam Malone ainda estava ao volante,
conduzindo.
Antes de prosseguirem viagem, tinha havido uma pequena discussão
acerca de quem conduziria. Yost tinha vontade de guiar na próxima etapa, visto estar mais familiarizado com a área e queria que Malone fosse à frente
com ele, para que este aprendesse o caminho. Isso significava que Shively iria
atrás com Brunner, mas Malone não queria que o Texano fosse atrás com
Sharon enquanto esta ainda estivesse inconsciente. Finalmente, Yost
compreendeu isso, e todos voltaram à posição inicial, excepto ele próprio que
ia ajoelhado directamente atrás, entre Malone e Shively, para poder ver
claramente através do pára-brisas o caminho que seguiam. Deste modo, podia dar indicações a Malone.
Durante os últimos vinte minutos, todos os sentidos de Malone se tinham
avivado, absorvendo todos os principais pormenores da paisagem por onde
iam passando, enquanto continuava a fixar mentalmente tudo o que Yost lhe havia dito.
Saindo da zona da bomba de gasolina e atravessando a linha de caminho-de-ferro, conduziu por uma estrada de campo com palmeiras e laranjeiras. Tinham começado, gradualmente, a subir, e
a estrada levava-os para as montanhas estéreis. Fizeram uma curva apertada em Mockingbird Canyon, e a estrada passou a ser mais estreita, mas em breve as casas ficaram para trás e eles encontraram-se em campo aberto.
Seguidamente e de acordo com as instruções de Yost, Malone tinha virado a carrinha para Cajalco Road, seguindo um caminho que aquele dizia ser
de acesso a um lago enorme - o lago Mathews, como lhe chamava -, e que não era mais do que um reservatório, completamente vedado, onde não se
podia andar de barco, nem atravessar. Depois, uma curva à esquerda para o
chamado caminho do lago Mathews, e a partir daí tinham subido constantemente até a um alto de cerca de seiscentos metros. Dirigiam- se para o
local conhecido pelo nome de Gavilan Plateau, uma área mais elevada que era
constituída na sua maior extensão por cabeços arredondados, ocasionalmente
interrompidos por cumes imponentes mas estéreis.
- Pare nesse portão, aí mesmo à frente - ordenou Yost. - É o portão do
rancho McCarthy. Quase ninguém sabe que a estrada de areia que atravessa o rancho é um acesso público que por acaso atravessa propriedade privada.
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Além disso, há-de ver uma tabuleta que diz "Conserve sempre o Portão Fechádo , e isso, além de parecer reforçar a ideia de que os de fora não têm autorização para entrar, serve para intimidar os estranhos, o que é óptimo para nós, porque a estrada para lá do portão leva-nos ao nosso destino e dá-nos a dupla segurança de privatividade.
Tinham parado junto do portão do rancho McCarthy, e Shively abriu-o. Malone transpô-lo, esperou que Shively o fechasse e saltasse de novo para dentro da carrinha. A estrada de areia desnivelada corria por montanhas menos elevadas, onde abundavam grandes rochas, arbustos secos e zimbros enormes. Em pouco tempo, tinham saído de um trajecto de estrada de areia, para entrarem numa ainda menos concorrida e mais acidentada estrada, e Malone, conduzindo por ela, viu subitamente à esquerda uma cabana pintada de verde, escondida num vale estreito e profundo a cerca de seis metros abaixo da estrada. À frente da cabana havia uma escultura índia muito curiosa.
- É ali o nosso local? - perguntou Malone.
- Não - responderam Yost e Shively simultaneamente. - Essa é a última habitação que verá antes de chegarmos ao nosso destino. Costuma viver ali uma velhota, mas agora creio que está abandonada. Chama-se Camp Peter Rock. Quer saber porquê? Vê aquela relíquia índia em frente da ca bana? Sabe o que é? É um símbolo fálico de um metro e oitenta, que se assemelha bastante a um pénis - informou Yost.
- Fui eu que servi de modelo - disse Shively, com um sorriso.
- Continue agora por mais uns cinco minutos - ordenou Yost, guiando Malone -, depois, vá devagar porque senão passa pelo cruzamento - uma estrada obscura quase escondida, que nos levará ao monte Jalpan, a zona de Gavilan Hills onde mudaremos de veículo a fim de ir para o esconderijo. Cinco minutos mais tarde, Yost avisou Malone para abrandar, depois tocou-lhe no ombro e apontou para a direita. A estrada, de areia solta, quase passava despercebida a Malone devido à densa folhagem que havia de ambos os lados. Virou para lá mesmo a tempo.
Em poucos minutos, começaram a subir.
Então, Malone reduziu a velocidade para iniciar a íngreme subida.
- O monte Jalpan - explicou Yost - é o cume mais alto e mais primi tivo de Gavilan Hills. Nenhum estranho vem até aqui, tão longe, só o guarda-florestal. Continue a subir, pois já não estamos longe do local onde devemos deixar a carrinha.
Havia paredes altas de granito, e a passagem afunilava através da rocha; de súbito, atingiram uma clareira - a estrada parecia que tinha desaparecido -, à direita era um abismo, e à esquerda, uma densa floresta.
- Fim da estrada, fim da civilização - disse Yost. - É aqui que vamos mudar de veículo.
Shively olhou atentamente pelo pára-brisas.
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- Avance mais uns dez metros, pá Vai ver um espaço no meio daquela
folhagem. É ali que temos o jipe escondido.
A carrinha avançou, aos solavancos. Malone localizou a abertura no meio da folhagem e carregou nos travões.
- Pare aqui - disse Shively. - Vou tirar o jipe, e depois já pode meter o Chevy directamente entre esses dois zimbros. Leve-o o mais possível para junto do precipício. Conseguirá ver o máximo que pode avançar.
Shively saltou para fora, e correu através da folhagem. Malone seguiu-o
com a vista, e tentou localizar o jipe, mas não conseguiu. Depois viu Shively
parar a poucos centímetros de um carvalho gigantesco e dirigir- se a qualquer
coisa que estava atrás dele. Ao tentar descobrir o que era, viu, com surpresa,
que Shively estava a segurar a ponta duma cobertura de sarja verde desbotada,
habilmente camuflada com ervas secas e ramos de zimbro. Shively estava
nesse momento a sacudir as ervas da sarja e a levantá- la, exibindo a parte da
frente, arrebitada, os faróis altos e os pneus desproporcionadamente largos do
jipe castanho-escuro.
Continuou a ver Shively trabalhar durante mais algum tempo, depois
começou a estudar o local da mudança, e, por fim, viu o que estava para lá do
precipício. Reparou nas encostas rochosas e escorregadias das montanhas
mais próximas, e nos outeiros mais distantes que sabia irem dar a uma grande
clareira de areia, o Temescal Canyon.
Pela primeira vez nessa manhã, Malone sentiu-se completamente desligado do mundo que conhecia. O promontório, bem como a paisagem lá ao
fundo, deram-lhe a sensação de isolamento absoluto de tudo o que se conhecia
e de toda a vida humana. Era completamente primitivo. Era uma página
rasgada do livro O Mundo Perdido, de Conan Doyle.
Ouviu o roncar de outro motor e viu Shively tirar o jipe da mata. Malone
nunca tinha visto um desses jipes motorizados, excepto em anúncios, e ficou
surpreendido com a sua solidez. Ele sabia que era de dois lugares, portanto
não podia imaginar como iria agora transportar quatro pessoas. Então, à medida que se aproximou dele e conseguiu vê-lo melhor, reparou que o dono
tinha remodelado o pequeno veículo. No porta-bagagens, aberto da parte de
trás, alguém tinha construído dois assentos de madeira, um pouco mais elevados que o assento da frente. Tinha uma cobertura de sarja, que fazia um
ângulo a partir do topo do pára-brisas até dois postes altos, de aço, colocados
atrás, e que fora possivelmente posta para protecção contra o sol muito forte ou contra a chuva.
Quando o veículo se aproximou da carrinha, Shively gritou:
- Vá, Adam, meta a carrinha ali, no ponto de onde saí.
Malone destravou, meteu a mudança, e o Chevy arrastou-se através da clareira, por entre as árvores.
- Fique aqui, Leo - disse Yost para Brunner. - Vou sair para dar uma ajuda.
Malone olhou por cima do ombro e ainda conseguiu ver Yost abrir o fecho da porta da carrinha pela primeira vez em toda a viagem. Passado um bocado, este, seguido de Shively, apareceram em frente da carrinha Chevy, indicando a Malone como arrumá-la da melhor maneira, de modo a ficar escondida. Malone manobrou o pesado veículo, fê-lo recuar, ficando atrás de um denso arvoredo. Após ter desligado o carro e metido as chaves no bolso, desceu e massajou as pernas dormentes.
Depois reuniu-se aos outros para pôr o encerado verde sobre a parte dianteira da carrinha, arrancando ervas, ramos quebrados e areia para colocar por cima da secção que escondia a parte superior do carro.
Quando tudo ficou pronto, Yost, seguido pelos outros dois, dirigiu-se para a retaguarda da carrinha.
- E agora vamos à parte do habeas corpus da operação, ou lá o que lhe quiserem chamar - disse Yost. - A única coisa que falta é transportar o corpo, de um veículo para o outro, e levá-lo até à suíte real.
Por uns momentos, Malone ficou surpreendido por esta referência a Sharon Fields. Quase se tinha esquecido de que eram cinco, e não quatro, que estavam ali. Aliás, desde que tinham saído de Arlington, e durante toda a meia hora ou mais que gastaram em Gavilan Hills, esquecera-se completamente da finalidade da viagem. Tinha estado tão atento a conduzir nesta terra remota e acidentada, tão decidido a fixar o caminho, que nem sequer tinha pensado na carga que levavam.
Agora voltou-lhe tudo à cabeça, a excitação do que se tinha passado nesse dia e do que os esperava nessa noite.
Yost estava a falar para Shively.
- Porque não traz você o jipe mais para cá, Shiv? Assim, os três poderíamos descarregá-la e você podia guiar o resto do caminho.
- E eu a pensar que ia ter a chance de uma apalpadela à borla - disse Shively. - Está bem, vou buscar o jipe até meio caminho.
Quando Shively começou a afastar-se, Yost aproximou-se da porta traseira do Chevy e abriu-a completamente.
Malone piscou os olhos ao que tinha à sua frente e então lembrou-se de que ainda não havia sequer olhado para Sharon desde as sete e dez da manhã, quando ela foi anestesiada e posta na parte de trás da carrinha. E ali estava ela, deitada de lado e inconsciente, com Brunner sentado, pouco confortavelmente, atrás dela.
Este estava a olhar fixamente para ela. Levantou os olhos nesse momento. Ela ainda não mexeu um músculo desde que a injecção começou a fazer efeito.
- Não lhe aconteceu nada de mal, pois não? - perguntou Malone.
-Oh, não! A pulsação está relativamente normal. Ela apenas está fora do mundo e assim continuará durante grande parte do dia. - Brunner
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suspirou. -Ela é, realmente, uma miúda muito bonita, mesmo neste estado. - Fez uma pausa. - Eu.... lamento que não nos tenha sido possível conhecê-la doutra maneira.
- Isso agora não interessa - disse Yost, impaciente. - Vamo-nos pôr a mexer. Daqui a pouco o Shiv está a chegar com o jipe, e temos de metê-la lá.
Você, Leo, senta-se num dos bancos de trás, e Adam e eu levamo- la. Depois,
Adam enfia-se no outro banco de trás. Vocês os dois seguram-na ao colo. Eu
vou à frente com o Shiv.
- Quanto tempo é que vai levar? - perguntou Brunner.
- Para o esconderijo? É perto. O terreno é um pouco acidentado, mas a
distância é curta. Devemos chegar lá daqui a quinze ou vinte minutos, no máximo. Vamos, aqui está Shiv. Vamos levantá-la cá para fora.
- Cuidado com ela - pediu Malone.
A transferência de Sharon Fields da carrinha Chevy para o jipe foi rápida e
sem incidentes. Yost tirou da carrinha uma pequena caixa de cartão com víveres, deixando o resto para a segunda viagem, e, em poucos minutos,
arrancaram para a etapa mais curta.
Malone sentou-se, muito direito, no banco de trás, com um braço a segurar a cabeça de Sharon, e o outro a cintura, enquanto as ancas e as pernas
dela estavam apoiadas em Brunner. Foi uma viagem de solavancos para cima,
para baixo e para os lados. O carreiro, extremamente estreito, que, em comparação, fazia com que todas as outras estradas da terra parecessem auto-estradas, era só suficientemente grande para o jipe. Subia tortuosamente
num caminho íngreme em demasia e pouco delineado em alguns pontos. O
carreiro era aos ziguezagues entre a densa folhagem da encosta, mas, passados quinze minutos, alargou-se e ficou plano à medida que se aproximava duma pequena elevação.
- É mesmo aí ao lado - Yost chamou a atenção de Shively.
Continuaram sobre o campo ressequido.
Malone apertou Sharon um pouco mais. Tinha-se abstraído do cenário e
da aproximação do destino. O seu olhar estava fixo naquela cara inacreditável
não desfigurada pelas duas tiras que lhe tapavam os olhos e a boca. Ele tinha
os óculos escuros dela guardados no bolso, e continuou a estudar- lhe as feições visíveis, paradas, descontraídas e repousadas num sono inconsciente
provocado pela droga. Involuntariamente, os seus olhos baixaram-se para a
parte de cima dos peitos que tremiam emoldurados pela sua blusa de malha,
e, então, sentindo-se culpado, desviou o olhar.
Estava consciente de que o seu coração batia descompassadamente e que
seu pénis tinha começado a inchar, e sentiu vergonha, tentando pensar apenas na posição indefesa e na necessidade que ela tinha dele e do amor terno
que por ela sentia. Como ele ansiava pelo momento em que os seus lábios se
uniriam, e ela estaria nos seus braços voluntariamente, submetendo- se à sua ternura e às suas carícias.
E então, de repente, aquele pensamento assaltou-lhe de novo a mente.
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Aquela não era uma jovem bonita qualquer. Era a própria Sharon Fields, em pessoa, em carne, nos braços dele, nos braços de Adam Malone. Todo o mundo a queria. E ele, Adam Malone, neste planalto desolado, tinha-a para ele.
Era terrível, inacreditável, a amplitude do acto deles e a realização daquilo que ele tinha conseguido nesse dia.
- Olhem, malta - ouviu ele Shively anunciar -, lá está ela à nossa frente.
Eles estavam a descer devagar uma rampa que dava para um vale fundo, e, à direita, parcialmente escondida sob uma grande pedra de granito e com outra pedra saída de um lado, estava a cabana-esconderijo. Situava-se numa descida, escondida no meio de um grupo de carvalhos, com um ribeiro que corria perto. Só se viam partes da linda cabana baixa de pedra e rocha entre o topo das árvores.
Mas quando Shively fez uma curva contornando as árvores até à parte de terra batida em frente, podia ver-se que toda a casa era muito mais bonita e, pelo menos do exterior, muito mais primitiva do que Malone tinha imaginado.
O jipe parou em frente dos degraus de madeira e do pequeno alpendre que davam para a porta de entrada.
Tinham chegado a Más a Tierra .
Shively virou-se ao volante.
- Vamos levá-la para dentro, rapazes. A cama está à espera.
Com a ajuda de Shively, Malone e Brunner retiraram o corpo, desmaiado, da parte de trás do jipe.
Enquanto Shively pegava nas chaves que Yost lhe estendia, Malone e Brunner transportaram-na pelas escadas a cima até ao alpendre, pelo pequeno hall de entrada, e, virando à esquerda, seguindo Shively por um corredor estreito até ao quarto principal. Este empurrou a porta do quarto.
- Atirem-na para cima da cama. Estarei de volta num instante para lhes dar uma ajuda.
- Nós podemos fazer isso - replicou Malone, apertando as mãos por baixo das axilas de Sharon, enquanto transpunha a porta aberta andando de costas, com cuidado.
Shively afastou-se para o lado, deixando Malone e Brunner entrar com ela no quarto. Ao passarem por ele, Shively estudou-a.
- Sim - murmurou. - Valeu a pena.
Piscou o olho a Malone, e saiu a assobiar, preparando-se para ir buscar a caixa de víveres que estava no jipe, antes que Yost o arrumasse nas traseiras por baixo da garagem, ao lado direito da cabana.
Ao entrar no quarto de dormir principal, Malone ficou impressionado com o seu tamanho inesperado, o seu conforto e a largura da Cama Celestial. A cama era uma reprodução moderna de uma imponente cama de bronze do
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século dezanove, com colunas altas de ambos os lados das barras de bronze
que compunham a cabeceira. Não havia colcha, apenas duas almofadas bem cheias e um cobertor de lã cor-de-rosa sobre os lençóis brancos e limpos.
Puseram Sharon Fields, cuidadosamente, sobre a cama, ajeitaram-na a meio e deitaram-na de costas, com a cabeça sobre uma das almofadas. Malone
inspeccionou-a, arranjou-lhe o cabelo loiro e solto para trás, tirou-lhe o fio
pesado pondo-o na mesa-de-cabeceira e apertou o botão do meio da blusa de
malha branca que se tinha desabotoado. Ao ajeitarem-na, a saia de cabedal
creme tinha subido de um lado, deixando ver um pequeno sinal castanho, de
nascença, na coxa. Malone puxou, discretamente, a bainha da saia para
baixo, e quando os seus dedos tocaram na pele dela sentiu um arquejo de calor por todo o corpo.
Brunner ficou especado e mudo, os olhos piscando incessantemente por detrás dos óculos.
- Penso que ela estaria melhor sem botas, não acha?
Malone hesitou. A ideia de lhe tirar qualquer peça de vestuário enquanto
ela estivesse nesse estado, inconsciente e indefesa, incomodava- o. No entanto, tê-la incomodada com o calçado em cima da cama parecia desnecessário.
- Sim, suponho que as podemos tirar. Tire você a da esquerda que eu tiro
a da direita. Penso que têm fechos de lado.
Pouco tempo depois, tinham aberto os fechos e retirado as botas de cabedal, o que a deixou descalça.
Depois, chegaram ao ponto em que, tanto Malone como Brunner, se sentiam relutantes em actuar.
O olhar atrapalhado de Brunner cruzou-se com o de Malone, e o Guarda-Livros foi o primeiro a falar sobre o assunto.
- Temos mesmo de a amarrar? Essa.... essa é a parte que ainda me choca
mais do que o rapto. Faz parecer que o rapto foi real, e que a queremos manter prisioneira à força.
Malone hesitou mais uma vez. Contudo, sabia que devia ser feito.
- Temos de o fazer. Todos concordámos com isso previamente. Se não o
fizermos, bem sabe que os outros dois o farão.
- Tem razão.
-Tenho a corda na minha mochila. Vou buscá-la.
Malone saiu para o corredor. Da janela que dava para uma parte do alpendre e a área de terra batida em frente do grupo de carvalhos, pôde ver Shively ao lado do jipe, enchendo o depósito com gasolina duma lata, enquanto
falava com Yost, que estava agora ao volante.
Malone seguiu pelo corredor em direcção à porta de entrada, onde tinha
sido acumulado o material deles trazido nas viagens anteriores. No meio dos montes de pacotes, sacos de compras e malas, ele descobriu a sua mochila.
Estendeu o braço para a agarrar, separou-a das outras coisas que lhe pertenciam, e, depois, arrastou-a para o quarto de dormir principal.
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Vasculhando dentro do saco, encontrou as duas pontas soltas da corda
fina e macia que já se achava cortada à medida. Tirou também duas tiras de
pano rasgadas de um lençol. Atirou uma das cordas e uma das tiras de pano a
Brunner que mostrava um ar infeliz.
-Vamos despachar isto, Léo.
-Não volte a chamar-me pelo nome.
- Desculpe.
Cada um deles pegou num dos braços dela, enrolaram as tiras protectoras
em volta dos pulsos de Sharon, e, depois, ataram as pontas de cada uma das
cordas aos pulsos. Em seguida; abriram-lhe os braços esticando-os um pouco
sobre a cama, amarrando as outras pontas aos postes de bronze.
- Não muito apertado - preveniu Malone. - As cordas não precisam de
estar completamente esticadas. Deixe uma folga, para que ela consiga mexer-se uns centímetros quando lhe apetecer.
Brunner concordou quase imperceptivelmente.
Em pouco tempo o trabalho ficou feito. Mudaram de lugar, verificaram o
trabalho um do outro e ficaram satisfeitos.
- Sabe - disse Brunner -, suponho que podemos encarar isto de outra
maneira. Uma vez, a minha mulher foi operada no hospital, e eles estavam a
dar-lhe soro pelo método intravenoso, e tiveram de lhe amarrar os braços aos
postes laterais da cama. Ela estava excitada, rebolava, no entanto tinham- lhe feito isso para a proteger. É um método muito usado nos hospitais.
- Penso que poderemos encarar isto dessa maneira - concordou
Malone. - Só a amarraremos assim temporariamente, para facilitar as coisas
até ela descobrir porque fizemos isto e decidir ser simpática. Então poderemos desamarrá-la.
- Talvez esta tarde.
- Com certeza - retorquiu Malone. Pensou mais uma vez no corpo
inconsciente de Sharon. - Não acho que ainda seja necessário mantê-la com os olhos vendados e a boca tapada.
- Claro que podemos tirar-lhe a gaze da boca - volveu Brunner. Mesmo que ela gritasse, estamos a milhões de quilómetros de tudo, no meio de nada.
Inclinou-se para Sharon, pegou numa ponta da fita, e, muito
vagarosamente, tirou-lhe a gaze da boca. A respiração, que era difícil ficou logo aliviada.
- E a venda dos olhos? - perguntou Malone.
Antes que Brunner pudesse responder, Shively apareceu no quarto seguido de Yost.
- Olá! Vocês trabalharam depressa, rapazes - disse Shívely. - Têm-na mesmo bem presa.
Yost aproximou-se da cama.
- Uma bela adormecida, como eu nunca vi - disse em voz baixa.
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- Estávamos mesmo a pensar se lhe deveríamos tirar a venda dos olhos - disse Brunner.
- Não sei - replicou Shively - Que acha, Howie?
Yost pensou na resposta.
- Estou a pensar duas vezes. Se a deixarmos com os olhos vendados durante mais tempo, não correremos o risco de ela ver como somos. Apesar de termos alterado as nossas fisionomias.
Malone decidiu tomar uma decisão.
- Eu sou contra o mantê-la vendada. Quando acordar e se aperceber que tem os olhos tapados, ficará cheia de medo. O encontrar-se amarrada já é suficiente para a assustar, mas o não conseguir ver com quem está, há-de, com certeza, dar-lhe a sensação de que está sob ameaça. Não há nada mais assustador do que o desconhecido. Se ela puder ver onde está, com quem está, ver que somos tipos normais e não criminosos, começará a gramar-nos e a cooperar.
- Tem muita razão - admitiu Yost -, muito embora eu ache que não estamos assim com um ar muito normal, com todos estes cabelos na cara, quer sejam verdadeiros ou postiços.
- Vocês estão muito bem - assegurou- lhes Malone. - E ela só se lembrará do nosso aspecto agora. Assim que isto acabar e voltarmos para Los Angeles, sem bigodes, barbas ou postiços, ela nunca virá a reconhecer-nos. Eu voto para que se retire a venda dos olhos; queremos que ela nos veja, e que se sinta à vontade connosco. É isto o que se pretende.
- Acho que o miúdo tem razão - disse Shively aos outros. Yost fez pressão no seu bigode postiço.
-Penso que o que ele diz é lógico.
- Por mim, estou por aquilo que decidirem - retorquiu Brunner.
- Óptimo - concluiu Malone. Inclinou-se para Sharon Fields, e, com muito cuidado, tirou os pedaços de fita adesiva que prendiam a gàze, e, depois, retirou o trapo.
As pálpebras mexeram-se, mas os olhos continuaram fechados. Shively olhou para o relógio.
- No meu, tenho um quarto para as dez. - Levantou o olhar para Brunner. - Você é o nosso cérebro medicinal, meu velho. Quanto tempo falta para ela acordar?
- Bem - disse Brunner -, segundo li no meu Guia de Medicina Caseira , e de acordo com as experiências que tive com a minha mulher e a minha cunhada quando estiveram hospitalizadas, eu diria - atendendo também à dose de anestésico que administrámos - duas aplicações de clorofórmio e uma injecção de 0, 26 gramas de Sodium Luminal.
- Não precisa de me contar isso - interrompeu Shively, impacientemente. - Eu sei o que houve. Diga-me só quando é que ela deve acordar.
- Uma estimativa moderada seria de seis horas. Eu diria que ela deve
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acordar hoje às quatro da tarde, mas nessa altura é possível que ainda se sinta tonta e pouco consciente. Deverá estar totalmente consciente e normal às sinco horas.
- Esse tempo todo - Shively não escondeu a sua irritação. - Que raio, quér dizer que temos de esperar todo esse tempo antes de podermos começar?
- Antes de podermos começar o quê? - quis saber Malone. Shively virou-se para ele.
- Fornicá-la, seu palhaço. Que pensa que estamos aqui a fazer. a ganhar medalhas de escuteiros a brincar na mata?
- Não desiste, pois não, Kyle? - censurou Malone. - Sabe tão bem como eu que não lhe vamos pôr a mão em cima contra a sua vontade. Começaremos quando ela nos disser, e nem um minuto mais cedo. Importa-se de meter isso na cabeça, Kyle?
- Está bem, está bem, escuteiro! Portanto, o plano de ataque é falarmos com ela primeiro. Não vamos perder tempo assim que ela acordar. Esttaremos aqui e colocamo-la logo ao corrente da situação.
- Não se preocupe - prometeu Malone. - Assim que a Sharon recuperar a consciência, falaremos com ela, teremos uma longa conversa.
- Está bem - disse Shively, dirigindo-se para a porta. - Portanto, temos tempo livre até às quatro ou cinco da tarde. Não sei como vocês se sentem, mas eu estou com fome e vamos precisar de forças. Vamos fazer qualquer coisa que se coma.
Yost e Brunner seguiram Shively para fora do quarto, mas Malone deixou-se ficar para trás, sem vontade de sair.
Inebriado, aproximou-se dos pés da cama e fixou o olhar na cara e no corpo, que já lhe eram familiares, estendidos à sua frente num sono profundo. Ela pareceu-lhe a reencarnação da filha de Leda e de Zeus, e o rosto e a cabeça, emoldurados pela cascata de cabelo loiro, eram, com certeza, o rosto dela que Christopher Marlowe tinha visto - o rosto que lançou mil navios e queimou as terras infinitamente altas de Ilium. Sob a blusa de malha, o peito subia e descia num ritmo cadenciado. Ali, em repouso, o corpo flexível e perfeitamente proporcionado, salientado pela reduzida saia de cabedal, as longas pernas nuas juntas, a mulher-fantasia dos sonhos de todos os homens.
Sharon Fields.
O passado tinha sido mesquinho na oferta de deusas com tantos dotes. A História deu quase sempre uma só beleza sedutora, uma só criatura sexual como esta, em cada nova geração. Já houve mulheres que nos foram mostradas nuas, tais como a Vénus de Milo, a Maja Nua, Olympia, a mulher da "Manhã de Setembro". Já houve uma Ninon, uma O'Murphy, uma Pompadour, uma Dupléssis. Existiram também, para excitar as fantasias dos Otnens, uma Duse, uma Nazimova, uma Garbo, uma Harlow, uma Hayworth, uma Taylor, uma Monroe.
Agora, sozinha e ultrapassando todas as mulheres vivas no Mundo, havia Sharon Fields.
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Há anos que ela era, para Malone, uma sombra num écran distante, para
ser saboreada de longe, para ser saboreada em comum com milhões de
homens que a adoravam em todos os continentes do Globo. Durante mil e
uma noites, ao longo dos anos, Malone tinha-se aconchegado na escuridão
' dos cinemas seguindo todos os movimentos da imagem de duas dimensões
projectada no écran enquanto Sharon Fields interpretava O Fantasma dos
Olhos Verdes , Querida Nell , O Presidente em Combinação, Madeleine Smith, A Camélia Branca, Pequeno Egipto A Divina
Sarah , A Rapariga de Bikini Beach . Ela sempre fora tão insubstancial
como um espectro, tão irreal como uma sereia, e tão efémera como um desejo.
No entanto, com a ideia do que seria possível, pelo bom resultado da sua
experiência em alquimia, ele havia transmutado esta criatura ilusória da sua
fantasia para a mulher de carne e osso que estava deitada à sua frente, numa
cama, tão perto que lhe podia tocar.
Nenhuma realização humana era comparável àquela que ele estava a sentir.
Só um remorso muito vago estragava a situação. Teve um baque, sentiu a
consciência pesada, ao vê-la naquele estado, uma deusa tirada do pedestal e
atada a postes de metal, como se fosse o prisioneiro mais reles ou uma escrava. Ela era mais do que isso, e merecia mais do que isso, no entanto, não havia outra alternativa.
Procurou apaziguar a consciência tentando convencer-se de que aquela
condição era temporária. Mais à tardinha ela iria acordar, vê-los e ouvi-los, os
seus receios seriam tranquilizados, apreciaria a decência deles e a admiração
inabalável que tinham por ela. O motivo, a impulsividade e a coragem deles
transformá-los-ia, através dos olhos românticos dela, no Robin dos Bosques e
seus alegres Companheiros. Depois disso, poderiam desamarrá- la. Dar-lhe-iam toda a bondade e toda a atenção que ela merecia. Iriam gozar juntos
aquela aventura singular.
Um sorriso passou pela face de Malone à medida que ele imaginava o
futuro mais próximo com Sharon. Seria tudo como ele tinha sonhado, tinha a certeza.
Desviando-se da cama, começou a ver pela primeira vez os pormenores do
quarto. Tinha um tecto com vigas à vista, as paredes estavam forradas com
painéis de madeira, pintados, com um metro e vinte por dois metros e
meio, o chão era ladrilhado, e, em três zonas, de um e de outro lados da
cama e perto da chaise longue, estava tapado com carpetas grossas entrançadas.
Malone recuou até à porta para ter uma visão mais ampla do quarto
principal, da entrada. À direita, armários de parede, um deles de roupas de
cama e toalhas e outro para vestuário, depois um toucador de parede e um
espelho, e, depois disso, a porta para a casa de banho. Entre esta e a cama havia uma janela com cortinas de pano cru, parcialmente fechadas, não
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escondendo totalmente o facto de estar toda tapada com madeira de cima a baixo.
Logo à esquerda de Malone, havia um sítio para se sentar, uma chaise longue coberta com pano de xadrez, uma mesinha com tampo de vidro, dois maples com almofadas, mas baixos, e um candeeiro de pé alto. Atrás disto, outra janela, também franqueada, com pontas das traves visíveis de ambos os lados das cortinas. Na mesma parede, um espelho de metro e meio de altura.
Flanqueando os postes laterais de metal da cama, havia duas mesas - de-cabeceira pequenas, uma com um candeeiro. Na parede, por cima da cama - Malone ficou surpreendido por não o ter notado antes -, estava uma gravura colorida, de Currier e Ives, com uma paisagem de Nova Inglaterra, muito bem emoldurada.
Pensando na localidade desolada onde se situava a cabana, o quarto era extraordinariamente harmonioso, confortável, e até acolhedor, e não humi lhava de modo algum a presença da sua célebre locatária.
Satisfeito; Malone lembrou-se do resto do conteúdo da sua mochila. Levantou o saco, pô-lo em cima da mesa com tampo de vidro, e começou a
desembrulhar as coisas que tinha comprado para Sharon Fields. Juntou os objectos de toillete - escova de dentes, pasta dentífrica, pente, escova para o cabelo, sabonete, embalagem de pílulas anticoncepcionais, a gelatina lubri ficadora, o tubo de Preceptin, três diafragmas, o saco de douche , creme para a cara e para o corpo, lenços de papel, Tampax - e levou-os para a casa de banho bem iluminada, arrumando-os por cima do lavatório, no armário dos medicamentos.
No chão, perto da cama, Malone pôs um par de sandálias baratas de enfiar que poderiam servir de chinelos de quarto. Numa das mesas-de- cabeceira, pôs o velho relógio de viagem e um copo de papel cheio de água. Numa das gavetas do toucador, arrumou, bem dobrada, a camisa de dormir com feitio de toga.
Tinha seis livros de bolso que havia comprado especialmente para ela. Calculou que ela precisaria de uma série de entreténs, tendo passado a pente fino todas as suas entrevistas para descobrir os seus autores e peças de teatro preferidas. Comprou uma selecção de novelas de Albert Camus, Thomas
Mann, Franz Kafka, William Faulkner, James Branch Cabell, e uma colecção de peças de Molière. Depois de os ter colocado na mesa-de-cabeceira, juntou-lhes com certo pudor um sétimo volume, um da sua
própria biblioteca, sentindo que talvez ela estivesse interessada em saber o que ele pensava, sentindo também que este livro talvez fosse o mais apropriado para uma situação romântica. O livro era o Ars Amatoria - A Arte de Amar -, de Ovídio.
Quando acabou o seu trabalho de casa, Malone tirou uma pasta da sua mochila. A pasta continha algumas das últimas entrevistas mais audazes de Sharon. Deixando a pasta em cima da mesa de tampo de vidro, voltou de novo
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para os pés da cama, mas Sharon não se tinha mexido um centímetro desde a
altura em que ele tinha deixado de olhar para ela. Respirava calmamente,
perdida no sono mais profundo. A sua paixão por ela nunca tinha sido tão
forte. No entanto, faltavam muitas horas antes que eles pudessem comunicar, e, depois de um intervalo de admiração silenciosa, decidiu deixá-la sozinha para gastar o resto do efeito da droga.
Pegando na mochila, que ainda tinha alguns livros seus bem como o seu
jornal particular, saiu do quarto principal, fechando silenciosamente a porta atrás de si.
Caminhou pelo corredor em direcção à porta de entrada, decidido a
procurar o saco de dormir com o resto das suas pertenças, que tinha entregado a Yost e a Shively na altura das outras viagens. Então, depois de
arrumar as suas coisas, iria familiarizar-se com o interior e o exterior de Más a Tierra .
à sua esquerda, frente à porta de entrada, havia uma grande sala de estar,
uma sala bonita, igualmente com tecto de vigas à mostra como no quarto, as
paredes com painéis de madeira de cerejeira, o chão feito de ladrilhos de
linóleo muito grandes, e uma série de carpetas espalhadas. Havia uma janela
larga ao fundo da sala, e uma lareira de pedra a imitar tijolo, e, numa das
paredes, via-se uma consola de nogueira que era possivelmente usada como
bufete. Sob o candeeiro de ferro trabalhado, pendurado por correntes à viga
central, havia um sofá de camurça castanho em frente de três maples forrados
de tecido de xadrez, com uma mesa que fazia de mesa de sala.
À direita de Malone via-se a entrada em arco para a casa de jantar, e ele
pôde ver Yost colocar comida em cima da mesa. A porta vaivém que dava
para a cozinha mais ao fundo encontrava-se aberta e Malone podia ouvir as
vozes de Shively e Brunner. Malone dirigiu-se para a sala de jantar, passou
pelo televisor e pelo banco que estava em frente dele, para a outra porta à sua
direita. Esta dava para o quarto dos miúdos que Malone conhecia de ouvido, e ali encontrou dois beliches e a bagagem de Yost e Shively.
Continuando a procurar os seus aposentos e a mala de viagem, Malone
atravessou esse quarto, tentou a maçaneta de uma outra porta, e descobriu
que esta dava para outra grande casa de banho que, aparentemente, servia
para as pessoas que utilizassem o quarto a seguir. Malone passou pela porta ao
fundo da parede e encontrou-se no que parecia um cubículo de trabalho. A
maquinaria que ali era usada pelo dono da cabana, o Vaughn, tinha sido
empurrada para um canto e tapada. Por cima de uma carpeta velha, no meio
do quarto, estavam dois sacos de dormir e, ao pé deles, a mala de Brunner e a
sua própria mala um tanto escavacada.
Havia mais duas portas neste quarto extra. Malone poisou a mochila e
experimentou-as. Uma dava directamente para a garagem nas traseiras da
casa onde pôde ver o jipe estacionado, e a outra dava para a cozinha que se
achava situada em frente da cabana e tinha uma porta de serviço que devia
dar, provavelmente, para o quintal, no lado direito da casa. Espreitando
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para dentro da cozinha vazia, Malone apercebeu-se de que os seus com panheiros deviam estar reunidos na sala de jantar, a comer.
Estudou uma vez mais o seu quarto de dormir. Entre duas serras havia uma cómoda sem pintura, com três gavetas esvaziadas. Malone decidiu apoderar-se da de cima. Abriu a mala e começou a desfazê-la, arrumando ordenadamente dentro da gaveta as camisas, as cuecas e as peúgas. Dobrando o outro par de calças, colocou-o em cima da cómoda, e pendurou a camisola e o casaco de bombazina num gancho, e pôs as botas de alpinismo no chão, por baixo da cómoda.
Pela última vez, observou bem as suas instalações temporárias para essa primeira semana -segundo o acordo que tinham feito, ele e Brunner trocariam de lugares e de quarto de dormir com Shively e Yost na segunda semana -, e parecia que nada havia para fazer. Para os devidos efeitos, ele estava instalado e preparado para as suas férias idílicas.
Entrou na cozinha. Tinham acabado de usá-la, porque o cheiro a "bacon" estava espalhado por todo o lado. Malone verificou os utensílios viu que os armários estavam bem recheados, e ficou contente por saber que havia material e abastecimentos como nunca houve no seu apartamento em Santa Mónica.
Olhou de novo para o fogão eléctrico e especulou sobre quanto tempo levaria Sharon Fields a oferecer-se para cozinhar para eles e entreter- se a brincar aos casamentos naquela cozinha.
Perdido num breve sonho com Sharon, e consigo, Malone fez por se li bertar dele e decidiu juntar-se aos seus companheiros.
Na sala de jantar, Shively já tinha tomado um sumo de laranja, e estava a acabar a sua segunda dose de ovos com bacon . Brunner estava sentado à frente dele, a depenicar uma fatia de pão de trigo, enquanto Yost, de joelhos, ligava o televisor portátil que Brunner emprestara para a expedição.
Yost pusera o televisor em cima da mesa, continuando a comer com uma das mãos, enquanto com a outra ligava o aparelho. Apareceu o som de uma novela folhetinesca.
- O som não está muito bom - refilou -, vejam como a imagem está cheia de grão.
- Posso ligar o aparelho à mesma antena de televisão da sala - alvitrou Shively. -Isso dar-lhe-á melhor imagem, se quiser.
Yost desligou-o.
- Não vale a pena - respondeu, concentrando-se na comida. - Temos o aparelho grande para vermos outras coisas, mas neste o som é bom, pelo menos para eu ouvir os jogos de futebol.
- Jogos de futebol! - gritou Shively. - Quando é que você pensa que vamos ter tempo para isso?
- Tenha juízo, Shiv - respondeu Yost. - Mesmo que seja a Sharon Fields que esteja ali dentro, não há nenhum homem que consiga passar o tempo todo na cama.
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- Talvez você não possa, amigo - respondeu Shively -, mas eu sei que
posso, porque já o fiz. Cheguei à conclusão de que só vou fazer duas coisas
nestas férias, fornicar e dormir. Não é mal jogado, oito horas por dia a dormir
e dezasseis a fornicar.... Olhem quem está aqui! Onde tem andado, Adam?
Malone entrou para a sala de jantar e sentou-se numa cadeira almofadada.
-Estive a arranjar o quarto de Sharon.
Shively sorriu.
- Aposto em como esteve. Aposto que foi só isso que você fez. Tem a
certeza de que não lhe deu uma espreitadela nem um apalpão enquanto ela estava para ali deitada?
- Bem sabe que não - retorquiu Malone, com uma ponta de irritação.
- Ela ainda está desmaiada? - quis saber Yost.
- Completamente morta para o mundo - disse Malone.
- Nós aquecemo-la esta noite - afirmou Shively. Picou Brunner com o
garfo. - Que diz, Leo? Está pronto para se enterrar nela.... e os jogos de futebol de Howie que vão para o diabo! O jogo principal são as bolas, certo, Leo?
- Concordámos em não usar os nossos nomes em voz alta - lembrou-lhe Brunner.
- Deixe-se disso, velhote - replicou Shively. - Não há nomes quando estivermos com ela, de acordo? Mas, quando estivermos a sós....
- É uma questão de nos habituarmos, para não nos esquecermos.
- Está bem, está bem - disse Shively. - Ainda não respondeu em que
bola está mais interessado. Não me diga que não tem estado a pensar na rapariga.
Brunner teve um sorriso doentio.
- Eu.... eu não diria que não tivesse pensado em Miss Fields. Mas, se
quer que seja absolutamente honesto, ainda estou a pensar no que fizemos esta manhã. Acha que alguém nos viu?
- Claro que sim - disse Shively alegremente. - O cão viu- nos, mas não vai dizer nada.
- Quando derem pela falta dela - insistiu Brunner - não irão passar o
terreno a pente fino à procura de algum sinal que lhes indique que algo de anormal se passou?
- E depois? Que podem encontrar?
- Bem, o.... o portão que foi desligado.
- Liguei-o outra vez - acrescentou Shively.
- Mas a caixa.... você partiu a fechadura da caixa do motor. Não irão eles reparar nisso?
- Talvez. E se assim for? Não podem provar nada há sempre vândalos nas redondezas a partir coisas. Não, o trabalho foi bem feito, Leo, nem
deixámos vestígios. Estamos safos.
Brunner continuou preocupado.
- As letras que pintou na carrinha.... talvez alguém se lembre delas. Não era melhor mudá-las? Raspá-las e pintar por cima o nome de outra firma?
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- Não é má ideia, Shiv - disse Yost.
- Está bem, se um dia a Sharon me deixar sair dos braços dela por uns minutos, farei isso. - Afastando o prato vazio, Shively olhou para o relógio de pulso. - Passa um bocado das onze. Ainda faltam seis horas. Bolas, detesto desperdiçar tanto tempo. Só vos digo, assim que ela estiver preparada, estarei pronto para montar, vai ser cá uma sessão. - Sorriu para Yost. Fica com o teu jogo da bola, Howie, que eu fico com o meu. Vou-me pôr na melhor posição de remate, e chutá-la para fora de campo.
Malone mexeu-se na cadeira.
- Kyle, deixemo-nos de brincadeiras, assim que ela acordar da anestesia, tem que lhe dar tempo para se recompor. Depois disso, tem que contar com o tempo que leva a falar com ela. Não tenho bem a certeza de que vai ser assim sem mais nem menos. Talvez leve um dia ou dois.
- Está bem, mãezinha, vamos dar todas as chances à rapariga dos seus sonhos - concordou Shively. - Pensando no que me espera, estou disposto a aguardar um pouco. - Levantou-se e pegou no prato. - Não come nada?.
- Agora não - respondeu Malone. - Não tenho fome.
A cara de Shively quebrou-se com o habitual sorriso lascivo.
- Estou a perceber. Já sei do que está à espera de comer. - E começou a andar em direcção à cozinha. - Bem, tenho a impressão de que vou buscar outra dose.
Malone levantou-se.
- E eu acho que vou apanhar um pouco de ar e talvez pegar um pouco no meu diário.
Shively, que estava quase a chegar à cozinha, ficou perplexo ao pé da porta.
- Diário - repetiu ele, fixando Malone. - Que raio é isso? Você está a anotar tudo o que se está a passar, a escrever um diário?
- Não, não é isso exactamente.
- Então o que é exactamente - perguntou Shively. - Você está doido ou quê? Porque se está a escrever tudo o que fizemos e tudo sobre nós....
- Não se preocupe - disse Malone. - Não há razões para isso. Sou um escritor, portanto escrevo os meus pensamentos e as minhas ideias. Há algumas referências às nossas actividades, mas são muito vagas, em termos genéricos, sem mencionar nomes, nem um.
- Bem, pá, o melhor é ter bem a certeza disso, porque se está a escrever alguma idiotice que chegue mais tarde às mãos de outras pessoas, é como se estivesse a preparar uma armadilha para cada um de nós e para si próprio.
-Já lhe disse que não pense nisso, Kyle. Não sou autodestrutivo, não faria nada para me pôr em perigo, a mim, e muito menos a vocês os três. Portanto, não falemos mais nisso.
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- Livre-se de usar nomes no que está a escrever - preveniu Shively, e, dizendo isso, desapareceu para a cozinha.
Malone encolheu os ombros para os outros dois, e saiu da sala.
Tinha pensado ir buscar o livro de apontamentos e pô-lo em dia, mas estava aborrecido com a crítica de Shively ao seu diário e perdeu a vontade de trabalhar nele. Ainda pensou escrever nele só para provocar Shively, mas o
bom-senso apoderou-se dele. Exibi-lo ao Texano seria o mesmo que acenar com uma bandeira vermelha a um touro, só iria provocar uma cena desagradável. E hoje, no primeiro dia de aventura, não era ocasião para criar, deliberadamente, dissidências entre sócios.
Malone dirigiu-se lentamente para a porta de entrada e parou no alpendre,
inspirando e gozando o ar fresco e o cenário selvagem e primitivo. Desde o
amanhecer cinzento, o céu tinha clareado, o Sol estava parcialmente escondido, e uma brisa morna de Verão afagava a camisa de Malone.
Estudou a possibilidade de explorar a zona e dela se inteirar. Excepto na clareira à sua frente, o resto do terreno era acidentado e muito elevado.
Malone decidiu que não era altura para alpinismos. Uma noite quase sem
dormir, e a enorme tensão criada pela odisseia dessa manhã, tinham-no deixado exausto.
Tudo o que lhe parecia convidativo nesse momento era o sofá desdobrável
de madeira de cerejeira com uma lona azul convidativa que alguém tinha
posto no alpendre. Não havia muito por onde escolher. Malone deixou-se cair no sofá, esticou-o, e deitou-se na almofada com os pés para cima.
Durante algum tempo olhou fixamente para o cimo das árvores sem lhes dar grande importância.
Sentia-se mais uma vez introvertido.
Pensou porque não estaria, neste momento, mais efusivo por ter atingido
o alvo há tanto desejado. Poucos seres humanos conseguiram realizar os seus
sonhos. No entanto, o seu sonho mais desejado estava deitado em cima de
uma cama num quarto não muito longe dele.
Onde estava o êxtase?
Enquanto a sua mente procurava todas as respostas possíveis, chegou por
fim a uma conclusão e intuitivamente soube, então, porque lhe faltava o êxtase.
Em todas as suas fantasias passadas, nas imagens que ele tinha criado, ele
e Sharon apareciam sozinhos, os dois juntos, sós, nesta situação. Nas suas
fantasias, nunca mais ninguém tinha entrado, nem estranhos, nem amigos,
ninguém que pudesse perturbar o seu romance. E, certamente, os seus
sonhos nunca permitiram alguém tão grosseiro e ordinário como Kyle Shively, nem uma pessoa tão vulgar como Leo Brunner, ou um plebeu como
Howard Yost. No entanto, eles ali estavam.
Sim, o seu sonho tinha-se realizado, mas não como ele sempre sonhara
que, na prática, iria precisar que
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tinham-lhe dado alento e confiança, e haviam servido perfeitamente de zângãos como que a abrir caminho para Camelot. Nas semanas anteriores, ele tinha-os considerado como. e isto tinha de reconhecer. como amigos que apenas lhe davam uma ajuda para o lançar com segurança no seu enpreendimento, mas sozinho. Na sua imaginação e de acordo com o seu desejo, eles não o deveriam acompanhar, a ele e Sharon, na lua-de-mel. Ficariam para trás, claro, e depois disso em castelos no ar, só estariam Sharon e ele e o amor de ambos nas suas férias idílicas.
Portanto, o sonho tinha-se tornado realidade, mas a fuga de Sharon e dele próprio dos outros não se tinha dado. E pior que tudo, ele tinha de dividir o seu amor com três transgressores que não mereciam gozar o prazer de estar com esta mulher nos seus sonhos. Nesse caso, ele aqui estava e ela também, mas eles, os indesejados, também aqui estavam. Eram, pensou, o preço que tinham de pagar todos aqueles que desejavam transformar os seus sonhos em realidade.
Era este o factor negativo, o único que lhe reprimia o êxtase. Tentou racionalizar os factos. Tentou consolar-se pensando que não poderia ter realizado o complicado projecto sem assistência. Portanto, sem os outros, não haveria Sharon Fields no quarto de dormir. Com os outros, haveria, pelo menos, uma parte do amor de Sharon à espera, talvez a maior parte, mais do que uma parte, porque ela veria logo que dos quatro só ele,
Adam Malone, merecia o seu amor. Aperceber-se-ia rapidamente de que ele era o único que se preocupava com ela, que mais a respeitava, que mais a amava, e que só ele funcionaria no mesmo comprimento de onda e mereceria a devoção dela. E não deixaria de retribuir isso.
Enquanto teve esses pensamentos, o sono assaltou-o. Caíram-lhe in voluntariamente as pálpebras e fecharam-se-lhe os olhos. Na escuridão da sua mente, estava Sharon deitada, como sempre, e viu-se a si próprio como um Adão nu, a aproximar-se dela, encontrando os seus braços de alabastro abertos, os seus lábios carminados e o seu corpo de estátua a convidá-lo, desejando-o, engolindo-o.
Passado algum tempo, muito tempo, alguém lhe pegou no ombro, sacudindo-o levemente. Adam Malone acordou, e, finalmente, abriu os olhos, verificando que tinha estado há horas a dormir e que Leo Brunner estava de pé à sua frente, com uma das mãos no seu ombro.
- Suponho que adormeci - explicou Malone, com voz rouca. - Devia estar cansado como o raio. - Sentou-se, tentando raciocinar. Olhou para cima, para Brunner. - O que há, Leo?
- É ela - disse Brunner, em voz baixa e nervosa. - Sharon Fields. Já lhe passou o efeito, está completamente consciente.
A notícia actuou como um balde de água gelada na cara de Malone: Ficou instantaneamente lúcido e levantou-se.
-Que horas são?
- Cinco horas e vinte minutos - respondeu Brunner.
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- E está completamente consciente?
- Completamente.
- Já alguém falou com ela?
- Ainda não.
- Onde estão os outros?
- À sua espera - disse Brunner. - À porta do quarto déla.
Malone acenou com a cabeça.
- Está bem. Suponho que temos de fazer qualquer coisa.
Dirigiu-se rapidamente para dentro e entrou no corredor em direcção ao
quarto de dormir, seguido de perto por Brunner.
À porta do quarto que estava fechada, Shively e Yost esperavam-no impacientemente.
- Já não era sem tempo - disse Shively.
- Começou a fazer barulho há cinco minutos. Tem estado aos gritos.
- Que é que ela tem estado a dizer? - perguntou Malone, nervosamente.
- Ouça você - respondeu Shively.
Malone encostou o ouvido à porta do quarto e conseguiu distinguir a voz
entrecortada de Sharon, que os chamava, aos gritos. Tentou decifrar as palavras que dizia, mas a parede de madeira tornava as palavras indistintas.
Malone sentiu Shively apertar-lhe os braços.
- Vá, pá - começou Shively a dizer -, já perdemos muito tempo.
è agora a altura. Você é o grande orador, portanto entre e comece a falar, mas bem.
Malone afastou-se de Shively com um empurrão, e tentou deixar- se ficar
para trás. Sentiu-se a tremer de medo, mas não sabia porquê, sentia que não
era assim que devia ter acontecido. Os outros estavam a olhar para ele, desafiando-o, e ele não tinha estômago para o encontro. Desejou estar sozinho,
entrar sozinho e vê-la, sossegá-la, aplacá-la, conquistá-la.
- Talvez.... - gaguejou ele -, talvez seja melhor eu entrar primeiro sozinho. E depois....
- Nem pense - resmungou Shively. Você e ela sozinhos lá dentro! Para
poder conquistá-la e nós ficarmos aqui a seco? Não, nem pensar nisso. Como
você sempre disse, estamos todos metidos nisto, portanto vamos todos lá para
dentro, percebe? Você pode ser o porta-voz para começar; lança o seu discurso, e, depois de a termos ao nível, podemos tirar à sorte quem a ataca primeiro.
Malone não tinha por onde se escapar.
- Está bem - disse, desamparado. - Suponho que temos de o fazer.
Com a mão pesada, segurou a maçaneta da porta.
Tinham entrado no quarto principal, um de cada vez, primeiro Malone,
depois Shively, a seguir Yost e, no fim, Brunner.
Ela estava ali deitada na grande cama de metal, de braços estendidos, os
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pulsos amarrados à cabeceira, mais parecendo uma rapariga crucificada horizontalmente. Só a cabeça estava um pouco levantada por cima da almofada.
Emudeceu logo que a porta se abriu, e, enquanto eles entravam, de olhos enormes e assustados, olhava um de cada vez, enquanto eles se acomodavam dentro do quarto.
Os seus olhos inquietos saltavam de um para outro, desesperadamente, procurando uma explicação para o que lhe tinha sucedido, porque estava ali
inacreditavelmente presa, e o que tencionavam fazer-lhe. Eles tinham-se acomodado à sua volta sem dizer palavra.
Incomodado, Malone empurrou uma cadeira para o lado esquerdo da cama, a dois metros, e sentou-se na beira, virado para ela. Shively tinha levado uma cadeira para o outro lado da cama, e instalara-se, encostado, balouçando-se vagarosamente para a frente e para trás.
Yost tinha alongado a sua enorme silhueta por cima do braço da chaise longue, enquanto Brunner, que nela procurava nervosamente também um
poiso, se sentava depois de uns segundos de hesitação.
Como porta-voz do grupo, Malone estava visivelmente perturbado e temporariamente emudecido pela presença de Sharon Fields e pela dificuldade
do trabalho que lhe estava designado. Brunner estava imensamente preocupado com a amplitude do acto deles, enquanto a expressão de Yost era de terror.
Só Shively parecia tranquilo, mostrando unicamente um pouco de curiosidade em saber o que se iria passar.
Todos os olhos estavam fixos em Sharon Fields, mas agora, passado algum tempo, o silêncio tornou-se intolerável, e Shively, Yost e Brunner desviaram a sua atenção para Malone, desafiando-o uma vez mais a começar.
Aparentemente, Sharon Fields, observando esse desvio de atenção, apercebeu-se de que aquele para quem eles olhavam devia ser o chefe, razão por que também ela agora virou a cabeça na almofada em direcção a Malone.
Consciente da pressão conjunta, Malone tentou formular os seus pensamentos, transformando por fim a fantasia em realidade. Os seus lábios e a boca estavam secos, e não parava de engolir em seco, fazendo um esforço para pensar nas palavras certas. Forçou um sorriso, como se pretendesse assegurar-lhe que não eram criminosos, para a pôr à vontade.
Os seus modos simpáticos fizeram efeito. Quase imediatamente, dum modo subtil quase imperceptível, a expressão dos seus olhos e as suas feições deixaram de parecer assustadas para adquiriram uma expressão de espanto.
Malone enguliu mais uma vez em seco, e começou a dizer-lhe que não tinha razão para estar assustada, e que o mais importante era que ela não esti vesse com medo mas, antes que o seu cérebro pudesse transmitir as palavras para que estas fossem vocalizadas, ela falou.
Falou em voz baixa, contendo a respiração.
- Quem são vocês? São raptores? Porque se são....
- Não - conseguiu articular Malone.
Ela parecia que não o tinha ouvido.
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- Se vocês são raptores, enganaram-se. Vocês.... vocês raptaram a pessoa
errada. Vocês.... quero dizer, deve ser um engano.... vocês sabem quem sou eu?
Malone abanou afirmativamente a cabeça.
-É Sharon Fields.
Ela olhou para ele sem compreender.
- Então deve ser.... vocês foram contratados.... disse ela, rapidamente, esperançada. - Já sei.... deve ser uma brincadeira, uma sensação publicitária.
Hank Lenhardt planeou isto, contratou-os para o fazerem, e disse-lhes que fizessem tudo para parecer verídico, para as primeiras páginas, para o meu novo filme....
- Não. não, Miss Fields, não, fomos nós que planeámos tudo - disse Malone, rapidamente. - Por favor, não esteja assustada. Eu explico.... deixe-me explicar....
Ela continuava a fixá-lo. A expressão da sua cara mudou do espanto para a
incredulidade e mostrou novamente medo.
- Não é um sensacionalismo? Vocês é que o fizeram.... vocês raptaram-me a sério? - Abanou a cabeça. - Não posso acreditar. Vocês estão a
brincar comigo, não estão? Isto é uma espécie de fachada....
Parou, notando que Malone desviava os olhos para evitar os dela.
Com o silêncio dele, era como se a pergunta dela tivesse recebido uma
resposta eloquente e terrível. E as suas esperanças evaporaram- se por completo.
- Que se passa? - perguntou ela, com voz trémula. - Quem são vocês?
Porque estou aqui.... assim amarrada? Importam-se de me explicar o que se
passa? Isto é terrível, terrível. Eu nunca.... nem sei o que hei-de pensar ou dizer. Eu não....
Começou a soluçar, a engasgar-se, quase ficando histérica.
Tentando desesperadamente acalmá-la, para evitar uma cena e ganhar a jogada, Malone conseguiu falar.
- Espere, Miss Fields, espere, escute, por favor. Só compreenderá se me
escutar. Nós os quatro não somos criminosos, somos apenas pessoas
vulgares, como tantas que conhece, como tantas que vão ver os seus filmes e
a admiram. Somos pessoas - e fez um gesto largo apontando em volta para
incluir os seus colaboradores - incapazes de fazer mal a alguém. Nós os quatro somos conhecidos, amigos, e, quando nos conhecemos melhor, vimos
que tínhamos uma coisa em comum, uma ideia consonante quero dizer, um
sentimento. Que era.... que era o considerarmo-la a mulher mais bonita, mais
maravilhósa do Mundo inteiro. Somos seus admiradores, portanto formámos uma sociedade, um clube, percebe?
Ela continuou a olhar fixamente para Malone, demasiadamente confusa para perceber alguma coisa.
- Mas vocês são um clube de fãs a sério, ou quê?
Malone aproveitou logo a deixa.
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- Exacto, um clube de fãs, sim, uma espécie, intitulámo-nos Clube de Fãs, mas não exactamente do género que você já tem um especial, com quatro pessoas que seguiram a sua carreira e a admiram e viram todos os seus filmes. Portanto. isso levou-nos a. a desejar conhecê-la. Mas não somos criminosos. Isto não é um rapto como aqueles que tem conhecido. Não a raptámos esta manhã para obtermos dinheiro ou um resgate. Não pretendemos fazer-lhe mal.
Ela interrompeu, tentando compreender a incoerência dele. A sua voz era intensa.
- Não é um rapto! Se não é um rapto, então o que é? Olhem para mim. da maneira como estou aqui amarrada, não me posso mexer.
- Isso é por pouco tempo - disse Malone, rapidamente. Ela ignorou-o.
- Não compreendo. Sabem o que fizeram? Estou a lembrar-me. não foi esta manhã . a carrinha de entregas. Fingiram perguntar-me. invadiram a minha propriedade. drogaram-me. raptaram-me, levaram-me. não sei para onde, não sei onde estou. levaram-me à força. e acordei aqui, neste estado, com estas cordas. Então o que é isto senão um crime? Porque estou amarrada? O que se passa? Ou vocês estão loucos ou eu. Que estão a fazer? Digam-me, por favor. Tenho medo. Estou mesmo com medo. Não têm o direito de fazer isto. Ninguém pode fazer isto. - a sua voz falhou, e ela respirava com dificuldade.
Malone continuou a abanar afirmativamente a cabeça.
- Eu sei. nós sabemos que não é fácil para si perceber. Mas se me der uma oportunidade para a sossegar. escute, sei que posso fazê- la compreender.
Malone procurou desesperadamente as palavras mais indicadas. Até agora, elas tinham sido a sua arma mais forte, o meio infalível, que o faziam adquirir boa vontade e compaixão, mas, por qualquer motivo desconhecido, parecia que o tinham abandonado. Estava em jogo o grande teste, a fantasia a transformar-se em realidade. Ele tinha de fazer a transformação sem erros.
- Miss Fields, tal como estava a tentar explicar-lhe, nós os quatro veneramo-la, queríamos conhecê-la, descobrir maneira de a conhecermos. Aliás, eu próprio tentei isso uma vez sozinho. Eu cheguei a.
- Esteja calado. - Pela primeira vez um dos outros tinha falado, e o comentário veio de Shively. - Tenha cuidado. Não lhe diga nada sobre si ou sobre qualquer um de nós.
Desconcertado, Malone abanou afirmativamente a cabeça enquanto Sharon virava a cabeça para Shively e depois de novo para Malone, a expressão novamente preocupada.
- De qualquer maneira - continuou Malone -, o que eu estava a tentar dizer é que pessoas como nós, pessoas simples, nunca temos a oportunidade de conhecer alguém como você, alguém a quem admiramos acima de tudo, mais do que a uma namorada ou à mulher, de a conhecer em pessoa.
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Portanto, projectámos esta maneira, a única maneira que descobrimos para a conhecer em pessoa. Quero dizer, não é que tivéssemos preferência por este
método, o método que utilizámos, e sei que lhe parecerá mal se não compreender, mas era o único meio viável a pessoas como nós. E como nunca tencionámos magoá-la ou fazer-lhe mal, tivemos a certeza de que assim que
compreendesse as nossas intenções e apreciasse os nossos motivos.... bem....
no fim seria agradável. Quero dizer, mesmo que o nosso método de
apresentação tivesse sido fora do convencional, pensámos que talvez nos
admirasse por termos sido suficientemente corajosos e românticos para correr
tal risco só para a vermos e termos a oportunidade de falar consigo, de a conhecer melhor.
Ela estudou a cara dele, como se quisesse convencer-se de que isto era
uma farsa fantástica, mas, não encontrando nenhum traço de humor, não
conseguiu, e, mais uma vez, olhou-o incrédula.
- Queriam conhecer-me melhor? Que raio de maneira para o fazerem.
Quem quer que sejam, não consigo compreendê-los. Pessoas saudáveis e
normais não fazem isto às outras pessoas. - E começou a levantar a voz. Vocês devem ser loucos, completamente loucos, se pensam que se vão safar.
- Nós já nos safámos - lembrou-lhe Shively, em voz baixa, do outro lado da cama.
Ela olhou para ele por breves instantes, e voltou a dar atenção a Malone.
- Claro, qualquer tarado pode raptar uma mulher na rua ou na sua casa e
levá-la consigo. Mas só doentes mentais é que fazem isso, homens civilizados
não o fazem. Alguns talvez o façam em sonhos, mas nunca os realizam. Por
isso é que existem os filmes e os livros, para servirem de escape inofensivo.
Mas ninguém no seu perfeito juízo vai raptar outra pessoa. É a pior maneira
de ir contra a lei. É um crime. - Respirou fundo. - Portanto, se vocês não
são criminosos, como dizem, vão soltar-me imediatamente e deixar- me ir embora. Desatem-me, por favor.
Yost, do seu lugar perto dos pés da cama, fez-se ouvir.
-Ainda não, Miss Fields.
- Então quando? - perguntou-lhe ela. - Virou a cabeça para Malone.
- Que quer de mim?
Apanhado de surpresa pelo raciocínio dela, Malone achou que era
absolutamente impossível explicar-lhe sem rodeios o verdadeiro motivo que os tinha levado a raptá-la.
Ela estava à espera da resposta dele, e insistiu.
- Queriam conhecer-me, já me conhecem. Porque não me soltam? Que querem de mim?
- Diga-lhe - Shively atacou Malone. - Deixe-se de subtilezas e diga-lhe.
- Está bem, está bem, deixe-me dizer à minha maneira - ripostou Malone.
Dirigiu-se mais uma vez a Sharon Fields, falando com grande ansiedade.
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- Miss Fields, conheço tudo a seu respeito melhor do que qualquer outro imdivíduo no Mundo, a sua vida particular, a sua carreira. Perguntou-me antes se tínhamos um clube de fãs. No que diz respeito a Sharon Fields, eu sou o Clube de Fãs. Fui um estudante da sua vida desde o primeiro dia em que a vi no ecran, e isso foi no Sétimo Véu , há oito anos. Coleccionei e li tudo o que foi publicado em Inglês a seu respeito. Sei que o seu pai é descendente de aristocratas sulistas da Geórgia e que foi um famoso advogado dos oprimidos. Sei que foi educada na Escola da Sra. Gussett, em Maryland, e que se formou em Psicologia em Bryn Mawr. Sei como, sem o conhecimento dos seus pais, participou naquele concurso de beleza e foi declarada vencedora por unanimidade. Sei que estudou o método Stanislavsky para se tornar uma grande actriz, e como foi descoberta pelo agente de filmes no Plaza em Nova Iorque, enquanto você e outras jovens actrizes passavam modelos para uma organização de caridade.
Deixando-se levar pela paixão do seu discurso, Malone quase perdeu a respiração. Tentou ler na expressão dela interesse, e viu, até, pela primeira vez, fascinação, e, encorajado por esta comunicação, o triunfo quase atingido, continuou com excitação:
- Podia contar-lhe mais coisas, Miss Fields, desfiar-lhe o rosário da sua ascensão para o sucesso, desde o teste até aos pequenos papéis que a elevaram a estrela, mas não o farei, porque, agora, já sabe como a conheço bem. Através do que li e do que estudei a seu respeito, meditando sobre o seu espírito, conheço tudo sobre o seu estado psicológico como mulher, os seus sentimentos mais íntimos como ser humano, todos os seus valores espirituais mais profundos. Sei o que pensa dos homens. Conheço os seus desejos secretos, o género de relações que verdadeiramente deseja. Conheço as suas necessidades, as suas aspirações e desejos como mulher. Conheço tudo isso, Miss Fields, porque você própria mo disse, revelou-se-me. É por causa de si, Miss Fields, por tudo o que disse, que aqui estamos agora.
Fez uma pausa dramática, enchendo-se de autoconfiança. O triunfo estava próximo. Conseguia senti-lo, vê-lo. Os olhos verdes dela, mais abertos do que nunca, estavam fixados nele, a boca aberta e muda.
Finalmente - pensou Malone - finalmente ela percebeu. Levantou-se rapidamente, dirigiu-se à mesa com tampo de vidro, viu admiração e respeito nos rostos de Yost e Brunner, pegou na sua preciosa pasta com a base irrefutável da conspiração do Clube de Fãs, e voltou para a cadeira, ao lado da cama.
Abriu-a e começou a ler alto excertos das suas entrevistas mais recentes.
- Olhe, oiça esta. As palavras são suas, Miss Fields. - Eu necessito é de um homem que seja agressivo, que me faça sentir indefesa, que me domine. - Depois continua, Miss Fields. - Francamente, ao falar de um homem que me deseja, prefiro que ele me leve à força do que tente levar-me com jogos sedutivos e desleais. - Depois outra vez. - Abri a porta do meu coração para isto. para deixar entrar qualquer homem que acima de
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tudo no mundo me deseje, que arrisque tudo o que possui para me ter. Depois diz. - Muitos homens quase não compreendem o que está a suceder às mulheres, a uma mulher como eu. Mas, talvez alguns compreendam,
e a esses eu digo.... estou pronta, Sharon Fields está pronta e à espera. - Há
mais no género, que mostram o seu desejo de ser encontrada e possuída por
homens verdadeiros, independentemente do que são. De ser levada por homens fortes, homens agressivos, dispostos a arriscar tudo por si.
Malone fechou a pasta, levantou-se, colocou-a de novo em cima da mesa,
e continuou com a sua explicação.
- Era como se estivesse a falar a cada um de nós, tentando dizer-nos o
que realmente desejava. Era um convite a homens como nós para fazermos um esforço para a conhecer.
Quando estava quase para se sentar, Malone parou e continuou de pé:
Evitando os olhos de Sharon, fez um gesto com o braço circundando o quarto,
apontando para os seus companheiros.
- Portanto, aqui estamos, nós os quatro. Não fizemos mais do que aceitar o seu convite. Cumprimos à letra. Tentámos encontrar maneira de a
conhecermos, e, agora, conhecemo-la e você conhece-nos. É por isso que
estamos aqui. Tão simples como isso. Talvez agora nos compreenda e nos aceite.
Virou-se para Sharon Fields, confiante, preparado para receber a sua
resposta favorável, a sua mudança de atitude, a sua apreciação e acordo com o
feito romântico deles. Mas assim que lhe viu a cara e observou as suas reacções, o seu sorriso perdeu-se num misto de surpresa e confusão.
Ela tinha fechado os olhos, a cabeça estava caída no travesseiro. A cara
estava branca, e abanava a cabeça dum lado para o outro, lamentando-se desesperadamente, de tal modo que não conseguia articular palavra.
Apanhado de surpresa, Malone ficou hipnotizado pelo seu inesperado comportamento.
Por fim, as palavras começaram a surgir, num lamento gargarejado que lhe escapou então dos lábios:
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus, não - dizia ela. - Eu.... eu não
consigo acreditar. Oh, meu Deus, ajudai-me! Que.... conversa fiada, esse lixo.... e fazer isto. O Mundo está louco, e vocês mais loucos ainda, completamente loucos, deixando-se levar.... até imaginando....
Chocado, Malone sentou-se na cadeira para se recompor. Tentou não ver
as reacções dos outros, mas não pôde deixar de reparar que todos o olhavam fixamente.
- Não, não, não, isto tem de ser um pesadelo - soluçava ela, a tossir,
tentando raciocinar. Começou a falar de novo, em parte para si própria, e em
parte para eles. - Eu já sabia. Eu bem sabia que devia ter despedido logo de
início aquele aldrabão do Relações Públicas, aquele idiota insensível do
Lenhardt, devia ter corrido com ele logo de início.... ele e as suas falinhas
mansas acerca da nova mulher liberalizada, sobre os novos espectadores dos
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fílmes, sobre o tentar modificar a minha imagem, tentando excitar mais os homens. Excitar os novos. maiores vendas. insistia comigo aquele aldrabão. para o meu filme, para o meu futuro. E eu, sem ligar nenhuma, sem me importar, deixei-o fazer tudo, continuar com a campanha como bem entendeu. deixei-o fazer de mim o que não era e nunca fui nem nunca poderia vir a ser. - Sharon, és muito passiva fora do ecran - pregava-me ele. - Já lá vai o tempo em que uma estrela podia ser apenas um objecto de adoração. Os tempos mudaram e tu tens de mudar com eles, Sharon - continuava ele a pregar. - Tens de falar com franqueza, comunicar com candura, dizer que desejas os homens como eles te desejam a ti, dizer que as mulheres têm os mesmos desejos que os homens, tens de ser directa e agressiva. É a táctica moderna, tudo é feito aberta e directamente, quer o sintas, quer não. " -Portanto não liguei nenhuma. A minha cabeça estava noutro sítio, deixei-o continuar. Mas nem em sonhos mais remotos eu. conseguiria imaginar sequer que realmente haveria alguém lá fora que absorvesse tantos desses disparates publicitários, todas aquelas mentiras no papel, e que os interpretasse como se eles fossem. se eles fossem. um convite.
A confissão parecia que lhe tinha servido de acto de contrição, porque ela olhava agora para Malone cheia de piedade e desdém.
-Quem quer que seja, tem de acreditar em mim. Tudo isso é uma enxurrada de mentiras, tudo mentiras. Nunca disse nada do que está a ler-me. Aquelas entrevistas foram todas feitas por publicistas com imaginação, entrevistas feitas em série publicadas com o meu nome. Posso prová-lo. E você, você, seu pobre louco, engoliu tudo. Não pensou antes de ter actuado deste modo demente? Não se interrogou a si próprio. se alguma mulher decente deseja ser levada à força, contra a sua vontade, por um bando de estranhos? Há alguma mulher que queira ser drogada, raptada e levada para um sítio qualquer e amarrada assim, a não ser que seja também uma doente mental? Qualquer homem de juízo saberia as respostas. Mas não, vocês não. Bem, podem crer. Não sou o que vocês pensam. Não sou nada disso.
- Mas é - insistiu Malone com submissão -, eu sei que é. Eu ouvi-a em pessoa, onde ninguém estava a fingir por si. Ouvi-a na rádio e na televisão. Tenho as fitas, pode ouvi-las, se quiser.
- Tudo o que possa ter ouvido nas fitas, tudo. - Sharon abanou a cabeça. - Acredite-me, tem de acreditar em mim, eu só estava a brincar, não falava a sério, ou talvez não percebessem o que eu disse. A primeira coisa que vão lembrar-se de dizer é que sou o símbolo do sexo número um do Mundo, e, portanto, isso significará que sou mais sexy do que qualquer outra mulher normal, o que quer dizer que desejo mais os homens.
- É verdade que é a mais sexy, e você sabe-o bem - disse Malone, mas até ele reparou que o tom da sua voz se tinha tornado suplicante. - Todos sabem que tenho razão ao dizer isto. Tenho visto como actua e tem prazer em exibir o seu corpo nos filmes. Sei tudo acerca da sua vida amorosa, das suas fugas. Porque está agora a tentar fingir qué é diferente?
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- Oh, meu Deus, vocês, homens, são mesmo parvos - exclamou Sharon. - Eu sou actriz, desempenho, finjo. O resto é legenda, folclore,
mentira, só baseado em publicidade. O que vocês pensavam ou pensam que
sou, e o que realmente sou, são extremos opostos.
-Não....
- Tudo o que possam ver por fora, qualquer que seja a minha reputação,
não acreditem em nada disso. A minha imagem pública é uma grande
decepção, é uma interpretação totalmente errada. Por dentro, sou uma
mulher vulgar e normal com os mesmos receios e preocupações da maioria
das mulheres. Apenas acontece que sou uma mulher com determinado as pecto e que tem sido apresentada em público de determinada maneira, o que
me leva a ser.... a ser conhecida, mas a pessoa que você pensa que eu sou não
existe, é uma máscara, não tem, na realidade, qualquer significado.
A palavra realidade introduziu-se em Malone como um punhal. O seu
grande teste começou a desintegrar-se.
- Eu sou uma invenção - continuou ela, desesperadamente -, uma
criatura criada por professores de drama, directores, escritores, peritos de
relações públicas, para fazer de mim um objecto que os homens possam desejar e aspirar a ter. Mas não sou o que os homens desejam que eu seja. Não sou
diferente das outras mulheres que conhecem, têm de encarar isso. Tenho, na
realidade, uma vida calma e decente, apesar de ser vedeta. Quanto aos
homens, sinto em relação a eles o mesmo que a maioria das mulheres normais
sentem. Talvez um dia encontre um homem que goste tanto de mim como eu dele e se assim for desejarei casar com ele. Há um ano que não tenho
aventuras com homens, da maneira como vocês pensam. Estou mais interessada na minha própria maturidade e identidade. Quero saber quem sou, quero pertencer a mim própria. Tal como vocês, quero ser livre.
Parou, olhou de relance para Malone, e continuou:
-Foram enganados, agora sabem a verdade. Portanto, aceitem-me e vamos esquecer este mal-entendido. Soltem-me, o jogo terminou.
A cabeça de Malone zumbia. Sentiu-se perdido no espaço.
- Está a inventar isso - disse ele, baixinho. - É impossível que nos tenhamos enganado.
- Mas estão enganados, totalmente enganados, portanto não continuem
com esta loucura, por favor. Meu Deus, que vos passou pela cabeça? Que é
que imaginaram? Que é que pensaram quando me trouxeram para aqui assim?
Yost levantou-se do braço da chaise longue e ficou de pé aos pés da cama.
- Miss Fields, com toda a honestidade, esperávamos que fosse simpática e colaboradora.
- Com vocês todos? Por me terem feito esta coisa horrorosa, simpática e
colaboradora? Como? De que maneira? Que diabo estavam à espera?
- Deixem-me responder - exclamou Shively, pondo-se de pé num
salto, e inclinando-se por cima de Sharon Fields. - Já houve merda de mais
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neste quarto. Minha senhora, vou pô-la ao corrente da situação, vou dizer-lhe o que esperávamos. Esperávamos que nos deixasse fodê-la.
- Deixe-se de palavreado desse - exigiu Malone, furiosamente.
- Você cale-se, seu cabeça de melão - ripostou Shively. - De agora em diante sou eu que lido com esta espertalhona. Tenho estado a ouvi-la jogar com um pau de dois bicos, a desempenhar um papel. Ela é que tem estado a enganar-nos, já está habituada a isso. Mas a mim não me engana nem por um segundo. - Shively olhou para baixo, para ela, com os olhos brilhantes, a cara cadavérica ameaçadora. -Olha lá, talvez penses que, lá porque és ricalhaça, és demasiadamente boa para nós. Deixa-me dizer-te, eu estou-me nas tintas para a tua riqueza e para a tua fama, todos te conhecemos e sabemos como és. Há anos que te entregas totalmente aos teus amigos ricos, passas à borla. E nós pensámos que talvez isso não te desse tanto gozo, ter uns tipos lingrinhas e enfadonhos a espetar os ferrões dentro de ti. Achámos que já deverias estar suficientemente madura e preparada para que fosse agradável conheceres alguns homens com bolas tão inchadas como nós. Achámos que assim que nos visses, e nos conhecesses, havias de, tal como nós, ter prazer - a entrar e sair um no outro, como deve ser, só para variar -, e passaríamos bons bocados na cama. Nenhum de nós está aqui para jogar bilhar. Estamos aqui para te saltar em cima. É essa a única razão que nos trouxe aqui, e acabou-se a merda da conversa.
Toda a sua expressão era agora de ultraje. As suas feições estavam contorcidas.
- Seu. seu filho da mãe - Puxou e forçou as cordas. - Você é ainda mais louco que o outro. Você. não o deixaria tocar-me nem com um pau a trés metros.
- Tu é que o disseste, e eu tenho-o, minha senhora - disse Shively.
- Você dá-me vontade de vomitar. - Ela rolou a cabeça em direcção a Malone e Yost. - Já aturei bastante esta loucura. Agora deixem-me ir embora antes que se vejam metidos em sarilhos a sério. Deixem-me ir em bora, de onde quer que esteja se o fizerem já, eu. eu fingirei que isto nunca aconteceu, apagarei isto do meu pensamento. As pessoas podem interpretar mal, podem cometer erros; todos somos humanos. Eu compreenderei. Deixemos as coisas como estão, e esqueçamos isto.
Shively continuou, implacável.
- Não estou disposto a esquecê-la. Não te vamos soltar, pelo menos antes de nos conhecermos melhor. Gostaria de te conhecer melhor. -Os seus olhos cerraram-se, passando pelas curvas do seu corpo esticado. - Sim, muito melhor. Portanto, não tenhamos pressa. Havemos de soltar-te na devida altura. Mas não já.
Brunner tinha-se aproximado. A transpiração brilhava na sua testa. Começou por pedir a Shively.
-Talvez seja melhor esquecer isto tudo.
Shively virou-se para ele.
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- Cale a boca e deixe-me lidar com isto. - Olhou de novo para Sharon
Fields. - Sim, o melhor é contares em nos fazer companhia por mais uns
tempos. Vamos dar-te algum tempo para reconsiderares.
- Reconsiderar o quê? - gritou Sharon. - Que há para reconsiderar?
- Partilhares um pouco do que tens com os teus amigos. Já provaste que
és a maior provocadora do Mundo, agora vamos dar-te a oportunidade para demonstrares que ainda és mais.
- Não tenho de provar nada - replicou Sharon. - Não tenho de
compartilhar nada consigo. Quem diabo pensa você que é? Experimente só
tocar-me e eu farei com que vocês, todos vós, passem o resto dos vossos dias
atrás das grades. Ninguém me vai tratar assim e safar-se. Talvez não se
lembrem quem sou eu. Eu conheço o Presidente, conheço o Governador,
conheço o chefe do F. B. I. Eles farão tudo por mim. Se eu lhes pedir, vocês
serão castigados como nunca ninguém foi. Não se esqueçam.
- Se fosse a ti, boneca, não ameaçava - respondeu Shively.
- Estou apenas a dizer-vos como é - insistiu Sharon. - Vocês têm de saber o que vos espera se me puserem a mão em cima. Não estou a brincar.
Portanto, enquanto ainda têm tempo, e antes que se enterrem em sarilhos, aconselho-vos que me soltem.
Shively sorriu-lhe maldosamente.
- Achas que és boa de mais para nós, não achas?
- Não disse que era boa de mais para vocês ou outra pessoa qualquer. Só
lhe estou a dizer quem sou, e que você é um estranho com quem não desejo
ter relações de espécie alguma. Quero que me deixem fazer o que me apetece e
com quem quero. Não tenciono ser um receptáculo para qualquer homem
que apareça. Portanto, notem bem, deixem-me fazer a vida que quero, à
minha maneira, e eu deixar-vos-ei fazer a vossa.
O sorriso de Shively abriu-se ainda mais.
- Eu estou a viver à minha maneira. É assim que quero viver, aqui, neste sítio, contigo.
- Bem, de mim não leva nada.... nenhum de vocês.... portanto, encarem os factos, tomem juízo e soltem-me.
Shively pôs as mãos nas ancas.
- Sabes, de onde estou penso que não estás na melhor posição para nos
dizer o que vamos ou não ter de Sharon Fields.
A sua coragem começou a desvanecer-se. Ficou deitada a olhar para ele e para os outros.
Malone, que tinha estado distante durante esta conversa, foi o primeiro a afastar-se da cama.
- Vamos deixá-la descansar um pouco. Vá, vamos para o outro quarto para podermos conversar.
Um a um, os outros juntaram-se a Malone que estava já junto da porta
aberta. Yost foi o último, e deixou-se ficar para trás por uns momentos. Com
a mão na maçaneta, virou-se para trás na direcção da cama.
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-Pense um pouco nisso, Miss Fields, seja razoável. Tente compreender-nos. Nós havemos de respeitá-la, mas respeite-nos também. Será melhor assim.
Sharon Fields lutou com as suas cadeias, gritando:
- Fora daqui, seu tarado! Não esqueça o que o espera se não me soltar imediatamente! Serão presos até ao dia da vossa morte! Não se esqueçam . Não se esqueçam .
Tinham-se retirado para a sala, aberto as garrafas de Scotch e Bourbon, e tomado várias bebidas. Mais tarde, ao anoitecer, comeram um jantar ligeiro. Estavam agora, mais uma vez, sentados em volta da mesa rústica. Três deles estavam de novo a beber, e Adam Malone tinha trocado o álcool por um cigarro de erva que havia enrolado.
Nas horas que se seguiram ao encontro com Sharon Fields, a conversação entre eles tinha sido irregular, explosões de ditos, seguidos de intervalos de silêncio, e depois mais conversa. Na maioria das vezes, tinham recapitulado, uma ou outra vez, a troca de palavras que tinham tido com Sharon no quarto, tinham-nas analisado, debatendo a sua veracidade, tentando encontrar os verdadeiros motivos que a levaram a rejeitá-los.
Ao princípio, Malone tinha sido alvo do ataque sarcástico de Shively. Fora acusado de ser um falso profeta que, tendo prometido conduzi-los ao paraíso, os tinha lixado na terra-de-ninguém. Mas, por muito estranho que parecesse, a reacção de Shively fora muito melhor do que a dos outros. Yost sentia-se frustrado e aborrecido por o esforço deles ter sido em vão. Brunner ficara intimidado pelas ameaças de Sharon e parecia um doente com um caso avançado de dança-de-são-vito.
Dos quatro, Malone era o que estava mais desmoralizado e o menos conversador. A rejeição de Sharon Fields tinha-o deixado desorientado, e as suas emoções iam da confusão ao descrédito e à depressão.
Agora, um pouco afastado dos outros, sentado sozinho no banco em frente ao aparelho de televisão, deu várias "passas" de erva, tentando encontrar uma explicação. Não conseguia aceitar o facto de a sua única companheira, há tanto inquilina das suas fantasias, o ter realmente repudiado tão categoricamente. Não podia acreditar que se tivesse enganado redondamente, que a sua grande experiência tivesse sido um fracasso. Não podia ainda admitir que a soberba realização do Clube de Fãs fora feita em vão.
À medida que ia fumando, os seus sentidos, ou, pelo menos, a sua dis posição, animaram-se, tornando-o receptivo à conversa que sobre Sharon Fields vinha do outro lado da sala.
Eles continuavam a singrar no terreno já tão desbravado, procurando ainda uma saída do pântano da previsão que tinham feito.
Falou Yost:
- Quem havia de imaginar que ela seria tão fria como a teta duma freira!
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O que continua a fazer-me confusão é não ter ainda percebido se ela está
mesmo a ser honesta connosco ou se está a fazer teatro. Quero dizer será que
é aquilo que dizem dela, ou, na realidade, é o que diz ser?
- Eu cá acredito nela. Acho que está absolutamente horrorizada com o
incidente, devido ao facto de não ter nada a ver connosco - afirmou Brunner.
Shively falou alto:
- Bem, só vos digo é que não acredito naquela cadela, não acredito nem
numa palavra do que ela disse. Já ouviram maior aldrabice? Que há um ano
que nenhum homem lhe toca? Isso é que era bom, um ano.... ah! ah! ah!
Tudo o que ela nos disse é barrete. Ouviram o que ela disse? Oh! Oh! sou
uma rapariga vulgar, faço tricô, jogo bridge, nunca ouvi uma asneira como
foder. Um símbolo do sexo? O que significa isso, senhor? Merda! Oiçam, eu já tenho muita experiência. Aprende-se muito com a experiência.
Uma coisa que se aprende é que não há fumo sem fogo. Quando se tem um
corpo como o daquela rapariga, sabe-se de antemão que se vai passar a vida com o pénis de alguém dentro de si, como se fizesse parte da própria anatomia. Tem de se estar habituado a dar e gostar disso, e aposto tudo em como
é assim.
Yost, admirado, perguntou.
- Então porque será que ela não nos quer?
Shively respondeu.
-Eu explico-lhe. Porque aos olhos dela somos uns zés-ninguém. Ela
despreza-nos como se fôssemos a escória, pensa que tem uma vagina forrada
de ouro, que só está aberta para os ricos ou os importantes. Mulheres como
aquela, só se fôssemos donos de um monopólio ou se estivéssemos no
Conselho de Ministros ou então somos tratados como uma dose de gonorreia ou sífilis. Merda, mulheres como aquela irritam-me, irritam-me ao máximo.
Só me apetece furá-las até que tenham os rabos assados.
Talvez ela só esteja interessada quando está apaixonada por um homem
e se sinta romântica. Talvez sinta que o ser obrigada a copular com uma
pessoa qualquer não é romântico - disse Brunner.
- Conversa - respondeu Shively.
A conversa tinha estagnado mais uma vez.
Shively olhou à sua volta.
- Parece-me que o Clube de Fãs não está a funcionar às mil maravilhas.
Temos um membro ausente.
- Eu estou cá - respondeu Malone, do banco - Tenho estado a ouvir.
Shively olhou para Malone por cima do ombro.
-Para fala-barato, tem estado muito calado esta noite. Bem, meu cabeça-de-abóbora, que pensa disto?
Malone apagou a sua beata de marijuana num cinzeiro.
- Para ser franco, não sei em que mais hei-de pensar.
- Aposto que não - disse Shively. - Venha cá e junte-se às pessoas
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antes que eu apanhe um torcicolo. Ou talvez ache que também não somos suficientemente bons para si?
- Acabe com isso, Shiv - replicou Malone. Aproximou-se do sofá forrado de camurça, um pouco cambaleante, e deixou-se cair ao lado de Brunner.
- A reacção dela, que eu acho ter sido sincera, deixou-me bastante desconcertado. Geralmente acerto sempre nas análises que faço das pessoas. Mas, neste caso, devo ter-me enganado. Não sei.
- Nunca o quis subestimar, miúdo - disse Shively -, mas sempre pensei que era demasiado ingénuo para imaginar que uma miúda rica e bonita como aquela, nos píncaros do Mundo, desejasse alguém que não fosse do mesmo nível que ela.
- Talvez tivesse sido ingénuo - admitiu Malone -, mas nessa altura você também o foi. O Leo e o Howard estão aqui como testemunhas, você sempre alinhou. Também pensou que ela iria colaborar.
- Pensei uma gaita - retorquiu Shively. - No dia em que começámos isto, fi-lo com certas restrições. Alinhei consigo, sonhador, porque você próprio se elegeu presidente do Clube de Fãs e eu pensei que nada tinha a perder, e, até, por ser mais prático que os outros, o pudesse transformar em realidade. Mas estava preparado para o que desse e viesse. Se ela recusasse, bem, então estaríamos a actuar para nada. De um modo ou de outro, acho que estamos em vantagem. E estamos. Temos o corpo, isso é que é im portante, o resto virá por acréscimo. Porque nós, agora, é que comandamos, e ela pode ser convencida e vir a cooperar.
Yost mostrou-se mais animado.
- Como, Shiv? Depois da introdução que ela deu, não vejo muitas es peranças de mudança ou cooperação. Tem alguma sugestão?
- Há uma coisa que as faz cooperar - respondeu Shively. - O pénis. Chame-lhe a teoria de Shively, se quiser. Mas sei por experiência própria que esse é o grande estabilizador. Uma vez que entre para onde Deus o criou, nenhuma pega lhe pede a identificação. qual a sua conta bancária, a sua formação, o seu crédito, a sua árvore genealógica. Não, senhor, assim que você tiver o instrumento lá dentro, a pega faz o resto, começa a gostar, a cooperar e a não querer parar. Já o vi acontecer milhentas vezes. E aquele bocado que temos no quarto, o equipamento dela não é diferente, um modelo talvez com mais classe mas que funciona como os outros. Pode crer. Faça o contacto e ela alinhará. aposto que sim, aliás, depois disso, não nos conseguiremos ver livres dela.
Através do enevoado dos seus pensamentos causado pela droga, Malone tentou raciocinar sobre a teoria de Shively.
- Que é que pretende dizer exactamente, Shively?
- Estou a tentar dizer-lhe, miúdo, que você planeou e fez acidentalmente com que realizássemos a melhor coisa de sempre. Temos o pedaço mais saboroso do Mundo no quarto ao lado. Temos talvez dez dias ou duas semanas para nada mais fazer senão gozar com ele. Digo-o, e garanto que, depois de a
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termos a primeira vez, ela cederá e até gostará. Então tudo resultará como esperávamos.
Malone sentiu-se a abanar a cabeça.
- Contra os regulamentos - disse. - Lá está você outra vez a falar de
violação. Já concordámos que isso estava fora de questão.
Brunner foi rápido em concordar com Malone.
- Completamente fora de questão. Fomos todos signatários verbais de um acordo inviolável. Não haverá violência, nenhum acto criminoso.
- Que diabo pensa você que fizemos esta manhã - perguntou Shively. - Não fomos levantar uma encomenda com a carrinha. Fomos buscar uma pessoa. Cometemos um rapto.
- Não exactamente - objectou Brunner, apesar de estar apreensivo. Quero dizer, concordei antes que o acto desta manhã poderia ser encarado
dum modo diferente se não adiantássemos mais nada. Se ela quisesse ser libertada, e nós a libertássemos, sã e salva, o rapto não poderia ser considerado
um crime. Ela seria livre e nós estaríamos a salvo. Mas se fôssemos mais
além, contra a vontade dela, isso seria um crime injustificável e que não poderia ter outro nome.
- Ah! Conversa - exclamou Shively. - Como é que ela poderia provar o
que fizemos ou quem o fez? Você próprio concordou uma vez com o Adam
que era quase impossível provar um caso de violação contra alguém. Além
disso.... - fez uma pausa, olhando para o grupo, e continuou. - Vou ser o
mais franco possível e espero que cada um de vocês também o seja. Se
pensarem nisso, da maneira como eu pensei, cada um de nós devia saber que,
uma vez chegado a este ponto, estaríamos dispostos a tudo, se tivesse que ser,
para conseguir o que queríamos. Cada um de vocês devia saber que não
sairíamos daqui sem pelo menos experimentar aquela gatinha.
Yost estava a servir-se de outro uísque.
- Antes que alguém diga mais alguma coisa, peço a palavra. - Sorveu
um golo da bebida. - Em primeiro lugar, quero mostrar ao Sr. Shively a
minha admiração e apresentar os meus cumprimentos por ter tido a coragem
de ser o mais honesto de todos nós. Porque, e vocês bem sabem que, por um
lado, Shiv tem razão. Nenhum de nós conseguiu encarar o que ia nas nossas
cabeças desde o primeiro dia. Se tivesse sido possível fotografar o que
pensámos na altura ou o que secretamente sentíamos, bem, elas revelariam,
logo de início, que cada um de nós, provavelmente, tinha dúvidas que uma
rapariga como aquela iria de facto convidar-nos a ir para a cama com ela. Se
observássemos mais de perto as fotografias, veríamos que cada um de nós,
inconscientemente ou não, estava disposto a possuí-la à força.
- Eu não - disse Malone. - Nem por um segundo pensei fazer isso.
- Nem eu - ecoou Brunner.
Yost estava quase para responder, mas Shively levantou a palma da mão.
- Está bem - disse -, aceitaremos que talvez vocês os dois nunca tivessem tido esses pensamentos, mas a situação agora é diferente. Ela é um
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corpo no quarto ao lado, existe. Bom material. Tudo o que cada um de vocês tem a fazer é ir ali dentro, meter a mão pelo vestido acima e despentear-lhe o tufo que vale um bilião de dólares. Façam isso, e não terão de se preocupar sobre o forçar ou não forçar. Façam-no, e conseguirão montar nela em dez segundos, não obstante o que ela possa dizer. Por agora, pensem nisso e chegarão à conclusão de que se estão nas tintas para como hão-de lá chegar.
- Eu importo-me - disse Malone, com firmeza.
- Eu também - ecoou Brunner.
- Está bem, está bem - continuou Shively -, mas, mesmo que assim seja, não vamos deixá-la fazer de nós parvos. E não vamos ser palhaços só porque temos problemas sobre o que está certo ou errado. O que é certo é o que sentimos que merecemos, porque não merecemos ser enganados. Olhem, viemos até este ponto. O pior já passou, a parte mais perigosa já está feita. Agora estamos a salvo. É o nosso mundo. Nós é que comandamos. Como o próprio Deus, podemos fazer o que quisermos, fazer novos regulamentos, leis, ou o que lhe quiserem chamar. É. como é que o Adam lhe chama . a ilha de Crusoé.
- Más a Tierra - interrompeu Malone.
-Sim, o nosso próprio reino e país. Portanto, aproveitemos o máximo. Temos o melhor. Se houver um tesouro, ele é nosso. Portanto, ali temos no quarto a coisa com que sempre sonhámos, nós e os outros plebeus. Só que já não somos plebeus. Estamos a comandar e o que está ali dentro à espera é exclusivamente nosso. Imaginem a Elisabeth Taylor ou a Marilyn Monroe ou. como é que se chama aquela francesa .
- Brigitte Bardot - disse Malone.
- Sim, imaginem essa Bardot deitada no quarto ao lado, nua. E vocês podem fazer o que quiserem, porque são reis. Querem convencer-me de que voltariam as costas a todas elas? Não me convencem.
- Não concordo com a violação - insistiu Malone.
Shively não lhe ligou nenhuma.
- Olhem, que diferença faz se nós a soltarmos sem lhe tocar, ou se a soltarmos daqui a duas semanas depois de termos tido o mesmo gozo que esses importantes produtores cinematográficos têm sempre dela? Ela não é nenhuma virgem a quem estamos a dar cabo da vida, não lhe vamos dar cabo da saúde. Não vai ficar com borbulhas por isso.
Shively sorriu, à espera das gargalhadas. Mas não as houve, excepto um pequeno riso abafado de Yost.
- Ela não mudou por causa da experiência - continuou Shively. - Mas nós, sim, nós mudámos. Porque pela primeira vez estamos a beneficiar de uma coisa boa na vida, que desejávamos e que nos é devida. Portanto, que raio há mais a dizer? Digo-vos que devemos fazer o que queremos, não o que ela quer. Este é o nosso mundo. E, caros sócios, o Clube de Fãs é que manda.
- Não, Kyle, não é o nosso mundo - replicou Malone. - Más a Tierra talvez seja um esconderijo isolado, mas continua a ser um enclave
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que faz parte de todo o Mundo e que segue as leis e os regulamentos do
mundo civilizado, e nós pertencemos todos a esse mundo maior. Além disso,
se nos consideramos parte de uma única empresa ou organização conhecida
pelo Clube de Fãs, elaborámos e estabelecemos os regulamentos. E o nosso
regulamento principal é que não adiantamos nada antes que todos estejam
cem por cento de acordo. Qualquer coisa que façamos tem de ser acordada por
unanimidade, tal e qual como acontece quando o Conselho de Segurança vota na ONU. Sempre que houver um voto negativo, isso significa que pomos de parte o assunto sobre o qual votámos.
- Bem, raios, isso era antes, mas agora, da maneira como estão as
coisas, sou contra essa história dos cem por cento - disse Shively. - Você bem pode ver que nunca poderemos, os quatro, estar de acordo sobre nada.
Que mal há em mudarmos os nossos regulamentos do mesmo modo que o Congresso muda a Lei?
- Não há nada de mal nisso - respondeu Malone. - Isso é perfeitamente legal.
- Deixe-me apresentar uma nova proposta - ofereceu-se Yost. - De
agora em diante, para qualquer votação, a maioria dos votos será suficiente
para decidir. Por outras palavras, se houver três contra um, está o caso resolvido.
- Deixe-me então acrescentar um aditamento - pediu Malone. - Uma
maioria de três contra um ganha tudo. Mas um confronto de dois a dois, um
empate, anula, tal e qual como o três contra um.
- Concordo - disse Yost. - Eu sou pelo novo regulamento revisto e
pelo aditamento. E você, Shiv?
-Por mim está bem.
- Você, Adam?
- Com o aditamento, estou de acordo com o voto por maioria.
- Suponho que sim.... Sim.
- Aprovado - concluiu Yost. E virou-se para Shively. - Quer reintroduzir a nossa moção inicial?
- Quer dizer o ir lá dentro, ao quarto, e fazer o que sempre planeámos fazer? - perguntou Shively.
- Sim, quer ela coopere, quer não - respondeu Yost.
-Claro, é essa a minha moção. Eu digo que nós é que comandamos, e
não ela. Digo que devemos fazê-lo a ela, tal como os seus amigos ricos, e ela
adorará. Garanto-vos que não a magoará....
- Pode causar-lhe um choque psicológico - disse Malone.
- Ah, merda - continuou Shively. - Nunca nenhuma sujeita de vinte e oito anos sofreu por ter sido bem montada. Só ajuda. É bom para os corpúsculos ou lá como se chama e para o sistema nervoso.
- Não quando se trata de violação - insistiu Malone.
- Deixará de ser violação cinco segundos depois de estares dentro dela
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- retorquiu Shively. - Quer ela o desejasse, quer não, sentir-se-ia levada a pedir mais. Fala-vos a experiência.
- Basta de conversa - interrompeu Yost. - A moção do Sr. Shively está a voto. A moção dele é que não precisamos do seu consentimento para copularmos com ela. Qual é o seu voto, Sr. Shively?
- Está a brincar? Eu voto sim, alto e bom som.
Yost disse:
- Assim fica um voto a favor e nenhum contra. - Levantou o braço direito. - Eu também voto sim . Ficamos agora dois a favor e zero contra. Qual é o seu voto, Sr. Malone?
- Eu sou completamente contra. Voto não.
Yost abanou a cabeça.
- O quadro marca agora dois a favor e um contra. - Apontou para Brunner. - O voto final e decisivo será dado pelo Senador Brunner. Que ditais?
Brunner limpou a testa com o lenço.
- Vá, Leo - incitou-o Shively -, pense no super-cu que está à sua espera à esquina. Não se arrependerá.
- Cuidado, Leo - avisou-o Malone. - Talvez nunca mais consiga dormir com a consciência tranquila.
- Parem com isso, senhores - disse Yost. - Não é permitido fazer propaganda eleitoral no local de votação. Sr. Brunner, dê o seu próprio voto. Que diz?
- Existem. existem argumentos diferentes de ambos os lados - commeçou Brunner. - Talvez seja uma fraqueza minha, mas. mas eu não poderia fazê-lo. Lamento, mas, infelizmente, tenho de votar não.
- É a democracia - disse Yost bem disposto. - O resultado final é dois a dois. Visto que a moção de Shively apresentada ao Clube de Fãs não conseguiu a maioria dos votos, a moção foi vencida e rejeitada. Lamento, Shiv.
Shively encolheu os ombros.
- Não se pode ganhar sempre. Está bem, caso arrumado. Portanto, que fazemos agóra?
- Fazemos o que sempre planeámos - insistiu Malone. - Continuamos a falar com ela, amigavelmente, tentando convencê-la e conquistá-la. Acho que conseguiremos fazê-lo em dois dias. Se a persuadirmos, será uma conquista feita seriamente e de um modo civilizado. Se falharmos, desamarrámo-la, levamo-la até perto de Los Angeles, e deixá-la-emos em liberdade sem lhe tocarmos. Estamos de acordo?
Todos concordaram.
- Está bem, de acordo - afirmou Shively, levantando-se lentamente da cadeira, espreguiçando-se. Agarrou na garrafa de bourbon. -Está bem, vamos beber mais uns copos e depois dormir, estou estoirado. Um pouco de descanso, e estaremos mais aptos a ver as coisas claramente amanhã.
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Enquanto se servia da bebida, olhou de relance para Malone. - Ainda acha que o vamos conseguir com o poder da palavra, sua besta?
- Acredito que seja possível - respondeu Malone, com sinceridade. Shively sorriu, sarcástico.
- Eu não. Nem agora, nem nunca. - Levantou o copo para brindar. - À democracia e ao vosso mundo. Isso é para vocês. Eu bebo ao meu mundo, o mundo que nós merecemos. É um mundo melhor. Verão, mais cedo ou mais tarde.
Capítulo oilavo
Passava da meia-noite e ela ainda estava acordada, presa à cama e indefesa, sofrendo outra onda de pânico e horror ao pensar no seu estado.
Durante a noite interminável, a sua disposição tinha funcionado como um
pêndulo, oscilando de um esforço controlado para entender a sua sorte, para
um terror de morte, e a sua reacção física tinha alternado entre uma transpiração quente e suores frios, até que se esgotou por fadiga.
Queria fugir e refugiar-se na escuridão do sono, mas, sem o seu tranquilizante Nembutal e sempre sob o estímulo do medo, o dormir era- lhe impossível.
Desde a breve e silenciosa visita feita três horas antes por dois deles, o
maior e o mais velho dos quatro, que ela não tinha conhecimento de outra
vida humana naquela casa. Eles tinham-na desamarrado, aliviando-lhe as
cordas de modo a deixar-lhe os pulsos presos à sua frente, e deixaram-na ir à
casa de banho. Ofereceram-lhe comida, que ela recusou agressivamente, e
água, que ela quase recusou mas acabou por aceitar; seguidamente
amarraram-lhe mais uma vez os pulsos às barras da cama e retiraram-se rapidamente, seguidos por ameaças e insultos dela. Depois disso, pareceu-lhe que
tinha ouvido vozes indistintas no quarto ao lado, a seguir as vozes deixaram
de ouvir-se e o local mergulhou num silêncio absoluto.
O pêndulo interior continuou a oscilar do pensamento racional para um
medo de arrepiar e depois de novo para o pensamento racional.
Ela deixou-se envolver em pensamentos, sobre aquela manhã, aquela
tarde, o dia seguinte e um pouco para o dia anterior.
Só uma vez na vida, ou pelo menos na sua vida adulta, é que se encontrou
numa situação destas. E foi só a fingir.
Ela pensou, tentando recordar-se, em criança, em West Virginia, que,
quando brincava aos cowboys e aos índios ou aos polícias e ladrões com os
miúdos do bairro, fora amarrada a uma árvore e deixaram-na a gritar por
socorro, até que os outros tinham voltado para trás para a salvarem. Lembrava-se vagamente dessa brincadeira.
Mas a sua memória estava mais clara em relação a uma situação
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semelhante à presente, passada já na sua idade adulta. Ela tinha quase a certeza de que fora há três anos.
O filme, Catharine and Simon, tinha sido filmado no Oregon. Era baseado numa história tipicamente americana, mas verídica e esquecida, uma história que se passava na fronteira desabitada entre Ohio e Kentucky, em 1784. Desempenhara o papel de Catharine Malott, uma rapariga nova que tinha sido, de facto, capturada por um grupo de assaltantes Shawnee, adoptada pelos índios, que tinha feito a sua iniciação para entrar na tribo, e educada commo uma jovem índia. Catharine tinha tido conhecimento, e sabia, de outro caso semelhante ao seu, de Simon Girty, que, quando era rapazinho, tinha sobrevivido ao massacre perto de uma aldeia e fora adoptado pelos Sénecas e educado com um Séneca, e que se havia tornado legendário como um chefe de bravos saqueadores que defendiam as terras dos índios contra os soldados ingleses e americanos.
Os seus pensamentos vaguearam retrocedendo para a cena, tentando localizá-la, e, entre as muitas do passado, conseguiu e fixou-a.
CENA 72. FILMAGEM DE FUNDO
a margem do rio para apanhar um grupo de raparigas índias a tomar banho. Elas estavam a chapinhar, a divertir-se, começando a emergir da água para se vestirem.
CENA 73. FILMAGEM DO GRUPO
raparigas indias a vestirem-se, com Catharine Malott em primeiro plano, usando um casaco de cabedal e combinação, enfiando uns mocassins. Ela começa a esfregar gordura de urso nos braços, a protecção habitual contra as mordidelas dos insectos. A CÂMARA RE TROCEDE LENTAMENTE mostrando uma dúzia de figurantes, rudes guardas das fronteiras e soldados, acocorados a vigiar, todos armados com longas espingardas. Começam a aproximar-se das raparigas.
CENA 74. FILMAGEM RETRÓGRADA
passando por Catharine em direcção à floresta enquanto os assal tantes americanos surgem de todos os lados, Catharine vê-os, vira- se para a CÂMARA e dá um grito.
PASSA PARA
CENA 75. INTERIOR DA CABANA - PRIMEIRO PLANO
Catharine deitada de costas, a lutar. ABRE-SE UM âNGULO para revelar dois soldados americanos a prender Catharine à cama.
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PRIMEIRO SOLDADO
-Isso há-de acalmá-la.
(para o Segundo Soldado)
(para Catharine)
- Não são vocês, as mulheres brancas que foram para eles, que nos incomodam. São os homens renegados. como aquele branco selvagem, o Girty. Nós vamos prender-te até que nos digas onde o podemos encontrar.
O resto, o que se seguia, tinha-se apagado da memória de Sharon Fields. Excepto duas coisas. Depois de o director ter filmado a cena, ele anunciara o intervalo para o almoço, mas, em vez de desamarrar Sharon, tinha-a deixado amarrada e desaparecera com o pessoal, enquanto ela lhes gritava obscenidades. Tinha sido uma partida, uma brincadeira, porque eles tinham voltado dez minutos mais tarde, a rir, para a libertarem. Mas ela ainda se lembrava do pequeno intervalo de pânico enquanto eles se tinham retirado e ela tinha ficado para trás, amarrada à cama.
Era incrível lembrar-se disso. E mais incrível estar ali deitada, sabendo que a vida tinha imitado a arte.
Com a cabeça virada na almofada, notou as janelas do quarto fechadas com tábuas e parcialmente tapadas com cortinados. Os intervalos entre as tábuas só revelavam escuridão, e, do lado de fora, apenas se ouvia o cantar dos grilos. Aquelas tábuas nas janelas funcionavam como combustível para as suas apreensões. Elas afirmavam que este rapto tinha sido planeado com antecedência. Tinham feito preparativos para a sua chegada.
Mais uma vez ela se interrogou sobre quem seriam eles, o que eram, o que pretendiam fazer dela. Se o que era alto e feio tinha falado a sério, eles eram tarados sexuais ou uns pervertidos quaisquer. E loucos, completamente loucos, em julgarem que ela ia concordar e cooperar.
O terem conseguido acreditar na sua imagem pública, na publicidade, o terem acreditado no seu simbolismo sexual e terem actuado de acordo, cometendo este crime horrendo com base na certeza de que ela estaria disposta a comportar-se como a pessoa que deveria aparecer na tela, essa era a maior loucura.
Como desejava agora desesperadamente dormir, como precisava do seu comprimido para dormir. Mas ela sabia que até isso não faria efeito. O seu medo resistiria à droga. Além disso, o dormir deixá-la-ia totalmente nas mãos deles, e ela não permitiria isso, apesar de, e verdade seja, ter sido drogada naquela manhã, e eles a terem levado inconsciente, sem a molestarem. Não, claro que não, disso tinha ela a certeza.
Os acontecimentos daquela manhã pareciam perdidos na sua memória, tão distantes. Tinha feito tantos planos. os planos para o dia, as malas a
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fazer, os telefonemas, as cartas, os planos para a viagem de avião a Londres no dia seguinte. tudo mal sincronizado, tudo em limbo, e, agora, tão in consequente.
Uma única esperança surgiu pela centésima vez.
Dariam pela falta dela. Ela tinha tomado café no quarto quando acordou, mas Pearl tinha sempre um sumo, ou um cereal, à sua espera quando regressava dos seus passeios matinais. A comida estaria pronta, e o Los
Angeles Times e a edição em papel de avião do The New York Times dobrados ao lado do seu prato estariam à sua espera, porque ela aparecia logo à mesa assim que chegava do passeio.
Quanto tempo teria decorrido antes que dessem pela sua falta? Talvez quinze minutos, meia hora no máximo. Pearl teria provavelmente pensado que ela tinha regressado, que estava a tomar o pequeno- almoço, e o mais provável é que tenha subido lá acima com Patrick para fazer a cama e arrumar as coisas. Depois desceriam, e Pearl iria levantar a mesa para encontrar a comida intacta. Seria a primeira a saber, pois Nellie Wright nunca aparecia antes das oito horas.
Deitada e presa a esta cama de metal, Sharon Fields fechou os olhos e
tentou visualizar o cenário de actividades que se seguiria. Pearl ficaria surpreendida, procuraria pela casa, cá em baixo e lá em cima, para ver se ela estava bem, se algo de mal se passava. Não a encontrando, Pearl avisaria o marido. Juntos iriam lá fora percorrer o caminho e procurar nos jardins.
Na sua pesquisa, encontrariam Theda, a cadela. o que teria acontecido à sua mascotezinha, à queridinha? Ter-lhe-iam feito mal? Não, não era pro vável, porque isso seria uma prova. mas não haveria sinal da dona de The da, a não ser que aqueles quatro monstros tivessem acidentalmente deixado outras provas. O que fariam depois Pearl e Patrick? Logicamente, Patrick iria verificar a garagem com os três automóveis para ver se ela, seguindo um impulso, havia levado um dos carros e tivesse ido dar uma volta. Mas não, o Rolls-Royce, o Dusenberg e o Ferrari estariam todos nos seus lugares. Nessa altura, ficariam mesmo preocupados. Iriam acordar a Nellie.
E depois? Nellie não ficaria logo alarmada. Era ponderada, tinha auto domínio, e conhecia os caprichos ocasionais da patroa. Vestir-se-ia e levaria o casal de governantes a dar mais uma volta pela casa e pelos jardins. E depois? Nellie deduziria que a sua patroa talvez tivesse continuado o seu passeio pela Stone Canyon Road a baixo e sugeriria que fossem dar uma vista de olhos. Se não a encontrassem, e à medida que a manhã se adiantasse, Nellie iria, pessoalmente, bater a algumas casas no Levico Way e ao longo da Stone Canyon Road, perguntando a vários vizinhos, que conheciam, se algum deles tinha visto Sharon Fields a passear horas antes.
Sem ter tido sucesso, a preocupação de Nellie talvez aumentasse e entãoéla iria para o seu escritório, sentar-se-ia à secretária perto do instrumento que parecia estar permanentemente ligado a ela, o omnipotente telefone. Nellie talvez conjecturasse que a sua patroa teria encontrado ao portão
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alguém conhecido, uma pessoa amiga que a viesse visitar ou que estivesse a passar por acaso, e que a teria acompanhado até à cidade e tomasse um pequeno-almoço imprevisto. Nellie começava por ligar para meia dúzia, uma dúzia dos seus amigos, ou associados do estúdio, não lhes dando a perceber que ela tinha desaparecido, mas apenas perguntando se ela tinha alguma entrevista marcada com eles.
Mas os telefonemas não lhe dariam nenhuma informação, e, à medida que o dia passasse, Nellie ficaria, com certeza, mais preocupada.
Em último caso, telefonaria para Félix Zigman. Informá-lo-ia e discutiriam o assunto. Se Félix levasse a sério o seu desaparecimento naquela altura do dia, com certeza que se apressaria a dar-lhe ajuda.
Até que ponto é que Féliz e Nellie suspeitariam de rapto, se é que admitiriam pensar em tal possibilidade? Talvez pela noite, algures em Los Angeles, ou talvez em qualquer altura do dia seguinte. Ela sabia que Félix detestaria ir à Polícia, que tentaria tudo o que fosse possível antes de informar a Polícia do seu desaparecimento. Porque o seu instinto lhe ditaria que, devido ao nome dela, à sua fama, talvez a Polícia deixasse escapar a notícia para os jornais, o que provocaria uma publicidade sensacional que se tornaria embaraçadora quando regressasse, passado pouco tempo, com uma explicação para o seu comportamento caprichoso!
Mesmo assim, Félix iria, sempre, dar a becos sem saída, à medida que se aproximasse a hora do seu embarque e o bilhete tivesse de ser cancelado ele teria de enfrentar o facto de haver uma vaga hipótese de que alguma coisa de sério lhe tivesse acontecido. Mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo, talvez dentro de setenta e duas horas, Félix iria, contrariado, participar o seu desaparecimento à Polícia, e ela confiava nos seus conhecimentos para se assegurar de que a Polícia não espalharia a notícia.
E a Polícia, a sua maior esperança, que faria?
Tentando vislumbrar a reacção e a actividade dos servidores da lei, Sharon lembrou-se, de repente, com uma sensação de abandono, de uma ocasião anterior, quando ele também participara o seu desaparecimento à Polícia. Fora há seis ou sete anos, quando ela estava na escalada, mas era ainda uma pequena estrela e a Aurora Films lhe tinha dado os seus primeiros papéis provocadores naquela comédia de segunda ordem, O Ninho do Amor. Só faltava uma semana de filmagens, a maioria das suas cenas já estava terminada, e tinha-lhe apetecido celebrar e descansar.
Fora a um baile de máscaras na colónia de Malibu, conhecera um playboy peruano lindo e sedutor, que era corredor de automóveis e pilotava o seu próprio avião, e tinha-se divertido imenso com ele e bebido de mais. Quando lhe propôs tomar uma bebida em casa dele, ela tinha aceitado, não sabendo que a casa dele, ou pelo menos uma delas, era perto de Acapulco. Tinha sido fantástico, uma pândega, e ela tinha partido com ele para o seu avião em Burbank e havia acabado por passar uma semana a rir e a beber
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constantemente na fantástica hacienda que ele possuía nos arredores de Acapulco.
elembrou-se da aventura imprudente (tinha sido tão inconstante e irresponsável nessa altura) e do que se tinha passado, quer durante a sua ausência, quer depois. Os responsáveis do estúdio, quando ela não apareceu nas vinte e quatro horas seguintes, com as filmagens suspensas e os custos a aumentar, tinham ficado furiosos. Tinham aguilhoado o novo agente dela
-Félix Zigman tinha-se preocupado com uns incidentes passados com ela seis meses antes - para ir à Polícia.
Félix, coitado do querido Félix, muito contra sua vontade e seu melhor julgamento destes casos, tinha seguido as ordens deles. Fora levado ao Chefe, que o tinha mandado para o Departamento de Pessoas Desaparecidas, na Secção dos Detectives. Como não havia nenhuma prova de que se tratava dum caso grave, os detectives não deram grande importância à queixa apresentada por Félix. Depois de terem anotado a descrição física de Sharon, as suas características, especialmente a sua profissão, ainda menos importância deram ao caso. Um dos polícias tinha até alvitrado que Sharon Fields fora provavelmente escondida para criar publicidade a um mau filme. A Polícia havia prometido verificar na morgue e fazer a volta rotineira pelos hospitais, tendo-se Félix despedido com a certeza de que eles não levariam a sério o desaparecimento de uma actriz a não ser que houvesse uma prova ou uma boa evidência de que se tratava dum rapto.
Nesse caso, a Polícia tinha tido razão - não no aspecto da publicidade grátis, mas, sim, no aspecto de não a levar a sério. Quando ela voltou a aparecer, lúcida, passada uma semana, os responsáveis do estúdio tinham jurado castigá-la (mas mudaram de ideias depois de o Ninho do Amor ter sido um sucesso) e o pior foi que Félix Zigman, que nunca tinha perdido a paciência mas mostrava friamente o seu descontentamento, dissera-lhe que iria terminar as suas relações profissionais com ela (mas desistiu da sua decisão depois de ela lhe ter suplicado e jurado que não repetiria o episódio sem, pelo menos, o informar). Ela havia cumprido a sua palavra e nunca repetiu o episódio. Sabia que tinha sido, por vezes, difícil, temperamental e imprevisível, mas a sua fama tinha aumentado, o mesmo sucedendo com a sua vida profissional. Nos anos mais recentes, com a sua nova sensibilidade e maturidade, ela tinha sido um modelo de bom comportamento.
Como já havia escorregado uma vez, seria que Félix iria preocupar-se com este seu desaparecimento? E a Polícia estaria atenta?
Félix conhecia-a melhor agora, tinha-lhe uma grande afeição, e certamente não iria encarar este desaparecimento como um gesto impulsivo.
Quando fosse ao Departamento das Pessoas Desaparecidas, como pro vavelmente iria, como encarariam eles a queixa? Só havia um alarme falso em relação a ela. Havia a questão de se tratar de uma actriz de renome que acabava
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de estrear um filme. Havia também a sua partida repentina, porém não
havia vestígios de crime. Por outro lado, há meia dúzia de anos atrás, ela
tinha sido uma estrela frívola, pouco conhecida. Agora, era Sharon Fields, a
personalidade do cinema mais bem conhecida do Mundo. Tinha uma posição,
importância, influência. Não havia dúvidas de que os detectives não iriam ignorar a queixa, dentro de um ou dois dias, eles começariam a tratar do caso.
Mas, Sharon interrogou-se por onde iriam começar.
Nesse momento, a única esperança que tinha dissolveu-se no ar.
O pêndulo interior começou de novo a oscilar, começou a sentir-se perdida, abandonada, tentando libertar-se do pânico, conservar a calma e pensar na sua situação.
Mas uma coisa era inevitável. Ela estava ali, vítima de uma conspiração
bizarra feita por quatro loucos, sob o mesmo tecto que eles, já enfrentada por
eles, e, no entanto, ela, a pessoa mais importante do rapto, a vítima, não fazia a menor ideia sobre o que realmente se tinha passado depois de eles a
terem raptado e muito menos sabia quem eram os seus raptores. Se ela sabia
tão pouco, que poderiam saber Nellie Wright, Félix Zigman ou a Polícia acerca do que se tinha passado, onde estava ela, e quem a tinha cativa?
Ninguém, nem os mais chegados a ela, os que se preocupavam com o seu
bem-estar, nem as autoridades, poderiam sequer imaginar este crime inacreditável ou os motivos, ou a sua presente condição.
Nada havia a fazer, absolutamente nada.
O seu pensamento voltou-se para os seus raptores, aqueles quatro loucos
barbudos, com diferenças de idade, de físico e de linguagem. Quem eram
eles? Isto era importante. Nada era mais importante. Tentou reconstituí-los,
individualmente, desde o primeiro encontro com eles, ao fim da tarde. Eram
tão diferentes uns dos outros que não havia dificuldade em os diferenciar e lembrar-se deles.
Tinham sido espertos em nunca se chamarem pelos nomes ou pelas alcunhas. Ela iria tentar dar a cada um deles uma identidade e um nome de sua própria escolha.
Havia um que tinha sido, com certeza, o instigador da conjura e era provavelmente o chefe do grupo. Superficialmente, parecia o que se coadunava
menos com o seu papel, que era o de cabecilha criminoso e sem escrúpulos.
Era o de altura média com cabelos castanhos encaracolados e barba, temperamental, estranho, envergonhado, um pouco despistado com os
conhecimentos errados que tinha acerca da vida dela. Um fã tipicamente
louco que tinha fundado um clube hediondo e sinistro como nenhum outro
clube de fãs de que já tivesse ouvido falar.
Ele foi o que ficara mais surpreendido com ela, mas, quando lhe passara a
surpresa, mostrou-se o mais literato e falador dos quatro. A sua cabeça estava
repleta de fantasias. Estava tão longe da realidade e era tão fanático que até
tinha conseguido levar os seus companheiros a actuar acreditando numa
fantasia - que, no fim, a vítima deles não se importaria de ser raptada ou ser
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feita prisioneira, que ela seria suficientemente masoquista para o apreciar, para o desejar, e para pedir as agressões e atenções deles. Um louco. Mas que mais? Ele não aparentava ser um trabalhador, um atleta, nem nada disso. O seu carácter era demasiado ilusório para agarrar, prender e examinar; parecia mercúrio, e, portanto, era difícil de definir. Só que não parecia um criminoso. no entanto, quem o parecia antes de actuar? Será que Oswald, lìay, ou Bremer ou mesmo Hauptmann pareciam criminosos antes de praticarem os seus crimes? Qualquer deles poderia ter sido um inocente manga-de-alpaca, um caixa bancário ou qualquer outra coisa tão inofensiva como estas.
Um nome para referência. O Sonhador. Era apropriado.
Depois, havia o gordo e pesado, de cara larga, carnuda e flácida atrás daquele cabelo todo, gordo e com muitas banhas. Também tinha um carácter muito enganador. Ela tentou lembrar-se dele quando esteve aos pés da cama. Não o tinha observado bem, mas ele também não tinha falado muito. Apresentara vagamente um ar de falsa sinceridade. Havia qualquer coisa nele, no seu comportamento, que lhe lembrava milhões de vendedores que conhecera ao longo dos anos. Tinha a certeza de que a Aurora Pictures lhe daria o papel de caixeiro-viajante ou de tocador de tambor. Também não tinha ar de raptor. Talvez um aldrabão, um mentiroso, trapaceiro e conivente.
Só um nome lhe serviria. O Vendedor.
Depois, o mais velho deles, o velhote calado, cheio de tiques que o transfiguravam muito e que estivera sentado na chaise longue. Tinha um ar infeliz e ridículo com o seu chinó mal posto, aqueles óculos de aros pretos que não lhe ficavam bem e aquela boca amaneirada. Muito pálido, de peito ossudo e saído, sem presença, e que não estava, com certeza, longe da reforma. No entanto, ela não se deixaria iludir pela idade ou pela aparência, pois já fora muitas vezes enganada, anteriormente, pelo aspecto exterior das pessoas. Um dos piores criminosos da História de Inglaterra não tinha sido um dentista londrino plebeu e sem características definidas? Este velhote, com a sua fachada de timidez, poderia ser um cabecilha criminoso, libertado sob caução, por burla, falsificação de notas ou outra coisa pior, e o membro mais pervertido da pervertida organização conhecida por Clube de Fãs.
No entanto, fosse ele quem fosse, só havia um cognome que o definia perfeitamente. O Pão-de-Leite.
O quarto era o mais vivido e o que preocupava mais os seus pensamentos. O que era alto e magro, com ar cadavérico, sotaque do Texas, e que só falava em fodê-la, era o mais frustrado por ser dominado pelos ricos, era o pior de todos. Era feio como pus. Era, com certeza, um trabalhador braçal qualquer, um tipo temperamental, viciado e perigoso, possivelmente um sádico. De certeza um homem que podia ser ou poderia ter sido um criminoso e que, possivelmente, já tinha cadastro. Todos eles eram maus, nojentos, mas, de qualquer modo, este alto e magro não se identificava com os outros, não
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parecia ter o mesmo nível social e intelectual deles. Pela maneira como in terrompeu o chefe, era ele possivelmente o que mandava a seguir, talvez até o subchefe.
Ela só conseguia pensar nele como sendo o Demónio. E ao pensar nele, arrepiou-se.
Os quatro. O pensar neles, individualmente ou em grupo, punha-a doente.
Lembrou-se de que, depois de a terem deixado há mais de seis horas, quase todas as últimas palavras deles tinham sido pronunciadas pelo chefe, o Sonhador, que dissera aos outros para a deixarem descansar, acrescentando: - Vamos para o outro quarto para podermos discutir o assunto.
Pelos vistos, devem ter falado toda a noite antes de se irem deitar. Ela pensou - Que teriam discutido - Especulou - Que lhe traria a manhã?
Os motivos que os levaram a trazê-la para ali à força tinham começado na explicação superficial do Sonhador. Que desejavam conhecê-la melhor, que em afirmação directa do Demónio esperavam convidá-la a ter relações sexuais com eles. A meio, o Pão-de-Leite era de opinião que a deviam soltar se ela não quisesse cooperar, e o Vendedor era de opinião que deviam forçá-la a cooperar. Mas que cooperação esperavam esses loucos? Quereriam apenas a camaradagem dela, esperando mais? E se não tivessem mais, iriam realmente libertá-la? Ou seria que a cooperação de que eles falavam era de facto um eufemismo para uma relação sexual como o Demónio tinha dito com toda a franqueza, mas que os seus companheiros raptores não tiveram coragem de apontar tão directamente?
Tentou compreender o desenrolar da confrontação.
Apesar do que se tinha passado nessa manhã e da presente situação indefesa, ela podia apontar várias coisas boas que pareciam favoráveis à hipótese de ser posta em liberdade sem ser molestada. Em primeiro lugar, quando o Demónio tinha vomitado o que queria dela, o Sonhador tinha-o avisado de que se deixasse dessas conversas e o Pão-de- Leite queria que abandonassem tudo. Aparentemente, aqueles que eram contra o forçá-la controlavam o grupo dessa loucura chamada Clube de Fãs. Em segundo lugar, ela tinha um crescente sentimento de confiança, pois havia conseguido chamá-los à razão e envergonhá-los. Sentiu que, de um modo ou de outro, tinha conseguido atingir a sensibilidade de decência deles, mostrando-lhes a realidade do crime que tinham cometido. Em terceiro lugar, e isto aumentava a sua confiança e alimentava as suas esperanças, nenhum deles tinha voltado para a incomodar ou molestar.
Sim, na verdade, nenhum deles se tinha atrevido a voltar (excepto para a deixarem usar a casa de banho) porque tinham ficado envergonhados e se tinham lembrado do que lhes poderia acontecer se tocassem em alguém tão importante como ela.
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Claro que estava segura.
Ela era Sharon Fields. Eles não arriscariam magoar ou violar Sharon Fields, não uma pessoa com os seus créditos, a sua fama, as suas receitas, o seu dinheiro, a sua segurança, as suas comitivas, a sua inatingibilidade, alguém que era mais um símbolo internacional do que um simples mortal. Ter-se-ia alguém atrevido a fazer isto, anos atrás, a uma Greta Garbo ou a uma Elizabeth Taylor, e depois tê-las violado? Claro que não, impensável. Ninguém se teria atrevido. Teria sido absolutamente louco. No entanto.
Puxando pela corda e pelo trapo que lhe prendiam os pulsos, ela recordou-se de que era prisioneira deles, pois eles tinham-se atrevido a ir até esse ponto. Tinham realizado este projecto inconcebível com sucesso. Tinham-na amarrado, sem poder resistir, indefesa, privada de qualquer auxílio ou salvamento imediato, totalmente retirada do seu mundo seguro de amigos e da lei. Qualquer pessoa que se atrevesse a chegar a este ponto poderia ser suficientemente louca para ir mais além.
Os seus pensamentos pareciam uma montanha-russa de confusão, passando da esperança e optimismo para a desilusão e o desespero.
Que se teria passado no tribunal deles? A que veredicto teriam chegado? No entanto, convenceu-se de que a razão teria de prevalecer. Não havia dúvida que eles tinham decidido conferenciar de novo com ela amanhã, e se as palavras deles não a conseguissem seduzir, vendá-la-iam de novo, drogá-la-iam, e acabariam por libertá-la sem lhe fazerem mal. Devia poupar as suas forças para a manhã. Eles seriam bajuladores, suplicariam, iriam, mesmo, ameaçar. Mas se ela se mantivesse firme e não lhes desse mais do que um maior sentimento de vergonha e culpa, ela, por certo, triunfaria e ganharia o direito de ser libertada deste louco empreendimento.
Quem iria acreditar nesta sua história fantástica, uma vez que fosse libertada e a pudesse contar?
A casa estava tão silenciosa como uma morgue. Eles estavam a dormir, graças a Deus, a descansar para outra confrontação de manhã. Ela também devia dormir e manter as suas forças para os convencer, manobrá-los e vencê-los, quando o Sol nascesse.
Havia um candeeiro aceso nesse quarto, e ela desejou que o clarão amarelo tivesse sido apagado como os outros, para que pudesse estar com pletamente às escuras. No entanto, tinha de dormir, obrigar-se a dormir; e amanhã seria outro dia.
Virou a cabeça na almofada, contra o candeeiro, e fechou os olhos procurando dormir.
Mas houve uma interrupção, ela sabia que não tinha imaginado, mas que era qualquer coisa real pressentida pelo seu ouvido sensível. Virou a cara para o tecto para destapar ambos os ouvidos, e escutou.
O som era agora mais distinto, as tábuas do soalho do lado de fora do seu quarto rangiam sob o peso de alguém deslocando-se sobre elas, mais perto, mais próximo, alguém que se aproximava.
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Os seus olhos abriram-se. O coração saltou e começou a bater com mais força.
Para lá dos pés da cama, ela podia ver a maçaneta da porta a virar. De repente, a porta estava aberta e uma silhueta alta, meio perdida na escuridão, tapava-a completamente. Ele entrou, fechou a porta cuidadosamente atrás de si, virou a maçaneta do lado de dentro, e caminhou sem ruído em direcção à cama.
O coração dela parou. Sharon olhou para cima embasbacada. Ele entrou no círculo amarelo da luz do candeeiro e ficou iluminado. Era. oh Deus. o Demónio, o pior de todos. De tronco nu, cabeludo, com calças compridas, descalço. Era alto, magro, com músculos saídos e as costelas delineadas.
Ficou de pé ao lado dela, cabelo preto, testa curta, olhos pequenos e perscrutantes, com um bigode que mal lhe cobria o lábio superior dando-lhe um ar maldoso.
Os seus lábios torceram-se, e o coração dela começou a bater com muito mais força, descompassadamente.
- Não consegui adormecer, querida - disse ele, em voz baixa. - Agora vejo que éramos dois a não consegui-lo. Os outros estão mortos para o mundo. Suponho que isso faz com que sejamos os dois os únicos vivos.
Ela susteve a respiração, não falou. Podia cheirá-lo. Tresandava a uísque barato, fazia náuseas.
Ele disse, com voz baixa.
- Bem, querida, já mudaste de ideias?
Os seus lábios tremeram.
- Sobre. sobre quê?
- Sabes muito bem, sobre o cooperares. Para teu próprio bem.
- Não - murmurou ela. - Não. Nem agora, nem amanhã, nem nunca! Vá-se embora, por favor, e deixe-me sozinha.
Os lábios finos continuaram torcidos.
- Acho que não seria muito cavalheiresco deixar uma hóspede sozinha na sua primeira noite, estando ela tão alterada. Cheguei a pensar que gostarias de ter companhia na tua primeira noite.
- Não quero ninguém, nem agora, nem nunca! Quero ficar sozinha e dormir. Vamos os dois dormir e falaremos acerca disso amanhã.
-Já é amanhã, querida.
- Deixe-me em paz. - A voz dela começou a elevar-se. - Saia daqui.
- Então é assim, ainda continuas teimosa - disse ele. - Bem, querida, é melhor que saibas que não tenho a paciência dos meus amigos. Vou-te dar outra chance para seres razoável, para teu próprio bem. - Os seus olhos pequeninos percorreram rapidamente a cara dela, a blusa, a saia, voltando de novo para a cara. - É melhor reconsiderares, e verás que posso ser muito bom....
- Raios o partam, saia daqui!
.. a não ser que seja maltratado. Portanto, se não vais ser amigável, então receio que eu.
O que aconteceu a seguir foi demasiadamente rápido para os reflexos dela. A mão dele foi ao bolso, tirou qualquer coisa branca, e, antes que ela pudesse
gritar, a voz ficou entrecortada na garganta com o lenço por cima da boca aberta, magoando-a e sufocando-a, enquanto os seus dedos ossudos o puxavam com força por cima dos seus cabelos, dando um nó e depois outro.
Ela abanou a cabeça de um lado para o outro, tentou proferir palavras de protesto, suplicar, gritar por socorro, mas estava amordaçada e emudecida.
Ele levantou-se, satisfeito com o seu trabalho manual.
- Suponho que terei de fazer as coisas à minha maneira, porque me sinto simpático, muito simpático, querida. Tiveste a tua chance esta noite, e
perdeste-a. Tenho de te dar uma lição. Terás de aprender que digo sempre o que sinto.
Fez uma pausa para ver os lábios dela a lutarem contra a mordaça, depois baixou-se, ajustou-a, para que penetrasse mais profundamente entre os queixos.
Deu um passo para trás.
- Já está. Não querias que acordasse os meus amigos, pois não? Isso não seria uma atenção da minha parte, pois não? - Com as mãos nas ancas, sorriu para ela. - É pena que me tivesses obrigado a amordaçar-te assim, porque, daqui a meia hora, gostaria de te ouvir suplicar por mais. Acredita em mim, querida, vais adorar, vais adorar todos os minutos. - Olha, querida, vamos a isto. Não és exactamente o que se pode chamar uma virgem, portanto não te vou fazer nada de novo, certo? Talvez seja melhor dar-te uma segunda chance para cooperares, apesar de não fazer isso por hábito. Se me mostrares que estás disposta a cooperar, serei mesmo bom para ti. Até te posso tirar a mordaça imediatamente. E quando terminarmos, não o direi aos outros. Coopera comigo esta noite e por mais uns dias, e não diremos aos
outros, não os deixaremos participar, e eles não te incomodarão. Faremos de conta que não se passa nada. Que tal? Teremos o nosso gozo em segredo, e eu
garanto-te que eles te libertam. Que dizes agora?
Ela estava cega de medo e fúria. Nunca tinha imaginado que isto poderia acontecer, nunca, nunca, não a ela, não a Sharon Fields. Não estava a acontecer, não podia estar. Mas ali estava ele à espera, e ela tinha o coraçãona garganta e sufocava. Abanou violentamente a cabeça, para lhe indicar o
que sentia, para lhe dizer que havia engano, para lhe dizer que se fosse embora, que saísse, que a deixasse. Forçou os seus pulsos presos, e começou a dar pontapés, tentando atingi-lo com a perna esquerda, para lhe indicar que falava a sério.
Sabia que era em vão. Ele tinha a resposta dela, e agora ela tinha a dele. Ele começou a desapertar lentamente o seu largo cinto de couro.
Ela cruzou as pernas, uma sobre a outra.
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- Está bem, querida - disse ele, com um grande sorriso -, não há cooperação. Então terá de ser assim, tu o quiseste.
Paralisada de terror, ela viu-o deixar cair as calças na carpeta e tirá-las. Vestia cuecas curtas. O volume entre as suas pernas parecia um pedregulho.
Tentou pedir-lhe, suplicar-lhe.... ela não o tinha pedido, não o desejava, era livre, pertencia a si própria, nunca tinha sido violada, nunca tinha sido atacada assim - porquê ela? que estava ele a tentar provar? Ele era um ser humano . mas as suas palavras eram abafadas pela mordaça, entrecortadas na garganta, presas e tremendo na sua garganta, emitindo apenas sons de angústia que passavam pelo lenço que a sufocava.
Respirando com dificuldade, os seus olhos aterrorizados fixaram-se nele enquanto tirava as cuecas.
- Oh, Deus, faz com que ele páre, salva- me; protege-me - rezou ela. Não podia acontecer, não iria acontecer. Seria que este animal não sabia quem era ela?
Ele tinha-se aproximado, inclinando-se para ela, as mãos nos botões da sua blusa de malha. A doentia aproximação daquela cara repulsiva, o cheiro nauseabundo a uísque da boca dele, fizeram-na recuar.
- As mamas primeiro - dizia ele, com voz rouca. - Tenho que ver essas taras.
Um a um ele desabotoou os botões. Ela afastou tanto o corpo dele que o último botão rompeu. A blusa estava parcialmente aberta, e as mãos dele puxaram a parte de cima do seu corpo para ele, abrindo-lhe completamente a blusa. Ela pôde ver os seus grandes peitos expostos, cada um deles coroado com a circunferência castanha dos mamilos.
- Ena, não querem lá ver - ouviu-o ela dizer -, com que então, sem soutien? Suponho que são para o mundo os ver. Cristo, olhem só para esses altos. Há anos que não vejo nada tão grande. - As suas mãos grosseiras fecharam-se, movendo-se cada uma por cima de cada peito, acariciando-os e massajando-os. De repente, as mãos desapareceram. - Não percamos tempo com preparativos.
Rapidamente, ajoelhou na cama ao lado dela.
O seu sorriso transformou-se numa careta.
- Bem, querida, já me viste. tão rijo como um rinoceronte. Hem Agora, é a minha vez. Vamos ver a vaginazinha mais famosa do mundo.
Desesperada, decidida a resistir até à morte, ela começou a levantar as pernas para o afastar com pontapés, mas as mãos de ferro dele saltaram, agarraram-lhe as pernas, que se levantaram e afastaram-nas. Ele atirou o corpo nu para cima dela, pondo todo o peso da anca sobre a perna esquerda dela, empurrando-a para baixo, colando-a ao colchão, enquanto uma das suas mãos lhe segurava a perna solta, num aperto doloroso, prendendo-a à força.
Com a mão livre, a direita, desabotoou os botões da mini-saia de cabedal, e, quando o último botão se soltou, ele afastou para o lado metade da saia e, depois, a outra metade.
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Arfando, naquele momento terrível, ela tentou recordar-se do que tinha vestido por baixo naquela manhã, depois lembrou-se e estremeceu. Tinha vestido a porcaria das calcinhas de tiras, as pretas, de seda transparente, só com cinco centímetros de largura, que se tornavam mais finas para os lados e eram abotoadas acima da anca. Era uma das mais pequenas que tinha, que mal lhe cobria os cabelos púbicos e a vulva, a coisa mais parecida ao não ter nada vestido para dar às saias e aos vestidos uma linha contínua. Mas aqui, agora, ela sabia que seria o pior excitante.
E, instantaneamente, viu que tinha razão.
Pôde ver os olhos dele, pequenos, iluminarem-se à medida que olhavam pelas pernas a baixo. Depois sentiu a coisa grossa dele a ficar rija contra a sua coxa.
- Jesus - dizia ele, levando uma das mãos às calcinhas dela. En contrando um dos colchetes e depois o outro, e puxando para baixo a parte da frente do pedaço de seda, deixou-a nua. Estava a olhá-la mais atentamente, emitindo grunhidos à medida que mirava o grande tufo de cabelos púbicos e os lábios rosados da sua vulva. - Jesus - repetiu ele -, que maravilha, que maravilha, que lindo e delicioso pedaço. Aqui o tens, o meu morteiro.
Dizendo isto, com um movimento rápido e ágil, largou-lhe as pernas e pôs os joelhos directamente sobre ela. Momentaneamente liberta, ela levantou bastante alto os dois joelhos, tentando empurrá-lo com os pés. Mas quando as suas pernas se levantaram, as mãos dele avançaram, segurando cada tornozelo no ar. Depois, com os bíceps a balouçar, abriu- lhe as pernas, segurando-as bastante alto e afastadas, puxando os seus lábios genitais para cima, abrindo-os para ele.
Ela gemeu e puxou as cordas que tinha nos pulsos quando viu o corpo nu entre as suas pernas. Ele era monstruoso, feio.
- Meu Deus, oh meu Deus - rezou ela -, deixa-me morrer.
- Vá, querida, vá, vá - cantarolava ele -, aqui vai.
Puxou para baixo a perna esquerda dela, prendendo-a por baixo dele e deixou-se cair para a frente, pegando no pénis rígido, guiando-o para os lábios vaginais que estavam abertos.
Ela tremia de medo, como uma rena numa armadilha. Fechou os olhos com força, pedindo. pedindo um milagre de salvamento, um salvador. qualquer coisa que parasse isto. mas não, não havia resposta nem salvamento, nada senão ela sozinha e indefesa.
Sentiu-o entre as pernas, tentando forçar e entrar na sua carne, mas, apesar de sentir a pressão cada vez mais forte, a entrada não estava a ser feita.
Ele praguejava num tom de voz baixo e selvagem.
- O maior tufo do mundo. e tão seco e fechado como uma. sua cadela, eu já trato de ti.
Ele tinha retirado a sua ponta, mas havia outra coisa a penetrá-la agora, que entrava e saía, para a frente e para trás, o dedo dele a tentar lubrificá-la, a lubrificá-la, a humedecê-la -- oh, raios, raios, raios .
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Bruscamente, o dedo retirou-se. Ela abriu os olhos, e ao abri-los deitou um último olhar aterrorizado para ele. e de repente, estava dentro dela, furando mais fundo, mais fundo, enchendo-a, queimando, magoando, quase rasgando os seus interiores, penetrando mais fundo, mais fundo.
Explodiu de horror e ultraje. Esforçou, abanou e torceu o tronco, tentando vomitá-lo para fora dela, atirá-lo para fora, gritando e soluçando, com a garganta seca, tentando escapar. Os seus olhos estavam cegos com lágrimas, à medida que tentava descolar-se dele.
Mas ele ignorava-a, não perturbado pela resistência. Largou-lhe as pernas que estavam cansadas e entorpecidas, completamente metido entre elas e por cima dela, bombardeando-a como um louco, entrando e saindo, penetrando profundamente, entrando e saindo. Virar-se para se soltar dele era impossível, as suas nádegas estavam pregadas ao colchão. Ela levantou as pernas para lhe bater com os calcanhares nas costelas e nas costas, mas meia-inconsciente notou que o estava a excitar ainda mais. Ele montava-a cada vez com mais força, sem alterar o ritmo, sem caridade nem delicadeza, apenas com a sua arma de prazer sádico e triunfante a esmigalhar-lhe os interiores como um perfurador, bem fundo dentro dela como um punho a bater no cervix. A resistência diminuía, e as suas pernas, doridas, e pés não o conseguiam desequilibrar, não adregando interrompê-lo, apenas o incitando ainda mais a um castigo sem dó nem piedade.
Parecia um pistão implantado na sua carne, um pistão a subir e a descer a cem milhas à hora, um pistão desgovernado, abrindo-lhe a carne, cortando-a em duas.
Ohhh, Deus não havia nada a fazer. As suas pernas já não conseguiam lutar. Estava muda de humilhação e ódio. Ela, a ela, a acontecer-lhe a ela, entre todas as mulheres - ela, uma vítima, depois dos anos intermináveis de luta para conquistar a sua liberdade e segurança, para ficar sempre aquém da servidão -, ser agora esmigalhada e destruída por um animal irracional, louco e sem coração. - ohhh, Deus, por favor, meu Deus, deixa-me morrer, deixa-me morrer para sempre.
E de repente o seu corpo escaldante foi penetrado ao máximo, um tumor maligno estava dentro dela, a rasgá-la mais uma vez, as suas duas metades a separarem-se como se estivessem a ser puxadas na cremalheira - ela estava a gritar, mas não podia ser ouvida - e depois sentiu-o rígido sobre ela, ouviu-o suspirar bem do fundo, um suspiro que se transformou numa exalação profunda, com o seu bafo de álcool na cara e com a interminável poluição dele a sujar-lhe todas as fendas do ser.
E, finalmente, ele tinha acabado. Deixou cair todo o seu peso ósseo sobre ela, respirando fundo, expirando, afogueado.
Passado meio minuto, um minuto, ele tirou o peso de cima dela. Tinha terminado. Uma violação muito frutuosa.
- Então isto é que é a Sharon Fields? - ouviu-o ela dizer.
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Ficou ali deitada como se estivesse morta, quase que não se sentia um ser humano, respirando como um animal torturado com o que restava da sua resistência depois do esforço e da derrota inevitável. O seu corpo subiu e desceu com o colchão quando ele se levantou da cama. Ouviu-o en caminhar-se para a casa de banho, sentiu através das pálpebras a luz que de lá vinha, ouviu o som da tampa da retrete, o autoclismo e a água a correr.
Quando abriu os olhos, ele estava de pé ao lado da mesa-de- cabeceira, a vestir as calças. Depois, ao apertar o cinto de cabedal, aproximou-se da cama. Olhou para ela de relance.
- Serves, querida - disse ele, bem disposto -, mas para a próxima vez serás melhor. Quando aprenderes a cooperar, verás que só tens a ganhar com isso. Deste-me que fazer. Obrigaste-me a trabalhar, forçaste- me a vir mais cedo do que é costume. Mas prometo-te, para a próxima vez será o melhor possível.
Ela estava ali deitada, a olhar para o tecto, sufocada pela degradação, sentindo que coisas porcas lhe estavam a entrar e a sair do corpo, sentia-se suja e mais uma vez enojada e com vontade de se suicidar.
- Tens de admitir - dizia ele - que não te magoei, não fiz mal nenhum, nada se alterou. Então, porquê tanta fita? Já acabou, só houve um pouco de gozo, porque não te pões então à vontade de agora em diante?
Ela mordeu a mordaça com toda a força e os seus olhos encheram-se de lágrimas de fúria.
Ele estava a olhar para ela.
- Queres que te aperte o vestido antes de adormeceres?
Os olhos dela olharam para ele sem o ver, sem reagir, sem se importar. Como se já nada tivesse importância.
O Demónio encolheu um ombro. Juntou as duas metades da saia dela sem a apertar.
- É para evitar que te constipes aí nesse sítio. - Aproximou as suas mãos da parte de trás da cabeça dela, e começou a desapertar a mordaça. Suponho que tens o direito de respirar um pouco melhor. - Ele tinha desapertado o lenço, e tirou-lho da boca, metendo-o no bolso. - Pronto, querida. Assim estás melhor, não estás?
A boca e a língua dela estavam demasiado secas para poder falar. Passou a língua pelo céu da boca e pelos lados, tentando estimular a saliva e acabando por o conseguir.
Ele estava quase a chegar à porta do quarto, quando ela conseguiu falar pela primeira vez.
- Seu nojento filho da mãe - gritou ela. - Seu estupor, nojento filho da mãe! Hei-de apanhar-te. hei-de castrar-te, matar-te, nem que leve toda a minha vida. hei-de apanhar-te!
Ele abriu a porta, olhou por cima do ombro, e fez-lhe um grande sorriso.
- Mas já me apanhaste, querida. Já me apanhaste todo, tudo o que poderás conseguir de mim.
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Com um grito, ela quebrou, desatou a chorar, soluçando incontroladamente, enquanto ele fechava a porta.
Dez minutos mais tarde, depois de ter ido à cozinha preparar uma sanduíche de morcela e queijo e servir-se de um copo de cerveja, Shively estava comodamente sentado no sofá da sala, saboreando a sua ceia depois do tão desejado cigarro. Mastigou a sua sande e sorveu a espuma da cerveja, tentando não ligar importância aos lamentos que se ouviam vindos do quarto de dormir principal, mesmo ao lado.
Os sons do choro e dos soluços dela eram contínuos e surpreendentemente audíveis. Ele pensava que o quarto era suficientemente isolado do resto da cabana, de modo a ser à prova de som. Mas ele ouviu-a chorar todo o caminho do corredor à cozinha, e agora podia ouvi-la na sala, e supôs que não tivesse fechado bem a porta.
Ainda pensou voltar para fechar a porta com mais firmeza, de modo a isolar a comoção dela para que os outros não acordassem. Por uns instantes, pensou em não lhes dizer o que tinha feito. Mas depois decidiu que se lixasse, eles iriam saber da boca dela ou descobririam quando ele o repetisse nessa noite, e de qualquer maneira não lhes iria fazer mal saber que bem podiam não contar com a história da colaboração e que se decidissem a gozar as duas semanas de férias da mesma maneira que ele.
Acabou de mastigar a sande e de beber a cerveja e descansou, não se preocupando em pensar no seu acto, excepto no corpo dela quase nu e em quantas pessoas no Mundo desejariam ter a sua coragem e estar no seu lugar. Pensou nisso e em como os seus antigos companheiros da Companhia Charlie da Décima Primeira Brigada no Vietname o invejariam se soubessem do facto, que não sabiam e nunca viriam a saber, raio! Nessa altura, todos se gabavam, especialmente os oficiais milicianos, de todos os cus jovens que arranjavam quando entravam nas aldeias, mas, raios os partam, nunca nenhum deles tinha tido um bocado tão saboroso como Sharon Fields.
Como os soluços de Sharon não o distraíam, Shively ia pensando nisso tudo com prazer, enquanto acabava calmamente o seu petisco, para ver se algum dos outros tinha acordado.
Yost, parecendo um balão amachucado, em pijama às riscas, foi o primeiro a aparecer, esfregando os olhos. O seu olhar passou de Shively para o corredor e o local de onde vinha o choro contínuo. Aproximou-se de Shively, surpreendido, e sentou-se no sofá ao lado dele.
- Que vem a ser essa comoção? - perguntou Yost.
Shively tinha a boca cheia, e por isso não respondeu imediatamente. Mastigou e sorriu e virou os olhos para o tecto enigmaticamente. Ia-se divertir imenso a fazer a revelação.
- Aconteceu alguma coisa de mal? - insistiu Yost.
Shively engoliu ruidosamente, mas, antes que pudesse responder, distraiu-se
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com o aparecimento da figura ridícula do velho Brunner que entrava na sala. O contabilista tinha tanta falta de cabelo que parecia uma enguia, branco como cal, vestido apenas com uns calções azuis, muito largos, de pugilista, que fazia com que suas pernas, com varizes, e suas rótulas saídas, parecessem muito compridas. Ajustava os óculos e olhava vagamente para os companheiros com ar preocupado.
- Pareceu-me ouvir um ruído, fiquei preocupado e levantei-me - disse ele, aproximando-se. Aguçou o ouvido e encontrou o olhar divertido de Shively. - É. é a Miss Fields, não é?
Shively piscou o olho.
- Nem mais!
Brunner atravessou a sala rapidamente, e sentou-se à frente dos outros dois.
-Que se passa?
Shively inclinou a cabeça para o corredor, à escuta. O soluçar tinha abrandado bastante, e começava a esmorecer e a intervalar-se. Abanou a cabeça com satisfação.
- Assim é melhor. Eu sabia que ela se acalmaria.
Yost segurou o ombro do Texano e abanou-o impacientemente.
-Deixe-se de mistérios, Shiv. Que aconteceu?
Por uns instantes, Shively olhou para as caras curiosas deles, depois, propositadamente, pôs à boca o último bocado da sande. Inclinou-se para trás, afagando o peito nu com ar satisfeito.
- Está bem, amigos e membros do Clube de Fãs, assentem isto nas primeiras notas sobre o nosso empreendimento. Estão prontos?
Yost e Brunner inclinaram-se para a frente, à espera.
- Eu fodi com ela - disse Shively. - Escrevam isto nos vossos apon tamentos. Kyle Shively montou Sharon Fields. Há os que actuam e os que falam. Cá o velho Shiv é dos que actuam. Que tal?
Uniu as mãos atrás da cabeça e sorriu amplamente à reacção dos outros dois.
- Você, o quê? - um grito inesperado ouviu-se do outro lado da sala. Foi dado por Adam Malone, de camisa solta por fora das calças, enquanto atravessava, descalço, a sala, com a cara preocupada. - O facto de Leo se ter levantado acordou-me, portanto não tenho a certeza se ouvi bem, Shiv. Parou perto da mesa. - Será que ouvi bem?
Shively riu.
- Estava só a dizer aos rapazes. que a rapariga dos seus sonhos já não é a rapariga dos seus sonhos. É real, pode crer. Entrei ali há bocado e fodi-a bem.
- Não - gritou Malone. Via-se que estava realmente chocado. - Ela não o deixaria! Raios o partam! Shiv, acho melhor que diga a verdade. Shively endireitou-se, perdendo o ar divertido.
- Não conseguia dormir. Continuei a pensar. que viemos aqui fazer? E
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respondi a mim mesmo. eu sei o que vim aqui fazer. Aqueles palhaços com quem me associei são uns cobardolas. Se eu não abro caminho, vamos perder
todo o tempo e a oportunidade única de a violarmos e ficarmos satisfeitos. Portanto, apenas me levantei, entrei ali dentro e montei-a bem.
- Não - gritou Malone, de feições contorcidas e punhos cerrados.
- Pode acreditar, pá. Se não acreditar, vá lá e pergunte ao seu querido símbolo do sexo. Pode crer que ela dará o seu testemunho.
- Seu filho da mãe dum raio - rugiu Malone.
Perdendo o controlo, passou de um salto a mesa em direcção a Shively. Instintivamente, o Texano pôs-se de pé antes de Malone chegar ao pé de si. Este atirou-se a Shively, tentando agarrá-lo pelo pescoço, mas o Texano foi mais rápido afastando-se um passo para o lado, atirou o seu antebraço direito
às mãos estendidas de Malone. Este desequilibrou-se, tombou, e Shively virou-se dando meio empurrão, meio soco no queixo de Malone. Este tentou agarrar-se ao Texano, para se equilibrar, falhou a tentativa, e caiu sentado, meio atordoado. Começou a levantar-se, pôs-se de joelhos tentando levantar-se e atirar-se de novo a Shively, quando Yost se meteu entre os dois, obrigando Malone a ficar no chão, pondo-lhe um pé por cima e segurando Shively.
- Já chega, rapazes, já chega - ordenou Yost.
Shively olhou com ódio para baixo, para Malone.
- Esse cretino é que começou, eu não fiz nada.
- Você é que fez tudo - gritou Malone do chão, ameaçando Shively com o punho. - Estragou tudo - Parecia que falava sem coerência devido à raiva que sentia. - Você. quebrou o acordo. Nós tínhamos um acordo, um acordo solene, como uma promessa de sangue, e você quebtou-a nas nossas costas. Violou-a. Fez de nós uns criminosos.
- Ah, cale-se - disse Shively, com desprezo. E empurrou as mãos de Yost de cima de si. - Se não fizer com que ele se cale, Howie, tenho meios para o fazer, e não são agradáveis.
- Sente-se, sente-se, Shiv - pediu Yost, afastando Shively de novo para a cadeira que Brunner, preocupado, tinha deixado vaga. Yost acalmou o Texano até à cadeira. - Vamos acalmar, Shiv, podemos resolver isto a falar.
Yost virou-se para ver Brunner a tremer ajudando Malone á levantar-se do chão. Brunner não parava de balbuciar.
- Acabou-se, Adam, acabou-se. O lutar não nos vai ajudar. Yost concordou vigorosamente.
- Ele tem razão, Adam. Obedeça ao tio Leo desta vez, ele tem razão. O que está feito está feito e não vale a pena desforrar-se no Shiv, ele actuou por impulso. Temos de aceitar o facto de que cada um de nós tem feitio diferente. E agora, vai-se portar bem?
Malone não disse nada. Tinha magoado a perna na queda, e, coxeando, deixou que Brunner o guiasse para o sofá no outro lado da sala e o ajudasse a sentar-se.
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Sentou-se olhando fixamente para a carpeta, os dedos das mãos unidos e apertados, sem parar de abanar a cabeça. Por fim, olhou para Shively.
- Está bem, suponho que a violência não resolverá nada.
- Assim é que é - disse Yost, encorajando-o.
- Mas ainda estou chateado como um raio - acrescentou Malone, zangado. - Estou desiludido ao máximo. Kyle, você cometeu o crime mais hediondo. Violou-a quando ela estava indefesa. Quebrou a nossa promessa solene, a que fizemos a ela e a cada um de nós. Estragou tudo.
- Oh, merda - respondeu Shively. - Howie, passe-me a cerveja. Recebeu a cerveja que Yost lhe passara, e olhou para Malone com desprezo.
- Olhe miúdo, não me chateie digo-lhe isto para seu próprio bem. Não me venha com histórias, não fale como se fosse você o único a dar ordens. Todos temos os mesmos direitos. Portanto, não me acuse, pá. Eu farei o que me apetecer e você faz o que quiser. Já aprendi que é a única maneira de as pessoas se entenderem.
- Mas não a violação à força - retorquiu Malone. - Isso não são maneiras para ninguém.
- Pode ter a certeza que são - disse Shively. - Já está feito e acabou-se, que grande façanha, e não há palavreado nem acusações da sua parte que consigam mudar isso ou fazer andar para trás. De agora em diante tem de ser
realista e enfrentar os factos tal como são. Apeteceu-me fazê-lo e fi- lo, percebe? Dei-lhe bem. Lá no seu livro de contos, ela pode ser a intocável Sharon Fields. Mas, de agora em diante, na nossa cama, ela é material em segunda mão. De agora em diante, acabou-se a conversa do podermos ou não podermos. Ela já foi estreada. Ela é um membro honorário do Clube de Fãs, bem real de agora em diante, não uma fotografia na sua parede. É vivinha, pá, e está preparada para a acção. A partir desta noite vai ser uma festa, gozo e prazer. Já não era sem tempo. E dentro em pouco vocês irão beijar-me os pés, e agradecer-me.
Malone estava furioso.
- Agradecer-lhe? Por ter praticado uma porcaria de um crime contra uma pessoa indefesa? Por ter quebrado a sua palavra de honra? Por nos ter metido a todos num sarilho? Oh, merda, estou mesmo enojado.
Apalpou distraidamente o bolso da camisa e tirou um sigarro de erva amolgado e endireitou-o enquanto Brunner tentava, nervosamente, arranjar-lhe lume.
Quando, por fim, se encostou, dando algumas fumaças e sentindo-se miseravelmente mal, Brunner olhou para Shively e fez um trejeito com a boca.
- Eu. eu não queria agravar a situação, Kyle, mas concordo plenamente com o Adam. Você ultrapassou-se. Não devia ter seguido os seus impulsos, devia pensar em nós, nos seus amigos. Involuntariamente, contra nossa vontade, tornámo-nos seus cúmplices.
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- Portanto, são cúmplices, e depois? - grunhiu Shively, lambendo a cerveja do lábio inferior. -Então aproveitem como eu fiz.
Yost tinha estado a observar Shively atentamente e com um certo respeito camuflado. Distraiu-se tentando apertar o cordão, solto, das calças do pijama.
- Bom, suponho que, por um lado, o Shiv tem razão. - Falou, dirigindo-se a Adam e a Brunner, tentando fazer o papel de conciliador, o moderador razoável. - O melhor é levarmos as coisas com mais calma, e aceitarmos os vícios e as virtudes de cada um. É assim que as pessoas se unem no Mundo. - Fez uma pausa. - Há uma coisa que admiro no Shively. Ele é realista e não se deixa prender por sentimentos de culpa desnecessários. Vocês ouviram o que ele disse, tal como eu. O que está feito está feito. Não se pode voltar atrás. Portanto, uma vez que está feito, tudo muda de figura. Podemos
encarar isto sob uma outra perspectiva.
- Não estou a entender bem, Howard - disse Brunner, preocupado.
-Quero dizer que a situação mudou, portanto será razoável que as nossas atitudes quanto ao caso devam mudar. - De pé, virou-se para Shively. Era evidente que a aparente neutralidade de Yost se tinha transformado numa visível admiração pelo homem de acção. - Shiv, você não nos está a enganar? Foi mesmo lá e fornicou com ela?
- Howie, porque é que lhe havia de mentir, quando tudo o que você tem a fazer é ir ao quarto ao lado e certificar-se?
- Fê-lo - disse Yost com a mesma entoação com que se poderia dizer Amen. E continuou. - Está bem, Shiv, o melhor será dizer-nos. que tal foi?
Malone piscou os olhos por detrás do fumo da marijuana. A sua voz tremeu ligeiramente.
- Não quero. eu não quero ouvir.
- Não estou a pedir a informação para si - ripostou Yost, com um tom ligeiramente irritado -, estou a pedi- la para mim. - E concentrou-se de novo no Texano. - Então, Shiv, conte lá. Que tal foi ela?
-Formidável, fantástica, uma maravilha! Fiquei mesmo desvairado.
- Não está a brincar?
- Não brinco. A rapariga é tudo o que diziam que era. bestial. - E riu surdamente. - Eu convidei-a a isso, mas não lhe dei tempo para responder. Ela cooperará melhor de agora em diante. Tem um corpo rijo como tudo, mas eu esgotei-a. Penso que lhe dei a entender que o facto de nos estar a dificultar as coisas não lhe iria servir de nada.
- Penso que tem razão - disse Yost, rapidamente. - Portanto, é de opinião que ela já não tenciona resistir mais?
- Depois do que eu lhe dei? Não. De futuro, será tão fácil como ter a avozinha de qualquer pessoa. Só lhe digo que ela já está convencida, está domada. Temos aqui, nesta casa, uma mascotezinha.
- Bem, já que assim tinha de acontecer, é bestial. - Os olhos de Yost brilharam: - E diz você que ela tem o aspecto que esperávamos?
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- Melhor. - Shively pousou o copo vazio, levantou-se. - Howie, meu velho - e pôs uma das mãos fraternalmente no ombro de Yost -, espere até ver aquela gatinha. É a coisa mais linda que já viu, é de primeira classe. Aliás, o tufo foi arranjado, foi rapado um pouco de cada lado, todo direitinho.
Brunner, o veterano da boite The Birthday Suite, de Frankie Ruffalo, que tinha estado absorvido na conversa, resolveu patentear um pouco dos seus conhecimentos.
- As bailarinas e coristas costumam rapar os lados da.... da zona púbica, porque ficam mais apresentáveis quando usam meias-calças ou biquinis. Ah. e eu penso que Miss Fields apresentou vários números de dança, bastante exposta, no seu último filme.
- Sim - disse Shively, pensando que Brunner estava a tornar-se um aliado em potência. - Sim, acertou, Leo. - E deu mais uma vez uma palmada fraternal no ombro de Yost. - E o resto dela, umas mamas onde se pode pendurar um chapéu. Ela parece a oitava maravilha do Mundo. Mas porque acreditar só nas minhas palavras? Vão lá ver com os vossos próprios olhos.
- Talvez vá - disse Yost, entusiasmado. - Estava a pensar nisso.
- Boa montada - disse Shively, fazendo um trejeito. - Eu, eu cá, vou pegar no sono que bem mereço. Boa noite, caros sócios, até amanhã, não sei a que horas.
E saiu do quarto a bocejar.
Yost abanou a cabeça com deferência, olhando para o Texano que saía.
- Digam o que disserem - afirmou, não se dirigindo a ninguém em especial -, têm de admirar Shiv por ter tido a coragem de experimentar.
- Que grande façanha! qualquer pessoa pode cometer um acto de violação - murmurou Malone, com voz grossa.
- Também estava a pensar nisso - disse Yost.
- Talvez seja melhor irmos todos dormir agora - disse Brunner, fazendo caretas.
- Você e o Adam podem ir dormir - disse Yost. - A mim não me apetece. Sinto-me um pouco excitado.
- Você não vai lá dentro! - protestou Brunner.
Yost massajou o pijama no sítio da braguilha, com ar pensativo.
- Porque não? Não há razão para Shiv ficar com o monopólio. Brunner pôs-se de pé, num salto.
- É certo que não podemos desfazer o mal que está feito. Mas duas coisas mal feitas não melhoram nada, Howard. Devemos amortecer o crime. Tentou segurar o braço de Yost. - Reconsidere. Amanhã estaremos mais lúcidos e poderemos discutir o assunto.
Yost desviou-se da mão dele.
-Tal como Shiv disse, já falámos de mais.
- Por favor, reconsidere Howard.
- Já o fiz. Concedi, agora mesmo, a mim próprio, um voto de confiança. Vou dar uma vista de olhos à nossa convidada de honra.
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Malone tentou levantar-se do sofá, mas não conseguiu.
- Howie, não.
Yost despachou-se.
-Desejo a ambos uma boa convèrsa, ou então vejam se conseguem dormir. Não se preocupem comigo. Vivemos num país livre, e cada homem tem direito a um voto. E eu sei onde vou votar.
Voltou-se e entrou no corredor.
Ela estava deitada de costas sobre a cama, demasiadamente cansada e gasta pelo ataque e pela histeria que a envolveram, para poder pensar fosse no
que fosse. Só queria esquecer e não conseguia.
Os seus olhos estavam fechados com muita força para se convencer de que este mundo não existia, que vivera um pesadelo, e que, em breve, acordaria salva em Bel Air.
Não tinha ouvido mais nenhum ruído desde que tinha parado de chorar, excepto o bater do coração.
Coração pára, por favor - rezava ela - e liberta-me disto. O primeiro ruído que ouviu foi o da porta do seu quarto a fechar-se e a maçaneta a ser trancada.
Pela segunda vez alguém entrava no quarto.
Não abriu logo os olhos. Não tinha curiosidade de ver qual deles é que tinha entrado. Era suficiente saber que não a tinham deixado em paz.
Um pouco antes, quando lhe tinha passado a histeria, ela interrogara-se sobre se o Demónio seria o único homem a violá-la nessa noite ou depois. E perguntou-se se ele iria esconder o seu acto criminoso dos outros. Ainda pensou que talvez o fizesse.
Agora e, por fim, para ver se o seu visitante era o Demónio que voltava, ou um dos outros, fez um esforço para abrir os olhos.
Era o carnudo, o gordo e grande, com pijama às riscas, amarrotado, que estava de pé ao lado da cama.
O Vendedor.
Os seus olhos injectados não estavam fixos nela, mas nos seús seios nus que tinham ficado destapados. Os seus olhos estavam fascinados, a boca aberta e a respiração era entrecortada.
Oh, Deus, ele sabe - lamentou-se ela, interiormente - eles todos sabem.
Ela já tinha sido violada. Portanto, já não era intocável. O portão tinha sido aberto, o público havia sido convidado a entrar. Começava a temporada. Ela era o joguete.
Oh, Deus, não! A não ser que este, o Vendedor, e os outros fossem di ferentes, mais atenciosos em relação aos seus sentimentos, e não se portassem como voyeurs . - Começou a rezar e depois parou.
218
A esperança inocente de que iria haver uma certa decência e respeito cívico desvaneceu-se antes que se pudesse formar completamente.
O Vendedor, ainda ignorando a sua cara, ainda fascinado pelos seus peitos, mexia no cordão das calças do pijama. Rapidamente, sem dizer palavra, tirou-as. Não perdia tempo.
- Não, por favor, não - protestou ela com voz cansada. Ele aproximou-se da cama, desabotoando o casaco do pijama com os dedos trémulos, atirando-o para o lado.
- Não o faça - suplicou ela. - Só porque aquele outro animal. Ele pôs-se por cima dela.
- Não te vou fazer nada que seja novidade para ti.
-Não o faça, não.... dói-me aí em baixo. Estou cheia de dores. Estava seca....
-Agora já não estás.
- Estou cansada até aos ossos, estou doente. Ponha-se no meu lugar. Por favor, tenha um pouco de compaixão.
- Terei cuidado, verás.
O que ela via, o que não podia deixar de ver, era a criatura nua, nojenta e repelente por cima dela.
Haveria alguma maneira de o fazer pensar um pouco como uma pessoa normal?
Ela sabia que qualquer pedido não teria nenhum efeito, era demasiado tarde.
A cama balançou e afundou-se do seu lado esquerdo, forçando-a para o lado dele, enquanto ele ajoelhava.
- Qual é a sua preferência, minha senhora? - dizia ele. - Estou a trabalhar nos serviços de assistência. Apenas desejo agradar.
- Vá-se embora, raios o partam, ou mato-o. Atreva-se a tocar-me e mato-o. Eu....
Ele deixou-se cair ao lado dela, a pele dele encostada à dela. Tentou
afastar-se com as forças que lhe restavam, mas uma das mãos dele estava a
segurar-lhe um peito e o cabelo dele estava por cima da cara dela, quando lhe começou a beijar e a chupar os mamilos, primeiro um e depois o outro.
Ela tentou afastar-se, mas uma das mãos por cima dela obrigou-a a ficar deitada.
Enquanto ele continuava a cometer aquelas indignidades aos seus
mamilos macios, que não reagiam, ela sentiu, pela segunda vez nessa noite, uma coisa que endurecia rapidamente encostada à sua coxa.
- Quem quer que seja, por favor, páre - implorou ela. - Já não aguento
mais isto. Quero morrer. Deixe-me em paz, se é que é alguma espécie de ser.... de ser humano.
Os lábios dele deixaram os mamilos.
- Por isso é que estou aqui, minha senhora, porque sou um ser humano.
Erguendo-se e soltando um grande grunhido, pôs-se em cima dela, enquanto ela tentava apertar as pernas com as forças que lhe restavam.
219
Ele estava a fazer qualquer coisa là em baixo. Ela sentiu metade da saia a
abrir-se e depois a outra metade, sentiu o ar frio na barriga e na parte de cima
das coxas. Ele parou por momentos, intrigado com a visão parcial da elevação vaginal, larga e distinta.
Um som gutural de antecipação e prazer soltou-se-lhe involuntariamente da garganta.
O que se passou a seguir fora estranhamente inesperado. Ele surpreendeu-a por ter sido tão rápido. Fora isto que ela não tinha previsto. Apesar da
sua gordura exterior, ele tinha muita força. As mãos dele forçaram as coxas
contraídas abrindo-lhe as pernas com um puxão que a fez soltar um grito de
dor. A vulva, rosada, estava aberta para ele, os lábios exteriores abertos para ele, e, antes que ela os pudesse proteger, o pénis duro trabalhava entre os lábios, afastando-os à medida que penetrava nela.
- Não! - gritou ela.
Mas mais uma vez foi violada, completamente invadida, apanhada indefesa.
Ela chamou a si todas as reservas de resistência que tinha, tudo o que lhe
sobrava do encontro com o Demónio. Os músculos doridos, os nervos em
franja e as contorções evasivas procuraram libertá-la dele. Tentou dar-lhe
joelhadas de lado, mas o punho dele bateu-lhe com força no joelho, fazendo-a
sentir dores atrozes pelo corpo todo, rebentando e lacerando por detrás da
testa através do crânio. A agonia era de mais, o peso de elefante era de mais e ela sentiu-se dormente.
Os olhos dele estavam fechados, a boca aberta a babar-se, enquanto ia
para a frente e para trás, para a frente e para trás, furando sem cessar,
alargando e fazendo arder-lhe as paredes da vagina.
Dizia qualquer coisa que ela não conseguiu entender logo, mas que, por fim, percebeu.
- Que bom, que bom, que bom.... - cantava ele, como se estivesse a bater um recorde.
Este canto fê-la ficar cega de ira. Praguejou contra ele. Disse-lhe todas as
asneiras de que se lembrou. Meio a chorar, tentou levantar a cabeça e batê-la
contra o queixo e o peito dele. As suas pragas e agressões eram como pedrinhas contra um dinossauro a atacar.
Esquecido dela, ele entrava nela e saía. O que a magoava mais não era o
esforço contínuo entre as suas pernas, mas o corpo enorme dele a esmurrá-la,
a quebrá-la, a golpeá-la, até que os seus peitos e vértebras e a cavidade pélvica
ficaram quase como se estivessem em sangue vivo, depois de serem feridas.
Os seus joelhos magoados fizeram um último esforço para transportar um
pouco da sua dor para ele.
Mas não havia nada a fazer. Era como se ali só estivesse a sua vagina.
Tudo o que contava para ele era o acto, e o êxtase que lhe estava a dar.
Ela sentiu-o parar, puxar os ombros para trás, e as ancas para a frente,
seguido de um longo suspiro.
220
- Ahhhhhhh. ahhhh. ahh.
Tinha-se vindo.
Afastou-se, abriu os olhos, abanou a cabeça para recobrar a consciência, e tirou o peso de cima dela rolando para o lado. Sentou-se, um enorme inchaço de satisfação e virilidade despidas.
Rolaram-lhe de novo pela face lágrimas amargas. O nojo horrível de tudo aquilo. Ela deu-lhe um pontapé com pouca força, com a perna esquerda, e, quando ele se desviou do pontapé, a perna dorida, tombou imóvel na cama.
Ele tinha saído da cama, limpando-se vagarosamente. Quando acabou, ficou de pé, com as mãos nas ancas vincadas, orgulhoso parecia uma banheira de sebo que se julgava um colosso, pensando que ela iria gostar do seu físico atlético.
- Não foi mau, pois não? - perguntou ele.
- Seu porco dum raio! - gritou ela. - Seu porco gordo, nojento! Es pera, espera só.
Ele riu.
- Vá lá, confessa. Nunca tiveste melhor dos teus amigos actores.
- Vai-se arrepender disto no resto da sua vida, seu degenerado nojento. Pegou nas calças do pijama.
- Está bem, não nos preocupemos com o resto da minha vida nem da tua. - Enfiou as calças do pijama e apertou-as. - Preocupemo-nos apenas com o amanhã e o depois de amanhã. Isso é que interessa, minha cara. Portanto, o melhor é ficares deitada, portares-te como uma boa menina e
gozares.
- Seu caralho! Ele saudou-a.
- Podes repetir isso. É a coisa melhor que tenho.
Pegou no casaco do pijama, e, cantarolando, saiu sorrateiramente do quarto.
Howard Yost encontrou os dois na mesma posição em que os tinha deixado. Ainda cantarolando, entrou na sala, e lá estava o velho Leo Brunner, numa figura ridícula em calções aos quadrados, e o pobre e devastado Adam Malone, pregado ao sofá, drogado e um pouco eufórico.
Brunner, com os óculos a tremer, dirigiu-se logo a Yost.
- Howard, você. fê-lo?
-É como lhe digo, não jogámos as cartas.
- Fez mesmo amor com ela?
- Se o fiz!. Leo, meu velho. E todos gostámos, isso posso eu dizer. Miss Sharon Fields confirma as notícias da Imprensa.
Malone havia emergido da neblina, e arrastava-se no sofá para junto deles.
- Howie, isso foi muito mau, foi muitíssimo mau, e você bem o sabe. A sua expressão tinha-se modificado e estava com um ar absolutamente miserável. - Tão errado. Primeiro Shiv, agora você. Vocês os dois violaram os regulamentos.
221
- Quando é que vai crescer? - perguntou Yost, impaciente. - Que
viemos cá fazer? Colher flores e gozar a Natureza? Que se lixe isso. A única
natureza que conheço agora é aquela que está ali no quarto. Talvez não tivesse feito nada noutras circunstâncias, mas já que Shiv quebrou o gelo,
pensei, para comigo, que diferença faz agora? E tenho a certeza de que
ela, agora, é da mesma opinião. Se levarem uma, que diferença faz levarem mais?
Yost ficou à espera de uma objecção de Brunner, mas não a obteve.
Brunner parecia completamente transformado.
- Howard, qual foi a reacção dela? Como se sente ela?
Yost encolheu os ombros.
- Suponho que já nada é novidade para ela, quero dizer, haver homens
que a levem para a cama. Como Shiv lá tinha estado, ela não ficou admirada
de me ver lá. Suponho que estava à espera, que já esperava.
-Acha que sim?
- Tenho a certeza. Não estou a dizer que ela esteja doida de contente, ela
não gosta de estar amarrada. Mas.... bem, resistiu um pouco.... o que era de esperar....
- Como?
- Oh, praguejou, esperneou um pouco, disse-me que a deixasse em paz.
Mas nestas circunstâncias é normal. Suponho que sabe que deve resistir, para
provar que não é promíscua. Portanto, não fiquei surpreendido. Não sei como
é que ela se comportou com o Shiv, mas não lutou assim muito contra mim.
Mas mesmo que tivesse muita vontade de lutar, pouca lhe deve sobrar agora.
Eu diria, até, quase nenhuma. Ela já fez o seu papel, e acho que agora está
disposta a aceitar tudo o que vier. O Shiv e eu facilitámos o caminho para vocês os dois. Não vão ter trabalho.
- Eu, não - disse Malone, sentido. - Não quero participar nessa violação.
- Nem eu, Adam - assegurou, rapidamente, Brunner, o seu aliado. Mas já que aconteceu, apenas tenho curiosidade.
- Violar é nojento - disse Malone.
Yost começou a ficar zangado.
-Deixe-se disso, Adam. Deixe lá de ser escuteiro. Você já se formou.
Você sab, e eu também sei, que metade das relações sexuais no mundo, hoje, esta noite, são, de uma ou de outra forma, uma violação. Os homens que,
de uma maneira ou de outra, forçam as mulheres, forçam-nas como se fosse
uma recompensa por estarem casados com elas, ou porque lhes arranjam
emprego, ou por lhes darem presentes, ou por as levarem a sair. Isso é uma violação igual ao crime.
- Sabe perfeitamente o que quero dizer - retorquiu Malone.
- E você também sabe o que penso - respondeu Yost.
No entanto, Brunner não se deixava convencer. Lambia os lábios gretados.
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- Howard. ah. se não levar a mal o eu. o eu perguntar. mas o que é que lhe fez?
- Quer dizer, se fiz alguma coisa fora do normal? Não, da primeira vez, não. Na primeira vez faço sempre à moda antiga. Fui-lhe logo para dentro.
- Quer dizer, como a maioria das pessoas na maior parte das vezes?
- Claro! Umas carícias para aquecer. Ela tem uns peitos lindos, os maiores mamilos que já vi, o suficiente para excitar. E assim que se entra, bem, como já disse, o resto é o costume, eu por cima, ela em baixo. Não há problema.
- Que tal é ela? - Quis saber Brunner. - Quero dizer.
- Eu sei o que você quer dizer - interrompeu-o Yost. - Se ela tem o físico correspondente a. uma deusa do sexo, não é isso? Sharon Fields em pêlo é absolutamente maravilhosa, não há dúvida. Conhece o ditado. todas são iguais no escuro, não é verdade? Sharon é especial, sexo puro. E quando vir pela primeira vez o que ela tem entre as pernas. - Ele juntou as mãos com força. - Só de deusa, Leo. Você nunca será o mesmo outra vez. E, usando as palavras de Shiv. não acredite na minha palavra. ela pertence-lhe.
Brunner protestou um pouco.
- Oh, não, não estava a pensar nisso. Só queria.
- Bem, o melhor é pensar nisso. Ela está ali, bem acordada, à espera de um de vocês. Não seja louco em perder uma oportunidade destas, isso seria anormal. Quer saber como ela é, Leo? O corpo mais famoso do mundo? Dê uns passos pelo corredor e vá ver.
Olhando de relance para Malone, o contabilista tentou rapidamente dar uma explicação a Yost.
- Não. não, pode crer que não estava a pensar nisso, Howard. Apenas pensei. bem, nunca vi ninguém famoso tão de perto e quase nua. Hesitou. - Pensei que o máximo que podia fazer era. bem, talvez espreitar e olhar para ela, mais nada. Talvez explicar-lhe que nada mais tem a recear, pelo menos em relação ao Adam e a mim. Tencionava comunicar que não pensamos magoá-la.
Yost bocejou.
- Faça o que quiser, eu vou-me deitar. Amanhã é outro dia e que grande dia vai ser. adeusinho.
Depois de Yost se ter ido deitar, Brunner ficou de pé um pouco embaraçado.
Passado um bocado, engoliu em seco, e olhou de soslaio para o triste e desorientado Malone.
Brunner pigarreou.
- Eu. eu só queria cumprimentá-la - disse-lhe.
Malone não olhou para cima.
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Com as mãos a tremer, Brunner ajeitou os calções e caminhou pelo corredor em bicos-de-pés.
Ela tinha o olhar fixo nas vigas do tecto.
O choque que sentia, e o desespero psíquico, tornavam impossível o pensamento racional. O seu ser era um navio a transbordar de veneno, não se
sentia nem animal, nem vegetal, nem mineral.
Levou muito tempo a notar que havia outra pessoa que compartilhava a sua cela. Semicerrou os olhos para ver melhor por cima do seu grande peito nu e para lá dos pés da cama. Ele estava a escassos centímetros da porta fechada, parecia um bicho albino disfarçado de homem, ali, de pé, de óculos e
calções, a olhar para ela como se nunca tivesse visto uma mulher. Fazendo um certo esforço, ela conseguiu ver quem era.
O Pão-de-Leite. O velho nojento em pessoa.
Ela olhou para ele com indiferença, e voltou a fixar os olhos no tecto. Mas sabia que ele se aproximava com as pernas raiadas de varizes.
Ele estava ali, tão perto que lhe podia tocar.
- Eu. eu só entrei, porque lhe queria dizer, Miss Fields. - gaguejou ele -. que nem todos somos iguais e alguns de nós nunca tencionámos magoá-la.
- Obrigada - disse ela, agressivamente.
- Nós. nós só a queríamos conhecer.
- Sim, conhecer-me. antes de me atacarem. Vocês são uns verdadeiros cavalheiros, lá isso são. Está bem, já me conheceram. Agora, saia daqui seu cretino.
Não obteve resposta. Estranhando-lhe o silêncio, ela olhou-o e o que viu disse-lhe tudo o que precisava saber. Se estava à espera de qualquer decência ou simpatia por parte desse cretino, bem podia esquecer-se disso.
Ele estava boquiaberto, a olhar para o corpo dela, os olhos a saltarem-lhe das órbitas, a lingua a huìnedecer- lhe os lábios, o seu corpinho todo a tremer. Sentindo-se desfalecer, ela notou o que estava a passar-se com ele. Para todos os efeitos, ela estava ali deitada, quase nua.
O seu último assaltante não se tinha dado ao trabalho de a tapar nem eni cima nem em baixo. Os seus peitos e órgãos genitais estavam expostos ao Pão-de-Leite. Era mortificante e insultuoso, e o seu ódio por esses homens enchia todos os poros do seu ser.
- Não me ouviu? - repetiu ela, desesperada. - Saia! Já viu o que tinha a ver à borla. Não é nada que não tenha visto antes, portanto, saia daqui!
Ele parecia um asmático a respirar.
- Eu. eu nunca vi ninguém tão belo. Nunca vi ninguém assim. Não sei. não sei.
A atenção dela desviou-se para os calções azuis dele. Parecia que havia um rato solto dentro deles. Conseguiu ver qualquer coisa dentro deles a espetar
para cima.
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E então sentiu-se outra vez doente. O filho da mãe do velho parecia que tinha desemperrado. Estava a respirar com dificuldade, sem fôlego.
- Desculpe-me. Não me posso conter. Tenho de lhe tocar. Assentou os joelhos na cama junto dos pés dela. Gatinhava para ela como se fosse um desgraçado perdido no deserto a morrer de sede.
Instintivamente, ela decidiu dar luta, este talvez tivesse um pouco de decência e não a violasse.
- Deixe-me só ver, tocar. - murmurou ele.
Furiosa, ela começou a dar-lhe pontapés, e acertou-lhe entre o ombro e o pescoço. Os óculos dele voaram e ele caiu para o lado contra a outra perna. Quando levou as mãos ao pescoço, ela pôs-lhe o pé na cara para o empurrar, mas o pé escorregou e ela prendeu-lhe a cabeça entre os tornozelos. Usando todas as forças que lhe restavam, apertou as pernas tentando sufocá-lo.
Os dedos dele seguraram-lhe os tornozelos para se libertar. Com a cara vermelha, ele afastou-os. Não tinha muita força e as pernas dela, devido aos anos de ensaio de dança, poderiam ter resistido ao ataque dele, mas as suas forças estavam esgotadas. Estava a enfraquecer, a perder, e, por fim, as suas pernas renderam-se. Ele tinha-as afastado, escapou-se, e esforçou-se por se pôr de joelhos à frente dela.
Os olhos dele, esbugalhados, dirigiam-se, uma vez mais, para o sulco rosado dos seus lábios vaginais.
E, de repente, ela viu a coisa mais ridícula deste mundo. Poderia ser cómico noutra altura e em qualquer outra circunstância. Só que agora assustava.
O rato tinha-se escapado dos calções azuis.
- Não tenho culpa, Miss Fields - choramingou ele. - Não consigo controlar-me.
Ela estava demasiado espantada para se mexer.
Ele tinha-lhe caído no meio das coxas, começando a vasculhá-la, procurando, e, por fim, encontrando o orifício, e, excitadíssimo, começou a empurrar até entrar nela.
Agora, vasculhava lá dentro, picando e picando, a chorar como um bebé. Voltando a si, ela tentou afastá-lo, certa de que conseguiria separar-se devido ao tamanho dele. Em vez disso, os braços dele abraçaram-na, como se se estivesse a afogar, e manteve-se colado ao corpo dela.
Começou a insultá-lo, esperando que ele se envergonhasse e se afastasse.
- Seu velho com uma amostra de pénis - gritou ela -, não és melhor do que os outros, és ainda pior, a contaminar-me com essa imitação de pénis.
Mas foi em vão.
Ela não conseguia fazer-se ouvir, porque era abafada pelos sons roucos que ele emitia, segurando-se a ela parecia um coelho, a pedir desculpa e a dizer coisas e mais coisas.
Por fim, enojada pela humilhação de ser forçada a submeter-se a este degenerado que merecia compaixão, desistiu de o insultar e de o empurrar.
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De qualquer modo não tinha importância. Via que dentro de segundos estaria livre dele.
Os seus olhos vidrados pareciam congelados. A sua boca emitia sons e
parecia um harmónio entupido. Os tendões saídos de um e outro lados do
pescoço estavam tensos. Ele guinchou e andou para cima e para baixo, dentro
dela, como se fosse um piloto num banco de ejecção.
Tentando encontrar os óculos às apalpadelas, encontrou-os, e retirou-se gatinhando.
Danada, ela deu-lhe um pontapé e acertou-lhe nas costelas. Ele desequilibrou-se aos pés da cama, e caiu no chão, amortecendo a queda com a
mão para salvar os seus preciosos óculos.
Passado um momento, levantou-se vagarosamente, tentando pôr os
óculos, de modo que ficasse com ar um pouco mais digno.
Ela olhou-o com desprezo e ódio. O fio de esparguete caído ainda estava fora dos calções. Atrapalhado, ele meteu-o rapidamente para dentro.
Bem podia ver-se que ele estava alagado em suor, mas, se estava envergonhado, o seu sorriso doentio de triunfo não o demonstrava.
Por tentativas, ele aproximou-se de novo dela.
- Se me dá licença - disse ele, e, com deferência, fechou-lhe a blusa sobre o peito. Depois, com muito jeito, fechou-lhe a saia, tapando-a. - Posso....
posso trazer-lhe alguma coisa?
- Podes levar o teu cu daqui para fora - respondeu-lhe ela, furiosamente.
-Juro-lhe por tudo, Miss Fields, que não era o que queria fazer. Simplesmente não consegui controlar o meu desejo. Nunca me tinha acontecido.
Por um lado.... sei que não é da mesma opinião.... mas, por outro, isto é um tributo a si. Espero que consiga encontrar no seu coração maneira para aceitar os meus agradecimentos.
- Eu dir-lhe-ei que terei muito gosto quando o Juiz o condenar a prisão perpétua ou o mandar para a câmara de gás, seu ratinho de meia- tigela.
Ele deu um passo para trás, piscando os olhos atrás dos óculos, virou-se de
repente e saiu apressadamente do quarto.
Adam Malone já tinha saído da sua letargia o suficiente para se lembrar para onde Brunner tinha ido e há quanto tempo. Já tinha sido há mais de dez minutos, o que era estranho.
Tinha aberto uma Coca-Cola, e estava a bebê-la para refrescar a garganta, quando reparou que Brunner regressara à sala, muito sorrateiramente.
Olharam um para o outro sem dizer palavra.
Brunner parecia incomodado e evasivo, parecia que queria dizer qualquer coisa, mas que não conseguia falar.
Olhou para Malone que bebia a Coca-Cola, como se fosse uma coisa muito importante, e viu-o poisar a bebida.
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- Importa-se que beba um gole - perguntou Brunner
- Sirva-se.
Brunner pegou na lata, bebeu um gole, e pôs a Coca-Cola de novo em cima da mesa.
Malone continuou a olhar para o contabilista. Ele recusava-se a fazer a pergunta que era óbvia, estava à espera que fosse Brunner a falar.
Brunner suspirou. Estava ali, de pé, mais relaxado, perdido nos seus pensamentos. Para Malone, o velho parecia mudado. Uma leve mudança que qualquer pessoa que o conhecesse notaria. Efectivamente, Brunner tinha sofrido uma transformação mística qualquer, parecia que levitava.
Pigarreou.
- Suponho que quer saber o que estive a fazer ali dentro, Adam.
- Não tenho o direito de exigir nada. Isso é consigo.
Brunner abanou a cabeça.
- Sim. Bem. - hesitou um pouco. Depois, num rompante - Eu fi-lo, Adam. Com toda a sinceridade, peço desculpa. -O resto da confissão saiu. - Não o queria fazer, Adam, sinceramente que não, sabia que os outros tinham feito mal. Mas entrei ali, e. ao vê-la em pessoa. - Perdeu-se um pouco em sonhos antes de continuar. - Eu. eu nunca tinha visto ninguém como ela, sem. sem roupas em cima.
- Sem roupa?
- Quero dizer, ela tinha roupa, mas podia-se ver tudo, e eu nunca tinha visto assim o corpo de uma mulher famosa. Ela era tão. - Não conseguiu defini-la. - Ela atraiu-me como um iman. Só queria vê-la, só isso, o que não era nada em comparação com os outros. Mas houve qualquer coisa que me forçou. não consegui controlar-me. parecia que não era eu, Leo Brunner, era como se fosse outra pessoa que o tivesse feito.
Adam Malone estava muito quieto. A sua expressão estava parada e já não era de crítico.
- Quer você dizer que a violou, Leo? Brunner olhou para Malone, espantado.
- Violar. não, não foi violação. Quero dizer, não me pareceu um crime violento.
-Então o que foi? Leo, você traiu-me.
Brunner falou hesitantemente, como se estivesse a falar sozinho.
- Foi como se. como se em toda a minha vida tivesse sido privado das coisas maravilhosas de que gozavam os outros homens. e, pela primeira vez, tivesse a oportunidade para saber quais os prazeres de que as pessoas mais privilegiadas gozavam a toda a hora e sempre que quisessem. Como posso explicar-lhe, Adam, para que perceba.
-Não é preciso, Leo.
- Penso que era uma chance de contribuir num investimento que me desse uma retribuição que me serviria para o resto da vida - os anos da velhice -, e a retribuição, como o Kyle descreveu, seria a lembrança de uma
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coisa muito especial que, a não ser assim, me seria sempre negada. Abanou a cabeça. - Talvez esteja a intelectualizar e a racionalizar de mais. Talvez tenha sido um dos raros momentos da minha vida em que reagi por instinto, sucumbindo a uma emoção que não consegui controlar. Perdi o civismo, tornei-me um animal como os outros. Tudo o que posso dizer é que. não consegui dominar-me. O que fiz foi incontrolável.
Fez uma pausa, procurando uma explicação melhor.
- Só posso encontrar uma única desculpa para o meu comportamento. Não estava a forçar-me sobre alguém que estivesse com um medo de morte da minha acção. Miss Fields é uma rapariga com experiência. Não só no que se refere a ter sido violada pelo Kyle e pelo Howard. Também me refiro ao que sabemos acerca do passado dela, ao que você contou. A fama e a fortuna
foram conseguidas com a promessa de sexo. Ela já conheceu, com certeza, muitos homens na intimidade. Portanto, pensei. bem, como senti depois, só tinha sido mais um, uma coisa de rotina. mas para mim era novidade, uma espécie de realização.
Ficou à espera da resposta de Malone, mas como este continuou calado, Brunner voltou a falar.
- Espero que consiga compreender, Adam, que não fique desapontado comigo. Espero que isto não quebre a nossa amizade. Se acha que me comportei tão mal como os outros, que aos seus olhos sou o mesmo que os outros, lamento. Não era isso que eu desejava. Se assim acha, sentir-me-ei tão culpado como os outros. No entanto, se conseguir compreender os meus motivos tão bem como. como a importância que este momento tem na minha vida, quando não me consegui controlar. desculpar-me-á.
Escutando o patético velhote que estava de pé à sua frente, Malone não sentiu rancor, mas, sim, uma certa compaixão pelo seu pobre amigo.
- Não há nada para desculpar, Lheo. Só tenho de aceitar o que diz e tentar compreender. Estou a ver-me a fazer o que vocês todos fizeram, mas somos todos diferentes, o fruto de úteros diferentes, genes diferentes, privações diferentes. Suponho que a única coisa a acrescentar é que cada um de nós terá de viver com a sua consciência até ao fim. portanto, cada um terá o que merece.
Brunner concordou logo.
- Sinto-me feliz por você ver as coisas dessa maneira. Quanto. quanto a mim, talvez veja as coisas de maneira diferente amanhã e me sinta culpado. Mas agora, neste momento. bem, quero ser honesto consigo, Adam. não lamento nada e não sinto o mínimo de culpa. - Desviou o olhar. - Ela não sofreu nada, nem psíquica, nem mentalmente. Ficará boa. Verá. Bem, está pronto para ir dormir, Adam?
- Ainda não.
- Boa noite, Adam.
- Boa noite.
Ele viu o velho dirigir-se para a casa de jantar, em direcção à cozinha,
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para a porta que dava para o quarto de dormir deles, e, a não ser que fosse da sua vista, parecia-lhe que Brunner caminhava com mais ligeireza.
Resolvido a combater o seu desespero, cada vez maior, Malone procurou outro cigarro no bolso da camisa.
Depois de o acender, inspirando a erva até ao fundo dos pulmões, reclinou-se no sofá para ordenar os seus pensamentos.
Ao ouvir Brunner. sim, o rancor tinha-lhe desaparecido, e agora tentava descobrir o que é que o substituíra. A depressão, é claro, mas havia mais qualquer coisa. Sentiu-se invadido por um sentimento de impotência total. Sentiu-se como se estivesse como Sartre, um ser verdadeiramente só. Tudo lhe parecia intensamente surrealista. Tudo o que lhe estava próximo era totalmente desprovido de valores tradicionais, de ordem, de limites. As emoções tinham sido desenhadas por Escher.
No entanto, discerniu Malone, havia, com certeza, qualquer coisa em que podia acreditar, se não, porque estaria tão ciente da revolta que ainda o inundava? Era verdade que não sentiu rancor aquando da sua conversa com Brunner, mas não podia ignorar o facto de sentir uma certa agressividade em relação a Shively e a Yost.
Nessa noite, sentia-se revoltado contra eles, e a razão era clara. Estava revoltado contra eles por terem manchado o seu sonho. Talvez até também se sentisse revoltado contra o mais velho por ter quebrado o acordo, por ignorar o seu posto de comando, por ter abandonado os princípios básicos da decência. Brunner havia sucumbido à fraqueza e tinha passado para o lado dos violadores brutos.
Enquanto fumava a erva, o sentimento de abandono que sentia aumentou. Também sentiu aumentar a sua amargura, só que tinha mudado de direcção, tinha virado a esquina, e dirigia-se contra ele e contra a sua própria fraqueza. Sim, essa a parte mais deprimente, a sua própria fraqueza que ele tinha evitado, a fantasia que ele, sozinho, tinha criado desde a concepção à realização.
De todos, ele, Adam Malone, era o ser humano que mais merecia Sharon. Ele tinha-a inventado como o objecto sexual atingível. Tinha criado a possibilidade de virem a amá-la. Tinha planeado a realidade. Ele, e só ele, tinha feito com que tivesse acontecido o que aconteceu. De todos, ele, e só ele, a respeitava e pensava nela como pessoa.
No entanto, ironia suprema, fora ele, só ele, quem tinha sido privado dela, ou se tinha privado dela. Os outros três, raios os partam! nada mereciam dela, pelo menos não antes dele. Não obstante, eles é que tinham gozado o prazer de estar na intimidade com ela. E ele, devido à sua fatal fraqueza, tinha sido posto de parte.
Não era justo.
Raios, nem sequer era justo para ela. Não havia direito que ela sofresse com aqueles animais estúpidos, sem sentimentos, e nem saber que sob esse
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mesmo tecto havia um que a amava verdadeiramente por tudo o que ela era, que a amava com carinho, com um amor e um carinho de que iria, com certeza, gostar.
Analisando friamente, seria um crime, um verdadeiro crime, não a informar que havia alguém que poderia sossegar os seus receios e dar-lhe o carinho que ela merecia e queria.
Além disso, tudo fazia parte do esquema da natureza e era normal. A estrofe de Alfred Lord Tennyson veio-lhe à mente:
A Natureza violenta, um mal que nenhum pregador pode curar; O Insecto destruído pela andorinha, o pardal atacado pelo falcão.
Imediatamente, tudo o que estava próximo começou a fazer sentido, a parecer inevitável.
Adam Malone deu uma última passa na sua erva, apagou o cigarro, guardou o que sobrava, e pôs-se de pé.
A sua missão nunca fora tão evidente.
Sharon Fields devia ser salva de todo o desespero de que estivesse a sofrer. O ele acreditar na decência, na bondade e no amor verdadeiro devia manter-se. Ela merecia sentir-se segura, o que só aconteceria se conhecesse naquela casa um homem civilizado que a respeitasse e a amasse.
Tudo estava nas mãos dele.
Dirigiu-se para o quarto, cambaleando.
Sharon Fields estava deitada presa à cama, de olhos fixos na porta do quarto, à espera que se abrisse.
Ela sabia que se abriria. A única surpresa é que estava a demorar. Tinha-se resignado ao facto de que todo o terror da noite não tinha ainda acabado. Numa violação em grupo, era preciso estar preparada para ser violada por todos. Havia quatro. Três já a tinham violado. Estava à espera do quarto. Estava deitada, rígida, à espera.
A porta abriu-se.
O quarto ali estava. Cabelo castanho- escuro, olhos castanhos, brilhantes. Um ar distante. Estava de pé, pouco equilibrado, vestido com a camisa por fora das calças. O Sonhador. O lunático que tinha dado origem a tudo. O filho da mãe.
Ele entrou, fechou a porta. Quase parecendo um sonâmbulo, cambaleou até à cama dela.
- Tenho que confirmar - dizia ele. - É verdade que os outros a violaram?
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- Trataram-me como fezes, excremento - disse ela. - Portaram-se como animais selvagens. Foram horríveis, desumanos, magoaram-me. Alimentou uma leve esperança. - Não me vai fazer o mesmo, pois não?
- Eles fizeram mal - disse ele, em voz baixa. - Não deviam tê-lo feito. As esperanças dela aumentaram.
-Estou contente por pensar assim.
- Eu devia. - disse ele.
- O quê?
- Eu devia ter sido o único - disse ele, com voz estranha.
As esperanças dela evaporaram-se e voltou a sentir medo. Pensava que se tinha acabado o medo por essa noite. Já tinha passado por tanto terror nas últimas horas que acreditava estar já esgotada. Mas este, agora perdido em silêncio, era diferente dos outros. Era a sua conduta anormal que causava medo. Parecia que estava perdido em transe. Enterrou mais a cabeça na almofada tentando discernir se ele estava bêbado, drogado ou se era esquizofrénico.
Ele estava a murmurar qualquer coisa quase imperceptível.
- Eu não queria vir assim para aqui, mas sou o único que gosta de si. Ela não sabia como lidar com ele, nem como ele iria reagir a seguir. Decidiu levantar-lhe o moral.
- Se realmente gosta de mim, deixar-me-á sozinha. Estou doente, estou esgotada até aos ossos. Só quero ficar sozinha. Por favor, seja compreensivo.
Ele parecia que não a tinha ouvido, o olhar fixo no seu corpo, e, pela primeira vez, o seu olhar avivou-se e acariciou-a.
- Você precisa de amor - dizia. - Foi feita para ser adorada e amada. Merece amor depois de tanto sofrimento. Precisa de alguém que se importe consigo.
Ela convenceu-se de que ele devia ser completamente louco.
- Agradeço as suas palavras - disse ela. - Mas vá-se embora, deixe-me descansar. Se se for embora, isso será um acto de amor. Por favor, saia.
Era óbvio que ele não estava a ouvir, estava a despir a camisa. Lentamente, desapertou osjeans, e quase caiu ao tirá-los.
Não tinha mais nada por baixo. Estava nu.
- Oh, Deus - lamentou-se ela. Já não aguentava mais a dor e a humilhação. - Oh, Deus, dá-me um instrumento para o cortar, para que eu consiga preservar o último bocado de sensatez que me resta.
Não havia Deus nessa noite.
O Sonhador estava sentado ao canto da cama. Olhava fixamente para ela.
- Quero-te, Sharon. Desejei-te desde a primeira vez que te vi.
- Eu não o quero, não quero ninguém assim. Odeio-vos a todos. Deixe me em paz.
Ele não ouvia. Segurou os dois lados da blusa dela. Ela puxou os braços a forçar as cordas, tentando evitar que ele a tocasse. Mas as cordas estavam bem amarradas.
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Carinhosamente, ele afastou-lhe um dos lados da blusa, depois o outro e, mais uma vez, ela teve de ver o que ele via, os dois peitos brancos com os mamilos vermelho-acastanhados.
- Sê boa para mim, Sharon - estava ele a dizer. - Não te quero forçar, quero que me ames.
Baixou a cabeça para acariciar com a face um mamilo e depois o outro. Virou a cabeça para que os seus lábios tocassem e beijassem cada um dos mamilos, e, depois, a sua língua circulou sobre eles.
Levantou a cabeça e ficou muito próximo dela, murmurando:
- És tudo o que sempre sonhei, Sharon. Quero-te só para mim.
- Vá-se embora - A voz dela tremia. - Não faça mais. Estou tão fraca, doente. por favor.
-Daqui a pouco, querida, daqui a pouco poderás dormir. Já nos conhecemos demasiadamente bem para agora podermos dormir. - A sua mão dirigiu-se para a saia dela, encontrou-a já desapertada e começou a abri-la. -Isto não é novo, Sharon. Para nenhum de nós. Já deves ter sentido as vibrações dos meus sentimentos durante estes anos. Deves ter sabido o que eu sabia. Já fiz amor contigo mil vezes. Tivemos horas preciosas, horas intermináveis nos braços um do outro. Isto é só mais uma vez.
Desde que o primeiro, o Demónio, tinha entrado, que ela não sentia tanto medo como agora.
- Você é louco - disse-lhe ela, contendo a respiração. - Saia daqui!
- Os outros. eles não te mereciam. Eu sou o único que merece o teu amor.
Os olhos dela, horrorizados, seguiram- no, enquanto ele se deitava na cama ao lado dela. Abriu-lhe as pernas nuas. Ela tentou resistir, mas as suas pernas estavam dormentes de cansaço, já não conseguia fechá-las.
Ele estava entre as suas pernas, a boca no umbigo, a língua a tocá-lo, a entrar nele, a trabalhar em volta dele.
Continuou a percorrer-lhe a barriga, beijando-lhe a carne, para baixo, para baixo, até ao triângulo púbico.
- Não. não. - suplicou ela.
Ele levantou a cabeça e o corpo e pôs-se de joelhos sobre ela. Ela curvou-se e lastimou-se. Não valia a pena, não valia a pena. Estava fraca e cansada.
Ele estava a murmurar qualquer coisa. Ela tentou decifrar.
- Quantas vezes. - dizia ele. - Quantas vezes - repetiu - me fizeste ter uma erecção. Quantas vezes te penetrei, entrei dentro de ti, gozei o nosso amor mútuo sozinho. E agora, Sharon, finalmente, Sharon, seremos os dois juntos.
Ela fez um último esforço para se libertar, mas as suas pernas dormentes não conseguiam mover-se, ficaram separadas, bem abertas, à espera do ataque. Os olhos fanáticos dele estavam fixos nela. Tremia e respirava como um maníaco.
Ela mal conseguia compreender as palavras entrecortadas dele.
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há tanto tempo que esperava, desejava. queria. este momento. estou tão excitado, tão excitado, tão.
Ela sentiu-lhe a ponta dura do pénis tocar-lhe nos lábios secos lá em baixo, fechou os olhos, encheu-se de coragem, e depois ouviu o som estridente. Os olhos dela abriram-se desmedidamente.
A cabeça dele estava deitada para trás, os olhos fechados com força, as suas feições em convulsão, a boca aberta enquanto o grito de agonia dava lugar a um lamento surdo. Desesperadamente, as suas mãos tentaram meter o pénis dentro dela, mas já era tarde. Ela sentiu o jacto de sémen a disparar sobre o cabelo púbico e pela sua barriga.
Ele abria e fechava a boca, tentando comer o ar, contorcendo-se, e por fim terminou.
Deixou-se cair entre as pernas dela, o seu pénis esvaziado tombado contra a sua coxa.
- Eu. eu não sei porquê - disse ele, sem fôlego. - Per. perdoa-me. A surpresa dela pela ejaculação prematura transformou-se em alegria. Pela primeira vez nessa noite, sentiu-se vitoriosa. Era a intercessão divina,
Deus existia.
Desejava torturar e matar os outros. Tinha estado indefesa, mas ele era vulnerável. Ela desejava matá-lo, e, através dele, os outros, por ela, pelo seu orgulho ferido.
- Está mesmo bem para ti, meu inútil degenerado - gritou-lhe ela. Era impiedosa. - Há alguma coisa a perdoar, meu vagabundo nojento? Querias-me forçar, não querias? Mas não conseguiste, porque és um eunuco. Estou contente. Estou feliz. É o que mereces, meu porco. Olha bem para ti, o Grande Amante. Que é que te aconteceu, quando ias violar-me?
Deprimido, sem conseguir encará-la, saiu da cama.
- Não, não te vás já embora - gritou-lhe ela -, ainda tens uma coisa a fazer, antes de tirares daqui o teu cu de maricas. Vai buscar uma toalha molhada, estupor, e limpa-me depressa esta porcaria. Sinto-me contaminada.
Como um galgo, correu para a casa de banho, voltou com uma toalhinha, e, inexpressivamente, limpou-lhe o esperma de cima. Atirou a toalha para o chão, agarrou na camisa e nas calças, apagou a luz da casa de banho e saiu. Voltou atrás e, sem dizer nada, tapou-a.
Finalmente, olhou para ela e pediu-lhe desculpa.
- De quê? - respondeu-lhe ela, com raiva. - Por me teres metido nisto tudo, ou por não teres conseguido fazer nada?
Houve um interlúdio de silêncio.
- Não sei - respondeu-lhe. - Boa noite.
Capítulo nono
Os quatro dormiram até tarde, na quinta-feira de manhã. Adam Malone tinha acabado de mexer uns ovos e de fritar salsichas, e servia o pequeno- almoço quando Kyle Shively apareceu, bastante tarde. Passando, pela última vez, o pente pelos cabelos, Shively guardou-o seguidamente na algibeira e puxou uma cadeira.
Malone sentou-se à cabeceira da mesa e olhou de relance, por momentos, os seus camaradas do Clube de Fãs. Não era uma atmosfera de férias que prevalecia neste segundo dia de aventura. Brunner estava retraído, Yost distante. Ele próprio, pelo que podia verificar na imagem reflectida no espelho, tinha um ar de introspecção melancólica. Só Shively estava animado.
Depois de se servir, Shively fez o que Malone já tinha feito, inspeccionou os seus camaradas.
-Não é propriamente um grupo divertido em férias. Que se passa? Nenhum de vocês fez amor ontem à noite?
Ninguém respondeu.
Shively atirava a comida às pazadas para a boca.
- Pensei que estivessem à porta do quarto a fazer bicha.
- Nada de pressas - disse Yost. - Ainda temos mais treze dias.
- Talvez isso seja o suficiente para si - retorquiu Shively. - Para mim é que não é, com certeza. - Fez uma pausa e olhou à volta da mesa, com ar desconfiado. - Nenhum de vocês me respondeu. Foram todos para a cama com ela ontem à noite, não?
- Eu fui - respondeu Yost, mastigando metodicamente as salsichas.
- É boa, não é?
-Claro que é.
- E o que se passa aqui com o Leo?
Brunner acenou, relutantemente, a cabeça.
-Sim. Eu não queria, mas não consegui controlar-me. Shively arreganhou um sorriso malicioso.
- Parabéns, Leo. Hoje você é um homem. - Virou-se para Malone. - O nosso patrão ainda não disse nada.
Este mexeu-se na cadeira, desconfortavelmente.
- Bem. - Não olhava por cima do prato. - Fui lá quando todos estavam a dormir. - Fez uma pausa. - Não custa nada, tenho orgulho em o admitir.
- Como vê - concluiu Shively, satisfeito -, isso não o tornou em nenhum assassino.
- Também não foi nada de especial - retorquiu Malone. - Não queria que tivesse acontecido assim.
- Mas aconteceu - disse Shively, implacavelmente.
Malone não se esforçou por responder.
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Ele fê-lo, conseguiu e não podia dizer porquê. Fê-lo, tecnicamente fê-lo, mas o facto é que teve intenção de fazer, tinha tentado, quis violar.
Durante toda a noite, antes de adormecer, tentara perceber o que o tinha levado a proceder de maneira contrária aos seus princípios e moral. Tinha a certeza de que o seu comportamento não era inteiramente devido aos efeitos da marijuana, havia qualquer coisa de mais complicado que o fez tomar essa atitude. O mais que ele podia concluir era - quando Shively quebrou um pacto civilizado e lhes criou o precedente que talvez estivesse certo, quando Yost seguiu o jogo, e quando um advogado de leis e da ordem, como Brunner, aceitou as novas regras, dera-se uma revolução violenta na sua sociedade microcósmica. Uma inversão total dos valores da sociedade em que eles se encontravam integrados.
"Teria a mudança sido repentina? " -pensou, apreensivo, Malone. A corrupção parecia ter surgido gradualmente, subtilmente. A própria fantasia em que eles actuavam foi o passo principal para o escape dos limites da sociedade, com as suas mentiras, os seus disfarces, as drogas, os raptos, o comportamento civilizado foi-se dissipando. Com a tentação na mão e com a primeira violação cometida, os princípios tradicionais foram de vez varridos. Uma vez que não tinham de dar satisfações a ninguém, podiam redefinir a decência, e foi isso que fizeram. O que estava definido como errado foi revisto pela maioria, para ser aprovado como certo. Três quartos da sociedade deles aceitaram as novas regras. Ele próprio, racionalizando a sua atitude, justificava- a como conformismo.
Bem - pensou ele - quem é que tinha de definir o que era verdadeiramente civilizado e, consequentemente, certo? " -Ele tinha lido os estudos antropológicos de Margaret Mead sobre as sociedades dos Arapesh, dos Mundugumor, e dos Tschambuli, da Nova Guiné. As famílias dos Arapesh eram afectuosas e gentis, as suas mulheres amáveis e plácidas, os seus rapazes eram criados de modo a não serem agressivos, os seus homens é que cuidavam das crianças. Os homens da tribo dos Mundugumor praticavam a poligamia, desprezavam as crianças, encorajavam a competição entre pais e filhos no que respeitava a mulheres, forçavam as mulheres a fazer trabalhos duros, encorajavam a agressão e a hostilidade. Os Tschambuli davam educação idêntica, os homens eram dândis e objectos sexuais, as mulheres, trabalhadoras, representavam-se com uma sociedade patriarcal, apesar de serem as mulheres adultas a chefiar a tribo, encorajavam as mulheres a serem as agressoras sexuais.
Para os Arapesh, uma pessoa agressiva era doente, neurótica. Para os Mundugumor, uma pessoa pacífica, ponderada, era doente, neurótica. Para os Tschambuli, um homem dominador ou uma mulher calma era doente, neurótica.
Quem poderia, portanto, definir o que era civilizado, o que estava certo? A digressão filosófica causou-lhe mal-estar, e decidiu prestar atenção ao Shively, que estava a fazer uma pergunta.
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-Alguém a viu esta manhã?
- Vi eu - disse Malone. - Acordei um pouco antes de vocês. Fui ver se ela precisava de alguma coisa.
- Acredito mesmo - resmungou Shively. - Então vai à frente de nós, já lhe deu mais uma.
- Não, que coisa, acabem com isso! - disse Malone, ferozmente.
- Não lhe toquei nem com um dedo, fui só ver se estava bem. Yost limpou a boca com um guardanapo de papel.
- E estava?
-O mesmo que ontem, de mau humor. Não me falou. Pensei que me fosse agredir quando a desamarrei e deixei ir à casa de banho. Mas estava
muito fraca. Tentei dar-lhe qualquer coisa para comer, mas só bebeu um sumo de laranja. Depois amarrei-a outra vez.
- Que tal te pareceu ela? - perguntou Yost.
- Pareceu, como?
-Ainda estava gira?
- Mais do que nunca - disse Malone, com sinceridade.
- Então porque não foste para a cama com ela? - quis saber Shively. Malone olhou para o texano com um ar enojado.
- Que é que tem a ver uma coisa com outra? Para ser franco, digo-vos já que não me dá gozo nenhum forçar pessoas a fazer o que não querem.
- Jesus - disse Shively para os outros. - Lá vem o nosso chefe de escuteiros. Eu cá, tiro o máximo prazer de todas as situações.
Brunner apressou-se a defender Malone.
- Mais uma vez, concordo com o Adam. Também não gosto de forçar alguém indefeso. Não é sexo normal. É mais como. como masturbação. ou violação de um cadáver. Sinto-me mal só de pensar nisso.
- Isso é ir muito longe, Leo - objectou Yost. - Não sinto culpa nenhuma, considerando o passado dela. Admito, claro, que essa não é a melhor maneira de o fazer, com ela amarrada a dar pontapés e a praguejar. Dirigindo-se a Shively, disse - Até dá um certo prazer. Tem de concordar, Shiv.
Shively encolheu os ombros.
-Não sei. Não me importo que resistam um pouco. Põe-me a ferver. Mas, Howie, é muito melhor se a tipa estiver a colaborar. um desgaste de energia. Essa energia deveria ser empregue no sítio certo. dentro dela.
Malone pegou na travessa, ainda cheia de ovos mexidos e salsichas, e levou-a para a cozinha para aquecer a comida. Não lhe apetecia ouvir as ordinarices de Shively. Mas também não era capaz de cortar o diálogo deles.
- Era bom se conseguíssemos que ela colaborasse - disse Yost, ansioso. - Seria um verdadeiro acontecimento.
- Eu sei, isso havia de me fazer sentir menos remorsos - disse Brunner, tomando o iogurte.
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- Que se lixe - exclamou Shively -, se ela não quer, paciência, não faz diferença.
- Se ela se recusar a abrandar - prosseguiu Brunner -, não sei se serei capaz de continuar assim. Eu não fui eu, ontem à noite. E à luz fria do dia, acho repugnante o que fiz.
- Eu não poria o caso nesses termos - retorquiu Yost. - Hei-de comê- la enquanto ela aqui estiver. Mas, sem a sua colaboração, não é este o meu desporto favorito. Quero dizer, podia ser cem vezes melhor.
- Adam - gritou Shively para a cozinha. - E você?
Malone deixou o fogão e ficou à porta.
-Não, não o torno a fazer, se for à força. Sinto-me mal. Não sei como vocês se dão com violações, mas eu não me dou bem. Se ela colaborasse, da maneira que eu pensei que fizesse, então, está bem, seria diferente. - Ia-se retirando. - Desculpem, não quero que os ovos se queimem.
- Espere aí - saltou Shively, irrompendo pela cozinha. - Para quem é que está a cozinhar? O que se passa?
Ele afastou-se um pouco, quando Malone apareceu com um tabuleiro de comida.
Shively fez parar Malone.
-Aonde é que leva isso?
- A Sharon.
- A Sharon - repetiu Shively.
-Claro. Há quase trinta horas que não come, deve estar esfomeada. Há-de ficar contente.
- Isso pensa você - disse Shively -, só que ela não vai comer. Passe isso para cá. - Antes que Malone, admirado, pudesse resistir, Shively apoderou-se do tabuleiro. - Ouçam bem, tive uma ideia brilhante. já resolvi praticamente tudo.... já sei como pô-la a colaborar.
- Explique-se lá, Shiv - quis saber Yost.
- É como treinar um cão. A melhor maneira é dar ou não dar de comer. Tenta-se ensinar-lhe qualquer coisa, e se ele aprender e colaborar tem um prémio, uma boa refeição. Dá um pouco que fazer, mas nunca falha.
- Bolas, Kyle - gritou Malone. - Ela não é um cão, é um ser humano. - Tentou tirar o tabuleiro com a comida, mas Shively não deixou. - Deixe-se disso, Kyle.
- Não há diferença, digo-lhe eu - insistiu Shively. - Uma cadela ou uma mulher podem ser domesticadas da mèsma maneira. Quando estive no Vietname, e queríamos interrogar prisioneiros comunistas, púnhamo-los à fome até à loucura. Deixe-me tomar conta do assunto. Tudo o que fizemos até agora foi seguindo os meus instintos.
- Talvez o Shiv tenha razão - disse Yost para Malone. - Porque não lhe havemos de dar essa oportunidade?
Brunner, comendo o seu iogurte, estava perplexo.
-Que pensa fazer, Kyle?
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- Venham comigo e observem - disse Shively, avançando com o tabuleiro da comida. - Mas não me atrapalhem. Este é o meu plano.
Todos seguiram Shively, pela sala de estar, corredor, e pararam à porta do quarto.
- Fiquem aqui, agora - ordenou aos outros. Piscou-lhes um olho. - Se quiserem ver como se actua com classe, observem o velho Shively.
Dirigiu-se para o quarto, levantou o tabuleiro com uma das mãos e com a outra bateu à porta.
- Minha Senhora, sou o seu mordomo - anunciou alto, em voz de falsete, com pronúncia britânica. -O seu almoço, minha Senhora. Deu uma gargalhada para os amigos, abriu bem a porta, e entrou.
Malone ficou próximo da porta para observar melhor. Estava estendida na cama, ainda coberta com a manta que ele lhe tinha posto, de manhã cedo. Ela continuou a olhar para o tecto, fingindo não ter dado pela entrada dele, com o tabuleiro.
- Olá, linda - disse Shively. - Como te sentes esta manhã? Ela não respondeu.
Shively arrumou a mesa-de-cabeceira à esquerda dela e, afectadamente, deixou o tabuleiro.
-Deves estar com muita fome. Cheira. Ovos e salsichas. Cheira bem. Que temos mais? Deixa-me ver. Sumo de laranja, pão com manteiga, café quente e natas. Que tal? Pensámos que não te quisesses deixar ir abaixo. Está bem, vou-te desamarrar uma das mãos, para poderes comer. Mas não vale a pena tentar fazer alguma gracinha. Vou para o outro lado do quarto para te vigiar. E isto também. - Mostrou rapidamente um objecto que tirou do bolso, um revólver Magnum Colt. - Isto não é de brincar, acredita.
Ela voltou a cabeça para ele, mas continuou silenciosa.
Pôs o revólver de novo no bolso.
- Queres mais alguma coisa com a refeição?
Ela mordeu o lábio, parecia ter dificuldade de falar. Por fim, falou. -Se tiveres um grama de decência, dá-me um tranquilizante, um
comprimido para dormir. Qualquer coisa serve.
- Até temos os que tu tomas - disse-lhe Shively, com um sorriso. Nembutal, não é? Como vês, pensámos em tudo.
- Posso tomar um agora?
-Claro que podes, imediatamente. E toda a comida do tabuleiro, também. Na verdade, podes ter tudo o que quiseres de ora em diante. só que tens de pagar a conta, por tudo o que obtiveres.
- Pagar. pagar o quê? Não percebo.
- Ninguém neste mundo leva alguma coisa de graça - disse Shively. O mundo não deve a ninguém uma existência, costumava dizer a minha velha. E é verdade. Paga-se o que se leva. Não há borlas. O que estou a dizer também se aplica a ti, não interessa se és importante ou não. Damos- te três refeições por dia, damos-te os teus comprimidos, damos-te tudo o que pedires
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e que for razoável. Mas depois queremos qualquer coisa em troca. Sabes o quê?
Ela não disse nada.
- Pedimos muito pouco pelo que te estamos a dar. - E continuou. - Na tua posição, não tens muito a oferecer pelo quarto e comida, excepto uma coisa. E é isso que te pedimos. - Fez uma pausa. - A tua benevolência.
Esperou pela reacção dela. Ela olhou para ele com frieza, mas não falou.
- Agora é contigo, menina - disse Shively. - Aqui tens uma refeição deliciosa e fumegante. Os teus comprimidos estarão aqui num minuto. E, dentró em breve, prometo-te, desamarramos-te. A única coisa que te pe dimos é que deixes de te fazer tão difícil, de lutar contra nós e de seres tão rude. Tu jogas a bola connosco e nós jogamos a bola contigo. É isso. Que dizes?
Do corredor, Malone podia ver a cara dela tornar-se vermelha de raiva.
- Vai-te lixar, porco, nojento. é o que te digo - gritou-lhe ela. Vai-te enfiar debaixo da rocha de onde vieste. Tu e os teus amigos podem engolir a comida e meter os comprimidos no rabo, porque não vos vou dar nada. Podem levar o que quiserem, como fizeram ontem à noite, mas não vos hei-de dar nada do que é meu, absolutamente nada, e lembrem- se disso! Agora, sai da minha frente!
Shively disse, entre dentes.
- Cavaste o teu próprio túmulo. Podes ficar nele - Com gestos exagerados, pegou no tabuleiro, olhou para ele, cheirou a comida, com um ar maravilhado. Bebeu um gole do sumo de laranja, mexendo os lábios. Pegou numa salsicha e deu-lhe uma dentada. - Hum que maravilha - comentou, olhando para ela. - Está bem, boneca, terás tudo o que quiseres, desde que estejas disposta a pagar. Daqui em diante, não levas nada, com excepção, claro, do nosso amor, não te queremos privar disso. - Caminhou para a porta, falando-lhe por cima dos ombros. - Quando quiseres mais, a única coisa que tens a fazer é dizer-nos que estás disposta a dar mais. São estes os termos finais. Até logo, coisinha fofa.
Fechou a porta do quarto, e piscou um olho para os companheiros.
- É só questão de esperar um pouco, rapazes. Deixem-me jogar à minha maneira, confiem em mim. Dentro de quarenta e oito horas, terão a oportunidade de gozar o rabo mais prestável da história.
Sharon Fields permaneceu inerte na cama, sem forças, enfraquecida pela fome, sede, sono, sentindo-se constantemente à beira do delírio. Não tinha noção do tempo. Não podia lembrar-se das horas dolorosas e do que lhe passou pela cabeça.
Agora, como já não via luz por entre as nesgas dos estores, percebeu que era mais um anoitecer. O relógio que tinha na mesa-de-cabeceira confirmou
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que já era noite, oito horas e vinte minutos da noite, algures no Reino do Diabo.
Sentiu-se mais uma vez febril, e por qualquer razão inexplicável, isto trouxe-lhe luz ao espírito.
O seu cérebro divagou, com esperanças de encontrar alguma saída, e, finalmente, encontrou uma. O seu pensamento fixou-se pela centésima vez na promessa do Departamento de Pessoas Desaparecidas. Era impossível conceber que uma celebridade, uma pessoa famosa como ela, pudesse simplesmente desaparecer, sem ser procurada. Impossível. Apesar de, antes, ter pensado em como podia tão facilmente ter sido destituída da segurança da raça
humana, integrada na escravatura, violentada e degragada, sem intervenção nem protecção de alguém que a conhecesse ou que a amasse, ter começado a duvidar da sua importância e da sua fama. Examinou as suas dúvidas, reconheceu uma severa fissura no seu ego tomado pelo seu desamparo, e tentou utilizar todas as fibras do seu interior para se recordar quem era e do que representava aos olhos do mundo inteiro.
Então, porque não davam pela sua falta? Porque não havia ninguém, da legião de amigos, protectores, admiradores, que fizesse alguma coisa para a salvar?
Mais uma vez a promessa do Departamento de Pessoas Desaparecidas. Essa era a sua maior esperança. Félix Zigman e Nellie Wright discutindo com a Polícia, provando que o seu desaparecimento era verdadeiro. E a Polícia, que era esperta, que era científica, havia de descobrir uma pista do seu rapto, dos seus raptores, da sua localização. Tentou imaginar o que estaria a ser feito, nesse momento, para a descobrir. Frotas de carros da Policia estariam, nesse mesmo momento, a caminho do sítio onde se encontrava, para prender os seus raptores, para a salvar.
Este sonho passou uma e duas vezes. quando, de repente, foi manchado por um espectro que fez com que toda a sua esperança desaparecesse. Houve qualquer coisa que lhe passou pelo espírito, uma cena que avivou a sua memória, uma imagem clara de Nellie e dela própria na sua sala de estar em
Bel Air, ontem à noite, não, não, na noite anterior quando ela era ainda um ser humano com valor.
Na cena, depois da sua festa de despedida, depois de o último convidado ter partido, ela e Nellie estavam a conversar antes de ela subir para o seu quarto de dormir. A imagem era fresca e nítida na sua memória.
Ela: "Talvez eu precise de alguém. Talvez todos precisem. Talvez não. Hei-de descobrir. Mas não preciso desta corte toda e dos lacaios. Jesus, às vezes apetece-me desaparecer, fugir. desvanecer num instante, ir embora, para. para onde ninguém me conheça, onde ninguém se preocupe com a minha pessoa. para estar só um momento, pacificamente, vestir o que quero, comer quando me apetece, ler ou meditar ou passear por entre as árvores ou só ser preguiçosa, sem complexos de culpa. Ir, só, para um sítio onde não houvesse ponteiros no relógio, calendário, agenda, telefone. Um
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sítio sem testes de maquilhagem, poses fotográficas, ensaios, entrevistas. Só eu, independente, liberta, pertencendo só a mim própria.
Nellie Bem, e porque não, Sharon Porque não fazes isso às vezes? Ela Talvez faça. Talvez esteja preparada para isso brevemente. Talvez faça um voo espiritual sem saber aonde vou parar nem o que me vai acontecer. "
Deus, Deus, ela dissera tudo isto a Nellie na noite antes do rapto. E Nellie, sabendo de tudo, não havia de esquecer uma só palavra da conversa.
Podia imaginar a próxima cena, a seguir ao seu desaparecimento. Félix Ela disse-te isso na noite antes do desaparecimento? Nellie: "Exactamente. Foram essas as suas palavras. Disse que queria desaparecer, ir-se embora, esconder-se num sítio onde fosse desconhecida e onde a não pudessem encontrar.
Félix Então, tudo se explica. Decidiu seguir um impulso sem nos avisar. Deve estar em qualquer sítio a descansar. "
Nellie Mas não é próprio dela não dizer nada ao menos a um de nós. Félix Ela já fez isso antes, Nellie.
Nellie Mesmo assim.
Félix: "Não, foi exactamente o que aconteceu. Não vale a pena ir à Polícia. Vamos passar por cretinos, quando ela aparecer. Acho melhor não fazermos nada e esperar que ela se canse de estar só e decida vir para casa. Não te preocupes, Nellie. Ela deu-te um lamiré, consciente ou inconscientemente, de que planeava ir-se embora e esconder-se por uma temporada. E foi o que ela fez exactamente. Só temos de esperar.
Oh, Jesus, aquela conversa estúpida, inocente e sem significado que tivera com a Nellie, agora sem dúvida mal interpretada, seria o instrumento que cortaria qualquer possibilidade de alerta, de procura, de salvação.
O espectro que no seu espírito tinha desvanecido a sua última esperança era ela própria, nem mais.
Estava em suspenso, só e ignorada, numa jangada num mar desconhecido, e tinha de encarar a realidade de uma vez para sempre.
Estava inteiramente à mercê destes sádicos tubarões.
Como é que ela - principalmente ela - podia ter-se metido num pesadelo destes?
Procurou uma explicação racional e reviveu os momentos incríveis de ontem à tarde, quando o Sonhador lhe leu todos os seus comentários sensacionalistas das entrevistas para a Imprensa, as que a fizeram parecer uma ninfomaníaca, tal como no papel que interpretava no seu último filme, A Cortesã Real. Foi todo o sensacionalismo, a máquina fabricante de ídolos, começando com a sua biografia artística, que a levou à captura nesta cama.
A biografia artística, a biografia pública, ainda tinha presente as declarações do Sonhador, recitando-as como se fosse uma oração. Nascida numa plantação da Virgínia Ocidental. Os seus pais aristocratas gentílicos. O seu
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pai um cavalheiro e advogado do Sul. Educação nas Escolas de Mrs. Gussett e Bryn Mawr. Um concurso de beleza, um anúncio na televisão, treino do método Stanislavsky, uma passagem de modelos numa festa de caridade, a
descoberta de talento, um teste de cinema, um contrato com uma importante
empresa de filmes. Um papel pequeno e depois o estrelato.
Oh, Deus, Deus, se aqueles malucos soubessem a verdade. Mas se eles
soubessem, não acreditavam, não acreditavam mais do que ela, que já tinha
reprimido e sepultado isso há muito. Contra os seus princípios, o seu cérebro
fez uma escavação arqueológica ao seu não muito distante passado. Artefactos
feios, mal amados, tinham de ser escavados um por um. Um olhar rápido a
um deles só, era o suficiente para a fazer cair em si.
Klatt, não Fields, este era o nome dos seus pais e o seu também. Hazel e
Thomas Klatt. O seu pai, um ignorante imigrante, guarda-freios nas linhas
férreas de Chesapeake e Ohio, bêbado, um bêbado de uísque ordinário, à
morte e com uma doença de fígado quando ela tinha sete anos. Abandonando-a, deixando-a, tão injusto, deixando-a como escrava de Hazel (ainda
não conseguia chamá-la sua Mãe), que a odiava como se ela fosse uma sobrecarga, que a forçou a fazer trabalhos de criada, que a ignorou para se dedicar a homens interesseiros. Um padrasto, dos 9aos 13anos de idade, outro
bêbado que batia em Hazel (mesmo bem para ela) e que um dia saiu de casa.
Outro padrasto, que provavelmente só vivia com a Hazel, um lavrador, um
tarado sexual, com um olho lascivo para a enteada, que a fez acordar uma
noite, quando tinha dezasseis anos, com uma pata entre as pernas e outra
entre os seios. No dia seguinte saiu de casa para Nova Iorque.
Tudo isto aconteceu na Virgínia Ocidental, os primeiros anos num andar
barato por cima de um Centro Religioso em Logan. Mais tarde, numa quinta
estéril, inóspita e fria, perto de Hominy Falls nas montanhas Allegheny. Por
último, uma casa-de-hóspedes decadente numa rua estreita e íngreme em Grafton.
Escola: Três anos num liceu oficial, húmido e cheio de correntes de ar,
na Virgínia Ocidental. Três meses de escola nocturna em Nova Iorque. Seis
semanas de escola de secretariado em Queens. De noite, em cinemas, observando, sonhando, imitando.
Empregos: Criada num snack-bar. Secretária numa firma vendedora de
automóveis. Vendedora de pipocas num cinema de segunda categoria:
Empregada, onde instigava os clientes ao consumo. Recepcionista numa loja
de modas. Dactilógrafa numa companhia fabricante de cartões de felicitações:
Depois, um dia, o fotógrafo.... qual era o seu nome? o jovem borbulhento
que codificou toda a sua vida?.... apareceu.
Trabalhava como publicista para diversas revistas de negócios. Estava á
fazer o plano para um cartão de cumprimentos. Viu-a, perguntou ao patrão dela se ela o podia ajudar e posar para o cartão. - Com certeza,
avance. " Tirou dez rolos de fotografias dela. Depois, fins-de- semana; porque
ele era um entusiasta, porque achava que ela personificava a sensualidade,
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montes de planos para anúncios com a fotografia dela, uma vez em Connecticut, outra em biquini na praia de Atlantic City. Mais entusiasmo.
Mostrou ampliações a um amigo de uma agência de modelos. O amigo
sugeriu que ela tirasse primeiro um curso de modelo em três meses. Ela
concordou. Nessa altura ela tinha um amigo para tudo que lhe pagou o
curso: era subdirector de um hotel em Park Avenue, e apesar de ser forreta
viu-se forçado a pagar-lhe o curso, pois ela ameaçou não aparecer mais se ele
não lho pagasse. Quando acabou o curso, trocou o subdirector do hotel por
um coywriter de uma agência de publicidade, e foi este quem lhe pagou o
arranjo dos dentes e as aulas de dicção.
Apareceram trabalhos de modelo, nada de especial, mas suficientemente
bons. Passou modelos de soutiens perante revendedores, lingerie, e biquinis.
Começou a aparecer em anúncios de revistas, com vestes reduzidas. e
concorreu para figurar em capas de revistas, para uma revista de fotografia,
revistas para homens, três em dois meses.
Um agente de segunda categoria em Hollywood.... um agente .... viu-a na
capa de uma dessas revistas para homens, localizou-a, ofereceu-se para a proteger, trazer para Hollywood, pagar-lhe a renda de casa, adiantar- lhe
dinheiro para roupas, enquanto não lhe encontrasse trabalho na Televisão ou
Cinema. Acompanhou-o a Hollywood. Ele não era grande coisa, sem escritório, só um telefone, fatos velhos, raquítico e pançudo, cheirando a alhos
e cigarros, mas era o seu agente. Pessoalmente, era pouco exigente.... um trabalho de mão duas vezes por semana.... bom, querida . obrigado,
querida, muito bom.
Arranjou-lhe trabalhos. Não no cinema, mas à volta dos cinemas, perto
dos cinemas. Foi recepcionista em exposições de automóveis, de barcos, em
quatro conferências. Era um dos muitos corpos que recebiam os convidados
em aberturas de supermercados e restaurantes. Depressa se tornou a companheira de um actor em ascensão, em festas, em estreias.
Começou a furar. O seu agente não era um bom promotor de talentos. Não transmitia respeito, nem credibilidade. Não tinha iniciativa, só sobejavam alguns contratos. Mas ela furou. Agente era um eufemismo para
alcoviteiro de primeira classe. Ela não precisava de nenhum alcoviteiro, não
queria. Melhor havia ela de fazer. Mexeu-se de um lado para outro. Um actor
conhecido. Contactos. Um director de elencos. Alguns pequenos papéis. Um
fabricante de máquinas fotográficas. Melhores contactos. Um produtor independente. Mais papéis. Um agente rico. Uma apresentação. Um director de
um estúdio, recentemente enviuvado. Um contrato, mais pequenos papéis,
- hospedeira das suas festas em Palm Springs, um apartamento no Boulevard
Wilshire.
Exibição. O público descobriu-a, a publicidade fez o resto.
Tinha apagado quase tudo. Quase tinha esquecido que tudo isto havia
acontecido. Mas esta noite foi forçada a evocar tudo.
O Sonhador, os outros monstros vis, de cérebro lavado pela lenda, nunca
acreditariam na verdade, porque não quereriam acreditar.
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Mas era a sua verdade.
A odisseia tormentosa desde a miséria da Virgínia Ocidental à baixeza de
Nova Iorque para a rude exploração de Hollywood. Os primeiros anos de
actriz foram os piores, proporcionando prazeres, fazendo de geisha,
oferecendo o corpo e o órgão de fêmea para o conseguir.
Ela foi uma das que tiveram sorte, porque conseguiu, e finalmente sou be-o, quando alcançou o plano em que os homens precisavam mais dela do
que ela deles. Ficou liberta da subserviência aos homens a partir do papel que a iniciou no estrelato, e, a partir dessa altura, foi livre.
Agora, revendo tudo, havia qualquer coisa no seu passado que a con fundia. Na verdadeira versão da sua história, achou sempre que os homens da
sua vida a exploravam, tendo em vista os seus próprios prazeres egoístas.
Mesmo assim, relendo a sua história, há quem a possa interpretar de maneira
diferente. Seria possível dizer que os homens não tinham usado Sharon
Fields para alcançar os seus fins tanto como ela os tinha usado com esse objectivo.
Tentou pôr em ordem estes pensamentos na sua cabeça. Sempre estivera,
sem dúvida, convencida de que os homens a tinham usado.... e tinham, cos
diabos, tinham.... mas não podia também ser negado que os tinha, constante
e rudemente, utilizado para servir os seus próprios propósitos. Tinha-os excitado e seduzido com a sua tantalizante promessa sexual. Para obter o que
queria, tinha manipulado astutamente os homens, brincado com os seus apetites, as suas fraquezas, as suas necessidades. Tinha brincado com um a
seguir a outro, exigindo e depois dando, sempre negociando, e utilizando
cada um como degrau para chegar ao topo. A sangue-frio, em curtos anos,
fragmentando egos, mesmo carreiras, quebrando casamentos, ela usou
implacavelmente os homens para subir até ao apogeu.
Tinha justificação para isso. Havia sido uma rapariguinha perdida no
mundo tirânico do homem. Tinha entrado no mundo do homem em desvantagem, sem a segurança da família, sem educação, sem dinheiro, sem
talento natural, uma nua primitiva. A sua motivação e a ambição não foram
por dinheiro ou fama, só com a excepção de que estes traduziam o que ela
realmente desejava e estava determinada a ter - segurança, liberdade, in dependência, identidade.
Tinha satisfeito os seus desejos porque tinha possuído, por sorte, a sua
única fortuna, a moeda do império mais desejada pelo homem: beleza. Mesmo assim, não era só devido à sua cara e corpo que tinha alcançado o sucesso. Viu centenas, milhares de raparigas jovens, igualmente
belas, raparigas com feições lindas e corpos fascinantes. Elas não o
conseguiram, mas ela conseguiu. A razão não era só devida à intensidade
obstinada da sua aspiração, mas, sim, à sua pesquisa para arranjar um apoio
que ajudasse a promover a sua beleza. Estudara e aprendera a usar a sua beleza
para atrair e seduzir os homens, para fazer dos homens seus criados, enquanto fingia ser deles.
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Fora esta a diferença.
Já não se lembrava com quantos homens havia dormido, feito amor, ido para a cama, durante a traiçoeira subida. Não conseguiu lembrar-se, porque não havia nada a recordar. Esses homens não tinham cara, corpos - eram degraus, e na cama ou fora dela sempre olhou para além deles, não para eles, para além deles em direcção ao lugar distante por cima da multidão.
O sexo nunca significara nada para ela. O acto nunca fora um compromisso humano. Fora simplesmente um aperto de mão, uma carta de apresentação, um telefonema, um contacto, um contrato, qualquer coisa mais. O sexo nunca fora uma coisa especial para ela, só mais uma função corporal automática, qualquer coisa que se fazia, qualquer coisa que se usava, qualquer coisa de onde, por vezes, se tirava prazer, mas nada de extraordinário, toma, deixa, excepto recentemente quando reaprendera o seu velho pensamento e começara a ver o sexo como parte integral do amor.
E aqui estava ela, acorrentada nesta cama estranha, tentando avaliar o seu futuro. Adaptando a sua actual situação na moldura do passado, achou-o mais fácil de olhar e também menos ameaçador do que no futuro. Finalmente, estes
eram apenas mais homens, e não importava muito se voltassem a fazer o mesmo, uma vez que já a tinham violado, e brutalizado o seu corpo. Deste ponto de vista fatalístico, parecia irracional não negociar qualquer coisa em troca do que teria de sofrer. Porque não render-se pelo preço que pediram? Porque não colaborar em troca de comida, descanso, libertação dos laços que prendiam os seus pulsos e entorpeciam os braços e que faziam os seus ombros doer sem alívio? Porque não negociar um acordo sob o qual poderia brevemente ser liberta, ilesa, do seu cativeiro?
Considerou a hipótese de os chamar, convocando-os para lhes dizer que estava pronta a não resistir mais em troca de certas condições.
Antes de chegar à decisão final, reparou que tinha companhia. O alto, com a sua cara odiosa e falas nojentas, estava dentro do quarto, de costas para ela, trancando a porta. Dirigiu-se a ela, coçando-se por baixo da sua camisa cinzenta, parando próximo da cama. Mãos nos lábios, observou-a silenciosamente.
Finalmente, falou. Para ele, o seu tom de voz era conciliatório.
- Estás pronta para a comida e para os comprimidos?
A resposta deteve-se-lhe na garganta. Com esforço, respondeu afirmativamente.
- Assim está melhor. Sabes os termos?
Ela sabia os termos. Olhou para ele, fixando-o. Testa estreita, pequena, olhos cínicos, nariz fino, lábios finos perdidos numa mata de bigode, todos estes pormenores expostos num conjunto ossudo, esquelético. Cruel e
horrendo.
Foi invadida por uma vontade de retroceder perante a necessidade de se render a isto, e de repente apercebeu-se de que a sua repulsa não era uma reacção física contra este, ou qualquer dos outros, mas, sim, pelo
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conhecimento de que, com esta rendição, estava a ceder o que mais amava na vida.
Podia sofrer a violação da sua vagina, pensou ela. Mas não sabia se poderia sobreviver às violações do seu espírito.
Em todos os seus casos passados com homens, quer ela os usasse, quer
eles a explorassem, as ligações não foram tão casuais como gostaria que tivessem sido. Chegou a abominar com ódio permanente a negociação do seu
corpo em troca de melhorias. Demasiados homens tiveram ocasião de vê-la,
não como um mecanismo complexo, sensível, delicado, cheia de desejos
humanos, mas meramente, um instrumento inanimado de prazer, uma Coisa.
Só recentemente, depois de ter conseguido o que ambicionava, de se ter
tornado uma deusa, é que conseguiu perceber que já era capaz de ser usada
outra vez por um homem. Coroou-se a si própria, alcançou a liberdade após
anos de servilismo. Era livre, independente, intocável. Podia actuar como desejava e segundo as suas próprias sanções.
Mais tarde, ultimamente, outro passo em frente na sua consciência. A
ì sua secretária e confidente, Nellie Wright, estava na vanguarda da libertação
das mulheres. A princípio, acorrentada ao seu passado e a ideias antigas,
Sharon tinha ridicularizado as convicções militantes de Nellie sobre a
emancipação da mulher. Gradualmente, Sharon começou a tolerar estas
convicções, a escutá-las com interesse à medida que Nellie as ia expondo, e,
finalmente, aceitou-as. Nos meses mais recentes, tornou-se mesmo partidária
e viu-se a incitar outras mulheres para se juntarem à luta pela total igualdade
da mulher em relação ao homem. Fora esta nova atitude, na verdade, uma das
razões que a levaram a quebrar as suas relações com Roger Clay. Ele tinha
ideias britânicas antiquadas sobre o lugar e o papel da mulher, e não podia
compreender a sua necessidade de absoluta igualdade e liberdade. Mas Roger
mostrara ser tão sensível como ela, mesmo inteligente, noutros aspectos, e a sua decisão de ir ter com ele a Inglaterra fora influenciada pela esperança de
que ele poderia mudar ou ser suficientemente flexível para ser educado e modificado. Se isto provasse ser verdade, eles poderiam, juntos, construir uma
sólida ligação.
Era a esta nova libertação, que alimentava dentro dela, que estes ignorantes animais queriam que ela renunciasse.
Era isso que mais a irritava.
E, de um modo contraditório, havia mais qualquer coisa que a ofendia e
que era extravagantemente irritante. Em anos passados, na sua subida para o
poder e independência, o seu preço tinha sempre sido alto. Para ceder
voluntariamente o seu corpo, sempre tinha recebido coisas valiosas
em troca.... uma referência importante ou recomendação, um contrato legal, um
aumento, um papel no cinema que ambicionava, um guarda-roupa maravilhoso, ou uma jóia valiosa. Nunca se vendera a preços baixos. Sempre fora
comprada como artigo de luxo. Havia orgulho a ganhar disso.
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Mas como estava acima do mercado, não tinha nada a ceder, porque já não estava à venda. Agora podia entregar-se em troca de uma coisa que não tinha preço - amor mas não por menos do que isso. E aqui estava ela, a mulher mais desejada na Terra segundo as actuais cotações do mercado, sendo solicitada para se vender a estes odiosos animais por uma esmola indecente. O porta-voz do grupo tinha-lhe oferecido restos de comida vulgar, alguns comprimidos baratos, em troca do seu serviço como uma Coisa.
Era uma humilhação degradante, quase tão degradante como a violação da sua independência.
Tudo o que ela finalmente conseguira ser iria por água a baixo se capi tulasse.
- Bem, menina - ouviu o Demónio a dizer-lhe. - Não respondeste. Estás pronta a obedecer a esses termos?
A sua raiva verteu. Juntou saliva na boca, e cuspiu-lhe, molhando parte de uma perna das calças.
- É esta a minha resposta, inútil! Não dou nada a animais. As suas feições escureceram.
-Está bem, menina, veremos isso mais tarde. Despiu-se rapidamente. Pôs- se nu em poucos segundos, o seu horrendo instrumento baloiçando à medida que se aproximava dela.
- Está bem. Acho que é altura de te ensinar a lidar com as pessoas. Tirou-lhe a manta e pôs-se em cima dela num instante, tentando afastar- lhe as pernas.
Com reservas de força que ela desconhecia existirem, tentou defender-se do assalto. Sacudiu o seu corpo de lado a lado, para tentar livrar-se dele, escoiceou-o, de calcanhares juntos. Mas as suas pernas cediam, separavam-se, e depressa estaria exposta. Já não pensava em vencer, só em fazê-lo pagar por isso, fazê-lo saber quanto abominava esta violação.
As suas pernas separaram-se, a saia voou para cima, e ela viu que ele reagia à resistência.
Um último esforço desesperado antes de as suas pernas estarem presas à cama. O seu joelho, o joelho livre. Com a força que ainda tinha, levantou o joelho, abaixo da erecção, batendo-lhe com força nos testículos.
De olhos fechados e expressão gelada de agonia, ele murmurou um gemido gutural de dor. As suas mãos libertaram-na, pô-las na virilha e caiu para trás, contorcendo-se.
Ela observou-o fascinada, até ele deixar de se contorcer. Ficou deitado, muito quieto. Depois, recuperando, devagar, muito devagar, levantou os joelhos e virou-se para ela. A cara fê-la recuar com terror.
Aproximou-se, de joelhos, com a expressão deformada por ódio assassino.
- Puta imunda, vais aprender - rosnou.
Dizendo isto, a sua mão, enorme, subiu e desceu contra a sua face. Uma e outra vez, a sua mão abrutalhada foi contra a sua bochecha, o seu queixo, a sua cabeça.
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Tentou gritar, mas parecia-lhe que o cérebro estava desconjuntado e que
todos os dentes mexiam e enchiam a boca, os lábios feridos, inchando e impedindo a sua fala.
Não sabia quantas vezes ele lhe tinha batido ou quando acabou de lhe bater, mas parou, porque a sua cabeça já não andava de um lado para outro
como uma bola de pinguepongue. Conseguia vê-lo, enevoadamente através da
cortina de lágrimas, regozijando-se com o que tinha feito. Um sorriso sádico
desumano, abria-se na sua cara.
Sentia na boca o sabor acre do próprio sangue, e sentia-o escorregar para o
queixo. Permaneceu deitada, quieta, soluçando, o corpo desfalecendo como
um monte de carne e ossos sem vida.
- Assim está melhor - disse ele insensivelmente. - Agora sabes o que
te espera. Vá, recompõe-te ou levas outra.
Apoiou-se nos joelhos, pondo-se em cima dela. Ela percebeu que a sua
violência o tinha estimulado completamente, e esperou que o acto de necrofilia começasse.
Ele levantou-lhe as pernas, afastou-as bruscamente, sem que ela conseguisse resistir.
Entrou nela à medida que ela gemia com a laceração. Já estava informada
sobre o enorme taco a moto contínuo que estava dentro dela, destruindo e
rangendo no seu corpo rendido. Perdeu a conta do tempo, entrando e saindo
da consciência, uma boneca de trapos a ser mutilada.
Mas então, o seu espírito voltou atrás, saiu da escuridão para a claridade,
e a agonia que tinha afundado a sua cara ferida fora suplantada pelo sofrimento miserável das suas coxas abertas e do órgão violado.
Martelava dentro dela como se a quisesse matar, como um torturador
maníaco, e de repente a dor aguda que sentiu descer da nuca para os rins foi
tão intensa que ganhou voz.
Berrando por piedade, ouviu os seus próprios gritos que lhe saíam dos
pulmões. Os seus gritos apressaram-no, deu uma última galopada que quase a
partiu em duas, enquanto ela largava um último queixume angustiado, e
depois tudo terminou.
Conseguiu ouvir um bater pesado na porta, e uma voz abafada lá fora.
Sentiu o Demónio deixar a cama.
Tentou abrir os olhos, conseguiu abri-los um pouco, e, através das
fendas, viu-o aos pés da cama e avançar em direcção à porta. Com calma deliberada, vestiu as cuecas, as calças, a camisola interior depois, metendo a
camisa para dentro das calças, caminhou para a porta, que abriu, dando uns passos atrás.
O Sonhador estava à porta, com os outros dois atrás dele, no vestíbulo.
- Que se passa aqui - perguntou. - Ouvimos a.... - virou a cabeça, os
seus olhos fixaram-se nela, reagindo com incredulidade. Entrou no quarto, olhando para ela.
De repente, virou-se.
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- Seu filho da puta - gritou, e, com as duas mãos, atirou-se à garganta do Demónio.
Este levantou os braços num relâmpago, segurando os do Sonhador, separando-os. Com um só gesto, um dos seus punhos atingiu parte da cabeça do Sonhador, enquanto o outro foi directo ao estômago.
Este cambaleou e caiu com um som surdo.
Por um instante, a visão de Sharon pôde abranger três deles, não, quatro, pois o Sonhador rastejava, cambaleando. O grande, o Vendedor, agarrava o Demónio, fazendo-o recuar, falando-lhe em voz baixa. O mais velho, o Pão-de-Leite, segurava o Sonhador, implorando-lhe que não continuasse com a pancadaria.
- A mim ninguém me interrompe - gritava o Demónio. - E ninguém me diz o que está certo ou o que está errado. Essa gaja deu-me uma joelhada, magoou-me muito, e eu esbofeteei-a para lhe fazer ver quem é o patrão. Não fiz isto só por mim, mas também por vocês todos.
- Não faça nada por mim - explodiu o Sonhador. - Acredite, não vou ficar aqui a tolerar mais violência.
O Vendedor pôs-se entre os dois.
- Oiçam, não vamos continuar com isto em frente dela. Podemos es clarecer tudo, conversando. Não há nada que não possa ser resolvido se nos acalmarmos e tivermos uma conferência. Que acham, amigos? Vamos para o quarto ao lado onde podemos estar à vontade, tomar umas bebidas, e discutir ideias.
Encaminhou o Demónio para o outro quarto, e fez um sinal ao Sonhador para o seguir.
Enquanto o par se encaminhava, contrariados, para o vestíbulo, o Vendedor deixou-se ficar um pouco para trás.
- Vá - disse para o mais velho -, cuide dela. Sabe onde está a caixa de primeiros socorros; lave-Lhe a cara com água quente, e ponha-lhe aquele remédio para estancar o sangue. Depois, deixe-a descansar, amanhã estará boa.
Amanhã. Sharon virou a cabeça de lado para a almofada e gemeu; momentos mais tarde, foi envolvida pela escuridão.
Mais uma manhã. Um amarelo ténue era filtrado pelas nesgas da janela de madeira, era o Sol a nascer.
Acordou de um sono leve e espasmódico, precisando de muitos minutos para perceber onde estava e o que lhe havia acontecido.
Nunca antes, em toda a sua vida, se tinha sentido uma completa massa feita de sofrimento desde a cabeça à ponta dos pés. Nenhuma parte da sua anatomia fora poupada. A cabeça era um globo de dor. O queixo não se movia; um lábio e parte de uma face estavam feridos e ligeiramente inchados. Os braços presos, os ombros e o peito doíam constantemente. A sua greve 249
de fome também começava a fazer-se sentir. Tinha o estômago dilatado devido à
falta de alimento. As coxas e a zona genital estavam em chamas por causa do
vil castigo que tinham sofrido. Tinha fortes cãibras na barriga das pernas. E a
falta de descanso regular durante quarenta e oito horas consecutivas parecia
fazer contrair e saltar todos os seus nervos.
Pior do que tudo era a sua depressiva disposição suicida que se agravava.
No entanto, não podia negar que ainda tinha pequenas opções, opções
mesquinhas, para melhorar a sua sorte.
Com esforço, tentou pensar logicamente no seu futuro. Não via futuro
nenhum, e o seu espírito continuou vago.
Tentou reviver os acontecimentos da noite passada, e conseguiu reviver
alguns deles para seu pesar: sabia, finalmente, que não conseguiria aguentar
assim por muito mais tempo. Desta maneira, não havia hipótese de conseguir
alguma coisa, nem mesmo uma semelhança de dignidade. A sua resistência
era valente, corajosa, estava certa, mas só podia levá-la à morte. Quanto aos
seus raptores.... tinha de os reunir a todos, apesar do facto de o Sonhador se
ter imposto fisicamente ao tratamento que o Demónio lhe tinha dado, achava
ì que a culpa era do Sonhador, por ter formado este sinistro Clube de Fãs....
continuariam a deixá-la à fome, a bater-lhe, a violá-la, a tê-la prisioneira.
Não estavam abertos para a razão, eram maníacos homicidas determinados,
e ela sabia que não podia lidar com maníacos. Nem podia esperar por ajuda
de fora, isso sabia-o bem. Daí em diante, era a única pessoa a cuidar de si própria.
O seu objectivo principal seria a sobrevivência. Para o Diabo, a humilhação e a degradação. Precisava de viver. Nada mais importava agora. Apenas a
vida, viver, era o que contava. Não era o fornicar muito que a iria matar. Mas
a resistência às violações talvez a matasse. No passado, fosse qual fosse o grau de fraqueza, ela sempre tinha uma força. Sempre conseguiu sobreviver.
Precisava de concentrar o espírito nessa mesma força. Não importam as
condições que lhe forem oferecidas ela terá de as aceitar para poder
continuar a sobreviver.
Não era que antes não tivesse conhecido a degradação. Do mesmo modo
que, no passado, se submetera a agentes ricos, realizadores, produtores,
homens com dinheiro, deveria agora submeter-se a estes monstros viciados.
Le Garde meurt et ne se rend pas disse o comandante em Waterloo,
num livro que lera, numa daquelas colecções especiais dos clubes. O guarda
morre, mas não se rende. Merda. Em criança, teria mais senso; foge- se para
combater um novo dia. A cedência era a sua única defesa contra a morte. Se
não morrer, vive. Se viver, terá uma oportunidade para se vingar. No fim, os
monstros poderão mesmo matá-la, de qualquer modo. Ou talvez não. De
certo modo, a rendição era pelo menos um adiamento inundado de imagens.
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Só tinha inteligência para isso. Parou e meditou no ditado enquanto há vida há esperança.
Estava demasiado doente e fraca para outros pensamentos. Levantou a voz, chamando com toda a força que tinha:
- Está aí alguém? Estão a ouvir-me? Pode cá vir alguém? Esperou. Não houve resposta. De novo chamou por alguém, outra e mais outra vez, até a voz se lhe tornar rouca.
Frustrada, impaciente por fazer um contrato que a poderia salvar temporariamente antes que fosse demasiado tarde, esforçou-se por não ser tomada pela inconsciência. Eles precisavam de saber, precisavam de ser informados, antes de cair completamente doente e longe de recuperação.
Tentou reunir forças para gritar mais uma vez. Conseguiu, mas sabia que ninguém viria ao quarto.
No momento em que pensava que seria inútil gritar, abriu-se a porta do quarto. O grande, o que ela havia alcunhado de Vendedor, apareceu, olhando-a com ar interrogante.
Tentou encontrar as palavras, e depois de um intervalo conseguiu dizer em tom fraco.
- Está bem, vou portar-me bem. Farei o que vocês quiserem.
Tinham passado doze horas, e fazia noite outra vez. Deitada, de pulsos mais uma vez amarrados à cama, esperava pelo doce mergulho no sono. Viria depressa. Tinham-lhe dado o Nembutal dez minutos antes, e o tão desejado sono seria o seu último companheiro de cama.
Estava satisfeita com a sua decisão. A cedência às condições do inimigo havia sido um teste, mitigado pela sua fraqueza física, pela sua total incapacidade para resistir, mesmo se quisesse. O preço tinha sido horroroso, mas a compra da vida tinha valido a pena. Na verdade, a recompensa tinha sido mais gratificante do que esperava.
Depois da sua rendição, o Vendedor voltou com os outros para se certificar se ela tinha percebido bem o negócio. Ela percebeu, percebeu, repetiu-o mais do que uma vez. Colaboração. Sem resistência. Colaboração. Rejubilaram os monstros, os vampiros. Ficaram radiantes como se ela fosse uma conquista justa. Só o mais estranho de todos, o Sonhador, não reagiu com deleite e triunfo. Pareceu confuso e sem perceber.
A mudança na atmosfera, na atitude para com ela, no tratamento que lhe davam, havia sido quase mágica.
O Demónio saíra para celebrar com uma bebida, mas os outros, um por um, vieram de manhã e de tarde, expor a sua parte do contrato.
Deram-lhe três refeições leves, uma no meio da manhã, outra cedo, à tarde, e o jantar no fim do dia. Os ovos, os sumos, a sopa quente, a salada, o pão e a manteiga, e o café quente sucederam-se numa série de festins. Avisaram-na para, após um intervalo tão grande, comer calmamente,
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mas ela não precisou de seguir o conselho. Não foi capaz de acabar nenhuma refeição.
Libertaram-lhe a mão direita, para permitir que o sangue circulasse e para
que pudesse massajar o outro braço, e usar a sua mão livre para comer. À
tarde, durante algum tempo, o Sonhador desamarrou-a totalmente, e esperou
lá fora enquanto ela foi à casa de banho, e tomou um voluptuoso banho.
Depois disso, deu-lhe um robe em troca da sua blusa suja, e saiu. Disse-lhe
ser novo, que o tinha comprado para ela.
Vestiu-o, e esperou pelo sono. Quase não era um robe, parecia mais uma
minitoga que mal chegava às coxas, um robe em miniatura, de nylon branco,
com um decote fundo e aberturas de lado, mas era limpo, confortável, e de
tamanho exacto. Era o estilo de roupa de dormir anunciado e vendido por
encomenda nas revistas para homens, a espécie de homens que enfeitavam as
suas amantes artificiais antes de se masturbarem.
Depois de um banho e mudança de adorno, foi outra vez amarrada à cama
mas não se incomodou em protestar. Os ferimentos na face e no queixo foram
convenientemente medicamentados com pomada. Depois do jantar, o comprimido para dormir foi colocado na mesa-de-cabeceira, juntamente com um
copo de água fresca. Apetecia-lhe tomar o comprimido imediatamente, mas não ousou pedir.
Tinha a noção perfeita do que estava para lhe acontecer. Eles tinham posto
em prática as condições do contrato. Estavam à espera que ela também as
pusesse em prática. Não haviam de a querer drogada e adormecida. Fora
engordada, limpa e reparada para uma violação não-dolorosa, e depois do
jantar tinha-se preparado para o teste.
Enquanto esperava pelo primeiro, pensava em como iria lidar com cada
um deles. Tinha empenhado a colaboração, mas isso não incluía nenhuma
promessa de dádiva, de amor, ou calor. Incluía simplesmente passividade, sem qualquer resistência oral ou física. Seria difícil conter o seu veneno, o seu
instinto automático de se opor e de contrariar, teria de se lembrar constantemente que não se podia arriscar a perder a vida.
Apesar de compreender que não havia outra opção, odiava-se a si própria
por ter aceitado as condições. Esse ódio que sentia era aliviado pelo
conhecimento de que odiava os seus raptores ainda mais, abominava-os de tal
maneira que não podia ser descrito por palavras, só deixava um desejo de se
vingar contra a desumanidade deles, de fazer desaparecer cada um deles da face da Terra.
Queria que eles se apressassem, que viessem para o quarto, que acabassem depressa, para que ela pudesse tomar o comprimido para dormir, o seu escape temporário.
Apareceram pouco depois, um por um, para gozarem os prazeres
vaginais. Recordando a noite, tentou, desesperadamente, apagá-la da
memória, mas o caleidoscópio virava e reflectia as imagens bem presentes no
seu espírito. As horrorosas horas passadas tornaram-se nos momentos presentes.
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Primeiro o Vendedor. Fora o eleito para colher os primeiros frutos da colaboração.
Despindo-se, regozijou-se dela. Que ela só mostrara bom-senso em concordar ser amigável. Que ele fora dos que desaprovaram a táctica da fome e da violência física, portanto esperava que ela visse as coisas do ponto de vista deles, sem provocar mais sarilhos. Estava contente, feliz por tudo ter resultado. Ela tinha de acreditar nele, nenhum deles lhe queria realmente fazer mal. Como um grupo, eles eram tão decentes como qualquer grupo de homens que conhecera. Logo veria, eles haviam de o provar. E quando, dentro de semanas, a lua-de-mel acabasse, ele estava certo de que haveriam de se separar como amigos. Eles planeavam libertá- la dentro de semanas .
Foi o que ela ouviu. Secretamente, em troca da colaboração, rezou por não ter mais do que alguns dias disto. Mas, afinal, estes monstros não vinham de algum lado, não tinham de lá voltar? Não dariam pela falta deles? Mas, então, as respostas vieram. Era o mês de Junho. Os homens andavam de um lado para outro. A América era terra de férias, país de fadas, um panorama de delícias, sem fronteiras.
Então não iam ser só uns dias, mas, sim, semanas deste Auschwitz es piritual. Como poderia resistir a este cativeiro e tortura? Tinha na ponta da língua a vontade de lhe falar e de apelar para o seu senso de justiça. Mesmo num jogo louco, tinha de haver um certo grau de ética. Mas o instinto disse-lhe que não era a protestar a melhor maneira de começar a sua colaboração. Mordeu o lábio inferior inchado, e ficou silenciosa.
O brutamontes estava em frente dela. Automaticamente, começou a fechar as pernas, lembrou-se a tempo, era melhor deixá-las abertas. Sem resistência, lembrou-se. Mas que merda, ela não ia oferecer nada. Ele podia ter o seu corpo morto, nem um pouco de emoção.
- Tens uma camisa de noite muito provocante - disse-lhe ele. - Quem ta deu?
- Estava aqui.
Dizendo isso, levantou-lhe a camisa até à cintura, e ficou imediatamente excitado.
Tinha um tubo na mão.
- Importas-te - disse -, com isto será mais fácil.
Ela encolheu os ombros, e, relutantemente, afastou as pernas. Ele inclinou-se para a frente, avidamente, com o lubrificante, e ficou ainda mais excitado ao tocá-la.
Não queria vê-lo. Fechou os olhos.
O abuso começou. O ritmo começou, a baleia ofegante, que estava em cima, baixava e levantava-se brutalmente, com regularidade. Não sentiu nada a não ser a agitada injecção física. Não sentiu nada, não deu nada, não disse nada, e tentou não ouvir o seu extático monólogo. Mas se não tinha que sentir tinha de ouvir. A litania continuava:
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- Assim, sim, é bom. não é bom, querida?. que bom, ah, é bom, bom, bom.
Estava feito. Vestiu-se, estava satisfeito. Falou-lhe compulsivamente
acerca das mulheres que tinha tido. mas, Sharon, acredita, tu és a melhor. Não costumava aldrabar muito - era casado, a sua mulher era boa pessoa -, enganar muito era perigoso, e um mau hábito. Mas um pouco de variedade de vez em quando até melhorava um casamento. Ele também não costumava pagar. No seu trabalho. no seu tipo de trabalho. havia muitas mulheres que gostavam dele.
Ele estava à espera de um cumprimento e ela sabia-o, mas recusou-se a abrir a boca.
- Bem, obrigado, Sharon. Gostei muito. És especial. Até amanhã. Desejou-lhe boa-noite num tom imperceptível.
O Pão-de-Leite foi o segundo, deitando- se ao lado dela, com o seu rato branco pendurado.
Fosse lá o que fosse que ouviu do seu predecessor, ainda estava cauteloso sobre a colaboração dela. Estava nervoso, apologético, murmurando palavras sem sentido sobre leituras de manuais de sexo, e de como as mulheres eram capazes de ter relações muitas vezes durante o dia, sem afectar os seus órgãos genitais. Timidamente, acariciou o peito dela, ao mesmo tempo que falava incessantemente, como se tivesse uma diarreia oral pior do que o Vendedor, pois tentou explicar-se e desculpar-se do seu comportamento. Continuou a insistir que era um normal cidadão da sua comunidade, respeitado na sua profissão, trabalhador, um burguês convencional que se viu circunstancialmente envolvido na operação Clube de Fãs. Não quisera colaborar no rapto de Miss Fields, mas, uma vez que estava envolvido no projecto, não podia simplesmente retirar-se.
Quis gritar e perguntar-lhe o que estava, então, a fazer ali. Mas ele continuou com as suas desculpas, tentando obter dela o perdão " para que ele não tivesse de ser o bode expiatório.
Com azedume, impediu todas as palavras de perdão. Ela não lhe dera nada.
Percebeu então que o Pão-de-Leite não tinha ainda conseguido a erecção. "Aparentemente" pensou ela "estava acostumado a ter ajuda da sua mulher. A sua suposição foi pouco depois confirmàda, quando ele, timidamente, propôs desamarrar-lhe um dos braços. O alivio que iria sentir era tentador, mas estava decidida a não lhe fazer nenhum jeito. Disse-lhe rapidamente que não precisava de se maçar.
Ele suspirou, e começou gradualmente a levantar-lhe a toga até ao peito. Os seus seios brancos excitaram-no. Desajeitadamente, pôs-se em cima dela, lambendo-lhe os seios, beijando os mamilos castanhos.
Ela praguejou, respirando ao mesmo tempo.
Poucos segundos mais tarde, antes de perder a sua erecção, espetou a sua coisinha branca dentro dela. Foi a cima e a baixo poucas vezes, chiando e, em menos de um minuto, teve um rápido orgasmo.
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Saiu de dentro dela, desculpando-se por ter sido tão apaixonado. Tão apaixonado . Santo Deus, salva-me destes brutamontes. Vestiu-se num instante, enquanto continuava a exprimir-se confusamente sobre a linha fina que separa a sedução da violação, e, finalmente, disse (o velho ego masculino em ascensão), em tom satisfatório, que não havia violação desde que houvesse consumação. A verdadeira violação seria tão impossível como enfiar uma agulha a girar, não era? Uma vez enfiada a agulha, tinha havido colaboração, não era? Portanto, não tinha havido violação forçada, não era?
Não era, não, estúpido.
Estava com vontade de lhe dizer algumas. Com esforço, conteve-se, enquanto ele, cuidadosamente, lhe puxava para baixo a reduzida camisa de noite. Agradeceu-lhe formalmente, e deixou o quarto.
Podia fazer um tratado do sexo, baseada nestes brutamontes. Quem está a seguir?
O próximo, e terceiro, provou ser o que ela mais temia e odiava, o sabujo que lhe tinha batido até quase lhe esborrachar os miolos.
O Demónio estava a aprontar-se para ela.
-Disseram-me que te estás a portar bem.
Ele estava na cama. Era o seu momento mais dificil até agora. Todo o seu corpo estava tenso e pronto a resistir, mas não se moveu.
A camisa de dormir veio mais uma vez para cima, amontoada sobre o umbigo. Depressa, sem falar, ela levantou os joelhos e afastou as pernas. Não queria jogos. Queria que o inevitável acontecesse o mais depressa possível.
Viu que ele percebeu, com este gesto, que estava a demonstrar a sua vontade em participar. Ele estava entre as coxas dela.
-Estás a aprender depressa, menina. Sabia que havias de aprender. Agora que já sabes que tens comidinha, vais ficar muito mais feliz. Esfregou as brutas mãos nas suas coxas cheias, nas suas nádegas. -Está bem, agora deita-te, querida; e goza.
Estremeceu, mas tentou continuar estóica sem pronunciar qualquer som.
Mas agora, revivendo a cópula só com um participante, a lembrança fê- la tremer, e tentou apagar todas essas imagens do seu espírito. A função foi interminável, e, tal como antes, ele bateu como um martelo. Esteve duas vezes para se vir, teve de reduzir a velocidade para se conter. Em ambas as vezes, esteve tentada a mexer-se para ver se ele se vinha mais depressa e para se libertar dele, mas não se sentiu capaz de fazer movimentos para que não interpretassem isso como um êxito da parte deles.
Durou uma eternidade, e, por fim, quando os dois já estavam escorregadios com o suor, ele explodiu e o teste acabou.
Estava satisfeito. Ao deixar a cama, quis saber se ela tinha gozado. Encolheu os ombros.
- Eu sei, eu sei - disse ele, com um largo pestanejo. - Não queres
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admitir que adoraste. - Olhou para o relógio. - Bem, foram trinta e um minutos. Foi rápido.
Queria castrá-lo, queria amarrá-lo à cama e cortá-lo devagar, muito devagar, e gozar todos os minutos da orgia. Indefesa, fechou os olhos e rezou por Alguém lá em Cima que a ajudasse a saciar a sua fome de vingança.
E, finalmente, o último, o Sonhador.
Agua-de-colónia, ainda assim. Tomara um banho de água-de-colónia. Deitou-se nu ao lado dela, suspirando e olhando-a, como se ela fosse a sua Julieta. Um recital dos filmes onde a tinha visto, e de quantas vezes tinha visto cada um deles. Uma apreciação à sua incomparável beleza. Ela era Afrodite, saída do mar, deusa do Amor, ele era Zeus, e o filho dessa união seria Eros.
Positivamente louco, tinha a certeza.
Depois, fora de propósito:
- Usas alguma coisa, Sharon?
- Se uso alguma coisa? Então, não vês? Tenho a camisa de noite que tu me deste, só que tem estado praticamente toda a noite debaixo do meu queixo.
- Não, quero dizer lá dentro. Trouxe alguns anticonceptivos para te proteger. Devia ter-te dito desde o primeiro dia.
-Sim, uso uma coisa. Ponho-a sempre antes de viajar. Então, os símbolos sexuais não usam todos aparelhos intra-uterinos?
Completamemte dementado, este cabeça entorpecida. Ele acariciava-lhe o peito, o ventre.
- Só queria que soubesses quanto te amo - murmurou ele. - Se ao menos me amasses.
Ela olhou para baixo. O seu melancólico pénis ainda estava flácido. Ele tentou defendê-la do Demónio ontem, isso não podia ser negado, e ela podia vir a precisar dele para protector, mas mesmo assim não podia sentir nenhuma compaixão pelo responsável pela sua sorte.
Percebeu que ele esfregava o pénis caído na sua coxa esquerda, para ver se o espevitava. Pela sua respiração breve, ela adivinhou que estava a consegui-lo. Levantou-se para se pôr em cima dela, e ela viu que tinha acertado nas suas suposições.
Estava entre as suas pernas e ela viu que ele tremia antecipadamente. Com enfado, levantou os joelhos e separou-os muito; este acto parecia tê-lo inflamado até ao descontrolo. Atingindo o ponto de erupção, procurou cegamente a sua abertura, encontrou-a, e assim que tomou contacto com os seus lábios suaves, emitiu um som baixo, doloroso de desespero e ejaculou prematuramente.
Recuou. Um estudo sobre a miséria. Saltou da cama para as suas calças, encontrou um lenço, e rapidamente limpou-a, como se, limpando-a, o seu fracasso desaparecesse.
Eh, pá, há aí algum problema - pensou. Não é grande, nada que
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não pudesse ser ultrapassado. Por já ter visto a mesma coisa numa dúzia de
homens, sabia que se eles continuassem a fazer da mesma maneira trivial,
nunca conseguiriam nada, o problema só se agravaria e até ficaria pior. Mas ela não perderia tempo a aconselhar a pessoa que começou o Clube de Fãs.
Não, senhor, sofre, zé-ninguém!
Com frieza, observou-o a vestir-se.
Ele não conseguia esconder o seu abatimento. Estava em auto-análise,
passando o seu triste psique em frente dela. Isso apenas lhe tinha acontecido
uma ou duas vezes em toda a sua vida. Tentou analisar este falhanço. Ele era
uma vítima da adoração que há tanto tempo sentia por ela, desejando-a demasiado, sofrendo remorsos por forçá-la e persuadi-la a tê-lo desta maneira.
O seu psique não lhe iria permitir consumar o seu amor.
"Miúdo" - quis ela dizer-lhe - "olha para os teus pais, para os teus
temores de criança, as tuas frustrações de adolescente, a tua falta de auto-estima. Não me responsabilizes por isso ter acontecido, e também não
responsabilizes as mulheres sexualmente emancipadas que te assustam. O
problema é teu, não é nosso. Precisas de ajuda, e eu sou a pessoa que poderia ajudar-te.
"Mas não vou" -prometeu a si própria, zangada. "Sofre, porco impotente.
Ele estava de pé, diante dela, com a maçã-de-adão a mexer.
- Tu.... tu não digas nada aos outros - pediu-lhe. - Eles não compreenderiam.
- Não estou interessada em falar acerca de nenhum de vocês - disse ela. - Mas faz alguma coisa por mim.
- O que quiseres, Sharon.
- Tapa-me. - Fez um sinal com a cabeça para a mesa-de-cabeceira. - E
dá-me o meu comprimido para dormir.
-Sim. Com certeza.
Pôs-lhe a camisa de noite para baixo. Apanhou a manta que estava aos pés
da cama e puxou-lha até aos ombros. Levantou-lhe a cabeça, do travesseiro, e pôs-lhe o comprimido na língua, e depois deu-lhe um pouco de água para o engolir.
- Mais alguma coisa? - perguntou.
- Deixa-me dormir.
Ele não queria partir.
- Já não estás ferida, pois não?
Ela olhou para esse doido, cretino, com incredulidade.
- Quando foi a última vez que foste esmurrado? - perguntou-lhe ela, com azedume. Dizendo isto, virou a cabeça, ouviu a porta abrir e fechar e esperou pela última visita, o joão-pestana da sua infância.
Agora, que já passara o dia da colaboração, ela ainda estava acordada, esperando pelo sono. Viu no relógio que já tinham passado mais de vinte
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minutos depois de ter tomado o comprimido para dormir que nunca falhava. Rezou para que resultasse. Bocejou.
Fantasiou mentalmente uma entrevista cómica com ela própria, um hábito antigo.
Miss Fields, como se sente com esta sua nova participação no drama sério?
Hum! Direi, por alto, que tomei a directriz certa. Não podia continuar a fazer a mesma coisa. O meu público não me permitiria.
Está satisfeita com a sua última actuação?
Para ser sincera, não gosto do papel. Mas estou contratada por algumas semanas, não tinha outra escolha. Era fazer o que mandavam ou passar fome.
Miss Fields, aos 28 anos de idade, está satisfeita com a situação actual? "
"Ninguém está completamente satisfeito, se tiver um certo número de coisas em conta. A minha situação actualmente é melhor do que anteriormente, mas não é suficientemente boa para mim. Sou, essencialmente, uma alma livre. Amo a liberdade. Mas ainda estou sob contrato. Estou amarrada, sabe? Não serei feliz enquanto não estiver livre.
Miss Fields, há algum obstáculo entre si e a liberdade total? "Sim. O gambito do Clube de Fãs. Alimentar o Clube de Fãs é a armadilha mais perigosa de todas. Acaba-se por fazer o que eles querem, para sobreviver, e, no fim, ainda nos podem amarrar e até matar.
É verdade, Miss Fields?
Pode apostar o que quiser. na verdade, tenho medo.
Obrigada, Miss Fields. Seja bem- vinda!
Formou-se um sorriso sonolento na sua cara. Estes jogos mentais provocavam-lhe sempre sono. Sentiu-se pronta para não pensar, e receptiva a uma ausência total de sonhos.
Mas ainda havia qualquer coisa a bailar no seu espírito.
Colaboração era o status quo. Mantê- la-ia fisicamente viva, talvez, mas a raiva impotente que persistia no seu interior acabaria por comê-la, canibalizá-la e destruí-la. Viver assim não era viver. Ela emergeria, se emergisse, seria psiquicamente incapaz de lutar contra alguma coisa ou álguém, com o ego lobotomizado a sua carcaça vazia estaria unicamente preparada para um quarto sombrio na Casa de Repouso para Actores de Cinema.
Não poderia continuar assim, durante semanas, nesta degradação, com toda a sua vida à mercê deles. Tinha de sair dali de qualquer maneira. Quanto mais cedo, melhor, por amor à sua sanidade.
Mas como? O seu pensamento concentrou- se em Nellie e em Félix Zigman. Eles estiveram fora de alcance, mas agora tudo faria para os tocar ou alertar. A Nellie não podia, com certeza, continuar a acreditar na conversa que tinham tido na noite antes do rapto. Não depois de três semanas, não duas, não três dias, dias, sim. Félix acreditaria, com certeza, que ela havia
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desaparecido por capricho, que tinha agido impulsivamente, e deixou-se estar quieto. Não. Impossível. Agora já Félix estaria alarmado. A Neille também. As diligências para a encontrar teriam começado. Haviam de a encontrar.
Mas como? Como podia alguém encontrá-la, se ela própria não sabia onde estava ou quem eles eram?
Mas ela tinha de ser encontrada, e eles também tinham de ser apanhados e punidos por lhe inflingirem a degradação que estava a sofrer.
Era uma obsessão, agora, concluiu. De onde vieram eles? Que faziam antes? Quais os seus nomes? Como a tinham trazido para aqui? Mas aqui, onde?
Perguntas. Talvez Nell e Félix encontrassem algumas das respostas. Talvez ela os pudesse ajudar. Devia mesmo.
Tinha a cabeça demasiado húmida para prosseguir. Mas não se podia esquecer de continuar, de manhã. Esquecer o quê?
Hum! olá, velho joão-pestana, meu amigo. Sabia que virias.
Dormiu, dormiu, e estava ainda adormecida quando foi acordada às nove da manhã pelo Vendedor, que lhe trazia o pequeno-almoço.
Deixaram-na usar a casa de banho, desamarraram-na enquanto comia de voradoramente o pequeno-almoço, tendo-a, depois, amarrado.
Duas horas e meia depois, o Sonhador trouxe-lhe o almoço, libertou- lhe a mão direita, e ela devorou o pão de centeio, salada de atum, rodelas de maçã. Sentou-se ao lado dela, assustado, observando-a veementemente enquanto ela comia.
Tinha apenas havido uma breve troca de palavras.
Quando ele lhe atou mais uma vez o pulso à cama, e afastou o tabuleiro, ela perguntou.
-Que dia é hoje?
Levantando o relógio, respondeu.
-Sábado, vinte e um de Junho.
- Em que dia é que me raptaram?
Ele hesitou.
- Nós. nós fomos buscar-te na quarta-feira, na quarta-feira passada, de manhã.
Ela baixou a cabeça, e ele foi-se embora.
O quarto dia - pensou. - Sem dúvida, Nellie e Félix já deviam ter feito alguma coisa, contactado pessoas, e agora a Polícia já devia ter pistas.
Os seus pensamentos foram interrompidos por vozes em dois tons. Ficou surpreendida. Era a primeira vez que ouvia vozes no quarto ao lado. Pouco normal. Ergueu a cabeça, com esforço, e reparou que o Sonhadór havia deixado a porta aberta quando lhe tinha trazido o tabuleiro.
Dois tons de vozes.
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Uma, deduziu, devia vir de um rádio ou televisor, porque tinha tons altos e baixos, parecia artificial, e tinha a certeza de que era estática.
No outro tom, eram, as agora familiares vozes dos seus captores. Mas o que eles diziam não se conseguia ouvir claramente, devido à voz da rádio ou da televisão que se sobrepunha. Depois, como se ela o tivesse regulado por controlo remoto, o volume foi baixado para um zumbido imperceptível, e as vozes do Clube de Fãs tornaram-se mais distintas.
Tentou separar as vozes. A indolente pertencia ao Demónio, a mais alta, expansiva, pertencia ao Vendedor, a precisa, bem colocada, vinha do Pão-de-Leite, e a hesitante, mais baixa, era a do Sonhador. Ouviu com atenção, e o seu coração começou a bater mais depressa. Era uma oportunidade rara ouvi-los assim, chateá-los, brincar ao Watergate. Talvez conseguisse saber algum elemento acerca deles.
Distinguiu a voz indolente, com acento do Texas:
- Sim, claro que foi melhor, mas ela não é assim tão boa, não corresponde, nem de longe, ao que dizem dela.
- Francamente, não ia falar disso, mas uma vez que o assunto veio à baila. ela é linda, admito, mas, com toda a sinceridade, achei-a menos estimulante e menos hábil que a minha mulher - dizia o Pão-de-Leite.
Esses porcos, sabujos, falando dela como se fosse uma pega. pior, um objecto. Sabujos! "
O Sonhador, falando:
- Bem, como é que querem que ela seja tão boa como desejam, ou que seja hábil, se vocês a amarram durante todo o tempo e continuam a forçá-la?
O Demónio:
- Você, pelos vistos, não está a aproveitar-se lá muito dela. O Sonhador:
- Estou, sim. Ela é exactamente o que eu imaginava.
O Vendedor
- Estou de acordo com o nosso presidente. A situação podia ser melhorada, mas não é assim tão má. Eu estou a gostar. Quando é que tiveram um borrachinho destes?
O Demónio
-Bem, não o nego. Só contesto quanto a o maior símbolo de sexo do mundo não ser nada de especial. Pode ter muita classe, mas sexualmente não é super.
- Mas não vê . - retorquiu o Sonhador.
O Vendedor
- Acabou-se a conversa agora. É hora das notícias e eu quero ouvir o resultado dos jogos. Aumente o som.
O volume da televisão abafou as vozes dos seus raptores. Sharon Fields sentiu a raiva subir-lhe à garganta, amordaçando-a. Sádicos. Discutindo a pessoa dela como se fosse gado em exposição. Violando-a e depois avaliando a sua sexualidade. As últimas palavras de Sadie Thompson em "Chuva".
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Quais eram? Ah! Vocês, homens vocês, imundos, porcos nojentos São todos os mesmos, todos vocês. Porcos! Porcos!
Os seus pensamentos de sobrevivência foram brevemente substituídos por um ardente desejo. Descarregar os seus instintos de vingança neles. Destruí-los sem piedade. Castrá-los, um por um. A seguir, os seus pensamentos saltaram para a realidade, mas nutrir tal esperança, na sua posição, era ridículo.
Um grito, fazendo eco através da sua porta parcialmente aberta, in terrompeu as suas divagações.
A voz do Vendedor, um berro:
- Calem-se, falem mais baixo! Ouviram? Sky Hubbard anunciou um programa exclusivo acerca de Sharon Fields após o anúncio.
Ficou atenta, sem respiração, esperançosa. O som do aparelho de televisão foi posto ainda mais alto. O anúncio do laxativo podia ser ouvido nitidamente, assim como o da loção de beleza.
E a seguir veio a voz pontifical que ela tão bem conhecia, a de Sky Hubbard com um exclusivo a respeito dela nas Notícias da Tarde.
Soubemos ontem à noite, de fonte fidedigna, que a fascinante deusa do sexo, estrela de cinema, e um dos maiores sucessos de bilheteira, Sharon Fields, desapareceu da sua sumptuosa mansão em Bel Air na passada quarta-feira, e que alguns dos seus mais estreitos colaboradores notificaram ontem o Departamento de Pessoas Desaparecidas da Polícia de Los Angeles.
O coração de Sharon bateu violentamente, e ela endireitou-se na cama, determinada a captar todas as palavras.
Enquanto um porta-voz da Polícia se recusou a confirmar ou a negar a notícia - a voz sonora de Hubbard continuou - soubemos da mesma fonte que o Departamento de Pessoas Desaparecidas estava descontente com o relevo dado ao súbito desaparecimento de Sharon Fields e desconfiado de que pudesse ser um golpe publicitário com a finalidade de a pôr nos títulos dos jornais, agora que a estreia do seu novo filme, A Cortesã Real, estava para breve. A nossa fonte, um agente do Departamento de Pessoas Desaparecidas, que não quis ser identificado, afirmou: "Têm-nos feito passar por tolos - a vez mais notória foi em 1926 - e não queremos passar por néscios desta vez.
Sharon Fields, deitada na cama, sentiu-se desfalecer.
A voz de Sky Hubbard continuava:
O caso de 1926, a que o agente da Polícia se referia - e durante o qual o Departamento foi enganado e posto a ridículo -, envolveu a conhecida evangelista Aimee Semple McPherson. A irmã Aimee foi nadar ao Ocean Park, na Califórnia, não tendo voltado ao seu carro. O seu desaparecimento ocorreu em 18 de Maio de 1926. A Polícia de Los Angeles foi informada do caso e fez investigações a nível nacional. Um mês mais tarde, um bilhete pedindo um resgate teria sido entregue no Angelus Temple, afirmando que a irmã Aimee havia sido raptada e estaria reclusa no Sudoeste, e que seria
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posta em liberdade em troca de meio milhão de dólares. No dia seguinte, Aimee Semple McPherson reaparecia no deserto, perto de Douglas, afirmando que tinha estado prisioneira numa cabana durante cerca de um mês e que tinha conseguido escapar por uma janela; tinha andado pelo deserto durante horas. Contudo, a Polícia suspeitou. O seu traje estava imaculado, a sua pele não estava queimada do sol, os sapatos não estavam gastos. Foram feitas diligências para investigar o caso contra a irmã Aimee, mas pessoas influentes, entre elas William Randolph Hearts, interferiram, conseguindo que o caso fosse abafado. Mais tarde, veio a saber- se que a irmã Aimee tinha simplesmente fugido com um tal Kenneth Ormiston, empregado na sua estação de rádio, para um idílio secreto. "
Escutando, a fúria de Sharon Fields foi contra a Polícia de Los Angeles que ousou comparar o seu desaparecimento com o dessa mulher, McPherson.
A voz de Sky Hubbard continuava:
À luz deste caso inesquecível, compreende-se a razão por que a nossa Polícia está tão relutante em se tornar mais uma vez motivo de chacota. Segundo a nossa fonte, o Departamento de Pessoas Desaparecidas só entrará em actuação quando os colaboradores de Sharon Fields puderem proporcionar algumas provas de que o desaparecimento foi involuntário ou que houve jogo sujo. Com o objectivo de obter um comentário de um dos colaboradores de Sharon Fields, sobre este acontecimento, visitei pessoalmente o seu empresário, Félix Zigman, no seu escritório em Beverly Hills. O Sr. Zigman admitiu não saber do paradeiro da actriz, mas desmentiu firmemente que a Polícia de Los Angeles tivesse sido contactada. Mais um exclusivo das Notícias da Tarde de Sky Hubbard, as declarações do Sr. Zigman a este repórter.
Com a respiração suspensa, Sharon esperou e ouviu então a voz familiar de Félix. tão reconfortante ouvi-la outra vez.
Bem, é verdade que, desde o meio da semana, não sei onde se encontra Miss Fields, mas isso não é nada de extraordinário. Ela, ultimamente, tem trabalhado muito, demasiado, e disse-me que tinha alcançado um ponto de exaustão quase total. Também é muito pouco provável que tenha partido para Londres, na condição em que se encontrava, tão fatigada. Provavelmente decidiu, num impulso, desaparecer incógnita e passar um curto período num local isolado, para descansar. Nenhum de nós, íntimos dela, está preocupado. Antes, já uma vez desapareceu para umas curtas férias secretas. Posso-lhe assegurar que ninguém chegado a Miss Fields contactou o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Temos a certeza de que ela está bem, e esperamos saber dela dentro de muito pouco tempo, talvez no fim-de-semana. É tudo o que sei, Sr. Hubbard. Não há nada mais a acrescentar ao assunto. É só uma tempestade num copo de água.
O som da televisão na sala ao lado desapareceu, e o vazio foi nesse instante preenchido por gritos, berros, vozes jubilantes. Alguém gritava:
- Ouviram? Ouviram?
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Outra pessoa gritou:
- Estamos livres! Ninguém sabe o que aconteceu!
E ainda houve alguém que respondeu:
- Tens razão! Conseguimos! Não temos de nos preocupar! Ouvindo, Sharon Fields enterrou a cabeça no travesseiro. Queria chorar. Mas já não tinha lágrimas. Logo a seguir, fixou o tecto, e ficou ali deitada, quieta como um cadáver.
Não devia estar surpreendida - disse de si para si. Sabia há muito que havia pouquíssimas probabilidades de que Nellie ou Félix fossem à Polícia, envolvê-la em sensacionalismo que podia ser injustificado, e que se eles reportassem o seu desaparecimento, muito provavelmente a Polícia não o tomaria a sério.
Mesmo assim, dominando a razão, Sharon conseguiu que o desespero não deixasse afogar uma pequena réstia de esperança. Era compreensível, era
normal. Até Shakespeare disse que os miseráveis não tinham outro remédio senão a esperança. Na sua situação, tinha praticado a autodecepção na esperança de que o remédio resultasse.
Agora, a luz ténue que ardia por ela, algures, havia-se extinguido repentinamente. Nunca se tinha sentido tão perdida ou receosa.
O ranger das tábuas do corredor que dava para o seu quarto pô-la atenta. . Ouviu a voz do Vendedor gritar:
- Seus cretinos, qual de vocês é que deixou aberta a porta dela? O instinto disse-lhe que não lhes devia dar a conhecer o que tinha ouvido, nem o que eles disseram, nem a emissão da televisão. Fechou os olhos e fingiu que dormia. Ouvia duas vozes agora a aproximarem-se. Uma pertencia ao Vendedor, a outra ao Demónio. Manifestamente, olhavam para ela do
umbral da porta.
O Demónio dizia:
- Jesus! Quem é que deixou a porta assim? Ela deve ter-nos ouvido falar e também ouvido os nossos nomes.
- Está a dormir, está tudo bem - confortou-o o Vendedor. - Bem, da qui em diante, temos de ter mais cuidado.
A porta foi firmemente fechada. Os passos deixaram de se ouvir. Sharon abriu os olhos.
Estava agora bem acordada, para o mundo, para a sua situação, para a necessidade de inventar uma esperança que já não existia. Tentou recordar o
que estava no seu espírito na véspera, antes de adormecer. Sim. A necessi dade de fazer alguma coisa por ela própria. Se o mundo exterior estava cego para a sua situação, só havia uma pessoa na Terra que poderia fazer ver ao mundo a verdade e o que realmente lhe tinha acontecido. Uma pessoa. Ela própria. Só ela: Não havia mais ninguém. Apenas Sharon Fields podia fazer com que ela fosse salva.
E o que poderia ser feito, considerando a sua posição limitada e restrita? Procurou respostas, opções. Com a sua força ressuscitada, a sua motivação
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interior para vencer esses quatro monstros, o espírito tornara-se-lhe incrivelmente fresco, calmo, lógico, e conjurava várias hipóteses.
Um facto era irrefutável. Apesar de perdida como se sentia e abandonada como estava, não se encontrava só. Estava com mais quatro pessoas que tinham contacto com o mundo exterior. Por isso, tinha pessoas com quem comunicar, e que podiam servir de ligação com o mundo civilizado.
Mas como poderiam elas ser usadas?
De repente, veio-lhe à mente, como um relâmpago, uma lembrança dos anos passados, que lhe tinha feito formular a mesma pergunta a seu respeito
muitas vezes durante a sua longa odisseia de Nova Iorque a Hollywood.
Como ia este homem, esse homem, este contacto, ser usado. No passado, encontrara sempre os meios. Olhando para trás, relembrando as suas experiências com outros homens -não eram diferentes destes, igualmente sórdidos, grosseiros e sabujos -, examinou a maneira como os tinha usado e manipulado para alcançar um tipo diferente de liberdade. Nalguns casos, o desafio tinha sido mais aliciante do que aquele que tinha de encarar agora, porque os homens que tinha manipulado eram mais sofisticados, astutos, espertos. Mas, mesmo assim, tinha conseguido, tinha triunfado. Tinha esmiuçado as suas fraquezas, brincado com eles, usado os homens como eles a tinham usado.
Bem, porque não? Porque não jogar outra vez esse detestável jogo? Agora, três dias depois, começava a conhecer os seus feitios. Não tinha
factos. Mas havia recolhido elementos sobre as suas vulnerabilidades, e isto fê-la compreendê-los melhor. Esses provérbios antigos que dizem que se pode conhecer o carácter de uma pessoa pelo cão que tem, pelos livros que lê, pelo modo de jogar as cartas, não eram mais verdadeiros do que a sua descoberta sobre a personalidade de uma pessoa pelo seu comportamento no quarto.
O Demónio, por exemplo. Era do Texas, tinha a certeza. Ganhava a vida trabalhando com as suas mãos. Não tinha educação, mas era inteligente. Era sádico, e por isso o mais perigoso. Era paranóico por ser um prejudicado, por não ter vencido na vida. Mas havia uma fenda na sua armadura. Tinha um ego muito forte e sabia lidar com mulheres, virá-las. Considerava-se um superamante. Até agora, tinha- se recusado a corresponder-lhe. De facto, a ideia repugnava-a. Mas se ela correspondesse? E se ela reforçasse deliberadamente o seu ego sexual? E se ela o fizesse sentir que era sensacional? Aonde levaria este jogo? Um tiro distante, verdadeiro, mas que podia resultar, levando-o até a ficar desarmado, a confiar nela, a revelar até mais álgo sobre si próprio.
Ou o Vendedor. Muito mais fácil, muito mais vulnerável para a manipulação. Era um fanfarrão, vangloriando-se, fazendo-se passar por mais do que era, tentando sempre esconder todos os fracassos que tinha dentro de si. Muito inseguro das suas proezas sexuais. Ficaria provavelmente aliviado
com a oportunidade de permitir que fizessem amor com ele. Gostaria de descansar, de não ter de provar o que era, de gozar inteiramente. Nessas
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circunstâncias, feitas de modo que ele se sentisse com sucesso e expansivo, talvez falasse mais e fosse capaz de colaborar, talvez parte do que revelasse fosse verdade.
O Pão-de-Leite, por exemplo. Havia confessado ser um homem muito ligado ao seu trabalho. O seu insípido casamento durava desde há muito tempo. Queria variedade, estímulo, conhecer caminhos exóticos, desconhecidos, mas tudo de maneira a não ter complexos de culpa. Era tímido, nervoso, preocupado. Se lhe mostrasse ter confiança nele e lhe desse um pouco de juventude, um caminho de prazer sem culpas, talvez ele abrandasse, saísse da sua fachada constrangida, e se sentisse grato a ela, e talvez até falasse de coisas que, de outro modo, calaria.
Finalmente, o Sonhador. À superfície, poderia parecer o mais fácil de manipular, devido ao imenso amor que sentia por ela. Mas, nalguns aspectos, seria o mais difícil de enganar. Vagueava entre a fantasia e a realidade. Tinha uma sensibilidade de criador, albergava bons instintos que tinham sido distorcidos por uma vida de fantasia onde tentava integrar-se. Talvez se conseguisse fazer alguma coisa. Era extremamente vulnerável. Havia construído uma vida ilusória com ela, e agora queria que isso se realizasse. Tinha-se simplesmente apaixonado pela Sharon Fields que ele pensou que existisse, não pela Sharon Fields que encontrou em pessoa. Suponhamos que se tornava na deusa que ele esperava que ela fosse? Que preenchia todos os sonhos que ele tinha projectado na sua vida em conjunto? Que fingia aceitar o seu amor, estar honrada por o ter e correspondesse? Que conseguia reabilitar a sua virilidade? Uma série de trabalhos, mas todos estes esforços seriam fortemente compensados. Mais do que os outros, talvez ele se tornasse o seu confidente e até. sim, até, consciente ou inconscientemente, um aliado.
Hum! Os materiais estavam ali. O barro cru para ser moldado, amassado por si própria. Mas qual seria o fim prático de tudo isto?
Examinou os objectivos razoáveis, e os vários passos que teria de percorrer para ao menos alcançar alguns desses objectivos. Enumerou men talmente os passos mais imediatos e simples.
Precisava de os persuadir a desamarrá-la, embora continuando prisioneira numa área limitada, mas, claro, com liberdade de movimento dentro dessa área. Tinham de a deixar desamarrada, a troco dos prazeres que disso tirariam, prazeres esses que ela garantiria, uma vez livre.
Liberdade dentro desta cela seria um começo. Poderia até levar à liberdade dentro desta casa, liberdade para ser usada consoante a maré, e, eventualmente, para fugir se se proporcionasse alguma oportunidade. Mais tarde, a liberdade limitada poderia dar-lhe acesso a uma arma. Talvez a pistola do Demónio, e, com esta, mais uma probabilidade de evasão. E, de seguida, dar-lhe mais largas para conseguir que um deles se apaixonasse verdadeiramente por ela, que acreditasse nela, e que se convencesse de que ela fugiria com ele; essa seria mais uma hipótese. Mas se não houvesse nenhuma oportunidade para fugir, absolutamente nenhuma, o que provavelmente
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aconteceria, havia um plano de alternativa que poderia resultar operacional e que poderia, simultaneamente, atingir o mesmo objectivo, que era a liberdade.
Tinha de utilizar o seu jogo de sexo com estes homens, desencaminhá-los, abrandá-los e programá-los, de modo que um deles, inconscientemente, servisse de ponte para o mundo exterior. A ideia era vaga, indefinida ainda, mas merecia mais atenção, teria de pensar nela outra vez, tentar desenvolvê-la.
Acima de tudo, e mais importante, ela tinha de começar a trabalhar cada um deles, a fim de fazer com que se deixassem escorregar e revelassem as suas verdadeiras identidades. Os seus nomes, os seus empregos, as suas moradas. Este conhecimento seria precioso se conseguisse estabelecer um elo de ligação com o exterior, pois iria fornecer pistas acerca dos seus raptores, pistas que poderiam levar os outros a saber onde ela e os seus captores se encontravam nesse mesmo momento. De qualquer modo, teria de saber quem eles eram para se poder vingar mais tarde, se ainda existisse. Mas a parte vital do processo de recolha de elementos era estar sempre atenta a qualquer comentário ou observação que fizessem em conversa ou mesmo sob tensão, e que lhe permitisse identificar o sítio onde se encontravam. Nunca lho diriam, directamente. Mas talvez indirectamente lhe dissessem alguma coisa, sem disso se aperceberem.
Uma vez na posse desta informação, teria de encontrar os meios para a levar ao mundo. Seria provavelmente impossível, mas não havia outro jogo a fazer, nem outra esperança a agarrar. Tudo teria de ser feito a seu tempo com cuidado, com subtileza. Caso algum deles desconfiasse que ela sabia onde estavam ou quem eles eram, seria a sua morte certa.
Usá-los. Muito bem. Para se utilizar um homem, para obter, em troca, qualquer coisa dele, tinha de se dar alguma coisa. Em troca de uma colaboração mínima, já tinha recebido uma recompensa mínima, alimento, nada
mais. O tipo de colaboração que tinha negociado era insípido. Dava-lhes muito pouco, mas também recebia muito pouco em troca. Se desse mais, talvez tivesse mais.
Que tinha ela para oferecer em troca?
Tinha exactamente o que eles queriam, o motivo por que correram tantos riscos, e por que iriam pagar. Tinha a própria imagem que pensavam ter
capturado. Tinha o potencial de sexualidade no qual eles ao princípio acreditaram. Era um símbolo sexual, uma deusa do sexo, tinha o esplendor de
grande estrela que ela tentara aniquilar. Tudo ali estava, era inerente à sua pessoa, precisava simplesmente de lhes proporcionar a imagem da Sharon Fields que eles queriam e que ansiavam.
Sim, o seu cavalo de Tróia era a fantasia sexual em que fora envolvida. Detestava ter de reviver e participar no velho jogo. Tinha-se afastado de tudo isso, mas apercebera-se agora de que precisava de recuperar terreno. Detestava a degradação que tudo isto envolvia. Era um desporto feio, usar o
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corpo como chamariz, isca, narcótico, ratoeira. Mas, cos diabos, foi-lhe bem útil no passado, e agora podia tornar a sê-lo. Desprovida de tudo, o seu corpo e as suas qualidades teatrais eram as únicas armas.
O seu espírito voou para os homens despersonificados do seu passado, o John isto, o Duane aquilo, o Steve isto, o Irwin aquilo, todos homens brilhantes, talentosos, que se deixaram submeter aos mais óbvios e insinceros ardis e que a ajudaram a atingir o estrelato, riqueza, fama e liberdade.
Deitada na cama, recorrendo ao velho jogo que há tantos anos deixara de praticar, sentiu-se estimulada e excitada pelo desafio e pelas possibilidades.
Podia fazê-lo? Devia?
Decisão.
Sim. Começaria imediatamente, hoje mesmo, esta noite. Irá a verdadeira Sharon Fields levantar-se? A verdadeira Sharon Fields ficará, antes, deitada, mas será compensador. Teria de mudar as suas tácticas radicalmente, mas com inocência, de modo que a sua viragem não fosse detectada. Tinha de mudar, assim como, certamente, eles tinham mudado. Porque, seja o que for que os seus quatro captores antes tenham sido no mundo civilizado, teriam de ter sido diferentes, ter sido conformistas para sobreviver. Mas, a partir daí, tendo ultrapassado o risco inicial, tendo transformado a fantasia em realidade, perderam todas as inibições, todos os constrangimentos, toda a decência. Tornaram-se desumanos. Muito bem. Ela também podia voltar a ser o que já fora, o jovem ser humano cru, rude, duro, da Virgínia Ocidental, Nova Iorque e primeiros anos de Hollywood. Podia mais uma vez ser ninguém de nenhum lado que se utilizava dos seus dons a fim de passar por cima de tudo na sua determinação de sobreviver e se libertar da escravidão.
As suas atitudes, a partir deste momento, estavam a cristalizar-se na sua cabéça. Iria fazer o melhor papel da sua vida, a melhor actuação desde sempre. Precisava de se transformar de Susan Klatt em Sharon Fields, a lenda, o sonho, o desejo, o símbolo do sexo, a raison d'être do Clube de Fãs. Precisava de se tornar na sensual, quente, acrobática, erótica e ninfomaníaca que estes desgraçados imaginaram e desejavam. Precisava de actuar para eles, agradá-los, maravilhá-los com coisas que eles nunca tinham experimentado.
Iria conseguir? As suas últimas dúvidas dissiparam-se. Já fizera tudo isso, o papel inteiro, a ilusionista por excelência. os seus sedutores e lascivos olhos verdes, a sua encantadora boca húmida entreaberta, a sua sedutora voz gutural e ardente, arquejante, o seu famoso peito levantado e firme, os bicos duros e espetados (à custa de beliscões), a carne do torso que se movimentava lentamente e as coxas involuntariamente ondulantes, prometendo delícias orgásticas e êxtase. e depois a entrega. beijos violentos, beijos com língua, nos lóbulos das orelhas, nas pálpebras, no umbigo, no pénis. pancada, massagens, festas no peito, nas costelas, no estômago. agarrando as nádegas, os testículos. e depois, depois. o serviço, o cliente
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tem sempre razão. o trabalho de mão, sem pressa, firme, mais rápido, depressa. ou o jogo dos números, o 69. ou o coito, cópula carnal coa bitando, emparelhando, fornicar simplesmente. com as pernas abertas, sentados, à chinesa, por detrás, lado a lado, de pé, qualquer coisa, qualquer coisa, é só dizer. girando, convulsivamente, arranhando, mordendo. dentro, dentro, mais, mais, até ao fim. erupção, lava fundida, amor,
choramingando ozando, o melhor, nada melhor. Oh Deus, Deus Todo- Poderoso, já o fizera, o circo da concubinagem, e podia fazê-lo outra vez.
Tinha de o fazer. Fá-lo-ia. Aplicaria o produto da sua imensa experiência, o seu conhecimento profundo de feitiçaria sensual, tirado dos inúmeros prepúcios do seu passado. Tinha de embelezar este conhecimento com os efeitos da perfeita amante não existente. Tinha de se tornar lasciva, encarnada, mas com classe, com distinção e estilo. E, através destes artifícios, tinha de converter cada um dos quatro captores no seu amante especial, privilegiado.
Sim, sim, era essa a chave para a fuga. fazer com que cada um deles acreditasse que era o favorito de Sharon Fields, que era o que a tinha excitado mais, aquele a quem ela era mais devotada. Por isso, tinha que os tornar menos constrangidos, menos cuidadosos, mais prestáveis para fazerem favores. Cada um deles devia querer ser o homem da vida dela. Precisava, lentamente, de saber a autobiografia de cada um, o feitio, os seus hábitos e necessidades, e, depois, explorar as vulnerabilidades de cada um. Com este poder seria até capaz de pôr uns contra os outros - já havia terreno fértil para isso, sabia- o -, e precisava sagazmente de semear a discórdia e tentar dividir a casa. Era um jogo perigoso, esse, mais perigoso do que qualquer outro papel representado no passado. Mas, depois, o prémio era muito melhor do que qualquer outro.
Mexeu-se na cama, sentiu a boca franzir-se num sorriso felino. Porque, no fim de contas, isto era a esperança. Porque não? Era qualquer coisa a considerar. Podia haver uma recompensa.
Pela primeira vez durante o período do seu rapto, Sharon Fields sentiu-se viva.
Queria chamá-los. Queria que a máquina começasse a filmar. Estava pronta para o maior desafio da sua carreira.
Oh, Deus, como ia ser bom ser actriz outra vez.
Capítulo décimo
Era a noite de estreia de Sharon Fields como actriz.
Embora odiasse o papel que tinha escolhido, sentiu uma profunda satisfação profissional no estilo da que sentia quando se via obrigada a representar. Tinha a certeza de que a sua imagem de símbolo sexual fantasiado fora íntegra e tinha tido êxito muito para além das suas mais impetuosas expectativas. O seu sucesso podia ser medido pelos
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conhecimentos de informação que tinha recebido e pelos prémios ulteriores que lhe tinham sido prometidos. Por certo, uma actuação deslumbrante com classificação de quatro estrelas.
Agora, ali deitada, ainda amarrada à cama - o seu palco -, esperava pelo bis que já tinha decidido dar. À medida que ia esperando, decidiu fazer uma crítica objectiva ao papel desempenhado por Sharon Fields durante as duas horas passadas.
Primeira actuação.
No palco, com o Demónio. Esta exigia todas as nuances artísticas na sua lista de truques dramáticos. Dos quatro homens, o texano era de quem menos gostava. Estava mais consciente do que nunca das suas qualidades naturais e destreza. Era dos que não se deixavam enganar facilmente.
Quando ele veio para a cama e começoú a tocar-lhe, ela fingiu estar tão reservada e tenaz como antes, oferecendo reacção, aceitando a sua presença sem resistência, como se fosse esta a única concessão. Mas assim que ele abriu as suas pernas e entrou nela, a charada começou. O compasso, sabia-o, tinha de ser perfeito. Durante um curto período do coito, a sua atitude de não-correspondência foi exactamente igual à da noite anterior. Aceitou os seus primeiros movimentos, inerte, quieta, permanecendo fria, inflexível, apática, como se fosse uma das primeiras mulheres que ele tinha tido. Depois, gradualmente, como que contra o seu desejo, transformou-se na fêmea activa. As suas ancas começaram a levantar-se, as nádegas a ondular, o corpo inteiro começou a elevar-se e a baixar-se em cadência ritmada. Os seus olhos estavam fechados, os lábios, molhados, entreabertos, para mostrar que estava a saborear, e, finalmente, deixou que saíssem gemidos de êxtase da sua garganta. O prazer que ele teve ao ver que a tinha forçado a corresponder, contra o seu próprio desejo, excedeu tudo o que ela imaginara. Era a sua glória. Tinha conseguido. Abrandando os movimentos, disse:
- Vês, miúda, vês? eu sabia que ias adorar se quisesses colaborar. Não quiseste ceder. mas, vês, tu querias, desde o princípio. adoras isto. Nunca gostaste assim tanto, pois não?
- Não - suspirou. - Não, nunca. por favor. por favor. não páres.
-Não vou parar, querida.
-Faz com mais força.
- Podes ter a certeza de que o vou fazer, querida. Tudo o que tu quiseres. As suas incessantes e dolorosas estocadas torturavam-na, mas ela continuava a gemer por mais.
- Oh, meu Deus, desata-me. deixa-me agarrar-te. eu. oh, deixa- me....
Já o tinha descontrolado, sabia-o, e com ele já arrumado, podia sentir a sua alegria e tristeza de já ter acabado.
Enquanto se vestia, ele não pôde evitar a sua alegria com a proeza.
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- Isto é que foi, não foi, miúda? Tens de admitir que gozaste os minutos todos disto.
O fim da sua actuação requeria uma transição de fêmea desinibida para virgem embaraçada, como se estivesse envergonhada do muito que tinha revelado de desejo físico. Recorreu assim a todo o seu potencial dramático.
Primeiro, evitou olhá-lo.
- Não gostaste - repetiu ele, sardonicamente, inclinado para ela. Ela lançou-lhe um olhar enigmático, pestanejou como se a admiração fosse involuntária e afastou rapidamente a cara para a almofada para tornar claro que realmente tinha gostado mas que estava demasiado envergonhada para dar a conhecer as paixões que ele lhe tinha despertado.
- Sim - disse ele, endireitando-se. - Bom, vai levar algum tempo, mas virás a ser tudo aquilo para que foste feita. Eu sabia que era assim, só faltava o homem certo para te dar a volta.
Ela fingiu modéstia.
- Eu. eu não sei o que é que me deu, o que me levou a portar-me assim.
- Eu sei o que te deu, miúda - gabou- se ele. - Fui eu que te dei da maneira que querias.
Ela não fez comentários.
- Sabes, tenho cá a impressão de que gostarias de outra sessão. Aposto que queres que venha cá de novo hoje à noite, não queres?
Ela comprimiu os lábios.
- Olha, miúda, de acordo com as regras, tenho de dar a vez aos outros. Mas eles ficam logo arrumados. Depois de estarem a dormir, eu volto para a repetição. É isso que queres? Um bis?
Ela abanou a cabeça imperceptivelmente.
Ele sorriu com um largo arreganho, e saiu a assobiar.
Crítica desta sessão uma virtuosa exibição foi oferecida por Miss Sharon Fields no seu, longamente esperado, regresso ao teatro.
Segunda actuação.
No palco, com o Pão-de-Leite. Nada de papéis de virgem, agora. Este estava farto da virtude e da monotonia de casa, precisava de exotismo. Ora,
ela tinha acabado de passar umas semanas perante as câmaras a representar a Messalina, a ninfomaníaca agressiva.
Agressiva, sim, esse é que era o tema, mas não dominadora, nem in timidativa. O suficiente para lhe tirar os problemas, despi-lo de culpas, tornar vivos os seus sonhos mortos e devolver-lhe a juventude.
O Pão-de-Leite, pálido, estripado, ratinho prostrado, estava na cama. Engoliu em seco quando ela virou o magnífico corpo nu para ele. Pela primeira vez, os olhos dela mostraram interesse.
- Antes de fazermos alguma coisa - disse, baixinho -, tenho de lhe fazer uma confissão. Talvez não devesse, mas vou dizer-lhe. Espero que não se importe que eu seja honesta consigo.
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- Não, não, diga o que lhe apetecer, Miss Fields. Tem todo o direito.
- Sabe como fiquei ressentida por ser raptada, e violentada brutal mente.
- Sim, você bem sabe que eu não quis participar nisto.
-Pois, eu tenho pensado nisso. Tenho tido muito tempo para pensar. Continua a não me agradar, como deve perceber. Continuo a achar que está errado. Mas, como não tenho outro caminho, resolvi ontem desistir, como sabe, e tirar o melhor partido de uma coisa má. De qualquer maneira, tenho de saber o mínimo de cada um de vós. Na noite passada estive a examinar os meus sentimentos acerca de vocês quatro, e quer saber uma coisa?
- O que é, Miss Fields? - perguntou ele, com voz incerta.
- Devo confessar que descobri que, enquanto mantinha um ódio incrível pelos outros três, não consegui sentir isso por si. Quer goste ou não, não pude deixar de sentir mais simpatia em relação a si do que a qualquer um dos outros. Vi que você se juntou a isto. a este projecto. contra vontade, e que foi arrastado pelos outros, sem defesa. De certo modo, temos um laço comum. Somos ambos vítimas indefesas.
O semblante preocupado do Pão-de-Leite desanuviou-se:
- Sim, sim, Miss Fields, isso é absolutamente verdade.
- Por isso a minha atitude em relação a si é muito diferente da que tenho para com os outros. Sou capaz de pensar em si, em separado deles, tenho a certeza de que você é o único ser humano nesta casa. Você é basicamente galante e gentil, é um cavalheiro.
Ele olhou-a, como se fosse desmaiar de gratidão.
- Obrigado, Miss Fields, muito obrigado. Nem calcula como aprecio isso.
- E ainda outra coisa se tornou clara para mim. Dos quatro, você é o único que sabe como tratar uma mulher. Penso que é por causa da sua maturidade, e porque esteve casado mais tempo, e aprendeu a lidar com as mulheres.
Ele estava cheio de gratidão.
- Dito por si. nem sei o que dizer.
Ela sorriu vagarosamente para ele, com o seu sorriso mais sensual.
- Não diga nada. Limite-se a aceitar o facto de que você é o único que eu não me importo de ter na minha cama. Na verdade. bem, talvez eu não devesse dizê-lo.
- O quê - perguntou ele, ansioso.
Os olhos verdes moveram-se sobre o corpo dele.
- Eu estava à espera de o ver. Quando a pórta se abriu, esperava que fosse você. - Desviou os olhos por um instante e, depois, encarou-o francamente. - Sou uma mulher, uma mulher nova e saudável, e gosto de fazer
amor com o homem certo. Os outros, o que eles fizeram não tem nada a ver com o amor. Mas na noite passada é que vi o prazer que tive consigo.
- Você. você diz isso realmente a sério? - perguntou ele, a medo.
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- Por que razão é que iria dizê-lo se não o pensasse? De resto, posso mostrar-lhe se me deixar. Se as minhas mãos estivessem livres, se eu pudesse ser de novo uma mulher a sério, eu agarrava-o nos meus braços, mostrava-lhe como era.
Viu os olhos dele desviarem-se para os pulsos presos à cabeceira da cama, e percebeu que ele estava tentado.
- Eu. eu não sei se eles me deixam. Você não devia estar assim atada e eu vou falar-lhes nisso. Magoa-a e é injusto.
- Que amor - disse-lhe ela, meigamente, suspirando. - É certo que não lhe posso tocar, mas não me importo que me toque.
- Isso é o que eu quero - disse ele, excitadamente.
-Então, o que o faz esperar? Chegue-se mais.
Ansioso, ele estirou o corpo ao longo do dela.
- Nem sabe como é maravilhosa, Miss. Miss Sharon. Sharon. - As suas mãos levantaram o robe acima do peito e depois desceram até aos seios e, hesitantemente, apalpou-os.
Ela arqueou as ancas e mexeu a cabeça na almofada numa resposta apaixonada.
- Ohhh - gemeu ela. - Você sabe como tratar uma mulher. Deitou-lhe uma olhadela e viu que ele estava pronto. - Não me faça esperar, querido. Vá. Agora.
Ele entrou nela tão depressa que ela nem percebeu como é que tinha sido possível. Furou-a como um coelho alucinado, mas, ao fim de dois minutos, deu um guincho agudo, veio-se e caiu-lhe por cima como um homem atingido no coração.
Para ali ficou, perto das pernas dela, a arfar como se lhe doessem as coronárias.
Ela fixou-o, e disse-lhe:
-Também consegui. Vim-me. Você foi incrível.
Ele sentou-se, sentindo-se francamente exáusto.
- Sim - disse, sufocado.
- Obrigada - murmurou ela.
- Sharon - murmurou ele. - Eu. eu.
- Não me deixe. Venha cá e deite-se aqui ao meu lado. Ele obedeceu-lhe cegamente.
- Nunca conheci ninguém como você.
- Espero que não esteja desapontado - disse ela, em voz baixa. - Eu só quero ser tão boa como a sua mulher.
-É melhor, muito melhor.
-Espero que sim.
- Nunca fui capaz de estar tanto tempo com a Thelma. Vou dizer-lhe a verdade. Nunca consegui fazê-la ter um orgasmo, e sempre achei que era por minha causa.
-Não, não podia ser por sua causa.
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- É tão diferente, tão apaixonada.
-Só porque você me torna assim, querido.
- Este é o dia mais feliz da minha vida.
- Haverá muitos mais - prometeu ela.
Ele saiu da cama:
-Não posso esperar até amanhã.
Ela sorriu.
- Amanhã fá-lo-ei ainda mais feliz. Há uma data de coisas que ainda não experimentámos.
Enquanto se vestia, ele ficou a olhá-la como se ela fosse o Taj Mahal das mulheres.
- Desejava poder ser-lhe útil - disse ele. - Quero que eles a desatem, quero que esteja bem. Tenho um aparelho de televisão a mais. Podia pô-lo aqui durante o dia.
- Isso seria maravilhoso.
- Não posso tomar o seu tempo todo - disse ele, alegremente. É melhor ir andando. Até amanhã.
- Ficarei à sua espera.
Crítica à sessão anterior Miss Sharon Fields era um caso à parte no papel difícil de rainha sofisticada. A sua sinceridade brilhou como um farol. Bravo!
Terceira actuação.
No palco, com o Vendedor. Uma actuação diferente neste seu novo papel. A mulher experiente que aprecia o estilo e a técnica de um homem do mundo. Encontrar finalmente alguém que sabe o que faz e que pratica o que prega é uma aventura única. Que alívio, depois de tantos amadores, com muita conversa e poucos factos.
A baleia nua estava ao lado dela na cama.
- Ainda bem que você decidiu colaborar - foi-lhe dizendo. - Agora que você comeu e descansou, tem um aspecto mil vezes melhor. Devia ver-se ao espelho, assim não teria pena.
-Não tenho pena. Desde que tomo a decisão de fazer alguma coisa, nunca me arrependo. Você tem razão. Resistir é loucura, depois de estar envolvida numa situação como esta. Por isso, não me arrependo nem um bocado da decisão de colaborar.
Ele pareceu francamente agradado.
- Quer mesmo dizer que não se importa?
- Seria incapaz de lhe mentir. Claro que me importo. Mas apenas na forma como estou aqui retida. Depois de ter ultrapassado o trauma do rapto, e a ideia de estranhos a forçarem-me, depois de ultrapassar isso, cheguei à conclusão de que o que realmente me perturba é estar aqui atada desta forma indigna.
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- Nós não a queremos manter aqui assim. Eu, pelo menos, não quero. mas temos receio de que você nos possa causar problemas se a deixarmos à solta.
- Que problemas é que eu lhes posso causar? Eu poderia ficar fechada neste quarto e continuaria na mesma, completamente nas vossas mãos. Se você quer que eu seja sincera consigo. - hesitou.
-Continue, Sharon. Eu respeito uma mulher honesta.
- Bom, está bem, mas não diga aos outros. Promete de certeza que não dirá aos outros o que lhe vou confessar?
O enorme monte de gordura de baleia estava não só satisfeito como se babava por ser o confidente de um segredo.
- Ouça, Sharon, vamos acertar uma coisa entre nós, você pode confiar em mim.
- Então está bem. Ouça, você conhece a psicologia da mulher tão bem como eu. Qual a mulher na Terra que alguma vez não teve o desejo secreto de ser desviada por um homem simpático e tomada à força? A maior parte de nós não o admitirá, mas quase todas as mulheres têm esse desejo.
- Claro, claro, isso é verdade.
-Eu tive esse desejo centenas de vezes. É uma maneira de obter um verdadeiro prazer sexual sem o sentimento de culpa por agir de uma forma não feminina no sentido tradicional. Ora bem, isso aconteceu-me agora. Ao princípio, fiquei furiosa, o que é compreensível. Ser desviada da minha vida normal por quatro homens que não conhecia, ser aprisionada e atada, ser atacada. Era demasiado estéril. A fantasia é uma coisa, mas a realidade pode ser terrivelmente assustadora.
-Pois, eu sei.
- Mas uma vez que isso aconteceu, que eu aqui estava, que não podia fazer nada contra isso e que vocês todos tiveram relações sexuais comigo, pois bem, isso escapava ao meu controlo, e não era exactamente o mesmo que apanhar uma doença mortal. Quero dizer, um acto sexual saudável nunca matou uma mulher, pois não?
Ele riu, estava a diverti-lo. Ele via- a com novos olhos, via-a como uma mulher crescida, directa e sensual, pronta para os prazeres carnais.
- Você tem razão, Sharon, tem muita razão. Eu sempre achei que você não era uma atormentada. Sabia que aí por baixo havia uma verdadeira mulher.
- Claro que sou. Por isso, depois de vocês me convencerem a colaborar, colaborei. E quer saber uma coisa? Não foi tão mau como isso. Não me refiro a todos. Não sou uma ninfomaníaca sem gosto, antes sou exigente e esquisita. Os seus amigos não são todos ao meu gosto. Quero dizer, aquele alto com sotaque do Texas é mais garganta que outra coisa. Não tem delicadeza. E,
basicamente, é muito cru para mim. Os olhos do Vendedor brilharam.
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- Claro, percebo o que você quer dizer. Cá entre nós, a maior parte dos homens pensa que o que interessa é pôr-se nas mulheres.
- Isso é verdade! Quando ambos sabemos que há centenas de maneiras de obter ainda mais prazer sexual. Faço-me entender?
A sua carne flácida estremeceu com o pensamento do que era possível acontecer.
- Pode ter a certeza de que a percebo, Sharon, você é cá das minhas. Eu sabia que você era assim, só não tinha a certeza se sairia da toca.
- Estou a sair, mas só para si - disse ela, depressa -, porque acho que consigo criei uma relação. Você foi o único de todos, segundo percebi, que tinha mundo. O miúdo que inventou isto é novo de mais para mim, não sabe no que se meteu, e, quanto ao velho, vale a pena falar dele?
Ele riu.
- Não tem que me dizer nada, Sharon. Estamos na mesma onda.
- Certo. Por isso, depois da segunda ou terceira vez, percebi que você era o único de quem podia esperar alguma coisa. Quero dizer, não o vou aldrabar. Eu não quis ser raptada. Não estava preparada para ser violada. Mas aconteceu, e acabou-se. Estou aqui e decidi tirar o maior partido. E, se tenho de continuar e de colaborar, decidi que já agora podia ganhar alguma coisa com isso. Acho que isto é um sinal de maturidade, não é verdade?
-Claro que é, e admiro-a por essa filosofia.
-Portanto, que estou eu a tentar dizer-lhe de forma que você possa perceber-me? Estou simplesmente a dizer que, se tenho de me dar aos outros três, está bem, dou-me. Mas a você, porque as nossas personalidades se aproximam, porque sinto que acertamos, bom. gostaria de o tratar de uma forma diferente, com alguma coisa de especial. Sinto que vale a pena.
- Prometo-lhe que vai valer - disse ele, com entusiasmo incontido. Você tem classe. Verá que sou um tipo que aprecia a classe.
- Obrigada. Há só uma coisa. - disse ela, pensativamente, com um ar preocupado. - Eu. eu não sei como se pode sentir atraído por mim depois de me ter visto desta maneira.
-O que é que quer dizer com isso? Você é a mulher mais bela do Mundo!
Ela abanou a cabeça na almofada.
- Não, agora não. Talvez tivesse sido. E talvez pudesse sê-lo outra vez. Mas não posso ser verdadeiramente atraente nestas circunstâncias. Amarrada, sem tomar banho, sem pintura, vestindo um robe barato. Essa não sou eu. Além disso, como qualquer mulher, tenho uma certa vaidade feminina. Quero estar bem arranjada sempre que estou com um homem que me interessa. Quero atraí-lo.
- Não precisa de nada mais para me atrair, Sharon. Olhe, já estou excitado por sua causa.
Ela olhou-o longamente.
- Que bom - murmurou.
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- Sente mesmo isso? - disse ele, com a voz engasgada.
-Já os vi a todos, consigo será perfeito.
Ele empurrou o seu sexo para ela.
-Põe-me mesmo a ferver.
Ela beijou-lhe o peito e o ombro, e passou-lhe a língua pelo pescoço.
- Veria o que eu seria capaz de dar se tivesse oportunidade para isso....
murmurou ela. - Imagine-me com uma camisa de noite transparente ou com um biquini. Imagine-me liberta, e verá o que lhe posso realmente dar.
-Querida, você é, na verdade, sensacional.
- Não para ti - murmurou ela.
A boca dele desceu-lhe para os seios e ela suspirou com prazer, levantou
com esforço a cabeça, tentou lamber-lhe os lóbulos das orelhas, dizendo
depois em voz baixa, sensual:
- Continue, querido, também gosto. Os homens esquecem-se de que as
mulheres também gostam. Hum! querido, de que é que gosta mais quando
está a fazer amor? Gosta do que eu gosto?
- Do que é que gosta? - rosnou ele.
- Tudo, tudo.
- Páre, páre.... está a excitar-me de mais.... espere.... tenho de.... - Ele
pôs-se em cima dela e sem cerimónia espetou o pénis inchado nela.
Com os olhos fechados, a boca ofegando com ritmo, ele cavalgava nela:
- Vá, vá, tudo - sussurrou ela.
Ele ficou louco, e, quando se veio, caiu em cima dela, como a fachada de
um edifício. Debaixo, ela arfava-lhe ao ouvido.
Mais tarde, sentado, ainda respirando com dificuldade, tentando
recompor-se, ele olhou para ela com consideração.
- É bestial - disse ele.
- Isso é um cumprimento. Você também é - disse ela, devagar. Fez-me vir, sabe-o bem.
Parecia tão orgulhoso como se tivesse ganho o Prémio Nobel.
- Fiz? Eu achei que se tinha vindo, mas não tinha a certeza.
Ela sorriu.
- Pode ter a certeza. Foi uma beleza. Viemo-nos ao mesmo tempo.
Ele olhou para ela com prazer, depois parecia querer dizer-lhe qualquer coisa.
- Que estava a dizer antes - disse ele, a custo.... - acha mesmo isso?
- Que eu podia ser muito melhor se tivesse oportunidade?
-Sim. Se eu a desamarrasse, se lhe arranjasse algumas das coisas que queria, sabe....
- Coisas provocantes, só para si. Vestimentas de noite, limpas. Perfume,
baton. Ficaria surpreendido como isso tudo ajuda.
Se eu fizesse isso.... você faria.... disse que gosta de.... de fazer coisas diferentes.
Ela atirou-lhe o seu sorriso mais sensual.
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- Depois verá.
Ele sacudiu a cabeça vagarosamente, os olhos incapazes de se desviarem dela.
- Você é mesmo qualquer coisa de especial, toda mulher. Exactamente o que eu sempre quis em toda a minha vida. - Inclinou a cabeça. - Está bem. Daqui em diante vamos fazer muito um pelo outro.
Crítica da sessão Trêss Sharon Fields provou neste papel a surpreendente versatilidade que se pode esperar de uma grande actriz. Nunca foi tão convincente.
Quarta actuação.
No palco, com o Sonhador. A rapariga sedutora reduzida à essência da feminilidade contra a sua vontade. O seu verdadeiro amor chegou, tocou- a, e ela arranjou-lhe um lugar no coração e não consegue evitar corresponder-lhe. Acha que a empresa brutal se torna numa aventura inspirada e romântica. Ela transformou-se, perante os seus olhos, na criatura de fantasia que ele inventara. A sua paixão transbordante (com alguma orientação cuidada das suas
recordações de Ellis, Van der Velde, Kinsey, e, principalmente, Masters e Johnson) seria dedicada a restaurar a sua virilidade. O último, se conseguido, transformaria a sua exibição num triunfo.
O Sonhador tinha vindo para o quarto com uma relutância evidente. Não se incomodou em despir-se, sentou-se na beira da cama, completamente dominado e passivo.
Parecia estar chocado. Mas ela sabia porquê, e tinha de cuidar do assunto com muito tacto.
-Bom, olá. Você não parece muito feliz.
- Não estou.
- Eu é que devia estar infeliz, e não você. Não veio aqui para fazer amor comigo?
- Eu. quero-o mesmo, acredite que quero. Mas sinto-me sem coragem. E quanto mais tento, pior. Tenho a impressão de que sei qual é o problema.
- Diga-me lá.
Ele mostrou surpresa.
- Quer realmente ouvir? Pensei que estava enojada connosco.
- Estava, e ainda estou com os outros. Mas agora já sei diferenciar, já não o acho igual aos outros.
Sentiu-se lisonjeado.
- Fico contente por isso, porque eu não sou como eles, e acho que isso é importante. Preocupo-me o suficiente consigo para sentir que está errado continuar a forçá-la, uma vez que você está indefesa. É isso que joga contra mim. O meu sentimento de culpa.
- Gosto de saber isso, gosto da verdade - disse ela, com voz gutural. Ao princípio, julguei que fossem todos iguais, todos igualmente cruéis e sem
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sentimentos. Mas, a partir de ontem, cheguei à conclusão de que isso não era razoável. E uma vez que vi que resistir era loucura, e que deveria tirar o melhor partido disto, consegui vê-lo individualmente. Você não tem nada em comum com os outros três.
- Percebeu isso - disse ele, arrebatadamente.
- Sim, finalmente. Você foi o único que usou a palavra amor.
-Porque a amo, eu amo-a verdadeiramente.
- E é o único que mostrou simpatia, compreensão, ternura, e que, de facto, se preocupa comigo. A uma mulher, estas coisas não passam despercebidas. Por isso, tenho pensado no caso, e tenho de admitir uma coisa e não me importo de a confessar a si, particularmente.
Ele esperou atentamente, totalmente rejuvenescido.
Ela continuou com a cena crucial.
- Você tinha razão quanto ao seu primeiro instinto, que sempre neguei. Para mim, a característica mais estimulante num homem por quem me sinto atraída é a sua fé de que nada é impossível de se alcançar. Sinto-me atraída por um homem que não se deixa aterrorizar. Sim, você tinha razão acerca da minha verdadeira pessoa, a que se insinuava subtilmente naquela publicidade barata. Sinto-me atraída por um homem que corra todos os riscos para me possuir. Não gosto de homens programados que calculam os prós e os contras de todos os actos. Gosto de sonhadores aventureiros que se esforçam para que os seus sonhos se tornem realidade.
A reacção dele foi precisamente a que tinha previsto. Parecia, positivamente, um peregrino que lutara por uma relíquia sagrada à procura de um milagre, consciente de que provavelmente não acontece, mesmo depois de o ver.
- Tu és tudo o que eu sempre quis, Sharon - disse ele, com fervor. Não sei como te dizer quanto te amo.
-Se me amas, mostra-me. Deixa-me sentir. Depois dos outros, preciso de alguém que se preocupe comigo. Despe-te e deita-te a meu lado!
Ele não acreditava no que ouvia.
- Queres mesmo que eu faça isso?
- Conheces-me o suficiente para saber que digo e faço só o que sinto, quando me apetece.
Os olhos dele não se desviaram dela, enquanto se despia.
Estava nu, ao lado dela, ainda inseguro e incapaz de a tocar.
- Não me beijas? - perguntou ela.
Timidamente, aproximou-se e colocou os lábios nos dela. Beijando-o, abriu gradualmente os lábios e tocou a sua língua na dele. Logo sentiu a aceleração rápida do seu coração. Tirou os lábios dos dele e começou a beijar- lhe a face, a orelha, o queixo, enquanto sussurrava:
- Agora toca nos meus seios e beija- os. Gosto disso.
Enquanto a cabeça dele se inclinava para o peito dela, o seu espírito procurava algum conselho de Masters e Johnson. Tinha-os lido com cuidado.
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Virou as páginas mentalmente. O insucesso dos homens muitas vezes vinha da ansiedade, da concentração nos resultados, na necessidade de conseguir, mais do que no perder-se na participação espontânea e natural do acto. A não-realização sexual, lembrou-se ela do que lera, podia ser um "mal causado por ignorância, privações emocionais, por pressões culturais, pela transferência total do sexo do seu contexto natural". Esses homens tornaram-se tão receosos da sua própria actuação que se vigiam mentalmente durante o acto sexual em vez de simplesmente permitirem que fossem possuídos pelas suas naturais sensações sexuais . Treinar um homem que sofre de ejaculação prematura, lembrou-se ela, começa com o toque, massagem, carícias no corpo, mas sem tentar o acto antes de aplicada a técnica de compressão de Masters e Johnson.
O corpo dele junto ao dela, sentiu aumentar-lhe o desejo. Precisava que ele alcançasse a fase seguinte do texto:
- Espera, querido - murmurou ela -, podes desatar a minha mão direi ta, só essa?
Ansioso por agradar, parou de beijá-la, de a acariciar, e, depois, sem uma palavra, desatou-lhe o pulso direito.
Com a sua mão liberta, ela mexeu os dedos para normalizar a circulação. Depois, deu-lhe instruções para continuar e a sua boca e as suas mãos voltaram ao corpo dela.
Minutos depois, ele estava mais uma vez preparado para penetrar no corpo dela. Uma vez mais, ela impediu-o.
- Espera - insistiu. - Não tentes ainda. Deixa-me fazer-te uma coisa. Vem para cima.
Embaraçado, ele inclinou-se para a frente. Estendendo a sua mão livre, ela agarrou na ponta do pénis e aplicou a técnica de Masters e Johnson. Dentro de cinco segundos, tinha conseguido. Ele tinha perdido a erecção.
- Está bem, querido - disse ela novamente. - Agora vamos descansar juntos até me desejares outra vez. Depois deixa-me repetir o que fiz.
Sem contestar, voltou a beijá-la e acariciá-la, e, mais uma vez, quando estava pronto, ela parou-o. Depois, repetiu o método uma terceira e quarta vezes.
A quinta vez, quando ele estava excitado, ela disse-lhe:
- Está bem, querido, podemos tentar.
Sentia-o tremer, enquanto o guiava apenas penetrara nela menos de um centímetro, quando, de repente, estremeceu, gritou, e ejaculou.
Quando ficou mole, ela ainda o agarrava, massajando-o suavemente.
-Pronto. Deita-te a meu lado.
Ele mergulhou ao lado dela, o quadro da desanimação.
- Desculpa - disse.
- Não peças desculpa - disse ela, suavemente. - Hás-de conseguir. Foi melhor do que antes, muito melhor. Penetraste. Quase conseguiste.
- Mas não o consegui.
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-Ouve-me, querido. Eu sei que podemos fazer amor, especialmente quando ambos o queremos tanto. Havemos de conseguir. Mais uma ou duas vezes e havemos de fazer amor da maneira que gostamos. Mas para conseguir fazer bem, tenho de estar livre, as minhas mãos não podem estar atadas. Estou a ser honesta contigo. Quero estar desatada para o poder fazer bem.
-Ainda queres fazer amor comigo outra vez?
- Não sejas tonto. Eu quero-te. Milhões de homens sofrem de ejaculação prematura. É o problema mais fácil de ultrapassar. Mas são precisas duas pesssoas para consegui-lo. Quando estiver desamarrada, prometo-te que conseguiremos. Verás como é fácil, e depois estaremos os dois realizados.
- Falarei com os outros. Não há motivo para te mantermos ainda atada. Eu iria falar com eles, mesmo que não me dissesses nada.
- Não te arrependerás. - Olhou-o fixamente, os seus grandes olhos verdes cheios de calor e amor. - Agora que nos tornámos amigos, merecemos a oportunidade de nos amarmos um ao outro livremente. Quero-te, acredita. Agora, beija-me, deseja-me boa noite e volta amanhã. Não digas aos outros o que sinto por ti. Ficariam zangados e vingar-se- iam em mim. Volta e fica muito tempo.
O desalento tinha desaparecido. Ele sorria com verdadeiro prazer.
- Tu és tudo o que eu sonhei - disse ele. - Farei por ti o que quiseres. Talvez - pensou ela - talvez faças.
Crítica da sessão da meia-noite: Nenhuma actriz hoje viva consegue mostrar a sensação de dar e desejar amor como Sharon Fields. Se o mundo inteiro fosse um quarto, ela seria a rainha. Seguramente, outro triunfo de Sharon Fields.
Bis.
No palco, com o Demónio. Ela tinha-o encorajado a voltar, porque ele era, dos quatro, o que requeria mais esforço para vencer. Tudo lhe tinha corrido bem, horas atrás, mas agora precisava de ultrapassar a exibição anterior.
Passava da meia-noite, mas ela tinha recusado o seu comprimido para dormir, a fim de estar acordada para a última sessão.
- Que dizes, querida? Tens estado a pensar em mim?
Ela virou a cabeça, mordeu o lábio inferior. Fizera exactamente o mesmo papel uma vez no seu êxito de bilheteira (o que bateu todos os recordes semanais anteriores na Rádio City Music Hall), A Camélia Branca , só que desta vez estava a ir muito melhor.
O Demónio agarrou-lhe a cabeça com as mãos e forçou-a a enfrentá-lo.
- Vá, lá, querida, não há motivo para estares envergonhada! Queres, não queres?
- Sim, meu sacana, quero - disse ela, precipitadamente. Rindo, ele despiu os calções.
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Hipnotizada, os olhos dela detiveram-se na figura dele.
Ele veio para perto da cama.
- Gostas, não gostas?
-Sim, és o melhor.
- Está bem, querida, é todo teu agora.
Ele não desperdiçou tempo a desamarrar-lhe primeiro um pulso, e, depois, o outro. Os seus braços e mãos entorpecidos estavam livres. Es fregou-os depressa, olhando como que hipnotizada para esse musculoso corpo.
Pôs-se directamente em cima dela, sorrindo com ar arreganhado.
- Está bem, pequena, vamos a isto. Achas que vais conseguir? Deus, ele era detestável, mas a expressão dela só revelava prazer e desejo. Usou as duas mãos propositadamente. Vagarosamente, puxou-o para baixo, enquanto as suas mãos continuavam a manusear-lhe o pénis para baixo e para cima. Ele estava de joelhos por cima dela, e ela fechou os olhos e começou a acelerar a respiração.
- Amor - disse ela, falando com dificuldade. - Faz-me vir.
- Agora - disse ele, agitando-se entre as pernas receptivas dela. Sempre. assim.
- Depressa - murmurou ela.
Assim que ele a penetrou, ela abraçou-o, envolveu-o com as suas pernas, e, devagar, girou o tronco enquanto os movimentos dele aumentavam de velocidade e intensidade.
Ela manteve o ritmo firme de convulsões, acentuando os laboriosos gemidos dele com palavreado ordinário.
Baixando as suas pernas, ela mexia-se para cima e para baixo, pedindo mais e mais, com mais força, arranhando o corpo dele.
- Estou quase a vir-me - gemeu ela. - Não consigo aguentar-me.
Ele ficou louco.
- Os dois, querida - gritou -, agora.
Instantes depois, ela estava deitada ao lado dele como uma mulher esgotada e realizada. Quando ele começou a preparar-se para se ir embora, ela agarrou-o.
-Fica comigo, fica um pouco mais.
Satisfeito, ele sorriu para ela.
- Terás sessões destas até te saciares.
Ela continuou a agarrá-lo.
- Nunca nenhum homem conseguiu, até agora, o que tu fizeste - murmurou ela. - És uma maravilha.
- Somos os dois - respondeu ele.
- Tens mesmo de ir? Não podes passar a noite comigo?
- Quem me dera poder, mas não quero que os outros pensem que te açambarquei.
-Que se lixem. Preocupas-te assim tanto com o que eles pensam? Porque não pensas em mim?
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- Eu penso em ti, querida. - Tirou as mãos dela dos seus ombros. Acho melhor descansares. Terás tudo o que quiseres de mim. Temos muito tempo à nossa frente.
Ele saiu da cama e ela ficou quieta. Esse muito tempo à nossa frente
veio humedecer o seu espírito, fê-la sair da sua actuação. Estava dócil quando
ele lhe atou de novo os pulsos.
- Esta é a última vez que será necessário - prometeu-lhe ele. - És uma coisinha fofa e não deves estar amarrada.
- Obrigada - disse ela, debilmente.
- De agora em diante, tudo vai ser diferente - prometeu-lhe ele.
Logo te direi, irmão , pensou, se chegar a minha vez. Mas ela
continuou a insistir.
- A que horas é que te vou ver amanhã? - quis saber.
- Assim que estiver pronto - replicou ele. Piscou o olho. - Não terás de esperar mais do que até amanhã à noite.
Crítica da sessão da madrugada: O momento culminante da carreira de
Miss Fields. Perguntamos.... até onde poderá ela ir?
Agenda de Adam Malone - Domingo, 22 de Junho
Até à nossa chegada a Más a Tierra, a minha agenda foi o diário desta
convocação extraordinária do Clube de Fãs. Mas até agora sentia- me desviado
desta empresa devido a dois factores.
O primeiro foi o desencorajamento devido à minha actuação sexual - ou
falta dela - com o Objecto. Depois de ter desejado esta união sexual com ela
durante tantos, tantos meses, e finalmente conseguida a oportunidade para
consumar essa união, o meu inesperado fracasso deixou-me num estado de
desalento total. Claro, disfarcei a minha depressão. Tenho vivido falsamente
estes últimos dias, mas, na realidade, eu estava interiormente deprimido, e,
após dois fiascos mortificantes, esperava com ansiedade e medo que o meu terceiro falhanço fosse inevitável.
Até ontem à noite, consumar o acto com ela era uma obsessão. Consegui
parar a auto-análise, porque isso não traria a solução imediata, e, em sua
substituição, estabeleci que teria de encontrar um método prático que iria
ajudar-me durante o curto período que me restava. Lembrava-me de ter tido
dois falhanços idênticos em toda a minha vida, e isto foi já há cinco ou seis anos.
O caso com a loura, assistente de dentista, com a qual não consegui sequer ter erecção, embora ambos tivéssemos vontade de fazer amor. Lembro-me de ter provado toda a gama de afrodisíacos, desde o encher-me com
ostras e bananas até ao pó chinês feito de corno de rinoceronte, e desde tomar
cantáridas (feitas de insectos secos e pulverizados) até usar Yohimbine (feito
de casca de uma árvore africana), mas nenhuma dessas panaceias resultou.
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Estive para tentar uma das novas drogas, PCPA ou a L-Dopa; dizem que ambas criam, às vezes, um poder hipersexual. Uma noite, desistimos de tentar, fomos dar um passeio a pé, e ela disse que gostava muito do meu corpo: foi o suficiente para o pôr em pé. Mesmo ali, naquele momento, puxei-a para o mato, levantei-lhe a saia, e os problemas acabaram.
A vez seguinte, talvez um ano depois disso, foi com uma viúva morena, já nos seus trinta anos, penso. Conhecia-a no cinema, estava sentada a meu lado, e, quando acabou o filme, começámos a conversar e ela convi dou-me para ir ao seu apartamento. Assim que entrámos em casa, começou a despir-se. Estava completamente excitada, e eu também fiquei extremamente excitado. Estava quase a entrar nela, quando ejaculei. O mesmo infeliz acidente aconteceu também na noite a seguir. Na terceira noite, ela fez-me tomar duas bebidas fortes, acariciou-me sempre, e, quando eu estava pronto, deu-me dois preservativos e fez-me pôr um em cima do outro. Resultou.
A partir daí, nunca mais tive problemas.
Por isso, depois dos meus dois fracassos com o Objecto, que me deixaram profundamente confuso, comecei freneticamente a tentar encontrar uma solução prática. Pensei em ir a Riverside consultar um médico, para ver se tinha a próstata infectada ou qualquer irritação nas minhas glândulas. Se estivesse tudo bem, pedia-lhe para me receitar um remédio que, segundo dizem, é sensacional, um analgésico local chamado NuQercainal, que se aplica na ponta do pénis quatro ou cinco minutos antes de fazer amor. Pelos vistos, este produto desentope as glândulas e evita um orgasmo rápido. Mas a ideia de sair, para consultar um médico, nas costas dos meus colegas desagradava-me, pois sei que eles não me permitiriam tal coisa se eu lhes propusesse semelhante ideia.
De qualquer maneira, considerei esta solução desesperada até ontem à noite, quando a minha obsessão para encontrar a cura foi finalmente aliviada. Por agora, a minha ansiedade diminuiu bastante. Isto porque o Objecto me revelou o que sentia por mim e me disse com toda a sinceridade para não me preocupar, porque ela estava ansiosa por colaborar, para que a nossa união fosse consumada. A sua atitude tirou- me um grande peso de cima.
Contudo, até agora, tinha um peso tão grande no meu espírito que me impedia qualquer ideia de começar o meu diário. Este foi, por certo, o primeiro óbice ao iniciar o meu trabalho escrito.
O segundo factor a impedir que eu começasse o diário foi a reacção violenta e tão pouco razoável do Mecânico, no que respeitava a esta agenda, mesmo depois de eu lhe ter prometido que seria secreta e privada.
Não obstante, eu estava determinado a escrever alguns pontos im portantes, assim que a oportunidade se apresentasse (como agora, porque o Mecânico está a dormir a sesta), e fazer a cronologia da execução do primeiro projecto do Clube, para que, quando voltasse a casa, não tivesse de fingir em frente dos outros.
283
Tínhamos tido um almoço-reunião do Clube de Fãs, e aqui ficam os pontos que foram acordados:
Quando nos reunimos para o almoço, apareceram todos mais felizes, mais
descansados e mais geniais, desde que chegámos a "Más a Tierra". Havia
pela primeira vez, um entusiasmo unânime acerca da nossa aventura. Pela
curta conversa, era evidente que o Objecto havia mantido a sua promessa.
Percebeu finalmente que a colaboração tem os seus benefícios, considerou a
sua situação e resolveu não apresentar mais dificuldades. Pelo que percebi,
tinha colaborado totalmente com os outros. Tinha superado todo o rancor e
oferecera-lhes amizade. Divertia-me pensar nas reacções deles, se soubessem
ou se vagamente lhes passasse pela cabeça o que o Objecto sentia em relação a
mim. Ela e eu guardaremos o nosso segredo.
De qualquer modo, como resultado do entusiasmo gerado pelo Objecto,
foi feito um certo número de propostas casuais de natureza específica, tendo
sido cada uma delas votada independentemente.
O Mecânico fez a sua primeira proposta começando por dizer ao Contabilista:
- Bem, não concorda? Agora já não pode chamar violação a isto, ou pode?
Ao que o Contabilista, amavelmente, respondeu "não".
Depois, o Mecânico trouxe o assunto a que eu ia referir-me.
- Acho que ela está suficientemente calma e sociável para que a possamos libertar dentro daquela área.
- Plenamente de acordo - disse eu.
O Agente de Seguros concordou.
- É inofensiva.
Uma pequena dúvida, fraca, foi posta pelo Contabilista.
- Tem a certeza de que é seguro?
- Absoluta - respondeu o Agente de Seguros. - Claro, temos
primeiro de tornar o quarto seguro. Existe um ferrolho do lado de dentro na
porta dela. Podemos tirar um ferrolho de outra porta onde este não seja
necessário e usá-lo no exterior. Assim, quando algum de nós estiver com ela,
pode trancar a porta por dentro. Quando sairmos do quarto, podemos usar o ferrolho exterior para evitar qualquer mania que lhe possa passar pela ca beça.
- Sim - concordou o Mecânico, prontificando-se para arranjar a
porta. - Há outro ferrolho na porta da cozinha e que dá para a rua. Não
precisamos dele. Vou desatarrachá-lo e já o coloco no quarto.
O Contabilista estava satisfeito com esta medida preventiva.
O Agente de Seguros recapitulou, sucintamente, a nova decisão.
- Está bem, a partir desta noite, ela tem liberdade total dentro dos
limites da sua zona. Pode andar de um lado para o outro como lhe aprouver, ir
à casa de banho quando lhe apetecer, ler, ou fazer seja o que for.
Isto inspirou outras propostas que foram rapidamente aceites. Todas elas
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eram pequenos prémios de recompensa pelo senso comum e bom comportamento do Objecto.
O Contabilista propôs emprestar-lhe o seu aparelho de televisão portátil. Disse que não precisava dele, e que seria uma distracção para ela. Isto foi acordado, uma vez que nos certificássemos de que não havia qualquer canal comercial que indicasse a nossa localização exacta.
O Agente de Seguros propôs a colocação de bebidas e copos no quarto, para tornar as coisas mais agradáveis. O Mecânico opôs-se a tudo o que fosse de vidro, pois poderia ser usado como arma para ferir, e propôs uma emenda que permitia que fossem utilizados copos e garrafas de plástico.
Unanimemente acordado.
Eu disse que gostaria de lhe dar alguns livros e revistas que tinha trazido comigo, para lhe proporcionar outra alternativa de distracção. Não houve objecções.
Foi uma reunião amigável, que provou que várias pessoas com diferentes modos de vida podem viver em harmonia se se sentirem felizes e não contrariadas.
Todos ansiavam o seu encontro desta noite com o Objecto. É domingo, o que sempre dá um ar festivo às actividades humanas. O Agente de Seguros foi buscar o baralho de cartas, e, como tem sido nosso hábito, tirámos a nossa sorte às cartas. O que tirar a mais alta vai primeiro, e assim sucessivamente.
A ordem das visitas desta noite era a seguinte: Primeiro, o Agente de Seguros segundo, o Contabilista terceiro, o Escritor, e, quarto, o Mecânico.
Grandes expectativas. Parafraseando John Suckling (século dezassete): A expectativa torna tudo melhor; o Céu não era o Céu, se soubéssemos como era.
Durante o dia e a noite, que ainda não tinha acabado, pois havia um para se servir, ela sofrera uma sensação crescente de esquizofrenia.
Era um estado pelo qual já havia passado algumas vezes durante a sua carreira: fazer o papel de duas pessoas diferentes em vinte e quatro horas - durante o trabalho, absorvida pela identidade de outra pessoa, uma ficção, um papel, vivido e real, para o estúdio durante as horas livres a seguir ao trabalho, a sua própria pessoa, uma extracção de si própria, vivida mas menos real, no seu próprio tempo livre. Esta história de se separar de si própria e de voltar a si, de novo, sempre a pusera confusa e agitada, até aos anos mais recentes, durante os quais tinha conseguido definir melhor a sua verdadeira identidade e forçado a verdadeira Sharon Fields a manter-se livre dos papéis que desempenhava no cinema.
Encontrara, uma vez, a solução para este conflito interior ao ler os comentários de Robert Louis Stevenson sobre "O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde". Nessa história ele tentou resolver "esse forte sentido
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de dupla personalidade do homem que pode, por vezes, dominar e vencer
qualquer criatura pensante . Isso não dizia respeito, directamente, ao seu
problema, mas trouxe-lhe algum conforto. Era verdade. Todas as pessoas
eram um ser duplo, duas pessoas dentro desse ser. Mas a descoberta disto não
resolveu o seu problema, e por isso Sharon procurou ser uma só pessoa e quase o conseguiu.
Mas agora, aqui, no seu cativeiro, viu-se mais uma vez nesse conflito, na necessidade de sobreviver.
Havia desempenhado o seu papel mais difícil, o de uma pessoa que não
era, e de uma pessoa que todos os homens imaginavam ou queriam que ela
fosse. Viver intensamente esse papel era um escape para a humilhação e dor profunda que sentia.
Mas, após cada exibição, regressava eventualmente à realidade do que era
forçada a fazer, e do que estava a ser feito por ela, e, então, a dor acumulada
juntamente com o ódio tornava-se insuportável.
Esta tarde, tinha desempenhado o papel de Sharon, a Reconhecida. Pelos
vistos, as exibições de ontem haviam sido um sucesso. Tinha recebido montes
de presentes desses estupores, seus admiradores. Apareceram todos depois do
almoço, desamarraram-na, deram-lhe liberdade dentro do quarto e casa de
banho, proclamaram a sua nova autonomia, lembrando-lhe, ao mesmo
tempo, que era limitada e que ainda era uma prisioneira, frisando o seu estado com a aplicação de um novo ferrolho na porta que dava para o vestíbulo.
Depois disso, choveram os presentes dos seus guardiões - um pequeno
aparelho de televisão do Pão-de-Leite, duas pilhas de livros e revistas do
Sonhador, um pacote de bolachas e uma garrafa de plástico com uísque do Vendedor.
Desempenhou o papel da reconhecida e contemplada Marguerite Gautier, a cortesã sofisticada, recebendo, agradecendo e lisonjeando os seus amantes.
Mas assim que eles saíram, deixando-a aferrolhada, voltou à sua segunda
pessoa, a sua verdadeira pessoa, e sentiu-se sufocar de ódio pelo seu próprio
fingimento e submissão, só se sentindo melhor quando conseguisse
demonstrar-lhes quanto os odiava. Como os odiava! Quanto desejava a
vingança para cada um deles pela degradação e miséria a que a fizeram
chegar! Como os detestava por a fazerem rastejar aos seus pés, e por esperarem que ela se mostrasse reconhecida por a terem desamarrado, embora ainda enjaulada!
Então, pela primeira vez, perguntou-se se a sua jaula seria totalmente à
prova de evasão. No fim de contas, ela estava limitada a um vulgar quarto,
não a uma cela de prisão com grades de ferro. Com a liberdade de movimentos
restituída, havia, pelo menos, uma possibilidade de fuga! Com esta hipótese
em mente, tinha andado à volta do quarto, a pesquisar e a examinar cuidadosamente todas as paredes. Viu que nunca conseguiria forçar a porta da
entrada. As dobradiças estavam enferrujadas, e os ferrolhos solidamente
pregados. Mesmo com as ferramentas apropriadas seria difícil, mas não havia
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ferramentas, nem as haveria. Nem o chão nem o tecto ofereciam sinais de portas de alçapão nem de aberturas que servissem. Restavam apenas as janelas, mas as pranchas que as cobriam tinham sido firmemente pregadas com pregos de dez centímetros e eram irremovíveis. Ao espreitar por uma
fenda entre duas tábuas, ela conseguiu distinguir na obscuridade uma barra de metal que indicava estarem as janelas duplamente protegidas: primeiro pelas tábuas pelo lado de dentro, e, depois, por grades de ferro no exterior.
Sim, estava engaiolada, apanhada, com tantas hipóteses de escapar como um preso fechado numa cela solitária dentro de San Quentin.
San Quentin? Que é que a teria feito pensar nessa penitenciária californiana de alta-segurança?
Conseguiu lembrar-se, e a recordação trouxe-a de novo para dentro de si própria.
Numa cena de um dos seus primeiros filmes, ela fazia o papel de uma jovem esposa esperando fora dos portões da prisão, na manhã da libertação do seu marido. Tinha sido um papel pequeno, de figurante, e a cena havia sido
filmada exactamente à entrada de San Quentin. Depois de as cinco tomadas de cena estarem na lata, ela, os outros actores e o realizador tinham sido convidados pelo director e alguns guardas para um almoço dentro dos muros de San Quentin.
Tinham achado a atmosfera opressiva, os tijolos, o cimento e o aço friamente anti-humanos, tinha sentido a total falta de esperança que os internados deviam sentir naquela enorme. sim. jaula. Para fazer conversa, ela, ao almoço, exteriorizou os seus sentimentos, perguntando alto quantos presos tinham conseguido escapar.
Ficou a saber que as tentativas de fuga haviam sido numerosas, mas poucas bem sucedidas. O director e os guardas tinham contado muitas histórias de evasões mal sucedidas, e, depois, um veterano recordou a mais
memorável de todas as tentativas de fuga na história da prisão, tentativa não para escapar, mas para evitar que uma vítima fosse executada.
Nunca tinha esquecido aquela história, e revia-a agora depois de completar o exame do seu próprio quarto celular, para ver se poderia aproveitar alguma coisa. Essa história representava o máximo de determinação humana e de ingenuidade. Nos anos 30. não, tinha sido exactamente no ano de 1930. um pobre diabo polaco- americano. como-é que ele se chamava?
Como . Kogut, William Kogut, tinha sido condenado à morte pelo assassínio de uma mulher e havia sido metido numa cela a aguardar a execução em San Quentin. Havia jurado a si próprio que nunca seria executado pelas autoridades. Ao aproximar-se o dia da execução, Kogut concebeu uma forma brilhante de conseguir a sua fuga, não da prisão, mas da sentença.
Apesar dos seus magros, quase ínfimos, recursos, Kogut tinha decidido fabricar uma bomba, utilizando um baralho de cartas de jogar.
Subitamente, à medida que recordava a história, tornou-se importante para Sharon não esquecer nenhum dos passos do incidente.
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Primeira fase Ele sabia que a parte vermelha nas cartas de ouros e copas
era um composto de celulose e nitrato, os ingredientes dos grandes explosivos. Raspou cuidadosamente as fibras encarnadas de todos os ouros e
copas do baralho. Segunda fase Arrancou uma perna do catre da sua prisão, juntou as raspas, ensopou-as no lavatório, e, depois, com um cabo de
vassoura, carregou o tubo de metal, deixando lá o cabo a fim de manter o
interior do tubo isolado do ar. Terceira fase Usando a lâmpada de querosene
da sua cela, manteve a bomba caseira sobre a chama ao longo da noite
tranquila, enquanto o vapor e o gás se formavam no tubo. Quarta fase Ao nascer do dia, a bomba improvisada explodiu subitamente com estrondo,
mandando a cela e Kogut para os anjinhos.
Ele tinha ganho incontestavelemente. Tinha escapado.
Durante alguns minutos, a possibilidade de repetir o feito de Kogut exci tou-a.
Claro que podia conseguir do Sonhador um baralho de cartas, com o pretexto de se entreter a fazer paciências. Ela podia raspar o vermelho das cartas
com a unha do polegar. Mas.... e depois? Depois, ao pensar na fase seguinte,
hesitou. Não havia nada no quarto que se parecesse com um tubo de metal.
Também não havia um candeeiro de querosene nem uma vela que aguentasse
uma chama durante horas. Mas, mesmo que tivesse tudo o que era necessário
para fabricar a bomba, tornava-se-lhe evidente a impraticabilidade do pro jecto. Ela não tinha a certeza de que funcionasse, e, se acontecesse e ela fosse
descoberta, seria castigada mais uma vez, o que era insustentável. Por outro
lado, se a engenhoca improvisada funcionasse, ela não sabia qual seria a sua
força explosiva e se não a destruiria também juntamente com o quarto. Mas,
mesmo que sobrevivesse e tentasse escapar através de um buraco na parede,
ainda haveria.... oh, isto era tudo ridículo, a superdramatização do costume e
a representação da mentalidade teatral.
Uma loucura. Estupidez completa.
Ela estava presa, encarcerada, engaiolada. Não havia qualquer hipótese
fantástica de fuga, estava atolada e indefesa.
Tinha de parar de pensar como uma actriz, e, em vez disso, representar
simplesmente. Precisava de se concentrar no desempenho do papél de Sharon
Fields e nada mais. Era essa a sua única hipótese, senão com o fito de evasão, pelo menos com o de sobrevivência.
Mais uma vez o ódio que sentia por eles, pelo que lhe estavam a fazer, lhe
veio à garganta, enchendo-a de bílis verde e acre.
Durante todo o dia, aquele foi inflamado pela funesta indisposição que se tinha apoderado dela.
Ao cair da noite, sentiu-se febril, com medo, uma espécie de terror ao
palco, incapaz de representar convenientemente o seu papel, tal era o veneno acumulado dentro dela. Mesmo assim, quando chegou o momento
da actuação, escondeu (como sempre) o medo, deixando-se envolver
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naturalmente, e a consumada actriz, a outra Sharon Fields, comandou friamente a cena do princípio ao fim.
Sentada agora na cama, às onze e quinze da noite, penteando dis traidamente o comprido cabelo louro, esperava a chegada, ao palco, do último dos quatro, apreciou as suas actuações anteriores e o que tinha ganho.
Os lucros foram sensacionais.
Para um espectador de fora, o que ela tinha conseguido e aprendido podia ser considerado um puro acidente. Mas ela própria é que sabia. As informações adquiridas não vieram todas acidentalmente, mas, sim, devido aos seus talentos mágicos. Entregara-se aos seus raptores com tanta franqueza que os tinha desarmado completamente. Eles acreditaram nela, esqueceram a verdadeira natureza das suas relações com ela, e tornaram-se suficientemente frouxos, esquecendo as suas precauções.
E ela ali estava, alerta, atenta, preparada para lançar as garras a qualquer pedaço. Mas, em vez de um pedaço de cada um, foi contemplada com inesperada quantidade e qualidade. Por sorte? Não, nunca, só para os desconhecedores. Ela queria crédito e aplausos. Tal como no passado, tinha
orientado e dirigido todos os acontecimentos.
As recompensas tinham, naquela noite, começado cedo, com o Vendedor.
Tinha lavado e secado a blusa e as calcinhas de seda preta, tirou com vapor as rugas da saia; estava vestida, limpa e sedutora, mais ainda do que se podia imaginar quando ele apareceu, pavoneando-se no jardim do prazer.
Variedade era a especiaria, variedade era o menu a servir esta noite, e, embora isso lhe fosse repugnante, ela afugentou firmemente da cabeça todos os seus constrangimentos.
Não havia tempo para distracções, foi directamente para os braços do sabujo, beijando-o, deixando que ele a acariciasse.
A partir do momento em que ele trancou a porta, decidiu ir até ao limite com ele. Durante as suas relações mais recentes, tinha feito algumas de duções e compreendera como deveria ser a vida sexual do tipo. Percebeu que ele cada vez se deliciava menos com as repetições limitadas e cansativas que fazia com a sua mulher e que provavelmente procurava, e até comprava,
outros estímulos no exterior. Percebeu que ele não tinha nem paciência nem confiança para dar, ou mesmo para dividir prazer, mas queria receber sem que nada exigissem dele, no que respeitava a tempo e qualidade.
Muito bem.
Saindo dos braços dele, começou a despi-lo. Depois, deixando-o acabar o trabalho, tirou rapidamente a saia e a blusa. Esperou que ele fosse primeiro para a cama, indo ela a seguir. Assim que se lhe juntou, deu- lhe um longo beijo francês, enquanto uma das mãos dançava sobre o corpo dele. Foi instantânea a sua reacção aos dedos dela. Antes de ele se erguer, para fazer o queera suposto fazer, o que ele exigia de si próprio, os dedos experientes dela deambularam-lhe pelo pénis.
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Com um ligeiro gesto com a outra mão, deu-lhe licença para continuar deitado e uma promessa sem palavras de que ela própria tomaria a iniciativa.
Num espaço de minutos, era ùm homem indefeso.
Pôs-se em cima dele e começou a excitá-lo ainda mais, passando- lhe com a
língua pelo peito e barriga, enquanto a sua figura corpulenta se contorcia agitadamente, com prazer.
Os seus lábios alcançaram-lhe o baixo ventre. Levantou a cabeça, tentou
não olhar para o enorme pénis que estava a agarrar, e foi finalmente para ele.
Totalmente excitado, ele quase perdeu o controlo. Bateu-lhe nas nádegas
e os seus pés martelavam a cama, enquanto agitava a cabeça loucamente de
lado a lado com êxtase e alegria incontida. O seu clímax foi o mais prolongado
e barulhento de todos eles juntos durante a semana.
Quando ela voltou da casa de banho, encontrou-o tal como o tinha deixado, uma montanha inerte de carne satisfeita, contemplando-a atemorizadamente como um súbdito humilde olhando para a sua soberana lendária.
Ela sentou-se ao lado do seu corpo deitado, pondo os seus braços à volta
dos joelhos, com a cabeça apoiada, correspondendo ao olhar dele com uma
expressão de deleite.
- Fiz-te feliz, querido? - perguntou ela.
-Foi o máximo. Nunca me senti assim antes.
-É verdade? Espero que não estejas a lisonjear-me.
- Juro que é - hesitou. - Para te ser franco, nunca pensei que tu....
bem, que tu quisesses fazer esse género de coisas.
Ela levantou as sobrancelhas, a sua expressão era toda ingenuidade.
- Porque não? Não há regras sobre o que se deve ou não fazer, ou sobre o
que está certo ou errado, em sexo. O que faz as pessoas felizes quando fazem
amor é o que está certo. Se gostaste, então está certo. Eu sei que gostei, quis
fazer, senti-me bem a fazer, por isso tive prazer.
- Deus, era bom que mais mulheres fossem como tu.
- Não são?
- Nem por sombras. Desde a minha mulher a.... a muitas outras.... são demasiado inibidas, seguindo tudo pelo livro.
- Isso é mau. Privam não só os homens, mas também elas próprias.
Há uma coisa.... - Pausa ansiosa. Suspiro. Voltou-se vagarosamente da cama ficando sentada a um canto.
Ele seguiu-a e veio sentar-se ao seu lado à beira da cama, olhando
preocupado para a cara dela.
-Que é? Passa-se alguma coisa?
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- Não, não se passa nada, tonto. Claro que não. É só que.... bem, talvez seja demasiado trivial - hesitou ela.
- Não, continua. Nada do que nos diga respeito é trivial.
Ela ficou embaraçada.
- Bem, se queres a verdade, estou só preocupada com.... que, bem, que te canses de mim depressa.
- Nunca!
- Não estejas tão certo. Eu conheço os homens. Uma vez que já repetiram, tentaram tudo, ficam fartos. E eu não quero que isso nos aconteça,
mas receio que venha a acontecer, principalmente porque me faltam coisas, não tenho o que realmente quero para ti.
-A que estás a referir-te?
- Acho que já te falei nisso antes. A maior parte das mulheres, quando
querem estimular um homem, bem, têm todas as oportunidades para o fazer,
para se tornarem atraentes a esse homem. O que eu poderia fazer quando
estou em casa. Mas eu não estou em casa, estou aqui.... - gesticulou debilmente -.... num quarto quase nu, sem as minhas coisas pessoais, sem nada feminino, sem nenhuma oportunidade para te oferecer variedade e estímulo. Se eu tivesse algumas coisas que ajudassem....
- Que coisas - quis ele saber, intrigado.
- Oh, o normal, os atractivos que qualquer mulher tem no seu quarto.
Sabonetes perfumados, águas-de-colónia, perfumes, produtos de maquilhagem. - Agarrou na saia. - Roupas para mudar. Roupas interiores e
exteriores bonitas. Vim para aqui sem estar preparada, sem nada, só com o
que tinha vestido. Não é justo para ti.... nem para mim.
- Não precisas mais do que a tua própria pessoa. Não és uma vulgar mulher sem graça....
-Mas ficá-lo-ei. Vais ver.
- Está bem, está bem, Sharon. Vou arranjar o que queres, se isso te faz sentir melhor.
-Faz-me sentir mais sensual.
Não há problema. Vou sair de manhã e compro-te algumas coisas. Não
me custa nada. Há uma cidade que não é muito longe....
O coração dela saltou. Só quis que ele não tivesse dado por isso.
Uma cidade, uma cidade não muito longe. Então não estavam dentro de
Los Angeles. Estavam fora da cidade, provavelmente nalgum sítio isolado, mas não longe de uma cidade.
E lá há lojas razoáveis - continuou ele, ansioso por satisfazê- la. Talvez tenham alguma coisa para ti.
Ela abraçou-o, contente como uma criança.
- Fazes isso, querido, fazes isso por mim?
- Claro que faço. Amanhã de manhã, vou lá amanhã. Agora, tenho de me vestir. - Levantou-se para apanhar as suas roupas. - Então, talvez seja
melhor dizeres-me que coisas é que queres e eu faço uma lista.
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Ela bateu as palmas.
- Maravilhoso!
Fingiu observá-lo enquanto ele se vestia, mas estava a raciocinar. Isto podia ser importante, extremamente importante, e ela tinha de trabalhar com perfeição. O seu espírito estava vivo, fazendo um inventário de coisas de toilette, seleccionando um ponto, rejeitando outro.
Ele encontrou um bocado de papel na carteira, rasgou-o ao meio, voltou a pôr lá a outra metade, tornou a pôr a carteira num dos bolsos de lado das calças. Procurou num outro bolso, e depois noutro, aparecendo com uma esferográfica.
Sentou-se de novo ao lado dela, colocou o pedaço de papel sobre o joelho e tentou escrever Lista de Compras , mas não conseguiu.
- Preciso de qualquer coisa para pôr debaixo - disse ele. Colocou o papel e a caneta sobre a cama, levantou- se mais uma vez à procura de qualquer coisa, até que viu as pilhas de livros. Foi até eles.
Os olhos dela baixaram para a caneta dele. Tinha qualquer coisa escrita em letra de imprensa. Conseguiu finalmente ver. Dizia "Companhia de Seguros Everest Life. Olhou para cima. Ele tinha chegado aos livros em cima da mesa, de costas para ela. As mãos dela alcançaram a caneta. Com os dedos virou-a para poder ler o resto. As outras letras saltaram-lhe à vista. Leu Howard Yost - o seu Agente de Seguros.
As mãos dela voltaram para o colo compondo a saia e, depois, a blusa.
Começou a pensar no que tinha visto escrito na caneta. Seria dele ou de outra pessoa? Tinha de ser dele, claro! O Vendedor era agente de seguros. Adaptava-se perfeitamente. O extrovertido, fanfarrão, conversador, com a conversa própria de um vendedor de seguros.
Bem, bem, prazer em conhecer-te, Howard Yost, seu filho da puta. Tinha-se sentado ao lado dela na cama, com o papel sobre um livro, a esferográfica pousada.
- Vá, Sharon, diz-me o que queres que te compre.
Ela já tinha estudado o que ia pedir. Tinha ensaiado e estava preparada.
-Primeiro, as minhas medidas. Queres apontar?
- Okay.
A voz dela baixou, vinha da garganta.
- Bem, as medidas básicas são. bem. 97, 61, 94.
Ele deitou-lhe um olhar de aprovação, sorrindo.
- Isso significa.
- Isso significa peito 97, cintura 61 e anca 94.
Ele assobiou.
-És bem boa.
- Se achas. retorquiu ela.
A mão que ele tinha livre tocou-lhe na coxa. Ela parou-o logo a seguir.
-Vá, não sejas malandro. Guarda para quando eu estiver convenien temente preparada para te agradar.
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Ele acenou a cabeça afirmativamente.
- Está bem. Vai-me custar esperar, digo-te. - A caneta voltou para perto do papel. -Diz lá.
- Dá a qualquer caixeira as minhas medidas e ela saberá o meu número a partir daí. - Continuou, normalmente. - Deixa-me ver o que preciso, isto é, se conseguires arranjar as coisas. Alguns ganchos simples para apanhar o
cabelo, a empregada sabe o que é. Na secção dos cosméticos, bem, um lápis de sobrancelhas, base e pó, bâton. Vermelho-vivo. O bâton, claro! E o pó, transparente.
- Puxa, espera aí. - Continuou a escrever. - Podes continuar agora.
- Verniz de unhas. Também vermelho.... carmim. Um perfume quente, qualquer um, desde que seja sexy.
-Alguma marca especial?
- Bem, eu uso Cabochardda Madame Grès. Eu digo-te letra por letra. Disse-lhe, devagar, como se escrevia. - Podes pedir - disse ela -, mas nem todas as lojas têm. Se não tiverem, talvez possam mandar vir. Senão, qualquer um que aches quente. Agora, roupas para mudar. Tens de encontrar uma loja de senhoras.
-Não te preocupes. Deixa isso comigo.
- Deixo. Eu já notei que tu sabes por onde andas. Bem, só poucas coisas. Deixa-me ver. Uma camisola fechada, de caxemira ou desse tipo, qualquer coisa que não arranhe. Talvez cor-de-rosa ou azul-claro. Uma saia ou duas leves e curtas, não gosto de saias compridas. De uma cor que ligue bem com a camisola, talvez azul. Confio no teu gosto. Agora, de roupa interior.... geralmente não uso nada, mas há algumas coisas muitos giras. Deixa-me ver. - Molhou os lábios. - Um soutien de renda.
Ele olhou para ela.
- Para que queres um soutien? Ela deu-lhe um sorriso ardente.
-Para tu teres qualquer coisa para tirar, querido.
- Ah, boa ideia. - Ele voltou à lista. - Que mais?
- Dois pares de meias-calças. não, espera, são uma maçada. Prefiro dois pares de calcinhas, as mais pequenas que houver. Conheces-me. Qualquer cor serve. Uma camisa de noite, cor-de-rosa, se conseguires en contrar.
- Hei-de encontrar.
- Escreve também um par de pantufas. Este chão é húmido à noite. E chega de roupas. A não ser que, claro, queiras comprar qualquer coisa que me fique a matar.
- Como, por exemplo?
-Um minibiquini. Adoro descansar de biquini.
-Tem cuidado. Estás a excitar-me.
- Espera e vais ver como ficas a ferver quando eu vestir o biquini. Agora,
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se queres realmente ser generoso, há mais três pequenas coisas que me fazem muita falta. Fazem-me, realmente, muita falta.
-Diz lá o que é, que eu trago.
Rezou para que tudo não parecesse demasiado óbvio. Arriscou.
- Bem, gostaria de ver o último número da revista Variety , caso haja nalgum quiosque de jornais. Quero saber como foi a estreia do meu filme.
- Está bem.
- Mais dois luxos. Gosto de fumar de vez em quando uma cigarrilha. A minha marca preferida é sueca, chama-se Largo . Se vires uma caixa, muito bem. Se não, esquece. E, finalmente, alguns rebuçados ingleses de mentol, para o meu peito, Altoid.
- Al. quê Como se escreve? Repetiu a marca, letra por letra.
Ele virou a cabeça.
- Mais alguma coisa?
- Só tu - disse-lhe ela, com um sorriso provocante.
- Tens-me. - Pôs o papel e a caneta no bolso. - E terás o resto quando eu voltar das compras amanhã.
- De certeza que não te importas?
Ele pôs-lhe um braço à volta.
- Querida, por ti faço tudo. - Levantou-se. - Foste maravilhosa esta noite.
- Tu fazes-me ser o que eu sou. Espero ser ainda melhor amanhã. e. bem, espera até amanhã à noite, quando estiver preparada.
-Não te preocupes. Fica assim como estás.
Depois de ele ter saído, ela pensou se o esforço teria valido a pena. A sua situação era tão desesperada que nada parecia valer a pena. Mesmo assim, amanhã, por volta desta mesma hora, e pela primeira vez desde o seu
desaparecimento e cativeiro, ela teria conseguido comunicar com o mundo lá fora.
As possibilidades de a sua lista de compras ser notada era tão remota queaté parecia ridícula. Contudo, as suas opções eram poucas, e a selecção que
ela fez tinha de ser obscura para os seus captores, o que as tornava quase imperceptíveis lá fora. De qualquer maneira, já tinha emitido um som de um " planeta desconhecido, tentando dizer a alguém, no Universo, que havia vida
num outro planeta.
Amanhã, ela teria comunicado três marcas importadas e invulgares que habitualmente consumia. Perfume CaBochard, cigarrilhas Largo, rebuçados de mentol Altoid. E depois, ainda, a revista semanal Variety . Se
alguém que a conhecesse visse estes produtos juntos, identificava-os logo com Sharon Fields.
Um quinto SOS teria também saído. Um nome de uma marca também, dentro de certa medida, e unicamente identificada com a sua fama. 97, 61, 94.
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Havia inúmeras mulheres com essas medidas, tinha a certeza, mas só havia uma jovem actriz, mundialmente conhecida, que era o sinónimo desses números.
Para os fanáticos adoradores, os números 97-61-94 eram a identificação de Sharon Fields.
Abruptamente, travou o seu voo pela imaginação.
Então, que diferença fazia se nem uma pessoa conseguisse perceber os seus lastimosos esforços para comunicar? Que diferença fazia se ninguém parecia perceber que ela estava em perigo e que precisava de ajuda? Que diferença fazia?
Desesperadamente, fez outra travagem, desta vez no seu galopante estado de depressão.
Iria fazer o que fosse possível, e qualquer coisa era melhor do que nada. Fez alguns progressos com o primeiro encontro da noite.
Estava nos subúrbios de uma cidade. Era uma cidade na zona comercial. Um dos seus raptores era, provavelmente, um vendedor de seguros chamado Howard Yost. Iria comunicar ao mundo civilizado um certo número de coisas de que ela precisava.
Não era muito. Mas já era alguma coisa.
Obrigada, Howard Yost.
O Pão-de-Leite, a sua próxima visita, apareceu quinze minutos depois, e ela teve muito pouco tempo para se concentrar no seu próximo papel.
Apareceu com um pequeno ramo de flores purpúreas.
- Para ti - disse ele, envergonhado. - Apanhei-as esta manhã.
-Oh, és o homem mais atencioso do Mundo.
Ela aceitou-as como se fossem as flores mais raras do Mundo.
- Que lindas, que maravilha! - Debruçou-se, beijando as flores. Obrigada por teres pensado em mim.
- Pensei em ti durante todo o dia. Foi por isso que saí e apanhei estas flores. Não são grande coisa, mas na cidade não se arranjam.
Levemente, perguntou:
-Como se chamam?
- Por acaso não sei o nome. São flores silvestres.
Atenção! Flor silvestre.... Silvestre. Associação livre. Silvestres: bosques, ravinas, montanhas, desertos, prados, campo.
Ele dirigiu-se para uma cadeira perto da chaise longue, deixou cair uma espécie de caixa de cabedal que trazia consigo, e virou-se para a ver de frente, através das suas grossas lentes de míope.
- Estás linda esta noite, Sharon - disse ele com cerimónia. Bestial, pensou ela. Está a comportar-se como um velhinho que vai pela primeira vez ao apartamento da jovem que pôs por conta.
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- Que amor que tu és, mesmo um amor - disse ela, avançando para ele, abrindo sensualmente os lábios.
Parou em frente dele, de braços caídos.
A proximidade dela, a franquesa, fizeram com que ele respirasse com di ficuldade, asmaticamente, e provocaram- lhe um tique ao canto de um olho.
- Tu. tu foste tão boa para mim ontem à noite.
- Quero ser melhor hoje - retorquiu ela.
Empurrou-o suavemente para a chaise longue com ela. Desabotoou a blusa, deixando-a aberta com o peito de fora. Ele tremia incontrolavelmente. Puxou a cabeça dele contra o seu peito, deixando cair a blusa para trás e sentiu-o lamber e beijar o bico do peito.
Abraçou-o, baloiçando-o, de um lado para outro.
A mão dela dirigiu-se para a braguilha das calças. Abriu-a e pôs a mão lá dentro, esperando encontrar qualquer coisa firme como um lápis. Em vez disso, os dedos dela encontraram uma coisa pequena palpitando dentro das cuecas. Quando lhe tocou encheu um pouco mas não cresceu.
Os lábios dela passaram pela sua testa suada, indo até à orelha.
-Querido, quero saber o que realmente te excita.
Ele ia responder, mas não conseguiu, e finalmente enterrou a cara no peito dela e ficou mudo.
-Ias dizer-me, querido. Diz-me, não há razão para estares envergonhado.
Ela ouviu-lhe a voz abafada.
- Ontem à noite. ontem à noite - gaguejou ele -, tu disseste. tu disseste-me.
Ela acariciou-lhe a cabeça.
-Continua. Que é que eu te disse?
- Que. que havia muitas coisas que ainda não tínhamos experimentado. Ela ergueu-lhe o rosto, acenando a cabeça gravemente.
- Sim - disse ela. - Não estejas embaraçado. Não há nada de mal ou errado em querer ter prazer sexual. Quero fazer-te feliz. Diz-me o que queres, por favor.
Ele levantou o braço e apontou para a caixa de cabedal que estava na outra cadeira.
- O que é isso? - perguntou ela.
-É a minha nova máquina Polaroid.
Ela compreendeu imediatamente: pobre, miserável, nojento, velho porco. Decidiu ajudá-lo, e continuou:
- Queres dizer que gostas de tirar fotografias a mulheres nuas? É o que mais te excita?
A cabeça dele agitou-se de cima para baixo. - Espero que não vás pensar que sou um.
- Um quê? Um tarado sexual? Que ideia, claro que não, querido. Há muitos, muitos homens que gostam de fazer isso. É o máximo do erotismo:
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Excita-os mais do que qualquer outra coisa. E, para te ser franca, a mim também me excita.
-Já fizeste isso?
-Posar nua? Muitas vezes. Faz parte da minha profissão. Gosto de mostrar o meu corpo, e gostaria de te mostrar ângulos que tu nunca viste.
- A sério?
- Nem consigo esperar. - Ela deixou-o, saiu da chaise longue, e, andando de um lado para outro, suspirando, foi-se despindo.
Viu que ele já estava despido, um nojo, a caricatura de um homem, cambaleando para a sua máquina, tirando-a da caixa, regulando-a nervosamente.
Ela dirigiu-se devagar para o lado da cama, e sentou-se, nua, à espera dele.
Ele veio precipitadamente para a frente dela, com a máquina numa das mãos, compondo os óculos e ajustando-os, no nariz, com a outra.
- Como queres que eu fique? - quis ela saber.
Ele hesitou.
- Bem, não é preciso posar.
Ela ficou a pensar no que ele quereria dizer, e depois percebeu.
- Queres fotografar qualquer parte especial do meu corpo? É isso?
- Sim - sussurrou ele.
- Sinto-me lisonjeada - disse ela, docemente. - Diz-me quando es tiveres pronto.
- Agora mesmo.
Os olhos dele ficaram mais pequenos, a boca aberta ao vê-la passar com movimentos felinos. Ela encostou-se à cabeceira da cama, sentada, enfrentando-o. Depois, deitou-se, levantou os joelhos para cima, e abriu as pernas o mais que pôde.
Ela imaginava o que estava a acontecer-lhe.
Durante momentos, o seu espírito voou para um estúdio obscuro em Greenwich Village, quando tinha dezoito anos e precisava de dinheiro com uma certa urgência, e posara nesta mesma posição, numa sessão de uma hora, para um fotógrafo especializado em arte pornográfica. Felizmente, e por sorte para si própria e para a sua subsequente carreira, nenhuma das cópias mostrava a sua cara. Ela ficou a pensar no que teria acontecido a essas fotografias, em que mãos teriam caído, e qual seria presentemente a reacção, se os donos soubessem que aquelas ampliações, escondidas em muitas gavetas de baixo, apresentavam nada mais do que a mundialmente conhecida Sharon Fields.
Percebeu que ele estava muito próximo dela, pois sentiu-lhe a respiração entre as suas pernas abertas. Levantou a cabeça.
O Pão-de-Leite, com um olho colado à máquina, fixava a objectiva entre as pernas dela.
A lâmpada doflash cegou-a enquanto ele lhe tirava a fotografia. Ele abriu
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a fotografia colorida e observou enquanto esta se lhe revelava aos olhos. Os olhos dele espantavam-se gradualmente com o que viam, parecia não conseguir fechar a boca. Virou-se de frente para ela, pronto para tirar outra. Mas ela viu que ele não seria capaz. O seu ratinho branco também queria ficar na fotografia.
Deu um passo em direcção a ela, deixando a máquina na cama: Ela ficou à espera que ele se baixasse e que fosse para cima dela, mas ele não se moveu.
Ela sabia, e fez o movimento que ele desejava. Sentou-se sobre os seus joelhos, e estendeu a mão. Ele suspirou reconhecido.
Minutos mais tarde, já aliviado, deitou-se junto dela, completamente grato e satisfeito com a sua realização.
Momentos depois, já recomposto, ele começou a falar. Compulsivamente, falava numa Thelma, que ela mais tarde depreendeu ser a mulher dele. Continuou dizendo que a Thelma estava demasiado usada para ele, que o achava seguro, e que estava só interessada nela própria e no seu catálogo de doenças. Ele tinha pena era mais do que uma peça de mobiliário era um homem cheio de vida e precisava de atenções, incentivos, alguma acção. Era por isso que ia, quinzenalmente, a um estúdio de fotografias pornográficas para tirar fotografias e para se divertir um pouco. Nenhuma das pessoas que o conheciam, nem mesmo a sua mulher, nem os seus amigos daqui, sabiam deste seu novo e estimulante passatempo.
- És a primeira pessoa a saber - confessou-lhe ele, depois de deixar a cama para se vestir. - Digo-te a ti porque. porque és experiente e ficámos íntimos. sabes como são estas coisas e. bem, acho que posso confiar em ti.
Ela disse-lhe que podia confiar, enquanto se levantava para se vestir também.
- No que respeita às nossas relações, sabes que podes confiar totalmente em mim.
Já vestido, ele continuou.
-Só quero que sejas feliz.
- Fizeste-me extremamente feliz no que poderia ter sido uma situação infeliz. És o único que me podia fazer assim tão feliz.
- Assim o espero. - Ele olhou à volta do quarto e viu o aparelho de televisão portátil. - Quero fazer qualquer coisa por ti. Tens visto televisão?
- Certamente, e estou muito contente por a ter aqui. Preenche o meu tempo quando não estamos juntos. Claro que não consigo ver muito bem, os canais não se conseguem apanhar muito bem. Deve estar a precisar de ser arranjada. Mas o som está bom, ouvem-se bem os programas. " Ele dirigiu-se para perto do aparelho, conhecedoramente.
- Sim. Já sei o que é. É difícil captar uma imagem clara, nas montanhas. Especialmente porque este aparelho não tem antena. Tens sorte em conseguir ver alguma coisa.
Ela fingiu não o ouvir. Mas a sua cabeça estava ocupada com a nova revelação.
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Nas montanhas. Uma zona selvagem nas montanhas não longe de uma cidade.
A entrada de elementos estava a aumentar.
Ele estava a mexer no aparelho.
- Olha - dizia ele. - Amanhã coloco uma antena lá fora. Também vou fazer uma revisão no interior. Talvez consiga imagem para algum dos canais; costumo ter jeito para arranjar coisas eléctricas, fusíveis, lâmpadas e até mesmo televisores. A minha mulher fica admirada como consigo arranjar coisas. Mas, porque não? Se uma pessoa é inteligente e se aplicar, pode fazer coisas que não têm mesmo nada a ver com a sua profissão. Poupei fortunas a fazer eu próprio reparações em casa, ao longo destes anos. A minha mulher está sempre a dizer-me: Devias, pelo menos, montar o teu próprio negócio - Leo Brunner, especialista em reparações de TV - e farias mais.... Parou de repente, e ficou aterrado.
Ela deu com os olhos assustados dele, com perturbação disfarçada.
- Eu. eu disse-te o meu nome - gaguejou ele. - Não sei o que aconteceu. Escapou-me. É terrível.
Ela desempenhou brilhantemente o seu papel. Com surpresa, perguntou-lhe:
- O teu nome? Disseste o teu nome? Ele ficou a olhá-la com desconfiança.
- Verdade que não ouviste nada?
- Devia estar a pensar em nós. Mas mesmo se tivesse ouvido, não tinha importância nenhuma.
Foi para perto dele, beijou-o tranquilamente, e, depois, acompanhou-o à porta.
Antes de abrir a porta, ele hesitou, ainda preocupado.
- Se, por acaso, te lembrares do meu nome. por favor, não digas nada aos outros. Seria péssimo para mim. - hesitou. - E talvez ainda pior para ti.
- Tonto, juro-te que não ouvi o teu nome. Podes ficar tranquilo. Agora, lembra-te de que tens um encontro amanhã. Oh, eu escondo a tua máquina.
Depois de ele ter saído, voltou para o quarto, com um sorriso enigmático. Leo Brunner, apresento-te o Howard Yost. Ao menos, farão companhia um ao outro, quando forem enclausurados naquelas paredes cinzentas para toda a vida, para sempre, seus sabujos indecentes.
Meia-hora depois, despidos, estavam na cama nos braços um do outro. Ela aninhava-se contra o Sonhador, e, preguiçosamente, passeava os seus dedos pelo corpo dele.
Logo que ele chegou, lembrou-se de que ele tinha feito o possível por adiar a sua ida para a cama com ela. Sugeriu que tomassem um uísque ou dois para
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se conhecerem melhor, ela concordou e beberam dois dos grandes com água e sem gelo.
Com o intuito de a impressionar, ele trouxera-lhe um pequeno presente pessoal. Era uma revista literária, já com um ano, The Calliope Literary Quarterly, publicada em Big Sur, na Califórnia.
- Colaborei com um pequeno conto - explicou ele. - Não é grande coisa. Hoje fá-lo-ia de maneira diferente, mas pensei que gostasses de ver qualquer coisa escrita por mim. Claro, eles não pagavam nada. Mas nalgum lado temos de começar. De qualquer maneira, não a leias agora. Fica para quando tiveres tempo.
Ficou imensamente impressionada. Ela era óptima a fingir, estava im pressionadíssima. Estava morta por ler o conto. Entre todas as pessoas céle bres que ela conhecia, eram os escritores quem ela mais respeitava. Havia neles algo de místico e estranho.
- Eu sei que hás-de ser famoso um dia - disse-lhe ela, com sinceridade. - E depois poderei dizer que te conheci. Não seria maravilhoso que no futuro escrevesses uma história para um filme meu. se quisesses, claro?
Ele estava no sétimo céu.
- Seria o acontecimento mais importante da minha vida - respondeu. Continuou a beber calmamente, adiando o momento em que teria de ir para a cama.
Ela não estava à espera dessa reacção. Pensou que lhe tinha inspirado mais confiança na noite anterior. Mas, pelos vistos, não tinha. Ele ainda tinha medo de falhar. No entanto, a confiança na sua própria capacidade para o fazer conseguir continuou intacta.
Achava essencial para os seus planos e esperanças trazê-lo o mais depressa possível para a cama, e dar-lhe tempo para restaurar a sua virilidade. Só assim conseguiria subjugá-lo. Muito mais tarde, nos seus pensamentos, viria a achar o Sonhador um dos mais vulneráveis do grupo e talvez um dos mais fáceis de manipular.
Gradualmente, guiou aquela conversa para o assunto do dia anterior. Ele tinha-lhe manifestado o seu amor, lembrou-lhe ela, perguntando-lhe se ele a amava pelo que ela representava e era suposta ser ou se a amava por ela própria, uma vez que estava agora tão próximo dela.
- É a ti que eu amo, a ti mesmo - insistiu ele, com ardor.
- Não imaginas como isso me faz sentir - disse ela, apaixonadamente, indo para ele, colocando-se-lhe ao colo.
Depois disso, foi fácil fazer com que ele passasse a agir em vez de falar. Despidos, estavam na cama acariciando- se em silêncio. Logo a seguir, ele estava pronto, já com erecção e fazendo um esforço para se conter, enquanto tentava penetrar nela. Assim que ela o sentiu virar-se, impediu-o de se levantar, com o braço.
- Espera, querido - disse ela, com voz entrecortada. - Vamos fazer o mesmo que ontem.
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- Não valeu de nada.
- Mas resulta, se eu fizer tudo. Agora, que já estou liberta, já posso fazer tudo.
Ele tentou desviar-lhe o braço.
-Deixa-me tentar sem isso.
- Não, faz à minha maneira, por favor.
Ele deixou de fazer mais esforço para se levantar, foi para baixo, e deixou-a fazer o que ela lhe tinha feito na noite anterior.
Apesar da frustração dele, ela repetiu três vezes o que estava a fazer, num espaço de quinze minutos.
Agora, uma vez mais, ele estava pronto.
- Deixa-me. deixa-me, Sharon - pediu-lhe ele.
Ela largou-o.
- Deixo. mas vamos fazê-lo à minha maneira.
- Como? Não, deixa-me tentar, eu quero.
- Espera, por favor, espera, fica onde estás. um bocadinho mais para cima. - Ela estava de joelhos. - Sim, fica assim, de costas. Não te mexas.
Ela pôs-se de joelhos entre as pernas abertas dele. Separou as coxas e montou-o, pondo os seus joelhos de ambos os lados das ancas dele. Depois, naturalmente, enterrou-se nele, fechando os olhos, à medida que ia escorregando. Continuou a baixar-se, sentando-se nele até as nádegas tocarem as coxas dele.
Inclinou-se para ele, afagando-lhe o cabelo, sorrindo.
- Conseguiste - disse ela, suavemente. - Agora, não te mexas, mesmo que te apeteça muito. Fica só dentro de mim, habitua-te a sentir-me. Não é bom?
Os olhos dele não largavam a cara dela.
- Sim - murmurou.
Ela levantou o pélvis suavemente, baixou-o outra vez, dando-lhe a sensação de se estar a mexer dentro dela.
- Oh, Deus grunhiu ele. - Tu és tudo o que eu. eu sempre sonhei. Ela baixou-se, tocou com a sua face na dele, e murmurou:
- Estamos a fazer amor juntos, querido. É isso o que interessa. Involuntariamente, os quadris dele começaram a elevar-se e ele começou a mexer-se dentro dela, para cima e para baixo, aumentando de ritmo, sentindo-a a acompanhá-lo.
- Estou a morrer - disse ele, sufocadamente, as pernas subindo, abraçando-a no meio de contracções espasmódicas.
Tinha acabado, conseguira. Ela gozou o êxito da sua técnica e a sua exibição cuidadosamente controlada.
De agora em diante, ele também estaria apto.
Mais tarde, enquanto ela punha a camisa de dormir, e ele se vestia, ela elogiou-o outra vez, mas com reservas. Não queria exagerar a sua actuação.
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Seria despropositado exagerá-la, fazê- lo suspeitar de que estava a ser desonesta. Em vez disso, falou do futuro deles.
- Foi tão bom estar contigo, tão juntos - dizia ela. - Os seres humanos não conseguem estar mais próximos. Já não haverá mais problemas, querido. Uma vez que a parede fisiológica está quebrada, já não há interferências. A partir de agora, podemos fazer as vezes que quisermos.
Quando ele se sentou para calçar os sapatos, ela pôs-se aos pés dele. Podia ver que ele estava satisfeito, tão aliviado. Estava, no entanto, consciente da óptima colaboração dela, e, também, reconhecido.
- Não conheço muitas mulheres capazes de ser assim tão pacientes - disse ele.
- É porque eu te queria - disse-lhe ela, enquanto puxava o seu comprido cabelo loiro. E sorriu. - Agora, tenho- te.
Ele olhou fixamente para ela, em adoração.
- Não calculas o que significa. tudo acontecer da maneira como sempre sonhei há tantos anos.
Enjoava-a tanta banalidade.
- Por vezes, os sonhos tornam-se realidade - disse ela, roucamente, feliz por conseguir ler as entrelinhas.
- Eu acredito nas coisas - admitiu ele. - Gostava de saber o que posso fazer por ti. Amanhã vou com o How. com. com um dos outros às compras. Precisas de alguma coisa? Adorava comprar-te um presente.
Estava tentada a conseguir saber mais sobre o sítio onde iam. Considerou até aonde poderia ir sem ele desconfiar. Tentou sondar.
- É muito simpático da tua parte - disse ela -, mas não há nada de especial em que eu possa pensar. Sem saber a que tipo de lojas vais, é difícil.
- Na verdade, não conheço muito bem aquela área - disse ele. - Por isso não te posso dizer. Há um drugstore, um ou dois supermercados.
Um drugstore. Um ou dois supermercados. Era, sem dúvida, uma cidade pequena, algures nos arredores de Los Angeles, e com alguns montes ou
monttanhas nas proximidades. Ela saltou-lhe para os pés.
- Obrigada, querido, mas não te preocupes com prendas. Preocupa-te com as compras que tens de fazer para ti. Fico à tua espera amanhã à noite:
Ele pôs-se de pé.
- Sim. Acho melhor não te deixar acordada toda a noite. Ela abraçou- o.
- Amo-te.
- Eu amo-te mais ainda - disse-lhe ele, enquanto a beijava. Ela esperou que ele se fosse embora, e que estivesse completamente só. Precipitou- se sobre as pilhas de livros e revistas, pegando na revista que tinha o conto dele e que lhe trouxera como presente.
Ela abriu-a na página onde trazia o sumário. Com o dedo percorreu a lista dos autores todos. Não conhecia nenhum. De repente, a sua unha parou num
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buraco feito no papel. O nome havia sido tirado. O título do conto era "Dormir, talvez Sonhar", página 38. Rapidamente, folheou as páginas até atingir a página 38. Havia um sinal ao lado do número da página, e duas palavras, garatujadas em tinta: "A minha história. " O título estava impresso em itálico e, em baixo, no mesmo tipo de letra, "Um Sonho de Ficção". Depois por baixo um buraco.
Merda!
Bem queria ela juntar mais um nome à lista, mas por enquanto tinha de se contentar com os que tinha.
O que o Sonhador lhe tinha dado não servia para nada. Tinha parado o progresso das coisas. Mas, uma coisa era positiva.
Tinha feito dele um homem, nessa noite.
Qualquer homem quer, inevitavelmente, pagar à mulher que consegue isso.
Ela podia esperar, não iria importuná-lo tão cedo.
Olhou para a porta. Ainda faltava um. Deste não tinha esperanças de conseguir alguma coisa. Era demasiado mesquinho, muito agarrado aos seus assuntos pessoais, demasiado cauteloso. Bem, nunca se sabe.
Agora já era meia-noite, e estava estoirada.
Estava deitada na cama, às escuras, ao lado do corpo adormecido do Demónio. Contou os minutos até que aquele animal cabeludo e repulsivo se levantasse, saísse do quarto e a deixasse finalmente só.
Ele estava satisfeito com o coito, disso estava ela certa. Fornicaram sem constrangimentos durante pelo menos três quartos de hora, e, com a sua nova liberdade de movimentos e a oportunidade para usar as mãos, ela conseguira ser mais agressiva e também corresponder mais activamente.
O seu ego estava em exibição, constantemente reforçado por ela, que o arranhava, pedindo mais, e finalmente fingindo vir-se quando ele se veio, forjando um orgasmo como um tremor de terra. Tinha sido uma representação que qualquer grande actriz. Duse, Bernhardt, Modjeska. teria aplaudido.
Ele estava demasiadamente esgotado para poder levantar-se de seguida, e ir para o seu quarto, como era seu hábito. Mergulhara ao lado dela e ali ficara. Ela esperou dez minutos pela sua recuperação e partida.
Tocou-o na escuridão, para ver se ele estava acordado ou a dormir. Estava ainda acordado, com parte da cabeça enterrada na almofada, as pálpebras semicerradas, mas os seus olhos continuavam a observá-la.
Ela tentou sorrir-lhe para disfarçar a repulsa que sentia por esse vil degenerado.
Os lábios dele mexeram-se.
- Fiz-te feliz? - perguntou-lhe ele, com voz sonolenta.
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- Muito.
- Ficaste arrasada.
-Estou embaraçada pela maneira como me comportei. - Diz-me. cos diabos. algum dos outros tipos te faz vir?
- Claro que não, não sou fácil, e eles não são grande coisa. Tu és o único
que me põe assim. Não quero fazer de ti um convencido, mas és um amante sensacional.
Ele bocejou.
-Obrigado, querida. Tu também não és nada má. Jesus, estou meio morto - Bocejou outra vez. - Como vês, sou um homem de palavra. Eu disse-te que, se te portasses bem, ficarias mais livre. Fui eu que os convenci.
-E eu estou-te muito reconhecida.
Sentia-se enojada por ter de ocultar e disfarçar o seu ódio em chamas. Viu que as suas pálpebras estavam a fechar-se.
- Tens sono? - murmurou ela.
- Quê? . Não, estou só a descansar uns segundos antes de me levantar.
-Descansa o tempo que quiseres.
- Sim.
Pensou se valeria a pena tirar alguma coisa dele. Esta era, sem dúvida, a melhor altura para tentar.
- Querido - disse ela -, posso perguntar-te uma coisinha?
- Que é?
- Quanto tempo vou ficar aqui com vocês?
Os olhos dele abriram-se por momentos.
-Faz-te diferença? Pensei que estivesses a gostar.
- Oh, estou, estou! Não tem nada a ver connosco. só que tenho de pensar na minha carreira, nos meus compromissos. Pensei que soubesses....
- Não sei - interrompeu ele, de olhos fechados. - Não vale a pena estares a chatear-me com isso. Quando soubermos, dir-te-emos.
- Está bem, não há pressa. Só quis saber se assim que chegarmos a Los Angeles.
Ele olhava para ela, desconfiado.
- Quem é que te disse que não estávamos em Los Angeles?
- Bem, não sei, só quis dizer que, assim que for libertada, não quero que isto acabe aqui. Podíamos continuar a encontrar-nos. Gostava muito.
- Nem penses, menina - grunhiu ele. - Nem penses. Não confio mais em ti do que nessas putas todas que encontrei nas mesmas circunstâncias. Não, assim que isto acabar, separamo-nos, e pronto - Os olhos estavam fechados, e ele continuava a resmungar. - Mas não te preocupes. Vou-te dar o suficiente para os próximos dez anos. Depois disso, se tiveres sorte, talvez o Clube de Fãs te leve outra vez.
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Levantou-se com um grunhido, e virou-se sobre o lado direito, voltando-se de costas para ela.
Ela tremeu de medo e olhou para ele com um ódio que se julgava incapaz de possuir.
Precisava de se lembrar de uma coisa, pensou ela. Com este não se podia brincar. Nunca subestimá-lo. Nunca tomar o risco de fazer perguntas. Era astuto, falso, mau, filho da puta com fortes tendências para o sadismo. Era imprevisível, e capaz de atacar em qualquer momento.
Mesmo tentando abrandá-lo, agradá-lo, vencê-lo, ela nunca conseguiria usar o Demónio, pois ele estava para além do alcance das suas maquinações. Teria de contar com as fraquezas do Yost, do Brunner, e do Sonhador.
Ali estava ela, deitada, desejando que ele não adormecesse, que se fosse embora, de modo a aliviar um pouco a tensão em que se encontrava devido à presença dele.
Ouviu um som rangente, olhou para o seu corpo estático, e percebeu que ele ressonava. Estava a dormir profundamente, o ordinário. Bem, ele que fosse para o diabo, decidiu ela. Ela também precisava de dormir. Tacteando, procurou na mesinha-de-cabeceira o Nembutal, encontrou-o, quando percebeu que não tinha água.
Sem fazer barulho, para não o acordar, saiu da cama, pegou na camisa de noite, e foi em bicos de pés à casa de banho.
Já lá dentro, com a porta fechada, e a luz acesa, atirou o comprimido para a boca, fazendo-o deslizar com água. Depois, lavou-se à pressa, e, tirando a camisa de noite, mirou-se ao espelho. Parecia uma náufraga. Cabelos com nós confusos, olhos inchados, cara pálida e pouco atraente devido à falta de sol e de maquilhagem.
Bem, teria de continuar assim, continuar com a fita, até regressar à civilização, se alguma vez regressasse.
Ia apagar a luz para voltar para a cama. Ao tocar no interruptor da luz, os seus olhos recaíram sobre a porta fechada da casa de banho, e, pela primeira vez, apercebeu-se de que havia uma peça de vestuário estranha, que não era sua, pendurada num camarão.
As calças dele. As calças do Demónio, suspensas no camarão da porta da casa de banho por um passador do cinto. E as algibeiras não estavam vazias.
Ficou ali pregada, sentia o sangue afluir com intensidade às fontes. Teria coragem?
Estava ali sozinha, com a porta a separá-la daquele animal imundo deitado na sua cama. Estava só mas nada lhe garantia a sua solidão, porque o trinco da porta havia sido retirado.
Se ela se arriscasse a explorar as algibeiras, e ele acordasse de repente, e a apanhasse a revistar as suas coisas pessoais, seria horroroso.
Espancá-la-ia até à medula.
Ou faria pior.
Mas talvez ela não tivesse outra oportunidade como esta. Até à data não
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se tinha mostrado vulnerável em nada. Se ele tivesse um calcanhar- de-Aquiles, talvez este pudesse ser encontrado no par de calças que estava pendurado na porta da casa de banho. Não fazia ideia do que estava à procura nem do que encontraria, se fosse caso disso.
Valeria a pena correr o risco?
O sangue continuou a afluir-lhe à cabeça, aturdindo-a. Tinha vivido toda a sua vida somando riscos, o preço da liberdade. Poderia mais uma vez ser
este o preço da liberdade.
Decidiu-se, finalmente. Uma das mãos a agarrar a fivela do cinto para evitar que esta batesse na porta e fizesse ruído, enquanto a outra sondava penetrou numa algibeira lateral, não encontrou nada. Foi para outra algibeira, encontrou alguma coisa, duas coisas, tirou-as para fora. Um maço de cigarros meio cheio. Um isqueiro prateado, liso, sem iniciais gravadas na superfície. Pôs de novo ambas as coisas na algibeira.
Deixou os bolsos dos quadris para o fim. O esquerdo. Um lenço, sujo, enxovalhado, e nada mais. Desapontada, pô-lo na algibeira. O último sítio. A algibeira direita dos quadris. Estava cheia. A sua mão entrou e agarrou um objecto de cabedal, uma carteira.
As suas mãos tremiam enquanto a abria.
Através de uma bolsa de plástico, viu imediatamente uma fotografia do Demónio, barbeado, colada num cartão. Tirou-o para fora. Dizia
CARTA DE CONDUÇÃO (CALIFÓRNIA) Kyle T. Shively
1045 A-Third Street
Santa Mónica, Cal. 90403
Não perdeu mais tempo com a carta. Passou, apressadamente, pelos outros compartimentos da bolsa de plástico. Um continha o cartão azul e branco da Segurança Social, e o outro um cartão de crédito.
Os seus dedos percorreram as outras coisas que se encontravam dentro da carteira. Duas notas de um dólar, e, num canto, um bocado de papel dobrado. Tirou-o e começou a desdobrá-lo. Depois de pousar a carteira no lavatório, a sua mão trémula verificou que era um pedaço amarelado do jornal Lubbock Avalanche, de Lubbock, no Texas, com um artigo a duas colunas recortado. Datava de alguns anos atrás.
Os seus olhos pararam numa fotografia.
Era ele outra vez, incontestavelmente ele, alto, magro, feio, bem barbeado como na foto da sua carta de condução, vestindo uma farda do Exército, sorrindo e acenando para a máquina fotográfica, enquanto ele e um oficial sorridente desciam o que parecia a escadaria de pedra de um edifício municipal.
A legenda da fotografia dizia o seguinte:
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CASTIGADO POR ASSASSÍNIO NO VIETNAME, CONTRA SOLDADO DE INFANTARIA - O cabo Kyle T. Scoggins saindo do Tribunal Militar em Fort Hoodcom o seu advogado, Capitão Clay Fowler. Acusações por assassÍnio não premedItado nUM massacre FORAM ontem anulados por falta de provas .
Queria ler as duas colunas que se seguiam, mas não ousou arriscar- se. Passou uma vista de olhos a correr pelo artigo.
Quando acabou, sabia como era a história, e o seu coração começou a ba ter loucamente.
Scoggins ou Shively tinha sido um dos cem soldados e oficiais americanos a serem transportados de helicóptero para a província de Quang Ngai no Nordeste do Vietname do Sul para atacar o Batalhão 48 Viet Cong, suposto estar escondido na pequena aldeia de My Lai-4. Em vez do inimigo, os Americanos só encontraram Vietnamitas civis - mulheres a preparar o pequeno-almoço, crianças a brincar na lama e em cabanas de palha, e homens velhos dormitando ao sol - e agiram como assassinos desumanos e tresloucados, fazendo um dos piores massacres e séries de atrocidades da guerra. Violaram imensas mulheres, depois cercaram o resto dos civis e metralharam-nos até à morte.
Um dos muitos soldados americanos acusados de crimes de guerra e que neste terrível dia cometeram o assassínio de não-combatentes em My Lai era o cabo Kyle T. Scoggins. Uma testemunha, o soldado de primeira MacBrady,
colega de batalhão de Scoggins e que declarara que depois do massacre vira Scoggins que se preparava para matar, com uma metralhadora, cinco crianças todas elas rondando os doze anos, escondidas num esgoto. Que é que estás a fazer? São crianças inocentes! A testemunha parafraseou a resposta de Scoggins Quando cá estiveres o mesmo tempo que eu, verás que nenhum dos tipos é inocente. Ou tu ou eles. Quando estamos numa coisa como esta, temos de os eliminar, matar todos e tudo o que mexe, mesmo
crianças. para que não fique alguém que nos possa levantar o dedo: Di zendo isso, Scoggins virou-se e, a sangue-frio, matou as cinco crianças.
No Tribunal Militar de Fort Hood, o soldado McBrady foi forçado, prestando juramento, a dizer que ele, pessoalmente, não tinha visto o cabo Scoggins a matar as crianças. Mc Brady declarou que não tinha sido ele, mas, sim, um camarada seu, Berner, quem tinha tentado parar Scoggins e mantido
o diálogo com ele. Mais tarde, Derner tinha contado tudo ao seu amigo McBrady, que se ofereceu para prestar declarações. O camarada de McBrady, Derner, a verdadeira testemunha, tinha ido para uma patrulha três dias após My Lai, e ficara feito em bocados por ter pisado uma mina.
O Tribunal Militar decidiu que, uma vez que a verdadeira testemunha, o soldado Derner, não podia declarar pessoalmente o que tinha visto, eram absolutamente inadmissíveis as declarações feitas pelo seu amigo McBrady.
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Por conseguinte, as acusações contra o cabo Kyle T. Seoggins foram anuladas por falta de provas, tendo este sido, logo a seguir, posto em liberdade.
E depois, para esconder este desagradável incidente do passado, para esquecer para sempre, houve a metamorfose de Kyle T. Scoggins em Kyle T. Shively.
Com os dedos presos, Sharon Fields dobrou o recorte e pô-lo no canto da carteira onde o tinha encontrado, colocando-a rapidamente na algibeira das
calças de Shively.
Nunca na sua vida tinha tremido tanto!
Tremia porque sabia que mesmo com a anulação das acusações, Shively tinha cometido aqueles assassínios. Ela tinha sido não só uma testemunha
ocular, mas também uma vítima da sua raiva animalesca, e percebera, desde o seu primeiro encontro, que ele era um assassino disfarçado com uma capa muito fina de homem civilizado.
E, agora, o conhecimento do seu passado veio acentuar o medo reprimido que sentia em relação a ele. Estava determinada a encarar o medo: fossem quais fossem as intenções dos outros membros do Clube de Fãs, havia um deles que secretamente decidira não a libertar no futuro, para não ter uma testemunha contra ele.
Uma besta capaz de assassinar cinco crianças inocentes, indefesas, meros bebés - cortando-as da vida, do amor e das décadas que tinham para viver -, simplesmente porque não queria sobreviventes que pudessem vir a ser perigosos , tal monstro não iria permitir que uma mulher adulta (especialmente uma com poder e influência) fosse posta em liberdade para o perseguir e castigar por rapto, violação e assalto.
Até agora, durante a semana, as suas esperanças e energias tinham-se concentrado em libertar-se destes quatro antes da data que tinham planeado para libertá-la. E, muito intimamente, nunca na realidade duvidaria de que,
mais cedo ou mais tarde, quando já não lhes interessasse, haveriam de restituí-la à liberdade. Apesar de todas as suas apreensões e depressões, nunca acreditara seriamente que, no fim, não lhe seria permitido voltar a casa. Agora, essa fé tinha-se dissipado. A carteira de Shively trazia-lhe a
sentença.
Ficou a pensar se os três companheiros de Shively conheceriam ou não o seu passado. Talvez não, pensou ela. Ele tinha mudado o nome para esconder esta história, e não confiaria em ninguém.
Desesperadamente, pensou se deveria ou não contar a verdade acerca de Shively a Brunner ou ao Sonhador. Poderia dizer-lhes que era tanto para o
bem deles como para o dela. Eles tinham de saber que um dos seus com panheiros era assassino, e que, se cometesse outro assassínio, eles também
estariam envolvidos. Sabendo isto, talvez eles a protegessem e a ajudassem a
fugir. Mas o seu instinto dizia-lhe que não deveria revelar a ninguém este
horrível segredo. Eles eram, neste caso, coniventes contra ela, confiando e dependendo uns dos outros. Era o laço comum. Ao ouvir a história, um deles
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poderia repeti-la a Shively, ou mesmo, inocentemente, perguntar-lhe se era verdade. E isso seria o fim.
Tentou convencer-se a si própria de que o seu fim não estava necessariamente predestinado. Lá porque um homem, no passado, tinha cometido um assassínio sob pressões de combate em tempo de guerra, isso não significava que ele teria de voltar a ser assassino em tempo de paz. Se era intenção de Shively libertá-la quando chegasse a altura, ou liquidá-la secretamente, ela não o saberia até ao momento final da verdade. O veredicto de Shively, vida ou morte para Sharon Fields, que ele, e só ele, mantinha na cabeça", tornaria insuportáveis os dias que faltavam.
Teve uma certeza acentuada pela determinação que se impusera e que excedia tudo o que tinha sentido nas últimas quarenta e oito horas.
Não podia arriscar-se a deixar o veredicto nas mãos de Shively. Deveria ser ela a responsável, a dona do seu destino.
A sua motivação estava agora despida até à sua pura essência. Já não precisava de alcançar o mundo exterior com o único intuito de evitar mais abusos e degradação. Já não precisava de contactar o exterior só para se poder vingar. Não era só a sobrevivência que contava agora.
Sim, agora, era a pura essência. Vida ou Morte.
O Tempo juntara-se a eles como outro inimigo.
Precisava de fugir o mais depressa possível. Ou ser encontrada e posta em liberdade o mais depressa possível.
Mas como, como, como?
Puxou o autoclismo para que ele não desconfiasse que ela estava ali por outra razão.
Abriu sem ruído a porta da casa de banho, apagou a luz, e voltou nas pontas dos pés para o quarto. Conseguia distinguir Shively. Oh, Deus, precisava de se esquecer do nome dele por agora, não fosse ela acidentalmente pronunciá-lo. Continuava a dormir, ressonando ligeiramente.
Os olhos dela atravessaram o quarto até à porta. Um só puxador a ser virado, uma porta a ser aberta, e era este o caminho para a liberdade.
Mas os obstáculos desconhecidos para além daquela porta eram assus tadores. Não conhecia a planta da casa. Não sabia se os outros ocupantes estavam perto, acordados ou a dormir. Não conhecia as redondezas. Eles conheciam, ela não. Os obstáculos eram inúmeros.
Não obstante, deveria ela tentar? Escapar-se, pôr-se a caminho, correr? Se eles a apanhassem, o castigo seria selvagem. Toda a credibilidade deles, ganha devido à colaboração, ao amor, à complacência dela, seria apagada. Eles saberiam que ela os havia estado a enganar e que ainda os odiava. Os seus privilégios seriam imediatamente retirados. Seria mais uma vez amarrada. Seria brutalmente castigada antes de ser executada. Todas as suas vagas esperanças seriam dissipadas.
Antes de ter tomado uma decisão, ali, de pé, às escuras, foi interrompida.
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Shively mexeu-se na cama, virou-se, apoiou-se num cotovelo, esfregou um dos olhos.
- Onde estás tu?
- Estou aqui mesmo, querido. Tive de ir à casa de banho - respondeu ela.
Com as pernas a tremer, voltou para a cama.
Mais tarde, depois de ele se ter ido embora, e à medida que o Nembutal ia fazendo efeito, ela tentou combater a invasão do sono no intuito de pensar no seu futuro e nas medidas a tomar.
Até à data, a sua representação tinha-lhe trazido alguns lucros, mas não suficientes, nem suficientemente rápidos, principalmente agora, sabendo ela que havia um assassino sob o mesmo tecto.
Estava algures nos arredores de Los Angeles. Numa zona selvagem de montes ou montanhas, mas perto de uma cidade pequena. Tinha uma lista de compras que iria percorrer aquela cidade. Não sabia mais nada a não ser que havia um Howard Yost, um Leo Brunner, um Kyle T. Shively, Scoggins de nascimento, e outro ainda sem nome, a quem ela alcunhara de Sonhador.
Não era o suficiente, tinha que haver mais elementos. Pensa, Sharon, pensa! Meditava, com esforço, antes que o sono se apoderasse dela. Havia um pensamento - um único pensamento que flutuava como um náufragoquando o sono chegou.
Teria de descobrir exactamente o que era.
Precisava de comunicar com o exterior.
Tentava agarrar esse pensamento flutuante, essa ideia, essa possibilidade que momentaneamente lhe veio à cabeça, e que iria salvar a sua vida, quando adormeceu embalada pela esperança do dia de amanhã.
Capítulo décimo primeiro
Precisamente à uma hora da tarde de segunda-feira, Adam Malone sentou-se na coxia da última fila do Novo Teatro de Arlington e esperou que os documentários começassem.
Quando a sua vista se acostumou à escuridão, conseguiu ver mais umas quantas pessoas dispersas na sala, esperando que a sessão começasse. Eram, tal como previa, jovens, na sua maioria, e podia ouvir as suas conversas e o barulho de pipocas quando as tiravam dos seus sacos de papel. As apresentações dos próximos filmes apareceram no écran os jovens estavam tão desatentos como ele próprio, aguardando que o filme de Sharon Fields começasse.
Fora um rasgo acidental de sorte que trouxera Adam Malone a esta fresca casa de espectáculos neste dia quente de fim de Junho.
Na véspera, de manhã, Howard Yost ouvira um programa desportivo de uma estação de rádio de Riverside. Malone, na mesma sala, estava desinteressado
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do programa, até que um anúncio lhe chamou a atenção. Anunciava o Novo Teatro de Arlington recentemente reaberto e renovado. Uma vez que as escolas estavam fechadas para férias, o teatro ia dar início a um ciclo de matinees diárias, exibindo filmes populares dos últimos dez anos. As sessões da noite teriam os programas normais. Para a sua primeira matinee, o teatro anunciava o filme de grande sucesso, um recorde de bilheteira, The Clients of Dr. Belhomme , com Sharon Fields. Este filme havia sido um dos êxitos internacionais da actriz há seis anos.
- Ouviu isto - perguntara Malone, excitado. - Vão exibir em Arlington um dos melhores filmes de Sharon Fields. É dos poucos que só vi uma vez. Gostava de o ver outra vez.
Yost estava divertido.
- Para que é que a quer ver no ecran, se a tem a actuar para si, em carne e osso, no quarto ao lado? - perguntara ele.
- Não sei - dissera Malone. - Seja como for, seria diferente, e também mais interessante agora.
- Bem, está bem, vou mostrar-lhe como sou um gajo porreiro continuara Yost. - Tinha planeado ir sozinho a Arlington, na segun da-feira, de manhã, para comprar mais abastecimentos, e comida fresca, senão ainda apanhamos escorbuto. Se quiser, levo-o.
- Isso seria óptimo, Howard. O problema é que o filme só começa à uma.
- Não faz mal. Pode ser que você ainda venha a ser um bom cliente de seguros. Saímos por volta do meio-dia, chega lá antes da hora. Enquanto eu compro as coisas, você pode ver ao menos parte do filme.
Ao meio-dia, após as recomendações de Shively de que não deveriam dar muito nas vistas, e dos avisos de Brunner para terem cuidado, puseram-se a caminho no carro de sport, dirigindo-se para as colinas, em direcção a Arlington.
O sol, ao meio-dia, estava escaldante, e, quando chegaram ao sítio rochoso, onde a carrinha de mercadorias Chevrolet estava escondida, ambos transpiravam profusamente, tendo as camisas encharcadas e coladas ao corpo.
Yost pensou em trocar o carro de sport pela carrinha e continuar nela o caminho. Mas depois desistiu da ideia de tirar a camuflagem da carrinha e de a pôr no carro, debaixo daquele calor insuportável. Continuaram no carro, passaram pelo planalto de Gavilan, pela Rocha Camp Peter, através do portão do Rancho McCarthy. Finalmente, alcançaram a Estrada de Cajalco, passando pelo grande reservatório conhecido por Lake Mathews, depois pela Estrada de Mockingbird Canyon que levava à cidade.
Uma vez na Avenida Magnólia, no coração de Arlington, Yost guiou o carro num tráfego surpreendentemente intenso até uma arcada de lojas com estacionamento entre duas filas de edifícios com lojas de todos ostipos.
Yost olhou em redor.
- Acho que vou encontrar tudo aqui. Há um supermercado do outro
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lado da rua, e dois drugstores, e, bem, pensei em.... fica entre nós.... levar à nossa amiga algumas roupas para mudar.
- Isso é simpático, Howie.
- Acho que sim. Deixo aqui o carro ou quer você levá-lo até ao
cinema? Não é longe. Dois quarteirões a oeste do sítio onde virámos para a Avenida Magnólia.
- Importa-se que eu leve o carro, Howie? Estou quase derretido com este tempo.
- Está bem - abriu a porta e saiu. - A sua disposição. Apenas
uma coisa.... quanto tempo leva o filme?
Malone mudava-se para o lugar do volante.
- Cerca de duas horas.
- Então não pode ver todo. Devo estar despachado dentro de uma hora,
e não gosto de estar pendurado. Pode vir buscar-me, digamos, às duas horas.
Malone encolheu os ombros.
- Meio filme de Sharon Fields é melhor do que nada.
Yost apontou para o estacionamento.
- Ali, em frente daquele drugstore na Avenida Magnólia, às duas horas. Estarei lá, cheio de embrulhos, à sua espera.
E, agora, Adam Malone estava sentado no cinema, prestando toda a sua
atenção ao écran o nome de Sharon Fields apareceu em vermelho vivo, e
depois o título do filme, The Clients of Dr. Belhomme , sobre um fundo
tricolor, vermelho, branco e azul. De repente, o fundo tricolor desapareceu e
podia ver-se uma placa indicando Rue de Charonne. A câmara percorreu uma
rua elegante em Paris do século XVIII, indo parar no portão de um edifício
que parecia um hotel de luxo. Havia uma chapa afixada ao lado deste portão que dizia: ASILO PARTICULAR PARA DOENTES MENTAIS.
DR. BELHOMME, DIRECTOR.
Começou o filme.
Um plano da capital francesa, com uma legenda PARIS, 1793. No auge da Revolução Francesa e do Reino do Terror.
Esta cena foi rapidamente seguida por uma montagem de imagens de
Paris, durante o Terror, a câmara focou a guilhotina da Praça Luís XVI,
onde o carrasco, conhecido por Monsieur de Paris exibia as cabeças dos
aristocratas decapitados - a quem ele chamava clientes - para uma multidão ululante.
Concentrando-se no que estava a ver no écran, Adam Malone tentou avivar a sua memória e lembrar-se do enredo deste filme de Sharon Fields.
Recordava-se de que Sharon Fields fazia o papel de Gisèle de Brinvilliers, filha
adoptiva do simpático Conde de Brinvilliers, um aristocrata francês liberal
que não caíra nas boas graças dos revolucionários conflituosos e activistas.
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Tentou lembrar-se do resto da história. Tinha uma vaga ideia. Sharon Fields no papel de Gisèle tentara esconder o pai até ele conseguir fugir da França. Malone lembrou-se rapidamente da ideia básica, ligada a um episódio histórico. Gisèle e o pai conseguiram esconder-se temporariamente num manicómio dispendioso no centro de Paris, um refúgio que pertencia ao Dr. Belhomme. O bom médico havia transferido os trinta e sete verdadeiros lunáticos para outro local e tinha-os substituído por aristocratas condenados à morte e que estavam dispostos a pagar fortunas por aquele esconderijo incrível. A parte mais emocionante do filme, lembrou-se Malone, apesar de a sua memória estar incerta nos pormenores, era quando Gisèle se esforçava por esconder o pai no manicómio e, simultaneamente, tentava avisar alguém que partia para os Estados Unidos dos apuros em que se encontravam. Malone tentou lembrar-se se Gisèle havia conseguido, mas a sua memória não o ajudou.
De qualquer modo, uma história maravilhosa , pensou Malone tremendo enquanto a imaginava, ao mesmo tempo que se aconchegava no seu lugar, disposto a seguir com atenção o apaixonante enredo.
Mais do que tudo, aguardava, ansiosamente, a primeira aparição de Sharon Fields na personagem sedutora e ousada de Gisèle de Brinvilliers. E, por fim, lá estava ela, num esplêndido technicolor, no écran, à sua
frente, banhando-se languidamente numa banheira em forma de cisne, no piso superior do castelo da família, nos subúrbios de Paris. Adam Malone estava totalmente absorvido.
Ela era uma visão etérea, embora real, uma mulher enganadoramente angélica que irradiava sensualidade, o cabelo louro arranjado para cima, o perfil clássico, parte dos seus voluptuosos seios nus visível por cima do bordo da banheira e através da espuma do sabão.
Mudança. Ela secava-se, embrulhada num toalhão branco, húmido e colado ao corpo, os contornos do impecável corpo de mulher aparecendo aos olhos dos seus jovens admiradores aristocratas. Ela era a personificação do esplendor, a cabeça caída para trás, o riso gutural. Encarnava o desejo, de olhos verdes semicerrados, a voz aveludada, o andar felino. Era o símbolo de uma alma livre, agora completamente vestida, o vestido mal cobrindo os jovens seios, enquanto corria pelos jardins do castelo para um encontro, desconhecendo que o Terror tudo iria impedir.
A dramática revelação do iminente perigo.
A fuga, à noite, com o Conde e os outros para o refúgio no asilo do Dr. Belhomme.
A segurança precária e temporária no manicómio.
Adam Malone, atento, perdido na velha fantasia. Ela era um modelo de perfeição, a deusa que representáva a promessa de toda a feminilidade, mas que era uma imagem intocável no écran, intocável, inatingível, fora do alcance de meros mortais.
Quando a cena mudou para os dirigentes do Terror, Adam Malone lembrou-se, de repente, onde estava e olhou para o seu relógio. Estava no
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cinema há já cinquenta minutos, e sabia que tinha de partir naquele momento, para regressar ao não tão atraente mundo da realidade.
A saída quase lhe causou um trauma, quando tirou os óculos de sol e
mergulhou na claridade abrasante da rua principal de um lugar chamado Arlington, na Califórnia.
Ofuscado, tentando orientar-se na sua inexplicável confusão, conseguiu
encontrar o caminho para o parque de estacionamento onde o carro cozia ao sol.
Já no carro, tentou comparar a deusa remota do écran com a jovem que
ele há duas noites finalmente possuíra e com quem, na noite anterior, ainda
com mais êxito, tinha tido outra vez relações sexuais.
Acomodou-se ao volante, ainda golpeado pela confusão. A Giséle no filme
desta segunda-feira à tarde e a Sharon em carne e osso que lhe dera amor físico
no sábado e no domingo à noite nada tinham a ver uma com a outra. Inexplicavelmente, não eram um só ser. Gisèle nunca permitiria que um zé -ninguém, um tipo vulgar como ele, entrasse no seu corpo. No entanto
Sharon deixou-o fazer isso, encorajou-o, ajudou-o, e teve tanto prazer como ele na ligação.
Não fazia sentido.
Sem saber porquê, e isso também não fazia sentido, sentiu uma profunda dor emocional como se tivesse perdido alguém e sofresse terrivelmente.
Agora, já estava arrependido de ter ido ao cinema. Não devia ter- se
permitido esta fuga temporária no mundo da fantasia. Ele tinha, na vida real,
uma coisa que fazia com que todos os homens o invejassem, e isso era o suficiente.
Com um suspiro, Malone pôs o carro a trabalhar, deu a volta ao bloco, e
dirigiu-se para o sítio onde tinha combinado encontrar-se com Howard Yost.
Viu à entrada do drugstore Howard, vermelho e a bufar, carregava com
dificuldade um saco grande, cheio de embrulhos de diferentes tamanhos e formas.
- O último dos grandes gastadores - resmungou Yost, enquanto largava
O saco no banco de trás. - Espere um pouco. Tenho de ir buscar outro saco.
Voltou a desaparecer dentro do edifício, e, segundos depois, vinha com
um saco ainda maior, que parecia trazer géneros alimentícios. Com a ajuda de
Malone, conseguiu lugar para este embrulho também no lugar de trás.
- Tudo bem - disse ele. - Vamos andando.
Assim que Yost se sentou ao lado de Malone, um homem de idade,
curvado, barrigudo, careca, de cara enrugada e queixo saliente, vestindo um casaco branco, saiu do drugstore a manquejar, chamando por Yost.
- Senhor, um momento, senhor!
Yost virou-se, algo intrigado, depois disse para Malone:
- É o dono do drugstore. Que é que ele quererá?
Este aproximou-se de Yost quase sem respiração. Trazia na mão uma nota e algumas moedas.
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- Esqueceu-se do seu troco - disse ele. - Não podia deixá-lo ir embora sem o seu troco.
Yost aceitou o dinheiro, com um sorriso agradável.
- Um homem honesto - respondeu ele. - Era bom se houvesse mais pessoas assim. Obrigado.
- Não gosto de guardar o que não me pertence - replicou o velho, com um ar pio. - Tive muito prazer em servi-lo. Vou tentar arranjar-lhe aqueles dois produtos que não tenho em armazém.
Yost sorriu-lhe.
- É muito amável da sua parte.
Voltou para o carro, o homem do drugstore afastou-se um pouco e olhou para o carro, admirando-o.
- Este carro é que é prático! - exclamou ele. - Já tive um no rancho. Mas não me dava jeito para a cidade. Os pneus não aderiam bem ao piso das estradas. É preciso ter muito cuidado com este carro.
- Estes novos são mais bem fabricados - assegurou-lhe Yost. - Os pneus são especiais, tanto servem para a areia como para a estrada.
O velho apreciou os pneus, abanando a cabeça.
- Bem vejo, Cooper 60. Quem me dera ter tido destes pneus no meu carro. Talvez venha a comprar outro.
- É um bom carro - retorquiu Yost. - Bem, prazer em vê-lo. E obrigado pela ajuda.
Malone pôs o carro em marcha, acelerou, virou para a Avenida Magnólia, em direcção às colinas de Gavilan.
- Parecia muito esperto o velho - disse Malone. - Espero que não lhe tenha feito muitas perguntas.
- Não lhe dei tempo. Apresentei-lhe uma lista enorme e pu-lo a andar de um lado para outro até você chegar.
- Quais eram as coisas que ele ia encomendar para si?
Yost abanou a cabeça.
- Nada de especial. Não estaremos cá quando elas chegarem. Era uma ou duas coisas que eu queria oferecer à Sharon e que ele não tinha. E o filme, conte lá!
- Bom - respondeu Malone, concentrando-se na condução. Não estava com disposição para fazer conversa, estava demasiado confuso.
- Eu avisei-o - resmungou Yost. - Não há filme que chegue à realidade, e nós temos a realidade à nossa espera, a menos de uma hora de caminho. - Tirou o lenço e limpou a cara suada. - Jesus, está calor!
Malone olhou para ele.
-Porque não fazemos uma pausa refrescante?
- Que pausa?
-Irmos nadar um pouco.
- Onde?
-Naquele lago que encontrámos à vinda.
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Yost estava horrorizado.
- O Lake Mathews? Você é doido? É um reservatório particular. É patrulhado, e, se formos apanhados, estamos tramados. - Encostou-se no assento. - Não nos vamos arriscar com pequenas loucuras. Já nos arriscámos bastante e conseguimos. Somos os tipos com mais sorte no Mundo. Lembre-se do que temos hoje à nossa espera. Não chega para o satisfazer?
- Claro que chega - respondeu Malone.
- É o céu, é o que é - disse Yost, com fervor. Olhou para a estrada através do pára-brisas, e inclinou a cabeça com apreensão. - Se alguém soubesse.
Era segunda-feira, de noite, e Sharon Fields estava de novo deitada, com Shively em cima dela a moê-la com a sua broca pneumática, enquanto as suas mãos, nádegas e coxas correspondiam como se as tivesse programado para isso.
Mas, agora, o animal que se encontrava em cima dela, o que já fora Kyle T. Scoggins, não podia ser encarado como um mero violador viciado. Ele era, sabia-o, um assassino, e ela podia ver à sua frente essas cinco crianças que ele
havia matado à metralhadora, porque não queria sobreviventes que pudessem vir a ser perigosos .
A sua actuação de ontem à noite com Shively, antes da revelação do seu passado, tinha sido boa, e ela tentou mentalizar-se de que precisava de agir da mesma maneira, esta noite, mesmo que o achasse mais assustador e nojento do que nunca. Por isso o seu corpo correspondia apaixonadamente. Mas a cabeça continuava a pertencer a ela própria, só a ela.
Hoje, segunda-feira, havia dormido até ao meio-dia. Durante a primeira parte da tarde, sozinha, recuperou no seu pensamento errante a ideia que quase lhe viera ao espírito na noite anterior. Era uma pequena e invisível tábua de salvação que podia salvá-la se a soubesse usar. Estava imobilizada, incapaz de desenvolver a ideia ou plano das suas próximas actuações. O que a tinha imobilizado, sabia-o ela, era o seu conhecimento do passado de Shively e do seu potencial para o homicídio.
Durante o resto da tarde, Yost apareceu brevemente para lhe dizer que havia voltado das compras e que lhe traria todas as surpresas depois do jantar.
Nas poucas horas que se seguiram, fez todos os esforços para se recompor, para se preparar para a noite, determinada a utilizar o tempo que tinha à sua frente e a adaptar-se às surpresas que reservava para os seus raptores.
Concentrou-se mais uma vez na ideia ardilosa, na tábua de salvação que lhe tinha ocorrido à cabeça ontem à noite e que tentara examinar durante grande parte do dia de hoje. Quando a noite se aproximou, a ideia estava informe, ou, pelo menos, não estava inteiramente formada, mas estava ali no seu espírito, como uma névoa que cercasse um ancoradouro de refúgio.
Agora, que a noite já tinha começado, e a figura de Shively em cima dela metralhava o seu orifício como se fosse um esgoto em My Lai, precisava de retirar do seu espírito o esgoto e esses pobres cadáveres e dedicar-se inteiramente ao carrasco, se queria sobreviver.
A maratona sexual continuava, e ela concentrava-se mais uma vez nas suas atitudes, nos seus gestos, no seu papel.
Quando ele gastou a última bala, ela reagiu de acordo com o seu enredo, começando a sua interminável e desamparada cena de convulsão do orgasmo. Como sempre, a cobra estava satisfeita consigo, e, presumivelmente,também com ela, e descansada. Aconchegou a cabeça ao seu peito peludo e abraçou-se a ele, enquanto pensava na atitude que iria tomar.
Ele começoú a rir, o que não era hábito, e ela perguntou-lhe porquê.
- É por causa do velho, estava a pensar nele - esclareceu.
- Que lhe aconteceu?
- Hoje não vem, está estoirado, quer um dia de folga. Que é que lhe fizeste ontem à noite?
- Estive com ele dois minutos em vez de um só - informou ela, com voz de prostituta.
Shively desatou a rir.
- Lá esperta és tu.
Ela saiu-lhe de cima do peito, e pousou a cabeça no travesseiro, ao lado dele.
- Sou mais do que isso, e tu sabe-lo bem.
- Sim, és. Tens mais força do que eu pensei. Já me deste a prova disso. Ela olhou para ele francamente.
- E a prova que tu me deste? Tu és o único que me realizas, muito poucos homens conseguem isso. Na verdade, quase nenhum. Mas, contigo, venho-me todas as noites. Onde é que aprendeste a ser tão bom amante?.
A modéstia não era um dos seus problemas.
-Alguns homens são assim por natureza, outros não.
- Na maior parte, eles não são, asseguro-te eu - replicou ela, pausadamente, preparando-se com cuidado para o seu próximo passo. - Quando uma mulher encontra alguém especial, fica roída de curiosidade acerca dessa pessoa.
- E tu tens curiosidade a meu respeito?
- E não tenho razão para estar curiosa? Tenho pensado bastante em ti. Imaginando qual seria a tua vida antes de nos encontrarmos. Como, por exemplo, a tua profissão.
A amabilidade dele desapareceu num instante. Mirou-a de modo cruel.
- Pela tua saúde, menina, vê se não pensas em mim ou se te deixas de divagações a meu respeito. Não gosto de fêmeas curiosas, só causam chatices.
- Isso não é verdade. Não estou a ser indiscreta. Sei mais do que isso. Só porque me preocupo contigo. Quando um homem consegue fazer-me o que tu me fazes, quero conhecê-lo mais intimamente. Estoú realmente
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impressionada com a tua experiência e força sexual. Conheço centenas de mulheres que dariam tudo o que tu quisesses para as satisfazeres como a mim. Se soubessem, fariam de ti o homem mais rico da Terra.
- Não me parece - disse, com azedume. - Claro, assim é que devia ser, mas não sabes que é preciso ter um certo estilo e classe nesta sociedade de merda? Pessoas como eu, os que realmente trabalham no nosso país, os escravos, não têm sequer a oportunidade de se evidenciarem. A sociedade paga milhões a um tipo que saiba dizer umas graças, ou que tenha talento para impingir acções ou propriedades, mas ninguém dá nenhuma importância a um tipo que tem o maior talento de todos, isto é, que consegue fazer metade da população feliz - refiro-me às mulheres. Que tenha talento para fazer uma mulher feliz na cama.
- Tens toda a razão - concordou ela, gravemente.
- Claro que tenho. É por isso que estou lixado. O sistema cheira mal e eu estou lixado. Tenho de continuar atrabalhar com os meus dedos durante oito horas, por vezes dez horas, por dia, e o que é que lucro com isso? Dinheiro para comer, e nada mais.
- Concordo contigo, não é justo - disse ela. - Mas, conhecendo-te, acho que deves ser bom na tua profissão, deves ter um bom salário. Posso perguntar-te. o que fazes?
- Ganho o suficiente - respondeu ele, de mau-humor. E acrescentou. O suficiente para o que faço, mas não o suficiente para o que mereço.
- É pena.
Ele olhou-a com rancor.
- Tens pena? Tu és dos que têm a barriga cheia. Ouvi dizer que fazes um milhão e um quarto, por ano.
- Esses relatórios são sempre exagerados - disse ela, fingindo exasperação.
- São uma figa! Se queres saber a verdade, sei exactamente quanto fizeste no ano passado. é úm número que não me sai da cabeça. Fizeste, exactamente, um milhão duzentos e nove mil quatrocentos e cinquenta e um dólares e noventa cêntimos, no ano passado. Sem tirar nem pôr. Estudámos tudo a teu respeito, portanto não vale a pena negares.
- Está bem - concordou ela. - Não o nego. De facto, admito que estou impressionada com o teu. o teu conhecimento.
Ela estava, na verdade, impressionada, e momentaneamente deprimida pela eficiência do plano deles. Estava provado que eles não tinham falhado um único elemento. Mas ela não podia deixar que isso, ou qualquer outra coisa, a abalasse, e continuou a ouvir.
- Imagina - ia ele dizendo -, imagina ganhar mais de um milhão por ano só para mostrar as mamas e bambolear o rabo em frente das câmaras. Não, não te quero chatear, miúda, mas tens de admitir que não é justo.
Ela baixou a cabeça, transpirando sinceridade.
- Sempre fui a primeira a admitir que isso não era justo. É patente que
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não está certo. Mas o mundo é assim, e nada se pode fazer para o modificar. Estaria, ao mesmo tempo, a mentir-te se não dissesse que me sinto feliz por isso me ter acontecido. Já fui rica e já fui pobre. e ser rico é, sem dúvida, melhor. Mas, às vezes, quando penso nisso, devo admitir que tenho rebates de consciência, mas. oh, bem, porque hei-de aborrecer-te com as minhas culpas?
- Não, continua - incitou-a ele. Deu-lhe a deixa, e ela continuou.
- É um complexo de culpa, sabes? Olho à minha volta. Pessoas sim páticas, decentes, trabalhando duramente em escritórios, lojas, fábricas, prestando serviços importantes, dando o seu máximo durante oito ou mais horas por dia, e com ordenados entre os cento e vinte e cinco, cento e setenta e cinco ou mesmo duzentos e cinquenta dólares por semana, que pode não parecer assim tão mau, mas, depois de todas as taxas e impostos pagos, vêem-se em apuros. Estão sempre em dívida, tentando levantar a cabeça para não se afogarem. E depois olho para mim, vejo o que tenho. Eis-me, aos vinte e oito anos. Trabalho muito, bem sei, mas não mais do que os outros. E vejo como sou recompensada. Uma casa com vinte e dois quartos no valor de meio milhão de dólares. Criados por todos os lados, três carros importados feitos de encomenda. Uma centena de peças de vestuário. Dinheiro investido que me permite não trabalhar mais, se quiser. Posso viajar ou fazer o que me apetecer. E tudo graças ao Félix Zigman, o meu empresário. E sabes que isso me faz sentir embaraçada, culpada. ter tanto, tendo outros tão pouco? Eu sei que não é justo, mas parece-me que não se pode endireitar o mundo.
Ele seguia, fascinado, todas as suas palavras, como se ela fosse Scheherazade.
- Vá lá - disse ele -, ainda bem que sabes que é assim. - Ficou outra vez mal-humorado. - Conversa de dinheiro. É a única linguagem que toda a gente conhece, a merda do dinheiro.
Ela observou-o, enquanto ele saía da cama e se vestia em silêncio, e continuou:
- Mas digo-te uma coisa. Confesso que quando acordei e me vi aqui, amarrada, percebi, pela primeira vez, que o dinheiro não é tudo. Percebi que há coisas mais importantes, como a liberdade. Houve alturas, ao princípio, em que daria tudo para estar simplesmente livre.
Ele continuava a vestir-se, mas escutava-a.
- Claro, quando vocês me libertaram e me deram liberdade, os meus sentimentos mudaram. E, como sabes, não tenho sentido a falta daqueles luxos superficiais que tenho em casa. Talvez porque agora tenho coisas que o dinheiro não pode comprar.
Ele apertou o cinto.
- Menina, tanto quanto eu me lembre, não há nada que o dinheiro não possa comprar.
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- Bem, talvez, não sei. Mas gostava de saber no que estás a pensar. Se tivesses todo o dinheiro que quisesses, o que é que compravas? Que farias tu com ele?
- Não te preocupes - respondeu ele, de mau-humor. - Eu sei o que comprava.
- Diz-me lá.
- Noutra altura, hoje não me apetece. Obrigado por me teres deixado usar a tua saca. Até amanhã.
Deixou o quarto.
Ela encostou-se, sorrindo, a ideia tinha-se-lhe cristalizado na cabeça, tomado forma, passado o primeiro teste. A indefinida tábua de salvação tinha-se transformado num refúgio visível para a sua fuga. Os riscos eram muitos. Uma escorregadela significava morte imediata. Mas se não se esforçasse por conseguir o objectivo, também isso podia significar morte, não havia outra opção.
De qualquer maneira, ela era uma jogadora.
Vinte minutos depois, o vendedor de seguros, Howard Yost, apareceu, cheio de caixas e embrulhos, entrando no quarto como se fosse o Pai Natal.
Pôs os presentes na chaise longue e disse:
- Para a minha namorada, nada é de mais!
Ela deu um gritinho de alegria, seguindo mais uma vez o enredo, abraçou-o, e correu para os presentes, rasgando os papéis dos embrulhos, enquanto ele, o seu benfeitor, a olhava, orgulhoso da sua própria generosidade.
Ao mesmo tempo que abria os embrulhos, reparou na sua camisa berrante e sem gosto, estilo hawaiiano, e nas calças, não menos ostensivamente feias, esperando que o seu ar espantado fosse confundido com um ar agitado de expectativa.
Os presentes estavam todos espalhados à sua frente: uma camisola de lã purpúrea que provavelmente arranhava, duas saias, muito curtas, uma às pregas, que seria talvez para jogar ténis, com uma espécie de calcinhas por baixo, mas não eram calcinhas; dois soutiens transparentes, algumas fitas para o cabelo, uma caixa com cosméticos, um par de pantufas e uma camisa de noite, cor-de-rosa, pequeníssima.
- Agora, abre aquele - disse ele, apontando para uma caixa pequena. Ela abriu-o e tirou duas tiras de algodão fino, branco. A parte de cima de um biquini que mal tapava os bicos dos peitos e uma parte inferior que não era mais do que um remendo pregado por um fio.
Pulou, deliciada, e beijou-o.
- É exactamente o que eu queria! É de sonho! Como é que adivinhaste?
- Como é que poderia errar, sabendo que és tu quem o vai encher?
- Perfeitamente - cantarolou ela. - Estou morta por experimentá-lo.
- E eu morto por te ver com ele.
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- Está bem, se tiveres paciência, visto-o para tu veres.
Agarrou a caixa dos cosméticos, pôs o biquini e a caixa das pantufas por cima e foi a dançar até à casa de banho, deixando a porta parcialmente aberta.
- Deixo a porta assim para podermos conversar - gritou ela. - Mas não olhes enquanto eu não estiver pronta. Quero fazer-te uma surpresa.
- Está bem.
Enquanto despia a blusa e a saia de cabedal, continuou a conversar.
- Estou orgulhosa de ti. Não te escapou um único pormenor.
- Nem por isso - ouviu-o ela dizer. - Quis comprar tudo o que tu querias, mas não consegui encontrar tudo. Tentei, mas não consegui. Há só um número limitado de lojas na cidade, que são especialmente para a gente da terra. Mas havia algumas coisas giras.
- Havia, pois, pelo que vejo. - Ela esperou um pouco, e, depois, perguntou - Que foi que não encontraste?
- Não tinham o perfume francês que querias.
- Cabochard de Madáme Grès?
- Nunca tinham ouvido falar nele. Por isso escolhi um perfume chamado Aphrodisia. Espero que não te importes.
-Claro que não. Estou-te reconhecida.
- Depois, aquelas pastilhas inglesas de mentol, também não havia.
- Posso muito bem passar sem elas. - Esperou um pouco mais. - E as cigarrilhas Largo?
- O dono do drugstore já tinha ouvido falar nelas, mas não as tinha. E, quanto à revista Variety , bem, se quiseres a Hot Rod , eles tinham-na no mostruário mas nunca tinham ouvido falar na Variety , nem sequer alguém a tinha pedido.
-Não me admira.
- Mas arranjei quase tudo.
-Bem vejo, querido, mais do que o necessário. Estou-te verdadeira mente reconhecida.
- Mas se ainda quiseres alguma das coisas que faltam, pode ser que se arranje alguma delas. - Ele insistiu em encomendar o perfume, as Altoide as Largo. Quanto à Variety, era difícil, mas ele ia ver se conseguia arranjar tudo para o fim-de-semana. - Podia voltar à cidade na sexta-feira e procurar, se ainda estás interessada.
-Veremos. Já fizeste muito.
Segurando os fios do biquini, reparou em dois bocados de papel com uma informação qualquer que não teve tempo de ver se era de valor e escondeu-os. Ele talvez fosse à cidade de novo na sexta-feira. Hoje era segunda-feira. Tinha ainda quatro dias, tempo esse em que o carrasco iria decidir o seu destino. O proprietário do drugstore tinha escrito três das cinco pistas que ela tinha deixado. Podia ser que não fossem sequer detectadas.
- Dá-me mais uns minutinhos para me embelezar - pediu-lhe ela.
- Está bem, mas não muitos. Estou a ler as tuas revistas.
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- Óptimo.
Virou o biquini ao contrário na esperança de encontrar uma pista que lhe
indicasse aonde tinha ele ido. Não havia pano suficiente para esconder uma
etiqueta. Enquanto examinava as pantufas de quarto, descobriu o fio de uma
etiqueta que tinha sido arrancada. Apalpou a caixa dos sapatos, não encontrando nada depois, levantou a caixa e fez uma marca no sítio de onde
tinha sido arrancada a etiqueta.
Voltou-se para o saco maior do cesto. Estava cheio com uma dúzia de pequenos embrulhos, recolhidos de diversos balcões do drugstore, todos embalados separadamente. Tirou os pacotes, examinou-os um por um, e verificou os sítios de onde haviam sido arrancadas as diversas etiquetas. Levantou
os três últimos pacotes para verificar o fundo do saco, quando um pedaço de
papel amarelo escorregou por entre os embrulhos, indo cair no chão da casa
de banho. Tinha a parte de cima virada para baixo, e ela rezou para que não
dissesse só o nome da loja. Pôs os embrulhos no saco, e ia ajoelhar para
apanhar o papel, quando ouviu a voz dele atrás dela, mesmo por detrás da
porta da casa de banho.
- Que se passa, querida? - perguntou Yost. - Tenho de te ver. Se não
sais tu, entro eu.
- Um segundo.... - teve de se controlar para não gritar.
Apanhou o papel. Não teve sequer tempo para o virar. Levantou o saco
para cima, tirou a tampa do cesto das toalhas, e atirou o papel lá para dentro.
Endireitou-se, compôs o cabelo, e tentou refazer a sua pose, embora estivesse
morta de medo. Encaminhou-se para a porta. Tinha de pôr aquele parolo fora do quarto depressa.
- Não avances, querido - gritou ela. - A passagem de modelos vai começar.
Empurrou a porta para o lado e deslizou sensualmente, de pélvis espetado
para fora, como um modelo de alta-escola. Ele estava de pé, aos pés da cama, despido, um monte imenso de carne cor-de-rosa, tudo pendurado.
Passo a passo, ela avançou para ele, observando os olhos dele a saltar.
- Ena! - exclamou ele.
Ela passeava provocantemente, fazendo piruetas, e olhando para ele. Os
seus seios volumosos saltavam por cima e por baixo do soutáen do biquini. A
parte inferior era tão apertada, tão justa, que se notavam todas as formas do sexo.
- É a única coisa que sabes dizer? -repreendeu-o ela.
Continuava a bambolear-se à frente dele, o pélvis ainda atirado para a frente, incitando-o. Pôs-lhe as mãos nos ombros, apertando-os suavemente.
- Ena! - repetiu ele.
- De que estás tu à espera? - murmurou ela. - Eu pu-lo. Agora
alguém tem de mo tirar.
Ela viu-lhe a cara de homem devasso desaparecer de vista.
Ele estava de joelhos à frente dela. Com os dedos, tentava desapertar o fio
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do biquini. A parte de baixo abriu-se, à frente e atrás, enquanto ela abria as suas longas pernas e deixava escorregar o biquini.
Babando-se com a excitação, ele enterrou os seus olhos, depois o nariz e finalmente a boca entre as suas pernas.
Ela fechou os olhos, e atirou a cabeça para trás.
- Não, não, querido, não - pediu ela. - Levanta-te, por favor, levanta-te, deixa-me ser eu a fazê-lo.
Ele cambaleou aos pés dela, com o seu instrumento gordo apontado para ela; com um soluço, ela ajoelhou e começou a beijá-lo. Ele sentou-se à beira da cama, com as suas gordas coxas a tremer, emitindo gritos estrangulados, enquanto ela desempenhava o seu trabalho de rotina.
Em cinco minutos, arrumou-o.
Correu para a casa de banho, lavou a boca, tendo voltado depressa e ajudando-o a sentar-se na cadeira.
Ele estava tão dócil e inofensivo como um montículo de massa. Ela ajudou-o a vestir-se, e acompanhou-o à porta, enquanto, monotonamente, ele lhe agradecia todo o amor e consideração que ela lhe dedicava.
Com a porta fechada, e com o trinco de fora puxado, ela tentou ouvir. Quando teve a certeza de que ele se tinha retirado, provavelmente pelo corredor até ao quarto, correu para a casa de banho. Retirou o saco de cima do cesto das toalhas, puxou a tampa, e recuperou o pedaço de papel amarelo. Era um recibo das compras do drugstore, e tinha originalmente sido dobrado diversas vezes, tendo escorregado para dentro de algum embrulho. Yost tinha realmente pensado em tudo.
Os seus olhos fixaram-se na parte superior do recibo. Em letra de im prensa, azul, podia ler-se:
DRUGSTORE E FARMÁCIA DE ARLINGTON
AVENIDA MAGNÓLIA
ARLINGTON, CALIFÓRNIA
Visite a nossa sucursal em Riverside
Amachucou rapidamente o papel, fazendo dele uma bola, e atirou-o para dentro da retrete. Puxou o autoclismo, fazendo desaparecer a pista.
Arlington, Arlington, Arlington, Califórnia. Esse doce canto não lhe saía da cabeça.
Tentou imaginar um mapa da Califórnia do Sul. Com a excepção de Los Angeles, Beverly Hills, Bel Air, Westwood, Brentwood, Santa Mónica, Malibu, não se lembrava de nada. Mas proliferavam pequenas comunidades por toda a região, e Arlington devia ser uma delas. Tinha a certeza de já ter ouvido esse nome há algum tempo atrás.
Lembrou-se.
Havia estado naquela zona uma vez, de noite, há uns três, quatro ou cinco anos, para filmar umas cenas de perseguição de um western em que
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havia entrado; filmaram numas pequenas colinas perto da cidade de Riverside, e, depois, tinha dado entrevistas a dois simpáticos repórteres dos jornais Riverside Press e Arlington Times. Tinha havido uma discussão agradável entre os dois repórteres - sim, lembrava-se - e um deles dizia que Arlington era um subúrbio de Riverside. Bem, não estava mais do que a uma ou duas horas de Los Angeles.
Ela estava algures na montanha, isolada, acima de Arlington, na Cali fórnia.
O seu coração deu um pulo. Isto já era alguma coisa. Queria ainda saber mais, mas isto já era, de facto, alguma coisa.
Já tinha resolvido a penúltima coisa.
Só restava a última, mas essa é que ia decidir se ela ia morrer ou viver.
Tinha-se preparado cuidadosamente para o seu último visitante da noite, tão cuidadosamente como era hábito fazer quando ia jantar com Roger Clay. Depois de ter provado a camisola e saias novas, e de as ter tirado, vestiu a camísa de noite, tirou-a, e acabou por pôr o seu biquini branco; era a vestimenta com que mais gostava de se ver. Maquilhou-se, meticulosamente, em frente do espelho. Nos últimos meses, antes do rapto, habituara-se a pôr cada vez menos cosméticos preferia um ar natural, saudável, fresco. Só usava maquilhagem em cena.
Mas, esta noite, ia actuar.
Pôs sombra nos olhos, pó, rouge, perfume atrás das orelhas, no pescoço, no sulco entre os seios. Apanhou o cabelo com uma fita e fez rabo-de- cavalo. Estava, finalmente, pronta.
Tinha de estar preparada para fazer a sua melhor exibição. A partir do momento em que decidira ser a mulher que os quatro tinham fantasiado, achara que o seu próximo visitante poderia vir a ser mais vulnerável aos seus encantos, e, por isso, o mais útil para os seus objectivos. Contudo, ele tornara-se, inesperadamente, o mais difícil de alcançar e de manipular. Era o único que não lhe tinha dado nada.
Esta noite, estava decidida, fosse qual fosse o perigo, a fazê-lo agir em seu benefício.
Minutos mais tarde, encontrava-se reclinada, preguiçosamente, sobre a chaise longue, cantando uma balada romântica, quando ele entrou, trancou a porta, e a viu.
O Sonhador foi ao seu encontro.
- Olá, querido - cumprimentou-o ela, com a sua voz quente. - Estava à tua espera.
- Olá - disse ele.
Em vez de ir directamente para ela, parou numa cadeira em frente dela e sentou-se.
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Mostrava-se sempre distante e estranho ao princípio, já o tinha notado, mas hoje parecia mais distante do que nunca.
- Bem, que tal achas? - perguntou ela, indicando o reduzido biquini. Gostas?
- Pareces uma vamp - retorquiu ele.
- É um cumprimento?
- O mais alto - respondeu ele.
- Devia agradecer-te pelo fato de banho.
- Oh, não fui eu que o comprei. Foi o meu companheiro, esta tarde.
- Bem, de qualquer maneira, é maravilhoso. Só falta a piscina.
- Sim - disse ele, distraidamente. - Tenho pena, mas não podemos deixar-te ir nadar. Hoje esteve extremamente quente. Até eu quis ir dar um mergulho à vinda, mas o único lago que há aqui perto é privado.
- É pena - respondeu ela, calmamente, tentando conter a excitação. A referência que ele lhe tinha dado não lhe escapara. Havia sido recompensada com um bónus inesperado.
Um lago perto.
Algures, entre a cidade de Arlington mais a baixo e o local da sua prisão nas montanhas, havia um lago. Isto iria localizar, com exactidão, o sítio onde se encontrava. A geografia do local foi aparecendo na sua mente. Talvez até já fosse o suficiente.
- Sim, foi pena - concordou ele.
-Deviam ter tomado banho à mesma.
- Bem, não podia, porque. bem, não interessa. - Tornou-se cauteloso. Ele estava, realmente, distante, achou ela. Depois dos seus triunfos masculinos das últimas duas noites, estava à espera de o encontrar diferente. Estava preparada para o encontrar mais autoconfiante e imperativo. Mas não estava nem uma coisa nem outra; era desconcertante.
Tentou ler-lhe a expressão, mas ele estava tenso, olhando-a.
Era inacreditável, apesar da intimidade que já tinham, ele parecia aterrorizado.
Precisava de ir ao fundo da questão, saber o que passava pela cabeça dele. Tamborilou na chaise longue.
- Vem para aqui, querido. Não queres estar perto de mim? Passa-se alguma coisa?
Com aparente relutância, o Sonhador levantou-se e caminhou, sonolentamente, para a chaise longue onde ela se encontrava reclinada, e, por fim, baixou-se, ficando ao lado dela.
Os dedos calmos dela tocaram-lhe a cara e as fontes, percorrendo, gentilmente, os cabelos.
-Que te preocupa? Tens de me dizer.
- Eu. eu não sei o que estou a fazer aqui.
Já era um passo.
- Que queres dizer com isso?
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- Não sei o que estás tu a fazer aqui. nem o que eu estou cá a fazer. enfim, tudo isto.
- Confundes-me.
Ele olhou fixamente para o chão.
- Talvez porque eu próprio esteja confuso.
-Tem alguma coisa a ver comigo? Não podes estar zangado ou desapontado comigo, senão não terias tido a maçada de ir comprar estas coisas maravilhosas.
- Não é isso exactamente - replicou ele, depressa. - Como te disse, não fui eu que te comprei esse biquini ou qualquer das outras coisas. Não fiz nenhuma compra para ti enquanto estivemos na cidade. Foi o meu com panheiro, porque eu queria. bem, está bem, vou contar-te.
- Por favor, conta-me - pediu-lhe ela.
- Soube que úm dos teus antigos filmes, um dos melhores, The Clients of Dr. Belhomme, ia ser exibido na matinee de hoje. Quis vê-lo outra vez, estava ansioso. Talvez porque, finalmente, te conheci.
Já percebera Isto era a loucura total. Com esforço, prendeu a língua e continuou a ouvi-lo.
- Por isso fui à cidade - continuou ele -, e deixei o meu amigo ir às compras. Só pude ver a primeira parte, mas o que vi foi o suficiente. O filme não me sai da cabeça desde que saí do cinema. Estavas maravilhosa, como sempre foste; quase já me tinha esquecido como eras, desde que aqui estás fechada. Estavas. não sei como descrever. bem, soberba, intocável e inacessível, como uma vestal virgem, como Vénus, como Mona Lisa, Garbo, fora do alcance de meros mortais.
Ela começava a perceber o que lhe havia acontecido.
Ele continuava a tentar explicar.
- Quando saí do cinema para a luz do dia, e encarei a realidade, senti-me mal. Perguntei-me, a mim próprio Que fiz eu? - Olhou para ela com espanto. - Não obtive resposta, nenhuma resposta fazia sentido. Fiquei todo a tremer. E ainda estou.
-A tremer, porquê?
- Pela enormidade do acto que cometi. Tirei-te do teu local especial de existência. Tinha-me esquecido quem tu eras e a quem pertencias. Rebaixei-te ao tratar-te como uma mulher vulgar. Tirando-te do teu alto lugar, escondendo-te do teu círculo mundano, esqueci-me da tua. da tua posição. Depois, ao ver-te outra vez no filme, no meio a que pertences, no teu lugar certo, bem, isso chocou-me. Sim, chocou-me, fez-me ver que tu eras es pecial, uma peça de arte, um templo, um objecto feito para ser adorado de longe, uma personificação rara de Eva, criada para inspirar todos os homens. - Abanava a cabeça. - E eu, impensadamente, interesseiramente, tirei-te do teu pedestal e trouxe-te para esta.... esta ordinarice, esta baixeza. Senti-me doente, culpado, cheio de remorsos.
Ela estava absorvida pelo discurso dele, mas não se esqueceu das suas
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faculdades críticas. O estilo dele era barroco mau, mas a sua análise do que tinha feito e do mal que tinha causado a si próprio era perfeita e convincente.
Ele ainda não tinha acabado.
-Desde que voltei da cidade, sinto-me perseguido pela irresponsabilidade insensível. Saqueei o Olimpo, roubei o mundo de Vénus, de Afrodite. Pior, juntei-me aos vândalos para desfigurar a beleza. Tudo o que eu posso desejar de ti esta noite é o que não devo esperar e o que sei que não mereço. - Fez uma pausa. - O teu perdão, caridade e perdão.
Era realmente barroco muito mau. Uma mistura falsificada de Beaumont, Flétcher, Herrick, Lhara Saikaku Richardson, Scott, Hawthorne, e Louisa May Alcott.
Como é que era possível alguém fazer uma mistura tão confusa? Tinha de pôr este crucial encontro do Clube de Fãs em ordem, e continuar depois com a sessão, senão a barafunda seria total.
Primeiro, apreciação.
Cobriu as suas mãos com as dela, os olhos dela penetrando profundamente nos dele.
- Não imaginas como estou sensibilizada. só se fosses mulher é que compreenderias quanto estou comovida, reconhecida pela tua sensibilidade e compreensão. Ser admirada por um homem atraente, da maneira como tu me admiras, é uma experiência única, preciosa, e que eú alimentarei por toda a minha vida.
Não estava mal, pois não? - Beaumont, Fletcher, Herrick, etc. Segundo, depressa, perdão.
- E, quanto a perdoar-te, querido, tonto, não há nada a perdoar, agora que sinto o que sinto por ti. Eu sou tudo isso que viste hoje no écran, não o nego, pertenço ao público, isso é verdade. Mas há uma parte privada da minha pessoa que me pertence, só a mim, e eu tenho o direito de fazer o que quero dessa parte. Essa eu não é a mundana, a sofisticada Sharon Fields, mas, sim, a mulher normal que anseia por ternura, bem- estar e amor. E essa é a parte que te pertence.
O idiota estava fascinado.
Ela também estava fascinada. Pôs-se a pensar, sumariamente, se não estaria a dizer parte de qualquer seu antigo papel. Talvez estivesse a improvisar. A próxima vez que um escritor de enredos lhe aparecesse com uma nova história, diria a Zigman para o mandar passear. Quem precisa de vocês, Liga de Escritores da América? Pensam que todas as actrizes são estúpidas, não é? Bem, escribas, tenho uma novidade para vocês.
Com a confiança renovada, no cume da sua inspiração, voltou para a sua máquina de escrever falante.
A mão dela acariciou o queixo do Sonhador.
- Mas já que estamos a abrir totalmente os nossos corações, vou descobrir o meu. Não me serve de nada esconder. Sim, ao princípio, senti-me espoliada, abusada, violentada, como muito bem sabes. Estava zangada,
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rancorosa, talvez menos contigo, visto teres-me ajudado, do que com os outros, os teus amigos. Mas, então, aconteceu uma coisa acidental. Tem acontecido através da lenda e da história e também aqui aconteceu, exactamente aqui, onde nos encontramos. Porque fui raptada, porque fui levada à força, fui predestinada a conhecer-te. E, gradualmente, a alquimia entrou em vigor, o meu coração mudou, a pedra transformou-se em ouro, o frio transformou-se em calor, o ódio transformou-se em amor. A mulher es condida lá dentro tinha, finalmente, encontrado um homem. um homem
para amar.
Ele parecia que estava a ver um filme outra vez. Estava absorvido, comovido.
- Tu. tu não queres dizer que.
- Tudo o que estou a dizer-te é verdade, querido, não vejo razão para ser desonesta contigo. Quero ser honesta para ti, porque confio e acredito em ti e porque te amo.
Ela aproximou-se, levantando os braços, pondo-os à volta dele. A sua ca beça estava encostada a ele, e ela conseguiu ouvir-lhe o bater do coração.
- Oh, eu amo-te - disse ele, com a voz estrangulada. - Não devia, mas....
- Caluda ouve, querido, acredita em mim. Eu estava impaciente, esperando aqui por ti, durante todo o dia, toda a noite. Só queria ver-te, tocar-te. O meu pensamento estava contigo, revivendo a nossa união, maravilhada por termos consumado o nosso amor, imaginando, sentindo todos os movimentos deliciosos de ti dentro de mim. querendo mais e mais. por favor, vem para mim, aqui mesmo.
Ela desabotoava-lhe a camisa, ajudando- o a desapertar o cinto, tirando-lhe a camisa e as calças, detendo-se enquanto ele tirava as cuecas. O seu membro quase saltava de dentro delas.
Ela levantou os braços.
- Agora eu. Tira-me esta porcaria de cima. Depressa, amor. Ele apressou-se, desapertou-lhe o soutien. Tirou-o, pô-lo de lado, e encostou-o nas almofadas da chaise longue. Ele desapertava-lhe os fios à volta das ancas, e ela levantou as nádegas enquanto ele lhe tirava a parte de baixo do biquini.
Afundou-se nas almofadas, levantando os joelhos, abrindo as pernas, ansiosa por começar. Admirou-se ao ver o membro dele, nunca o havia visto tão espetado e duro. Sentiu que os seus largos lábios genitais estavam húmidos. O acto ia ser bom, esta noite, melhor do que nunca. Estava perdida na sua fantasia.
- Põe-no dentro de mim - pediu-lhe ela. - Quero-o dentro de mim. Ele estava dentro dela, duro, e ela fechou os olhos com firmeza, acompanhando os seus espasmos, deslizando no prazer da fricção suave nas paredes húmidas da sua vagina.
Tinha tudo preparado, o seu transporte previsto e planeado para o êxtase, mas, sem saber como, esqueceu- se das suas linhas de acção, a sua cabeça estava vazia. Até agora, na semana anterior, sempre tinha sido a audiência
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das suas próprias exibições. Agora, era camarada de palco, envolvida, sem ver, sem ouvir, a fazer, a fazer, a fazer para e a fazer com, e formavam um par agradável.
Como ela gostava do. do quê . jogo. não, jogo não. da união, da sensação da pele, da sensação da carne, da sensação do coito, e do poderoso e quente odor da secreção sexual e do amor.
Ela precisava de se lembrar do que estava ali a fazer.
Lembrar-se de quê?
Lembrar-se de saber. Só saber. Saber o prazer que estava a ter dentro dela. As mãos dela agarraram as nádegas dele à medida que estas subiam e desciam. As suas mãos ajudavam-no a ir para cima e para baixo, para cima e para baixo. As suas mãos abriram-se e bateram nos lados do.... em qualquer parte.
A carne firme dele batia na carne dela em baixo, e o toque constante da pele dele no seu clítoris estava a tornar-se insuportável.
Ela queria fugir daquela dor deliciosa, mas já era demasiado tarde. A sua cabeça não conseguia actuar e fazer parar. Os seus músculos interiores estavam a contrair-se, a abraçá-lo lá dentro, a soltá-lo, agarrá-lo novamente.
Meu Deus - ela estava a sufocar.
Estava a vir-se.
Meu Deus, meu Deus, estou a desintegrar-me. eu não. eu não. eu não posso. não, não, não. ohhh, Deus!
Ergueu-se, ficou dura como uma tábua, depois apertou as suas coxas à volta dele para fechar o dique, mas o dique explodiu, explodiu com força, vertendo vida, inundando-a com ondas quentes, onda atrás de onda.
E paz.
Levou alguns minutos a recuperar, a ordenar o seu cérebro. Do pescoço para baixo, o seu corpo descansava como se estivesse numa nuvem de algo dão. Mas na sua cabeça, as rodas foram de novo postas a funcionar e, devagar, começaram a girar.
Que lhe tinha acontecido? Nunca lhe tinha acontecido aquilo aqui, nem mesmo uma aproximação. Na verdade, já quase se não lembrava de quando lhe tinha acontecido pela última vez, seguramente não nos últimos dois anos. Sem estar à espera, sem querer, e inteiramente contra a sua vontade, tinha sido ligada à corrente. Tinha gozado. ou sofrido. um orgasmo completo com ele.
Olhou para ele. Aí estava ele, com um ar de quem nunca conseguiria pô-la assim, aninhado nos braços dela, olhos fechados, corpo nu, exausto, agora satisfeito, saciado, em paz.
Olhou fixamente para ele. Desprezava esse louco, esse simplório da província, tanto como odiava os outros. bem, talvez não com tanto rancor com tanta persistência, porque ele era um alvo demasiadamente irreal e ilusório. Mas ele escravizava-a e maltratava-a não menos que os outros. E ela fingia colaborar com ele, só com o objectivo de o utilizar para a salvar. E
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tinha-se preparado esta noite para o receber e entreter com o único fito de o utilizar para os seus fins.
No entanto, este porco, que nem sequer era um amante experimentado, havia conseguido que ela perdesse o controlo da situação. Ele fizera com que ela se esquecesse da supremacia do seu cérebro. Encontrara maneira de a fazer esquecer os seus deveres, trair a sua causa, e tornar-se num fantoche ao serviço das suas emoções.
Simplesmente não podia acontecer com ele. Mas acontecera. Ou tinha sido ela? Talvez ele não tivesse nada a ver com o clímax dela. Talvez ela tivesse sido a vítima de si própria. Estava tão decidida a representar bem o seu papel esta noite que, provavelmente, se deixara absorver demasiado por ele. Um actor deve representar o seu papel, não transformar-se nesse papel. Quando se transforma no papel que está a desempenhar, pode esquecer-se de que está a representar. Pode até tornar-se num esquizofrénico, tornar-se na pessoa que não é, em vez de ser a pessoa que era. Tal como o pobre Dr. Jekyll, quando passou a transformar-se no Sr. Hyde demasiadas vezes, e, no final, já não conseguia voltar à sua personalidade real, porque, contra o seu desejo, passara a ser Hyde.
Sim, era isso o que provavelmente havia acontecido. Deixou-se envolver demasiado, e por isso a sua cabeça e bom- senso perderam a autoridade, o seu corpo tinha-se apoderado dela e dominado o seu espírito e fizera o seu próprio voo.
Mas tinha a cabeça convenientemente aparafusada outra vez. Sim, senhoras e senhores, apesar de um pequeno atraso causado pela nossa protagonista, e devido a uma perda pessoal, o espectáculo continuará. Bravo! Boa actriz! O espectáculo tem de continuar e continuará. É preciso que a noite não acabe.
Ela pressionou os seus dedos nos bíceps dele, e aproximou os lábios da orelha. Como ele começasse a levantar-se, ela murmurou-lhe:
- Obrigada, querido, obrigada para sempre. Fizeste-me muito feliz. Sabes o que me fizeste, querido, não sabes?
Os olhos, muito espantados, dele contemplaram-na, esperando. Ela sorriu, e acenou.
- Fizeste-me vir.o único que conseguiu isso, és fantástico. Nunca o esquecerei, meu amor, e agora nunca mais deixarei de te amar.
-É verdade, não é? Espero que sim, porque estou apaixonado por ti. Nunca imaginei um amor tão perfeito.
- Por tua causa - disse ela, apaixonadamente. - Tu representas tudo o que eu procuro num homem. É só por tua causa que consigo manter-me aqui. Por ti, pelo que tu me deste, é-me possível suportar os outros. Detesto-os tanto quanto te amo. E agora. agora, posso dizê-lo pela primeira vez, do fundo do meu coração. que. que estou contente por me teres trazido contigo para aqui. E há mais alguma coisa. alguma coisa mais que devo contar-te.
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Pausou com preocupação. Ele olhou-a com interesse.
- O que é, Sharon? Quero saber.
- Está bem. Não tem grande importância, mas é importante para mim. Jura que não rirás quando te contar.
- Juro - disse ele, solenemente.
- Quando te contar vais pensar que sou louca, mas começo a ter orgulho numa coisa. Na verdade, é o que me faz acreditar em ti e confiar no teu amor. - Suspendeu a respiração por um segundo, e disse - Estou orgulhosa por me teres raptado por amor e não por dinheiro. Fazê-lo por amor.... bem, talvez rias. mas é romântico. Fazê-lo para ficar rico, para ter montes de dinheiro a troco do meu regresso em boas condições, isso é reles. Pior, é realmente um crime. Mas quando pensei nisso mais tarde. que tinhas arriscado a vida ao raptar-me só porque gostavas de mim, porque me desejavas, não pelo meu dinheiro. bem, pensei que era diferente. Se tu e os outros me tivessem trazido para aqui, mantido prisioneira, só pelo resgate, eu ter-vos-ia desprezado como criminosos comuns, e isso teria tornado todo o episódio feio e cruel.
- Mas nenhum de nós pensou em resgate, Sharon, nem um só minuto. Nunca discutimos isso uma única vez. O dinheiro não fazia parte da nossa motivação. Nós queríamos-te a ti. Acredita-me.
- Agora, acredito ao princípio, não tinha a certeza. Pensei que fosse o dinheiro o vosso motivo principal. Mas, agora, acredito que os vossos motivos eram meramente românticos, é a única qualidade que reconheço nos outros. Detesto-os, mas agora detesto-os menos por não tencionarem vender-me por um punhado de notas como se eu fosse gado ou uma escrava.
-Nunca lhes passou isso pela cabeça, Sharon. Nem por um segundo sequer.
- Óptimo! E garantes-me que isso nunca. nunca passaria pela cabeça deles, porque, se passasse, isso fá-los-ia descer no meu conceito e iria estragar tudo. Se esse assunto alguma vez for posto, por favor, opõe-te. Compreendo que possa ser tentadora a hipótese de fazerem fortuna ao libertarem-me. mas nunca os deixes fazer isso. Eu sei que não aprovarias ou participarias num acto como esse.
- Eu? Nunca me passaria pela cabeça pedir um resgate. Já tenho o que quero. E se os outros quisessem mudar as coisas, eu não o permitiria.
- Obrigada, querido. Muito obrigada. - Sorriu, puxando a cabeça dele para o peito. Não queria que ele reparasse na qualidade do seu sorriso.
O sorriso, que teria agradado a qualquer dos seus realizadores, era um sorriso ruim de autofelicitação. Mas não exageres, Sharon, diriam os realizadores, o público não vai gostar.
Entretanto, houvera satisfação: Ela realizara a última coisa que tinha estabelecido e havia conseguido isso sem provocar nenhuma suspeita: Antes
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disto, a fuga podia ser vista como hipótese remota. Agora, pelo menos, já não estava tão longe.
AGENDA DE ADAM MALONE - 26 de Junho
Vou comemorar o princípio da nossa segunda semana em "Más a Tierra" fazendo um pequeno relatório neste meu diário particular.
É quinta-feira, parte da tarde, cedo, e estou sentado no pórtico da frente, sem camisa, a apanhar sol, neste dia perfumado, enquanto escrevo. O Mecânico e o Vendedor de Seguros foram sair, o que torna este exercício possível. Saíram há quinze minutos, no carro de sport, para irem fazer uma inspecção à carrinha. Como já há muito tempo que não é utilizada, queriam certificar-se de que a bateria não precisava de ser carregada. O Contabilista, quando o vi pela última vez, estava deitado na sala de estar a ver um folhetim na televisão.
Recuando alguns dias até segunda- feira à noite, mais precisamente terça- feira de manhã que foi realmente o clímax ( ) da nossa primeira semana aqui, atingi um marco histórico na minha vida. Para evitar termos clínicos, frios, e também vulgarismos, prefiro aludir à memorável ocasião em linguagem de literatura. O Objecto e eu experimentámos, simultaneamente, na nossa boda erótica, o supremo prazer da pequena morte.
Nunca, nunca esquecerei a reacção do Objecto à minha oferta. O Kama Sutra diz que a reacção vocal da mulher em total relaxação pode ser classificada nalgumas categorias. Eis algumas delas:
choro, arrulho, fulminante, entrelaçada, abrasante
Todos estes sons combinados não descrevem convenientemente o fluxo de gratidão que saiu das cordas vocais da minha amada e as suas vibrações no cume do seu prazer e também do meu próprio.
O conseguimento pessoal do Nirvana - uma palavra em Sânscrito que significa emancipação final - alcançado no meu caso através de realização sexual e êxtase, fez-me naturalmente pensar na importância do sexo na vida humana, e na preocupação que a nossa sociedade tem com o assunto.
Antigamente, a preocupação acerca do sexo era compreensível porque era um tópico misterioso e proibido. Todavia, mesmo nesta época mais aberta e permissiva, o sexo não é tratado suavemente, casualmente, naturalmente, mas continua a permanecer fascinante para todos e é uma obsessão para
muitos.
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Não é a primeira vez que considero este assunto do sexo. De facto, antes de o Clube de Fãs estar completamente formado, pensei em elaborar um artigo sobre a constante preocupação acerca do sexo na nossa cultura. Tomei algumas notas que passarei a desenvolver aqui.
Em quase todas as gerações aparece um novo guru no horizonte para emancipar sexualmente as pessoas, para resolver os seus problemas e recalques, para as esclarecer através de casos passados e estudos estatísticos.
Podemos recuar até à época de alguns gurus como Havelock Ellis, Richard von Krafft-Ebing, Sigmund Freud, Robert Dickinson. e chegar aos pesquisadores sexuais mais recentes, desde o Dr. Alfred C. Kinsey até ao Dr. William H. Masters e Virginia E. Johnson.... para, inexplicavelmente,
concluir que os salvadores do sexo não o salvaram. A insegurança e a confusão individuais acerca do sexo permanecem para a maioria das pessoas e continuarão a existir enquanto o homem for um ser pensante e civilizado, e, consequentemente, uma criança inibida. Por mais informadas e emancipadas em assuntos sexuais que as pessoas estejam, mais dificuldade têm em seguir os ensinamentos dos outros. Na minha opinião, o sexo é o único aspecto em
que o homem e a mulher ocidentais modernos, apesar de toda a educação sexual e de a sociedade ser permissiva, continuarão a ter preocupações secretas e problemas nas suas relações do dia-a-dia. E por causa destes intermináveis problemas e preocupações, o fascínio do assunto sexo permanecerá eterno.
Não é a liberdade sexual que vai impedir os homens e as mulheres de acreditarem secretamente que existe algo mais do que o sexo, qualquer coisa mais ilusória que eles não compreenderam. E sempre ansiarão por qualquer coisa melhor na sua experiência sexual, qualquer coisa para além do seu alcance, superior ao que eles conseguiram com qualquer parceiro. A procura, o desejo, a fome pelo sexo perfeito e, por conseguinte, a preocupação com o sexo continuar, principalmente porque o acto sexual é tão privado e simples e relativamente breve que nunca poderá corresponder às perspectivas dos participantes que, através da História, têm sido aliciados pelos romancistas.
Já chega. Receio que, eu próprio, me tenha deixado preocupar com sexo ao escrever este diário. Afinal, o que é o sexo? Acho que foi Mac West, um dos meus ídolos de antigamente, quem melhor o definiu: "O sexo é uma emoção em movimento. " Muito bem, Mac
Vou voltar ao meu relatório da primeira Viagem (desculpa a expressão, Musa) do Clube de Fãs. Já escrevi as minhas reacções acerca da perfeita experiência sexual que vivi com o Objecto na segunda-feira passada, à noite. Agora, vou continuar.
Na terça-feira, à noite, quando o Contabilista estava suficientemente revitalizado para se juntar à nossa actividade, fui o primeiro e a minha realização foi tão grande como no encontro anterior. Os outros expressaram igual satisfação, mas não posso acreditar que eles conheçam totalmente o que é o amor de uma mulher, porque o Objecto admite senti-lo unicamente por mim.
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Confesso, sinceramente, que sinto um certo constrangimento, sempre presente apesar de o disfarçar, contra os meus companheiros do Clube de Fãs
por ter de compartilhar com eles a pessoa que amo verdadeiramente e que me ama. É um sentimento que está dentro de toda a integridade do nosso pacto e que preciso de expurgar do meu sistema.
Ontem, quarta-feira, à noite, e, tecnicamente, o primeiro dia da segunda semana da nossa memorável empresa, surgiram algumas alterações. O Mecânico e o Vendedor de Seguros visitaram-na à tarde para irem buscar o seu prazer, justificando que precisavam de reservar a noite para jogar as cartas. Não tenho nada contra matinées, mas acho estranho que qualquer homem normal prefira passar a noite a jogar em vez de a passar com o Objecto. Por outro lado, o Contabilista e eu mantivemos as nossas visitas nocturnas.
Para mim, sétimo céu, e um oitavo, se é qué há um oitavo. Estou agora a rever o único tom discordante dos últimos dias para acabar estas notas. Refiro-me a uma conversa violenta que houve ontem à noite e que quero descrever rapidamente antes de o Mecânico voltar da sua inspecção.
Não se pode esperar que um grupo de homens, com passados e heranças genéticas totalmente diferentes, possam viver em completa harmonia e concordância durante a maior parte do tempo (especialmente quando vivem numa área limitada), mas pode-se esperar que as disparidades sejam resolvidas através de discussão e aplicação da razão. Percebi que, sempre que há uma questão, o Mecânico não é receptivo à razão, não é cerebral. A sua mentalidade é Cro-Magnon isto para não dizer outra coisa. O conflito que surgiu ontem à noite é um exemplo perfeito da sua maneira de pensar, ou da sua falta de pensamento.
Depois de um longo e apaixonante encontro com o Objecto, deixei-a a dormir profundamente e decidi ler um pouco até me render aos braços de Morfeu. Quando passei pela sala, reparei que o Mecânico e o Vendedor de Seguros estavam ainda a jogar gin rummy. O Contabilista estava sentado ao lado, como mero observador.
O Mecânico chamou-me e disse que já estava farto de gin rummy, e que, se eu me juntasse a eles, podíamos fazer uma partida de poke on de sueca. Eu respondi que estava muito interessado no livro que estava a ler, The Crock of Gold (O Jarro de Ouro), de James Stephens, e que queria acabá-lo nessa noite, pois ainda tinha mais livros que queria ler durante a estada; um de Kafcadio Hearn e uma colecção de críticas de cinema de D. W. Griffith. Ele repreendeu- me por ser um desmancha-prazeres e por não participar nas actividades do grupo. Isto não seria o suficiente para me instigar e para me dissuadir das minhas leituras. Mas quando o Vendedor de Seguros me lembrou que eu era o presidente do Clube e que tinha a obrigação de colaborar
Primária, no seu verdadeiro significado. (N. do T)
Jogo de cartas. (N. do T. )
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percebi que seria melhor cooperar para a unidade do grupo em vez de praticar acções individuais e egoístas. Disse-lhes que me juntava à mesma se jogássemos a sueca em vez de Qoer. Esclareci-lhes que não gostava de jogar a dinheiro e que noQoker a ganância pelo dinheiro frequentemente dominava o jogo. Ninguém se opôs a jogar a sueca, por isso sentei-me à mesa.
O Mecânico preparou bebidas para o Vendedor de Seguros e para ele próprio. O Contabilista e eu não quisemos beber.
Começámos o jogo, com o Contabilista a anotar a pontuação. O Mecânico, que leva qualquer competição a sério e que detesta perder, jogava com muita concentração e falava pouco. Era esta a disposição, limitávamo-nos a baralhar, dar, passar, jogar, e a conversa era mínima. Mas, após três quartos de hora, o Mecânico, talvez porque tinha menos vinte pontos do que o adversário mais próximo, ou talvez porque a sua língua estava mais solta por causa da bebida (já tinha esvaziado três copos), começou a discursar sobre o sexo, em geral, e sobre o Objecto, em particular.
Agora, quinze horas após a conversa, não consigo relembrar-me de todas as palavras que ele proferiu, mas tenho uma excelente memória para reter a essência de qualquer conversa em que participe e estou certo de que o que vou transcrever para o papel reflecte com exactidão o espírito do que foi dito ontem à noite.
Entre goles ruidosos de uísque, o Mecânico levou a conversa para um campo que se tornou odioso.
- Todos temos estado a comentar como a tipa (referia-se ao Objecto) tem colaborado e sido bestial, e que estamos a passar um tempo bestial com ela - disse ele. - Bem, está bem, e eu tenho sido um dos primeiros a concordar que ela é bestial. E continuo a dizê-lo. Mas não interpretem mal o que vou dizer, não nego nada do que disse antes. Continuo a dizer que ela é quente e boa na cama. Mas deixem-me que vos diga. muitas vezes, depois de ter acabado, fico a pensar nela, faço divagações filosóficas e tenho de admitir que todas são iguais no escuro. Quem disse isso, acertou em cheio .
- Foi Benjamim Franklin que disse isso - interrompi eu. Ao dar um conselho a um amigo seu, ele escreveu-lhe a dizer que preferia uma mulher velha a uma nova, e, depois, disse que as rugas e a aparência não importavam, porque cobrindo tudo com um cesto, e olhando só para o que está abaixo da cintura, é impossível distinguir uma mulher velha de uma nova . E depois acrescentou. De noite todos os gatos são pardos .
- É uma grande treta dizer que as velhas são melhores do que as novas , replicou o Mecânico, - mas o Benjy tinha razão ao dizer que de noite as gatinhas são todas iguais, e era aí que eu queria chegar. Se pensarem bem, têm de concordar comigo. Aqui estamos nós com esta super-sensual todo o mundo gasta biliões só para a ver e sonhar com ela, e aqui a temos nós, e o que é que verificamos? É um borracho sensacional, está bem. Mas já conheci centenas de miúdas como ela. E, quanto à acção, qual é a diferença entré ela e as outras? Depois de terem estado com ela uma dúzia de vezes, já a
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conhecem, já sabem o que pode dar, e então verificam que ela não é melhor do que qualquer miúda com quem já dormiram, só que não tem a publicidade dela. Está certo? Pois bem, o que é que conseguem de uma superestrela que
qualquer outra não tenha? Pensem bem. As mesmas tetas, o mesmo cu grande, o mesmo sexo, os mesmos trabalhos de mão, os mesmos ruídos. nada diferente de umas duas centenas de tipas que encontrei, desde secretárias a criadas e estudantes. Na verdade, já tive algumas, nos meus tempos,
que eram até melhores do que esta especialidade rara.
Fiquei irritado com esta tirada injusta do Mecânico, mas não falei antes de ouvir a opinião dos outros. Estava curioso de saber quais seriam as reacções deles.
O Contabilista, para minha surpresa, foi o primeiro a comentar. Disse: - Claro que não tenho a larga experiência que vocês parecem ter em assuntos sexuais, mas, baseando-me no que conheço, digo que as qualidades da nossa hóspede são, em muitos aspectos, em maior número do que a média, direi mesmo que é especial. Acho-a muito atraente, bem proporcionada, muito interessante e afável. Mais, ela. ela tem um impressionante grau de experiência e inclinação admirável para novas experimentações. Acho que isto é o que se pode apreciar mais depois de se estar casado há tanto tempocom a mesma mulher. Claro que, quando, como nós, se tem um farto
banquete todas as noites, o apetite começa a desaparecer. Devido a um consumo constante, a comida tende a tornar-se vulgar. É este o perigo.
Admito isso. Molhou a garganta, e acabou a frase. e talvez, de certo modo, seja isso o que o nosso amigo acabou de dizer. Quando a deixei ontem, à noite, depois de uma sessão perfeitamente satisfatória, o meu espírito voou para aquela miúda nua de que lhe falei uma vez, naquela que fotografei e com quem depois tive relações no estúdio Melrose. O meu pensamento estava nela.
- De noite todos os gatos são pardos - continuava a afirmar, irri tantemente, o Mecânico.
Esperei pela opinião do Vendedor de Seguros. Ele falou. - Este é um dos casos em que detesto ter de concordar com o meu amigo do Texas, mas já que estamos a ser francos, acho que concordo com ele. Sim, esta tarde também pensei nisso, mesmo enquanto estava com ela.
Pensei, é bom. mas o que há mais de novo? Nas primeiras vezes, especialmente quando ela começou a colaborar, foi excitante e pareceu diferente, porque. bem, talvez por ela ser quem é e também por ser alguém que todos os homens no Mundo querem. Mas, uma vez que se acabou o mistério e a novidade, e quando já lá se foi bastantes vezes, tenho de concordar que não é melhor nem mais invulgar do que, pelo menos, uma dúzia de tipas giras com quem andei é tão boa como, pelo menos, três chavecos que conheço. Não estou a subestimá-la, não. Uma coisa é certa, nunca
mais vou estragar as férias com programas destes. Olhem, até vos confesso. Esta tarde, nem sequer me apetecia ir lá. Fui, só por ser hábito. Já sabia que
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ia ver o que já tinha visto, não só nela, mas noutras também. Sabia que ela ia fazer o que já antes havia feito, e fê-lo. O que, na verdade, me apetecia era jogar as cartas.
Era a altura da minha opinião, e assim fiz, firme, leal e correctamente. - Sou o único dissidente - disse-lhes eu. - Sem reservas, discordo totalmente de vocês todos. Acho-a uma pessoa admirável e única. Gosto de a ver todas as noites, sei que em todas elas há uma nova aventura. Já conheci muitas mulheres, mas nunca encontrei nenhuma que encaixasse tão bem como esta. É mais amável, mais doce, mais expansiva do que qualquer outra mulher. Contrariamente às outras mulheres, ela gosta do sexo. É uma das suas formas de expressão. É por isso que com ela é sempre tão fresco, espontâneo e variado. Nunca na minha vida encontrei outra mulher que pudesse dar o que ela dá.
O Vendedor de Seguros desafiou-me:
- Aponte uma coisa que ela dê e que outra mulher não possa dar, não há nenhuma. O seu problema é que continua a vê-la através de lentes cor-de-rosa. Persiste em imaginá-la tal como ela não é. Vá, aponte-me lá uma única coisa que ela tenha e que outra mulher não tenha.
Antes que eu pudesse responder, o Mecânico resolveu dar a resposta. - Há uma só coisa que ela tem e que outras não têm. Querem saber qual é?
- Que é - perguntou o Vendedor de Seguros.
- Dinheiro. É isso.
- Bem, isso é verdade - concordou o Vendedor de Seguros. - Você faz uma pequena ideia do que ela tem? Sabe quantas notas fez ela no ano passado? Ela e eu falámos nisso no outro dia, em como é injusto que uma gaja daquelas tenha tanto dinheiro, enquanto nós não temos quase nada. Sabe quanto admitiu ela ter feito no ano passado, num só ano? Um milhão! Um milhão de dólares!
- Para ser mais preciso e relembrando a declaração do seu imposto complementar - interrompeu o Contabilista - ganhou um milhão duzentos e vinte e nove mil quatrocentos e cinquenta e um dólares e noventa cêntimos nos doze meses do ano passado.
- Veja! - exclamou o Mecânico. - Bem, se me perguntarem, acho essa a sua parte mais sexy. Era nessa que eu não me importava de pôr as mãos.
Não gostei do rumo da conversa, e foi nessa altura que resolvi dizer aos outros o que o Objecto me tinha dito. Pensei que se eles soubessem como ela apreciava a falta de comercialismo da nossa aventura, o quanto os respeitava pelos seus motivos puros, eles teriam vergonha e acabariam com aquela conversa materialista.
- Penso que devo dizer-vos uma coisa que é pertinente a esta conversa - disse - Uma destas noites, tivemos uma discussão honesta acerca das nossas relações para com ela e da opinião que ela tinha a nosso
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respeito. Devo acrescentar que ela foi realmente sincera. Disse que não perdoava o rapto em si, e confessou que uma vez que tal lhe acontecera, poderia nesta altura, julgar desapaixonadamente todos os seus aspectos. E confessou que, agora, depois de se ter acostumado a nós e desde que começámos a tratá-la melhor, havia um aspecto do nosso projecto que admirava. E respeita-nos por isso.
- Sim - admirou-se o Mecânico. Qual é?
- É a pureza do nosso motivo, o que ela admira. Admira o facto de nos termos arriscado porque a queríamos e desejávamos. e não porque a queríamos como refém para obter montes de dinheiro com o resgate. Ela acha que o nosso motivo é uma forma de lisonja. Nós seduzimo-la com o perigo, arriscámo-nos a um rapto difícil. e fizemo-lo por amor, não por dinheiro. É por isso que ela nos respeita.
O Mecânico deu um alto ronco.
- Respeita-nos, merda! Ela deve estar a rir lá por dentro, pensando que somos uma cambada de estúpidos arriscando-nos por um bocado de mulher, enquanto para ela o que conta é o dinheiro e mais nada.
- Está errado protestei eu. - Ela está mesmo orgulhosa de nós. Sente-se lisonjeada.
- Ao diabo, mais o lisonjeio, nós somos é parvos. Sabem, quanto mais penso nisto, mais acho que fomos parvos em nos arriscarmos por um rabo vulgar e nada mais, especialmente quando qualquer tipo nas suas faculdades normais sabe que quando se faz uma coisa destas, se for feita como deve ser, se pode ter sempre o borracho e o dinheiro ao mesmo tempo. Caramba, somos os gajos mais estúpidos do mundo.
- Não somos - insisti. - Se tivéssemos feito isto por dinheiro, seríamos uns criminosos vulgares, e não o somos. Fizemos assim porque somos seres humanos decentes que queriam realizar qualquer coisa romântica.
- Romântica. merda - gritou o Mecânico, mostrando-se chateado. -Fomos estúpidos, estou a dizer-lhe. Ouça, quando um tipo, deliberadamente, arrisca os cornos. que o faça pelo prémio grande. Fazê-lo por umas quantas relações sexuais feitas a correr é uma estupidez. Qual é o lucro? O que eu chamo uma verdadeira recompensa é arriscar a vida por qualquer coisa que a pode mudar para melhor, e para sempre. Bem, estou só a dizer como são as coisas. Acenou em direcção ao quarto. - Ter ali o rabo dela não vai, de maneira nenhuma, mudar a minha vida quando chegar a altura de nos separarmos. Mas ter um pouco dos milhões todos que ela tem, isso podia mudar todo o meu futuro. Ela disse-me, pela sua própria boca, que tem o suficiente para viver até aos noventa anos, tem o suficiente para deitar fora.
- Bem, não foi isso que decidimos fazer - disse-lhe eu. - Fica assente para sempre, a riqueza dela não nos diz respeito.
- Não sei - retorquiu o Mecânico. Levantou o copo, bebeu um gole, e lambeu os lábios. - Talvez não tenhamos nada a ver com isso, mas.
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neste momento, só sei uma coisa, é que, quando começo a pensar na massa toda que ela tem, dá-me mais tusa do que pensar no rabo dela.
- Oh, cale-se e baralhe - respondi-lhe eu. - Vamos continuar com o jogo.
Mas fiquei mesmo azedo com ele por ter levantado aquela conversa es túpida. Fiquei feliz por lhe ter ganho o jogo e por o ter enterrado em treze pontos.
Passaram-se vinte e quatro horas calmas, e, na noite seguinte, os quatro encontravam-se mais uma vez reunidos á volta da mesa da sala de jantar, bebendo, conversando esporadicamente, enquanto jogavam a sueca, sem prestar grande atenção.
Adam Malone ia fazendo as jogadas necessárias, mas não era no jogo que estava o seu espírito.
Fez uma revisão ao dia, e, aparentemente, apesar de haver qualquer coisa que os preocupava, esta sexta-feira não parecia diferente de todos os outros dias que tinham passado no isolamento.
Todos dormiram até tarde, nada havia de anormal nisso. Tinham estado ociosos toda a tarde. Brunner sentado em frente do televisor na sala de estar. Yost limpara a sua arma de cano duplo e fora dar um curto passeio a pé. Shively, nervoso como sempre, fumava ininterruptamente, afiando um pedaço de madeira com um canivete, brincando com o carro, bebendo alguns goles de tequilla. Malone esteve sentado no pórtico, contente por terminar a novela de James Stephens.
No entanto, Malone divagava nesse momento sobre os acontecimentos que se tinham dado antes e durante o jantar.
Até esse dia, sempre observaram a mesma rotina. Juntavam-se na sala de estar para tomar uma bebida, e conversavam acerca dos seus passados, dos seus trabalhos, trocavam anedotas, sendo Shively sempre o mais con versador, contando, nas suas maneiras cruas, as aventuras com os terroristas no Vietname, as suas acrobacias sexuais com numerosas mulheres, ou as suas discussões com as autoridades ou pessoas ricas que sempre tentaram desprezá-lo. Durante estes monólogos, um ou dois deles ia para a cozinha preparar o jantar. Depois devoravam a comida, e, após a refeição, tiravam a sorte às cartas para estabelecer a ordem da visita a Sharon Fields. O primeiro ia para o quarto e trancava-se nele com Sharon.
Só uma vez, há quatro dias, o programa variara ligeiramente; fora na noite em que Brunner preferiu não ir ver Sharon, pois queria descansar e restaurar as suas energias.
Mas, hoje, o programa fora alterado consideravelmente, e Malone percebeu que era essa mudança de comportamento que o tinha intrigado.
A noite, cedo, antes do jantar, Shively bebeu mais do que a sua quantidade normal de teguilla, para além do que já tinha bebido à tarde, e, em vez
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de dominar a conversa, ficara silencioso e pensativo, o que não era seu hábito.
Também não ficou perto deles até à hora da refeição, e, sem se justificar, retirou-se para o quarto. Normalmente, quando Shively não dominava a
conversa, Yost tomava o seu lugar, dando vida à cena com as suas anedotas.
Mas, esta noite, depois de Shively ter deixado a sala, tornara-se introspectivo
não falando. Quando chegou a altura de preparar o jantar, Brunner, que
sempre se oferecia para ajudar, não se juntou a Malone na cozinha. Continuou no sofá com a sua bebida, a fazer rabiscos num bloco.
O jantar também tinha sido algo diferente. Shively e Yost, dois bons
garfos normalmente, comeram muito pouco, mostrando desinteresse pela
comida que lhes era servida. Malone achou isto muito pouco normal, pois
tinha preparado um bom guisado de carne, um dos pratos favoritos de Shively contudo, ele tinha comido muito pouco. Reparou que os dois estavam com um ar enfadado.
Mas a viragem imprevista dos acontecimentos, pelo menos no que se referia a Malone, aconteceu depois do jantar.
Havia chegado a altura de deitar as cartas, para determinar a ordem de utilização do privilégio das suas visitas.
Malone trouxe o baralho, e deu a Brunner a vez para tirar primeiro a
carta. Brunner recusou, dizendo que preferia não ir, porque estava cansado e
porque havia um programa de televisão que queria ver. Não era de espantar,
pois o Brunner já tinha faltado a uma sessão com Sharon.
Mas quando chegou a vez de Howard Yost e este hesitou, acabando por anunciar que nessa noite também passaria, Malone ficou verdadeiramente surpreendido.
- Não preciso de ir para a cama com ela todas as noites - explicou Yost,
defendendo-se. - Não tenho nada a provar a ninguém. Hoje não me apetece;
é tudo. Além disso, estamos de férias, não é? Não faz mal a ninguém
durante as férias, ficar na calma, sem fazer nada. Talvez faça uma paciência, a
não ser que o Shiv queira jogar comigo uma partida de gin.
Malone deu as cartas a Shively, mas este ignorou-o e virou-se para Yost.
- Você está a tentar-me, Howie. Tem tido sorte a mais ultimamente; talvez tire a desforra hoje à noite.
- Bem, porque não?
Shively considerou a proposta, perante o enorme espanto de Malone, e depois virou-se para contemplar o baralho que Malone tinha na mão.
- Não sei, podemos jogar as cartas mais tarde. Vou lá acima despejar:
Tornou-se um hábito. E, uma vez que ela está livre, porque não aproveitar?
- Como você disse ontem que já não gostava assim tanto - disse Yost -,
acho que, se passasse uma noite sem lá ir, não lhe fazia grande falta.
- Não estou a negar o que disse ontem à noite. Estou só a dizer que, uma
vez que a gaja está ali deitada, podia aproveitar, é uma espécie de exercício:
Você hoje foi passear a pé, Howie. Imagine que eu estou a fazer a minha
ginástica, para manter a linha.
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- Bem, faça o que quiser.
Shively deitou uma olhadela a Malone.
- E você? Vai lá, como sempre?
- Claro que vou - respondeu Malone. - Sabem bem que me apetece estar com ela. Não tenho a mesma opinião que vocês.
- Está bem, Don Juan - retorquiu Shively -, uma vez que é o único que ainda continua com tusa em relação a ela. o que, cá entre nós, eu não acredito. pode ir primeiro, com os meus cumprimentos. Não vale a pena tirarmos as cartas. Vá à frente, e, se depois me apetecer, vou a seguir.
Malone avançou, visitou Sharon, achou-a mais hospitaleira e extrovertida do que nunca, e voltou com a mesma paixão que sentia por ela e também com a mesma impressão favorável acerca do prazer sexual que ela lhe dava.
Voltou para a sala de jantar e encontrou Shively bastante entusiasmado a jogar gin rummy com Yost.
- É toda sua - disse Malone, com relutância.
- Está bem - respondeu Shively, distraidamente. - Veremos. Não me interrompa agora.
Duas jogadas a seguir, ele estava a ganhar doze dólares, e, pela primeira vez nessa noite, pareceu bem disposto. Estava a preparar-se para nova jogada quando Malone lhe recordou que Sharon o esperava. Malone disse-lhe que se ele não queria ter o encontro com ela, devia avisar, para ela tomar o comprimido para dormir.
- Ora, merda - gritou Shively, furioso. - Estão sempre a dizer-me o que devo fazer. Porque não me deixam em paz de uma vez para sempre?
Malone ficou admirado com a reacção.
- Ouça, Kyle, não tem de ir lá, continue com o seu jogo. Não me im porto nada de lhe ir dizer para tomar o comprimido.
- Não tem nada que me dizer o que devo ou não fazer - continuou Shi vely. - Deixe-me em paz. - Depois disse para Yost - Volto num instante.
Foi para o quarto grande, com um ar aparentemente contrariado. Uma hora mais tarde, estava de volta, ainda com má disposição, irritável, embirrando com Malone, como se ele o tivesse forçado a fazer qualquer coisa contra o seu desejo.
- Que tal foi? - quis saber Yost.
- Mas há alguma coisa nova para contar? Vocês já sabem. A mesma coisa. Lembrem-se que de noite todos os gatos são pardos. Agora que o programa que Leo estava a ver já acabou, porque não vamos os quatro jogar a sueca.
E ali estavam eles, a jogar a sueca, ao princípio com muito entusiasmo, que se foi perdendo gradualmente; o desinteresse era evidente e a falta de atenção dos quatro podia verificar-se pelas frequentes más jogadas.
Mas o que continuava a intrigar Malone era o notório desinteresse por Sharon (não que o importasse. talvez assim ainda conseguisse tê-la só para si), e, com esta diferença, pairava uma atmosfera desassossegada.
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Era como se o Clube de Fãs estivesse a navegar em águas bravas, e o Capitão estivesse preocupado com a direcção a tomar.
- Por amor de Deus, não demore tanto tempo - disse Shively, em tom azedo. - a sua vez. Jogue paus, se tiver.
Fazendo um grande esforço para se concentrar, Malone jogou e tentou estar atento.
Outra jogada, e mais outra, e Malone sentiu o ar opressivo do tédio emanar do silêncio, com o comportamento estilo robot de Shively, Yost e Brunner.
Era a vez de Shively baralhar, e este começou a misturar as cartas, quando abruptamente atirou o baralho para a mesa, separando deliberadamente as cartas todas. Depois, colocou as palmas das mãos no bordo da mesa e encarou o olhar inquiridor dos outros.
Shively estava carrancudo, seco.
- Que se lixem as cartas - exclamou ele. - Há uma coisa muito importante a discutir à mesa hoje. Tem-me chateado durante todo o dia, agora tenho de desabafar. É importante, a coisa mais importante desde que nós aqui estamos.
Malone sentiu o corpo tenso, enquanto esperava que Shively continuasse.
- Que se passa, Shiv - perguntou Yost, com ar apreensivo.
- São todos capazes de não gostar do que eu vou dizer, mas vou dizê-lo. Estamos num país livre. - Os olhos pequenos de Shively percorreram todos os seus companheiros, parando finalmente em Malone. - E penso que assim que me ouvirem, irão concordar. Vou propor aos sócios uma coisa que irá fazer desta empresa um golpe lucrativo. Querem ouvir?
- Continue, Kyle - disse Brunner.
Toda a aparência e comportamento de Shively pareciam ter-se transformado. Era como se o Dr. Frankenstein lhe tivesse aplicado eléctrodos e lhe tivesse dado uma descarga de electricidade, provendo-o, de repente, de vida e energia.
- Lembram-se do que vos falei ontem, à noite - perguntou ele. Acerca da Deusa do Sexo que está ali no quarto. Lembram-se?
- Disse que estava cansado dela - lembrou Brunner. Mas Malone lembrava-se de outro pormenor, das explorações mentais de Shively na noite anterior, e ficou logo apreensivo.
- Não é só isso - foi dizendo Shively. - A outra coisa de que eu falei além disso. Não gosto de me repetir. Vou ser breve, e sei que vão perceber.
Estar cansado dela é só uma parte da questão. Claro que estou cansado da tipa como normalmente acontece quando se foi já diversas vezes para a cama com uma gaja. Depois torna-se monótono. Mas não é só disso que estou cansado. Estou farto de estar fechado neste buraco, de ver as mesmas quatro paredes todos os dias, sem fazer nada, sem ter aonde ir. Estou cansado de comer a mesma coisa três vezes por dia. É da natureza humana cansarmo-nos de ver as
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mesmas caras todos os dias. Não fico surpreendido se sentirem o mesmo que eu.
- Bem, eu estou habituado a este tipo de vida - retorquiu Yost - desde que vou para passeios de caça e pesca todos os anos com amigos.
- Percebo o que ele quer dizer - disse Brunner para Yost.
- Claro que também percebo. Sofre de claustrofobia. - Yost voltou a dar atenção a Shively. - Bem, e o que pensa fazer, Shiv?
- É como se estivesse no Vietname - persistiu Shively -, vivendo semana após semana com os mesmos tipos. Cansa. Eu jurei que isso nunca mais me iria acontecer, e aqui estou eu outra vez, com a mesma sensação de estar trancado. Estou a ficar neura. Por isso decidi, por mim, pelo menos, que já chega. Quero acabar com isto, fazer o que é necessário, e voltar à minha vida normal. - Levantou a mão. - Só com uma grande diferença. Quero voltar à minha vida normal, não como era usual, mas como sempre achei que devia ser.
Brunner piscou os olhos através das suas grossas lentes.
- Kyle, devo dizer-lhe que estou totalmente baralhado. Que quer dizer com isso da vida que sempre achou que devia ter?
- Quero dizer. - prosseguiu Shively, com um sorriso arreganhado - que podia deixar isto com fortuna suficiente para fazer o que quero.
- Bem, nós também gostávamos disso - retorquiu Brunner, desapontado -, mas só se descobríssemos uma mina de ouro.
- Tem toda a razão. Eu descobri uma mina de ouro - replicou Shively, com firmeza -, e ela está no nosso quarto a dormir neste momento.
Malone caiu em si.
- Oh, não. de maneira nenhuma. não vai começar com isso outra vez....
- Cale a boca ou calo-lha eu! - ameaçou Shively. Olhou para os outros. - Lembram-se do que vos falei ontem, à noite? Ontem não vos disse aquilo muito a sério, mas hoje pus-me a pensar nisso e, deixem-me dizer-vos, a ideia pareceu-me óptima.
Yost virou o seu corpo grande para o texano.
- O resgate, é isso, Shiv?
- Nem mais. E porque não? Ela está cheia dele, Leo não é o único a confirmar isso. Eu também já o confirmei. Há uns dias atrás, como vos contei, a Sharon e eu falámos sobre tipos de vida, etc. e ela disse-me como era a vida dela. bem, caramba, ela tem só vinte e oito anos e já é mais do que milionária. E agora digo-vos eu uma coisa.
Os outros aguardaram.
- Ainda há uma hora atrás, quando estava com ela, puxei a conversa outra vez, só para me certificar, para ver se não era só publicidade ou se este não foi só um ano em que ela fez mais. Comecei a pesquisar, pu- la a falar. Sabe quanto é que ela vale? Qualquer coisa como quinze milhões de dólares, todos guardadinhos.
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- Quinze milhões? - perguntou Brunner, duvidando. - Excluindo impostos?
- Isso mesmo, depois dos impostos. E não fiquem para aí tão admirados,
Ela tem esse tal tipo, o Zigman, que investe o dinheiro dela desde que
começou a fazer massa tem-no investido em tudo - prédios de
escritórios, andares, gado, petróleo, numa empresa de cosméticos, numa
cadeia de restaurantes, em tudo. E ela disse-me que, presentemente, faz mais dinheiro com os investimentos do que com o que ganha no cinema.
- Se calhar, o dinheiro está todo aplicado nessas coisas - retorquiu Yost.
- Não - ripostou Shively. - Não, não me parece. Ela tem bastante
dinheiro disponível é essa a palavra, Leo
-Sim, está correcto. Ela disse dinheiro disponível.
-Acções, contas bancárias, etc. Ela pode retirar o dinheiro que quiser dos bancos, é só levantar um dedo.
Malone não conseguiu conter-se.
- Obrigado pela explicação, Kyle, mas o relatório financeiro de Sharon Fields não nos diz respeito.
- Talvez a si não, mas a mim diz-me muito - replicou Shivil
Ignorando uma vez mais Malone, continuou a falar para os outros. Ouçam: hoje, durante todo o dia, pensei muito no que vos disse ontem.
Agora estou pronto, se vocês também estiverem. - Fez uma pausa. Quanto tempo nos resta aqui? Sete dias. Justamente uma semana, até ao fim
das férias. Brevemente teremos de partir. E lá voltamos nós para os nossos
empregos chatos e para as nossas mesmas preocupações. E o que lucrámos
depois de tudo o que arriscámos? Nada, a menos que digamos que fornicámos
a mulher mais famosa do Mundo, mas nem isso podemos fazer, porque nos
lixamos. Que mais ganhámos com isso? Quatro pénis completamente esgotados. E é tudo. E quatro contas bancárias ainda mais pequenas, porque
gastámos algum dinheiro com este projecto. Bem, hoje disse a min próprio - Shiv, não podes continuar a ser um estúpido nem acabar esta
aventura só com a lembrança de uma tipa diferente e mais rodada.... Shiv, esta
é a tua única oportunidade de conseguires o que sempre sonhaste. E o que
é isso? Vocês sabem-no e eu também. É a única coisa no Mundo melhor do que o sexo. Sabem, não sabem?
- Dinheiro - disse Yost, baixinho.
- Massa, massa - repetiu Shively, com fervor. - Na maior parte,
as pessoas nem sequer têm a oportunidade de lá chegar. Nós temos sorte, temos
o tesouro dos Estados Unidos no quarto ao lado. Talvez seja a única oportunidade da nossa vida, e, se não a aproveitamos, merecemos continuar pobres durante o resto da nossa vida. Amigos, por amor de Deus, oiçam isto!
Esta é a única coisa que aconteceu na minha vida que a pode transformar totalmente. E pode também transformar a vossa, até talvez mais. A não ser qa
nenhum de vocês esteja interessado em ter mais dinheiro.
Yost encolheu os ombros.
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- Bem, toda a gente precisa de dinheiro. Pessoas como nós, especialmente se forem casadas e tiverem filhos, não conseguem poupar um níquel hoje em dia. Falo-vos por mim, estou sempre aflito. Neste momento, por exemplo, estou até a dever dinheiro. Se ficasse doente ou desempregado, não sei para onde é que havia de me virar. Assusta-me ter sempre de me preocupar com o futuro.
Leo Brunner tornou-se então o centro das atenções. A sua testa estava enrugada. Como todos estavam à espera da sua opinião, ele finalmente falou.
Da minha parte, direi que há um aspecto na proposta de Kyle que me preocupa. - Pensou mais um momento, e depois continuou. - Quando este projecto começou, como se devem lembrar, eu não quis entrar. Tinha medo, porque, o rapto é uma ofensa capital, e, mais tarde, porque a violação é outra ofensa muito séria. No entanto, como o rapto passou despercebido, e ainda continua, não existe nenhum crime de que nos possam acusar. E uma vez que Miss Fields colaborou connosco, no que respeita a relações sexuais, mesmo apesar da coacção, não nos podem acusar por a termos violado. Em resumo, vi que não estávamos em perigo assim que acabássemos com isto, não havia maneira de Miss Fields saber quem nós eramos, e seria como se estas duas semanas nunca tivessem existido. Teríamos tido a experiência, e podíamos continuar as nossas vidas sem receio. Contudo, a proposta de Kyle muda o aspecto da nossa posição actual.
- Claro que muda - disse Shively. - Vai-nos fazer ricos.
- Mas não sem um preço - respondeu Brunner. - Isso significa que teremos de tornar público o nosso projecto inicial de rapto. Até à data, não existe provas de que Miss Fields haja sido raptada. Mas assim que mandarmos a nota do resgate, provando que a temos em nosso poder, e que exigimos dinheiro em troca do seu regresso, anunciamos ao mundo que cometemos um crime, que Miss Fields foi raptada por criminosos.
- Provavelmente, esse facto não seria tornado público - disse Yost. - O empresário de Sharon não ousaria comunicá-lo à Polícia. Ficaria demasiado preocupado com a segurança dela. Se empreendêssemos isso, tenho a certeza de que poderíamos fazer uma transacção privada.
- Talvez sim, talvez não - retorquiu Brunner. - Talvez tenha razão. Só estou a dizer que, assim que uma nota pedindo um resgate é recebida, há alguém que sabe que um crime foi cometido e que há pessoas envolvidas.
- E então? - inquiriu Shively. - O tipo que recebe a nota, esse Zigman, ficaria morto de medo. Não faria nada. Estaríamos tão seguros como agora. unicamente mais ricos, bastante mais ricos. Não me diga que não quer ter mais dinheiro, Leo!
- Não nego que uma quantia inesperada me faria bastante jeito nesta altura da vida - replicou Brunner. - Mas tenho medo do risco que corro em troca disso. Preferia que as coisas continuassem como estava previsto.
Malone não tentou disfarçar a sua desaprovação.
-Digo-vos, desde já, que continuo a não aprovar essa ideia do resgate.
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Sou muito contra isso, assim como fui contra o seu comportamento quando você a assaltou daquela vez, Kyle. Sempre fui contra a violência. Sou contra o resgate, não preciso de dinheiro manchado de sangue, não o quero. Acho que era melhor acabarmos com essa história do resgate. Não foi esse o motivo por que nos metemos nisto.
- Não tenho a certeza - continuou Shively. - Talvez esse tenha sido, na verdade, o motivo por que nos metemos neste caso, só que nunca o quisemos admitir a nós próprios e mesmo aos outros. Quero dizer, quando se comete um rapto, já se sabe que ele significa resgate. Talvez, secretamente, nós já o tivéssemos admitido. Estou, agora, decidido a falar abertamente nisso e a concordar, e já que fizemos metade do trabalho, bem podemos acabá-lo. Vamos trabalhar pela recompensa que tanto merecemos. E você, Leo, pode acreditar em mim, já não há mais riscos a correr. O verdadeiro risco, o apanhá-la, trazê-la para longe e escondê-la, já nós passámos, já está feito. O que resta é só rotina para apanharmos o nosso bolo. Pensem nisso, que resta fazer? Pô-la a escrever um bilhete - talvez dois, veremos - para que eles reconheçam a letra dela. Ela manda o Zigman arranjar a massa, indica-lhe o sítio onde a deve deixar, e avisa-o para não dizer às autoridades se a quer ver viva outra vez. Ele seguirá as instruções das cartas. Aposto em como ele não vai à Polícia, porque a quer ver sã e salva. Jesus, ela é um bom investimento! Ele faz uma fortuna com ela. Não irá contra os seus próprios interesses. E, como vos disse - segundo ela me confessou -, o dinheiro está quietinho à nossa disposição, e, que diabo ela tem tanto que nem dará pela sua falta.
Yost inclinou a cabeça para a frente, com brusquidão.
- Kyle, quanto é que pensou pedir?
Shively grunhiu mais uma vez. Depois, pronunciou com gosto, palavra por palavra.
- Um milhão de dólares, companheiro Um milhão dele . Yost emitiu um longo e baixo assobio.
- Caramba, assim tanto?
- Bonito número, não é - continuou Shively. - Um milhão dividido por quatro significa um quarto de milhão para cada um. - Olhou em redor. - Que acha, Leo? Não lhe fazia jeito esta massa, sem pagar impostos? Brunner estava visivelmente desorientado. Engoliu em seco.
- A quem. a quem não faria? É muito dinheiro, sem dúvida. Assegurava o resto da minha vida. Você tem. tem a certeza de que se pode fazer isso sem correr risco?
- Absoluta!
- Se eu pudesse ter a certeza. - murmurou Brunner.
-Garanto-lhe isso, Leo. como no Banco á. Até agora, não vos
custou nada. Porque não me deixam orientar o resto? Vamos trocar a nossa ficha azul que está no quarto, e vamos todos para casa descansar.
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-Shiv, presta-me atenção enquanto ainda nos resta algum senso
comum - pediu Malone. - Nós não somos raptores desse tipo, não é o nosso
estilo. Não somos o Bruno Hauptmanns, ou algum como ele. Nenhum de
nós se meteu nisto por dinheiro, mas sim, por uma experiência romântica. E estamos a viver essa experiência.
- Já alguma vez depositou experiência na sua conta bancária? interrompeu-o Shively.
-Nós não somos raptores, merda!
Shively troçou.
-Raptores são só aqueles que são apanhados. Nós não o fomos, nem o vamos ser. Presentemente, o que eu estou a sugerir é a parte mais fácil.
- Nisso, o Shiv tem razão - concordou Yost. - A última parte é a transacção em que temos todos o comando da operação. A pessoa com quem
vamos negociar não tem outro remédio senão aceder. Penso que podíamos explorar um pouco mais o terreno.
- Exacto - disse Shively, satisfeito. - Vamos examinar todos os aspectos. Depois vamos a votos. Concordam?
Todos concordaram em medir as vantagens e desvantagens da proposta de Kyle Shively.
Falaram todos, durante setenta minutos. No fim deste tempo tinham sido ventilados todos os prós e contras.
- Acho que já vimos tudo - concluiu Shively. - Estou pronto para votar.
- Lembre-se de que a nossa norma continua em vigor - disse Yost. - A
maioria de votos vence. Um empate significa que a proposta foi rejeitada.
Começou a votação. Você, Shiv?
- Que pensa? Estou inteiramente de acordo. Voto Sim.
- E você, Adam?
- Não. Absolutamente Não.
- Está bem, vou eu dar o meu voto.... Howard Yost vota Sim . Estão
dois a favor do resgate, e um contra. A decisão está nas mãos do ilustre Leo Brunner. Que diz, Leo?
- Lembre-se, Leo - gritou Shively -, um quarto de milhão de dólares
no bolso. Se disser Sim, está na sua mão. - Arreganhou os dentes. -
Sem impostos. Leo, um quarto de milhão sem impostos!
Não, tem de dizer Não, Leo - pediu-lhe Malone. - Não nos
transforme em criminosos. O seu Não aniquilará esta nojenta proposta.
As pálpebras de Brunner fecharam-se debaixo dos óculos, a sua cabeça rodou de Shively para Malone e voltou para Shively.
- Tem de se decidir, Leo - lembrou Yost. - Fale, a favor ou contra! Sim ou Não!
Brunner tentou formar uma palavra. A boca pareceu formar um Não quando subitamente a sua voz seca disse Sim.
Yost e Shively bateram os pés, aplaudindo.
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- Três contra um! - vangloriou-se Shively. - Está decidido! Estamos ricos!
Derrotado, Malone, sentindo-se mal, levantou-se da mesa. Observou com tristeza a celebração, à espera que esta terminasse.
Quando a sala ficou mais calma, Malone conseguiu falar. Dirigiu-se a Shively.
- Não vou discutir mais. O que está feito, está feito. Só uma coisa. Não vamos muito longe com o resgate se a Sharon Fields não nos der a sua colaboração.
- Claro que precisamos da colaboração dela - concordou Shively.
- E se ela se recusar?
Shively voltou a arreganhar os dentes, piscando os olhos grosseiramente.
- Prometo-lhe que isso não acontecerá.
-Como é que sabe?
O grunhido de Shively aumentou.
- Porque já lhe perguntei tudo quando estive com ela esta noite. Não há problemas, ela colabora.
- Quer dizer que ela concordou em escrever o bilhete do resgate?
- Dois, até - respondeu Shively, servindo-se de outra bebida. - Você ficaria surpreendido se soubesse como foi fácil. Eu disse-lhe: Irmã, quero que escrevas para o Zigman a pedir o dinheiro, e que lhe escrevas depois a dizer onde é que o deixa. Expliquei-lhe que queria que fosse ela a escrever para provar que a tínhamos como refém. Fez-se difícil durante um minuto. Ela objectou: "E se eu me recusar a escrever os bilhetes? " E eu respondi- lhe: Querida, se não fores tu a escrever, talvez tenhamos de mandar a tua mão para provar que te temos cá. - Ele deu uma risada. - Depois disso, não houve mais problemas.
Malone estava espantado. Shively abanou a cabeça.
- Tem de aprender a lidar com mulheres. - Levantou o copo. - À nossa saúde e ao nosso primeiro milhão.
O quarto estava escuro, e ela estava demasiado tonta para abrir a luz e ver as horas, mas conjecturou que devia ser meia-noite.
Apesar do Nembutal, teve dificuldade de adormecer. Supôs que talvez ela própria quisesse este estado de semi- inconsciência, porque queria estar consciente para saborear o seu grande triunfo.
Como tinha preparado tudo com tanto cuidado para esta sua única saída! Tinha-os manejado com tanta arte, tinha incutido em Shively e depois naquele cujo nome ainda não sabia, no Sonhador, a ideia de que eram loucos em não utilizar o resgate. Tinha rezado tão desesperadamente para que eles
mordessem a isca, e, finalmente, morderam.
Durante dez longos dias, uma eternidade, ela não tinha existido para as
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pessoas do exterior. Agora, por fim, pela primeira vez durante o seu desconhecido trabalho, voltaria a ser uma pessoa, um ser humano que precisava de ajuda, para o pequeno mas poderoso círculo de amigos que a conheciam, que a estimavam, e que tudo fariam para a salvar.
O seu espírito vagaroso tentou voltar atrás e rever as cenas de triunfo que se tinham passado nas últimas horas.
Durante a noite, cedo ainda, o Sonhador tinha ido ter com ela, com o seu ar romântico e enjoativo, e ela tinha-lhe proporcionado mais uma sessão de primeira categoria, o estilo de exibição que teria convencido o seu mais recente produtor-realizador, Justin Rhodes, que mandaria logo revelar o filme sem tentar outra vez a cena. Uma vez que o Sonhador nada tinha mencionado sobre o resgate, ela presumiu que esta questão ainda não tinha sido posta em causa.
A única pista foi o facto de ele dizer que só ele e o Shively, ou Scoggins a visitariam nessa noite. Tanto Yost como Brunner tinham decidido parar, o que queria dizer que a motivação sexual deles tinha já diminuído como na maior parte das vezes acontece. qual era o apontamento de Roger Clay sobre isto, ah! sim, A familiaridade não nutre o esforço, ou qualquer coisa como isso. de qualquer maneira, este primeiro sinal de passividade tinha-lhe sugerido que estava próxima a altura de se separarem. Libertá-la ou. qual era o eufemismo do Vietname? sim, aniquilá-la.
Depois foi a visita do Demónio, de Kyle T. Shively, o monstro. Como sempre, tivera medo dele, agonizando interiormente só de pensar na violação. Mas, ao contrário das outras vezes, o coito tinha levado muito pouco tempo. Evidentemente, nessa noite, o pensamento dele não estava virado para esse lado. Tinha feito tudo a correr, bastante afastado dela, tal como se o fizesse com um boneco de borracha, desses que os Japoneses vendem para satisfação dos masturbadores. Logo a seguir, quis falar, e ela percebeu o que se lhe passava no espírito, ficando contente com o sucesso alcançado.
- Estámos a pensar em mandar-te embora - começou ele. Ela tentara esconder o seu contentamento.
- Mas não sem compensação - continuou ele. - Estamos a pensar em pedir um resgate. Apesar de tudo, merecemos alguma coisa pelo quarto e comida que te demos.
O degenerado.
- E, claro - prosseguiu -, esperamos que colabores.
- Como?
- Se formos avante com isso, temos de provar aos teus amigos que te temos connosco. Vamos ditar-te um bilhete e terás de escrevê-lo.
Ela precisava de continuar a dar a impressão - o instinto ditara-lhe - de que já não queria ser libertada, de que estava a gozar as suas férias, e de que a ideia de a trocarem por dinheiro era ofensiva.
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Disse levemente:
- E se eu me recusar a escrever o bilhete?
Shively continuava firme.
- Querida - replicou ele. - Se não quiseres escrever a carta, teremos de mandar a tua mão. Não queres isso, pois não?
- Não - respondeu. Deus meu, ele metia medo, Calígula em pessoa - pensou ela.
- Está bem, mana, havemos de te dizer o que decidirmos. Ela tomara o comprimido para dormir, supondo que só iria ter a resposta no dia seguinte, mas estava demasiado excitada para poder dormir.
Depois, muito mais tarde, quando estava quase a adormecer. oh, talvez há menos de uma hora. a porta abrira- se, e dois deles entraram no quarto. Um acendeu a luz. Yost. e, atrás dele, o Shively outra vez.
- Já decidimos - afirmara Shively, puxando uma cadeira para Yost e outra para ele. - Pensámos que quisesses saber imediatamente.
- Estás bem acordada? - perguntou Yost.
- O suficiente - disse ela, e esperou com. bem, sinceramente, pensou que era a maneira mais convincente. com a respiração ofegante.
Yost comandava a cena.
-Vou resumir. Dar-te-emos os pormenores amanhã quando estiveres mais acordada. Vamos ditar-te um pequeno bilhete sobre o resgate, amanhã. Queremos que vá com a tua letra. Para quem é que devemos mandar? Félix Zigman?
- Sim.
-Ele reconhece a tua letra?
- Imediatamente.
- Vais contar-lhe o que te aconteceu. Não muito, só que foste raptada e que estás presa, porque os raptores querem um resgate. Que estás sã e salva, e que serás posta em liberdade depois de nos fazerem o pagamento. Dir-lhe-ás que isto deve ser tido como confidencial. Se avisarem a Polícia ou o FBI, nunca mais tornam a ver-te. Se marcarem as notas ou fizerem qualquer coisa desse estilo, serás morta. Dizes ao Zigman para publicar um anúncio no Los Angeles Times quando tiver o dinheiro pronto. Quando o anúncio aparecer, mandamos-lhe um segundo bilhete, também com a tua letra, que será enviado em carta registada. Este bilhete dará todas as indicações sobre o sítio onde e como deverá ser entregue o dinheiro. Uma vez entregue e quando verificarmos que não fomos seguidos, serás posta em liberdade perto de Los Angeles. Deixamos-te num sítio onde possas telefonar ao Zigman. Percebes?
- Sim, percebo - hesitou, depois perguntou - Quando é que isto vai acontecer?
- Quê?
- Quando é que pensam levantar o resgate e libertar-me?
- Se tudo correr bem, à tabela, sem complicações, poderás estar em casa na sexta-feira, 4 de Julho. De hoje a sete dias.
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- Obrigada.
Ficaram de pé.
- Pronto, aí tens a descrição - disse Yost. - Agora podes descansar. Amanhã tratamos do bilhete. Boa noite!
- Boa noite!
Alcançaram a porta, abriram-na para sair, Shively virou-se, e atirou-lhe aquele sorriso cínico, normal.
- Não estás interessada em saber quanto vales?
- Tive medo de perguntar.
- Não tens que ter medo. Devias sentir-te orgulhosa. Dá-te uma ideia do que pensamos de ti. Queres ouvir?
- Certamente.
- Um milhão de dólares - disse ele, e acenou, enquanto fechava a porta. Agora, deitada, às escuras, e relembrando isto, pensou que um milhão de dólares não tinha grande significado.
Ela não tinha nem sombras do que havia dito ao Shively, quando começara o seu jogo para o tentar, mas fora o suficiente, fora mais do que o suficiente, e, se as coisas corressem como ela queria, talvez ainda os viesse a receber. Se as coisas não corressem bem, também não precisava de dinheiro, excepto para as despesas do funeral.
Quanto a arranjar o dinheiro, tinha a certeza de que não haveria pro blema. Conhecendo Félix Zigman tão bem como conhecia, ela sabia que ele seguiria as suas instruções à letra. Era calmo e sólido, apesar de, sob a sua exterior capa glacial ela saber que ele faria tudo até à morte para a salvar. Arranjaria o dinheiro e faria exactamente o que ela lhe dissesse. Deixaria o dinheiro do resgate onde ela lhe indicasse. Pensando só na sua segurança, ele nunca se arriscaria a participar abertamente às autoridades. Faria tudo sozinho, talvez confiasse em Nellie Wright, ou talvez usasse a Polícia cuidadosamente e por detrás dos bastidores.
Sim, nesses dois podia ela confiar.
Uma pergunta permanecia, e a resposta não viria antes do fim. Poderia confiar nos seus raptores, iriam eles cumprir a parte final do negócio?
Eram animais sem princípios, todos de criações diferentes. Instinti vamente, achou que Yost, Brunner e o Sonhador iriam cumprir. Se o seu destino estivesse só nas mãos deles, sabia que de hoje a uma semana voltaria salva a Bel Air, completamente assustada mas segura.
Mas o seu destino não era controlado por eles, ela sabia-o, estava, sim, à mercê de Kyle T. Scoggins. O Cabo Scoggins, não Shively - conjurou ela. Scoggins esvaziando a sua metralhadora nos corpos dessas pobres criancinhas. Scoggins que disse a alguém que nunca se deve deixar viva uma pessoa que mais tarde possa vir a ser perigosa.
Uma vez com o dinheiro na mão, como é que ela sabia que ele não a iria matar?
As suas esperanças tornaram-se cinzentas.
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Meio drogada como estava, via com clareza o que lhe podia acontecer. A sua única garantia de sobrevivência era encontrar meios para transferir a responsabilidade da sua segurança para o Félix Zigman e para a Polícia. Não poderia depender do Clube de Fãs para ir ter com os seus amigos. Tinha de arranjar maneira de os trazer até ao sítio onde ela estava. Não longe de Arlington, perto de um lago, numa zona montanhosa. Como transmitir esta informação antes que fosse demasiado tarde?
Uma coisa era deixar que os de fora soubessem que ela era mantida reclusa por raptores. Era um acontecimento ter conseguido isso, mas não era tudo. Conseguir que os de fora soubessem onde ela estava era outra. Sem um terceiro acto, a sua actuação seria um falhanço.
Tentou pensar, mas a sua cabeça estava baralhada.
Os seus pensamentos divagaram lentamente.
Momentaneamente, lembrou-se da reacção do Sonhador quando voltou de ver o seu filme; não era um mau filme, era um bom filme, com um fim melhor do que ela estava agora a prever para si. Porque é que a vida não tinha fins como aqueles?
Basta de cinema. Vida. A vida era o que importava. Não havia fins felizes na vida, pelo menos para ela.
Tão cansada.
Bocejou, virou-se, puxou a manta para cima, e aninhou-se. Uma pena. Faltava tanto para saber se a liberdade era uma certeza. Tinha alcançado uma incógnita. Estava atarantada. Perdida. Morta.
Depois, flutuando na última réstia de consciência, uma luz ténue visível, tão longe, muito longe, longe no passado. mostrando um caminho, iluminando a sua fuga mais uma vez. uma possibilidade impossível.
Não te esqueças, Sharon, por favor, lembra-te quando acordares. Lembra- te, se não queres morrer, e tu não queres, pois não? Não queres. Lembra-te.
TERCEIRO ACTO
Capítulo décimo primeiro
Na segunda-feira, às nove horas, tal como fazia todas as manhãs durante cinco dias na semana, Félix Zigman estacionou o Cadillac no seu lugar particular do parque privativo do luxuoso Edifício Blackman na parte sul de Beverly Hills. Andou cinco metros até ao elevador em passos curtos, carregou no botão, e subiu até ao quinto andar.
- Habitualmente nervoso às segundas-feiras de manhã - havia sempre um monte de recados telefónicos à sua espera, porque os seus clientes tinham gozado um fim-de-semana completo deliciando a sua paranóia e fabricando queixas acerca de investimentos, promoção, problemas de imobiliários -, Zigman reparou no espelho do elevador que o seu ar ainda estava mais carregado.
Habitualmente, também aproveitava aquele espelho para verificar se tudo estava em ordem, sem cabelos desalinhados, sem partículas de pó nos óculos e se estava impecável para as suas visitas. Era normalmente o interlúdio em que tirava qualquer linha do seu fato tropical, em que ajustava a gravata e o lenço de seda com monograma, sempre a condizer com o fato, e em que via se valia a pena engraxar os sapatos.
Félix Zigman era muito exigente com a sua apresentação, mas não hoje, não nessa manhã, nem ultimamente.
O mistério do desaparecimento de Sharon Fields pesava-lhe. De todos os seus clientes célebres, Sharon era a sua favorita. Adorava-a, gostava dela, compreendia-a. O único desgosto que tinha por não ter casado era o de não ter uma filha. Sharon era a pessoa que mais preenchia esse vazio.
Perfeitamente consciente das suas disposições, do seu comportamento caprichoso, dos seus actos impulsivos -apesar de ela andar muito mais calma nos últimos dois anos-, não ficou muito preocupado durante as primeiras quarenta horas do seu desaparecimento, embora Nellie Wright, mais emocional, tivesse logo desde o início ficado bastante perturbada. Mas quando o desaparecimento de Sharon se alongou de dois para três dias e depois para quatro, Zigman também começou a preocupar-se. Sabendo que era inútil participar ao Departamento de Pessoas Desaparecidas da Polícia de Los Angeles, pois não havia provas nenhumas de que Sharon estivesse ferida ou que tivesse caído numa emboscada, Zigman tinha reportado o acontecimento, não oficialmente, a um seu conhecido que era oficial da Polícia. Infelizmente, as notícias sobre a sua visita espalharam-se - já não havia segredo - e só devido a um desmentido por ele feito na Televisão se evitou que a história se espalhasse e se tornasse num embaraço público.
Mas esta manhã a sua preocupação transformou-se em medo, temia que algo de muito grave tivesse acontecido e que Sharon não pudesse comunicar com ele ou com Nellie. Por momentos considerou a hipótese de Sharon ter
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sido raptada. Este tempo todo sem pedido de resgate confirmara-lhe que não havia motivo para essa preocupação. Pensando nos desastres que podem acontecer a uma pessoa, Zigman explorava três hipóteses. Uma: Amnésia. Este lapso de memória, com a consequente perda de
identidade, era invulgar, claro. Mas podia acontecer. Sharon podia estar a
passar por um período amnésico, sem saber quem era ou de onde vinha, como resultado, talvez, de uma causa desconhecida ou uma espécie de ferimento no
cérebro, o que podia ser uma explicação para o seu desaparecimento. Só antes de ontem, Zigman havia visitado um psiquiatra para se informar acerca deste mal. Zigman pensava que esta era a possibilidade menos provável, porque se Sharon não soubesse quem era, haveria inúmeras pessoas que a reconheceriam e que contactariam as autoridades.
Duas Estado de coma devido a um acidente. Durante o seu costumado passeio matinal, podia ter destrancado o portão da frente, e ido dar um passeio nas redondezas da Stone Canyon Road, e ter sido apanhada por um atropela-e-foge ou até Lhe podia ter caído uma árvore em cima. Mas a área havia sido batida muitas vezes por ele, por Nellie e pelos O Donnells, e não se viam vestígios de Sharon. Claro, também podia ter acontecido que, tendo ficado completamente desfigurada, algum Bom Samaritano a tivesse levado para alguma clínica ou hospital. E até podia ser que, nesse preciso momento, ela aí estivesse em coma. Nellie havia contactado todos os hospitais e clínicas de emergência da cidade e do distrito, fazendo uma descrição geral de Sharon (para que não descobrissem de quem se tratava) e dizendo que tentava localizar uma parente (dando um nome fictício), mas a investigação resultara infrutífera.
Três Ter, num impulso, fugido com um homem. Zigman pensara nesta hipótese só porque uma vez, já há muito tempo, Sharon fizera uma fuga desse tipo. Mas agora não acreditava nada nessa hipótese, enquanto Nellie a recusava inteiramente. O desenvolvimento e mudanças que eles presenciaram em Sharon, a sua disposição na noite anterior ao desaparecimento, faziam com que esta fosse a última das três hipóteses a considerar. Além disso, ela tinha-se tornado bastante selectiva na sua escolha de companheiros, e se houvesse algum homem que a interessasse, um dos dois, Nellie ou Zigman; teria conhecimento disso. Nellie estava mais inclinada para a hipótese de Sharon ter resolvido ir descansar sozinha para algum sítio calmo,também isso parecia improvável, porque a nova Sharon não seria capaz de fazer com que as pessoas íntimas se preocupassem com ela e nesta altura já teria telefonado.
Zigman começava agora a sentir o tempo a pesar. Santo Deus, era o décimo terceiro dia do desaparecimento de Sharon, o que fazia com que tudo soasse mais agourento. Mas não se ganhava nada em dizer que ela tinha desaparecido, que se tinha evaporado.
Sendo um homem de lógica, Zigman orgulhava-se de acreditar em respostas ou explicações que pudessem ser encontradas através de um
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puzzle humano. O cérebro humano era o computador mais eficiente do Mundo, e se este computador tivesse os dados certos e as opções prováveis, teria, inevitavelmente, de produzir respostas razoáveis.
Havia aqui muitos elementos conhecidos. Acerca de Sharon Fields havia montes de informações e estatísticas. Sabia-se qual era o seu comportamento, os seus pensamentos, as suas ambições, os seus amigos e inimigos fornecia-se tudo isto ao computador e ele devia produzir. mas nada. Este falhanço cometido por um instrumento supremo de lógica negava a própria lógica. E aqui estava ele, um homem de negócios no negócio de respostas, mudo, e cada dia que passava mais mudo se tornava, devido à frustração e ao medo.
Ei-lo, depois de a porta do elevador se ter aberto automaticamente, de pé, no corredor alcatifado de azul que dava para o seu escritório. Com o coração pesado, Zigman deixou o elevador dirigindo-se para a porta do seu escritório.
Havia mistérios, ele sabia-o pelo que tinha lido, sempre houvera mistérios. Em 1809, o embaixador britânico em Viena, Benjamin Bathurst, saíra de uma estalagem em Perleberg, na Alemanha, para ir para a sua carruagem, andou em volta dos cavalos, e, à luz do dia, desaparecera para sempre. Em 1913, o escritor Ambrose Bierce, ao atravessar a fronteira para o México, desaparecera da face da Terra. Em 1930, o juiz Joseph Crater entrara num táxi e nunca mais fora visto. E tantos outros, desde os colonos desaparecidos da ilha Roanoke à tripulação do barco abandonado "Maria Celeste".
Todos se evaporaram no ar.
Nenhum deles voltara a ser encontrado.
E se tivesse sucedido o mesmo a Sharon Fields?
Não - pensou Zigman - tal não podia acontecer à actriz mais popular, conhecida e célebre de todo o Mundo. Mas, um facto não podia ser ignorado, este era o décimo terceiro dia do seu desaparecimento.
Félix Zigman olhou para o seu nome, escrito a negro na porta e entrou. Passando pelo escritório da recepcionista e pela sala da sua secretária cumprimentou as duas com um ligeiro aceno, entrou no seu espaçoso e bem decorado gabinete, evitando olhar para a parede repleta de fotografias dos seus clientes célebres, das quais a mais proeminente era, Tua amiga para sempre, com admiração e amor para sempre. Sharon Fields.
Foi directamente para a sua grande secretária de madeira, agora cheia de mensagens telefónicas e de correspondência recebida, sentou-se na poltrona, e meditou durante mais uns segundos antes de começar o seu dia de trabalho.
Tal como sempre fizera durante dez dos treze dias que se haviam passado, pegou no seu telefone privativo, e ligou para casa de Sharon Fields em Bel Air.
Atenderam o telefone logo ao primeiro toque.
-Nellie? É o Félix.
-Soubeste de alguma coisa?
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- Não, nem uma palavra. E tu?
- Nada, nada.... Félix, não sei se consigo aguentar mais um dia. Estou com muito medo.
Procurou acalmá-la, tentou esconder a sua normal brusquidão e impaciência falando-lhe de coisas sem importância; falou vagamente e prometeu-lhe voltar a ligar mais tarde.
Depois de ter desligado, os seus olhos passaram pelas mensagens telefónicas, esperando ver o nome de Sharon, mas o dela continuava ausente e
todos os outros nomes eram os de clientes conhecidos, de agentes, de vendedores de investimentos ou homens de relações públicas. Pôs as mensagens
de lado colocando a correspondência em três montes no centro da secretária.
Ia vendo as cartas, com todos os sobrescritos cuidadosamente abertos pela
sua secretária, Juanita Washington, enquanto o seu cérebro fotografava o
endereço dos remetentes, adivinhava o conteúdo de cada sobrescrito, e,
automaticamente, começava a elaborar, mentalmente, as suas precisas e concludentes respostas.
Enquanto continuava a ler os sobrescritos chegados, os seus dedos
sentiram um que era diferente dos outros. Estava fechado, o que significava
que a infalível Juanita não tinha reparado nele ou vinha marcado "Pessoal" ou Confidencial".
Estava marcado em letra de imprensa, grossa, escrita a preto,
PESSOAL E IMPORTANTE .
Zigman tirou o sobrescrito do monte, pôs os outros de lado, e
examinou-o. Não trazia remetente, tinha o carimbo de Beverly Hills. Um sobrescrito barato que podia ter sido comprado em qualquer papelaria ou tabacaria. O seu nome e endereço vinham também escritos com aquele tipo de letra.
Abriu o sobrescrito, tirou as páginas de dentro, e, de repente, teve um
pressentimento. Desdobrou rapidamente a carta e pô-la na sua frente em cima da mesa.
Reconheceu logo a caligrafia.
Passou para a segunda página, e lá estava.... Sharon L. Fields Finalmente pensou.
Voltou à primeira página, ao princípio, e começou a ler, ansiosamente:
Para Sr. Félix Zigman, CONFIDENCIAL.
Querido Félix,
Sei que tens estado preocupado comigo. Esta carta explica tudo. A carta está a ser-me ditada. Estou a escrevê-la pessoalmente para provar que é minha. Fui raptada em 18 de Junho, e tenho estado reclusa desde essa data. Não foste contactado há mais tempo, porque, entretanto, estavam a ser tomadas decisões.
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Estou bem. Serei posta em liberdade se respeitares exactamente as con dições desta carta. Se elas não forem cumpridas, ouforem alteradas por ti, a minha vida estará em jogo. Se a quantia, o modo de pagamento, e a confidencialidade exigidos não forem obedecidos, serei morta. Não tenho dúvidas quanto a isto, não duvides. As condições para a minha libertação são as seguintes:
O resgate exigido pela minha vida é de um milhão de dólares (1. 000. 000) em dinheiro, em notas de tamanho regular. As notas deverão ser de 100, 50, 20. A soma total deverá conter 1000 notas de 100, 2000 de 50, e 40 000 de 20. Só metade das notas podem ser novas. A outra metade tem de ser em notas já usadas. Só um máximo de 8 notas pode ter números consecutivos, mas nunca mais do que isso numa sequência. É imperativo que nenhuma das notas esteja, visível ou invisivelmente, marcada. Não serei libertada até que todas as notas sejam quimicamente verificadas. Prevê-se que isto leve doze horas. Uma só nota marcada, e eu serei morta.
As notas terão de ser empacotadas em duas malas portáteis, castanhas. A maior deverá ter menos de um metro de comprimento e menos de sessenta centímetros de largura. A segunda deverá ser menor, mas suficientemente grande para acomodar o dinheiro.
Quando tiveres a quantia do resgate pronta, deverás publicar um anúncio na secção de anúncios pessoais do Los Angeles Times. Deverá ser publicado na edição de quarta feira de manhã, 2 de Julho. O anúncio, a indicar que tens o dinheiro e que estás pronto a receber as indicações sobre o sítio onde o deves deixar, dirá o seguinte: "Querida Lucie. Está tudo resolvido. Qero o teu regresso. Saudades. Pai. "
Quando o anúncio for visto, escrevo-te uma segunda carta, mais pequena, registada e endereçada para o teu escritório. Dir-te-á quando e onde deverás largar o dinheiro. Não te comprometas com ninguem na quarta-feira, 3 de Julho, e na sexta-feira, 4 de Julho, porque a entrega será feita num destes dias. Quandofores deixar o dinheiro, não deverás ir acompanhado nem seguido por ninguém.
Félix, imploro-te que não digas nada a ninguém acerca desta carta. Se as autoridades forem informadas, isso significará a minha execução imediata.
A minha vida está inteiramente nas tuas mãos. Não me atraiçoes. A sempre tua amiga, Sharon L. Fields.
Félix Zigman sentiu-se arrepiar, uma impressão a descer-lhe na espinha. Ficou parado, petrificado pelo tom assustador daquela carta. O seu olhar voltou para a carta, procurou os seus avisos de perigo. se a quantia, a forma de pagamento. não forem obedecidos, serei morta. se forem marcadas. isso significará a minha morte. se as autoridades forem informadas. isso significará a minha execuÇão imediata.
E, de certa maneira, ela dizia-lhe que a sua vida estava só nas mãos dele.
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Se as condições não forem cumpridas, ou forem alteradas por ti, a minha vida estará em jogo.
A minha vida está inteiramente nas tuas mãos.
Não me atraiçoes....
Impressionado, Zigman recostou-se na cadeira, com as mãos nos olhos.
- Meu Deus - disse alto.
Estava desnorteado, com ar abatido, uma sensação que nunca havia tido.
A sua raisonêtre o seu valor para os meros mortais que eram vítimas do emocionalismo, o seu próprio sucesso, tudo isso era baseado na sua capacidade de não se deixar machucar e de pensar claro durante as crises.
Mas nunca na sua vida fora o centro de uma crise como esta, que o tornava o único responsável pela vida de um outro ser humano ou pelo seu
abatimento, e especialmente sendo esse ser humano a pessoa mais querida para si.
O crime que acabava de lhe ser revelado era tão imprevisto e chocante, o
compromisso da vítima tão aterrorizante, que ele continuou imobilizado durante longos minutos.
A sua primeira reacção racional foi a de não acreditar nisso. O descrédito
era uma réplica que ele podia manejar. Olhar para o pedido de resgate como
um logro, uma brincadeira, mesmo um gozo, era simples, era cómodo, e libertava-o da pressão da responsabilidade, pelo menos libertava-o do peso nos ombros.
Claro, era essa a explicação - tentou convencer-se -, era isso certamente. Alguém soubera do desaparecimento de Sharon.... talvez o casal que
lhe governava a casa, os O'Donnells, houvesse contado a um amigo menos
digno de confiança, e o indivíduo tentara forjar a história para ver se
conseguia apanhar a fortuna que lhe era exigida na carta.
Claro, talvez fosse isso o que estava por detrás da carta. Pessoas reais
nunca ousariam raptar alguém tão famoso como Sharon Fields, assim como
também não ousariam raptar a Rainha de Inglaterra ou o Presidente dos Estados Unidos.
Zigman vivia há tanto tempo com o cinema e com as pessoas do cinema,
num mundo de fantasia, que imaginou, automaticamente, mais uma fita de terror como esta, arquivada em qualquer estúdio. Era mais uma ficção.
Fixando a carta mais de perto, podia verificar que a letra da pessoa que a
escrevera, embora à primeira vista parecesse uma imitação razoável da letra
de Sharon, mais não era do que uma imitação pobre da verdadeira caligrafia dela.
A perturbação do seu cérebro parou, tudo se tornou claro. Se a carta era
forjada, não precisava de ser levada a sério, podia ser ignorada. Tudo voltaria
ao normal, a responsabilidade de uma vida não seria sua, e o seu dia podia começar.
Zigman sentou-se na cadeira. Havia ainda uma responsabilidade mínima
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que era sua, pois a carta forjada pedindo o resgate de um milhão de dólares podia, ao menos, ser tratada como um negócio normal. Tinha de ser tratada como um negócio normal. Tinha de ser estudado. Era necessário saber se a propriedade correspondia ao que estava descrito, era necessário saber se existia a promessa de lucro.
Muito bem, iria ver isso como rotina, para sentir que havia feito o seu trabalho, em vez de o ter posto de parte.
Inclinou-se, ligou o intercomunicador para falar com a sua secretária. A voz dela apareceu.
- Juanita, traga do arquivo a pasta da correspondência de Sharon Fields do ano passado. Traga-a imediatamente.
- Sim, senhor.
Os seus dedos tamborilavam na mesa enquanto esperava impacientemente pelo dossier . Que é que estava a sua secretária a fazer? Parecia que se tinha passado uma hora. Olhou para o relógio que estava em cima da secretária, apenas passara um minuto.
Juanita, trazendo uma pasta, atravessou o gabinete em direcção a ele. Os braços dele esticaram-se, e quase rasgou a pasta, com a ansiedade. Não pediu desculpa.
- Obrigado - disse, precipitadamente.
Num instante, levou a pasta para a mesa, e abriu-a. Quando ia começar a folheá-la, percebeu que Juanita ainda estava ali, de pé, em frente da secretária. Levantou os olhos e deparou-se-lhe o seu olhar observador.
- Que se passa - perguntou ele, bruscamente.
Ela ficou embaraçada.
- Desculpe. fiquei preocupada. Sente-se bem, Sr. Zigman?
- Que qner dizer com isso de sente-se bem?
- Eu. eu não sei.
- Claro que estou bem. Estou perfeitamente. Agora, deixe-me só. Estou ocupado.
Esperou que a porta se fechasse, e depois voltou à pasta de arquivo. Percorreu, bruscamente, as suas cartas para Nellie Wright, da Nellie para si em nome de Sharon, e, por fim, localizou uma, depois outra, finalmente três cartas de Sharon, para si, escritas à mão com a sua caligrafia inclinada.
Pôs a pasta de lado, colocando as três cartas verdadeiras de Sharon ao lado da carta acerca do resgate.
Estudou-as com atenção, comparou palavra por palavra, letra por letra. Em cinco minutos verificara tudo.
Já sabia. A vida de Sharon Fields estava inteiramente nas suas mãos. Não havia dúvidas, absolutamente nenhumas. O bilhete do resgate era de Sharon,
autêntico, escrito por ela própria.
O seu desejo de que fosse um logro não fora mais do que uma tentativa involuntária para fazer com que o que estava a acontecer não acontecesse. Mas estava a acontecer. A prova estava à frente dele, tinha acontecido.
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Sharon Fields havia sido raptada. A segurança tinha de ser comprada, não ha via mais dúvidas. O investimento teria de ser feito, e depressa.
Um milhão de dólares. Ele havia estado envolvido em inúmeros negócios onde tivera de aplicar não um milhão, mas cinco, dez milhões. Mas nunca em vinte e quatro horas. Nunca a pronto, e em certas quantidades de notas, com limitações restritas sobre a série dos números. E, ainda pior, tudo isto na máxima confidencialidade.
O seu computador começou a funcionar depressa e sem som, a seleccionar hipóteses. Em nenhuma circunstância, ele iria dizer a alguém o que se passava, nem à Polícia, nem ao FBI. Tinha de ser uma operação de homem só.
Operação Zigman.
Guardaria o segredo como um padre ou um psicanalista.
Mas havia alguém que devia saber. Tinha de ir ver Nellie Wright e confiar-lhe o segredo. Nellie e ele eram uma só pessoa quando se tratava de amar Sharon. Eram dois, mas funcionavam como um em tudo o que dizia respeito a Sharon.
Além de Nellie teria de haver mais uma pessoa. uma outra pessoa teria de saber, e depressa, sem perder um minuto.
Um homem de dinheiro.
De repente, lembrou-se do homem. Havia muitos candidatos, mas um só homem certo. Nathaniel Chadburn, o parceiro de golfe de Zigman, nos fins-de-semana no Country Club de Brentwood, e presidente do Sutter National Bank.
O homem certo por duas razões.
Chadburn tratara de todos os assuntos bancários de Zigman, desde contas de clientes a empréstimos e financiamentos. As suas relações eram fortes e constantes há mais de uma década. Chadburn e o Sutter National Bank não só fizeram trabalhos para Zigman, como também costumavam conceder inportantes financiamentos à Aurora Films, a empresa que produzia os filmes de Sharon e com a qual ela tinha contrato.
Chadburn era um homem do mundo das finanças. Ele saberia onde encontrar um milhão de dólares no prazo de um dia. Provavelmente, até teria mais do que isso disponível no Banco. Caso contrário, ele saberia onde encontrá-los, mesmo que tivesse que fazer um negócio com o Féderal Resere de Los Angeles para perfazer a quantia. Quanto às exigências de tempo a condição das notas, a sua divisão em cem, cinquenta e vinte, a variedade das séries -, Chadburn conhecia outros banqueiros na zona, e negociaria com eles para arranjar as denominações certas.
Mas havia mais uma razão pela qual Chadburn era o homem certo, e esta era a mais importante de todas. Durante os anos todos que tinham de amizade, Chadburn nunca discutira os negócios particulares ou posição financeira de clientes. Era reservado, calmo, um homem não curioso, que sabia as regras do jogo. Durante dez anos, Chadburn nunca se atreveu a perguntar se Zigman era ou havia sido alguma vez casado. O escritório de Chadburn era
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tão sagrado e seguro como um confessionário, mesmo o do Papa no Vaticano. Além disso, Chadburn era o único homem que ele conhecia que nunca havia feito batota com a pontuação do golfe. Mais um factor final. Provavelmente não pediria garantia pelo empréstimo, ou, se tivesse de o fazer, aceitaria as propriedades e acções de Zigman como garantia verbal.
Zigman ponderou mais uma coisa.
Teria ele de dizer ao banqueiro para que se destinava o dinheiro? Teria necessidade de mostrar a carta? Tinha a certeza de que poderia confiar, mas depois pensou que isso seria uma traição ao pedido de Sharon para segredo absoluto. Porque, desde o momento que Zigman pedisse o empréstimo, dizendo que precisava do dinheiro urgentemente, naquelas condições, ele sabê-lo-ia. O banqueiro perceberia para que fim e a quem o dinheiro se destinava. Ele era, também, um frequentador de cinema e um leitor de ficção. Ele não iria perguntar nem era preciso contar-lhe. A confidência não seria quebrada.
Zigman dobrou a carta do resgate e pô-la na sua algibeira do peito. Só quando ia a levantar-se é que perguntou a si próprio por que razão o raptor ou raptores tinham esperado treze dias para pedir o resgate, e depois pensou no que teria passado Sharon durante esse período de tempo.
Rapidamente, fez por esquecer isto. Não queria saber, só queria a sua menina de volta, sã e salva.
Atravessou a sala apressadamente, abriu a porta, e dirigiu-se para o elevador.
AGENDA DE ADAM MALONE - 2 de Julho
É quarta-feira de manhã, já tarde, e como os outros consideravam este o dia mais importante de todo este período que passámos em Más a Tierra, pelo que o celebraram embebedando-se, decidi que valia a pena escrever.
Andei um pouco. estavam todos demasiado bêbados para dar pela minha falta. e encontrei um recanto com sombra formada por carvalhos, a menos de um quilómetro da nossa casa. estou encostado a uma árvore, protegido do sol quente, escrevendo o que observei e ouvi, as minhas impressões.
Há umas horas atrás, o Vendedor de Seguros foi de carro até à cidade para comprar o jornal Los Angeles Times. Voltou depressa, apesar do caminho perigoso e montanhoso, aparecendo disparado quando estávamos a lavar a louça do pequeno-almoço. Deu um salto e pôs o jornal na mesa da sala de jantar.
- Estamos ricos - gritou.
Todos fomos ver o jornal que estava dobrado na página dos Anúncios Classificados na segunda coluna, entre Perdidos e Achados e Trocas no sexto anúncio da coluna Pessoais , lia-se
"QUERIDA LUCIE. Tudo resolvido. Espero o teu regresso. Saudades. Pai. "
, que tínhamos ditado ao Objecto, as palavras que ela havia escrito na sua carta para o Empresário, de modo que ele pudesse indicar se tinha recebido a mensagem, se estaria interessado na nossa proposta, e se estava pronto a fazer o investimento. Antes de isto acontecer, tive dúvidas que o Empresário acreditasse que a carta era autêntica. Pelos vistos, a sua letra, assim como o nome de Lucie (o seu nome do meio, só usado na correspondência com pessoas íntimas), tinham-no convencido.
Quando vimos o anúncio com os nossos olhos, o Mecânico deu um salto até quase ao tecto, com a excitação. Abraçou o Vendedor de Seguros, dando- lhe palmadas nas costas, gritando:
- Vêem, vêem, eu disse-vos que conseguiríamos! A minha ideia valeu a pena! Um milhão dele para nós!
O mais velho de nós, o Contabilista, tentou conter a sua satisfação, di zendo.
- Ainda não conseguimos, acho melhor esperarmos antes de celebrar:
Mas a sua reserva foi logo eliminada pelo Mecânico que lhe disse: "- Está no papo! nosso, é todo nosso! "
O seu entusiasmo era tão contagiante que o Contabilista acabou por se deixar envolver pela atmosfera de júbilo.
Apesar de desde o princípio eu não estar de acordo com a transacção, não quis ser o único desmancha-prazeres, por isso sorri e dei os meus parabéns.
O Vendedor de Seguros trouxe uísque, gelo e copos, insistindo que brindássemos ao dia mais extraordinário das nossas férias.
Aceitei, tomei uma bebida, e, hipocritamente, brindei pelo dia mais extraordinário, apesar de, secretamente, saber que assim não era. O meu melhor dia havia sido aquele em que consegui que o Objecto me amasse e também quando tive relações sexuais favoráveis com ela. A satisfação engendrada pelo amor, sabia-o, nunca poderia ser substituída pelo grosseiro prazer do ganho material.
Enquanto levávamos as bebidas para a sala, era interessante observar que não há êxito com a mulher mais desejada na Terra que se possa comparar com o êxito da fortuna. Para os homens, o ponto máximo, o perfeito orgasmo, não é finalmente encontrado no sexo, mas, sim, no dinheiro. Gostava de saber se Wilhelm Reich alguma vez percebeu isto. Claro, apesar de ter tirado essa conclusão, não me incluía nela. Obviamente, eu sou a minoria, um não-conformista.
Continuei a beber devagar, enquanto os outros prosseguiam em grande força. Passado algum tempo, houve uma conversa fascinante na qual tentei não participar, mas, finalmente, vi-me forçado a entrar nela.
O Mecânico, recostado no sofá, regozijava-se com a realização do seu projecto.
- Um quarto de milhão para cada - disse quase com descrença, e foi a única vez que senti uma certa afabilidade na sua voz. - Imaginem!
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Imaginem como no próximo sábado as nossas vidas estarão modificadas. Sem
preocupações, sem esforços. Podemos ser importantes, fazer estalar os nossos
dedos para ter qualquer coisa, como Onassis ou Paul Getty.
- Estou ainda a tentar acalmar-me - disse, com contentamento, o Vendedor de Seguros. - Não sei o que farei primeiro.
- Podemos dar-nos a uns certos luxos - concordou o Contabilista, mas depois acrescentou, com ar de quem estava á dar conselhos, o que estava
muito dentro do seu feitio. - Seria ajuizado investirmos uma boa porção da
quantia em obrigações municipais, isentas de taxas. Poupava-nos o dinheiro, e dava-nos um juro regular.
- Primeiro, quero todas as coisas que sempre desejei - disse o Mecânico.
- Tais como - quis saber o Vendedor de Seguros.
Momentaneamente, a expressão do Mecânico fez-me lembrar a de um órfão pobre que, de repente, fora adoptado por uma família rica; era este o
seu primeiro Natal com eles, e estava louco entre os presentes, debaixo da árvore de Natal.
- Querem saber o que vou fazer com a massa - O Mecânico reflectia euforicamente, uma atitude que em si era muito pouco normal, pois
nunca me pareceu ser uma pessoa muito imaginativa. Mas, pelos vistos, toda a gente possui uma célula cerebral privada onde esconde todos os seus sonhos
que não quer revelar. O Mecânico começou a tornar públicos os seus sonhos,
que podiam agora tornar-se realidade.
- Uma coisa é certa - disse ele. - Não voltarei a trabalhar tão cedo, e, se alguma vez trabalhar, será por conta própria. Talvez compre um
pequeno andar, um apartamento completamente mobilado, ou talvez uma casa de praia em Marina del Rey que é cheia de vida, ou então em Malibu.
- São caras, essas casas - lembrou-lhe o Contabilista.
- Você está a falar com um homem rico - respondeu-lhe o
Mecânico, com um sorriso aberto. - Sim, uma casa à beira-mar, e depois
darei festas todas as noites, cheias de miúdas de biquini. Depois comprarei um
carro de sport, talvez um Ferrari vermelho ou um Lamborghini, e irei passear
como um desses play-boys da América do Sul. Depois, deixe-me ver, quero
fazer um investimento, como o nosso Contabilista sugere. Talvez compre um
bom carro de corridas - um desses Porsche de doze cilindros - que eu possa
afinar e com o qual possa concorrer em competições, e ganhar alguns prémios
em dinheiro. Bem, isto é só para começar. Há muitas outras coisas que
quero. - Apontou o seu copo cheio de uísque para o Vendedor de Seguros,
entornando parte. - E você? Que é que vai fazer com a massa? O Vendedor de Seguros, de cara afogueada devido ao álcool e ao contentamento, pensou seriamente na pergunta.
- Bem, pode acreditar, muitas vezes pensei no que faria se herdasse uma grande quantia de dinheiro. Por isso já tenho uma ideia. Primeiro, e tal como você, saía do meu emprego imediatamente. Ser vendedor tem as suas
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recompensas, mas é um trabalho aborrecido, sempre fora, dia sim, dia não. Sempre a cumprimentar, a sorrir, na melhor das disposições, e a maior parte das vezes é-se posto fora de casa dos clientes ou insultado. Não quero mais isso, não é para mim.
- Mas, construtivamente, que pensa fazer - perguntou o Contabilista.
- Bem, gostaria de aplicar o dinheiro num fundo de investimento qualquer, para a Nancy e para o Tim, os meus filhos, para que o futuro deles ficasse assegurado. Depois, talvez me mudasse para Beverly Hills, comprasse uma daquelas casas de dois andares de tipo espanhol em Rodeo ou Linden, com piscina no jardim. Deixava que a minha mulher decorasse a casa. Ela sempre quis fazer isso. Claro, fazia-me sócio de um bom clube de golfe, passava grande parte do tempo a jogar e a dar- me com pessoas de classe. Investia na Bolsa. Sempre achei que tinha jeito para a Bolsa, e talvez o dinheiro duplicasse. E, bem, como passatempo. nunca disse isto a ninguém porque me parecia ridículo, mas agora, que talvez nos caia bastante dinheiro. bem. queria envolver-me no futebol. Não para jogar, claro! Mas comprar uma equipa ou ter a concessão da exploração. não tinha de ser em Los Angeles, podia ser Chicago, Cleveland, Kansas City. e tomar parte activa nos treinos e na direcção da mesma. Isso é que era bestial; seria reviver os meus tempos de estudante. Acho que o que já disse me vai pôr ocupado durante alguns anos. Oh, sim, e. - virou-se para o Contabilista - espero poder tê-lo como consultor dos meus investimentos e como técnico de impostos, isto é, se você não se reformar.
- Agradeço-lhe a sua confiança em mim - disse o Contabilista, com sobriedade. - Não, não me vou reformar. Os meus planos comparados com os vossos vão parecer-vos pálidos. É difícil mudar na minha idade. Claro que não hei-de poder desistir do meu trabalho de contabilidade que exerço na zona onde vivo. Talvez compre uma casa maior, no mesmo sítio, ou talvez aumente a minha, se tal for economicamente prático. E, se também for prático, alargarei o meu negócio talvez arranje uma sociedade e alugue um escritório mais agradável.
- Eh, pá - começou o Mecânico a gozá-lo - isso é tudo muito chato. Pode fazer coisas melhores, meu amigo. Descontraia-se um pouco. Tem um quarto de milhão de dólares. Não os vai gozar nem um bocado? Compre um instituto de massagens, cheio de miúdas.
O Contabilista sorriu.
- Oh, também já dirigi os meus planos para esse campo. Gostava de comprar algumas acções daquele "night-club" em que as gajas andam meias-nuas, The Birthday Suite, o que é de um tal Ruffalo. Como lhe faço a contabilidade, sei quanto vale o negócio. Acho que ele não se importava que
eu entrasse para a sociedade, se pagasse a pronto. Era um bom negócio. E quanto a mulheres. sim, encontrava logo a miúda ideal, que talvez pusesse
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por conta, que me ficaria eternamente grata, e que não iria estragar a minha situação familiar. Isso seria o ideal.
- Lá isso era - concordou o Mecânico.
- Uma. uma outra coisa - disse o Contabilista, envergonhado. - Gostava de ir a Hunza.
- Onde - repetiu o Mecânico. - Que é isso. Hunza?
Podia tê-lo informado, mas fiquei calado e deixei que o Contabilista continuasse a falar.
- Como sabe, faço um regime de alimentação saudável. Como corolário, estou interessado em tudo. regime físico ou localização geográfica. que promova a saúde e que, por conseguinte, prolongue a vida das pessoas. Os Estados Unidos não são, certamente, o melhor país para os que estão interessados na longevidade.
- Tem razão - interrompeu o Vendedor de Seguros. - Posso informá- lo de alguns dados sobre isso, baseados em quadros de estatísticas. A vida média do homem americano é até aos sessenta e sete anos. Há vinte e cinco nações à frente de nós, no que respeita à longevidade dos homens. Na Suécia e na Noruega, a vida média do homem é de setenta e dois anos, na Islândia e na Holanda é de setenta e um.
- E em Hunza - informou o Contabilista - o homem vive até aos noventa, algumas vezes até aos cento e quarenta.
- Ainda não me disse onde é Hunza - disse o Mecânico. O Contabilista acenou conciliadoramente.
- Hunza é um pequeno país longínquo, com trezentos quilómetros de comprimento, dois quilómetros de largura, anichado no vale do Himalaia, ao norte do Paquistão. Diz-se ter sido encontrado por três desertores gregos do exército de Alexandre, o Grande, que fugiram para o vale com as suas mulheres persas. Hunza é um país único em muitos aspectos. É governado por um emir hereditário, e a sua população é de cerca de trinta e cinco mil almas. Hunza não tem homens fardados, não tem polícia, não tem soldados, não há prisões, não há bancos, não há impostos, não há divórcios, não há úlceras, não há coronárias, não há cancro, nem crime. Nem há o que nós, masoquisticamente, chamamos de velhice. Em Hunza, diz-se que as pessoas são jovens, médias ou ricas. O que Hunza tem, na sua maioria, são centenários. Visitantes observaram que, na maioria, os Hunzukuts vivem até aos oitenta e noventa anos, com uma grande percentagem da população atingindo os cem e mais anos. Em Hunza, os homens, aos setenta e oitenta anos, mantêm ainda a sua virilidade e conseguem reproduzir.
"- Isso é bestial! " - exclamou, interessado, o Mecânico.
- Como?
- Ninguém conhece a razão, pode haver muitos factores. Mas um dos factores principais deverá ser a dieta. As pessoas em Hunza consomem uma média de mil novecentas e vinte e três calorias por dia. Como vê, as pessoas são quintas orgânicas que só comem alimentos naturais, não preparados, sem
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serem cozinhados. É por isso. - O Contabilista hesitou, sorrindo acanhadamente. "-Bem, a comida de regime que me vêem comer, é o estilo de comida que eles comem em Hunza. Pão de cevada não refinado, ameixas secas, sumos, galinha, carne cozida, maçãs, nabos, iogurtes, chá. Mas. bem, sempre desejei seguir à risca a dieta de Hunza. A minha ambição é visitar Hunza, aprender os seus segredos e participar da Fonte de Juventude. Não me importo de vos contar o segredo. Há anos que tenho o passaporte pronto no meu escritório, e renovo-o sempre, no caso de me ser possível fazer essa viagem. Mas, por limitações de tempo e razões económicas, a viagem sempre tem estado fora do meu alcance. Agora, tendo dinheiro e tempo, espero poder fazer este passeio dentro de um ou dois anos.
- Pode-me levar consigo - disse o Vendedor de Seguros. - Quero estudar algumas estatísticas sobre a possibilidade de ser viril após o centésimo aniversário.
- Quando tiver tudo arranjado para ir, eu digo-lhe - prometeu o Contabilista.
Percebi que o Mecânico olhava, com curiosidade, para mim. - Para alguém que está em vésperas de receber uma fortuna, você está demasiado calmo.
- Estou a ouvir - disse eu.
- Você é um membro do Clube de Fãs, tem de ser activo. Todos estivemos a pensar na maneira como vamos gastar a massa. E você, como é que vai gastar a sua?
De facto, não tinha ainda pensado como iria gastar o dinheiro alcançado de maneira tão indecente. Ouvira com atenção, e tirara certas conclusões desta conversa. Observei, outra vez, como esta fantasia sobre a riqueza havia abafado completamente a fantasia original de realização sexual. Fez-me pensar e explorar o assunto. Quis saber, uma vez que a nova fantasia se torna realidade, como dissera o velho, se ela se tornaria tão insatisfatória para cada um dos participantes como se tornou o sexo com o Objecto.
- Bem, então como vai gastá- la? , repetiu o Mecânico. - Não sei - respondi, honestamente. - Talvez desista do part-time, que corta as minhas actividades de escritor. Talvez agóra possa vir a escrever durante o tempo todo. Talvez saia de Los Angeles, por algum tempo, e vá morar para a Margem Esquerda, em Paris, tanto para experiência pessoal como para estímulo de criação.
- E aquelas miúdas francesas , disse o Mecânico, com o seu ar normal.
Ignorei-o.
- Quero andar de um lado para o outro, ver o mundo, ver como as outras pessoas vivem. Um escritor precisa disso. Talvez pare em Maiorca, em
Veneza e Florença, em Samarkanda, e possivelmente em Atenas e Istambul. Não sei. Além disso, não sei o que fazer mais.
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- Podia vir a ser um produtor de cinema , disse o Vendedor de
Seguros, - ter as suas artistas sob contrato, fazer os seus próprios filmes. - Não , disse eu - não estou interessado nesse aspecto do cinema.
Prefiro ir ao cinema e ler artigos sobre filmes. Como já vos disse, o dinheiro não pode comprar o que mais quero. Para ser franco, estou perfeitamente satisfeito com o que temos aqui. Isto, para mim, é o que sempre quis.
O Mecânico serviu-se descuidadamente, de outra bebida.
- Mudará de ideias, ainda está verde. Espere até ter a massa na mão. - E a propósito disso - perguntou o Vendedor de Seguros. - A massa? Não é altura de prepararmos o outro bilhete quanto ao resgate?
Temos de fazer os preparativos para ganhar o dinheiro.
- How, deixe de nos aborrecer, disse o Mecânico. - Já o tem. O resto é automático. Vamo-nos divertir um bocado. Um dia como este não acontece duas vezes na vida. Vamos vivê-lo, e depois podemos terminar o que falta.
Nessa altura, sem que eles dessem por isso, saí da sala. Vim cá para fora para estar só e reflectir.
Só agora é que me lembrei de que estávamos todos tão ocupados a falar do dinheiro que nem tivemos a atenção de informar a pessoa responsável pela nossa futura riqueza acerca do que havia acontecido. Ela gostaria de saber que o negócio já estava feito, que iria ser liberta dentro em breve, e que já podia voltar para o seu público.
Fechei a minha agenda e dirigi-me para o quarto dela.
Os outros estavam demasiado longe na sala, na sua celebração, para no tarem que Adam Malone tinha regressado a casa.
Evitando qualquer contacto com eles, Malone subiu serenamente para o quarto de Sharon Fields.
Encontrou-a com uma camisola roxa e saia castanha, com as pernas do bradas debaixo dela, enquanto lia. Lembrou-se, quando entrou e a viu, de que nenhum dos outros três tinha tentado relações sexuais com ela desde o envio do primeiro bilhete de resgate, no sábado, há quatro dias. A prova suficiente para ilustrar que o dinheiro era o grande orgasmo.
Ele havia sido mais regular. Tinha-a visitado todas as noites, embora só tivesse tido relações durante duas das quatro noites. Eles tiveram relações com Sharon no sábado à noite. Ela teve o período menstrual no domingo. Ontem à noite, ela já o pudera receber, e o coito fora uma maravilha.
Agora, ao vê-lo, ela fez depressa uma marca no livro e pô-lo de lado. Estava satisfeito por ver que ela estava absorvida com um dos livros que ele lhe havia dado, a colecção de bolso das peças de Molière.
Sentando-se em frente dela, reparou que ela tinha feito o possível para esconder o seu nervosismo.
- Olá, querido - disse ela, sorrindo-lhe ternamente, voltando depois ao
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seu estado de ansiedade. - Ainda bem que vieste. Tenho estado a ouvir uma barulheira incrível que vem lá de fora. Que está a passar-se? - Achei que um de nós devia dizer-te. O teu empresário, o Sr. Zigman,
recebeu o bilhete e pôs um anúncio no Los Angeles Times desta manhã. Parece-me que conseguiu arranjar tudo, o dinheiro está pronto. Os meus amigos estão naturalmente muito excitados. Que tal te sentes?
Ele ouviu-a suspirar de alívio. Contudo, ela não mostrou grande prazer com as notícias.
- Não sei o que posso dizer. Por um lado, tenho pena de me separar de ti, palavra que tenho, querido. Mas, por outro, estou satisfeita pelo facto de tudo ter corrido bem. A culpa não é minha, pois não? A alternativa do resgate não era lá muito agradável. Se não tivesse resultado, eu seria assassinada.
- Assassinada? - repetiu ele. - Absolutamente impossível. Tal não aconteceria. Isso foi só uma ameaça sem fundamento para terem a certeza de que o pagamento seria feito.
-Bem, não estou convencida disso como tu. De qualquer modo, com aquela ameaça a torturar-me a cabeça, claro que estou feliz por ser posta em liberdade, brevemente. - Fez uma pausa. - Quando vão buscar o dinheiro? Será amanhã ou na sexta-feira?
- É, de certeza, depois de amanhã, sexta-feira, 4 de Julho. Precisamos de mais um dia para dar tempo a que chegue outra carta com as instruções.
- Quando é que a vão enviar - perguntou, preocupada. - Não se esqueçam de que no dia 4 é feriado, não há correio.
- De qualquer maneira, o Sr. Zigman receberia a carta. Vamos mandá-la expresso de um Correio perto do escritório dele, vamos resolver isso esta tarde. O tipo alto é que te vai ditar a carta. Será pequena. Depois ponho-a ainda hoje à noite ou amanhã de manhã o mais tardar. Foi dito ao Sr. Zigman que estivesse livre amanhã e na sexta-feira; tenho a certeza de que ele estará lá. Receberá a carta a tempo.
-Depois põem-me em liberdade?
- Logo a seguir a estar cá o dinheiro.
-Levará muito tempo a fazer os testes químicos?
- Não haverá testes químicos. Nós só ameaçámos para termos a certeza de que as notas não vinham marcadas e agora ninguém as marcará. Depois de o dinheiro estar cá, acho que o vão dividir. Nessa altura, já teremos as malas prontas. Pomos-te uma venda nos olhos, e levamos-te para algures dentro de Los Angeles onde pareça seguro deixar-te. Desapertamos-te as cordas dos pulsos para poderes tirar a venda quando nos retirarmos, e ires para casa ou estação mais próxima e telefonar ao Sr. Zigman para te ir buscar. É tão simples como isto. Assim que o dinheiro cá estiver, serás posta em liberdade.
Ficou silenciosa durante alguns segundos. A sua boca e queixo estavam rígidos. Olhou directamente para ele.
- E como é que sabes que eles me deixam partir?
Ele ficou surpreendido pelo seu receio.
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- Mas isso faz parte do acordo, Sharon. Porque é que não te deixaría mos ir?
Ela foi específica.
- Tu, talvez. Dois dos outros também. Mas o quarto, o alto, não confio nele.
- Confias em três de nós, não é? Nós somos a maioria. Ele tem de concordar.
Ela não se deixou convencer.
- Já quebrou a palavra duas vezes. Não importa se ele concorda ou não, nem o que vocês me prometerem. Ele deu-vos a palavra de honra que não me violaria, mas veio cá sozinho e violou-me. Prometeu-vos que não iria pedir um resgate, mas fez o que quis e pediu o resgate. Agora, prometeu que me deixava ir assim que forem pagos. Como é que sabes que desta vez ele manterá a sua palavra?
- Agora é diferente, esta é a condição final. - Malone estava confuso. Que achas tu que ele quer de ti agora?
Ela parecia ter a resposta na ponta da língua, mas não falou. Tinha qualquer coisa em mente, e ele ficou à espera que ela lhe dissesse. Ele esperou.
- Não. não sei - disse, por fim. - Tanto quanto confio em vocês, desconfio dele. Ele é violento, é cruel, é o estilo de pessoa que não olharia a nada se alguém se pusesse no seu caminho. Talvez ache que é perigoso pôr-me em liberdade, no caso de me querer vingar e tentar descobrir quem vocês são.
Malone abanou a cabeça.
-Não há hipótese. Ele sabe que nunca tentarás procurá-lo ou que o verás. Acho que nem sequer lhe passou isso pela cabeça. Que é violento, claro que é, mas não há nada com que te preocupares, Sharon. Ele tem o que quer. O que ele não quer é que o dinheiro se torne em dinheiro sangrento. Repito, quando o dinheiro cá estiver, serás libertada, ficarás em segurança.
Ela estava silenciosa outra vez.
- Se dizes isso. - disse-lhe ela, por fim. - Tenho de pôr a minha vida nas tuas mãos. Depois de vocês terem o resgate, terei de confiar inteiramente em ti para que a promessa seja mantida.
Malone levantou a mão.
- Tens a minha promessa. Será cumprida, juro pela vida dos meus pais. Acreditas?
Ela sorriu, com incerteza.
- Muito bem. Vou confiar mais uma vez em ti.
- Não te esqueças de que te amo.
Ela avançou e beijou-o, beliscando-lhe a face.
- Eu também te amo, querido. E lembra-te, dependo de ti.
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O Sonhador saiu e Sharon Fields continuou na chaise longue, olhando fixamente para a porta.
Tinha-lhe mentido, sabia-o.
Ela não podia depender dele. Ele era demasiado fraco, tal como os outros dois. Nenhum deles era tão forte e obstinado como o Kyle Shively. Excepto ela.
Para sobreviver, ela tinha de depender só de Sharon Fields. Distraidamente, levantou o livro, mas não o abriu.
Pensava, tentando estabelecer o seu plano. Tinha chegado a uma conclusão, era um tiro a longa distância. mas já era alguma coisa.
Encostou-se para trás, acendeu um cigarro do maço que lhe tinham deixado, e concentrou-se no que teria de ser feito.
Juntando-se aos seus amigos na sala de estar, Malone verificou que eles estavam ainda mais ébrios. Shively estava deitado no sofá, cantando uma balada qualquer, fora de tom. Yost estava enterrado numa cadeira de braços, de olhos vítreos. Até o Brunner, acabando a bebida, trôpego nas suas pernas de borracha, estava desgrenhado.
- Olhem, olhem quem está aqui - gritou Shively. - A inteligência, em pessoa, aparece a público. Toda a gente tem de conhecer o maior criminoso do século, o presidente do Clube de Fãs, que tem de ser louvado por ter
conseguido a melhor operação de todos os tempos, e que nos deu a possi bilidade de ganharmos algum milho do bom como bónus. O Sr. Adam Malone! Você hoje é um homem.
Shively começou a aplaudir, Yost e Brunner seguiram-no. Malone estava pouco divertido, mas não tinha nenhum desejo de gerar antagonismos ou fazer ondas. Entrou no jogo. Fez uma vénia.
-Obrigado, queridos consócios. É uma honra para mim estar aqui convosco.
- Acalme-se e beba um copo - ordenou Shively. - Merece beber um em sua honra.
- Acho que vou beber.
Brunner serviu-lhe um uísque da quase vazia garrafa de J. B. Enquanto lhe era servida a bebida, ouviu o que Shively dizia aos outros.
- Caramba, é de loucura o que está a acontecer. Quem imaginaria que a fantasia de Adam acabaria assim? Eu nunca iria imaginar. Saltámos para cima do borracho mais famoso do Mundo, e agora ainda vamos ter uma recompensa choruda. Não é mau, não é mau. Como é que podíamos saber, quando começámos isto, que teríamos uma recompensa ainda maior do que ir para a cama com ela? Durante um certo tempo, o projecto inicial em si parecia o suficiente. Não me vou esquecer que antes de se tornar monótono, e enquanto era novo, tudo era bom, bom material, carne de primeira, lá isso era. - Endireitou-se parcialmente, e olhou em volta para os outros. - Uma
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vez que estamos quase a separar-nos, tenho de fazer uma confissão aos camaradas que participaram nesta aventura. Oiçam, não quero que pensem que estou a subestimar as vossas qualidades, mas querem saber? Vou-vos dizer. Cá o Shiv - perguntem à Senhora se não acreditam nele - é o único que consegue fazê-la vir-se. Que tal acham?
Malone engoliu a sua bebida, e olhou para o Shively, zangado. Ele também tinha que dizer aos outros.
- Isso não é verdade - disse Malone. - Ela também teve um orgasmo comigo.
- Bem, está bem, então somos dois - disse Shively.
- Merda - disse Yost, meio embriagado. - Eu também a fiz perder a cabeça, tal como vocês. Ela poderá prová-lo.
Uma voz baixa fez-se ouvir.
- Eu também o consegui - disse Brunner.
- Vocês todos? - A cara de Shively tornou-se vermelha. - Aquela puta mentirosa.... mentiu-nos. Ela disse a algum de vocês que era o melhor, de quem ela mais gostava, o único de que ela gostava? Foi o que ela me disse. Ela
também vos disse isso?
Yost arrotou.
-A mim, disse-me que eu era o melhor.
Brunner abanou a cabeça.
- A mim também.
A irritação de Malone acumulou-se.
-O que ela vos disse fê-lo só para ser simpática e decente. Mas creiam-me. não é que isso tenha interesse. mas eu sou o único a quem Sharon actualmente ama. Porque não? Ela sabe que vocês a queriam só como meio para fazer dinheiro, mas eu queria-a só por ela própria. Isso conta muito para uma mulher. Eu nunca a poria em perigo, mas aposto com vocês em como ela admitiria os seus sentimentos para comigo. Um homem sabe quando uma mulher o ama verdadeiramente.
Yost arrotou outra vez.
-Então és tu, sou eu, somos todos nós. Ela gostava de todos nós. E depois? Não preciso de exclusividade. Eu dei-lhe o que ela queria de mim. Nunca esquecerei como me apareceu e como cheirava bem na noite em que lhe dei o biquini e o perfume. Talvez compre para a minha mulher uma coisa daquelas.
- Um momento - disse Shively, endireitando-se no sofá. - Do que está a falar, Howie? Nunca vi nenhum biquini ou perfume. Onde é que os arranjou? Não trouxemos nada disso connosco.
Yost encolheu os ombros vagarosamente.
- Fui eu que os comprei, sou o último dos gastadores. Uma noite, depois de ter começado a colaborar, ela perguntou-me se eu podia comprar algumas coisas para que ela pudesse aparecer-me mais bem arranjada. É compreensível, as mulheres gostam sempre de estar bem. Por isso, um dia,
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quando fui com o Malone a Arlington para comprar comida, comprei
algumas coisas para Sharon. Pensei que soubessem!
- Você foi comprar coisas para ela além de comida? Ela pediu-lhe? - As palavras de Shively eram pastosas, mas ele parecia estar sóbrio.
- Não há nada de mal nisso, Shiv - argumentou Yost. - Ninguém iria
adivinhar para quem aquilo era. Os homens compram este tipo de coisas para as suas mulheres e namoradas. As lojas não servem para outra coisa.
- Não gosto disso, é tudo - continuou Shively, de olhar carrancudo. Suspeito sempre das mulheres, e talvez com razão. Especialmente desta.
Primeiro, descobrimos que ela nos mentiu a todos. Depois, descobrimos que ela se usou de si.
Yost fez um gesto impaciente.
- Por amor de Deus, Shiv, como é que ela nos pode usar? Ela está
trancada há duas semanas naquele quarto, durante as vinte e quatro hóras do dia.
- Não sei - disse Shively, fazendo um esforço para pensar. - Só sei que
não gosto. Penso da mesma maneira como quando estava no Vietname, onde se tem um pressentimento quando se deve olhar para trás. Não confio nela.
Talvez ela estivesse à espera que você deixasse alguma etiqueta ou qualquer coisa para saber onde estamos....
- Verifiquei tudo - insistiu Yost. - Mas mesmo que ela descobrisse
onde estávamos, a cidade, qual era o problema?
Teimoso, Shively levantou-se.
- Não estou a gostar disto. Talvez ela tenha descoberto qualquer coisa.
Não a deixo sair daqui sem saber o que ela sabe. Vou passar revista a tudo o
que ela tem no quarto.... só para me certificar....
- Deixe-a em paz, Kyle - disse Malone, levantando-se. - Não faça um
drama por nada. Não há nada a encontrar. Não a chateie, lembre-se de que
precisamos que ela nos escreva o outro bilhete.
- Deixem-me fazer à minha maneira, portanto saiam-me da frente.
Shively foi para o quarto. Destrancou a porta, e entrou. Brunner e Yost
alcançaram a porta entretanto. Entraram no quarto. Malone, que ficou atrás,
deixou-se ficar do lado de fora, pensando se deveria interferir ou não. Decidiu
não contrariar Shively, dar uma proporção que o incidente não merecia, pois
ele estava certo de que Shively tinha tido um ataque de paranóia devido à
embriaguez e que não encontraria nada suspeito. Assim que se libertasse dos
seus temores paranóicos, acalmaria, e tudo poderia prosseguir.
Malone observava o que se passava dentro do quarto, Shively, no meio
dele, inspeccionando tudo, meio trôpego.
Alarmada com a atitude, Sharon levantou-se da cadeira e foi ao seu encontro.
- Que é? Aconteceu alguma coisa?
- Não tens nada com isso, vaca - disse-lhe ele. - Nunca te vi com essa vestimenta antes, onde é que a foste buscar?
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As mãos dele tocaram na saia castanha que ela trazia vestida. Ela olhou para Yost, apreensiva, e disse a Shively:
- O teu amigo foi muito simpático e ofereceu-me algumas roupas para mudar.
- Sim, já percebi. Onde é que tens o resto?
-Naquelas gavetas, eu mostro.
Começava a avançar em frente de Shively, mas ele agarrou-lhe o braço e puxou-a para trás.
-Sai da minha frente.
Abriu as gavetas, e esvaziou-as uma por uma. Verificou todas as peças de vestuário, atirando-as depois para o chão.
Depois foi à casa de banho.
Brunner, que observava tudo, aproximou-se de Sharon e acariciou-lhe o ombro, tentando consolá-la.
- Está tudo bem - murmurou. - Está só a verificar as coisas antes de ires embora.
Ela abanou a cabeça com gratidão, mas aguardou nervosamente a reaparição de Shively e o seu veredicto.
Da casa de banho vinham sons de artigos de toálete a serem mexidos, a caixa de remédios a ser aberta, fechada, uma coisa ou outra caindo no chão.
Por fim, Shively apareceu de mãos vazias e notoriamente frustrado. Olhou para ela brevemente, depois agarrou na pilha de livros e revistas. Começou pelos livros. Ela avançou para ele tentando mostrar que era corajosa e que não tinha nada a ocultar.
- De que estás à procura? - perguntou ela. - Talvez te possa ajudar. Shively ficou enraivecido. Puxando-a para o lado, agarrou-lhe brusca mente nos ombros e abanou-a.
- Claro que nos queres ajudar, minha porca mentirosa! Tentando abrandar-nos. - Abanou-a outra vez, violentamente. - Que sabes tu de nós? Que sabes de nós, que queres contar aos chuis?
- Nada. absolutamente nada, juro - Tentou libertar-se, mas as mãos fortes agarraram-lhe o pescoço. Ela gritou. - Pára, estás a magoar-me.
- Estrangulo-te se não parares de mentir. Fala. Fala depressa, começa a contar a verdade. Porque é que disseste a cada um de nós que era o melhor? Porque é que quiseste que o parvinho do meu amigo te comprasse coisas sem que os outros soubessem?
- Pára aí, isso não é correcto - protestou Yost.
Shively ignorou-o. Os seus dedos continuavam a apertar o pescoço de Sharon.
- Estou-te a topar, minha parva, a mim não me gozas tu. Durante duas semanas, estes tipos montaram-te, e não me venhas dizer que não tentaste usá-los. Pensaste que conseguirias saber qualquer coisa para ir contar aos chuis . Bem, acho melhor dizeres-me o que sabes, ou, espanco- te até à morte. Agora fala.
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- Não há nada, doido.
Enfurecido, os seus dedos continuaram, enquanto a outra mão a esbofeteava. Com o impacto, ela desequilibrou-se para trás, tropeçou e caiu.
Ficou ali, aos pés de Brunner e Yost.
Ele olhou para ela, com a cara lívida.
- Ou dizes a verdade ou dou-te um pontapé na boca. Os braços dela levantaram-se para proteger a cara.
- Não, não. - choramingou ela.
- Foste tu que pediste isto. - Ele pôs o pé para trás, quando Brunner se pôs à frente dele, tentando distraí-lo.
Os olhos dela foram para o seu possível protector.
- Por favor, por favor, Sr. Brunner, diga-lhe que eu não sei nada. Shively ficou gelado, olhando para ela depois, devagar, virou-se e fixou os seus olhos no contabilista, que estava confuso.
- Bem, com que então, Sr. Brunner? A verdade sempre acabou por sair. Por isso ela sabe um dos nossos nomes. Era o que eu queria saber, é tudo. - Virou as costas para Sharon, aproximou-se de Yost e de Malone. Mexeu a cabeça satisfeito. - Está bem, acho que merecemos uma pequena explicação do Sr. Brunner. Vamos a isso.
Encaminhou-se para a porta.
Brunner, paralisado, também saiu, atirou um olhar de coelho assustado a Sharon, e seguiu-os.
Sharon Fields continuava no sítio onde caíra, olhando para eles como um réu olha para o júri que vai decidir o seu destino.
Vinte minutos mais tarde, Shively, de pé, enquanto os outros estavam sentados, concluía o seu implacável interrogatório aos consócios do Clube de Fãs.
Tinha ficado muito sóbrio, apesar de estar a beber outro uísque. Tomando um grande gole, lambeu os lábios e poisou o copo na mesa.
- Está bem, já sabemos tudo - disse ele. - Pelo que concluímos, a dama não sabe o nome do Yost, do Malone ou o meu. Só o seu, Leo. Você é o único que se descaiu e que lhe deu uma pista.
- Já vos contei, não sei como aconteceu - disse Brunner, abanando a cabeça com apreensão. - Escapou-se-me.
- Tem a certeza de que ela não lhe passou uma rasteira?
- Absoluta. Ela não teve culpa do que aconteceu. Foi só um acidente, lembro- me bem. Esta semana, depois de termos acabado, eu estava a vestir-me, sentia-me bem, e contei-lhe qualquer coisa acerca da minha mulher. Claro que não mencionei o nome dela. Só lhe disse que ela me admirava por eu ter tanto jeito para fazer reparações de coisas em casa. Comecei a imitar o modo da minha mulher falar, e, sem dar por isso, disse o meu nome tal como ela o pronuncia. e reparei, quando já era tarde, no que tinha feito.
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Fiquei muito perturbado, mas ela jurou que não tinha ouvido. Confiei nela. Mais tarde, como estava convencido de que ela não tinha ouvido, pensei que não valia a pena preocupar-me. Ela não tinha motivos para dizer o meu nome. No final de contas, quem sou eu?
- Quem é você? - perguntou-lhe ele. - o gajo mais estúpido de todos nós se pensou que ela não iria dizer nada.
- Bem, se isso é verdade, serei o único a sofrer com o meu lapso - disse Brunner, fazendo-se mártir. - Ela não sabe nenhum dos vossos nomes, nem quem vocês são. Portanto, vocês os três estão safos.
Shively abanou a cabeça, olhando para Yost.
- Howie, diga-lhe que, para um gajo que andou na universidade, ele é bastante estúpido. Jesus, não acredito que haja gente tão estúpida. Que pensa que vai acontecer quando recebermos o dinheiro na sexta-feira e a libertarmos? Nós deixamo-la ir. Ela fica livre, telefona ao empresário. Ele vai buscá-la. E depois, aonde é que vão? Directamente aos chuis , como uma bala. Logo à Polícia. Ela vai-lhes contar o que aconteceu, tudo o que sabe, que éramos quatro, e que um dos nomes é Leo Brunner. Muito bem, e depois? Os chuis vão a correr à sua procura, localizam a sua casa, o seu escritório, cercam os dois sítios, e apanham o nosso amigo Sr. Brunner.
Shively virou-se confrontando o agitado contabilista.
- Está bem, eles apanham-no, Brunner. Pedem-lhe para ser simpático e falar. Você não fala. Diz que foi um erro. Vai para a fila, ela identifica-o. Continua a dizer que não tem nada a ver com o caso. Eles continuam a chateá-lo, porque querem saber os outros nomes, os nossos nomes. Põem-no numa sala, com uma luz forte na cara, sem água, sem comida, sem casa de banho, fazem-lhe a tortura do sono durante vinte e quatro horas, quarenta e oito horas.
- Não - protestou Brunner -, essas coisas já não se fazem. Vocês estão a falar pelo que vêem nos filmes. Hoje em dia os interrogatórios da Polícia são humanos, e todo o cidadão tem os seus direitos.
Shively desdenhou-o.
- Jesus, como é que é possível falar com um tipo tão estúpido e ingénuo como você, Leo? Como é que pensa que nós interrogávamos os prisioneiros no Vietname? Como é que pensa que alguns amigos meus, que foram caçados pela Polícia por roubarem, confessaram tudo à Polícia do Texas ou de Los Angeles? E estou só a contar-lhe a parte mais simpática, Leo, não toda a verdade, porque sei que você não tem estômago para isso. Que vai dizer quando eles lhe arrancarem as unhas? Ou quando lhe derem nove ou dez joelhadas nos testículos? Ou lhe queimarem a pele com cigarros? Canta. Fala. Diz tudo. E se você lhes disser os nomes do Sr. Howard Yost, do Sr. Adam Malone e do Sr. Kyle Shively? Depois, eles vêm apanhar-nos por rapto, extorsão, violação. E nenhum de nós voltará a ver a luz do dia.
Brunner começou a transpirar.
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- Isso nunca acontecerá, nunca! - jurou ele. - Mesmo se ela falar, eu
não direi nada. Prefiro morrer a dizer os vossos nomes.
Shively grunhiu, fez uma concessão.
- Está bem, aceitamos que talvez você não fale. Chamemos a isso un
talvez. Nunca saberemos se a Polícia conseguiu saber alguma coisa por si
O que ela disser é que interessa. Se ela não puder falar, não há problema.
Então, está safo, eu estou safo, o Howie e o Adam estão safos. Se ela nunca disser à Polícia o seu nome, estamos safos, ricos e em paz. Estão a perceber
- N.... não - tremeu Brunner. - Não sei se estou.
- Fale abertamente - disse Yost.
Shively continuou, mais descansado e confiante.
- Estamos nisto juntos, portanto oiçam o vosso amigo Shiv. Passei um
tempo chato no Vietname, aprendi a sobreviver, acreditem em mim. Nunca
confiamos em ninguém em campo de combate.... quer isto dizer em ninguén
que estivesse vivo entre os sete e os setenta anos.... não confiávamos em
ninguém que soubesse alguma coisa acerca de nós mesmos e que tivesse
possibilidade de nos lixar. Rebentávamos com os miolos aos tipos, e assim
não nos lixávamos nós. - Fez uma pausa significativa. - A mesma situação
está aqui. Zona de combate, ou ela ou nós. Por isso, vos digo, gentilmente,
apelando para o vosso bom-senso, que, depois de ela escrever o último bilhete, devemos liquidá-la. É isso, rapazes.
- Não - Brunner estava aterrorizado. - Não está a falar a sério, Kyle!
Você.... você está a gozar-nos.
- Sr. Brunner, não estou a gozar. Ou ela ou nós.
- Não, não aceito. Assassínio a sangue-frio? Você não está bom. Não,
nunca, nunca permitiria. -Estava furioso. -Participar num rapto, depois
violação, depois resgate, já são crimes suficientes para nos pesarem na consciência.
Malone estava demasiado assustado para poder erguer a voz.
- Estou do lado do Leo mil por cento. O resgate foi o máximo, assassínio
está completamente fora de questão. Lixados ou não, não terei sangue nas minhas mãos.
Shively olhou para ele com desprezo, depois transferiu a sua atenção para Yost.
- Você é mais prático que aqui os nossos amigos, Howie. Que diz?
Yost hesitou nervosamente.
- Percebo o seu ponto de vista, Shiv, estamos perante um problema.
Mas, francamente, considerando todos os prós e contras, estou do lado do
Leo e do Adam, não acho necessário matá-la. Primeiro, é um crime capital....
- Já ouviram falar na Lei Lindbergh?
- O assassínio é pior, de qualquer maneira - disse Yost. - Depois, podemos vir a precisar dela numa aflição. Se alguma coisa correr mal quando
formos buscar o dinheiro, ainda a teríamos como refém para nos proteger.
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- Assim que a deixarmos ir, assim que ela estiver livre, estamos tramados por causa do Leo.
- Estou a pensar noutra coisa - disse Yost. - Suponhamos que temos o dinheiro, mas que estamos a ser perseguidos. Bem, enquanto a tivermos viva, estamos safos. Mesmo que tivéssemos de nos esconder com ela ou negociá-la de outra maneira.
- Não acredito - disse Shively, teimosamente. - Eu acho que, enquanto estiver viva, ela pode lixar o Brunner, e isso pode atingir-nos.
- Bem, se isso acontecer, há duas outras soluções, mas menos drásticas - disse Yost.
Ouvindo, Malone sentiu que era óbvio que Yost estava a fazer todos os esforços para ser conciliador e conseguir ao mesmo tempo arranjar uma solução viável.
Yost continuou.
- Uma vez que ela só sabe o nome do Leo, não os nossos, podíamos ameaçá-la antes de a deixarmos ir. Amedrontá-la de verdade. Dizer-lhe que vamos espiá-la, e que se ela fosse à Polícia e desse o nome do Leo, nós iríamos apanhá-la. Isso calá-la-á.
- Ninguém acredita nisso, porque é que ela há-de acreditar?
-Bom, está bem, então ouçam a minha segunda ideia. Esta pode resultar. Se for viável. não acho que seja, mas se for. o Leo podia ir para o estrangeiro, durante uma temporada, e voltar depois quando tudo estiver mais calmo.
- A Polícia agarrava-o antes de se meter no barco ou avião.
-Não se ele sair antes de a libertarmos.
Shively considerou a proposta.
- E a extradição? - perguntou.
Malone aproveitou a ocasião para frisar a sua alternativa.
-Hunza. Ele quer ir a Hunza, de qualquer maneira. Ninguém saberá que ele está lá.
- Ou à Argélia ou a um sítio como o Líbano - acrescentou Yost. Até agora, como um espectador num jogo de ténis, Brunner virava a cabeça de Shively para Yost, de Yost para Shively, demasiado fascinado com este jogo de palavras para perceber que era ele que estava a ser atirado de um lado para outro.
O jogo tinha terminado, e Brunner percebeu que não era espectador mas, sim um participante, o participante Shively dirigia-se a ele.
- Bem, talvez a ideia resulte. Se sair da cena, não teremos que dar cabo dela. Teria de estar no aeroporto na sexta-feira. Um de nós levava- o lá, e víamo-lo partir antes de a libertarmos.
- Partir - Brunner tirou os óculos, olhou para os seus três com panheiros, e pôs de novo os óculos. - Não posso fazer isso. Não é viável. E os meus negócios, os meus clientes? E a minha mulher. ela não me deixa.
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- A sua mulher que se lixe - disse Shively. - Estamos a falar das nossas vidas, da sua inclusive.
- Mas esse tipo de partida não acontece assim. Tem de se estar preparado....
- Você está preparado - disse Shively. - Tem passaporte. Terá o
dinheiro, terá a sua vida. Não basta?
- Não, ouçam, não compreendem. Ninguém faz isso num dia. Tenho de
pôr os meus negócios em ordem.... e também não gosto da ideia. Não quero viver no estrangeiro para sempre.
- Prefere viver numa cela de pedra para sempre - perguntou Shively.
- Claro que não, mas....
Yost inclinou-se para a frente para meditar.
- Deixem-me apresentar uma sugestão. Concordámos, três contra um,
não fazer mal a Sharon. Está estabelecido. Ainda temos tempo para indagar
qual o perigo de ela saber o nome de Leo antes de a libertarmos. Ele podia
mudar o nome, e esconder-se noutra cidade do país, onde ninguém o possa encontrar....
- Isso já faço! - exclamou Brunner.
- Bem, de qualquer maneira, podemos tomar a decisão final amanhã,
depois de aqui termos o dinheiro e antes de libertarmos Sharon. Um de nós leva-o a casa, para ir buscar a mulher e a cunhada, e põe-nos num comboio que
os leve para um sítio isolado.
- Mas como posso eu explicar isso a Thelma? - quis saber Brunner.
- É fácil - disse Yost. - Alega uma confusão de dinheiros, um cliente
que acha que você aldrabou os livros e que o quer tramar. Vai fazer queixa de
si. O seu advogado aconselhou-o a desaparecer por uns tempos, a desaparecer
da circulação. Se ela se opuser, acho que a sua nova fortuna a acalmará. Sim,
acho que isso tudo terá de ser amanhã, Leo.
- Está bem, temos de combinar isso - disse Brunner, ansioso por que a
conversa terminasse e que os outros se acalmassem. - Farei qualquer coisa razoável desse tipo, desde que não tenhamos de nos envolver num assassínio.
Yost olhou para Shively.
-Está bem, Shiv. Está satisfeito?
- Desde que o Leo não seja atingido pela nossa namorada, estou disposto a não lhe fazer nada - disse Shively engolindo o resto do seu uísque.
- Está assente - disse Yost, levantando-se e indo para a cozinha. - Vou abrir outra garrafa.
Para Adam Malone, que intencionalmente tinha ficado de fora da conversa, o drama que se desenrolara tinha sido fascinante de observar.
O que, inicialmente, mais o tinha impressionado, fora a perícia com què
Sharon Fields tinha definido o carácter de Shively. Ela tinha-lhe dito, particularmente, que não confiava na palavra dele, e que previa e receava a sua
violência quando estava em jogo a sobrevivência dele. Malone teve de admitir
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que Sharon tinha razão acerca do comportamento de Shively quando se aproximasse a altura de receber o dinheiro do resgate. Lembrou-se também de que tinha jurado, sobre a vida dos seus pais, que o negócio do resgate com o Zigman seria mantido. Silenciosamente, decidiu renovar a promessa que tinha feito a Sharon.
A outra descoberta que continuou a fasciná-lo fora a transformação que se desenvolvera nos seus três companheiros, levando-os de homens normais, vulgares (quer dizer decentes, dentro da lei, com impostos em dia), a homens selvagens que só querem satisfazer os seus apetites imediatos. Tinha visto à sua frente três homens adultos, o tipo de homens que seriam escolhidos para representar o povo americano, participarem numa fantasia inofensiva acabando depois por se envolverem num rapto, passando para violadores, depois exigindo dinheiro, e, finalmente, debatendo os prós e os contras para aniquilarem uma vida humana.
A pessoa civilizada que cada um fingiu ser - concluiu Malone - mal disfarçava o selvagem que nela abrigava.
Viu que Yost havia voltado da cozinha e que entornava mais uísque no copo de Shively.
- Vamos, amigos - disse Shively -, um brinde à nossa amizade. - A sua voz estava abafada e os olhos fecharam-se, enquanto bebeu um terço do seu uísque. - Acho melhor falarmos a respeito do que nos resta fazer. Você, Adam ou qualquer que seja o seu nome, o que nos resta fazer?
Malone disse pacientemente:
- Devemos tomar a decisão final. Combinar onde o Zigman deve deixar as duas malas com o dinheiro. O sítio exacto. Temos de estabelecer um prazo para ele o depositar lá. Teremos de o avisar outra vez de que deverá fazer a operação sozinho, isto é, se não quiser pôr em risco a vida de Sharon.
- Tem de ser forte - murmurou Shively.
- Devíamos também mencionar quando e onde poderá encontrar Sharon depois de o dinheiro nos ter sido entregue. Será isso o que o bilhete deverá dizer. Será a Sharon a escrevê-lo. Depois disso, enviamos o bilhete, e combinamos qual de nós vai buscar o dinheiro. Depois teremos de limpar e arranjar a casa.
Shively tentou pôr-se de pé, mas teve dificuldade em segurar-se. Malone nunca o tinha visto tão bêbedo.
- Combinem vocês isso - murmurou ele. - Já fiz a minha parte. Estou bêbedo e sou suficientemente homem para admitir isso. Vou bater uma sorna. Está bem?
- Por mim, está bem - disse Malone. - Deixe o resto connosco.
- Está bem - disse Shively. - Deixo isso consigo, você é que é o es critor, Maloney.
- Malone
- Eu digo Maloney, não me contrarie. Você é que é o escritor, portanto sabe o que deve ser escrito, veja se ela escreve. - Voltando-se para os
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outros. -Não percam tempo. Façam isso e enviem no correio expresso de Beverly Hills antes de a última mala da noite fechar.
- Feito - disse Malone.
Passado pouco mais de uma hora, Brunner, Yost e Malone tinham combinado tudo.
Entre os muitos locais discutidos durante as últimas quarenta e oito
horas, um oferecia melhores condições devido ao seu fácil acesso tanto para
Zigman como para eles, com o seu isolamento relativo, e porque Yost
conhecia o sítio. Uma vez que o local lhe era familiar, ficou combinado que seria ele a ir buscar o dinheiro na sexta-feira.
Malone tinha como função elaborar o segundo e último pedido de resgate
e ditá-lo a Sharon Fields. Tinha-se oferecido para levar o carro de sport ao sitio onde estava a carrinha, trocá-lo por esta, e ir a Los Angeles pôr a carta
crucial no Correio de Beverly Hills, perto do Boulevard Santa Mónica.
Brunner tinha, entusiasticamente, tomado a responsabilidade de limpar a casa antes de saírem. Todas as coisas teriam de estar emaladas à noite,
prontas a ser transportadas no carro de sport e arrumadas na carrinha quando
Yost chegasse com o dinheiro. Todas as coisas que eles não quisessem levar
de volta seriam enterradas na montanha, numa zona longínqua.
Ao meio da tarde, tudo estava pronto. Só faltava ditar a carta a Sharon
Fields. Enquanto Shively dormia, e Brunner, ajudado por Yost, arrumava e fazia a inspecção, Malone foi para o pórtico fazer o rascunho da carta.
Agora, com o rascunho, algumas folhas de papel e uma esferográfica na
mão enluvada (para evitar que ficassem impressões digitais na carta), Adam Malone estava mais uma vez sozinho no quarto com Sharon Fields.
Ela estava sentada na cadeira, segurando uma toalha, molhada, no sítio do queixo onde Shively lhe havia batido.
- Estás bem - perguntou Malone, preocupado.
- É só uma pequena nódoa negra - disse ela. - Estou a fazer isto para
baixar o inchaço. - Observou-o a limpar a mesa e a levar duas cadeiras para
eles se sentarem. - Ele é um sádico nojento - continuou ela. - A maneira como entrou aqui foi tão cruel.
- Estava bêbedo - disse Malone. - Ele estudou-a durante um momento. - É verdade que disseste a cada um deles, separadamente, que esse
era de quem mais gostavas aqui?
- Que mais podia eu fazer? Terias feito a mesma coisa no meu lugar.
-Sim. Acho que sim.
Pôs a toalha de lado.
-Agora duvidas de mim, não sabes se fui sincera contigo. Não me
perguntes se fui sincera. Contigo foi diferente. Quando eu disse que te amava,
não menti, digo o mesmo agora. Não és igual aos outros, és especial. Acredita em mim.
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A tensão desapareceu. O seu alívio era evidente.
-Quero acreditar em ti, Sharon.
Distraidamente, arrumando os seus papéis e caneta, depois tirando a luva, ele tirou um cigarro do maço, tirou outro, lembrando-se de lhe oferecer um, e acendeu os dois: Ela levantou a mão direita, com o cigarro entre os dedos.
- Olha para mim, ainda estou a tremer.
- Desculpa. Foi uma cena horrível, considerando como estavam a correr bem as coisas durante toda a semana. Estragou-se tudo. Ele está a curtir a bebedeira. Hoje à noite ou amanhã já estará sóbrio. Tudo acabará bem.
- Tens a certeza? - perguntou ela, duvidando. - Cometi um erro horrível, não foi. descaindo-me com o nome do Sr. Brunner? Não sei como aconteceu. Estava com tanto medo. Escorregou. Sinto-me mal só de pensar nisso. - Ficou à espera da reacção, uma palavra de conforto, mas ele estava sem expressão. - Vocês foram todos discutir isso depois?
- Falámos, sim.
Com masoquismo, continuou conversando acerca do seu terrível erro.
- O que aconteceu quando falaram do assunto? Ele quer matar-me, não quer?
Malone hesitou, mas não evitou a verdade.
- Sim, mas lembra-te de que ele estava muito bêbedo. Nunca teria dito isso se estivesse sóbrio. Não estava nele, e as pessoas quando estão ébrias tornam-se extremistas. Além disso, estava preocupado com a sua própria segurança, não confia em ti. - Malone tentou reanimá-la. - Mas não te preocupes, não há nada a preocupar. Já se tratou disso. O resto do grupo, os outros três, fomos extremamente severos, nenhum de nós concordaria com tal loucura. Votámos contra ele, não somos assassinos.
-Mas ele é.
- Não propriamente, Sharon, acredita em mim. Ele pode ser insuportável, cruel, intempestivo, mas, quando acalma, torna-se melhor. Ele pensa no seu futuro. Não cometeria um crime.
- Mas se tentasse?
- Não tentaria, estou a dizer-te. Mesmo se ele pensasse nisso outra vez, todos nós havíamos de o ter debaixo de olho. Só restam trinta e seis horas, talvez um pouco mais, para seres livre. Havemos de o ter afastado de ti, até nos irmos embora.
- Assim o espero.
- A coisa principal é Zigman seguir as nossas instruções para sexta- feira.
- Ele há-de segui-las. Tu bem sabes que ele o fará.
- E a outra coisa é tu não saberes os outros nomes.
- Juro que não.
-E mais, não dizeres o nome de Brunner à Polícia quando fores li berta.
- Nunca pensei uma coisa dessas. Porque faria eu isso? Quando estiver
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longe, fora disto tudo, em casa, quero esquecer tudo, excepto tu. O que ganharia eu contando isto à Polícia? Não há nada a ganhar. Não me quero fazer notada. E porquê perseguir aquele homem e a sua mulher? Não me passaria pela cabeça magoá-lo. desde que tu me protejas agora.
- Não tens nada com que te preocupar, Sharon. Tenho a tua palavra, tu tens a minha. - Apagou o cigarro, calçou a luva, agarrou nos papéis e na caneta, e encaminhou-se para a mesa. - Vamos escrever o último bilhete. Por muito que eu esteja contra, concordei com o plano. O bilhete é o teu bilhete para a liberdade, por isso podes continuar.
- Está bem, estou pronta. - Ela pôs-se de pé, deitou fora o cigarro, e seguiu-o para a mesa.
Ele puxou-lhe uma cadeira, e ela sentou-se. Ele sentou-se na outra, pôs uma folha de papel em frente dela, e deu-lhe a caneta.
Ela agarrou na caneta, mas a sua mão estava trémula.
- Ainda estou a tremer - disse ela. - Espero que não seja longa. Não sei se conseguirei.
- Não é muito longa. Podes fazê-lo. Acabamo-la depressa. Ela esperou, com a caneta pousada sobre o papel, enquanto ele desdobrava o rascunho.
- Estás pronta, Sharon?
-Tanto quanto posso.
-Diz-me se vou muito depressa ou muito devagar.
- Sim.
- Aqui vai. - E começou a ditar devagar. - Para o Sr. Félix Zigman. Confidencial.
Querido Félix.
Estas são as instruções finais e terás de as seguir exactamente, se queres tornar a ver-me viva. O dia da entrega é sexta-feira, 4 de Julho. Dirige-te para Norte à auto-estrada da Pacific Coast, depois entra no Boulevard Topanga Canyon, vira à esquerda na Fernwood Pacific Drive, e conduz durante dez minutos até encontrares Moon Fire Temple, depois continua durante 3 km até veres uma pedra grande, à esquerda da auto-estrada, chamada Fortress Rock, anda 20 passos, e leva as duas malas para trás da rocha, fora de vista do tráfego da auto-estrada. Faz isto entre o meio-dia e a uma hora e deixa a área imediatamente. Por favor.
- Oh, merda, espera - interrompeu ela. - Estraguei a última linha toda. Estou uma pilha de nervos, deixa-me riscar.
- Não estejas nervosa. - Esperou que ela riscasse. - Vou ditar-te outra vez. Pronta? Ei-la.
- Faz isto entre o meio-dia e a uma hora e deixa a área imediatamente.
- Já está? - perguntou ele, fazendo uma pausa.
- Sim, já está. A minha mão está a tremer tanto que a minha letra está quase ilegível.
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-Estamos quase no fim. Todas as informações importantes já estão escritas. Nós só lhe queremos relembrar que a tua segurança depende do facto de se manter ou não afastado da Polícia.
- E dos jornais - lembrou-lhe ela. - Ele não deve dizer absolutamente nada à Imprensa.
- Sim. - Ele consultou o rascunho. - Vamos fazer a próxima linha. Por favor, não informes a Polícia nem os jornais.
- Eu poria ainda mais forte, para benefício de ambas as partes, porque estou completamente perdida se ele disser alguma coisa aos jornais ou se informar a Polícia.
- Está bem, escreve como quiseres. Eu leio depois para ver se está claro. Ela parou de escrever.
- Gostaria de lhe dizer que serei libertada na sexta-feira, e para ele esperar pelo meu telefonema na minha casa.
Malone hesitou, lembrando-se de que Brunner teria de ser levado para fora da cidade com a mulher e com a cunhada antes de Sharon ser posta em liberdade.
- É melhor não sermos muito específicos. Por muitas razões, pode ser que só sejas libertada no dia a seguir, no sábado.
- Mas seria no sábado, dia 5? - perguntou ela, ansiosa.
-O mais tardar.
- Bem, então porque não dizemos que serei posta em liberdade no sábado, o mais tardar? Assim, Félix não ficará preocupado ou não pensará que vocês o enganaram.
-Isso seria melhor:
Ela começou outra vez a escrever, depois praguejou e atirou a caneta com exasperação.
- É horrível - queixou-se. - Apetece-me chorar. Os meus nervos estão desgastados, não consigo controlar a minha mão. Olha para isto. -Ela agarrou na folha de papel. - Se eu não consigo escrever de modo que as pessoas reconheçam a minha letra, como é que Félix a vai reconhecer? Ele pode não acreditar que fui eu que escrevi. Na verdade, quase que não é legível.
Ele pegou no papel e hesitou.
- Não sei. É um pouco difícil de.
- Deixa-me escrever outra vez, para ele perceber as instruções, ter a certeza de que fui eu que escrevi e que ainda estou viva.
Malone olhou para o relógio.
- Temos muito pouco tempo.
-Não levarei muito tempo a refazê-lo. Preciso só de dez ou quinze minutos para acalmar, e pôr-me firme. Depois torno a escrever o bilhete com cuidado. Estará pronto dentro de trinta ou quarenta minutos.
-Está bem, Sharon, faz isso. Recompõe-te. Há ali mais uma folha de papel e um envelope. - Ele levantou-se. - Venho buscar a carta dentro de três quartos de hora. Está bem?
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- Estará pronta. Queria que a enviasses logo a seguir.
Ela deu-lhe um beijo, e esperou que ele saísse. Ouviu os seus passos afastarem-se.
Finalmente, voltou à mesa, pôs uma nova folha de papel em frente dela, e pegou na caneta.
Então, depois de pensar um momento, pôs-se a escrever com mão firme.
Para Félix Zigman, este era o 4 de Julho mais quente da sua vida. Limpando a testa com um lenço de seda, inclinando-se para a frente para deslocar a sua camisola do assento de cabedal do Cadillac, Zigman lamentou não ter mandado reparar o ar condicionado do seu carro (mas tinha-se esquecido de muitas coisas no pesadelo destes últimos dias) e esperou impacientemente que Nellie Wright carregasse o botão para abrir o portão da frente da casa.
Apoiado no volante, parecendo-lhe uma eternidade o tempo que esperava, ele verificou que os seus nervos estavam completamente esfrangalhados. Pensou qual seria a temperatura. Pelo suor que lhe escorria, a temperatura deveria andar pelos 32 graus ou mais. Se calhar não ultrapassava os 29 graus, e o calor que ele sentia era autogerado, devido à intensa pressão exercida sobre ele, aos acontecimentos desta manhã, e especialmente em face da actividade das últimas duas horas.
Esta manhã, com tudo fechado, toda a gente tinha ido para fora ele esperou no rés-do-chão pela chegada da carta-expresso prevista, com receio de que esta não chegasse. Mas a carta chegou às dez horas e dez minutos.
Zigman foi até ao quinto andar, de elevador. Fechou-se no escritório e leu o segundo bilhete de Sharon, com cuidado. Leu-o três vezes antes de telefonar a Nellie Wright e de lho ler com voz ofegante.
Ela dissera-lhe:
- Graças a Deus. Quando é que vais?
- Às onze e meia - dissera- lhe ele. - Tenho muito tempo. Não sei o caminho depois de passar pela auto-estrada da Pacific Coast. Mas as explicações parecem ser suficientemente explícitas.
As direcções estavam perfeitas. Primeiro, passando por Topanga Canyon, preocupou-se com o movimento, mas, quando chegou à estrada de Fernwood Pacific e a subiu, o tráfego diminuiu. Depois de parar uma vez, para perguntar, a um homem que se encontrava a ver a paisagem, o nome daquele local, andou mais um pouco e ficou totalmente só. Não havia ninguém à vista, nem ninguém nem nada, a desolação absoluta sentiu-se como o único ser humano da Terra e amedrontado.
Depois disso, concentrou-se e seguiu à letra as instruções do bilhete. A grande pedra apareceu-lhe à sua esquerda. Parou o Cadillac, observou a rocha, deu uma volta e depositou as malas na distância correcta, primeiro a castanha, e depois a outra, numa pequena depressão que as escondia.
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Quando voltava para trás, pensou se não estaria alguém a observá-lo de longe com uma lente telescópica. Enquanto se afastava da gigantesca rocha, notou como o raptor ou raptores de Sharon tinham escolhido bem o local. As duas malas não podiam ser vistas da estrada. Satisfeito por ter feito o seu trabalho, estava ansioso por deixar este cenário assustador o mais depressa possível. Cansado e tonto com o calor e as pressões do dia, conseguiu voltar para o carro, em menos de um minuto.
Só se sentiu seguro depois de se fechar dentro do seu potente carro, com as janelas parcialmente abertas, o motor a trabalhar e quando os seus pneus de borracha o fizeram deslizar para fora deste local de ladrões.
A experiência havia-lhe feito lembrar aquilo em que ele tinha evitado pensar, a situação de Sharon na altura, em como se sentiria, pois ele, só com este pequeno interlúdio, tinha-se assustado bastante. Conduzindo em direcção a Topanga, rezou silenciosamente por ela, que lhe era tão querida.
Agora, continuando a seguir as instruções do bilhete, estava finalmente em Bel Air, a aguardar, o carro frente ao portão da mansão colonial tipo espanhol, com dois pisos, olhando o relógio.
Passavam cinco minutos da uma.
Sharon tinha-o informado de que o dinheiro seria levantado depois da uma hora. Quanto tempo depois? O que estaria a acontecer agora, cinco minutos depois? Seria daqui a meia-hora? Ou dentro de uma hora? Tentou não pensar tanto no que estava a acontecer. Tinha de estar calmo. Ainda hoje ou talvez amanhã, hoje, sexta-feira, ou amanhã, sábado, Sharon estaria de volta, de novo com eles outra vez, sã e salva.
Iam ser uns momentos intermináveis, Nellie e ele ao lado do telefone, durante a tarde, durante a noite, talvez ainda amanhã, esperando que ele tocasse e que aparecesse a voz dela.
Chegando em frente da casa, estacionou o Cadillac numa zona do jardim, à sombra, e correu para a porta de entrada.
A pesada e ornada porta moveu-se para trás, aparecendo a gorda figura de Nellie Wright, com as suas calças impecáveis a contrastar com o seu ar carregado e o cigarro que tinha na boca e que constantemente deitava fumo. A seus pés, o cão de Sharon ladrava nervosamente.
Sem responder imediatamente ao ar preocupado e inquiridor de Nellie, Zigman beijou-a na face, fez uma festa ao cão, e entrou na enorme sala. Zigman atirou o seu casaco desportivo para cima de uma cadeira.
- Está assim tanto calor ou estou a ficar doente? - perguntou ele.
-A Pearl vai arranjar-te uma bebida fresca.
Andava pela sala, evitando ver as muitas fotografias e os dois retratos de Sharon; sentia-se vazio, indefeso e pensava no que faria uma pessoa depois de fazer o que ele havia feito.
Nellie reapareceu com um copo alto cheio de pepsy e gelo. Passou-o a Zigman, depois acendeu um cigarro com o outro que estava no fim. Ele bebeu um gole distraidamente, pousou o copo, e parou de andar.
385
Nellie sentou-se.
- Estás nervoso como um gato - disse ela.
- E tu, não estás?
- Mais que nervosa - apertou com força as mãos e esperou que ele lhe dissesse alguma coisa. Finalmente, não conseguiu conter-se. - Bem. Não
tens nada para me dizer?
Zigman parecia assustado, como se tivesse acabado de descobrir que não
estava só na sala, e depois avançou para ela.
- Há alguma coisa a dizer?
- Ias a Topanga Canyon para deixar o dinheiro. Deixaste-o?
- Deixei.
- Quando?
Ele olhou para o seu relógio de ouro.
-Há quarenta minutos. Há já bastante tempo.
- Alguém te viu?
- Acho que não. Em feriados como este, quando faz calor, ninguém vai
para as montanhas. Estão todos na praia. - Ele procurou a sua bebida, encontrou-a e bebeu. - Estava um forno, nem uma leve brisa do mar. Nas montanhas estava melhor.
- Tens a certeza de que era o sítio exacto?
- Tenho, sim - consolou-a ele. - As instruções estavam bem claras.
Nem uma alma viva, a não ser eu, pelo que observei. Era como carregar malas cheias de rochas....
- Cheias de ouro, queres tu dizer. Valem um milhão de dólares.
- Quando comecei a dar os passos indicados naquele carreiro que me
indicaram, preocupei-me com uma coisa estúpida. O que aconteceria se
passasse algum polícia ou algum bombeiro por ali e me apanhasse com as duas
malas castanhas na mão? Viria perguntar-me o que se passava, talvez abrisse
as malas, e então encontrava as notas. Teria muito a explicar. A história
tornar-se-ia toda conhecida. E lá se ia a pobre Sharon. Honestamente, isto
não me saiu da cabeça.... isto, e a outra hipótese que me pôs bastante nervoso,
a de que o raptor estava escondido algures ali perto, seguindo os meus movimentos através de um binóculo. Só te digo, Nellie, foi terrível.
- Imagino o que passaste; eu, sem lá estar, passei a manhã toda com
cólicas - disse Nellie, com simpatia.
- Que disparate - disse Zigman. - Tu e eu não estamos a passar nada. É na Sharon que eu penso, quero dizer, no que ela deve estar a passar.
- Não falemos nisso. Fizeste o que devias fazer. Não há nada a fazer
agora, a não ser esperar pelo seu telefonema. Quando será?
- A minha preocupação é saber se realmente vem ou não. Verificaste os tlefones? Estão todos bons?
- Estão, sim, Félix.
- Se mais alguém telefonar por qualquer outra coisa despacha-os logo.
Não queremos as linhas impedidas.
386
- Não haverá chamadas. É um fim-de-semana grande, está tudo fechado. Talvez um ou dois daqueles repórteres que me chateiam constantemente ao telefone, mas.
- Que lhes vais dizer? Vais dizer-lhes que ainda não a contactaste?
- É o que eu lhes tenho dito. Decidi dizer, para a próxima vez, que já tive notícias dela, e que recebi uma carta do México, onde está a passar férias. Só para nos vermos livres deles.
- Bom. Nunca mais se falou nisso, desde o programa do Sky Hubbard. Acho que os acalmámos. - Zigman foi ao seu casaco e trouxe um charuto. Desembrùlhando-o, disse, a meia-voz - Conseguimos abafar isto. É a única coisa favorável. Mas. não sei. continuo a preocupar-me.
Nellie abanou a cabeça, compreensivamente.
- Há uma coisa que é de preocupar. Ela está presa, sabe Deus onde. Mas assim que eles tiverem o dinheiro nas mãos, tenho a certeza de que a deixam partir.
Zigman mastigou, pensativamente, o seu charuto apagado.
- O que mais me preocupa é o tom de ambas as cartas. Ela deve estar desesperada.
- Provavelmente, ela escreveu o que lhe disseram para escrever. Ele ou eles fizeram, propositadamente, com que ela parecesse desesperada, para terem a certeza de que entregarias o dinheiro.
-Mas parecia o estilo dela. Talvez esteja a atormentar-me desnecessariamente, Nellie, mas. - murmurou ele, abanando a cabeça. continuo a achar que algo vai mal.
- Seguiste as instruções á risca, portanto não há razão para as coisas correrem mal. - Ela hesitou. - Fizeste tudo exactamente, não fizeste?
- Claro que fiz, já te disse que fiz. Eles foram claros. Já te li as instruções esta manhã ao telefone.
-Estava demasiado preocupada para ouvir ou lembrar.
- Bem, então vê por ti. - Zigman voltou ao seu casaco em cima da ca deira de braços, procurou na algibeira interior de cima, e tirou o segundo bilhete do resgate. - Toma. - Deu-o a Nellie. - Segui tudo o que eles aí dizem.
Nellie desdobrou a carta, observou a caligrafia.
- Foi escrita por Sharon, de certeza. Muito igual, firme. Estava calma. Nellie enrugou a testa, depois murmurou. - Deixa-me ler.
Leu vagarosamente.
Acabando de ler, e ainda estudando a carta, a testa de Nellie Wright enrugou-se mais ainda.
- Estranho - disse ela, olhando para Zigman.
- Quê?
- Está tudo perfeitamente claro e simples, excepto uma coisa. A maneira como ela assinou. - Nellie olhou com atenção para o papel mais uma vez. "Sharon Lucie Fields. " Que estranho. Ela nunca teve um nome no meio.
- Pensei que fosse o nome do meio quando ela era Susan Klatt.
- Não.
-E, além disso, ela também o usou na primeira carta. Lembras-te do anúncio que tive de pôr no Times? Ela disse-me para começar com Querida Lucie , e eu pensei que Lucie talvez tivesse sido parte do seu nome antigo e que assim nós teríamos a certeza de que a carta era autêntica, realmente dela:
- Não - persistiu Nellie, dobrando a carta apreensivamente, dando-a de volta a Zigman. - Não, eu conheço bem toda a sua vida particular e o seu passado. Tu estás mais ligado aos negócios dela, Félix, mas eu conheço-a por dentro e por fora. Nunca existiu na sua vida o nome Lucie. Não faz sentido. Talvez eu saiba, se.
A sua voz diminuía enquanto se encostava à cadeira, e depois, subitamente, deu um grito, com os olhos muito abertos.
- Félix! Já me lembro. já sei.
Ele saltou depressa, pondo-se em frente de Nellie.
- Que é, Nell? Há alguma coisa.
- Sim, oh, sim - disse ela, esticando os braços. - Félix, tens de contactar a Polícia, o FBI, imediatamente! Tens de os contactar! Precisamos deles!
-Nellie, estás boa da cabeça? Fomos avisados. Uma palavra às autoridades, e Sharon será morta. Não. não posso.
- Félix, por favor - pediu-lhe Nellie.
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- Porquê? Que te passou pela cabeça? De que te lembraste? Estávamos só a falar acerca do nome que ela pôs no meio.
- É isso - Nellie abanou o braço com força. - O facto de ela usar o nome. Lembrei-me. Quase que me tinha esquecido. Foi há anos atrás, quando vim para cá. Sharon era muito acriançada. Estava sempre a brincar e a fazer jogos. E durante um período. - Ela esforçava-se por se lembrar, mas a sua cabeça não se recordava dos pormenores. - Não me lembro quando, nem porque razão, não me lembro exactamente, mas ela tinha uma fixação no nome Lucie . acho que. sim, acho que foi por causa da Lucie Manette do livro A Tale of Twuo Cities (Um conto de Duas Cidades), a rapariga francesa que casou com Darnay, a rapariga por quem Sidney Carton estava secretamente apaixonado. seja como for. não me lembro porquê, mas Sharon começou a usar o nome Lucie e costumava assinar Sharon Lucie nos recados que costumava deixar na minha secretária de manhã ou nalguma carta ocasional que me mandava quando ia em viagens pessoais, para indicar que a mensagem verdadeira estava escrita em código na carta. poucas vezes usou isto a sério, só uma ou duas vezes quando ela me queria dizer coisas que não desejava que mais ninguém soubesse (normalmente coisas sem importância), mas, desta vez, agora, deve ser alguma coisa séria, alguma coisa importante que ela quer que a gente saiba, usando Lucie , para ver se eu me lembrava.
Confuso, Zigman tentou parar a torrente de palavras de Nellie.
- Espera, espera um bocado. Se Sharon usou Lucie para nos dizer para decifrarmos alguma mensagem secreta escrita na carta.
- É isso, exactamente isso!
- Muito bem. agora acalma-te, Nellie. escuta. se costumavas brincar a esse jogo com ela, e conseguias decifrar as mensagens, deves saber o código. Porque vamos arriscar-nos a chamar a Polícia? Não precisamos deles! Diz-me qual é o código e vamos tentar decifrar o que o bilhete diz.
- Félix, Félix, não percebes? Não me lembro do código! Já foi há muito tempo. Sharon lembra-se. ela lembra-se de tudo. e tem esperanças de que eu também me lembre, mas não consigo! Já foi bom ter- me lembrado o que queria dizer Lucie.
Zigman estava impaciente.
- Nellie, recompõe-te. Se te podes lembrar de uma coisa, também te podes lembrar de outra. O nome Lucie, que instruções é que te dá? Quererá dizer para contares só palavra sim, palavra não? O a equivaler a um e ou uma coisa desse género? Pensa, por favor!
Nellie estava desfeita, quase a chorar.
- Não consigo, Félix, acredita em mim, não consigo lembrar-me. Estou a tentar, mas não me ocorre nada. Quem me dera lembrar. Meu Deus, arrepio-me toda só de pensar como a Sharon deve estar a sofrer neste momento.
A gravidade da situação, a preocupação deles, esta nova revelação, o
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pensamento de que o que eles tinham feito não era o suficiente ou que ainda havia outra coisa que eles não sabiam o que era, reflectia-se na cara de Zigman. Ele abanou a cabeça, devagar.
- Sim, tens razão. Ela quer avisar-nos de qualquer coisa. Isto é, se tens a
certeza de que Lucie é uma mensagem em código.
- É, Félix, é de certeza - insistiu Nellie, quase sem respiração. - Ela arriscou a própria vida para tentar dizer-nos uma coisa vital, importante. Aposto.
Olhou fixamente para Zigman, incapaz de acabar o que tinha para dizer.
- Aposto o quê? - quis saber Zigman.
- Aposto em que ela nos quer dizer que os raptores não vão manter a sua palavra. que não a libertarão depois de levantarem o dinheiro. Querem matá-la. E talvez.... talvez ela nos esteja a dizer para não esperarmos que ela seja libertada, que isso não vai acontecer.... ela está a tentar dizer- nos onde está, quer dar-nos uma pista, antes que seja demasiado tarde. Só pode ser isso.
- Sim - disse Zigman, tentando pensar.
- Temos de decifrar a mensagem, Félix. Não nos podemos arriscar a fazê- lo sozinhos. Não podemos esperar este tempo todo. Precisamos de peritos. E eles sabem mais do que nós e actuam depressa. É a vida ou a morte de Sharon, estamos a desperdiçar o nosso tempo. Quando o dinheiro for levantado, já será tarde. Por favor, Félix, temos de fazer alguma coisa antes que seja demasiado tarde.
Zigman olhou para Nellie, levantou- se, e foi para o telefone mais próximo.
Agarrou no auscultador, e fez a ligação.
Esperou que respondessem, e disse:
- É uma emergência. Ligue-me à Polícia de Los Angeles.
Capítulo décimo terceiro
No terceiro andar do edifício da Polícia de Los Angeles, no bairro comercial japonês-americano da parte central da cidade, a actividade nesta tarde de feriado era calma e rotineira, excepto na Sala 327, cuja porta tinha uma placa que dizia SECÇÃO DE ROUBOS - HOMICÍDIOS. Aqui, no centro da enorme sala, forrada dos quatro lados com armários
cinzentos, janelas, uma mesa com aparelhos de rádio, e fotografias de criminosos procurados, o chefe da Secção, Capitão Chester Culpepper, um
homem magro, de meia idade, veterano no ofício, de cara impassível, encontrava- se de pé, ao lado de uma das quatro filas de mesas de madeira, com o auscultador preso entre o ouvido e o ombro. Falava num tom de voz lacónico, e as duas dúzias de funcionários espalhados por toda a sala, sargentos e outros agentes, fingiam não ouvir e estar ocupados com o seu trabalho. Mas, pela reacção do seu superior, todos estavam alerta e sabiam que algo de especial tinha acontecido.
390
- Sim, é complicado - continuou o Capitão Culpepper -, larga o que estás aí a fazer e vai para o trezentos e vinte e sete. Vou ter contigo à sala dos interrogatórios.
Momentos antes, o Capitão Culpepper havia andado à procura do Tenente Wilson Trigg, o seu assistente de mais confiança. Ao saber que Trigg se encontrava no segundo andar, telefonou-lhe. Agora, desligando o telefone, saiu da sala. Apressado, entrou no seu gabinete particular, pôs os papéis soltos num monte sobre a secretária, tirou do cabide o seu casaco azul e foi-se embora. Em vez de ir à sala de interrogatórios encontrar-se com o seu ajudante, decidiu ficar à sua espera à porta do elevador.
Quando Culpepper atravessava o corredor do terceiro andar, os seus olhos pararam no relógio de parede, redondo, que se encontrava em cima da fonte de água. O seu relógio estava adiantado, acertou-o na 1 hora e 47 minutos. O seu casaco ainda estava meio-vestido, numa das mãos trazia papéis soltos e um bloco de notas. Tal como fazia tantas vezes, Culpepper fez a acrobacia de vestir o casaco enquanto equilibrava o que trazia nas mãos.
A sua frente, Culpepper viu o Tenente Wilson Trigg, seu ajudante fa vorito e que tinha participado em tantas investigações com ele, sair a correr do elevador e vir ao seu encontro. Impaciente por o encontrar, Culpepper foi ao seu encontro, apanhando-o a meio caminho.
O Tenente Trigg, débil, ágil, com cara de bebé, de pouco mais de trinta anos e dez menos que Culpepper, morria de curiosidade.
Estás muito nervoso com o que tens para me dizer. -Depois acrescentou, fingindo um ar enfatuado. - Bem, que se passa? Telefonas-me a dizer para vir a correr porque tens um caso importante. Vá lá, Chet, que espécie de caso importante?
Olhando para o corredor, para ter a certeza de que estavam sós, Cul pepper disse, mal respirando:
-A coisa maior. Rapto.
- Quem? Culpepper deu o bloco a Trigg.
-Vê, se conseguires perceber os hieróglifos.
Os olhos de Trigg baixaram para a folha amarela, pararam. As suas sobrancelhas mostraram espanto. Assobiou baixinho.
- Não estás a brincar? É ela mesmo? Não acredito.
- É melhor acreditares.Trigg leu outra vez. Levantou o bloco. A página a seguir estava embranco. Intrigado, ele disse:
- É tudo o que tens, Chet
-Foi o empresário pessoal, um tipo chamado Félix Zigman. Não conseguiu falar muito. Só insistiu que havia o problema do tempo. Já deixou o resgate.
- Estou a ver. Um milhão.
391
mas teve medo de me dizer onde. Compreendo. Estavam preocupados com a segurança dela; as cartas pedindo o resgate avisaram que, se ele
participasse à Polícia, ela seria morta. Portanto, temos de tratar disto com jeito.
-Como é hábito.
- Como sempre. Estes raptos são sempre coisas delicadas. Especialmente
este. Ela é quase uma instituição. Nunca ouvi falar de um rapto tão importante depois do caso do miúdo Lindbergh, em 1932.
- Concordo contigo - disse Trigg, impressionado. - Vais chamar o Westcott?
- Ainda não. Só quando souber mais pormenores. De qualquer modo, ele
e os seus homens do FBI ficarão automaticamente metidos nisto dentro de
vinte e quatro horas, para bem ou para mal. Participarei ao Westcott, assim
que tiver de o fazer. Por agora, Willie, o caso é estritamente nosso. E temos de nos mexer.
Trigg consultou o bloco outra vez.
- Porque é que a informação é tão vaga?
- Eu disse-te. Ele não me quis dar mais elementos pelo telefone porque
não queria desperdiçar tempo. O dinheiro ia ser levantado depois da uma
hora. Zigman e a secretária particular de Sharon Fields, uma senhora chamada Nellie Wright, encontraram uma pista, ele não me explicou qual, que os
fez sentir que não podiam tomar conta do assunto sozinhos. Por causa da vítima, eles iam seguir as instruções, ser passivos, sem dar nas vistas, enfim,
iam confiar nos raptores. Mas, agora, há uma coisa que eles descobriram, que
os transtornou. Querem a nossa ajuda. Por isso pensei que era bom que nós os
dois fôssemos ter com o Zigman e a Wright - estão na casa da vítima em Bel
Air. Vamos saber todos os pormenores e depois decidir o que devemos fazer.
- Estou pronto.
Trigg virou-se a fim de ir para o elevador. Culpepper impediu-o.
- Ainda não. Prevejo que o caso se prolongue por horas. Por isso quero
que prepares o pessoal e que o tenhas pronto para partir em qualquer
momento. O Chefe disse-me que eu podia gastar o que fosse necessário. Caramba, a Sharon Fields é uma das pessoas mais importantes do país.
-Do Mundo. Que é que eu faço?
- Vou dar instruções à Marion, da CLETS, para estar preparada, e depois vou para casa da Fields. O Chefe disse-me para chefiar toda a operação
e tu, Wilson, vais ser o meu ajudante-de-campo. Agora quero que trates primeiro das coisas aqui, e depois que vás a Bel Air ter comigo.
- Ordena, Chet.
- Vai à minha secretária e organiza uma boa equipa, suficiente para a
parte básica, trabalhos de investigação, chamadas recebidas, o normal.
Comecemos com dez homens. - Culpepper tirou a primeira folha do bloco,
deu-a a Trigg e ficou com o bloco. - Informa-os, e depois orienta- os. Nada de
conversas, nada, até saberem notícias nossas. Põe-nos só preparados.
392
Olhou para o relógio de parede. - Por agora chega. Temos pouco tempo. Vai
à minha secretária. Assim que estiver tudo arrumado, vai ter comigo a Bel Air, tens o endereço.
Trigg brincou.
- Sim, senhor. E eu que pensei que ia ser um 4 de Julho chato, afinal vamos ter muito fogo-de-artifício, pelo que estou a ver.
-Do bom, espero. É um caso de morte, Willie, vai andando. E boa-sorte.
Trigg virou-se, e foi a correr para a Secção de Roubos e Homicídios.
Culpepper ficou a observá-lo por um momento, depois encaminhou-se para o elevador. Minutos mais tarde, chegando ao segundo andar, entrou no
vestíbulo que dava para a porta onde se encontravam os Serviços Automáticos
de Informação da Polícia. Uma vez lá dentro, cercado pelos fantásticos
aparelhos, sentiu-se, como sempre, perdido, como uma criança perdida num
grande armazém de brinquedos, dias antes do Natal. Atravessando rapidamente a sala, olhou vagamente para os computadores IBM, os gravadores,
os aparelhos todos com as suas operadoras. Culpepper foi para o cubículo mais
calmo onde a única funcionária de serviço estava sentada em frente da sua
telemáquina de escrever, a maravilhosa máquina de escrever que transformava a folha de papel numa fita perfurada que transmitiria a sua mensagem a
todo o Estado ou até ao País.
A operadora, sentada ao lado da máquina, era Marion Owen, uma jovem
morena de fraca compleição e pernas bonitas. Nos seus trinta anos, era uma !
introvertida com capacidade mecânica superior à normal, tinha recentemente !
casado com um jornalista ambicioso, mais novo do que ela e que admirava a
sua inteligência e cozinhados. Culpepper há bem pouco tempo tinha ido à pequena festa do casamento deles.
- Olá, Marion - chamou ele. - Como vai o cônjuge?
Ela olhou para cima, escondendo depressa o livro que estava a ler.
- Oh, olá, Capitão. Obrigada, vai tudo bem. Era bom que houvesse mais que fazer hoje.
-Talvez haja, talvez haja.
- Alguma coisa no ar?
A parte social acabada, Culpepper passou-lhe para a mão a mensagem que a sua secretária tinha acabado de preparar.
- o boletim que está pronto para ir para a rede CLETS. Mas não quero
que saia ainda. Quero que a prepares, ouviste? Dentro de uma hora, já te digo se será necessário transmiti- la.
-Para Sacramento e Washington, D. C.
-Não o posso dizer ainda. Mas brevemente também já saberei isso.
Lembra-te de uma coisa, Marion, não transmitas nada até eu te dar instruções. Entendido?
-Entendido. Não transmito nada até me dar ordens.
-Bom. Agora vou sair.
393
Culpepper saiu à pressa, e correspondeu ao aceno amigável que Marion lhe fizera.
Com um cotovelo sobre a telemáquina de escrever electrónica, de mensagem na mão, sem a ter lido ainda Marion sentiu-se, de repente, muito melhor.
Tinha sido um dia aborrecido, era muito aborrecido trabalhar aos feriados, quando toda a gente está fora da cidade. Seria ainda pior se o Charley não estivesse a trabalhar. Felizmente, ansioso por agradar ao seu novo patrão, ele tinha-se oferecido para substituir um dos homens das notícias, um dos veteranos do Programa de Sky Hubbard tinha ido cedo para o estúdio de televisão e talvez ainda lá estivesse quando ela voltasse a casa.
Marion Owen gostava do seu trabalho na Rede de Informação Automática da Polícia de Los Angeles, mas só nos dias de bastante trabalho. Era excitante receber estes boletins descrevendo a última notícia de um crime ou de um fugitivo e ter de os transmitir via CLETS. Pensou como reagiriam os departamentos de outras cidades ao receberem mensagens dessas. Algumas vezes ouvia o que acontecia à informação de que ela era a responsável de transmissão, e sentia que tinha contribuído activamente para o bom cumprimento da lei e da ordem.
Enquanto pensava em tudo isto, o seu olhar caiu sobre a primeira linha do boletim que tinha na mão.
Os seus olhos abriram-se muito. A sua actriz preferida, o seu ídolo! Antes de poder ler o resto, o telefone tocou. Levantou-o, aborrecida com a interrupção, e logo a seguir satisfeita por ouvir a voz de Charley, a voz do seu marido. marido, tinha de se habituar a chamar-lhe assim.
- Marion - disse ele. - Telefonei- te.
- Charley, não vais acreditar - gritou ela. - A Sharon Fields foi raptada.
-Quê? Estás a brincar!
- É verdade. O capitão Culpepper passou-me o boletim para a mão, há segundos atrás. Estava a começar a lê- lo quando telefonaste.
- É incrível - disse ele, sentindo-se também excitado com a notícia. Há pormenores?
- Estou a ler. - De repente lembrou-se. - Charley, ouve, querido, não devia ter-te contado isto. Saiu-me, vais esquecer, não vais.
- De que é que estás a falar? Somos casados, não somos? Se não confias em mim, em quem confias então?
- Eu confio em ti, mas tu conheces as regras daqui. E especialmente num caso como este, o qual não posso transmitir até ter ordens oficiais. O Capitão quer que isto não seja divulgado, porque a vida dela está em perigo.
- Então não falamos mais nisso - disse Charley. - Só telefonei para te dizer que te amo.
394
-Eu também te amo.
e para te dizer que vou cedo para casa. um dia parado, e o ;
Sr. Hubbard vai só transmitir programas gravados. E se fôssemos comer um
hamburger fora, e depois ao cinema?
- Combinado, Sr. Owen. Charley, ouve....
- Desculpa, querida, estão a chamar-me. Até às seis horas.
O telefone foi desligado. Ela também desligou, frustrada. Queria preveni-lo outra vez para ter o máximo cuidado com as notícias que lhe tinha confiado. Depois, pensou que não tinha nada que se preocupar. Porque ele lhe
tinha dito que se ela não confiasse nele, em quem poderia confiar?
Mas dez minutos depois, começou a ficar preocupada com este lapso inadvertido.
Começou a preocupar-se porque sabia até onde ia a ambição de Charley. .
Também sabia que ele estava morto por poder fazer um bom trabalho no seu
novo emprego. Ele considerava este emprego a sua primeira oportunidade por
poder trabalhar com um comentador como Sky Hubbard. Queria sempre fazer-se notar por Hubbard.
Compulsivamente, talvez Charley repetisse estas notícias confidenciais ao
seu patrão. Se tal fizesse, racionalizaria o acto, dizendo que o tinha feito por eles, pelos dois, para ser aumentado, para subir, para estarem mais seguros.
Ou poderia dizer que não tinha dito nada, que o Sky Hubbard tinha sabido por um dos seus espiões pagos.
Sentiu-se envergonhada, por não confiar em Charley, mas tinha de pensar
na sua posição e na confiança que os oficiais todos tinham nela, incluindo o Capitão Culpepper.
Tentando rectificar este erro, talvez dizendo a Charley que tinha percebido mal, que não era Sharon Fields quem tinha sido raptada, ligou-lhe para o escritório.
O telefone estava impedido.
Ligou outra vez, e ainda outra, continuando o telefone a dar sinal de interrompido.
A quarta tentativa, conseguiu uma resposta. Uma secretária disse-lhe que
o Sr. Owen estava a fazer um trabalho importante e que não podia interromper.
Marion pôs o auscultador devagar sobre o aparelho. Desejou que o trabalho que Charley estava a fazer não tivesse nada a ver com Sharon Fields. E depois pôs-se a pensar quem seria tão louco ao ponto de ousar raptar uma
celebridade como Sharon Fields.
Ao volante da carrinha, Howard Yost travou a fundo, quando o sinal virou para vermelho no cruzamento onde o Boulevard Sunset se encontrava com a auto-estrada da Pacific Coast.
395
O tráfego tinha sido intenso desde Arlington até à parte ocidental de Los Angeles, e mais intenso ainda na zona perto da praia. Quase todos os carros tinham uma tábua de surfno tejadilho e em cada semáforo Yost invejou as crianças que iam nos carros e que, brevemente, estariam a brincar no mar e na areia. Tinha curiosidade de saber o que pensariam dele. Provavelmente teriam pena do pobre condutor da carrinha, que tinha de trabalhar num feriado, isto se as crianças se incomodavam a reparar nos adultos e se tinham capacidade para ter pena deles.
De facto, quando chegou à auto- estrada, Yost começou a sentir autocompaixão, por ter de fazer o que estava previsto num dia que devia ser dedicado ao descanso, e por ter de executar uma missão tão perigosa.
Parando no sinal, conseguiu ver a praia de Santa Mónica cheia de corpos bronzeados, quase nus, e sentiu-se tentado a abandonar o carro, comprar uns calções de banho, e juntar-se a todas aquelas crianças que brincavam ao sol em liberdade.
Automaticamente, o seu pensamento voou para Nancy e Timothy. Já deviam ter chegado de Balboa ficou a pensar se a Elinor os teria trazido aqui para a praia e se não fariam parte da multidão. Mas sabia que isso era pouco provável. Elinor detestava multidões, era mais normal que estivessem em casa. A Nancy e o Timothy estavam, provavelmente, a brincar com os miúdos dos Maynard em casa deles, utilizando a piscina recentemente instalada na casa destes vizinhos.
Ouviu uma buzina atrás de si, e reparou que o sinal tinha mudado para verde.
Virou a carrinha para a auto-estrada da Pacific Coast, mantendo-se na linha de trânsito da direita, e seguiu na direcção norte. De repente, passou por duas fases psíquicas.
O seu estado de inconsciência transformou-se numa dolorosa sensação de tensão. Desde os seus tempos de jogador de futebol que não tinha esta sensação assim tão aguda. Tinha a certeza de que não era medo, ou qualquer coisa parecida. Uma pessoa na sua profissão conhecia toda a espécie de acidentes físicos e psíquicos que podiam acontecer a um homem com 40 anos de idade, acidentes baseados em estatísticas. Bem, computou as probabilidades de Félix Zigman os ter intrujado, participando à Polícia, arriscando á vida de Sharon Fields em troca de um raptor. As probabilidades eram de mil contra uma em como Zigman seguiria as instruções dadas.
Yost não tinha nenhuma dúvida. O milhão de dólares estaria empacotado em duas malas castanhas, e as malas teriam sido deixadas em Topanga Canyon, atrás de Fortress Rock antes da uma hora da tarde. O levantamento envolvia um risco mínimo, menor do que escorregar na banheira.
Como se explicava, então, este seu estado de espírito? De repente, ao tentar encontrar a resposta, atingiu a segunda fase psíquica. A sua autocompaixão desapareceu, porque percebeu que dentro de trinta ou quarenta minutos, conforme o tráfego, pela primeira vez na sua vida, seria
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um milionário, ou antes, um quarto de milionário. O saber que este seria o dia mais importante da sua vida pô-lo tonto. ì
Olhando para os nadadores e pessoas que se bronzeavam, imaginou o que
pensariam aquelas crianças se soubessem a verdade acerca deste, aparentemente vulgar, condutor de carrinha, se soubessem o que ele tinha feito, o
que estava a fazer, e que estava em vias de nadar em dinheiro. Era esta a
explicação para o seu estado de espírito, claro. O facto de todo aquele dinheiro ;
estar ali à sua espera.... o sonho de uma vida inteira.... num local isolado não longe de uma estrada de pouco movimento, e ele ainda não estar lá para o
agarrar, acariciar, possuir, punha-o doido, impaciente. Estava tenso porque
não conseguia esperar pelas massas, e porque queria meter as suas mãos nelas
antes que alguém o fizesse. E se algum rapazinho estúpido, amante da Natureza, escuteiro ou alguém reparasse nas malas antes de ele lá chegar, as
abrisse e as levasse à Polícia? Jesus!
Acelerou o carro, mas não por muito tempo, porque o tráfego começava a apertar outra vez.
Abrandou. Não era altura para loucuras, riscos, agora que já estava tão próximo.
Olhou rapidamente para a velha espingarda colocada no lugar ao seu lado.
A sua defesa, só no caso de encontrar alguém. Tinha vestido uma camisa de
malha e umas calças práticas, e daí a um bocado, com a espingarda debaixo do
braço, pareceria um caçador. Conhecia as épocas legais de caça, claro, e agora
era época dos coelhos e esquilos em qualquer propriedade particular, e ele sabia-o.... pois uma vez estudara a hipótese de ali comprar uma parcela de
terreno como investimento, mas não tinha conseguido uma garantia
suficiente para obter o empréstimo.... e se o mandassem parar ou lhe
perguntassem para onde ia, poderia dizer que ia ao rancho de um amigo dar uns tiros.
O relógio da carrinha não funcionava. Yost levantou o braço do volante
para ver as horas no seu relógio de pulso. Devido à porcaria do tráfego, estava
atrasado quase uma hora. Tinha planeado estar no local pouco tempo depois
de Zigman ter deixado o dinheiro. Assim, estaria pelo menos uma hora e meia mais tarde do que tinha previsto.
Não tinha importância. Antes tarde do que nunca.
Tentou pensar adiantado. Imaginou que já havia levantado as duas malas.
Tinha regressado às montanhas Gavilan e ao esconderijo. O dinheiro havia F
sido equitativamente distribuído. Era de tarde. Tinham amarrado os pulsos de
Sharon, posto uma venda nos olhos, tapado a sua boca, feito uma leve injecção cujo efeito durasse cerca de uma hora. Tinham-na escondido na parte
de trás da carrinha, e diziam adeus ao esconderijo, às montanhas e a
Arlington. Voltavam para a cidade, dirigiam-se para Laurel Canyon, para o !
cume, para o cruzamento de Mulholland Drive, e viravam. Numa área isolada que conhecia, eles desamarravam-na e abandonavam- na. Ela estava drogada embora consciente, e entre o tirar a venda dos olhos, o pedir
397
boleia até à próxima casa e fazer a chamada telefónica, já os quatro estariam longe.
Às dez ou onze horas da noite estaria em casa, com Elinor, as crianças, e com um quarto de milhão de dólares. Teria de os esconder em qualquer lado, até ao investimento fictício que justificaria a sua prosperidade súbita. Esta noite, estaria são e salvo com a sua família, sem mais preocupações para o resto da vida.
Subitamente, lembrou-se de uma coisa.
Que maçada, talvez ainda não fosse esta noite. Tinha-se esquecido daquela história perigosa do Brunner, de a Sharon saber o nome dele, de o Shively querer liquidar a Sharon, e do compromisso de que ela não sofreria nada se Brunner saísse da cidade durante uns tempos.
Isso significava que o seu regresso a casa só se faria amanhã. Bem, cos diabos, uma vida de segurança valia bem o preço de um atraso de vinte e quatro horas - pensou.
Depois, ocorreu-lhe um pensamento desagradável. Shively. O texano tinha-se finalmente comprometido quanto ao destino de Sharon. Mas Shively era volúvel. Hoje à noite ou amanhã, talvez ele achasse insuficiente o Brunner estar longe de Los Angeles, durante um ano ou dois, ou, então, que eles só estariam seguros se Sharon fosse eliminada.
Isto nunca ele permitiria - pensou Yost.
Ele já fizera algumas coisas duvidosas. Tinha mentido e aldrabado um pouco em negócios. Quem não aldrabou? Agora, estava envolvido num rapto e numa violação, embora ela tivesse voluntariamente colaborado. Quanto ao dinheiro do resgate, não fazia falta a Sharon. "Tudo isto já era demasiado - pensou Yost - não iria mais longe.
Não se veria implicado num assassínio, isso, nunca!
Talvez não se tornasse a pôr esta hipótese, mas se fosse posta, ou se Shively apresentasse algum problema, ele teria de lhe lembrar que não era a única pessoa armada. Não há nada como uma boa arma de caça para manter a ordem.
Pelo canto do olho, viu uma mulher alta, bronzeada, cabelo arruivado, uma beldade de praia com um fato de banho de duas peças, vermelho, de pé na berma da estrada. Lábios grossos. Corpo ondulante. Seios luxuriantes. Umbigo fundo. E ali estava ela, esperando para atravessar a estrada para a praia ou para ser engatada.
Querida, querida - quis chamá-la - espera pelo Howie, ele há-de voltar e quando o fizer terá um quarto de milhão no bolso. Querida, vais adorar o Howie.
Na verdade, neste preciso momento, ele amava Howie, o rico Howie e todas as coisas boas que ele iria ter.
Acelerou.
Fortress Rock e vinte passos, aqui estou eu.
398
À porta da imponente casa de Sharon Fields, ao volante de um carro preto normal de patrulha, o Sargento López mexia no rádio emissor- receptor. Este punha-o em ligação directa com o centro de comunicações da Polícia de Los Angeles e com a tele-impressora, recentemente instalada, que, quase instantaneamente, podia recolher elementos para o computador do Centro Nacional de Informação do Crime em Washington. Embora estivesse à sombra, o Sargento López sentia-se assar, e olhava constantemente para a ornada porta espanhola à espera que viesse lá de dentro alguma ordem que pusesse a operação a andar em grande velocidade.
Dentro da fresca sala de estar de Sharon Fields onde o mordomo, Patrick O Donnell, tinha disposto em semicírculo cadeiras por baixo do candeeiro começava a transparecer a preocupação em cada um dos participantes da reunião.
Nellie Wright, pálida e abalada, sentada no centro, sentia-se agora exausta com o nervosismo. Ao lado dela, cruzando e descruzando as pernas, fumando furiosamente um charuto, estava Félix Zigman. No lado oposto, com um bloco amarelo sobre os joelhos, encontrava-se o Sargento Neuman que tinha acabado de tomar notas. Atrás de Neuman, com as mãos apoiadas nas costas da cadeira, estava o Tenente Trigg, de feições franzidas. Atrás, de mãos dadas, ouvindo, angustiados, os empregados domésticos, Pearl e Pa trick O Donnell.
A única pessoa de momento em movimento era o Capitão Chester Culpepper. Com ambas as cartas na mão, concentrando-se, andava de um lado para o outro em frente do grupo, tentando pensar na posição a ser tomada.
Havia chegado há vinte e cinco minutos, acompanhado do Sargento Neuman. Há dez minutos tinha-se juntado a eles, afogueado, o Tenente Trigg, ao qual tudo fora rapidamente explicado.
Com excitação, Zigman e Nellie Wright contaram, alternadamente, todos os pormenores que conheciam, desde o súbito desaparecimento na manhã de 18 de Junho até à chegada da primeira carta acerca do resgate em 30 de Junho, à publicação do anúncio em 2 de Julho e à entrega da última carta com instruções claras quanto ao local onde o dinheiro deveria ser deixado hoje, 4 de Julho. Zigman contou todos os seus passos, quando depositou as
duas malas castanhas contendo um milhão de dólares. Explicou que quis seguir as instruções de Sharon, ou do raptor, para não
pôr em risco a vida dela. Mas quando Nellie reconheceu na carta um apelo de
Lucia, viu que os raptores não mereciam confiança.
Haviam chegado agora ao momento de indecisão, todos eles conscientes de que os minutos eram preciosos e que estavam a fugir.
O Capitão Culpepper interrompeu a sua marcha e pôs-se à frente de Nellie mais uma vez.
-Miss Wright, tem a certeza de que não consegue lembrar-se de nenhum pormenor do código que Miss Fields costumava empregar naquela altura?
-Absoluta, juro. Não consigo lembrar- me!
- Mas insiste que tal código existia e que tanto a senhora como Miss Fields o conheciam?
- Claro que o conhecia - disse Nellie, indignada. - Lhembro-me de que nos divertíamos imenso a fazer este jogo. Ambas tínhamos fixado o código, e eu tinha-o decorado.
- Se o tinha decorado, não devia ser muito complexo, a menos que a senhora tenha uma cabeça que fixa tudo.
- A Sharon, sim. Consegue fixar um papel quase inteiro, numa noite, e retê-lo. Eu não consigo, tenho de ler muitas vezes uma passagem escrita para a decorar. E também não tenho grande poder de retenção, senão lembrava-me do estúpido código.
- Devia ser um criptograma - disse Culpepper. - Nada que exigisse um livro de código, ou tabelas de consulta para transposição ou substituição de letras a fim de decifrar talvez ainda tenha algum bilhete com esse código aqui em casa.
- Não, não. Tenho a certeza de que não há nada em casa que nos possa ajudar. O senhor tem razão, devia ser um método não complicado.
Culpepper disse então:
- Talvez o Sr. e a Sra. O'Donnell tenham ouvido Miss Fields falar do assunto, talvez se lembrem.
Nellie abanou a cabeça vigorosamente.
- Não. Isto tudo aconteceu antes de eles terem entrado cá para casa. Culpepper levantou as mãos.
- Bem, por aqui não chegamos a nnhum lado. - Agitava as duas cartas, que estavam numa das mãos. - Claro que há muitos criptógrafos ao nosso serviço que conseguiriam decifrar o código. Não temos nenhum a trabalhar durante todo o dia para nós, pois há muito poucos casos que exijam a presença deles. Sei que há um professor, cujos serviços o Departamento utilizou uma ou duas vezes nos últimos dez anos. Já tentámos localizá-lo. Está de férias, e nenhum dos seus colegas sabe onde ele se encontra. Podemos contactar a Divisão de Identificação Criminal e de Investigação, em Sacramento.
- Ou o FBI - sugeriu Zigman. - Devem ter centenas de especialistas. ou o FBI em Washington, sim. Podemos contactá-los, é isso que tenciono fazer dentro dos próximos dez minutos. Transmitirei o texto de
ambas as cartas tanto para Sacramento como para Washington. Tenho a certeza de que eles conseguirão decifrar a mensagem de Miss Fields depressa,
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muito depressa. - Fez uma pausa, depois abanou a cabeça. - Mas receio que não seja suficientemente depressa para o nosso limite de tempo.
Posso poupar tempo ditando pelo telefone o texto da segunda carta, mas o código pode muito bem implicar o estilo do texto, assim como o seu próprio
conteúdo. Os criptógrafos talvez consigam chegar a uma solução rápida, se
virem a carta. Mas mesmo considerando que fosse feito com a máxima
urgência - a transmissão, o trabalho dos peritos, a descoberta do código,
o telefonema para nós -, o mínimo de tempo que tudo isto levava seria, pelo
menos, duas horas. Estás de acordo, Wilson?
Trigg concordou absolutamente.
- Duas horas seria o mínimo, Capitão. Eu acho que levaria três horas. .
Culpepper dirigiu-se a Zigman.
- Portanto, compreende o nosso problema. Fomos chamados à última
hora, na altura em que o dinheiro de Miss Fields está provavelmente a ser levantado. Mas há muitas coisas, repito, muitas coisas que podemos e que
iremos fazer. Transmitir as cartas para os criptógrafos. Alguns dos nossos
funcionários irão pelos subúrbios interrogar as pessoas. Outros interrogarão
os amigos e colegas de Miss Fields. Outros, ainda, verão a correspondência de
Miss Fields, incluindo a dos seus admiradores, aqui e nos Estúdios, e os
remetentes serão localizados e interrogados. Esta investigação levará dois,
três, quatro dias, até se conseguir alguma coisa de concreto. Além disso, a
melhor coisa a fazer é tentar decifrar a carta de Miss Fields. Não sabemos se
nos dirá alguma coisa de positivo. Mas talvez resulte. De qualquer modo, já
sabe, isto vai levar algumas horas. Eu só quero ser franco.... não temos tempo suficiente.
- Talvez o raptor mantenha a sua palavra - disse Zigman, sem convicção. - Uma vez com o dinheiro na mão, talvez liberte Sharon, tal como prometeu.
Culpepper abanou a cabeça, simpaticamente.
- Claro, há sempre essa hipótese. O que me preocupa, e o que preocupa a
vocês também, é que Miss Fields tentou dizer alguma coisa no bilhete. É isso
que me preocupa. Isto significa que Miss Fields está apoquentada com a sua própria segurança.
- Certamente, é isso que.... é o que nos aterroriza - disse Zigman,
mexendo-se na cadeira.
- Bom.... - continuou Culpepper, olhando para baixo -, tenho uma
ideia na cabeça, um novo tipo de acção que pode produzir resultados imediatos, mas que não posso executar sem vossa licença. Porque, sinceramente,
envolve um certo grau de risco.
- Diga - disse Nellie Wright, apressadamente.
O Capitão Culpepper parou.
- Temos de continuar com a teoria de que o raptor ou raptores não
tencionam cumprir parte do contrato. Temos de continuar a pensar que vão
levantar o dinheiro, mas não libertam Sharon Fields.
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- Acha que a vão matar - perguntou, hesitante, Nellie.
- Não sei. Talvez não. Mas temos de partir da premissa de que o pior pode acontecer.
- Sim, Capitão - disse Zigman. - Continue, por favor.
-Obrigado. O tempo é precioso, portanto deixem-me continuar ininterruptamente. - Parou uns segundos, e continuou. - Se estamos a prever o
pior, temos de encarar o facto de que temos muito pouco tempo para actuar. A segunda carta diz onde o dinheiro deveria ser deixado antes da uma hora. O Sr. Zigman cumpriu. Quer isto dizer que os raptores - é mais provável que sejam dois ou três raptores-, não querendo ser vistos pelo Sr. Zigman, planearam provavelmente-aparecer em Topanga Canyon quinze minutos ou meia hora depois. Não mais tarde que a uma e meia. Também acho que não se arriscariam a deixar lá o dinheiro até depois das duas e meia ou três horas. Culpepper olhou para o seu relógio. - São agora duas e vinte e oito. O dinheiro já foi levantado ou está prestes a sê-lo. Se já foi levantado, nada podemos fazer, a não ser esperar que Sharon seja posta em liberdade. Se tal não acontecer, podemos então decifrar o código e esperar que ele nos forneça alguns dados úteis. Por outro lado, se o dinheiro ainda não foi levantado, ainda há uma coisa que podemos fazer. actuar rapidamente.
- Como? - perguntou Zigman, ansiosamente.
-Fazer um esforço para apanhar o raptor ou o mensageiro no local. Cercá-lo e apanhá-lo, apanhá-lo vivo. Quando ele estiver nas nossas mãos, fazemo-lo falar. Poderíamos, assim, saber rapidamente onde está Miss Fields e ir salvá-la.
Culpepper parou. A sua proposta ficou suspensa no ar, para os outros observarem e considerarem.
- Tenho medo disso - disse Nellie.
Zigman inclinou-se para a frente na sua cadeira.
- Quando publicámos o anúncio e deixámos o resgate, demos a nossa palavra de que não permitiríamos a intervenção da Polícia.
- Eu sei - disse Culpepper. - O senhor concordou que os deixaria levantar o dinheiro. E eles, em troca, prometeram que iriam libertar Sharon Fields. Mas, agora, já não acreditamos que eles tencionem manter a palavra. Então, porque havemos nós de nos preocuparmos em manter a nossa?
Zigman aceitou a lógica do argumento.
-Qual seria o risco envolvido em tentar prender e capturar o mensageiro?
- Se ele lá estiver, não teremos problemas em o apanhar. Se ele for so zinho, e tiver deixado Miss Fields sozinha, presa em qualquer lado, podemos
obrigá-lo a levar-nos até lá. Mas este caso não parece ser trabalho de um homem só. É necessário muito planeamento, a penetração em casa, as dificuldades implicadas em fazerem isso a uma celebridade como Miss Fields, prenderem-na, levarem-na, manterem-na este tempo todo há, pelo menos, dois criminosos envolvidos neste caso, dois ou mais. Isto, claro
402
está, aumenta o risco. É possível que vão dois buscar o dinheiro, um para o levantar, o outro para observar e proteger o seu parceiro a distância, como precaução. Se isso acontecer, e a Polícia aparecer, um será apanhado, mas correríamos o risco de o outro fugir com Miss Fields e fazer-lhe mal. Esta última hipótese é pouco provável, porque bloquearíamos a estrada de Topanga Canyon. Mas esta possibilidade tem de ser encarada agora, e mesmo que o segundo não conseguisse escapar, poderia transmitir, por intercomunicador, o que tinha acontecido a um terceiro colega que estaria a guardar Sharon. Nesse caso, perderíamos o jogo. Mas o mais provável é Miss Fields não estar próxima do local e ser uma só pessoa a levantar o resgate:
- Supondo que essa hipótese está certa. - disse Zigman -, suponho que os seus homens cercavam o local, bloqueavam todas as saídas e conseguiam capturar os raptores. Toda esta actividade dava nas vistas, não dava? Naturalmente, tudo isto transpiraria para fora do local.
- Receio que sim, certamente no período de uma hora.
- Um segundo raptor deixado no esconderijo para guardar Sharon, po deria ouvir esta notícia pela rádio ou televisão.
- Sim, eventualmente ouviria. Zigman franziu as sobrancelhas.
- Antes que o raptor capturado falasse, o seu companheiro teria. teria assassinado Sharon e fugido.
- É possível.
Zigman abanou a cabeça.
- Arriscado, muito arriscado.
- Não o nego. Ao mesmo tempo terá de pensar no que é mais arriscado actuar assim ou confiar inteiramente nos raptores, pensando que eles vão libertar Miss Fields depois de receberem o dinheiro.
Zigman engoliu em seco.
- Não sei. - Olhou para Nellie. - Que achas, Nellie?
Ela estava perdida.
- Também não sei. Ambas as hipóteses parecem perigosas. Decide tu, Félix, concordo com o que decidires.
Zigman tapou a cara com as mãos e massajou a testa.
- Eles. eles dizem que vão libertar Sharon depois de terem o dinheiro. e se nós interferirmos, podemos ter estragado a hipótese de a libertarmos viva.
- Sim - disse Colpepper.
- Se eles não quiserem libertá-la, e se perdermos a hipótese de apanhar um deles, também estragámos a única possibilidade de a salvar da morte.
- Também é verdade - concordou Culpepper. '
- É um dilema terrível, terrível - disse Zigman. - Podemos discutir um pouco mais, antes de tomarmos a decisão?
O Capitão Culpepper, de pé, com as mãos nos bolsos, olhou para Zigman.
403
- Temos duas opções, sr. Zigman. Uma delas é deixarmos andar e ver o que acontece. A outra é pôr os meus homens a funcionar. E se decidirmos por esta, temos muito pouco tempo para agir. Mas se quiser, podemos discutir um pouco mais o problema. Quanto tempo mais? Dou-lhe um minuto para decidir, ou deixar-nos a nós a decisão.
Tudo parecia um sonho, que ia além de todas as suas previsões. Assim que saiu do movimento do trânsito da auto-estrada da Pacific Coast, conduziu a carrinha para Topanga Canyon, virou à esquerda na estação de bombeiros da zona, e começou a sentir-se bem. O trajecto era conhecido e cada vez havia menos tráfego.
Tinha os olhos na estrada íngreme que subia e circundava cada vez mais alto, já não havendo sinal de casas. Chegou ao portão que dava para Moon Fire Temple. (Lembrava-se de ter lido aos seus filhos no guia turístico a explicação histórica deste local, assim chamado porque se acreditava que sendo a Lua e o Fogo os primeiros símbolos que o Homem encontrou para a vida e a morte, eles não eram dedicados a nenhuma religião específica, mas, sim, ao vegetarianismo e à abstenção de qualquer tipo de morte. ) Depois de ter passado o portão sentiu-se como se tivesse passado uma barreira e entrado num novo mundo, vazio, abandonado, sem vida.
Dezoito minutos depois de ter deixado a estrada que passava pela costa, conseguiu distinguir a Fortress Rock, não muito longe. a enorme rocha que rasgava o céu azul, e que lhe era tão familiar por ter feito tantas excursões, com Nancy e Tim, àquela área, e explorado os arredores.
Mais um minuto, e a enorme sombra feita pela rocha cobriria a sua carrinha; abrandou, tentando arranjar um sítio bom para estacionar, acabando por deixar a carrinha num sítio abrigado, não visível da auto-estrada.
Não perdendo tempo, começou a andar a pé para a auto-estrada em direcção a Fortress Rock. Estava vazia, mas ele já tinha a sua aparência exterior cuidadosamente preparada, para o caso de encontrar alguém. Era a imagem de um vulgar caçador, espingarda debaixo do braço, a caminho da propriedade de um amigo.
Perto da rocha, fez uma pausa para consultar o relógio. Eram duas horas e cinquenta minutos. Verificou que estava muito atrasado, e que só estaria de volta ao esconderijo nas montanhas dentro de uma ou duas horas. Os seus amigos já deviam estar nervosos, pensando no que lhe teria acontecido, prevendo o pior, mas, quando ele finalmente aparecesse com o milhão de dólares, tudo isso seria esquecido.
Parou de andar, ao chegar à enorme sombra projectada pela rocha. Fortress Rock estava à sua frente, com os seus parapeitos de calcário, com as suas cavernas e pequenas formações desgastadas pela erosão.
Howard Yost havia chegado ao local onde se encontrava o resgate. Olhou para a rocha. Sabia que estava lá o dinheiro.
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Já cá tinha vindo como um pobre diabo, agora sairia rico.
Abanou a cabeça, respirou fundo, apertou a sua caçadeira debaixo do braço, e começou mais uma vez a andar.
Chegando à parte sul do rochedo, viu à sua frente os vestígios de arame farpado, tal como se recordava. Havia uma abertura, que dava para um carreiro comprido de areia que vinha desde a estrada e que acompanhava a rocha, com o comprimento de cento e cinquenta metros. À direita do carreiro saía uma grande pedra pontiaguda da base da rocha. A frente, o carreiro e a rocha, e, ao longe, muito ao longe, as águas do oceano Pacífico. À sua esquerda, um outeiro coberto de arbustos que caía gradualmente no prado.
Yost virou-se. Do outro lado da estrada, mais sujo, relva seca, capim e mais arbustos. Não se via ninguém, o carreiro na sua frente era só seu.
Susteve a respiração, passou o arame farpado.
Deliberadamente, deu os vinte passos.
Um passo, dois, três, quatro passos, cinco, seis, sete, oito passos, nove dez, onze.
Saiu da sombra projectada pelo rochedo, para o sol abrasante. Cabeça baixa, espingarda debaixo do braço, continuou a marchar, ignorando uma abelha que zumbia à sua volta, contando os passos combinados.
Quinze passos, contou ele, dezasseis, dezassete, dezoito, dezanove. e então viu as duas malas castanhas. eram indubitavelmente as malas contendo o tesouro.
Olhou para elas, encantado, excitado com a realização do Clube de Fãs. - Obrigado, Zigman, um milhão de vezes obrigado, ou um quarto de milhão. E a Sharon, boa. boa rapariga.
Precipitou-se para a frente, caiu de joelhos, olhando para as malas. Quis abri-las, só para ter a certeza, mas não havia tempo a perder agora, certamente que não. Olhou à sua volta para ver se havia testemunhas da sua fuga, viu só céu azul, sem nuvens, céu glorioso.
Estava só, salvo, era um dos privilegiados do Mundo, um homem rico, um homem muito rico, o bem conhecido filantropo Sr. Howard Yost.
Pôs a espingarda no chão, pegou numa das malas, depois na outra. Eram pesadas. Agarrou a espingarda, e pô-la debaixo do braço, e com a mão direita pegou de novo na mala.
Piscando os olhos por causa do brilho do sol, carregou as duas malas pelo carreiro de areia. Via-se o oceano, uma rocha, os vales, os cumes das montanhas, o seu primeiro cenário como homem rico. Fechou com mais força as palmas das mãos, e dirigiu-se a Fernwood Pacific Drive. Com este peso, calculou ele, levaria dez ou quinze minutos a chegar ao local onde tinha escondido a carrinha.
Já tinha feito metade do caminho, gemendo com o cansaço, dois terços, e começou a transpirar, quando subitamente parou assustado.
Ficou a ouvir com atenção. Nada, nada, e talvez, possivelmente, algo quase inaudível.
405
Esforçou-se por ouvir. Depois apanhou. ouviu. Era um ruído indistinto, a grande distância, muito vago.
Estranho.
Ficou muito quieto, tentando apanhá- lo outra vez, para se certificar. Silêncio, e depois ouviu-o novamente, o mesmo som tornando-se mais alto. mais claro. As vibrações do som eram intrusas, não estavam de harmonia com a calma do local, ao qual só pertenciam o chilrear dos pássaros, o zumbido dos insectos, a sua própria respiração.
Virou a cabeça para o sítio de onde vinha o som, tentando identificá-lo, mas nesse instante o som transformou-se num ruído estridente, conseguiu defini-lo, já sabia o que era e de onde vinha.
Era o som cadenciado de um helicóptero.
Olhou à volta, procurando no horizonte em direcção a Oeste, e depois, aterrorizado, viu a máquina voando rapidamente na sua direcção.
Piscou um olho, tentando ver a sua configuração geral (tinha aprendido um pouco acerca de aviões com o seu filho Tim), mas não conseguiu identificá-lo. Uma coisa era certa, o barulho era cada vez mais alto. Depois, enquanto escutava, aconteceu uma coisa muito estranha. Este barulho persistente mudou de solo para dueto.
Olhando à sua volta outra vez, Yost fixou o céu na direcção da estrada, e ali, vindo na direcção oposta, do Este, zumbindo sobre os cumes dos montes, em direcção a Fortress Rock, um gémeo do primeiro.
O coração de Yost batia apressado, mas ele não podia entrar em pânico. Estes helicópteros podiam ser qualquer coisa, especialmente num fim-de-semana de férias. Podiam ser helicópteros duma patrulha de rotina. era normal que eles estivessem a fazer a sua ronda. também podiam ser helicópteros dos Correios, ou de pessoas importantes que se deslocavam do aeroporto para um hotel, ou, então, podiam ser da Polícia noutra missão especial de emergência.
Talvez.
O seu olhar foi de um para o outro, e agora a sua aparência parecia mais suspeita, pois ambos estavam a descer cada vez mais, e cada vez estavam mais perto, como se Fortress Rock fosse o heliporto de destino.
Instintivamente, Yost largou as pesadas malas, deixou-as cair no carreiro sujo, pondo-se imediatamente de joelhos e começando a arrastar-se em direcção à parede calcária da rocha, tentando passar despercebido.
Tremendo, já sem fé, observou um helicóptero, depois o outro, a aproximarem-se da sua área.
Podia agora ver-lhes a cor. Eram ambos azuis com uma risca branca. Nesse instante, teve um pressentimento de perigo.
Não entres em pânico, Howie - pediu a si próprio, mas deixou-se dominar pelo pânico. Ainda quis ir buscar as malas. Mas não conseguiu mover-se, estava totalmente imobilizado, com medo. Que fossem para o diabo as malas. Se conseguisse fugir. mas já não ousava fazê-lo. Tinha de se
406
esconder até estar seguro. Tirou a caçadeira debaixo do braço e apontou- a
para a frente, deixando-se estender no solo.
Os sons tornavam-se estrondosos agora, martelando contra os seus
tímpanos. Estendido no solo, duro como uma barra de ferro, sentia a terra
tremer debaixo dele. Levantou a cabeça, olhou para a esquerda e ficou aterrorizado.
Um dos helicópteros aterrou. Olhou por cima do ombro, e, para seu
horror, viu que o segundo também estava a aterrar.
Ambos eram A-4Bell Jet Rangers.
Ambos tinham umas letras brancas grandes, pintadas de lado L. A. P. D.
A Polícia, pensou.
Havia pó por todo o lado. Tremendo, tossindo, Yost sabia o que estava a acontecer.
Tinham aterrado.
Pôs-se de pé, pestanejando por causa das partículas suspensas de poeira, e
gritou para ter a certeza de que isto não era um pesadelo.
Então ele próprio viu. O helicóptero mais próximo estava a 50metros do
carreiro. As hélices paravam lentamente de rodar. Estavam quietas agora.
Abriu-se uma porta.
Yost viu uma figura sair de dentro, um polícia com capacete, vestido de
caqui, puxando de uma pistola.... Deus, até a pistola era identificável, uma
Smith and Wesson 38.. ameaçando enquanto o polícia se aproximava.
Aterrorizado, não esperou mais. Recuperando apressadamente a espimgarda, baixou-se, e começou a correr para o esconderijo onde tinha encontrado o dinheiro do resgate. Virou na esquina da rocha, atirou-se para a
estreita valeta atrás dela, e caiu contra a pedra protectora, ofegante e sedento de ar.
Depois de um momento, levantou a cabeça acima do parapeito. Com
descrença, compreendeu a cena.... dois, três, quatro.... cinco polícias com
capacetes, uniformes, insígnias a brilhar, todos armados, subindo cuidadosamente o caminho. E houve mais movimentos que atraíram a sua
atenção; virou os olhos para a esquerda, e viu três, quatro, mais cinco
homens a sair do outro helicóptero, começando a correr ao mesmo tempo,
atravessando a estrada e juntando-se aos outros colegas.
Gelado, Yost continuou a observar. Estavam a aproximar-se cada vez
mais, já se distinguiam as caras.
Quis fugir, mas não havia sítio para onde. Estrangulado pelo medo,
doente de terror, olhou para cima para o rochedo, depois olhou para baixo.
Não havia hipótese de fuga, estava numa ratoeira.
Isto não podia acontecer, mas estava acontecendo. Tinha sido intrujado.
Todos eles haviam sido intrujados.
Seus aldrabões de merda!
A Polícia, os assassinos, vieram apanhá-lo.
Não. Não, nunca! Não a ele. Não era justo. Estava tudo errado. Havia
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algum erro. Eles haviam de descobrir que havia um erro e haviam de se ir todos embora. Tudo iria passar, todo este pesadelo incrível. Seria como se nada disto tivesse acontecido.
Vinham cada vez mais rápidos, inexoravelmente. Não sabiam quem ele era? Não era um criminoso, um vagabundo, não era o tipo de pessoa a quem se faz isto, não, não, ele era o Sr. Howard Yost, herói do futebol, funcionário da respeitável Companhia de Seguros Everest Life era o Sr. Howard Yost, marido de Elinor, pai de Nancy e de Timothy, com amigos em todo o lado, com a sua própria casa estável, honesta.
A vinte metros de distância, viu um estranho objecto aparecer à frente de uma cara impiedosa.
Um megafone, um megafone como os que costumavam usar para apoiar atletas, quando se levantavam para saudar Howard Yost, Howie o Grande, Howie o Invencível - Homem de ferro, aguenta-te, aguenta-te!
Esperou pelos aplausos do megafone, mas, em vez disso, ouviu uma voz baixa, estrondosa.
- Está cercado! Atire a sua arma para o chão! Ponha as mãos no ar! Apareça com as mãos para cima!
Todo o seu raciocínio o deixou.
Fazer isto. isto ao Sr. Howard Yost, cidadão americano? Nãoooo, nunca, nunca, nunca!
Enlouquecido, apoiou a espingarda no seu ombro e, sem objectivo, começou a atirar. aqui, ali, carregando, atirando para todo o lado, dizendo-lhes quem era, que se fossem embora, que o deixassem só, mas nenhum dos homens recuou nem atirou contra ele.
Nada o impressionava mais enquanto carregava a arma do que o silêncio dos polícias, e, naquele instante, voltou a ter consciência dos seus actos, percebeu o que estava a acontecer-lhe.
Atirou mais uma vez para o ar, e viu que só lhe restava uma bala. Eles não respondiam ao seu tiroteio, porque tinham ordens para o apanharem vivo. Queriam-no vivo, para o espancar, para o forçar a falar, para o forçar adizer-lhes onde estava Sharon Fields.
E depois tudo sairia, toda a história, suja, nojenta.
Viu-se nas primeiras páginas dos jornais. Viu-se nos ecrans da Televisão. Viu-se no tribunal a ser julgado. Viu-se em frente dos olhos de Elinor, de Nancy, de Timothy, dos seus clientes, dos seus colegas, dos seus amigos.
Nu. Um violador perverso, um raptor e um extorsionário, um monstro repugnante.
Pobre Elinor, pobre, pobre, pobres crianças, como vos amo. Ouviu o eco da terrível sentença que saía do altifalante.
- Não há nenhuma saída! Renda-se! Atire a sua espingarda! Levante-se e avance com as mãos no ar!
Não. Não.
Não.
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Não podia fazer-lhes isso, não à Elinor.... "Eu amo-te, Elinor" -nem aos miúdos, pobres crianças, lindos filhos. O papá ama-vos, ama- vos eternamente.
O altifalante soava estrondosamente nos seus ouvidos.
- Tem cinco segundos para se render ou vamos aí buscá-lo! Não.
O altifalante:
"-Um.... dois.... três.... quatro: "
Não, nunca!
A sua apólice, a sua apólice de seguro, qual era a cláusula de in demnização?
Amedrontado, viu a linha de caqui a avançar para ele, irrompendo sobre o carreiro, prestes a apanhá-lo.
Eu amo-vos, amo-vos, amo-vos!
Pôs o cano da espingarda na boca. Estava quente. Fechou os olhos. O polegar carregou no gatilho, disparando contra si próprio.
Às três da tarde deste 4 de Julho, no retiro das montanhas Gavilan, parecia que toda a animação humana fora temporariamente suspensa.
O interlúdio era uma paragem, um período de marcação de tempo e de esperança interior para todos eles antes de recomeçar a actividade final.
Esperavam o triunfante regresso do mensageiro, que tinha previsto estar de volta às cinco horas. Ainda faltavam duas horas.
Nos seus aposentos, onde o calor era sufocante, Sharon Fields deitou- se na banheira cheia de água, tentando refrescar-se, imaginando pela centésima vez o que estaria a acontecer no exterior e que notícias trariam as próximas horas.
Kyle Shively sentou-se nos degraus da varanda, sonhando com a glória. Na sala de estar, Leo Brunner, sentado em frente do aparelho de televisão, preparava-se para ver o seu programa diário preferido, ao mesmo tempo que evitava quaisquer pensamentos acerca do impossível plano de sair da cidade, destruindo a vida inteira. Adam Malone, no seu quarto, tentava concentrar-se num livro, embora o seu espírito estivesse muito longe.
Este profundo silêncio continuou por mais uns minutos, dominando completamente a casa.
Às três horas e oito minutos esta calma seria totalmente quebrada. Leo Brunner tinha captado o seu programa favorito de televisão, levantou-se para pôr o som mais alto, quando aquele foi subitamente interrompido. As imagens do programa desapareceram e deram lugar a um título que dizia: NOTICIÁRIO.
Ouviu-se ao fundo a voz de um locutor:
- Interrompemos a nossa programação normal para vos levar à sala de
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noticiário que vai transmitir notícias de última hora, um exclusivo do nosso conhecido comentador Sky Hubbard.
Mais assustado do que curioso com esta imprevista interrupção, Leo Brunner decidiu desligar o aparelho. Mas, antes de o fazer, viu a imagem, em grande plano, de Sky Hubbard no écran, enquanto por detrás era projectada uma fotografia deslumbrante de Sharon Fields, com o fato usado num dos seus últimos filmes.
Brunner recuou, e sentou-se distraidamente, esperando com curiosidade e surpresa.
O conhecido comentador, com a sua expressão grave, a sua voz normalmente sonora, agora baixa e dura, começou a falar apressadamente.
- Interrompemos o programa com um noticiário em exclusivo, de interesse nacional, e que irá chocar e impressionar todos os Americanos. De fonte fidedigna da Polícia de Los Angeles, tivemos a informação de que a mundialmente conhecida actriz de cinema Sharon Fields foi vítima de rapto. Fomos informados de que neste momento a Polícia de Los Angeles está a reunir todos os seus esforços para resolver este caso. Não foram dados mais pormenores acerca deste hediondo crime. O dia e hora do rapto de Sharon Fields, as exigências do resgate que foi pedido são elementos que estão em poder da Polícia, na máxima confidencialidade. Repetimos, tudo o que sabemos ao certo é que Sharon Fields foi raptada e que as autoridades montaram a maior operação de pesquisa dos últimos anos no Sul da Califórnia.
Brunner olhava para o écran com descrença e horror.
Depois, subitamente galvanizado, saltou da cadeira, gritando pelos seus companheiros. Correu para a sala de jantar, e para o quarto empurrando Malone, que se tinha levantado nesse momento para ver o que se passava.
- Eles descobriram, eles descobriram! - continuava Brunner a gritar.
- Sharon Fields. eles já sabem que ela foi raptada!
Segundos depois, empurrando Malone que estava bastante desnorteado, Brunner viu Shively a atravessar o pórtico. Brunner foi à porta chamá-lo, mas Shively, alertado pela confusão, irrompia já na sala.
- Que se passa? - perguntou Shively, aborrecido.
Brunner, sem conseguir falar, foi aos saltos até junto do texano, conseguindo finalmente gaguejar:
- Anunciaram. estão a anunciar. nas notícias. acabei de ouvir. eles quebraram o acordo.
- Merda, acalme-se, fale sem se excitar!
- Nas notícias. - disse Brunner. - Acabaram de dizer que Sharon Fields foi raptada! A Polícia. a Polícia já entrou em acção!
Shively olhou para Malone.
- Que raio está o velho a dizer? Ouviu alguma coisa?
- Não. Acabei de entrar. espera, vão repetir um importante boletim noticioso. é o Sky Hubbard. talvez diga alguma coisa.
Os três homens reuniram-se à volta do aparelho de televisão, esperando.
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Sky Hubbard, tendo como fundo uma fotografia projectada de Sharon Fields, falava de novo.
- Para os nossos telespectadores que só agora abriram o aparelho trazemos aos vossos écrans este noticiário exclusivo, obtido de fonte segura da
Polícia de Los Angeles. Fomos informados de que a famosa actriz de cinema,
ídolo de milhões, a inimitável Sharon Fields, foi raptada. Foi exigido um
resgate em troca da sua libertação; a Polícia de Los Angeles entrou agora em
acção. Apesar de as circunstâncias que envolvem o crime çó nos terem sido
desvendadas, é do nosso conhecimento que a Polícia empreendeu investigações e
rusgas intensas. Desde o rapto da criança Lindbergh, em Hopewell, New
Jersey, em 1932, que não havia um caso idêntico envolvendo um nome tão famoso e querido....
Histérico, Brunner saltou para o aparelho e desligou-o.
- Não quero ouvir mais! - gritou. Saltou como uma mola, gritando histericamente.
- Eles vão-nos apanhar! Temos de fugir rapidamente....
deixamo-la ir.... temos de sair daqui, fugir, desaparecer!
As mãos de Shively agarraram a camisa de Brunner, levantando-o.
-Cale-se, estúpido, cale essa estúpida boca!
Sentindo-se ameaçado, Brunner ficou imediatamente mudo.
- Assim é melhor - replicou Shively, libertando-o. - Não sei como eles
souberam, mas não é nada de especial, não é o bastante para nos afectar. Se
soubessem mais teriam dito os nossos nomes. Por isso, acalme-se e ouça. Lá
porque aquele tipo falou acerca do rapto, isso não quer dizer que eles saibam quem somos. Que
podem eles saber? Não sabem quem o fez ou onde nós estamos. Estamos tão seguros como antes. Por isso ouça. Não vamos fugir, ouviu?
Ficaremos aqui até o Howie regressar com a massa. Quando a tivermos na mão, então separamo-nos.
Os dentes de Brunner batiam.
- Q.... quando?
- Acalme-se. Esta noite. Vamos dividir a massa e sair daqui esta noite.
Isto não o faz sentir-se melhor?
-S.... sim.
Shively virou-se para Malone.
-É melhor termos o televisor ligado.
- Também acho - concordou Malone, indo ligá-lo outra vez.
Shively olhou à volta, e viu Brunner recuando, tentando sair da sala.
- Onde pensa você que vai? - perguntou Shively, asperamente.
Brunner ficou parado. Apontava um dedo para a sala de jantar.
- À cozinha.... para a cozinha. Acho.... acho que vou preparar uma bebida forte.
- Está bem, prepare, e depois volte para aqui, para o termos debaixo de olho.
- Está bem, está bem - respondeu Brunner -, volto já.
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- É um cretino - disse Shively, abanando a cabeça, enquanto o via sair da sala.
Malone puxou uma cadeira para perto do aparelho de televisão.
- Não estou a gostar disto, Kyle - disse ele.
- Quem é que está? - Shively puxou uma cadeira para ele. - Mas, se pensar friamente, verá que nada mudou. Já sabem que ela foi raptada. E depois? Ninguém lá de fora sabe mais pormenores. Estamos safos até esta noite. Sairemos daqui sem chatice e com os bolsos cheios dele, mas só se tivermos cabecinha.
Malone apontou para o écran do televisor.
-O Sky Hubbard outra vez. Vamos ouvir.
Uma vez mais, Sky Hubbard repetiu o boletim. Ouvindo-o, Shively rosnou.
-A mesma merda, não sabem nada. Não há razão para nos assustarmos.
- Parece-me que você tem razão - concordou Malone. Shively olhou à volta da sala.
- Olhe, onde é que se meteu aquele gajo? Onde está o Brunner?
-Provavelmente a embebedar-se.
Shively deu um salto.
- Eu disse-lhe para voltar para aqui. Vou metê-lo na ordem. Entrou na cozinha. Nada de Brunner. Viu o outro quarto, e, depois, a casa de banho. Nada de Brunner. Foi ao quarto pequeno. Vazio. Correu para a sala e subiu o corredor a correr, abriu a porta do quarto de Sharon, pôs a cabeça dentro, assustando-a. Não, ali também não. Sem palavras, fechou a porta e trancou-a de novo. Saiu também a correr, para fora, para a frente da casa, e procurou, dando uma volta inteira à casa.
Por fim, voltou à sala. Estava lívido.
- Sabe uma coisa? - perguntou a Malone. - Aquele filho da puta do Brunner desapareceu, fugiu.
- Tem a certeza?
- Não está aqui, nem preparou nenhuma bebida. Ficou com medo, quebrou a sua palavra e fugiu sozinho pela porta de trás. Nesta altura, vai, com certeza, a descer a montanha para ir buscar o carro pequeno e fugir para casa.
- Que vamos fazer?
- Eu sei o que não devíamos ter feito. Não o devíamos deixar ir ainda embora, pois pode parecer suspeito. Além disso, acordámos em que ele sairia de Los Angeles. Temos de o ter debaixo de vista, temos de ficar unidos até ao fim.
- Também acho.
-Está bem, você fica aqui, fica a tomar conta dela. Eu vou procurar aquele filho da puta. Não o vou deixar à solta, aquele doido. Hei-de apanhá-lo. Acalmamo-lo até o Howie chegar, e, depois, podemos sair tal como o previsto.
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Dizendo isto, Shively saiu de casa a correr, e depressa desapareceu de vista.
A sala, que fora convertida em escritório nas traseiras da casa de Fields,
era alegre, agradável. A mobília pintada à mão tinha tons vivos. Em cima da
mesa antiga francesa, que Nellie Wright usava como secretária, havia um
telefone cor-de-rosa, uma máquina de escrever eléctrica portátil, e um jarro
com rosas vermelhas. Uma das paredes tinha dois retratos emoldurados, o
primeiro era um óleo de Sharon Fields assinado por Chagall, o outro uma
aguarela de Nellie assinada por Sharon Fields. Durante uma boa parte do dia,
o escritório era banhado pelo sol, que entrava pelas duas janelas de canto.
Qualquer visitante que entrasse no escritório de Nellie para discutir um
assunto reagia inevitavelmente a este ar alegre, ficando bem disposto e jovial.
Mas, neste momento, nesta tarde de 4 de Julho, o escritório de Nellie
Wright parecia uma sala mortuária. Havia um ar pesado, suspenso, na sala.
Zigman, com a cabeça nas mãos, estava profundamente abatido. Nellie,
normalmente alegre e optimista em qualquer situação, era um exemplo de
desolação. Até o Tenente Wilson Trigg havia caído numa sombria introspecção.
Só o Capitão Chester Culpepper não tinha sucumbido à melancolia.
Quinze minutos antes, ficara visivelmente abalado com as primeiras notícias dos seus homens de Topanga Canyon, que recebera via centro de
comunicações dos escritórios da Polícia, no centro da cidade. Mas recompôs-se logo a seguir. Como veterano, recusava deixar-se vencer pelos obstáculos. Como sempre, a sua resposta a qualquer falhanço era a duplicação de
esforços para conseguir alcançar o objectivo.
Depois de saber que o raptor que fora levantar o resgate não fora apanhado
vivo, por se ter suicidado com uma espingarda, Culpepper praguejou a má sorte entre dentes. Mas depois transformara-se num furacão de actividade.
Encarregou o Tenente Trigg de fazer uma série de trabalhos de
emergência:
Contactar o agente Westcott do FBI, relatar-lhe o caso, mandar-lhe imediatamente cópias das cartas do resgate, e pedir-lhe que as enviasse à sede
para serem examinadas e decifradas. Arranjar mais três carros-patrulhas para
ali ficarem, e uma equipa de trabalho para começar a investigar todas as cartas
ameaçadoras enviadas a Miss Fields para os estúdios. Pôr pssoal a contactar
amigos e conhecidos dela, para obter informações várias. Informá-lo para ali
da identidade do cadáver de Topanga Canyon. Encarregar Mrs. Owen de
transmitir na rede CLETS aquele boletim acerca de Miss Fields.
- Faz isto já.... antes de o público tomar conhecimento: Quê? O López
diz que o Sky Hubbard emitiu a notícia acerca do rapto de Sharon Fields há já vinte minutos? Que chatice! Ainda bem que ele não sabe mais pormenores!
413
assim, podemos trabalhar à vontade diz aos rapazes para não darem com a língua nos dentes. Vai andando!
Trigg saiu da sala a correr, e a máquina da autoridade começou a andar a alta velocidade.
- Para que serve tudo isto? - Queixou- se Zigman. - O senhor foi o próprio a admitir que, se perdêssemos o jogo, talvez não tivéssemos tempo para salvar Sharon.
Culpepper tinha consciência da realidade. Havia muitas coisas contra eles.
- Mas o último relatório diz que o tipo que foi buscar o dinheiro não tinha nenhum acompanhante. Não foi visto ninguém a fugir da zona. Se tivermos sorte e se a pessoa que está a guardar Sharon Fields, caso haja alguém, não tiver conhecimento da nossa emboscada, então estaremos a ganhar tempo.
- Quanto? É essa a questão - retorquiu Zigman. - Os órgãos de informação já sabem do rapto. Descobrirão o que aconteceu em Topanga. O bloqueamento das estradas, os helicópteros, a ambulância, eles descobri-los-ão.
- Sim, é isso, talvez até já saibam - admitiu Culpepper.
- Dirão na Rádio, na Televisão, nos jornais - insistiu Zigman.
- Mas a pessoa que está a guardar Miss Fields pode não ter rádio ou TV, ou, se tiver, talvez não tenha o rádio ou o televisor ligado. Mesmo se ouvir o que aconteceu em Topanga, ainda nos resta meia hora, talvez uma hora.
- Que horror! - exclamou Nellie, com lágrimas nos olhos. - Pobre Sharon, oh! pobre, pobre querida!
O telefone tocou, Culpepper sentou-se na cadeira, e pegou no telefone.
-Fala o Capitão Culpepper. - Uma pausa. - Está bem, transmitam. Ficou ao telefone, respondendo com monossílabos, tirando notas para o bloco. Finalmente, disse:
- Já tomei nota, obrigado, Agostino. Estou por aqui, vai contactando. Quando desligou, disse para o Sargento Neuman:
- Já têm a identificação do homem. - Dirigiu-se a Nellie e Zigman com o bloco amarelo à sua frente. - Howard Yost, 41 anos de idade, 1, 80de altura. Pelo que conseguiram reconhecer. ele deu um tiro na cabeça. tem cabelo castanho, e parecia usar um bigode falso. O cadáver foi para a morgue. - Culpepper reviu as notas no bloco, e continuou. - Passado estável. Frequência da Universidade da Califórnia, Berkeley, jogou futebol no Rose Bowel e era Agente de Seguros independente para a Companhia de Seguros Everest Life.
- Uma boa e respeitada firma - interrompeu Zigman.
Culpepper abanou a cabeça.
- Yost era proprietário da sua casa em Encino. Era casado há catorze anos e ainda estava casado. A mulher chama-se Elinor Kastle Yost. Dois filhos Timothy, 12 anos, Nancy, de dez. E. sim. além de pequenas
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multas de trânsito, não tinha cadastro. Até agora; limpo. - Abanou a ca beça. -Obviamente, é um criminoso sem prática.
- Que. que levará um homem a fazer uma coisa dessas - explodiu Nellie.
- Não sei, não sei - suspirou Culpepper, batendo com o bloco na mesa.
- Talvez estivesse em apuros financeiros - sugeriu o Sargento Neuman. Culpepper franziu as sobrancelhas.
- Talvez. - Dirigiu-se a Zigman e a Nellie mais uma vez. - Claro, o dinheiro do resgate foi recuperado. Está intacto.
- Para o diabo o dinheiro - exclamou Zigman.
-Foram encontradas chaves de carro no bolso da vítima. Talvez já tenham até encontrado o veículo, e isso talvez nos dê uma pista. Os detectives estão a caminho da casa de Yost para informar a mulher e para a interrogar. Talvez isso nos dê também uma pista. Claro que os nossos homens vão entrevistar também durante a tarde os vizinhos dele, amigos, colegas do escritório, vão tentar saber alguma coisa. Temos de ser pacientes.
- Pacientes - gritou Nellie. - Com o tempo a passar, e a Sharon à beira da morte, se não estiver já morta.
- Lamento, minha senhora.
- Oh! Peço desculpa. retorquiu Nellie depressa. - Sei que os senhores estão a fazer o que podem.
Zigman procurou outro charuto.
- Quando é que a carta estará decifrada?
Culpepper virou-se e olhou para o relógio em cima da secretária de Nellie.
- Dentro de hora e meia. Talvez mais cedo, se tivermos sorte. Nellie tirou o lenço do bolso.
- Tarde de mais - disse, assoando-se. - Oh, meu Deus, sinto-me tão responsável, tão culpada, por não conseguir lembrar-me do código.
Culpepper olhou fixamente para ela.
- Se é que há um código, Miss Wright - disse sem provocação, quase para ele próprio. - A senhora tem estado preocupada. todos nós estamos por vezes preocupados, e a nossa memória passa-nos umas rasteiras.
Nellie Wright inclinou-se para a beira do sofá.
- Capitão, a carta vinha em código. Não sou assim tão louca, sonhando com coisas que não existem. Lembro-me agora perfeitamente. foi na manhã após as filmagens de uma fita. vi na minha secretária, onde o senhor está agora, um bilhete que não fazia sentido nenhum, até que reparei que ela tinha assinado Sharon Lucie Fields, em homenagem à heroína do seu último filme. Por isso.
Nellie parou abruptamente. Para surpresa dela, o Capitão Culpepper estava de pé, olhando para ela, com uma expressão estranha na cara.
- Miss Wright - disse ele, suavemente -, na manhã após as filmagens? Diga-me, que filme era esse?
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Desnorteada, surpreendida, Nellie fixava-o.
- Porque. porque. o código entrava no filme. fazia parte da história. Foi. foi assim que ela o apanhou e que começou a utilizá-lo. - De repente, pôs a mão na boca. - Oh, meu Deus. - gaguejou.
Zigman saltou.
- Nellie, por amor de Deus, porque não nos disseste isto antes.
-Tinha-me esquecido. Oh, Deus, perdoa-me. Sim, claro, foi tirado do filme, de um dos seus primeiros filmes. Um. um filme histórico. onde ela tinha de enviar uma mensagem em código para salvar o seu pai adoptivo da guilhotina. pedindo socorro através do nome Lucie , nome do meio, um nome em código.
Culpepper quase a empurrou, insensível, duro.
- Que filme? - perguntou outra vez.
Nellie Wright ficou inerte, sem expressão, o cérebro a trabalhar por detrás dos seus olhos.
Todas as pessoas na sala esperavam, observando-a, sem dizer palavra, sem emitir um som.
Subitamente, Nellie respirou fundo, os seus olhos ficaram grandes, os seus lábios tremendo.
- Já sei, agora já sei - disse, excitadamente. - Era sobre a Revolução Francesa. Sharon fazia o papel de filha adoptiva de um nobre perseguido por Danton. ela escondeu-os e tinha de comunicar qualquer coisa a um diplomata que ia partir. mandar-lhe uma mensagem do. do. do asilo do Dr. Bel- - Histericamente, bateu as palmas. - Já consegui! The Clients ofDr. Belhomme. O filme chamava-se The Clients ofDr. Belhomme
Culpepper agarrou-a pelos braços.
- E de certeza que o código estava naquele filme?
- De certeza! Era próximo do fim. foi assim que Sharon começou a utilizá-lo. - De repente, num rasgo de excitação, ela desprendeu-se dos braços do Capitão, quase tropeçou nas pernas de Zigman, tentando sair do quarto. - Sei onde está! Tenho os argumentos dos filmes de Sharon todos arquivados. O código vem todo explicado no argumento....
Ela tinha alcançado as estantes embutidas no lado oposto da sala. Inclinou-se para a frente, verificando a primeira prateleira. Percorreu com os dedos volume a volume, os enredos, todos encadernados em pele azul e gravados a ouro.
- The Clients ofDr. Belhomme - gritou ela, e os seus dedos tiraram o volume para fora, enquanto os outros se reuniam à sua volta.
Virava as páginas em direcção ao fim.
- Era perto do fim em qualquer lado, um pouco antes do clímax. Era uma parte cheia de suspense. Lembro-me. lembro-me bem, não posso estar errada. Sharon finge, com os outros, que é uma lunática internada num asilo. Envia uma enfermeira cá fora com uma mensagem em que pede, supostamente,
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um medicamento. Ela tinha medo de escrever a verdade, revelando o '
o esconderijo e a maneira como deveriam ser salvos. Tinha medo de que os
revolucionários do Terror soubessem dos seus planos e.... e que os
apanhassem. O pai dela lembrava-se de um código secreto, não complicado, e que já era usado pelo Rei Luís XIV. Explica-o a Sharon. Ela usa-o e....
A voz abafou-se-lhe.
Leu para si própria, sacudiu a folha, as sobrancelhas franziram-se-lhe.
-Oh, que maçada! -exclamou ela, fechando o volume com força. - Fala no código, mas não explica como funciona.
- Mas o que.... - começou a perguntar Culpepper
- Só diz Cena dois - Final Gisèle e o Conde de Brinvilliers, enquanto ele explica a Gisèle o código secreto que havia aprendido na sua infância. Ela repete-o ansiosamente, e começa a escrevê-lo. Próxima cena: ela
dá a mensagem em código à enfermeira do manicómio, que a vai levar à Embaixada Americana em Paris. Isto não faz sentido, porque se vê o código no filme.
A sua cara gorda pareceu abrir-se e cintilar com um sorriso triunfante, o primeiro dessa tarde.
- Lembro-me agora - disse ela a Culpepper, com um tom calmo e confiante. - Claro. O argumentista conhecia um código que não satisfazia o
realizador, porque não seria facilmente compreendido pelo público. Por isso
arranjaram um criptógrafo para servir de consultor técnico para esta cena e a
quem depois mandaram embora. Foi tudo conferido pela Sharon, o realizador
e o argumentista ou o seu substituto; a nova versão deve estar anotada no
argumento que está no estúdio.
-Isso não é invulgar? - perguntou Culpepper, que não estava dentro dos mistérios da indústria do cinema.
- Não - disse Nellie, distraidamente -, não, faz-se sempre isso....
acrescentar diálogos.... teremos de.... - deu um estalo com os dedos. -
Esperem, esperem, temos uma cópia completa de todos os filmes de Sharon
aqui em casa, no compartimento particular onde ela também guarda as peles. Deve também haver uma cópia deste filme. Temos de passar a última bobina
para sabermos o Código. Está nessa bobina, tenho a certeza. Félix, leva toda a
gente para a sala de projecção. Vou procurar o filme, o Patrick pode projectá- lo.
Saiu da sala, quase a correr, gritou da porta, quase sem respiração,
olhando para Culpepper.
- Capitão, ainda temos tempo?
- Não sei. Mas agora.... bem, temos mais uma hipótese - respondeu Culpepper, franzindo a testa.
Dez minutos depois, estavam todos sentados, esperando ansiosamente, dentro da sala de projecções de Sharon Fields.
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Nellie Wright sentou-se entre o Capitão Culpepper e Félix Zigman no comprido divã forrado de pele, no fundo da sala. Abaixo deles, em cadeiras separadas, estavam o Tenente Trigg e o Sargento Neuman.
Como que hipnotizados, observaram o écran a descer do tecto, em frente deles.
A sala escureceu.
Entretanto, ouviu-se pelo intercomunicador a voz de Patrick O'Donnell, dizendo:
-Estou pronto, Miss Wright.
Nellie carregou num botão do intercomunicador, embutido no braço do divã.
- Podes seguir, Patrick!
Imediatamente, o écran branco se encheu de cor.
Viu-se a Praça Luís XVI, com a multidão a mover-se, o lugar agora conhecido como Praça da Concórdia, enquanto a câmara mostrava o gordo e doentio Rei Luís XVI a subir os degraus da guilhotina. Os dedos de Nellie apertaram o braço do Capitão Culpepper.
- É uma destas cenas - murmurou. - Vejam.
O interior do manicómio do Dr. Belhomme. Sharon, linda, infeliz por causa de uma mensagem que tinha escrito. - Não havemos de lhes conseguir passar isto. Vão descobrir tudo.
Um grande plano do velho conde, perdido no pensamento. - Talvez haja maneira.
A câmara recua para mostrar os outros aristocratas fugitivos, todos olhando para ele, esperando.
O conde continuou: um código que recordo da minha infância, que foi inventado por Antoine Rossignol, o matemático, que se tornou um criptógrafo genial na Corte do Rei-Sol. - O conde fica mais entusiasmado.
- O teu amigo, Gisèle. o teu admirador, Tom Parsons, da Embaixada Americana.... ele compreendê-lo-ia. Ele é muito inteligente nestas coisas. Recordo-me de já ter falado com ele acerca deste código. A chave do código reside sempre no uso do nome do meio que o remetente acrescenta à sua assinatura:
O conde levanta-se, aproxima-se de Sharon, senta-se ao lado dela no banco de madeira, e diz: - Gisèle, vou explicar-te isso e depois talvez. talvez possas tentar.
Enquanto a cena desaparecia no écran, a voz de Nellie fez-se ouvir.
- Observem a próxima. Acho que é aqui que ele explica. Quando ela assina a mensagem, verão que Gisèle Brinvilliers põe um nome no meio, e a sua assinatura passa a ser Gisèle Lucie Brinvilliers. O nome Lucie significa que o destinatário do bilhete deverá olhar para uma mensagem em código, escondida em.
- Há alguma razão particular para o nome Lucie? - interrompeu o Capitão Culpepper.
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- Tinham de escolher um nome qualquer - disse Nellie -, acho que foi
escolhido por Sharon, porque ela adorava a heroína de Charles Dickens,
Lucie Manette, do livro A Tale of Twuo Cities (História de Duas Cidades).
Assim, ela....
- Silêncio - ordenou Zigman, apontando para a frente.
Todas as atenções estavam mais uma vez concentradas no écran. A cena desapareceu, via-se agora uma folha de papel, onde Sharon começou a escrever, ouviu-se a voz do conde que, devagar, explicou o código a ser
usado.
Meio minuto depois, a cena tinha acabado.
- Meu Deus, claro, é tão simples - exclamou Nellie. A mão dela carregou no botão do intercomunicador. - Patrick - chamou -, podes parar, volta à cena onde o conde decifra o código e passa-a de novo.
O filme começou a correr outra vez.
- Está bem, é isso - anunciou Culpepper. - Diga-lhe que pode parar e acender as luzes.
O filme parou, e, momentos depois, as luzes foram acesas.
Culpepper levantou-se do divã, pôs-se entre Trigg e Neuman. Agachando-se, agarrou na fotocópia da última carta do resgate que Neuman
lhe passou para as mãos, e pô-la ao lado do bloco, enquanto Nellie e Zigman
se reuniam precipitadamente à sua volta.
- Vamos a isto - disse Culpepper, a voz aumentando tensamente -, eis a chave para decifrar o código da carta de Miss Fields. Sabemos que o uso do
nome do meio, Lucie , significa que há uma mensagem escondida na carta.
O número de letras do nome do meio - Lucie tem cinco - indica que a mensagem em código começa na quinta frase. Depois, anota-se a primeira letra de todas as palavras em cada frase completa. Estas primeiras letras, postas
em conjunto, dizem a mensagem. Quando chegarmos a uma frase onde as
primeiras letras não formam palavra nenhuma, isto significa que a mensagem acabou. Percebe?
- Percebo - respondeu Trigg. Tinha o lápis na mão e consultava a carta.
A primeira palavra a ser captada foi ARLINGTON.
- Arlington? - murmurou Culpepper. - Bem, vamos acabar isto depressa.
A segunda palavra era AGUA. A terceira - MONTANHAS.
- Qual é a próxima? - perguntou Culpepper.
Trigg deu-lhe o bloco.
-Acho que acabou. Não forma palavra.
Cuidadosamente, Culpepper estudou as três palavras: ARLINGTON ÁGUA MONTANHAS. Repetiu-as alto. Bateu na testa.
- Olha lá, Neuman, não é o Sargento López que nasceu numa cidade chamada Arlington, ou qualquer coisa assim?
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- É, é - respondeu Neuman. - López é de Riverside County, e aí há uma cidadezinha chamada Arlington.
- Wilson, chama aqui o Sargento López. não, espera, tinha-me esquecido. mandei-o ao FBI com as cópias das cartas. Vai a um dos carros-patrulha e traz-me um mapa pormenorizado do Sul da Califórnia. Enquanto Trigg saiu a correr, Culpepper olhou fixamente para a mensagem-código de Sharon.
- Água - repetiu. - Montanhas - disse alto. - Montanhas, claro! Arlington está rodeada por montanhas. Claro! É uma zona bastante isolada portanto é normal que eles a tenham escondido aí. Mas água. o que quererá ela dizer com água?
- Suponho que está a tentar localizar-nos em pormenor o sítio - disse o Sargento Neuman. - Ela está a tentar dizer que está perto ou nas proximidades de uma fonte, de um ribeiro, de um lago.
- Sim. Onde se meteu o Trigg com o mapa?
Trigg entrava a correr, desdobrando o mapa e ajoelhando para o pôr no chão, enquanto Zigman e Nellie observavam silenciosamente.
Culpepper e Neuman agacharam-se junto do mapa. Culpepper apontava com a caneta.
- Arlington é aqui. As montanhas Gavilan ficam a 12 km, para o Sul. Água. água, caramba, nunca vi tanta água na minha vida. Há um lago, o Evans, perto de Riverside. Deixa-me ver, vamos voltar às montanhas. Há um reservatório, mas é muito próximo da cidade. E o Lake Mathews - Olhou para os outros. - Também é um reservatório, vocês chamariam água a um reservatório?
- Eu, sim - disse Trigg.
- Está bem. Estes dois outros são um pouco distantes, o lago Perris e o Elsinore. Que depreende disto?
O sargento Neuman puxou do bloco amarelo.
- Penso que ela quer indicar-nos que está nas montanhas e perto de certa massa de água, próximo de Arlington.
Culpepper pareceu concordar.
-Temos muito que fazer. Neuman, informa o chefe da Polícia de Ri verside e organiza o centro das operações algures em Arlington, não temos
um minuto a perder. Trigg, comunica ao Chefe e manda os homens para Arlington, bater os montes e os lagos. Ela é uma rapariga inteligente, esta vossa amiga, deu-nos a oportunidade de a salvarmos. - Engoliu em seco. Não sei se podemos conseguir. Mas vamos tentar, é o mais que posso dizer. Vamos tentar.
Quase a partir, Culpepper olhou para Nellie Wright, e, desta vez, conseguiu um leve sorriso.
- O filme que vimos. Um dia gostaria de ver o resto. Gostaria de saber se ela conseguiu.
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Capítulo decimo Quarto
Perto do centro da cidade de Arlington, no meio de um parque de estacionamento, em frente da loja de Mobílias McMahan, estava montado o laboratório móvel da Polícia de Riverside, com todo o seu auto-suficiente
equipamento operativo.
Dentro da carrinha-laboratório da Polícia, o Capitão Chester Culpepper
movia-se de um lado para o outro, ao longo de uma série de quadros que cobriam as paredes. Em cada quadro havia um mapa de Investigação Geológica
dos Estados Unidos, à escala de 1: 24000, mostrando em pormenor a
topografia de vários sectores de zonas montanhosas à volta de Arlington e diversas outras zonas do distrito de Riverside. Em cada mapa, vinha a classificação das vias, marcadas em cores diferentes, conforme fossem grandes,
médias ou pequenas auto-estradas, e caminhos pequenos. Eram estas ruas que o Capitão Culpepper estava agora a estudar GI
minuciosamente. Havia murmurado para o Tenente Trigg:
- Claro, eles podem ter levado o veículo sem ter utilizado qualquer estrada.
O Tenente Wilson Trigg estava ocupado com os aparelhos, enquanto o
chefe da Polícia de Riverside, Bruce Varney, dirigia de fora as operações
exteriores. Trigg estava rodeado pelo mais moderno e sofisticado equipamento de comunicações. Além dos três telefones em cima da mesa, havia um
rádio emissor-receptor ligado aos carros-patrulha na área, assim como mais cinco outros rádios espalhados pela carrinha. Havia uma máquina portátil
teletipo. Atrás dela estava um aparelho de "video-tape". Nesse momento, Trigg concentrava-se num pequeno monte de papéis,
com informações recolhidas por detectives e homens de patrulha que passaram a pente fino as principais ruas à volta das montanhas Gavilan. Haviam tirado muitas cópias da fotografia de Howard Yost e mostraram-na a todos os lavradores e residentes na zona.
- Não se deve parecer com ele - dissera Culpepper aos chefes da equipa. - Esta foto foi tirada há três anos para a sua carta de condução. Não
conseguimos arranjar uma melhor, a mulher dele desmaiou e está sob o efeito
de calmantes, mas soubemos pela secretária que ele andava normalmente bem barbeado e que usava o cabelo curto. Os nossos testes de laboratório indicam que ele usava provavelmente um farto bigode falso e também suíças artificiais. Os testes também provam que ele tinha pintado o cabelo num tom mais escuro que o seu. Não sei se estas fotos servirão para alguma coisa, mas mostrem-nas.... é o melhor que podemos fazer. Agora, pela expressão do rosto do Tenente Trigg, era fácil perceber que nenhum residente das zonas mais povoadas tinha visto alguém parecido com Howard Yost durante as últimas duas semanas.
Sentados em duas cadeiras desmontáveis, num canto da carrinha, quase
completamente exausto, Félix Zigman, mastigando a ponta de um charuto
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apagado, e Nellie Wright, rasgando distraidamente um lenço de papel, continuavam a observar, primeiro Trigg, depois Culpepper, e o que viram na cara deles não os encorajou.
A descoberta do código, a pista geral sobre o local onde ela se encontrava, serviram-lhes de pequenos balões de oxigénio. A rapidez e a organização da Polícia renovaram-lhes a esperança de encontrar Sharon Fields antes que fosse tarde de mais.
Envolvidos na rapidez da operação, ambos tinham perdido a noção do tempo. Uma hora antes, talvez menos, o maior helicópetero da Polícia de Los Angeles, um A-4 Bell Jet Ranger, com capacidade para cinco pessoas incluindo o piloto, aterrara na propriedade de Bel Air. Zigman e Nellie subiram para bordo com Culpepper. Trigg e Neuman seguiram-nos noutros dois mais pequenos, dois Bell 47-G.
Em constante comunicação com a Polícia de Los Angeles e de Riverside, o helicóptero voou de Bel Air ao centro de Arlington em quarenta minutos, tendo descido no parque de estacionamento da Avenida Magnólia, onde o tráfego era controlado por agentes de motocicleta. Uma multidão de curiosos observava afastada por um cordão de polícias.
Zigman e Nellie seguiram os movimentos rápidos de Culpepper e dos seus ajudantes atravessando o parque de estacionamento, que fora esvaziado e só tinha agora a carrinha. à medida que era necessária mais acção, iam chegando mais funcionários especializados da equipa de Culpepper. Os carros de patrulha pretos-e- brancos da Polícia de Riverside eram também em grande número.
Membros da Imprensa, da Televisão e da Rádio foram convidados a utilizar uma loja vazia do outro lado da rua. Não lhes foi dito mais do que já sabiam, e informaram-nos de que só teriam mais pormenores quando o caso estivesse arrumado.
- Seja qual for o fim disto - repetia Zigman afogueadamente. Dez minutos antes, em virtude de os relatórios vindos de helicópteros-patrulha Bell 47-G terem sido negativos na sua pesquisa intensa através de todas as montanhas circulantes, o Capitão Culpepper decidira concentrar os esforços numa investigação mais localizada.
- Ela desapareceu há dezasseis dias? - perguntou ele a Zigman e a Nellie Wright.
- Faz esta manhã dezasseis dias - confirmou Zigman.
- Está bem - disse Culpepper, chamando, nervosamente, o Sargento Neuman. - Sargento, até agora estamos a zero. Se não conseguirmos uma pista mais concreta, em breve estaremos perdidos. Até agora, as investigações nas montanhas não resultaram nada, e se os raptores de Miss Fields a têm num local escondido durante tanto tempo - dezasseis dias é muito tempo -, devem ter tido necessidade de comprar alimentos frescos. Sempre há uma possibilidade de que talvez um ou dois tenham ido a Arlington para se abastecerem. Parece-me lógico.
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- Acho que vale a pena averiguar - disse Neuman.
- É o que penso. Vamos ver quantos homens temos disponíveis para irem
entrevistar pessoas à zona comercial. Diz-lhes para irem a todas as lojas e para
mostrarem aos caixeiros a fotografia de Howard Yost. Que perguntem especialmente,
também se viram estrangeiros, e se mencionaram vir das
montanhas, ou se pareciam nervosos. Explica-lhes o esquema. Não temos
muitas opções, vamos ver o que conseguimos apanhar em Arlington. Isto fora há dez minutos, e, contudo, ainda não se viam resultados.
O Capitão Culpepper afastou-se dos mapas, meditando.
Willie,há
notícias acerca das entrevistas nas montanhas?
Trigg suspirou, pesaroso.
- Alguns falsos alarmes, nada de concreto. Nem uma coisa.
-Vou lá fora fumar.
Zigman e Nellie sentiam o peso dos minutos.
Depois, gradualmente, a actividade dentro do atrelado começou a aumentar.
Culpepper reapareceu com dois detectives. Haviam estado a investigar as
lojas de Arlington entre outras, tinham visto um antiquário, uma loja de
mobílias, uma loja de reparações de TV, uma escola de Karaté uma mercearia, e duas barbearias.
- Que é que está escrito a seguir às barbearias?
Um dos detectives riscou a nota.
- Pensámos ter uma pista. O barbeiro disse que tinha ido lá um homem
novo e excitado, três dias antes, para se barbear. Disse-lhe que queria estar
com bom aspecto para uma miúda sensacional que acabara de conhecer. Não
conhecia bem o local, aparentemente era um estrangeiro na cidade. Mas as
autoridades de Riverside já tinham o cadastro dele, foi apanhado bêbado a "I'
conduzir um carro roubado e a Polícia Militar tomou conta dele.
Depois disso, Zigman e Nellie foram-se distraindo com os numerosos detectives e agentes da Polícia que iam aparecendo para relatar as suas investigações em Arlington. As fotografias de Yost não diziam nada aos
comerciantes, e, quanto a forasteiros, passavam por lá muitos transeuntes que faziam aquele caminho para as compras.
Nenhum dos visitantes das lojas havia provocado alguma suspeita aos caixeiros.
Agora, estava de volta o sargento Neuman.
Deixa-me ver.... O armazém Wizard de alta-fidelidade. Disseram-me que a foto de Yost lhes era familiar pois um tipo parecido com ele tinha lá ido comprar
um gravador, um mês antes. Fiquei com o nome dele, é um guarda-florestal.
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Na casa de reparações de electro-domésticos, nada. No Banco Security Pacific, levou tempo, mas nada. Ouçam esta. Madame Cole. uma costureira. acabei por saber que era o bordel cá do sítio. - Reparando em Nellie, engoliu em seco e murmurou - Desculpe-me.
- Mais alguma coisa? - perguntou Culpepper.
- Na casa de Especialidades Tawber, houve uma pequena faísca. Um tipo gordo, rico. tinha um Buick novo estacionado lá fora. um homem que nunca tinha visto antes, não se parecia com o Yost. quis caviar Beluga para oferecer a uma actriz que ia jantar a casa dele nessa noite. A loja só tinha duas latas pequenas - não se vende muito - e ele comprou-as e pagou com cheque. Lembravam-se dele porque o cheque não tinha cobertura. De qualquer modo, foi detido por passar outro cheque sem cobertura em Wyoming, e está preso em Laramie; como vêem, a faísca não nos trouxe qualquer luz.
- Bem - disse Culpepper, mirando, por cima do ombro de Trigg, os novos relatórios sobre as investigações aéreas. - Ainda estamos no início.
O Sargento Neuman passou para a última folha das suas notas.
- A minha última visita foi ao drugstore e farmácia de Arlington. Ezra Middleton, o proprietário, encontrava-se ausente, mas estava lá uma empregada que me disse nunca ter visto Yost. Quanto a forasteiros, lembrava-se só de um incidente da semana passada, ela não estava presente, mas Middleton tinha-lhe contado. Um cliente com ar abastado veio comprar um perfume especial francês - não sei pronunciar o nome - que eles não tinham, e também uns rebuçados de mentol - Altoid - que eles também não tinham em armazém, mas Middleton tinha-lhe pedido para pôr esses artigos na lista de encomendas. Também apareceu uma mulher de meia-idade.
- Um segundo. - A interrupção vinha de Nellie Wright, agora de pé, encaminhando-se para perto dos polícias, de testa enrugada. - Não estava a prestar muita atenção, mas pareceu-me ouvi-lo falar de rebuçados peitorais de mentol.
Surpreendido, Neuman disse:
-Sim. Altoid. Nunca ouvi falar neles. Conhece-os?
- Se conheço! Compro-os sempre para Sharon. São importados de Inglaterra e vêm em caixas vermelhas-e- brancas. É difícil encontrá-los, é por isso que estou curiosa. Também falou num perfume francês.
Neuman abanou a cabeça.
- Sim. Escrevi o nome, porque não o sei pronunciar.
- É Cabochard de Madame Grès? - perguntou Nellie, ansiosa.
- É isso mesmo! Como é que sabia?
Nellie virou-se para o Capitão Culpepper.
-Porque é o perfume preferido de Sharon. Se calhar, estou a ser optimista. Há provavelmente milhares de mulheres que usam Cabochard e que também gostam de rebuçados ingleses de mentol fortes.
- Em Arlington, Califórnia - O Capitão Culpepper ficou subitamente
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mais animado. -Não, isto é invulgar. Não é muito normal que esses dois produtos sejam procurados por um mesmo cliente aqui em Arlington, pois não?
- Exactamente - disse Nellie, enquanto Zigman se aproximava.
Culpepper dirigia-se a Neumán.
- A senhora do drugstore não mencionou mais nada?
- Não, acho que não. Não fiz muita pressão, porque não me pareceu um pormenor importante.
Culpepper puxou as mangas da camisa para baixo e abotoou-as.
- Talvez não seja muito. Ou talvez seja. Numa altura como esta, tudo vale a pena investigar. Sargento, esta informação veio em segunda mão! Foi a empregada da loja que lha deu, ou foi o patrão dela que lhe contou isso?
- Foi, foi o patrão, o tal Sr. Middleton, foi ele que atendeu o cliente. Ele já deve estar de volta. Achei que não valia a pena esperar por ele.
- Vamos ver se valeu a pena esperar - disse Culpepper, guiando fir memente o Sargento Neuman para a porta. -Leve-me ao drugstore. Virou-se depois para trás - Miss Wright, Sr. Zigman. acho melhor virem também. Talvez venham a ser precisos.
Cinco minutos mais tarde, com o Sargento Neuman ao volante, paravam em frente do drugstore.
Ao balcão, um homem careca, gordo - parecia ter cerca de sessenta anos -, de nariz adunco e proeminente, fazia um embrulho, falando ao mesmo tempo com uma mulher de aspecto porcino.
O Capitão Culpepper foi directamente para ele.
- Sr. Middleton?
- É só um minuto, por favor - disse o proprietário, sem olhar para cima, continuando a fazer o embrulho.
- Não posso esperar - respondeu Culpepper, abrindo a carteira e identificando-se. - Polícia. Tenho algumas perguntas a fazer. É urgente.
Middleton prestou imediata atenção.
- Polícia. Claro. Ouvi dizer que se passava qualquer coisa lá fora. Esticou o pescoço para trás. - Miss Schomberg! Não se importa de vir acabar o embrulho? Tenho aqui um assunto importante.
Momentos depois, Miss Schomberg substituiu o patrão ao balcão, e Middleton levou o Capitão Culpepper para um gabinete, sob o olhar curioso de alguns clientes.
- Em que é que o posso ajudar? - perguntou Middleton.
- Ainda não sei bem como. - retorquiu Culpepper, fazendo um gesto para o Sargento Neuman; Nellie e Zigman se aproximarem. - Talvez já saiba que foi cometido um crime grave e...
- Ouvi dizer que Sharon Fields tinha sido raptada. Quase não acreditei.
Para a próxima vez, será o Presidente. Ouvi na rádio. Também ouvi que um dos raptores foi morto quando tentava levantar o resgate. Ainda bem.
- Oh, não - suspirou Nellie, olhando para Zigman.
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- Toda a gente já sabe - disse Zigman, abanando a cabeça. - A notícia já se espalhou.
Culpepper tentou ignorar o que eles diziam, concentrando-se no dono do drugstore:
- Sr. Middleton, estamos a investigar o caso e precisamos de encontrar uma pista. Calculamos que os raptores andam por esta zona.
- Por aqui? Bem, agora percebo a excitação.
-Sim. Também achamos que é possível que um dos suspeitos tenha vindo a Arlington fazer compras, por isso temos estado a interrogar todos os comerciantes da cidade. Há questão de meia- hora, o Sargento Neuman visitou o seu estabelecimento. Foi-lhe dito, pela sua empregada, que, há duas
semanas atrás, um forasteiro veio cá fazer umas compras e pediu alguns pro dutos que. bem, não eram vulgares, e que o senhor mandou vir por não os ter em armazém.
Middleton abanava a cabeça.
- Naquela altura achei que era pouco normal para a nossa cidade. Mas nós gostamos de satisfazer todos os clientes, se isto nos for possível, e pedi então a Miss Schomberg para pôr os produtos na lista de encomendas. Ela havia-me dito que tinha vindo cá um detective para fazer um pequeno interrogatório. Por isso procurei a lista onde tinha anotado o nome dos produtos. Ainda a tenho no bolso. - A sua mão, nervosa, procurou na algibeira do casaco e tirou de lá um papel. - Ei-la.
- O cavalheiro que veio cá - disse Culpepper - pediu um perfume, Ca bochard de Madame Grès. Está certo?
-Tenho isso escrito aqui no papel.
-E também rebuçados de mentol, Altoid. Está certo?
- Também pediu isso - respondeu Middleton, satisfeito.
- Mais qualquer coisa?
O dono do drugstore deu mais uma vista de olhos ao papel.
- Sim, senhor. Ainda há outro produto, Largo. Ele disse-me que eram cigarrilhas como.
Nellie atirou-se para a frente, excitada.
- Largo! A marca de Sharon! Há anos que fuma isso. Já não pode ser uma coincidência.
Culpepper levantou a mão.
- Veremos. - Virou-se para Middleton. - Tem mais alguma coisa a dizer?
Middleton dobrou o papel.
- Acho que não. Estou a pensar. Queria uma espécie de jornal de que nunca ouvi falar. Não me lembro do nome.
- Variety? - perguntou Zigman.
- Não me lembro. - De repente, sorriu. - Lembro-me de outro produto que ele comprou. Queria um daqueles biquinis reduzidos que temos por aí na montra. Perguntei-lhe o tamanho. Ele disse que não sabia o tamanho, mas
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que sabia as medidas dela. Deu-mas e eu lembro-me que eram fabulosas. -
Deu um risinho, lembrando- se.
- Quais eram as medidas? - perguntou Culpepper.
-Qualquer coisa de especial. Eram 97-61-94.
Culpepper olhou para Nellie, que estava quase a saltar de excitação.
- São as dela - gritou. - 97-61-94! São as medidas de Sharon!
- Está bem - disse Culpepper, sem mostrar qualquer emoção, mas observando o proprietário.
-Há quanto tempo esteve cá o cliente?
- No princípio da semana. Na segunda ou na terça- feira.
- Acha que seria capaz de o reconhecer se visse a fotografia? - Talvez. Vêm cá tantas pessoas, mas se é o que eu penso, era forte, bem disposto, simpático, de bom humor....
-Sargento Neuman, mostre a fotografia.
Neuman passou a fotografia de Yost ao comerciante. Middleton fixou- a com incerteza.
- Bem, não sei....
- É uma fotografia antiga. Recentemente, usava bigode e talvez o cabelo
mais comprido. O bigode que o senhor vê aí foi pintado....
- Não me é estranho, podia ser ele. Acho que o fulano que veio cá tinha
bigode mais espesso. Tinha óculos escuros, por isso é difícil reconhecer- lhe a
cara. Mas era uma cara grande e uma cabeça como esta.
- O senhor não tem, portanto, a certeza de ser este o homem?
- Não posso jurar. Mas, como vos digo, a cara não me é estranha.... além
disso, vem aqui muita gente.
- Não lhe disse de onde vinha ou para onde ia?
-Não, acho que não.
Culpepper olhou para Neuman, com ar preocupado.
- Bem, acho que é tudo. - Sorriu. - Obrigado pela sua.... ah, mais uma
pergunta, se não se importa. O homem estava só?
- Veio cá sozinho - respondeu Middleton. - Mas quando estávamos lá
fora, vi que veio um amigo buscá-lo.
Culpepper mostrou interesse.
- Um amigo? E o senhor estava lá fora, olhou para o amigo?
- Não reparei bem nele. Estava sentado ao volante de um carro, um buggy . Quase não olhei para ele....
- Um buggy? - repetiu Culpepper. - Foram nesse carro?
Middleton confirmou entusiasticamente.
- Lembro-me disso muito bem, porque ele me disse uma coisa que eu não sabia.
- Conte-me a conversa, Sr. Middleton. - Culpepper fez um gesto para Neuman, para ele continuar a tomar notas. - que é que eles lhe disseram?
- Nada de importância. O homem que fez as compras pagou-me e saiu a
correr. Reparei que ele tinha esquecido o troco no balcão. Já não me lembro
quanto era.
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- Não interessa - disse Culpepper, impacientemente.
- Bem, não quis que ele pensasse que o estávamos a aldrabar. Chamei-o, mas ele não me ouviu porque já ia a sair. Agarrei no dinheiro e corri atrás dele. Ele estava lá fora a pôr um dos embrulhos no carro. Dei-lhe o dinheiro e ele agradeceu-me. Depois reparei no buggy, porque eu também já tive um no meu rancho.
-O veículo tinha alguma coisa de especial?
- Acho que não. O problema com estes carros é que eles são bons para as dunas, terrenos montanhosos, mas são maus para a estrada, porque os pneus não aderem bem ao piso. Uma pessoa que tem um buggy tem de ter outro carro para a cidade e nem todas as pessoas têm disponibilidades económicas para isso. Falei com o fulano acerca disto e ele disse-me que os carros novos já tinham outro tipo de pneus que também eram bons para a estrada. Esses pneus chamam-se Cooper Sixties, e eu fixei isso.
- Olhou bem para eles?
- Sim, mas só hoje. Fui à Conroy e perguntei a um vendedor do stand de automóveis qual a opinião dele quanto a esses pneus. Ele disse-me que eram óptimos tanto para a estrada como para maus pisos.
- Como é a face de rolamento do pneu?
- Não sei bem, mas os tais Cooper Sixty têm um ziguezague característico.
- E os pneus que eles tinham no carro eram novos?
-Em folha, posso afirmá-lo. Estavam em boas condições.
-Lembra-se de mais algum pormenor da conversa que teve com o homem?
- Só me lembro disto. Viraram para a Avenida Magnólia e retiraram-se.
- Em que direcção foram? - perguntou Culpepper.
- Subiram a Magnólia e viraram à direita no primeiro cruzamento - disse Middleton, apontando. - Seguiram esta direcção.
- Esse é o caminho para as montanhas Gavilan?
- É, se viraram outra vez em direcção a Van Buren.
-Muito obrigado, Sr. Middleton. Foi- nos muito útil esta conversa consigo.
Já lá fora, no passeio, o Capitão Culpepper teve dificuldade em esconder a sua altivez.
- A nossa primeira boa pista, desde que começámos as investigações - disse para Zigman e Nellie.
- Agora sabemos que há mais do que uma pessoa envolvida - disse Zigman.
- E o caminho que tomaram - disse Nellie. - Isso também ajuda, não é?
- Tudo ajuda. Mas o elemento mais importante é a marca dos pneus. Virou-se para o Sargento Neuman. - Já sabe o que tem a fazer, Sargento, não sabe? Vá à loja de automóveis, a Conroy, e arranje uma fotografia nítida
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do pneu. Tire-a de um catálogo, mande ampliá-la e tire cópias. Dê uma cópia a
cada um dos carros da patrulha que está na montanha. Diga aos homens para
ignorarem o piso das estradas e para se concentrarem só nos caminhos de
areia e não nas estradas alcatroadas. Os tipos estavam numa zona de acesso
difícil. Quero que todas essas ruas sejam minuciosamente investigadas. Como
os pneus são novos, vai ser fácil verificar as marcas. Arranje também um pneu da marca para comparação. Eles que comecem já, enquanto é dia.
Neuman saiu a correr e foi para o centro de operações, no parque de
estacionamento da loja de mobílias.
Culpepper olhou para Zigman e Nellie Wright, mordendo os lábios.
-Querem saber se agora há esperanças. disse ele.
- Agora já há, não há - perguntou Zigman.
Culpepper respirou fundo.
- Os helicópteros ainda não pararam, estão no ar. A nossa patrulha de
terra já fez toda a espécie de investigações. Nada foi encontrado. Mas aqui
mesmo, em Arlington, conseguimos a nossa última réstia de esperança.
- Isso irá mesmo resultar? - perguntou Nellie, ansiosamente. - Quer saber as probabilidades? Diga-me quantas estradas de areia há
nessas montanhas. Só há o factor tempo a impedir que as probabilidades vençam.
Enquanto se encaminhavam para o atrelado da Polícia, o Capitão Cul pepper consolava Nellie Wright e Zigman.
- De qualquer modo - acrescentou -, pelo menos agora, já temos pistas concretas, não suposições. É melhor do que nada. Parece-me que a sorte se virou para o nosso lado.
Na sala de estar de "Más a Tierra", depois de Shively ter saído para procurar Leo Brunner, o televisor manteve-se aberto enquanto Adam Malone via Sky Hubbard no seu programa especial de noticiário.
A notícia do desaparecimento da conhecida estrela de cinema Sharon Fields abafava todas as outras notícias. Uma equipa da Televisão foi para casa da actriz em Bel Air, tendo-lhes sido impedida a entrada mas conseguiram filmar o movimento intenso dos carros pretos-e-brancos da Polícia. Outra equipa da Televisão tinha ido para os estúdios da Aurora Filmes, tendo-os encontrado fechados, e o produtor de Sharon, Justin Rhodes, estava também fora da cidade. Estas frustrações deram tempo à Televisão para mostrár uma retrospectiva da carreira da famosa actriz.
A preocupação de Malone por o rapto se ter tornado público fora aliviada pela sua absorção nos extractos de filmes de Sharon que estavam a ser passados na televisão. Apesar de já ter visto os filmes todos, gostou de ver de novo estes excertos.
Depois, durante um anúncio, é que percebeu. era quase ridículo ele ter-se esquecido que a pessoa da sua adoração estava debaixo do mesmo
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tecto, não longe dele. Uma vez que não havia mais notícias, Malone desligou o televisor e foi para o quarto de Sharon.
Estava sentada ao espelho, vestindo a blusa e a saia que trazia quando fora raptada dezasseis dias antes. Examinava-se ao espelho, antes de se maquilhar.
Saudou-o com um sorriso forçado.
- Não é vaidade. Ia-me arranjar um pouco para aparecer apresentável antes de dizermos adeus. - Hesitou. - hoje à noite, não é?
-Esta noite ou amanhã de manhã cedo.
-O dinheiro do resgate já foi levantado?
- Penso que sim. O nosso mensageiro deve estar de volta em qualquer instante. Estás. estás muito bonita, Sharon.
-Obrigada. Tu também. Não me dás um beijo?
Ele inclinou-se para a beijar, e ela pôs os braços à volta dele, não o deixando sair. Os lábios dela estavam molhados, macios, a língua envolvera a dele e logo a sua excitação se tornou evidente.
- Queres fazer amor comigo? - murmurou ela. - Talvez seja a última vez.
Ele queria-o verdadeiramente, mas a realidade dos factos desta tarde impedia-o. Tinha de estar preparado para o regresso de Yost e Shively.
-Quero, mas acho melhor não agora.
- Porquê? Vai alguma coisa mal? - Ela soltara-o do seu abraço. Pareces preocupado.
- Tiveste o televisor aberto?
-Desde esta manhã que não o abro.
- Já sabem. já foi divulgada a notícia do teu. desaparecimento e de que há um resgate envolvido.
Ele achou curiosa a reacção dela, a sua cara pareceu iluminar-se espontaneamente, mas talvez estivesse errado, porque um segundo depois ela parecia preocupada e assustada.
- Como é que souberam? - perguntou ela. - É impossível o Zigman ter divulgado.
- Não sei, na verdade não sei. Não há pormenores, só a notícia do. do chamado rapto e de que a Polícia já está a trabalhar no caso.
- Que horrível! É a última coisa que eu queria que acontecesse. Os outros estão muito zangados comigo? Eles têm de saber que eu não sou responsável pelo caso. Não vão vingar- se em mim?
- Não, Sharon, não, não te preocupes. Já te disse, quando o dinheiro cá estiver. e já está a caminho. deixamos-te ir embora. E o mais provável é que seja já esta noite. Acho melhor arranjares as tuas coisas.
- Não vou levar nada. Oh, excepto os teus livros, claro.
Acompanhou-o até à porta, beijando-o longamente; ele saiu e regressou à sala.
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Agora, dez ou quinze minutos mais tarde fez uma sanduíche de queijo, apesar de não ter fom e andou pela sala. Ia abrir o televisor outra vez,
quando a sua atenção foi atraída por Shively, que vinha a chegar.
Marcas de suor cobriam-lhe a camisa que desabotoava, irrompendo pela '
sala. Viu Malone, fez um trejeito, e abanou a cabeça.
- O sacana fugiu. Corri tudo até ao esconderijo do buggy . Olhei por
todo o lado. Nem um sinal. Não sei como conseguiu. Não acredito que ele
fosse tanto à frente de mim. E eu sou mais rápido e mais forte do que ele.
- Talvez o tivesse visto e se tivesse escondido.
- Pode ser. Por sorte, deixou o carro, que ainda lá está. Tive medo de
que ele tivesse desaparecido com as chaves. Agora é que vamos precisar dele quando o Howie voltar.... - disse Shively, que parecia preocupado.
- Onde é que o tipo se terá metido? Estou ansioso que ele chegue com a massa para podermos sair daqui.
-Deve estar a chegar.
- Que estará a atrasá-lo? Trânsito? Trânsito, suponho. Bem, espero que
muito em breve já cá esteja com o cacau . Mas o Brunner, o sacana, vai
ser um problema, espero que não abra a boca e que fique escondido.
- Tenho a certeza de que ele não vai badalar, não se arriscava.
- Bem, quanto a ela é que não tenho a certeza de que irá acontecer o mesmo.
-Ela ficará calada, Shiv. Sei que podemos confiar nela. Ficará tão
contente por se ver livre disto que não terá mais vontade de falar no assunto.
- Não estou assim tão confiante como vocês - disse Shively, azedamente. - Pense mas é que, uma vez que a deixamos ir, temos de ir a casa
do Brunner para ele se pôr a andar daqui para fora com a mulher.... para
Montana ou Maine, ou qualquer outro sítio.
-Falaremos nisso quando o Howie voltar.
-Está bem. Mais alguma novidade na televisão?
- Não. Os órgãos de Informação e a Polícia não sabem mais pormenores,
pelos vistos. Continuam a repetir a mesma história.
- Bem, ao menos, aindá há algumas coisas pelas quais devemos estar agradecidos. Estaremos em boa forma. Só aquele estúpido do Brunner é que
perdeu a cabeça. - Shively mexeu os músculos. - Este exercício todo
abriu-me o apetite. Essa sanduíche que tem aí, é de quê?
- Queijo. - Malone ofereceu-a a Shively. - Tome, acabe-a, só lhe dei
uma dentada. Não me apetece comer.
- De certeza? - Shively aceitou a sanduíche. Mastigando, olhou para
Malone. - Que se passa? Está nervoso?
- Não. Estou um pouco irrequieto, com esta fase final. É tudo. - Acalme-se. Já não falta muito para nos pormos a cavar com a massa. -
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Lambeu os lábios. - Tenho sede. Vou preparar uma bebida, e depois vou ouvir o que eles dizem na televisão.
- Está bem. Não se importa que eu saia por uns momentos? Estou a ficar um pouco tonto, e apetece-me ir dar um passeio a pé, apanhar um pouco de ar e estender as pernas. Talvez vá ao encontro de Howie.
Shively parou à porta da sala de jantar e rosnou.
- Vá lá. Agora veja lá se você e o Howie se esquecem de voltar. Um terço da massa é minha.
-Um terço? E o Leo?
- Está louco? O tipo está fora do negócio, desistiu da sociedade, não leva nada, só o transporte para Los Angeles.
- Como quiser - retorquiu Malone, encolhendo os ombros. Saiu de casa, atravessou o pequeno bosque de carvalhos, e começou a subir o carreiro do vale que dá para o cume do monte. Já lá em cima, atravessou o planalto em direcção ao lago que rodeia o monte Jalpan.
Na verdade, ele não tinha contado a Shively a verdadeira razão que o fizera dar esta volta a pé. Tinha pena do velho. Brunner, no fundo, era um bom tipo, muito estúpido e muito directo, e o seu medo e o pânico que sentiu por o rapto se ter tornado público era compreensível. Na maior parte, as pessoas tornavam-se mais conservadoras com a idade. Também eles tinham ficado mais apreensivos por terem cometido um crime punido por lei. Impulsivamente, Brunner quis desligar-se de qualquer responsabilidade que o Clube de Fãs tivesse tomado.
Malone sabia que ele tinha de ser encontrado e acalmado. Também sabia que era o único que o podia encorajar e que podia convencê-lo de que nada havia a temer. Tinha a certeza de que Shively facilmente teria apanhado Brunner e poderia ter falado com ele, isto é, se Brunner quisesse falar. Não havia dúvida de que ele não gostava de Shively, tinha medo, e, provavelmente, não queria lidar com ele. Brunner talvez tivesse visto Shively a persegui-lo, tendo-se escondido à pressa, só saindo do esconderijo quando viu que aquele tinha desistido da rusga. Depois disto, teria provavelmente continuado a sua caminhada à volta da montanha em direcção à estrada do Lake Mathews, apanhando boleia até Riverside, tendo depois apanhado um autocarro para Los Angeles.
Ao alcançar a picada da montanha, alargou os seus passos para poupar tempo; estava confiante que ultrapassaria o velho. A idade de Brunner, apesar da sua insistência em frisar que estava em boa forma devido às dietas e exercícios físicos, era contra ele. A caminhada era cansativa, mesmo para uma pessoa jovem como Malone, e ele tinha a certeza de que Brunner pararia com frequência para se recompor.
Estava também convencido de que, uma vez encontrado o velho, ele seria capaz de o convencer a voltar a casa, onde então fariam os planos finais mais
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cuidadosamente, e partiriam, tal como tinham chegado.... juntos. Uma
persuasão relembrar a Brunner que, voltando ao grupo, lhe será dada a parte
a que tinha direito no dinheiro do resgate. Dizer-lhe também da necessidade !
de obedecer às ordens de Shively para que este nunca mais lhe apareça à frente. Malone achava que era desnecessária a precaução prevista.... acreditando firmemente em que Sharon não denunciaria Brunner.... mas ainda
tinha de convencer Shively a desistir da sua horrenda solução de alternativa.
Continuando o caminho e procurando o velho por todos os lados, Malone
ensaiava os argumentos que usaria para persuadir Brunner a acalmar-se e regressar a Más a Tierra .
Acima de tudo, Malone estava ansioso por contar a Brunner os pormenores do caso de Armand Peltzer, o engenheiro de Antuérpia conhecido
nos anais do crime por ter concebido um dos esquemas mais engenhosos para
sair ileso de um assassínio. A fim de matar o marido da mulher que amava,
Peltzer encarregou o seu irmão Léon de ser o assassino. Sob a orientação de
Peltzer, o irmão mudou a sua aparência, vestimenta, identidade, fingiu ser
outra pessoa, combinou com a vítima uma reunião de negócios, e assassinou-o. Depois do crime, o irmão libertou-se da sua identidade fictícia.
O crime tinha sido cometido por uma pessoa que não existia. A Polícia não tinha, nenhum suspeito. Lindo.
Seguindo o caminho, Malone pensava no caso.
Bem, o caso Peltzer era o protótipo para o esquema que ele tinha em
mente para Brunner. Tinha de lhe contar a charada de Léon Peltzer. Tinha de
o convencer a informar a mulher de que era suspeito num desfalque e que
tinha de sair da circulação até o verdadeiro culpado ser apanhado. Brunner
tinha de conseguir a cooperação da mulher. Depois, com uma nova
aparência, submetendo-se até a uma operação plástica, arranjando outro
nome, tal como o irmão de Peltzer, montando um novo apartamento e um ;
novo negócio, talvez Brunner pudesse continuar sem problemas em Los
Angeles e manter contacto com a mulher. E, um dia, dentro de um ano ou
dois, depois de o rapto de Sharon Fields ter passado ao esquecimento,
Brunner poderia retomar a sua verdadeira identidade.
Tinha de lhe dizer isto de qualquer modo. Sabia que Brunner aceitaria o
plano, assim como Shively e Yost. Tendo refrescado a sua memória com a
história Peltzer, e desenvolvido a sua aplicação a Brunner, Malone sentiu-se excitado.
Depois percebeu que tinha chegado a um local que lhe era familiar, uma
clareira: à sua esquerda a rocha abrupta, à sua direita o mato denso onde o
pequeno carro havia sido escondido.
Malone parou, convencido de que não estava muito longe de Brunner,
que o apanharia dentro de minutos. Tinha a certeza de que, ao contrário do
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que havia acontecido com Shively, a quem Brunner tinha evitado, ele seria bem recebido pelo fugitivo. Brunner devia saber que Malone era um amigo e aliado e o único que sempre estivera do lado dele.
Quando ia a continuar, sentiu-se preocupado.
Shively tinha-lhe dito que o "buggy" estava num lugar seguro e que Brunner não tinha fugido com ele. Mas, se a teoria de Malone estava correcta, Brunner estaria escondido um pouco atrás, teria deixado Shively passar por ele, teria esperado que este se assegurasse de que o veículo estava no mesmo sítio e que desistisse da perseguição. Depois, teria possivelmente continuado a corrida, chegado ao carro momentos antes, e escapado nele. Nesse caso, a pé, seria impossível apanhá-lo e Malone teria de desistir.
Para ter a certeza de que o carro não tinha sido levado, Malone virou e tomou um desvio na pequena floresta de árvores e arbustos. Uma vez na moita, avançando através da folhagem, reparou que o veículo estava camuflado sob a ramagem, onde Yost o tinha deixado.
Aliviado, dirigia-se para a clareira, quando algo lhe atraiu a atenção. Já tinha feito estudos sobre rastos quando era escuteiro e ainda se lembrava do que se devia procurar. Sempre se podia distinguir quando alguém havia passado por um terreno, mesmo que não deixasse pegadas, se se encontrasse uma pedra que tivesse sido virada. Se tivesse sido virada há algum tempo, o sol teria secado a humidade da parte de baixo. Se tivesse sido virada recen temente, não haveria tempo para o sol a secar e ela continuaria húmida.
E, ali, ao atravessar um carreiro, entre arbustos, Malone podia ver nitidamente que algumas pedras haviam sido viradas. Estavam húmidas nas suas faces inferiores.
Que curioso - pensou Malone, enquanto penetrava na moita. Quem poderia ter estado aqui? Só Shively, vindo atrás de Brunner. Ou até talvez Brunner. Ou, a hipótese pior, talvez alguém mais, um estranho, um intruso.
Enquanto ajoelhava para tocar nas pedras húmidas, os seus olhos iluminaram-se com o que inesperadamente viu. As solas de um par de sapatos.
Rastejando, Malone apanhou os sapatos. Pondo-se de pé, começou a olhar à sua volta. Afastou os arbustos e imediatamente viu um corpo. Era Leo Brunner, grotescamente deitado de barriga para baixo. Tinha um buraco nas costas do casaco e o sangue ainda corria dele, passando pelo círculo escuro que cercava a ferida mortal.
Como num sonho, Malone cambaleou para a frente, ajoelhou mais uma vez, para ver se o seu amigo ainda estava vivo. Virou-lhe a cabeça, rígida, depois viu os olhos sem vida, as pupilas viradas para cima, a boca gelada, a tranquilidade da morte.
Soluçou, cambaleou para trás, levantou-se como uma mola, e correu desesperadamente.
Leo Brunner morto a sangue-frio pelas costas, assassinado.
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Enquanto estava de pé na clareira, tremendo ao calor, o seu primeiro instinto foi de autopreservação, fazer o que Brunner tinha tentado fazer, fugir, escapar, sair para sempre de toda aquela história de loucos.
Mas o que o fez ficar no local, o que o impediu de fugir, foi a visão de Sharon, fechada no seu quarto, com os seus lábios quentes e a sua total confiança em si. Ela, a rapariga que ele amava, tinha posto toda a sua so brevivência nas mãos dele, pois ele nunca tinha amado outra, e havia prometido protegê-la; iria fazer com que ela fosse libertada sã e salva.
Pensou nela, só, em casa, nesse momento com o monstro.
Olhou para trás, para a moita, e tremeu.
Este pesadelo era a realidade e estava vivendo dentro dele. A tremer como estava, cobarde como sabia que era, não havia outra escolha. Tinha de regressar a Más a Tierra .
Virou as costas para a estrada que o levaria a Arlington e para a ci vilização, e, com as pernas fracas, começou a andar vagarosamente em direcção ao esconderijo.
Porque o chefe da Polícia do Distrito de Riverside tinha jurisdição sobre a
zona das montanhas Gavilan, e porque muitos dos homens da sua patrulha
conheciam bem a área do Reservatório de Mockingbird e do Lake Mathews, o
Capitão Culpepper concordou em que aquele, Varney, devia seguir o que eles
consideravam agora a última esperança de encontrar viva a vítima do rapto.
Actuando imediatamente, o chefe Varney chamou alguns dos seus carros de
patrulha, e deu ordens para uma frota de reserva se juntar o mais depressa
possível em Arlington. Ali, sem desperdiçar palavras, o Capitão Culpepper
resumiu aos homens qual era a última e única pista sólida, e, depois, aquele
distribuiu as fotografias ampliadas dos pneus Cooper Sixty que, segundo lhe
parecia, eram os que os raptores tinham no buggy .
Armada com todas as características do veículo, a frota do departamento
do chefe Varney, cujos carros tinham a sua luz vermelha, uma sirene montada na cobertura e radiotelefone, corria em direcção às montanhas Gavilan à
procura de marcas de pneus iguais às da fotografia.
Agora, com o Sol a começar a pôr-se e a luz do dia a fugir depressa, no
carro-patrulha nó 34, junto da entrada do Rancho McCarthy, o subchefe
Foley ao volante observava o seu companheiro, o investigador-chefe Roebuck, de fotografia na mão, voltar para o carro.
Entrando no carro, Roebuck sentia-se desencorajado:
- Algumas marcas de pneus, uma parecia de um jeep, outra de uma
carrinha Chevrolet, mas não há nada que se pareça com os Cooper Sixty.
- Bem, qual é a próxima - perguntou o subchefe Foley, incapaz de esconder a preocupação da voz.
Começaram parando, inspeccionando todas as estradas de areia,
caminhos, carreiros, que se pareciam com uma passagem no lado sul do Lake
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Mathews, e não havia nada que recompensasse a sua investigação intensa e os músculos já doridos.
- Talvez seja melhor avançarmos um pouco, enquanto é dia - alvitrou Roebuck. - Temos de ver esta área toda desde o sítio onde começámos até ao cruzamento de Temescal Canyon.
- Vamos então. - Pôs o carro em andamento, e conduziu-o pelo Rancho McCarthy. - Costumava vir cá bastantes vezes, mas já me esqueci das estradas de areia.
- Penso que há uma que vai para a Rocha Camp Peter.
- Oh, sim - lembrou-se Foley. - Uma vez vim cá com uma miúda, para ver se a paisagem a inspirava.
- Resultou?
- Não, não, dessa vez falhei, não era o estilo de programa dela. - Foley acrescentou - Sabes, essa rapariga parecia-se um pouco com Sharon Fields.
Roebuck abanou a cabeça, duvidando.
-Ninguém é parecido com Sharon Fields. Deus fê-la perfeita. Revolta-me pensar que aqueles sabujos ousaram tocar nela. Imagina, raptar Sharon Fields. Imagina.
-É difícil de imaginar.
- Dava um dos meus tomates para pôr as mãos em cima daqueles gajos. Ficavam feitos em merda. Abranda, Foley, olha. o caminho para a Rocha Camp Peter. Deixa-me primeiro sair e dar uma olhadela para o piso.
Uma vez mais, o investigador Roebuck saiu do carro para inspeccionar o solo e voltou para o carro, frustrado. Tinha havido demasiado tráfego para haver um vestígio claro dos pneus. Agora, virando na estrada de areia, eles conseguiram ver uma pedra fálica feita pelos índios.
- A Rocha Cãmp Peter - anunciou Roebuck. - Pára um segundo e deixa-me dar uma vista de olhos.
O subchefe Foley tinha o carro a trabalhar, enquanto o seu colega, apressadamente, inspeccionava a estrada de areia.
Mais uma vez, Roebuck voltou desanimado.
Foley esperava ao volante.
-E agora? Continuamos ou voltamos para a estrada que nos leva a Temescal Canyon?
O outro mordeu o lábio de baixo, e apontou para a frente.
-Nunca estive nesta estrada. Que há mais além?
-Não sei, mas não me parece que tenha qualquer coisa de interesse. Uma paisagem árida com o monte Jalpan à direita.
- Bem, de qualquer maneira, vamos tentar, vamos andar mais cinco ou dez minutos antes de a luz do dia se ir embora.
- Como quiseres.
O carro continuou a marcha durante mais seis ou sete minutos, enquanto os olhos do investigador Roebuck continuavam a examinar o piso, de ambos os lados.
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Ele continuava a olhar para a frente, quando viu qualquer coisa pelo canto do olho. Bateu no braço do companheiro.
-Pára, Foley. Faz marcha atrás, dez ou quinze metros. Acho que passámos por outra estrada de areia.
- Não vi nada - retorquiu Foley, enquanto fazia marcha atrás. Ali, quase escondido pela densa folhagem de ambos os lados da estrada, havia um carreiro de areia.
- Chamas a isso uma estrada? - exclamou Foley, aborrecido. - Um carro destes não passa.
- Talvez sim, talvez não - respondeu Roebuck, abrindo a porta. - Mas nós não estamos a procurar uma estrada para um carro como este, estamos à procura de uma estrada para um buggy.
-Estás a perder tempo.
-Deixa-me dar uma olhadela, é só um minuto.
Resignado, o subchefe Foley debruçou-se sobre o volante e viu o colega afastar-se ao lado do carreiro, ajoelhar para inspeccionar o piso, compará-lo com a fotografia, depois continuar a examinar o carreiro até desaparecer no mato denso.
Foley tirou o boné, descansou a cabeça na palma das mãos, e bocejou. De repente, ficou admirado por ouvir pronunciar o seu nome. Endireitou-se, olhou pela porta aberta do outro lado, e viu que Roebuck acenava furiosamente para ele, gritando e chamando o seu nome.
Desligou rapidamente o carro, pôs as chaves no bolso, e correu pelo obscuro caminho, indo ao encontro do seu colega.
- Penso que estamos no sítio certo! - gritou Roebuck. - Penso que encontrei!
Enquanto Foley se aproximava precipitadamente, Roebuck curvou-se sobre um joelho e apontou para a fotografia. Depois apontou para a marca nitidamente patente na estrada. Tinha sido feita por um pneu de tamanho invulgar.
- Olha - disse, excitadamente. - Só se estou vesgo, mas as marcas parecem-me idênticas. Olha para elas, conta-as, olha para a configuração, para as margens da borracha. Acho que são iguais.
Foley pôs-se de joelhos ao lado do seu colega. Observou atentamente o piso da estrada e a fotografia.
- Meu Deus - disse ele, em voz baixa -, aposto tudo em como são iguais.
Os dois homens levantaram-se, e, simultaneamente, olharam para a estrada íngreme que se perdia de vista atrás do monte Jalpan.
- Devem ter o carro algures na montanha - afirmou o investigador Roe- buck. - Vamos - continuou, apontando para o carro-patrulha. - Temos ordens para transmitir ao Varney e ao Culpepper tudo o que virmos. - Olhou para cima, para o céu. - Ainda é dia, os helicópteros ainda podem bater a área. É a maneira mais rápida. E, pelo que me disseram, o factor tempo é 437
o que conta, se quisermos ver outro filme de Sharon Fields. Despacha-te, temos que comunicar a descoberta!
Com os pés a doer, amedrontado, rezando pelo regresso de Yost, por um aliado, Adam Malone subia em direcção a Más a Tierra , esperando não ter de encarar Shively agora.
Mas, assim que entrou no vestíbulo da casa, viu Shively e sabia que este o tinha visto. Inexplicavelmente, este dirigiu-lhe um olhar duro, levantou-se da cadeira, e fechou bruscamente o televisor.
Não o podendo evitar, Malone esforçou-se, com relutância, por o empurrar para a sala de estar. Aquele aproximou-se imediatamente, com uma expressão de raiva.
Malone já tinha visto Shively numa das suas explosões de temperamento, mas nunca assim. Aterrorizado, não esperou que o seu companheiro falasse.
- Que se passa, Shiv? Que tem?
- Howie Yost - disse Shively, com voz abafada. - Ele não vai voltar.
-Que está a dizer?
- Foi o que disseram na Televisão. Esses filhos da puta que trabalham para ela têm-nos estado a aldrabar. Os chuis andam à nossa procura. Participaram à Polícia. Fizeram uma emboscada a Howie quando ele ia levantar a massa. Ia a caminho da carrinha quando o apanharam. Os chuis apareceram em helicópteros. Cercaram-no e tentaram apanhá-lo vivo.
A sala começou a girar. Malone agarrou-se às costas de uma cadeira.
- Não, não pode ser.
- Eles não o mataram - continuou Shively, selvaticamente, cerrando os dentes. - Não conseguiram. Louvo o Howie por isso. ele matou-se. graças a Deus. matou-se para não ser apanhado. Isso vai salvar-nos. Perdemos a massa, mas podemos sair daqui sem problemas.
Impressionado, Malone não acreditava.
- O Howie. morto! Tem a certeza? Não pode ser. Os amigos de Sharon. não faziam isso.
- Fizeram. Merda, já lhe disse que fizeram, eu vi. A Televisão mostrou os polícias em Topanga. Mostraram um chui a carregar as duas malas castanhas, e depois o corpo de Howie numa maca, coberto com um lençol, a ser transportado para uma ambulância. Foi entrevistado um sacana que não identificou o corpo, mas disse que era uma das pessoas envolvidas no caso Fields. e depois apareceu outro tipo que anunciou que o defunto era um agente de seguros chamado Howard Yost, de Encino. e que a Polícia estava à procura do resto do grupo....
Malone tentou retomar o controlo dos seus sentidos. A sala continuava a andar à roda.
- Que. que nos irá acontecer a nós?
- Nada, absolutamente nada - grunhiu Shively. - Vamos sair
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daqui assim como chegámos, desde que o Brunner ou aquela gaja não nos ponham a mão.
Com esforço, Malone conseguiu focar a esguia e azeda figura do texano, e, engolindo em seco, disse:
- Brunner.... Você bem sabe que o Brunner já não põe a mão em ninguém. Ele.... - Não conseguiu conter-se. - Acabei de tropeçar no seu corpo.
Se esperava alguma reacção de Shively, enganou-se. Sem o mais pequeno '
sinal de emoção, Shively replicou:
- Há várias coisas que tem de fazer para se proteger. Ninguém olhará por si, se você não o fizer.
Havia tanta coisa que ele tinha tencionado dizer a Shively, mas agora não
parecia importante, e a maior parte delas havia-se desvanecido juntamente
com o medo. Olhou-o e viu-o como uma criança, uma criança incontrolável,
cruel e diabólica, que não conhecia o bem e que estava para além da razão.
Só conseguiu dizer, de uma forma vaga e obtusa:
- Não o devia ter feito, Shiv, não o devia ter matado. Ele estava indefeso
e era incapaz de matar uma mosca.
Shively pareceu não ter ouvido. Tinha ido para a cadeira diante do televisor, e estava a tirar qualquer coisa do bolso do casaco. Por cima do ombro, disse:
- No seu lugar, miúdo, eu não arriscava, não deixava ninguém livre para lhe pôr as mãos em cima.
Ele aproximou-se, e Malone pôde ver o que ele tinha nas mãos. Numa,
um feio e pesado revólver, enquanto a outra revistava cuidadosamente o
cilindro da arma. Era o Colt Magnum l4de coronha de nogueira que Malone
já antes lhe vira uma vez.
A vista da arma arrastou hipnoticamente Malone para diante, até ficar
praticamente frente a frente com Shively. O seu olhar ia da arma para os modos endurecidos deste.
- Que é que está a fazer, Shiv?
- A preparar-me para ter a certeza de que você e eu estamos seguros.
Howard Yost foi-se, Brunner está fora do caminho. Não temos de nos
preocupar nem com eles nem com mais ninguém, só resta a rapariga entre
nós e a liberdade.
Malone ficou espantado e incrédulo. Os seus piores e íntimos receios estavam a realizar-se.
- Não, Shiv - exclamou, com a voz a vibrar. - Não, isso não. Ela está
inocente, não fez nada contra nós. Não pode, Shiv....
- Posso e vou fazê-lo - continuou Shiv - porque ela e a sua gente podem fazer muito contra nós. Podem crucificar-nos. Aquele parvo do Zigman
atraiçoou-nos, encravou-nos bem. Ele é o único responsável, é dos que põem
o dinheiro à frente da vida dela. Faltou à palavra, e fez com que Howie
morresse, deu à língua. Bem, se ele não manteve a sua palavra, nós não
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temos de manter a nossa. Avisámo-lo de que, se ele desse com a língua nos dentes, ela ia ao ar.
- Talvez não tenha sido assim - argumentou Malone.
- Quero lá saber como foi, só sei o que aconteceu. E sei mais alguma coisa. Se a gente dela a consegue recuperar viva, é porque nós estamos mortos e ela não. Ela levá-los-ia directamente à mulher de Brunner, que podia ter ouvido o Leo tagarelar um dos nossos nomes. Ou até mesmo poderia trazer os polícias direitos a nós. Aquela gaja sabe provavelmente mais sobre nós do que pensamos. Não corro nenhum risco com ela, com aquela não. Não deixo a minha vida nas mãos dela.
Agarrou firmemente a arma, olhando para Malone.
- Não há outra maneira, não vê? Também é por si. Quando ela estiver morta, é como se nada disto tivesse acontecido. Pura e simplesmente nada aconteceu. Não ficará ninguém para o dizer, nunca mais teremos de nos preocupar, podemos continuar a viver. Há uma data de vida à nossa espera. Mas não enquanto essa puta dessa actriz estiver viva para nos denunciar.
Fez um movimento para ultrapassar Malone, mas o braço deste fez um esforço desesperado para o fazer parar.
- Não o vou deixar matá-la, Shiv. Você não pode executá-la. Não temos o direito de tirar a vida a ninguém. Já aqui houve matança suficiente.
-Saia-me da frente.
- Shiv, dê ouvidos à razão, ouça-me. Fui eu que comecei esta coisa toda, fui eu que a montei, é minha. Eu, em relação a si, limitei-me a trazê-lo para isto, e você recebeu tudo o que tinha a receber por isso, teve o bastante, não tem o direito de fazer mais nada. Não passa por cima de mim, eu sou responsável por Sharon Fields. Não pode destruir o que é meu, não o autorizo.
Enquanto continuava a tentar impedir Shively de deixar o quarto, sentiu subitamente uma coisa dura contra as costelas, e olhou para baixo.
Shively tinha-lhe metido o cano da arma contra o corpo, o dedo no gatilho.
- Miúdo, você ou está do lado dela ou do meu. Tenho aqui que chegue para rebentar com um urso. Por isso decida-se depressa, se não quer que os seus restos fiquem espalhados pela sala fora. Tenha juízo e não me dê trabalho, ou então apanha o que é para ela. - Olhou para o braço de Malone com um olhar de desprezo. - Baixe o braço - ordenou ele.
Malone sentiu aumentar a pressão do cano da pistola contra as costelas. Lentamente, o braço baixou, caindo sem forças.
- Assim é melhor, miúdo. Você é esperto quando quer.
Shively passou por Malone, e, depois, parou. Durante um fugaz instante, os traços cruéis da sua cara adoçaram- se.
- Olhe, numa altura como esta não há lugar para sentimentos, primeiro está você. O Exército ensinou-me isso no Vietname, e é uma lição que nunca hei-de esquecer. Eu agora vou lá dentro, não pense mais nisso. Volto já, eu
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acabo com isto num instante, ela nem saberá o que é que lhe aconteceu, uma
bala e ficamos livres. Depois, enterramo-la, arrumamos isto, libertamo-nos
de tudo, incluindo impressões digitais, vamos para o carro, baldamo-nos daqui, e acabaram-se as férias.
- Shiv, isso é um erro terrível. Não o pode fazer. Por favor, não....
- Deixe-me cá fazer isto à minha maneira. Você não tem nada com isso,
se isso o faz sentir-se melhor. Eu faço o trabalho sujo. Porque é que não vai
tomar uma bebida forte?
Com isto, Shively voltou-se e desapareceu pelo corredor que levava ao quarto.
Malone continuou enraizado no sítio onde estava, paralisado, como se tivesse sido apanhado uma vez mais na teia de um sonho.
Sharon Fields estava inclinada sobre o aparelho portátil de televisão, o
som baixo, a ver os polícias de uniforme apinhados em Topanga Canyon,
vendo o corpo de Yost, embrulhado num lençol, a ser metido na ambulância,
vendo a desintegração da sua derradeira esperança.
Era como estar em pé sobre o próprio túmulo, a observar-se a si mesma a
ser baixada à terra.
Angustiada por esta súbita alteração dos acontecimentos, estava demasiado agitada para perceber o que é que tinha corrido mal.
De uma coisa estava certa, Félix e Nellie não podiam tê-la atraiçoado,
arriscando a vida dela, sacrificando a sua pessoa a este louco e falhado esforço
público para apanhar um dos raptores vivo. Evidentemente que ela tinha ;
desejado que Félix e Nellie tivessem procurado a ajuda da Polícia, mas esperava que aquela ajuda fosse discreta, e invisível, para a proteger enquanto
estavam a tentar encontrá-la. Mas, agora, a Polícia tinha cometido um erro
crasso, o mundo sabia o que se passava.
Os seus pensamentos foram para os três sobreviventes na outra sala.
Que estariam a fazer?
Saberiam?
O seu olhar incrédulo fixou-se mais uma vez no écran do televisor.
Tentando ouvir o comentário quase inaudível, tentando acelerar qualquer
acção que pudesse ressuscitar as suas esperanças, disfarçar os seus cuidados,
ouviu um outro som que gradualmente abafava o do televisor e desviou a sua atenção.
Tentou descobrir a origem deste segundo som, e então percebeu, mais
por intuição que por outra coisa, que alguém se aproximava da porta dela. Os
passos tornavam-se cada vez mais nítidos, e eram tão aterrorizantes como na
primeira noite em que os tinha ouvido e em que fora violada.
A sua mão foi para o botão do aparelho. Virou-o rapidamente para a
esquerda, e a imagem desapareceu do écran, o som deixou de se ouvir.
O puxador da porta estava a ser virado, e o cadeado aberto.
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Tudo normal como sempre, como se ela não soubesse que as coisas tinham corrido mal.
Sem respiração, sentou-se na cadeira da mesa de toilette, procurou um cosmético, encontrou um bâton, e, a tremer, pô-lo nos lábios.
A porta abriu-se, e ela voltou-se, fingindo surpresa, de sorriso satisfeito.
Era o Shively atravessando o quarto, mas a sua surpresa tornou-se real e carregada do medo que tentava ocultar, porque pela primeira vez ele não se tinha incomodado a trancar a porta, depois de ter entrado.
- Bem, já tinha pensado se aqui voltarias outra vez ou não - disse ela, levantando-se da cadeira para o cumprimentar.
Ele aproximou-se com um sorriso enigmático, uma das mãos no bolso direito das calças.
- Estás bonita, querida - disse ele -, já quase me tinha esquecido como eras gira.
Ela esperou, pensando se ele a iria abraçar, mas ele ficou parado a cerca de dois metros dela.
- Não me beijas? - perguntou-lhe ela.
O seu sorriso continuou.
- Tenho outra coisa para ti.
- Tens - replicou ela, tentando mostrar uma voz agradável. - Posso adivinhar?
- Não sei. Talvez consigas. - Olhou-a de cima a baixo. - Bem, hoje é o grande dia, terei saudades tuas.
Ela tentou perceber se ele era sincero.
- Obrigada. Eu vou também ter saudades tuas. - Hesitou. - Tu. tu sabes como é. partir é sempre triste.
- Sim. - Os pequenos olhos dele fixaram-se na blusa dela. - É pena que esteja no fim. - Ele fez um gesto com a sua mão livre. - Essas maminhas, acho que nunca verei outras iguais, talvez nunca mais veja outras assim.
-São tuas agora, se quiseres.
-Tira a blusa, querida.
- Sim. - Confusa, desabotoou a blusa e tirou-a. Atirou-a para o lado e desapertou o soutien.
-Porque é que usas isso?
- para voltar a casa.
Ele estava em silêncio, enquanto ela tirava o soutien. Ela endireitou-se, deixando-o admirar os seus seios cheios, direitos e os generosos bicos acastanhados. Viu-o lamber os lábios e disse depressa:
- Queres que me dispa toda? Queres fazer amor comigo?
Os olhos dele brilhavam, e o sorriso desapareceu.
- Gostava, querida, mas não há tempo a perder. - O olhar parou-lhe nos seus seios nus. - Vim só para os ver mais uma vez, antes de nos irmos embora.
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Desconcertada, perguntou:
- Queres dizer que já têm o resgate? Que vamos partir agora?
- Nós não vamos partir. Eu vou, tu ficas - ele estava sério. - Tu sabes que não temos nada, sabes que o meu amigo está morto. Sabes que a tua gente nos aldrabou. tentou. tentou passar-nos uma rasteira, não obedeceram ao contrato.
As mãos dela agarraram-se aos seios.
- Não acredito - gaguejou. - Como é que eu havia de saber.
- Tu sabes, minha puta. - Pôs-se ao lado do aparelho de televisão. Ainda está quente. Sabes tudo o que aconteceu. E agora sabes porque estou aqi.
Ela recuou.
- Não....
Shively avançou lentamente para ela.
- O negócio era o dinheiro ou a tua vida. Não há dinheiro, então está bem, também não há vida.
- Que.... que estás tu a dizer - perguntou ela, aterrorizada. - Estou a falar de dente por dente, de justiça. Por tua causa, o Brunner
está morto, o velho está morto. Por causa dos ricaços que trabalham para ti,
Yost.... é esse o nome dele.... o Yost está morto. Só nos resta uma pessoa que
se pode tornar num perigo para nós....
Ela recuou até à parede.
- Não, juro, eu não, eu nunca faria nada.... eu prometo.... eu juro....
- Não percas tempo - disse ele, selvaticamente. - Tu sabes que nos odeias. Sabes que farias tudo para nos apanhares. Mas nós não te vamos deixar, percebes?
Petrificada, sem voz, ela viu a sua mão direita sair do bolso, tirando uma pistola.
Apontando-a na direcção dela, o dedo indicador no gatilho, ele disse:
- Fecha os olhos. Não darás por nada.
Ela encostou-se contra a parede, deslizando suavemente até ao chão,
choramingando, sem conseguir tirar os olhos do cano metálico que a seguia.
Tentou pedir-lhe, explicar-lhe que não queria morrer, não agora, não, por favor.
Nesse instante, outro movimento desviou a sua atenção.
Atrás do executor, à porta, via-se o Sonhador. O grito que lhe ia sair ficou
estrangulado na garganta, enquanto a segunda imagem irrompia depressa
para a frente, de braço levantado, uma faca de cozinha no ar, levantada, a
figura de um louco.
Alertado pelo olhar dela, instantaneamente consciente de que qualquer
coisa imprevista se passava atrás dele, Shively virou-se. Nesse instante, a faca
enterrou-se-lhe bem na carne até ao cabo.
Houve uma explosão enquanto a pistola disparava, despedaçando bocados
de madeira das vigas do tecto.
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Sharon ficara achatada contra a parede, incrédula, de boca aberta, enquanto a cena se desenrolava em câmara lenta.
Shively gritou, os olhos quase saltando, a cara torcida, a boca abriu-se e fechou-se e o revólver caiu no chão. Avançou um passo, grunhindo e agitando-se horrorosamente, a faca saindo-lhe das costas. De repente, e lentamente, caiu sobre os joelhos, os braços pendentes, até o rosto tombar no chão.
Com terror e fascinação, ela olhou de Shively para o outro, o Sonhador; este estava de pé, com a mão que tinha esfaqueado o outro ainda no ar, uma expressão de incredulidade pelo que tinha feito e de nojo pelo que via à sua frente. Como se fosse um robot, começou a recuar, e, depois, involuntariamente, começou a ter espasmos, tentando vomitar, sem conseguir, cobrindo a boca e depois os olhos, enquanto o sangue saía da ferida de Shively.
Da parede, com os olhos parcialmente abertos, Sharon viu a mão direita de Shively mexer-se no chão.
Os seus olhos caíram-lhe nas mãos, enquanto observava com estupefacção.
O animal estava deitado ali à sua frente, com o cabo da faca a ver-se por entre os ombros, a cabeça virada para um lado, os olhos vermelhos, abertos, um fio de sangue a sair-lhe do canto da boca, mas, incrivelmente, a sua mão direita continuava a mexer-se.
A verdade caiu sobre ela. Percebeu que ele não estava morto. O animal ainda estava vivo, a sua força era inacreditável. Os dedos aproximavam-se da arma que estava só a alguns centímetros do seu alcance.
Os seus olhos levantaram-se em direcção ao Sonhador, mas este continuava a tossir incontrolavelmente.
Sharon sabia que a sua vida estava nas suas próprias mãos. Tentou agir, mas os seus músculos estavam inertes, sem força. O seu olhar voltou para a mão de Shively.
Ela abanou a cabeça, moveu-se e atravessou com força o quarto. Os dedos dele tinham tocado na arma, mas nesse instante ela deu um pontapé com força, atirando-a contra a parede.
Este instintivo acto havia sido a recuperação dela.
Sharon sentiu o sangue a correr normalmente, o coração a bater regularmente, sentiu que já estava bem. A correr, atravessou o quarto, ajoelhou e pegou na arma. Ignorando o outro que continuava a sofrer convulsões, virou-se e andou devagar até ao corpo ensanguentado de Shively, estendido no chão. Com a arma na mão, ficou de pé, próximo dele, olhando para o monstro ferido, vendo o sangue a sair pela boca e pelas costas, fazendo bolhas.
Com a ponta do pé, levantou-lhe parte do corpo, e, depois, fazendo muita força, conseguiu virá-lo de lado.
As pupilas dele olharam sem sentido, encontraram-na finalmente e focaram-na.
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Ela sorriu-lhe.
Ele gemia, tentando dizer qualquer coisa, e ela inclinou-se ligeiramente para ouvir o que ele dizia.
Ele implorava:
- Deixa. deixa-me viver.
O sorriso dela aumentou. Endireitou-se.
- Diz isso outra vez, porco. Pede para viveres, pede como eu pedi. A boca dele mexeu-se, tentando formar mais palavras.
- Deixa-me viver. eu não queria fazer-te isso. por favor. não. não.
- Não queres sofrer? - continuou ela. - Não, não te vou deixar sofrer. Vou ser maispiedosa do que foste comigo.
O dedo dela cercou o gatilho do revólver. Ainda sorrindo, ela apontou o cano da pistola para baixo, fazendo pontaria para a sua cabeça, depois, deliberadamente, passou a pistola pelo peito, pelo estômago, depois parou, quando a viu apontada para entre as pernas dele.
- Nãããão. - implorou ele.
O grito perdeu-se com a explosão da pistola.
Silêncio.
A parte inferior do corpo ficou desfeita. O cadáver, o chão, tudo sujo com os restos da carne e dos ossos de Shively. Era o fim da sua vida.
Virou-se, calmamente agarrou no soutien e na blusa, enquanto olhava para o Sonhador pelo canto do olho; pôs a pistola sobre a cadeira. Pôs o sòutien, apertou-o, vestiu a blusa, abotoou-a, e, finalmente, agarrou na arma outra vez.
O Sonhador já tinha recuperado, ela sabia-o, tinha-a observado enquanto ela fizera a execução, e olhava-a fixamente, com uma expressão estranha na sua cara jovem.
Começou a avançar em direcção a ele; depois, parou, subitamente, e ficou à escuta.
Havia um som por cima deles, um novo som que lhe era familiar, o som de um helicóptero a aproximar-se cada vez mais.
O Sonhador também tinha ouvido, e, confuso, olhou para ela. Sharon começou a andar em direcção a ele, enquanto ele esperava. Alcançando-o, não parou, passou por ele, caminhando directamente para a porta, pela primeira vez durante todo este tempo. Á pressa, apanhou as suas coisas, e foi do corredor para a janela. Ficou especada, olhando para o pórtico, para as árvores e para o ribeiro. Ouvia o ruído do helicóptero a aumentar, e viu-o baixar no meio do tom cinzento do entardecer.
O esconderijo havia sido localizado, porque o helicóptero cada vez baixava mais, tentando aterrar numa clareira entre as árvores.
Sharon observou sem emoção a manobra.
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Adam Malone ficara dentro do quarto, perto da porta, evitando olhar para o corpo mutilado de Shively, tentando recuperar a lucidez, tentando perceber os acontecimentos que haviam ocorrido neste dia terrível, o que tinha feito, o que ela tinha feito e o que iria acontecer.
Por fim, quando o barulho do helicóptero aumentou, ele recompôs-se e deixou o quarto.
Viu-a na extremidade do corredor, perto do vestíbulo, olhando calmamente para a janela.
Incrível, incrível.
Sentiu vontade de estar com ela mais uma vez. Caminhou lentamente na sua direcção, parou ao lado dela, e olhou para fora. O helicóptero azul-e-branco estava quase a tocar no solo, e ele conseguia ler o que nele estava escrito. Não ficou surpreendido ao ver que o helicóptero pertencia à Polícia de Los Angeles. Ele sabia que não tinha tempo para nada. Não tinha nenhum sítio para onde ir. Não havia hipótese de fuga.
Virou a cabeça uma vez mais a fim de olhar para o perfil dela, e admirou-se de ela não estar a olhar para as pessoas que a vinham salvar, mas, sim, para ele.
A sua boca tinha um sorriso frio de desdém e triunfo. Revelava qualquer coisa que ele nunca tinha visto nela. Ele pensava que sabia tudo, mas o sorriso mostrou-lhe outro aspecto em que ele nunca reparara.
Para Malone, era o momento da descoberta que lhe mostrou a verdade.
Já não se sentia beatificado pela fantasia, era agora iluminado pela luz cruel da realidade. Pela primeira vez, viu-a pelo que ela era e não pelo que ele queria que ela fosse.
Viu Sharon Fields como ela era, uma puta, dura e desumana. Os lábios dela mexeram-se.
- Tu que és o grande apreciador de cinema. - começou ela. - Bem, o que dizes a isto? - Apontou para o helicóptero. - Aparece sempre alguém para nos salvar, não é verdade, filhinho?
Ele continuou a fixá-la com o olhar.
- Tu. foste tu que lhes deste uma pista, não foste, Sharon?
- És mais esperto do que eu pensava.
- Tu. tu usaste-me para que eu levasse os outros a. a quererem o resgate, não foi?
- Muito inteligente.
- Tu mentiste-me quando disseste que gostavas de mim, não foi? Hesitou. - Tu. tu só te importas contigo, contigo e com mais ninguém, sempre foi assim, não foi?
O sorriso dela era mais frio do que nunca.
- Estás quase formado, pelo que vejo. Vou dizer-te uma coisa. Conheci muitos homens, montes deles. Nunca, nunca conheci um que não fosse um sabujo. Mesmo tu, tu foste mais um. - Fez uma pausa. - Aprendi uma coisa
já há muito, muito tempo. Quem melhor toma conta de mim do que eu própria?
Virou-se para a janela. O helicóptero tinha aterrado, as hélices diminuiam de velocidade, a porta abriu-se. Via-se um homem com um uniforme de caqui, pronto a saltar.
Sharon Fields saltou pela janela.
- Olá, adeus - disse ela, encaminhando-se para a porta da frente, que estava aberta. Saiu, atravessou o pórtico, acenando para o polícia que descia do helicóptero.
Admirado, perdido, Malone pensou na sua sobrevivência, à procura de um meio de fuga. Sabia que não havia hipótese, ela iria contar tudo à Polícia. De qualquer modo, ele não podia continuar ali.
Baixando-se, saiu da sala, foi para o quarto pequeno, depois para a casa de banho, abriu a porta que dava para a garagem, e saiu a correr pela porta de trás. Fugiu pelo meio da vegetação e atirou-se para o chão. Rastejando por entre os arbustos densos, encostou-se a uma colina rochosa que estava atrás de si.
A noite caía, e ele tremia na escuridão, só, assustado, o último membro do Clube de Fãs, esperando pelo fim inevitável do seu sonhodesfeito.
Escondendo-se ali na escuridão, com os músculos doridos, ossos cons trangidos, mente parada, não tinha ideia de quanto tempo havia passado. Meia-hòra, uma hora, talvez mais.
Parecia uma eternidade, até que ouviu as vozes dos seus perseguidores, ouviu abrir a porta da garagem, viu três pares de calças de uniforme e um par de pernas bem torneadas a uma distância de cinco metros.
Uma luz de lanterna subia e descia. Ele conteve a respiração enquanto fechava os olhos para não ver o raio de luz filtrar-se pela mata verde, quase o atingindo.
Vozes outra vez.
- Bem, acho que está tudo em ordem - dizia uma voz forte masculina. Já não há nada que possamos fazer esta noite, Miss Fields. Já está tudo resolvido. Tem a certeza de que está bem?
-Estou perfeitamente, Capitão Culpepper.
- E tem a certeza absoluta de que não havia mais cúmplices, Miss Fields? Malone acocorou-se, para evitar que o bater do seu coração fosse ouvido. Finalmente, ela respondeu, com a sua voz teatral.
- Absoluta, Capitão - disse ela. - Eram três homens, mais ninguém. e agora estão todos mortos.
- Muito bem, Miss Fields, obrigado. - Era a voz do Capitão Culpepper outra vez. - Acho que temos tudo o que precisamos. - Enquanto se afastavam, Malone conseguiu ainda ouvir a voz do Capitão Culpepper. - Miss Fields é realmente admirável. Não conheço nenhuma outra mulher que
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pudesse sobreviver a uma experiência como esta. É tudo o que eu imaginava. Acho que já passou o suficiente. É altura de voltar à civilização e à sua casa. Levamo-la directamente a Los Angeles, para evitar a Imprensa. Mandarei uma mensagem pela rádio ao Sr. Zigman e a Miss Wright para nos encontrarem em Bel Air.
Outra voz masculina.
- Capitão, quer que eu fique aqui durante a noite?
-Não, acho que não é preciso, Sargento. Vamos mandar cá um helicóptero para levar o corpo e, amanhã de manhã, tentaremos localizar o outro. Bem, Miss Fields, um fim feliz como este só no.
A porta fechou-se, e o ruído acabou.
Malone respirou fundo.
Era tarde, passava da meia-noite, quando Adam Malone chegou, meio morto, a Arlington.
Não descansara desde que o helicóptero da Polícia levantara voo e desaparecera; havia saído do seu esconderijo e começara a trabalhar, sem parar.
Com excepção dos fantasmas dos seus colegas que o acompanhavam, ele estava só. Queria perder de vista a paisagem fúnebre de Más a Tierra o mais depressa possível.
Trabalhando em silêncio, depressa e com eficiência, reuniu o resto dos seus pertences, pô-los na mala e limpou todas as impressões digitais. Enrolou o seu saco-cama, voltou ao quarto principal para a última inspecção e viu que o corpo de Shively havia sido coberto com um lençol. Procurou a revista que tinha emprestado a Sharon, da qual havia retirado o seu nome. Rasgou-a e, juntamente com outros elementos de identificação, deitou-a na sanita e puxou o autoclismo. Depois, utilizando uma das toalhas dela, limpou cuidadosamente toda a casa. Tinha acabado o trabalho mais longo de todos.
Depois disso, com a mala e o saco- cama às costas, deixou a casa e subiu o vale. Do cume da colina, olhou mais uma vez para trás, para a silhueta do que ele queria que tivesse sido o seu castelo.
Continuou a marcha até ao monte Jalpan.
Aí chegado, entrou pela moita, localizou, com alguma dificuldade, o buggy e tirou-lhe a camuflagem. Pôs as coisas na parte de trás do carro retirou-o do local, e pô-lo de modo que os faróis apontassem em direcção ao local onde se encontrava o corpo de Léo Brunner.
Depois, deixou o carro, procurou o cadáver de Brunner, e puxou-o pelos calcanhares, pondo-o num sítio onde mais facilmente fosse localizado pela Polícia, quando voltassem no dia seguinte de manhã.
Mais tarde ou mais cedo, os restos do velho teriam o seu funeral. Respeito pelos idosos. Respeito pelos mortos.
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Depois disso, saiu do monte Jalpan, passou a Rocha Camp Peter, parando para se desfazer do saco-cama e dos outros pertences, deixando- os cair num desfiladeiro fundo.
A pequena distância do Rancho McCarthy, saiu da estrada com o buggy e levou-o para uma zona rochosa e isolada. Parou cuidadosamente. Apagou as luzes, limpou o carro eficientemente para tirar qualquer impressão digital. Depois, saiu do local e continuou o caminho a pé, até à estrada que o levaria para os subúrbios de Arlington. Esfomeado, pensou em procurar um local para comer, mas decidiu que o estômago podia esperar.
Perto da auto-estrada, parou numa esquina, esperando que alguém lhe desse uma boleia para Los Angeles. Já era bastante tarde e passavam poucos carros. As pessoas viam um jovem barbudo, de cabelo comprido, com calças desbotadas e não paravam.
Uma hora depois, um velho Volvo, conduzido por um tipo gordo, com ar de estudante universitário, também com barba, parou e levou-o em direcção a Los Angeles.
O tipo não era muito falador. Tinha uma cassette que tocou todos os últimos sucessos de jazz durante o caminho.
Quando chegaram à cidade, perguntou a Malone para onde é que ia, e este respondeu-lhe que ia para Santa Mónica. Como ele ia para Westwood e Santa Mónica não era longe, levou Malone. À uma hora e quarenta e cinco minutos da manhã, Malone estava a dois passos da sua casa.
Sozinho, na rua deserta, pensava, finalmente, por que razão Sharon o teria poupado.
Acabou por perceber. Ela queria fazer de heroína até ao fim, e transformar este interlúdio sombrio da sua vida numa história romântica, vivida por ela, e a história precisava de um herói, nem que fosse um anti-herói.
Compreendeu.
Ele e ela não eram assim tão diferentes.
Havia uma citação muito importante no seu diário. Procurou no seu bolso de trás, e ficou aliviado. O livro estava intacto. E a citação também.
- Há duas tragédias na vida - havia dito George Bernard Shaw. - Uma é não conseguir realizar os desejos do nosso coração. A outra é conseguir a sua realização.
Entrou no apartamento. Estava tudo em ordem. Olhou para todos os cantos, pensando que, nessa noite, ela deveria estar a sentir exactamente o que ele sentia neste momento. uma alegria imensa por ter deixado o mundo doente e violento da realidade e por regressar ao mundo eufórico e pacífico da fantasia, onde tudo o que a gente quer que aconteça acontece, sem mais, nem
menos.
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AGENDA DE ADAM -MALONE - 5 de Julho
Dormi durante toda a manhã.
Cortei o cabelo. Rapei a barba e o bigode.
Sou eu, outra vez.
Passei uma tarde calma e construtiva a ler. Vendo todas as revistas de ánema, fiquei impressionado com umas fotografias que vi. Era a vida, em fo tografias, da jovem e bela actriz Joan Dever, uma rapariguinha com sardas, uma criança sensual de vinte e dois anos. É estranha, enigmàtica.
Uma legenda das fotos dizia que ela era a substituta de Sharon Fields no trono de Deusa do Sexo.
Confesso que concordo. Estou encantado com esta Joan Dever. Decidi recortar todas as fotografias dela. Irei ver todos os filmes em que ela entrar. Vale a pena ver o que isto pode dar. Jà não tenho muito espaço nas minhas gavetas, pois tenho demasiado material acerca de Sharon Fields. Vou deità-lo fora. Assim, terei espaço para a história de Joan Dever.
Agora mesmo, nesta noite, enquanto escrevia este prefàcio, veio-me um
pensamento à cabeça enquanto pensava em Joan. O pensamento era. Valerà a pena reavivar o Clube de Fãs por causa dela?
Sinto-me uma vez mais cheio de entusiasmo e determinação.
Irving Wallace
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