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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FARDA FARDÃO CAMISOLA DE DORMIR / Jorge Amado
FARDA FARDÃO CAMISOLA DE DORMIR / Jorge Amado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FARDA FARDÃO CAMISOLA DE DORMIR

 

   Esta fábula conta como dois velhos literatos, acadêmicos e liberais, partiram em guerra contra o nazismo, a ditadura e a prepotência. Toda e qualquer semelhança com tipos, organizações, academias, classes e castas, figuras e sucessos da vida real será pura e simples coincidência, pois a anedota é produto exclusivo da imaginação e da experiência do autor. Reais são apenas a ditadura do Estado Novo com a Lei de Segurança, a máquina de repressão, as prisões cheias, as câmaras de tortura e o obscurantismo, e a Segunda Grande Guerra Mundial, desencadeada pelo nazifascismo, em seu pior momento, quando se dava tudo por perdido e a esperança fenecia.

 

O SONETO QUE NÃO FOI ESCRITO

 

O poeta Antônio Bruno faleceu, vítima de fulminante enfarte - o segundo em curto prazo -, a 25 de setembro de 1940. A manhã luminosa, de atmosfera límpida e temperatura amena, trouxera-lhe à memória outra manhã assim, diáfana, entrando pela clarabóia, iluminando o estúdio parisiense, envolvendo, rósea e transparente camisola, o corpo nu da mulher adormecida. Visão digna de um soneto, pensara, mas não o escrevera pois a moça despertou e estendeu-lhe os braços.

 

  Ao recordar, tomou do papel e da caneta, e com sua bela caligrafia quase desenhada traçou no alto da página o que deveria ser certamente o título de um poema de amor: A Camisola de Dormir. A lembrança tornou-se dolorosa, a saudade cruciante, ai, nunca mais! O poeta não teve tempo para um verso sequer: levou a mão ao peito, arriou a cabeça em cima do papel, abriu vaga na Academia Brasileira.

 

   O primeiro enfarte o acometera exatamente três meses antes, ao escutar, num programa de rádio, a notícia da queda de-Paris.

 

UMA BATALHA, ÁRDUA E SANGRENTA

 

   Uma batalha, sim, e que batalha! - afirmava, anos depois, mestre Afrânio Portela que, com a idade, se fizera categórico. Por ocasião dos comentados sucessos, argumentara com o caráter mundial da guerra: nela estamos todos envolvidos, dissera, o campo de luta não tem limites de nenhuma espécie, geográficos ou militares; qualquer arma é útil e própria, e a menor vitória acende uma esperança.

 

   Com o decorrer do tempo, octogenário de prosa envolvente e sedutora, de língua solta, conversador sem igual, acentuou-se nele a tendência a ampliar o alcance do acontecido e dos ensinamentos resultantes, proclamando-se, meio a sério meio a caçoar, membro atuante da Resistência Francesa, dos maquis, chefe guerrilheiro - e assim agiu, ao que parece.

 

   Assim teriam agido, aliás, ele e o desabusado professor Evandro Nunes dos Santos, seu comparsa na conspiração e, conforme testemunho do próprio Afrânio, o mais afoito e implacável na segunda fase das operações:

  

   - Eu já me dera por satisfeito, considerando que tínhamos alcançado nosso objetivo, mas Evandro não se conformou, com ele era tudo ou nada.

Mestre Afrânio Portela não esquecia de acrescentar que essa batalha, na qual tinham sido derrotadas as forças internacionais do nazi-fascismo e as forças nacionais da reação e da prepotência, fora não apenas árdua mas também sangrenta.

 

 A CONTINGÊNCIA HISTÓRICA

 

  Batalha, uma simples eleição? Pleito, além do mais, reduzido a uma corporação, a estrito número de eleitores, apenas trinta e nove, os trinta e nove acadêmicos vivos.

  

   Sem querer obscurecer o alcance e a monta da eleição de um novo membro da Academia Brasileira de Letras, assunto de repercussão na imprensa e nos meios intelectuais, dado o inegável ainda que discutido prestígio da entidade, deve-se convir que se tratava de evento de limitado porte num tempo de sucessos históricos imensos e terríveis, pois ocorreu em plena Segunda Guerra Mundial, no ano de 1940, ou seja, quando as tropas vitoriosas da Wehrmacht vinham de dominar a França e a Luftwaffe arrasava cidades e campos da Inglaterra. Para muitos, para a maioria talvez, a derrota das nações democráticas fizera-se irremediável, o colapso total não tardaria - questão de muito pouco tempo. Hitler anunciava um milênio de dominação nazista, ingressávamos nele. Tempo de medo e de desesperança.

 

   Mil anos, quantas gerações de escravos? Os aviões alemães cobriam os céus de Londres, em bombardeio contínuo, os tanques invasores ocupavam o território dos países da Europa, a Polônia  desaparecera do mapa, não mais se ouviam valsas de Viena nem se pronunciava o nome imperial da Áustria, na velha torre de Praga tremulava a bandeira da suástica e no peito dos judeus a estrela-dedavi era uma flor de sangue. Sangue e lama, terror e vilania, protetorados e protetores, a Gestapo, os SÁ e os SS, os campos de concentração, as câmaras de gás, a ignomínia e a morte. Tempo do medo e da desesperança. Tempo de desespero.

 

   No Brasil, sob a Constituição totalitária do Estado Novo, na vigência do estado de guerra, reflexo das vitórias do Eixo, a repressão atingira seu momento de maior brutalidade e obscurantismo. O idílio com a Alemanha nazista determinava a política governamental: completa censura da imprensa, a famigerada Lei de Segurança e seu tribunal de condenações, nenhuma garantia individual, nenhum direito, nenhuma liberdade, o poder de polícia exercendo-se absoluto, sem qualquer restrição. Nas penitenciárias, nas colônias correcionais, nos porões das diversas polícias os presos políticos e a tortura.

 

   Na hora exata em que o Acadêmico Lisandro Leite telefonou, alvoroçado, ao Coronel Agnaldo Sampaio Pereira para comunicar a fúnebre e grata notícia da morte do poeta Bruno, telefonema que deu início à movimentação de forças, o ferroviário Elias, também conhecido por Profeta, nome de guerra, estava suspenso no ar, pendurado pelos escrotos, no Quartel da Polícia Especial. Atletas daquela corporação de choque, baluartes do regímen, queriam que Profeta, preso dois dias antes, citasse nomes, revelasse endereços e ligações. Curiosamente, algumas estrofes de um poema recente, lido em suja cópia mimeografada, concorriam para o obstinado silêncio do prisioneiro, sustentavam-no na prova atroz. Não sustentaram, porém, o poeta Antônio Bruno, que as escrevera, não lhe deram forças para superar o desalento e o desespero.

 

   Diante de tão patético panorama, como levar a sério simples eleição acadêmica, emprestar-lhe outro significado além das futricas e falatórios habituais? Eleitores ilustres, é claro, personalidades exponenciais na vida cultural do país, a imortalidade, o título, o fardão, tudo isso concorre para que a disputa de vaga na Academia Brasileira de Letras seja episódio de ressonância nacional, por vezes motivo de áspera competição. Mas daí a transformar-se em luta sem quartel entre o nazismo triunfante e as debilitadas forças democráticas, vai considerável distância.

 

 Assim aconteceu, no entanto. Mestre Afrânio Portela não mentiu nem exagerou ao falar em batalha e ao referir-se a uma luz de esperança. Quanto ao outro velho literato, autor de alguns ensaios fundamentais sobre a realidade e o homem brasileiros, notáveis pelo conhecimento dos assuntos, pela originalidade do pensamento e pela ousadia das afirmações, Evandro Nunes dos Santos, sendo extremamente individualista, levou o combate às suas últimas conseqüências. Tinha horror a qualquer espécie de arbítrio e de mando, a ponto de evitar o uso do fardão Acadêmico, preferindo comparecer de casaca às sessões solenes. Casaca que ia muito bem com sua consciência civilista e com o seu físico de setentão alto e magro, as mãos ossudas e as sobrancelhas bastas.

 

PERFIL DO HERÓICO CORONEL

 

   Desagradável mesmo foi quando o Coronel, tendo começado a folhear as provas tipográficas, perdeu a cabeça e deixou de representar. Até então, a entrevista decorrera numa atmosfera pesada porém suportável; tampouco se pretende ambiente cordial, troca de amabilidades, gentilezas e sorrisos num encontro entre o Chefe do Sistema de Segurança da ditadura do Estado Novo e um reles jornalista subversivo, suspeito de pertencer ao Partido Comunista e escarradamente judeu.

 

   O rosto descomposto pela ira, nos olhos a fulguração amarela dos sectários, o Coronel tornou-se ameaçador e imprevisível. Agitou o punhado de provas diante da cara magra do indivíduo assustado no outro lado da mesa. No outro lado da trincheira, sendo como era o gabinete do Coronel um campo de batalha. A voz rompeu-se em falsete, esganiçada:

 

   -Cínico! Atreve-se a afirmar que esse pasquim não é comunista! Que acha que eu sou? Um imbecil? - um soco na mesa, um obus ou uma granada.

 

  Em geral, a voz do Coronel ressoa redonda, declamatória, bem empostada, voa! de comando. Seja quando afirma verdades a seu ver indiscutívêis seja quando as palavras, no ardor da polêmica, estalam na face do antagonista com a violência de bofetadas. Voz e gestos medidos, pose de líder. Acontece, porém, o Coronel descontrolar-se e lá se vai água abaixo a imagem do comandante audaz e sereno, duro e competente, impávido. Do imperturbável e heróico Coronel  Agnaldo Sampaio Pereira, o famoso (e famigerado) Coronel Sampaio Pereira.

 

   Homem de ação e de pensamento, provado na luta (na guerra, corrige ele, na guerra sem trégua contra os inimigos da Pátria), autor aplaudido de mais de uma dezena de livros, cinqüentão bem conservado, moreno ligeiramente queimado na cor. Pouco antes, ao ouvi-lo proclamar a superioridade da raça ariana - nós, os arianos, tomaremos as rédeas do universo e o cavalgaremos... -, o jornalista Samuel Lederman, apesar da incômoda posição em que se encontrava, em vez de admirar e aplaudir o lavor e a pujança da frase, não pôde impedir desrespeitoso e temerário devaneio: qual a porcentagem de sangue negro nas veias azuis do nobre ginete do universo? Quanto ao nariz enérgico porém adunco e ao sobrenome Pereira, não acusavam por acaso rastro de cristão-novo, de avoengo semita, convertido a ferro e fogo pela Santa Inquisição? (Tu és um pervertido, Samy, repetia-lhe Da, enrodilhando-se a seus pés.) Sigilosa injúria, ainda bem, pois de nada adiantaria querer discutir a intrínseca qualidade ariana do Coronel.

 

   Sim, porque mesmo sendo ele, com tamanha evidência, brasileiro de muitas gerações e múltiplas misturas de sangue, ao afirmar-se ariano fazia-o com absoluta convicção. Escrevera alentado volume, Por uma Civilização Ariana nos Trópicos - Ensaio de Brasilidade, exaltado pelos jornais de direita e cuja adoção nos ginásios oficiais, na cátedra de Educação Moral e Cívica, lhe garantia sucessivas tiragens e pingues direitos de autor.

 

    Algumas mulheres achavam-no bonito, admirando-lhe os ombros largos, o passo firme, o cabelo negro bem assentado, lustroso de brilhantina, o perfil enérgico sob a túnica impecável. Visto de relance, lembrava certo ator norte-americano, coqueluche da época. Aliás, tinha algo de ator, pois na celebrada postura de chefe inflexível, dotado de inteligência viva, de mente perspicaz, intransigente, desumano se necessário, na defesa das convicções inabaláveis, havia, com certeza, elementos de composição, visíveis na empostação da voz, no acento oratório presente nas frases mais corriqueiras, e no olhar inquisidor, capaz de ler nas consciências culposas. O olhar custava-lhe real esforço, constante atenção, já que possuía um par de olhos redondos, habitualmente inexpressivos, ingênuos, sem malícia.

 

   Certos jornais, ao citar-lhe o nome, precediam-no de adjetivos marcantes e marciais - bravo, denodado, intrépido. Sobretudo a partir da tarde em que o então tenente-Coronel Sampaio Pereira, à testa dos batalhões da Polícia Especial e dos choques da Delegacia de Ordem Política e Social, enfrentara e vencera nas ruas do Rio de Janeiro, Capital da República, ululante e ameaçadora malta de agitadores armados até os dentes com ferozes palavras de ordem, gritos e punhos erguidos, em passeata de protesto contra a entrega pelo Itamaraty dos próprios da Embaixada da Tchecoslováquia às autoridades da Alemanha nazista, após o Pacto de Munique e a ocupação de Praga. Histórica derrota das forças da subversão, determinando o fim das manifestações de massa durante longo período.

 

  Homem de ação, igualmente homem de pensamento com vasta obra de teórico a conquistar-lhe títulos e louvores no campo das letras: um dos mais copiosos e atuantes escritores de sua geração, fecundo pensador político, ensaísta de vôo pinacular e por aí afora. Seus livros faziam a apologia e a propaganda dos regímens fortes, analisavam a decadência e a podridão das democracias, denunciavam o monstruoso perigo comunista.

 

   Os primeiros ensaios, os escrevera ainda membro da Câmara dos Quarenta, ardoroso militante da Ação Integralista. Quando o golpe de 1937 dissolveu os partidos políticos, ele dessolidarizou-se do integralismo, afirmando em artigo: O Estado Novo significa a aplicação na prática da doutrina, dos ideais integralistas, não cabendo assim a existência de uma estrutura partidária, desnecessária e, a rigor, dúplice e provocativa. Por ocasião da intentona de 1938, Sampaio Pereira se manteve fiel ao Governo e não teve dúvidas em mandar prender antigos correligionários. Os últimos volumes publicados propunham-se a servir de base ideológica para o Estado Novo, ameaçado, na pureza dos princípios totalitários e na férrea disciplina, pela comprovada incapacidade do povo brasileiro de levar a sério as grandes idéias e de reconhecer os grandes homens, explicação fornecida por ele próprio ao jornalistaSamuel na primeira parte da entrevista:

   -... fraquezas, perversões, tibiezas de caráter, desgraças devidas à mestiçagem... - tinha horror à mestiçagem.

 

  Segundo- tenente, recém-saído da Escola Militar, escrevera versos românticos e os reunira em raquítico volume. Não detendo então o novel poeta qualquer poder, os críticos da época desconheceram ou malharam o opúsculo. Nem sequer mestre João Ribeiro, tão generoso com os estreantes em seu rodapé semanal, conseguiu encontrar naquelas páginas nada além de rimas baratas e pífios sentimentos. Contudo, anos depois, quando Sampaio Pereira abandonou a poesia pelo ensaio político, o mesmo velho crítico lastimou o acontecido:... antes houvesse persistido em massacrar a métrica e a rima, pois ameaça agora, em prosa chinfrim, a nação e o povo, a liberdade

e o futuro.

 

   Como se comprova, ao lado de tantos admiradores incondicionais e servis, tinha o Coronel detratores que não lhe perdoavam nem a ação pública nem a literatura. Acusavam-no de coveiro da democracia e dos direitos humanos, de desmoralizar a farda que vestia, colocando-a a serviço da reação policial, de chefe nacional da Quinta-coluna, de comandar a repressão política e ordenar torturas, de importar técnicos da Gestapo: diziam-no candidato a gauleiter de Hitler no Brasil.

 

   Orgulhava-se o Coronel tanto dos louvores quanto dos ataques. Cobriam-no de loas e louros os patriotas comprovados, cerne do novo Brasil; os insultos e vilipendies provinham da canalha liberal e comunista.

 

ORDENS SUPERIORES

 

- Ordens superiores, meu caro, não depende de mim, nada posso fazer...

 

   Quando o Diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda transmitiu a notícia da cassação do registro da revista e lastimou não poder ajudar, completando a explicação com um gesto significativo,  Samuel Lederman nem assim se deu por vencido, decidiu dirigir-se diretamente ao Coronel Sampaio Pereira. Dele viera a ordem, tentaria convencê-lo a mudar de opinião. (Tu não tens jeito, Samy, -vais morrer acreditando em milagres, e Da balançava a cabeça de encaracolados cabelos castanhos.)

 

   Nosso Goebbels caboclo é uma besta, considerou o Diretor do DIP referindo-se ao Coronel, mas, fazendo-lhe justiça e revelando certo temor, acrescentou: uma besta sanguinária. Cuidado, para não ir parar na cadeia. Samuca recordou os dias passados nos porões da polícia política, durante a razia do ano anterior, centenas de pessoas presas por ocasião da entrada em Praga das tropas alemãs. Ficara com mais de cinqüenta detidos, apinhados numa cela onde mal caberiam vinte, sem banho, sem cama, revezando-se para dormir sobre o cimento molhado, a comida repugnante servida uma vez por dia, a fedentina permanente: o sanitário era uma lata de querosene. Sem falar nos gritos, perfeitamente audíveis, dos torturados nos interrogatórios, em salas próximas. Nem a incômoda lembrança o desanimou, fora repórter político de um grande diário, possuía relações influentes, chegaria ao Coronel.

 

   - Lembre-se de que, como as coisas estão, não vai ser fácil tirar você da cadeia... - concluiu o Diretor do DIP.

 

   Vale a pena ressaltar a duplicidade política desse indivíduo. Servindo ao Governo em posto tão vital, mantinha inconfessáveis porém evidentes simpatias pela Inglaterra e pela França, protegia tipos tão comprometidos como esse Samuel Lederman, Diretor de Perspectivas, mensário de circulação irregular, o último dos órgãos de imprensa registrados no DIP apossuir vago resquício de esquerda, por fim definitivamente proibido.

 

O CORONEL DESENCADEIA A GUERRA TOTAL E ESTABELECE CRITÉRIOS PARA AS ARTES PLÁSTICAS

 

   Duplicidade política, prova que o Estado Novo não era aquele bloco monolítico, posto a serviço do nazi-fascismo, dos sonhos do Coronel Sampaio Pereira; restos de liberalismo putrefato corroíam o aparelho estatal. Não estava longe, porém, o dia em que apenas ardentes patriotas totalitários, arianos sem mácula, compusessem o Governo. Dia belo e próximo da vitória final: rolariam cabeças, correria o sangue da purificação. Inspirado, de pé junto ao quadro-negro onde está fixado o mapa da Europa, o Coronel declama:

 

  - Exterminaremos todos os inimigos, até o último. Sem piedade! - Fixa o jornalista com o olhar de verruma: - A piedade é um sentimento dos fracos, degradante. - O fero Coronel movimenta os alfinetes de cabeça colorida, levando-os até à fronteira da França com a Península Ibérica. - Concluímos a primeira fase da guerra, com absoluto sucesso; a Europa inteira nos pertence. O Führer, com seu gênio, fincou as bandeiras da cruz gamada no alto dos Pireneus. Na Espanha, temos o glorioso Generalíssimo Franco; em Portugal, o nosso sábio doutor Salazar, cabeça que vale ouro.

 

  Balanço efetuado na primeira fase da entrevista. O Diretor de Perspectivas mantinha-se animado. Antes de examinar as provas tipográficas - matéria toda ela inofensiva, garantira Samuel -, o Coronel quisera demonstrar a inutilidade de qualquer oposição ao nazi-fascismo e desencadeara a guerra total, a blitzkrieg. Mas apesar dos exércitos, tanques, caças, bombardeiros, apesar dos mortos, dos prisioneiros, dos campos de trabalho e de extermínio, das vitoriosas bandeiras da suástica, o jornalista ainda não perdera a esperança de uma solução favorável - diante de tanta grandiosidade, que perigo pode representar uma pequena revista, reduzida à publicação de algumas reportagens, de prudentes artigos internacionais, sobre o New Deal norte-americano, por exemplo, de poemas e contos? O jornalista escuta, atento, não contesta as afirmações do Coronel que, ornado de entusiasmo, passa a prever os dias vindouros, a iminente rendição da Inglaterra, e, depois... Uma pausa para fazer ainda mais solene a informação absolutamente segura, quem sabe provinda do próprio Alto Comando Alemão?

 

  -Depois... Será a vez da Rússia comunista. Para nossas divisões blindadas - dizia nossas divisões com a maior naturalidade, não era o Brasil o aliado natural do Terceiro Reich na América do Sul? - um passeio pelas estepes, de uma ou duas semanas, no máximo... A Rússia desaparecerá do mundo e o comunismo será erradicado da face ia terra!

 

  Tendo conquistado a União Soviética e libertado o mundo do comunismo, o Coronel voltou a sentar-se, marcial e satisfeito consigo mesmo. Lançou o olhar vitorioso para o outro lado da mesa, melhor dito da trincheira, a fim de se regalar com o espetáculo do inimigo aniquilado, constatando com surpresa que o miserável judeu não estava aniquilado. Surpreendeu-lhe um sorriso de troça nos lábios indignos e na voz um laivo de gozação:

 

   - Uma semana, Coronel? Olhe que é muita terra a atravessar... Napoleão...

   - Cale-se!

 

    O olhar de verruma fez-se malévolo e desconfiado, o Coronel fechou a cara, Samuel arrependeu-se mas era tarde (ai, teu caráter, Samy, ainda te causará desgostos, previa Da beijando-o nos olhos). Depois de indigesto minuto de silêncio, o Coronel segurou um punhado de provas tipográficas e, apenas começara a folheá-las, a indignação o dominou:

 

   - O senhor é um cínico! Cada Unha destila veneno... demora-se nos títulos das matérias, nas fotografias, lê pequenos trechos: - Latifúndio, restos feudais, cangaço; pregação marxista, atreve-se a negar? Fotografias de favelas e negros... Não tem no Rio nenhum bairro decente que mereça ser fotografado? Os brancos acabaram-se todos?

 

   - Reportagem sobre samba... - Samuca tenta explicar.

 

   - Cale-se, já lhe disse. Arte moderna! Obscenidades, arte

degenerada! O Führer, corn seu gênio, proibiu essa nojeira. Coisas que tais desvirilizam uma nação, foi por isso que a França se prostituiu, transformou-se num país de efeminados.

 

 Aqueles nus poderosos e violentos ofendem as noções estéticas do brioso Coronel. Ele os repele com nojo autêntico, sincera repulsa, são o oposto do belo. O Coronel admite o nu feminino guando realmente artístico, pintado com inspiração e sentimento.

 

   Samuel aproveita a inesperada crítica de arte para recuperar-se do susto, pensa em restabelecer o diálogo. Mas não chega a falar, pois o Coronel perde de todo a cabeça e esbraveja diante de uma foto de página inteira do Presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt:

 

   - Só faltava isso! É o cúmulo!

   - Mas, Coronel, é o Presidente...

   - Presidente... Judeu a soldo do comunismo internacional, isso sim! Delano é nome judeu, não sabe? Pois nós sabemos!

 

   Repugnado, solta a página onde sorri o abominável estadista, empunha o último maço de provas mas não tem tempo de indignar-se com o Canto de Amor para uma Cidade Ocupada, do poeta Antônio Bruno, porque a campainha do telefone começou a tilintar. Linha privada, exclusiva, conhecida de raríssimas pessoas, usada apenas para assuntos graves e urgentes. O Coronel largou as provas, levantou o fone, ainda exaltado, os olhos fulvos, a voz rachada. Em seguida, porém, revestiu-se de sua melhor imagem, a voz não apenas empostada e calma mas gentil, deferente, quase aduladora. Deve ser, no mínimo, o Ministro da Guerra, pensou o jornalista.

 

ACADÊMICO LISANDRO LEITE, ILUSTRE JURISTA E GENEROSO AMIGO

 

   Enganava-se. Nem Ministro, nem meio Ministro, sequer um militar. Quem se afanava ao telefone, gordo e suado, a cabeleira leonina, era o Acadêmico, Desembargador e Catedrático Lisandro Leite portador de todos esses títulos, tivera a maior dificuldade para obter o número da linha privativa do Coronel.

 

   - Antônio Bruno morreu hoje de manhã, Coronel. Mas eu estava no Tribunal, acabo de saber..,

 

   O Coronel ouve a fúnebre (e auspiciosa) notícia, não consegue conter a excitação, impedir um sorriso. Mas logo se compõe, recolhe sorriso e alegria, afivela a compunção e o comedimento exigidos pela infausta (fausta, faustíssima) comunicação:

   - O poeta Antônio Bruno? Faleceu?

   - Temos a vaga, Coronel!

   - Grande perda para a literatura nacional. Bardo inspirado...

   - Sem dúvida, sem dúvida, um poeta de mão cheia. - Lisandro Leite interrompe o eloqüente epitáfio. Afinal, não se obstinara contra a grosseira recusa de cabos e sargentos que lhe negavam as ligações pedidas, não movimentara meio mundo até conseguir o número secreto para ficar ouvindo lugares-comuns; ainda não chegara a hora do discurso de posse: - ... guarde esses belos conceitos para o discurso, Coronel.

   - Como disse? Discurso?

   - Temos a vaga, Coronel! - dava a notícia com a ênfase de quem oferta um presente raro, de incalculável valor. Sim, não fizera todo aquele esforço apenas para comunicar a morte de um poeta, colega da Academia. Devotado e generoso, vinha presentear seu ilustre confrade e amigo, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, com a vaga aberta, com a imortalidade. Mas o Coronel necessita agir com presteza, não pode perder um momento, tem de entrar em ação imediatamente. Imediatamente!, repete.

  

   Membro da Academia havia mais de dez anos, Lisandro Leite, preclaro cultor das letras jurídicas, considerava-se especialista em eleição acadêmica, familiar das sutilezas, das manobras, dos golpes da estratégia e da tática capazes de conduzir à vitória os seus favoritos. Sagaz patrocinador de candidatos, de cada pleito retirava sempre alguma vantagem. As más línguas, que existem em toda a parte, inclusive nas academias, afirmavam dever o douto Professor de Direito Comercial boa parte de sua rápida carreira de magistrado a essas vagas tão cobiçadas, subindo na vida à custa dos mortos. Se tais comentários  chegaram a seus ouvidos, não o incomodaram, prosseguia imperturbável seu caminho. Blandicioso, com amigável autoridade, traça a unha de conduta a ser adotada pelo aspirante:

 

   - É preciso que os Acadêmicos tomem conhecimento incontinenti de sua candidatura, saibam que a vaga é do ilustre amigo. Impávido, destemido, agressivo à frente das tropas de repressão ao vil e traiçoeiro inimigo interno, todavia na hora de acometer, iniciando a luta pela imortalidade, imprevista timidez assalta o Coronel. Gagueja, possuído de dúvidas:

 

  -Ir logo à Academia? Daqui a pouco? O corpo está sendo levado para lá? Hum... não sei... Não é melhor esperar a hora do enterro? Não lhe parece mais consonante...

   Os olhos redondos e ingênuos do Coronel pousam no jornalista, a quem esquecera por completo, desagradável testemunha. Cobre o bocal do fone com a mão, ordena:

   - Vá-se embora!

Samuel Lederman, Samuca para os amigos, Samy para Da, sua mulher, ainda insiste- sem esperanças, mas o dever, ah!, é necessário cumpri-lo até o fim:.

   - E a revista, Coronel? Liberada? (Campeão de causas perdidas, isso é o que tu és, Samy, a voz de quebranto de Da.)

   Fuzilam os olhos do Coronel, aqueles olhos de verruma:

   - O quê? Ainda se atreve... fora daqui, antes que me arrependa e mande metê-lo no xadrez.

 

   Derrotado, o jornalista recolhe as provas, a entrevista não produzira os resultados esperados; a proibição de Perspectivas fora mantida e seu diretor escapava da cadeia por acaso - Samuca nunca mais permitirá que em sua frente falem mal da Academia, benemérits instituição.

 

   Atravessando os sombrios corredores, as provas inúteis metida no bolso do paletó, o pequeno jornalista Samuel Lederman lastima; morte do poeta Antônio Bruno, com quem falara uma única vez e cuj ode para a cidade de Paris ocupada pelos alemães, canto de luta e d esperança, continuaria inédita em letra de fôrma. Como muitas outra pessoas, Samuca sabe de memória trechos inteiros do poema e os relembra. Emerge pouco a pouco da derrota, mais poderoso é o sonho que nos é dado sonhar: mais dia menos dia, a deficitária, perseguida, condenada revista se transformará em jornal diário, nervoso e vivo, grandes reportagens, colaboradores famosos, nacionais e estrangeiros, livre debate de idéias, algo inédito na imprensa do país. Quando Paris for libertada e houver democracia no Brasil. (Tu és incorrigível, Samy...)

 

PERSPECTIVAS OTIMISTAS E EXCLAMAÇÃO LATINA

 

   - Repita, por obséquio, Desembargador, não ouvi bem. Dizia que...

 

   Livre do maldito espião judeu, livre para expressar no rosto a emoção incontida, o Coronel escuta, alvoroçado. Balança a cabeça em concordância com as afirmações do experiente cabo eleitoral. Não é hora para protocolos, ilustre amigo, a hora é de ataque. O fundamental é não perder tempo, é avançar, ocupar aposição, impedir que outro se mostre antes, comprometa votos. Os pretendentes são muitos... Certamente para valorizar seu empenho e seus conselhos, para impor seu indispensável comando, também Lisandro Leite emprestou, desde o início, características de batalha ao pleito de hábito renhido porém pacífico. Investir quanto antes, meu amigo, eis a boa tática para colocar as bases de uma vitória espetacular. Álea jacta est!

 

   O Coronel não discute, repete álea jacta est!

   -Confio no caro amigo, compreendo suas razões. Farei como disser, entrego-me por completo em suas mãos.

   Outra coisa não deseja o eficiente jurista senão conduzir o Coronel à vitória. Tarefa difícil, aliás. Impossível candidato de maior prestígio, contando com o apoio das figuras mais poderosas do regímen, com trânsito livre... Tão livre assim? Haverá quem queira discutir, torcer o nariz, argumentando com as posições políticas do candidato, mas nenhum irá além do resmungo, terminando todos por engolir a pílula e comparecer com o voto. Eleição líquida e certa. Após elegê-lo, vestir-lhe o fardão, pronunciar-lhe o elogio no discurso de recepção... Sim, porque seria a maior das sacanagens se o Coronel escolhesse outro para recebê-lo... A sala repleta de Generais, Ministros, quem sabe o próprio Chefe do Governo, Embaixadores, damas da alta sociedade, a elegância dos vestidos, os decotes, as jóias, as condecorações, os crachás, aquele luxo, aquela beleza toda (sem falar nos fotógrafos) e depois...

 

  Ah!, depois colher a merecida recompensa: a primeira vaga no Supremo Tribunal Federal, pois, como se sabe, uma mão lava a outra. Toma lá a Academia, Coronel, dá cá o Supremo.

   Desdobra-se ao telefone em idéias e sugestões, o suor escorrendo pelo rosto. Rábula terrível, segundo seus colegas de magistratura. Rasga perspectivas, amplia horizontes, a voz melíflua, persuasiva. O Coronel embriaga-se de entusiasmo:

   - É claro que sim. Minha candidatura terá todo o apoio do Exército. Total. O Ministro? Fará tudo que seja necessário, tudo. Como disse? Sim, é isso mesmo, tem toda a razão: a candidatura me é imposta pelo Exército, atualmente sem representante na Academia. Um absurdo, realmente. O prezado amigo diz muito bem: uma imposição da classe.

   O Catedrático prossegue, desencava na história da Academia o argumento decisivo, irrespondível. Que cabeça! O Coronel sente-se praticamente eleito:

   - Exato, Desembargador, exatíssimo. Não tinha pensado nisso...

   - Pois assim é, meu nobre amigo, essa cadeira pertence ao Exército, sempre pertenceu. O patrono, os primeiros ocupantes... Sua eleição significará a retomada de uma tradição rompida com a eleição do Bruno.

   Tradição, palavra grata ao Coronel. Sente-se eufórico. Lisandro Leite conclui com uma última e auspiciosa previsão.

   - Candidato único? Acha possível, querido amigo?

   Ora, meu bravo Coronel, não seja ingênuo. Na atual conjuntura, nacional e internacional, quem nesse país terá coragem de concorrer com o onipotente Chefe das Forças de Segurança? A própria loucura tem limites - pensa Lisandro Leite enquanto enxuga o suor, sorri e promete:

- De minha parte, farei o possível e o impossível para que assim seja. Candidato único e eleição unânime, meu nobre Coronel.

 

CONSIDERAÇÕES PERFEITAMENTE DISPENSÁVEIS

 

   Haverá sentimento mais onipotente, a dominar o coração dos homens, do que a vaidade? Mestre Afrânio Portela dizia que não e o provou no decorrer do pleito.

Tomar assento na Ilustre Companhia, ser um dos Quarenta Imortais, envergar o fardão com debruns de ouro, a mão pousada no punho do espadim, o bicorne sob o braço, acomodar os ossos ou a banha na poltrona de veludo, ah!, para consegui-lo os cidadãos os mais respeitáveis, as personalidades as mais poderosas, sujeitam-se a tudo: o violento torna-se gentil, o arrogante apresenta-se humilde, o avarento vira perdulário, esbanja em flores e presentes. Contado, não se acredita; é preciso ver. Eis aí tema e mote para muita filosofia barata e algumas divertidas anedotas. Infelizmente, falta-nos espaço e tempo.

 

   Tome-se o exemplo do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira: tendo o poder das armas e da polícia, mandando e desmandando, senhor de cutelo e baraço diante de quem até os Ministros tremem, não se sente plenamente realizado, falta-lhe a Academia. Ambição antiga, dos tempos dos primeiros (e renegados) versos, ilusão a acompanhá-lo vida afora.

 

   Certa ocasião, abrira-se com Lisandro Leite, solícito coestaduano. É preciso aguardar ocasião propícia, explicara o jurista, valorizando as dificuldades do empreendimento. De quando em vez trocavam idéias sobre o assunto. Está amadurecendo, informava o Acadêmico, referindo-se à candidatura. Há uns seis meses atrás anunciara: As condições atualmente são ótimas, temos todos os trunfos. Falta-nos apenas a vaga. Deram um balanço na idade e na saúde dos Imortais, com saldo otimista: alguns deles não tinham imortalidade para muito tempo. O grande Pérsio Menezes, por exemplo, atacado de câncer.

 

Membro da Academia Brasileira, empedernida quimera. Sinal de que mesmo um chefe guerreiro, estóico ariano em plena batalha pela conquista do mundo, pode acalentar um sonho com a mesma sofreguidão de reles jornalista subversivo e judeu.

 

O ANIMADO VELÓRIO

 

   Perturbador rebuliço feminino, oh!, incorrigível Bruno, que fizeste da seriedade da morte, da severa contenção, do austero silêncio, da obrigatória representação da dor?

 

   Bem que os acadêmicos, ao descer dos automóveis, se revestiam da compostura exigida, mas quem consegue permanecer compungido e grave tendo de beijar a mão de damas encantadoras, conversar frivolidades, ouvir histórias galantes, recordar versos ardentes em meio a uma parada de elegância?

 

   Velório? Havia o defunto, é verdade, no catafalco erguido no vestíbulo da Academia. Por demais belo, o ar inconseqüente, apesar da dignidade do fardão, defunto pouco à altura de seu fúnebre papel, cúmplice, se não responsável, por tamanha falta de contrição e respeito. Sim, porque essa burla fora prevista e sugerida pelo próprio poeta, como se comprova ao ler o Testamento e Velório de um tal Antônio Bruno, Trovador e Vagabundo Três Vezes Morto por Excesso de Amor, versos antigos mas de persistente presença, nos quais o vate escarnece da morte e propõe festa em lugar de luto no acompanhamento de seu corpo.

 

   Assim aconteceu. Lágrimas e risos, mais risos do que lágrimas, pedira no poema. Mulheres lindas e loucas quero ouvir o cristal de vossa gargalhada. Vestidos de festa, quero perceber a maciez do seio no decote. As que ali estavam conheciam o poema, estrofe por estrofe, algumas o sabiam de memória. Venham todas, a que me fez sofrer e aquela que apenas me sorriu na rua... Vieram todas e nos suspiros havia, como ele solicitara, o dissoluto, o arrulho dos ais de amor nas madrugadas em festa.

 

   O saguão repleto. Acadêmicos, escritores, algumas autoridades, gente de teatro e rádio, diplomatas, artistas plásticos, pessoas do povo, simples leitores. O Desembargador Lisandro Leite, ao chegar, posou para os fotógrafos, junto ao esquife, pronunciou algumas frases (lapidares) ao microfone de uma estação de rádio. Desapareceu em seguida, pela porta da Secretaria, arrastando o Presidente, aos cochiches.

 

   Na graça das mulheres feneceu a compunção fingida, a máscara postiça da morte. Apenas os sentimentos reais permaneceram intactos, o amor no desfile das formosas, a estima dos colegas, alguns dos quais tinham sido amigos fraternos, a admiração dos leitores, muitos e, na maioria, jovens. Até mesmo aquele odor de flores murchas e machucadas, fatal em todos os velórios, anúncio da decomposição próxima, fora expulso pelos perfumes raros, excitantes.

 

ÁRIDAS EXPLANAÇÃO SOBRE A POESIA

 

  Definições variadas merecera da crítica a poesia de Antônio Bruno. Mas o título que o acompanhou a partir do livro de estréia, repetido pela imprensa e pelo público, título caro a seu coração, foi o de poeta dos namorados. Todos os namorados lêem seus versos; aos dezoito anos somos todos seus leitores mas as mulheres o são durante a vida inteira, assinalou um ensaísta, em análise extensa e simpática, quando do lançamento das Poesias Escolhidas. Certos críticos, pouco afeitos a obras e autores populares, acusaram sua poesia de fácil e anedótica, mas os leitores encontravam nela a revelação de um universo ao mesmo tempo real e mágico, onde o quotidiano, as insignificâncias do dia-a-dia, fatos aparentemente sem importância, o beco e a cor do céu, o gato na janela e a flor do cacto, adquiriam nova dimensão, um halo de mistério.

 

   Súbita e emocionante descoberta: a rua e o orvalho, as nuvens e o crepúsculo, a noite imensa, paisagens, objetos, sentimentos. A fome de uns lábios, o arfar de um colo, a impudica geografia de um corpo desvestindo-se, a ânsia, a violência, a doçura do amor. Poesia com cheiro e gosto de mulher e, ao mesmo tempo, repleta de Brasil: celebrou as árvores e os pássaros, os rios e o mar, os bichos e os costumes brasileiros. Mas o amor foi o tema maior de seu canto, no coração do poeta não coubera o ódio.

 

   Jornalista, funcionário do Ministério da Justiça, jamais juntara dinheiro nem possuíra bens, gastando quanto ganhava e quase sempre mais. Ainda rapazola de dezenove anos incompletos, participara de uma excursão de férias à Europa, com colegas da Faculdade de Direito. Pareceu-lhe absurdo demorar-se apenas uma semana em Paris, ficou três anos. Para obrigá-lo a voltar, o pai cortou-lhe a mesada mas ele sobreviveu, eufórico e guloso de tudo que Paris lhe oferecia. Confidenciava aos amigos que exercera, entre outras, a honrada e gratificante profissão de gigolô, dançarino a soldo de velhas milionárias, adoráveis velhinhas. Familiar dos cafés literários, dos buquinistas do Sena, aprendeu as sutilezas do vinho e dos queijos, e quando regressou trouxe na bagagem os originais do livro de estréia, O Dançarino e a Flor, de sucesso fulminante.

 

   Voltou a Paris sempre que lhe foi possível. Já quarentão, lá pudera demorar-se por mais dois anos, graças a certo Ministro do Exterior, seu contemporâneo, que lhe obtivera um encosto na Embaixada, com vagas obrigações culturais. O antigo fascínio cresceu. Para ele, Paris era a mais alta conquista do homem, cidade incomparável, pátria do humanismo, da beleza, da liberdade. De retorno, consagrou-lhe todo um volume: Paris Amor Paris, aberto com uma epígrafe de Jacques Prevert, a quem conhecera e de quem se fizera amigo: Tantpispour ceux que n'aiment ni lês chiens ni Ia boue.

 

   Um crítico, considerado erudito, classificou-o A&Prévert brasileiro, em apreciação leviana, pois faltava à poesia de Bruno o interesse pelo fato social e político tão presente na obra do francês. Nunca teve a ver com a política, nem mesmo quando um governador de seu Estado natal, querendo beneficiar-se com a popularidade do poeta, ofereceu-lhe lugar na chapa de deputados federais. Recusou, mantendo-se distante de qualquer compromisso. A instalação, em 1937, da ditadura do Estado Novo o desgostou mas não assumiu qualquer atitude de protesto. Andava às voltas com o discurso de posse na Academia. Fora eleito meses antes, derrotando um parlamentar de oratória inflamada e um médico de renome científico e ambições literárias, sucedendo a um velho General, sertanista apaixonado, autor de áridos porém abalizados estudos sobre os idiomas e os costumes dos indígenas brasileiros.

 

   Os intelectuais de esquerda, em mais de uma ocasião, criticaram o poeta Antônio Bruno pela falta de engajamento de sua poesia num mundo dividido, injusto e conturbado onde outros poetas amargavam o exílio ou morriam fuzilados.

 

O POETA DESCE DA TORRE  DE CRISTAL  PARA SER EXECUTIVO EM PARIS

 

   Quando, porém, os nazistas desencadearam a guerra, o poeta Bruno saiu do casulo, sentindo finalmente ameaçados seu universo, a civilização, a liberdade, tudo quanto amava. Desci da torre de cristal, o cristal estava embaçado, impedia-me de ver o mundo, disse, numa espécie de autocrítica, em discurso pronunciado na Academia. Passou a acompanhar os acontecimentos com crescente paixão, vivendo e sofrendo cada detalhe do conflito.

 

   Nem por um momento duvidou da vitória dos exércitos aliados. Nem mesmo quando a Wehrmacht penetrou na França - os soldados franceses eram invencíveis. A derrota o tomou de improviso, desprevenido. Foi terrível, tudo desmoronou em seu redor, previsões e entusiasmo foram substituídos pelo desalento total, viu-se cercado de ruínas, perdeu de repente e por completo a segurança e o gosto de viver. A queda de Paris provocou-lhe um enfarte.

 

   Ainda no hospital, escreveu lancinante poema. Pela primeira e única vez, a doce saga de amor cedeu lugar ao canto de guerra, estrofes de fogo e sangue, de insulto e praga, anátema contra Hitler e seus sequazes. Roto pela humilhação e sofrimento da cidade bem-amada, pátria da civilização e do humanismo, esmagada sob as botas nazistas, o poeta Bruno, no entanto;' ergueu-se inesperadamente do leito de enfermo e, superando a desesperança e o desgosto de viver, previu e anunciou o dia próximo e iniludível da libertação, quando Paris, a alegria e o amor ressurgiriam.

 

   Assim, o Canto de Amor fará uma Cidade Ocupada concluía com ardente apelo ao prosseguimento da luta até à vitória final. Estranho alento, entusiasmo inexplicável partindo de quem deixara de acreditar na vida.

 

   A verdade é que a parte final do poema fora completamente reescrita. Na versão primitiva, o poeta despedia-se, suicida; recusava-se a viver num mundo monstruoso. Mas quando viu lágrimas nos olhos daquela que arriscava a segurança e a honra para visitá-lo, clandestina e aflita, iluminando as trevas, repelindo a dor e a morte, Antônio Bruno, que nada lhe podia negar, simulou compartir de

sua militante e pertinaz certeza, riscou os versos atrozes de desespero e desencanto, compôs novas estrofes, as da resistência e da vitória. Eram de sua autoria aqueles versos largos, densos e heróicos, mas a inspiração provinha da frágil e intrépida visitante que os impusera com seu encantador acento de além-mar. Bruno confiou-lhe o original do poema e ela, às escondidas, datilografou as primeiras cópias.

 

   Levado para publicação no suplemento literário de um dos grandes diários do Rio, a censura (ou a autocensura) o vetou por insultuoso a chefe de nação amiga. Apesar disso, em alguns poucos dias, o poema ganhou extensa circulação e vasta popularidade. Passava de mão em mão em cópias mimeografadas; impresso em volantes, atingiu rapidamente os mais longínquos pontos do país.

 

   Nem sequer o sucesso Ao Canto de Amor para uma Cidade Ocupada conseguiu manter o ânimo do poeta. A esperança e o alento contidos no poema, dos quais se nutriam milhares de brasileiros, não sustentaram seu abalado coração. Quando o Diretor de Perspectivas, revista cuja existência Antônio Bruno desconhecera até então, viera pedir autorização para publicar o poema engajado e maldito, ele apenas encolheu os ombros:

 

   - De que valem versos contra os canhões e a bestialidade? Publique, se quiser, se permitirem. Não há mais lugar para a poesia no mundo. Nem voltará a haver.

 

   Dez dias depois, em manhã diáfana, o sol iluminando o perdido estúdio parisiense, o poeta tombou, executado.

 

O SUSPIRO, A ROSA, O BEIJO, A DAMA DE NEGRO, O CORONEL E A MORTE FINALMENTE

 

   - Se houvesse música, poder-se-ia dançar... - comentou, num meio sorriso, mestre Afrânio.

   Ouvinte silenciosa, a senhora de beleza fanada deixou escapar um suspiro à súbita recordação do Bal Masque. O eminente e truculento Evandro Nunes dos Santos concordou, a voz rouquenha de fumante inveterado:

   - Não me admiraria se Bruno se levantasse e mandasse servir champagne a todo mundo. Assim o vi fazer em Paris, mais de uma vez...

   Dois velhos letrados, comovidos. Em derredor do esquife, onde repousavam o poeta e sua legenda de boêmio sem par, de sedutor irresistível, prosseguia aquela agitação de mulheres, tantas. Loiras, morenas, uma ruiva com sardas, elegantes quarentenas e moças em flor, adolescentes em uniforme de colegial, versos copiados nos cadernos de matemática, a grande atriz e a costureirinha com a rosa na mão.

 

   Adiantou-se a tímida costureirinha e colocou a rosa sobre os brocados do fardão - rosa de cobre, rosa de mel, rosa menina. A grande atriz curvou-se, os olhos molhados; beijou a testa fria, contemplou em derradeiro adeus o perfil romântico, romântico perfil de beduíno - o poeta proclamava-se descendente de xeques do deserto, corria-lhe realmente nas veias sangue mouro. O avô materno, Fuad Maluf, quando abdicava do metro e da tesoura, compunha poemas em árabe. Lembranças de um tempo passado, de um outro adeus, fizeram arfar o colo da diva e ela se afastou, sufocada pelo fogo devorador da primeira paixão, quem sabe a única verdadeira em sua agitada vida amorosa. Ficara marcada para sempre.

 

   Formara-se um grupo em torno dos dois amigos. Evandro Nunes dos Santos tomou do lenço, limpou o pincenê e os olhos ardidos. Contava fatos recentes, acontecidos havia uns quantos anos, pertenciam no entanto a uma época extinta:

 

   - Cobrava uns dólares na Embaixada, não era sequer funcionário regular, mas todos o tratavam como se fosse ele o Embaixador. Passei três meses em Paris, nessa ocasião, e saímos juntos todos os dias. Não creio saber de alguém que amasse tanto uma cidade. Paris lhe pertencia. Amigo mais encantador...

Ainda comovida, a grande atriz juntara-se ao grupo:

   - Devo-lhe minha carreira. Pisei no palco levada por ele, era o ser mais generoso... - devia-lhe infinitamente mais, se pudesse contaria os detalhes e seria grato fazê-lo. Mestre Afrânio confirmou:

   - O amigo perfeito... - o sorriso apagou-se nos lábios trêmulos: - Quem o matou foi a guerra, Hitler. Ainda na quinta-feira, recebera notícias de um casal francês, de sua amizade. Estavam desesperados: o filho único, de vinte anos, tomado como refém, acabara de ser fuzilado pelos alemães. Bruno me disse: -Não suporto mais.

 

   Calou-se, refletindo como a vida se tornara amarga e como o horizonte se estreitara. Percorreu a assistência com os olhos e então a viu chegar, toda de negro, rosto semi-encoberto pelo véu de luto, jamais tão bela - ela viera apesar de tudo, desprezando seus conselhos. Furtiva, aproximou-se do catafalco. Mestre Afrânio observou-a: rígida, apertando as mãos cruzadas, lívidos os dedos longos e finos antes de se esquivar para um abrigo de cortinas. É uma deusa, mestre Afrânio, desceu do Olimpo, não a mereço, sou apenas um louco jogral...

 

   O Desembargador Lisandro Leite surgiu da Sala da Secretaria, suarento e nervoso, atravessou o saguão, foi até a porta de saída espiar a rua. O Presidente da Academia, Hermano do Carmo, juntou-se ao grupo e à louvação do falecido. Então, em meio ao bulício do velório, escutou-se, distintamente/a modulada e clara voz da grande atriz dizendo em surdina versos de Bruno, versos talvez escritos para ela. Lisandro Leite parou para ouvi-los mas em meio a uma estrofe precipitou-se para a porta.

 

   Aqueles passos firmes, uniformes, ressoando alto, eram inconfundíveis, nenhum civil saberia pisar assim. O Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, todo ele em parada fúnebre, marchou para o caixão, juntou ruidosamente os calcanhares, colocou-se em posição de sentido diante do Acadêmico morto, bateu-lhe continência (e a repetiu para os fotógrafos).

   -Meu Deus... - gemeu Afrânio Portela.

   De repente foi o silêncio, o frio silêncio. Calou-se a voz da atriz, rompeu-se a poesia. Imóvel, em posição de sentido, o Coronel demorou-se um infinito minuto. Depois, deu meia-volta volver, cumprimentou o Presidente, grande perda para a literatura brasileira, repetiu para os acadêmicos, saudou algumas pessoas gradas. A seu lado, triunfante e protetor, o ilustre Desembargador Lisandro Leite.

 

   Atendendo a repetido sinal do jurista, e um pouco contrafeito, o Presidente convidou o Coronel a subir ao primeiro andar. Dirigiram-se para o elevador, Lisandro Leite arrebanhou de passagem dois senhores acadêmicos. Os demais vacilaram, sem saber se ir ou não. Temos candidato, considerou um deles; outro completou: - E que candidato!

   - Meu Deus! - repetiu mestre Afrânio. Evandro Nunes dos Santos repôs o pincenê:

   - Não é possível! -r menos do que uma negativa, era aflita indagação.

   A dama de negro saiu do recanto de cortinas e, abandonando toda e qualquer discrição, andou em direção aos dois amigos, estupefata e indignada: que significava a presença daquele tipo no velório? Teria, por acaso, pretensões?

  

   Já não se restabeleceu no vestíbulo a trêfega atmosfera quase de festa, exigida pelo poeta, na qual a dor e a saudade eram reais e vivas e não máscaras de circunstância, postiços sentimentos. Terminou o alvoroçado bulício, não mais se ouviram risos, voz álacre, incorrido suspiro, murmurado verso de amor. O louco jogral abandonara o esquife, onde permaneceu apenas o cadáver de um Acadêmico pronto para o cemitério.

   Agora, palavras medidas, frases solenes, faces contritas, cheiro apodrecido de velas e flores, o frio silêncio - por fim imposto o ritual da morte.

 

A BATALHA DO PETIT TRIANON

 

BREVE NOTÍCIA DE JANTAR COM VINHO DE PURA UVA

  

   O Coronel deixara a escolha do cardápio a cargo do eminente cultor das letras jurídicas, garfo respeitável, assíduo freqüentador de restaurantes - gostava de comer bem e bastante, sobretudo quando convidado. Mas fizera questão de indicar o vinho, um tinto do Rio Grande do Sul:

   - É pura uva, uma delícia.

   Baseando-se em razões ideológicas e geográficas, Lisandro Leite acalentara a esperança de enxugar umas garrafas de legítimo Reno, de nobre e vitoriosa procedência germânica. Conformado, brindou corn o de pura uva:

   - Ao sucesso de sua candidatura.

   - Obrigado. E o vinho, que tal?

   - Um néctar! (Suco de uva "vagabundo, zurrapa Infame...)

 

   O Coronel, à paisana, parece diminuir de tamanho e de importância. Lisandro Leite, porém, não se deixa enganar: mera aparência, o traje não afeta o poder do anfitrião. Basta atentar na mesa próxima, estrategicamente situada, onde possantes campeões guardam (literalmente) as costas do chefe. Também nas alamedas do cemitério, ao fim da tarde, o jurista pudera conferir peso e extensão desse poder, observando a reação dos acadêmicos à notícia da candidatura. Nem um único ousara erguer a voz em oposição frontal à pretensão do Coronel, se bem vários entre eles não conseguissem esconder o desgosto, engolindo a pílula a duras penas, corja de liberalóides. Era preciso tomar cuidado para evitar os votos em branco, capazes de comprometer a limpidez da vitória:

   -Candidato único, seguramente. Quanto à unanimidade, lutarei para obtê-la, catequizando os rebeldes, a turma da BBC...

   - Turma de quê?

   -Esses que vivem pendurados no rádio, ouvindo a BBC de Londres. Não lhe escondo que a Academia está eivada deles. Mas o prestígio do caro amigo e minha experiência...

 

   Relata, entre garfadas, os resultados (positivos) dos primeiros contatos., Sampaio Pereira abandona o talher para melhor regalar-se com os elogios e os prognósticos, recolhidos pelo amigo na travessia do campo-santo.

   - E o Presidente? Pareceu-me algo reticente, à tarde.

   - Na condição de Presidente, Hermano é obrigado a manter-se discreto, não pode anunciar aos gritos suas preferências. Conversei longamente com ele antes de sua chegada. Realmente, a Academia precisa de1 um representante do Exército, disse-me quando lhe comuniquei sua Intenção. O fato de tê-lo convidado a subir ao primeiro andar, acompanhado de acadêmicos, significou na prática a apresentação pública de sua candidatura, sob os auspícios da presidência. Trabalhinho deste seu amigo aqui... E note que estavam no velório pelo menos três postulantes e nenhum deles mereceu tal consideração. Nem mesmo Raul Lameira...

   - O Reitor?

   - Fala-se em seu nome há bastante tempo. Candidatos fortes para a Academia é o que não falta. Mas deixe a limpeza da área por minha conta. Eu me encarrego do Lameira, ele fica garantido para a próxima... O Pérsio, coitado, está no fim, não dura muito...-baixou a voz: - Câncer de pulmão. - Dispunha das vagas por ocorrer, havia algo de macabro naquele boletim de saúde dos acadêmicos. Concluiu o relato, afirmativo: - O próprio Afrânio Portela concordou comigo em que sua candidatura é imbatível. Mesmo ele, inimigo intransigente do regímen, pouco simpático ao nome do amigo.

   -Jamais poderei lhe agradecer, Desembargador. Mas saiba que não sou Ingrato, aqueles que privam de minha intimidade...

   Por falar em intimidade, no correr do ágape opíparo e delicioso (na competente classificação do jurista), decidiram, o candidato e seu patrono, abandonar o tratamento cerimonioso de senhor pelo fraterno você, deixar de lado patentes e títulos para dizerem um ao outro Agnaldo e Lisandro. Quanto à gratidão, o Acadêmico reafirma 0| absoluto desprendimento de seu apoio, resultante apenas da mais pura e sincera admiração pela obra do escritor e da mais completa e irrestrita solidariedade à atuação do patriota.

 

   Mesmo porque vaga no Supremo somente em meados do ano seguinte, por ocasião da compulsória do Ministro Paiva, aliás outro colega da Academia e bom amigo.

Feitas as contas, exatamente quando ele, Lisandro, estará pronunciando o elogio do novo Imortal, na sessão solene de recepção.

 

   No velório e no cemitério sentira surdas, encobertas restrições ao nome do Coronel; a eleição vai dar mais trabalho do que imaginara. Tarefa fundamental: impedir a inscrição de outro candidato. Para lhe ser tão grato quanto o necessário, o Coronel precisa entrar na Academia carregado em andor e não disputando votos:

   - Na próxima quinta-feira, será a sessão de saudade, na qual faremos o elogio do finado, após o que o Presidente proclamará a vaga aberta. Você deve mandar a carta apresentando-se candidato logo no dia seguinte. Quero que sua candidatura, querido Agnaldo, seja uma verdadeira marcha triunfal.

   Brindaram mais uma vez com o tinto do Rio Grande:

   - Pura uva...

   - Um néctar!

 

    Na mesa vizinha alimentam-se - por conta da verba de combate ao comunismo - os hercúleos gladiadores. Lisandro Leite desvia o olhar, nem mesmo para ele a musculosa visão é graciosa e amena. Mais adiante, usando o tato necessário, precisará aconselhar ao Coronel mais discrição na maneira de agir dos elementos de sua segurança pessoal. Nas visitas de praxe aos acadêmicos e em eventuais idas ao Petit Trianon, será preferível deixar os impetuosos rapazes do lado de fora, na rua. Naquela tarde, no velório, tinham atropelado o Presidente, à entrada do elevador, e o Embaixador Francelino Almeida, o mais antigo membro da Ilustre Companhia, o único que restava dos quarenta fundadores, frágil arcabouço, recebera tamanho empurrão de um dos brutamontes que tivera de recolher-se ao leito. Logo ele, considerado por Lisandro voto certo do Coronel.

 

OS NETOS E O AVÔ

 

   Apoiando-se na bengala, Evandro Nunes dos Santos atravessou por entre as árvores do jardim, um pequeno parque com árvores frutíferas, veio sentar-se no banco sob a mangueira. Ali, nas alturas de Santa Teresa, as estrelas fulgiam num céu imenso e puro. Nem mesmo a tranqüila beleza da noite apaziguara o coração do velho ensaísta. Tampouco a presença solidária dos netos.

   - Hoje, pela primeira vez, lastimei ter vivido tanto.

 

   Fala e age como um trôpego ancião, constata Pedro, alarmado, escondendo o rosto na sombra. Isabel toma a mão do avô e a beija. Senta-se na grama, a seus pés, encosta a cabeça nos joelhos ossudos, tenta sorrir, de que valem as palavras? Da sombra, Pedro observa os ombros curvos, a cabeça inclinada, os cabelos brancos; a frase atormentada dói nos ouvidos do rapaz, acostumado à fortaleza de quem se negava a envelhecer. Os netos podem calcular o sofrimento a abatê-lo; também eles amaram o poeta Antônio Bruno. No cemitério, Isabel, sua afilhada de batismo, tivera de amparar-se no braço do irmão.

 

   Pedro recorda quando o avô os trouxera, ele com sete anos, ela com cinco, para o beijo de despedida em Álvaro e Bárbara, os pais, vítimas de estúpido desastre de automóvel. Ao receber os corpos do filho único e da nora querida, naquela madrugada, Anita, esposa de Evandro {esposa, irmã, mãe e amante), morreu para a alegria, e se ainda durou alguns anos foi por imposição do marido: -Temos de viver para as crianças. Viveu até vê-los adolescentes, Pedro com dezesseis, Isabel com quatorze anos. Já não se sentindo imprescindível, Anita deu por finda a pesada tarefa, entregou-se à doença cruel. Vou morrer, meu bem, disse ao companheiro.

 

   Apesar de sabê-la incurável, condenada, Evandro pediu-lhe: Não quero que vás antes de mim, não quero ser um velho sem dono. Nada mais triste do que um cão sem dono, vagando pelas esquinas em busca de uma palavra, de um gesto de carinho. Que dizer então de um velho sem dono? Anita recordou-lhe os netos que já não precisavam dela mas ainda tanto dependiam dele. Nunca ficarás sozinho, tens as crianças e os amigos.

 

   Anita tinha razão, não foi um velho triste e inútil, cansado rafeiro solitário.  Além dos netos e dos amigos, o trabalho. Com a letra miúda (jamais escrevera a máquina) encheu páginas e páginas analisando a formação e a condição do homem brasileiro. Naqueles últimos anos, publicara três livros, coroamento de uma obra de excepcional significado. Rompeu com idéias assentes, liquidou preconceitos, afirmou ousadias, revolucionou os estudos sociológicos e históricos. Sem se filiar a nenhuma ideologia, havia um sopro libertário, quase anarquista, em sua visão da vida. Desabusado, por vezes malcriado, com irresistível poder de convicção e de comando, os que não o admiravam e queriam, temiam-no. Nunca se sabe o que pode inventar e fazer, comentavam.

 

   No silêncio do jardim, na noite de estrelas, após o enterro do poeta, Pedro e Isabel buscam levantar o ânimo do avô. A voz de Pedro chega da sombra, inquieta:

   - Bruno não gostaria de lhe ver assim, avô...

   - É verdade, meu bem. - Isabel dizia-lhe meu bem desde a morte de Anita, como se houvesse recebido o avô em herança.

   - Não é poí ele estar morto, eu me preparara para sua morte desde o primeiro enfarte. O que me acabrunha é outra coisa...

   - Que coisa, avô?

   - Vocês sabem como ele se apaixonara nesta guerra, seu horror ao nazismo. Tanto que, ao perder a esperança, morreu. Pois vocês sabem quem vai substituí-lo na Academia?

   - Já apareceu candidato?

   - Sampaio Pereira, esse Coronel nazista...

   - Quem? O Coronel Agnaldo? O rei da Quinta-coluna? Essa é de amargar, avô, não pode ser.

   - É ele quem vai ocupar a cadeira de Bruno. Eu havia de viver para assistir a essa infâmia.

   Correu uma estrela na noite, elevou-se a voz de Isabel:

   -Ele pode estar querendo mas você não vai consentir, não é, meu bem? Você não vai deixar que façam isso corn meu padrinho.

  Pedro sorriu, recuperou a segurança:

   -É claro que não vai deixar, o avô dá um jeito.

   Não era um velho sem dono, rafeiro abandonado e solitário à espera da morte. Elevou a cabeça enquanto Isabel repetia:

   -É preciso fazer alguma coisa, meu bem.

   Nada podemos fazer, o homem é um dos donos do Brasil, confidenciara-lhe o Presidente no cemitério, quem se atreve a combatê-lo, a opor-se? Evandro Nunes dos Santos saíra do enterro desmoralizado, inútil e infeliz. A voz forte de Pedro:

   - Você nunca fugiu de uma briga, avô.

   Nunca fugira de brigas, até provocara umas quantas. Nada se pode fazer por falta de quem se atreva? Engana-se, Senhor Presidente, haverá quem se oponha à candidatura infame, quem lute contra essa injúria à Academia e à memória de Bruno. Sem buscar sequer o apoio da bengala, ergue-se alto, magro e majestoso:

   - Vocês têm razão, é preciso fazer alguma coisa. Vtelefonar agora mesmo ao Afrânio.

   Isabel levanta-se para lhe oferecer o braço mas o avô adiantara-se, Pedro o enxerga avançando por entre as sombras das árvores, como pudera imaginá-lo trôpego ancião? Recolhe a bengala abandonada.

 

MESTRE AFRÂNIO PENSA EM ABANDONAR A ACADEMIA

 

A sala rica, lustres de cristal, bibelôs de porcelana, aparelhos de faiança, vasos de opalina, quadros de mestres da Escola de BelasArtes, tudo de evidente bom gosto mas um tanto passado de época. A empregada retirou os pratos do jantar servido à luz de velas. Silencioso, o olhar perdido através da janela (viam-se as luzes cruzadas dos automóveis nas pistas da Praia do Flamengo), Afrânio Portela apenas tocara na comida. Preocupada, dona Rosarinho - Maria do Rosário Cintra de Magalhães Portela - hesitava em propor-lhe um medicamento. Em cerca de quarenta anos de vida matrimonial, poucas vezes vira o marido tão abatido e sombrio.

 

   Antônio Bruno fora mais do que um simples amigo. Quando chegara ao Rio para cursar a faculdade, adolescente mordido pela literatura, aparecera, uma noite, sem convite nem hora marcada, para mostrar ao coestaduano, escritor já afamado,

alguns poemas e contos. Os versos eram bons, os contos ruins, opinara Afrânio, enquanto dona Rosarinho mandava colocar mais um talher na mesa. Desde então e durante mais de trinta anos, aquele fora o lugar de Bruno, o casal sem filhos adotou o petulante aprendiz de poeta. Dona Rosarinho decidira não ir ao velório, tampouco ao cemitério. Preferia imaginá-lo ali, à mesa, falando sobre Paris, proclamando o último e definitivo amor.

   - Não queres que te dê...

   - Manda-me servir um conhaque, é do que preciso.

 

    Lentamente, começou a contar detalhes do velório e do enterro. Na opinião geral, não existia em todo o Rio de Janeiro prosa mais sedutora. Seria um extraordinário romancista se escrevesse com o mesmo sabor, a mesma graça com que conversa, rosnara um confrade de língua afiada. Puro despeito, pois a novelística de Afrânio Portela - se bem relegada nos últimos anos a certo esquecimento diante do estardalhaço do movimento modernista e do impacto dos romancistas da geração de trinta - merecera os aplausos da crítica que reconheceu e saudou no criador de Adélia um penetrante e audaz analista da sociedade carioca da década de vinte. Numa época pobre de ficcionistas sua obra avultara pela agudeza psicológica, pela clareza da linguagem, a serviço de uma visão amena dos costumes da chamada elite. Foi o primeiro no Brasil a utilizar a psicanálise na interpretação dos sentimentos de seus heróis, ou melhor, de suas heroínas - retratista de mulheres a se debaterem entre os instintos e os preconceitos.

 

   Apenas num livro, em seu primeiro romance, recriara cenários e figuras das lavras de garimpes e romeiros, onde nascera. Drama de sentimentos primitivos e vitais, de amor selvagem e terra agreste, isolado num conjunto novelístico de temática citadina, de ambientes elegantes e fureis, aquele pequeno volume foi ganhando importância, pouco a pouco. Envolta em trapos, a inocente e impudica Maluquinha cresceu na estima dos leitores, enquanto as melindrosas e complicadas grã-finas dos outros nove romances publicados feneciam nas alcovas do adultério.

  

   O último, A Mulher no Espelho, aparecido em 1928, coincidiu com o lançamento, na Paraíba, em pífia edição provinciana, de A Bagaceira, de um desconhecido José Américo de Almeida. Teria esse fato concorrido para que Afrânio Portela abandonasse a ficção, voltando-se para o ensaio e a história literária? Ousada afirmação de um crítico pedante, o mais provável é ter existido apenas coincidência, pois os romancistas nordestinos, surgidos na esteira do paraibano, obtiveram caloroso aplauso e eficiente apoio do autor de Praia do Flamengo. Um volume sobre Castro Alves, estudos sobre Gregório de Matos e Thomaz Antônio Gonzaga mantiveram em evidência o nome de Afrânio Portela. De mestre Afrânio, como diziam em amistoso respeito confrades e leitores.

 

   Dona Rosarinho ouve a colorida descrição, a narrativa vai ganhando em força e malícia. Ela sabe que, sob a capa do intelectual tão erudito e refinado, subsiste a fibra do sertanejo difícil de abater-se. Uma pausa antes de anunciar:

   - Prepara-te, agora, para uma notícia sórdida.

   Dona Rosarinho estranha o acento carregado de asco na voz habitualmente cordial do marido. Algo acontecera, capaz de tornar ainda mais cruel a ausência de Bruno. Mestre Afrânio prossegue e a requintada senhora ouve os passos uníssonos, o bater da continência e a repetição para os fotógrafos. Por tê-las vivido ao lado do marido, dona Rosarinho sabe das trincas acadêmicas, acompanhava de perto cada eleição e em algumas até influíra.

   - Candidato, tu pensas? Terá a ousadia-

   - Candidato eleito. Imbatível, disse-me Lisandro Leite no cemitério, e tem razão. Já imaginaste Sampaio Pereira fazendo o elogio de Bruno, do autor do   Canto de Amor para uma Cidade Ocupada?

   - Que horror. Esse... - procurou palavra adequada, não achou:

   - ... é capaz de usar botas com o fardão. - Pensativa, descansou os olhos na face ofendida de mestre Afrânio: - E tu, que pensas fazer?

   - Voto em branco, é claro, seremos três ou quatro, certamente. Não irei à posse, penso que não voltarei à Academia após tal eleição. E demais para mim...

 

   Dona Rosarinho não chegou a expressar sua opinião porque a empregada pediu

licença para anunciar que a Senhora Maria Manuela estava à porta e perguntava se o doutor Portela podia recebê-la.

   - Vens comigo?

   - Não. Ela se sentirá mais à vontade sem a minha presença. Esqueces que oficialmente eu não sei dç nada?

 

INSÓLITA VISITANTE

 

   No amplo gabinete, as paredes recobertas por estantes com livros, dona Maria Manuela, pálida e arfante, não quis sentar-se. Com os olhos queimados, fitou o velho amigo de Bruno, o confidente, aquele que estava a par de tudo. Pela manhã ele a ouvira soluçar ao telefone, desamparada, não tentara conter-lhe o pranto, se buscou palavras de consolo não as encontrou. Deixou que ela própria se controlasse para, então, lhe aconselhar prudência, ainda mais necessária agora quando arriscar-se já não tinha sentido. Prometeu procurá-la em breve, juntos recordariam o riso, a graça, a poesia.

  

   - Vim para suplicar... Diga-me que não vai permitir. Eu não consegui impedir que ele morresse... mas o senhor pode evitar que lhe desonrem a memória... - falava aos arrancos; na voz, vibrante de paixão, acentuava-se o sotaque lisboeta: - Sou uma estrangeira, eu sei, mas acabaram-se as fronteiras, a guerra é uma só. - Suspendeu a cabeça altiva, deusa descida do Olimpo, jovem senhora no esplendor dos trinta anos, a súplica transforma-se em imperativa exigência: Um fascista não pode recolher a herança que é nossa. Vim para ouvir do senhor que isso não vai acontecer. Um carrasco do povo, um nazi, sucedendo a Antônio... - num esforço reteve o soluço: -... é como matá-lo outra vez.

 

   Meu Deus! Dizer que escrevera dez livros analisando os sentimentos das mulheres...

   -Como soube?

   - Desconfiei no velório, quis até lhe falar. Há pouco, ouvi a noticia no rádio. Não posso fazer nada, mas o senhor pode.

 

  Na mesa, ao fim do jantar, mestre Portela dissera a dona Rosarinho que deixaria de freqüentar a Academia, lá não pondo mais os pés, se aquele indivíduo fosse eleito, conforme tudo fazia prever. Parecera-lhe exprimir assim o protesto mais vigoroso, decisão extrema. Agora, ali no gabinete, ouvindo Maria Manuela, dá-se conta de haver assumido apenas uma posição cômoda, passiva, que não conduzia a nada. Um sentimento de culpa o invade. Como pudera faltar ao amigo, abandonando sua memória aos assassinos?

   - Não sei se conseguirei, mas lhe prometo que farei o possível...

   - E o impossível...

   - Pois bem: e o impossível.

 

   A jovem senhora, a menina Manuela, andou para o velho literato, beijou-o na face, encaminhou-se para a porta, mestre Afrânio a acompanhou até o vestíbulo. Mundo absurdo e surpreendente quem iria imaginar que a esposa do Conselheiro da Embaixada de Portugal, filha de um Ministro de Salazar, de família de banqueiros, rica e influente, fosse inimiga do regímen, simpatizante do socialismo, fadada à cadeia, ao campo de concentração. Creio que ela é meio comunista, revelara Bruno ao início da aventura. Comunista ou não, é absolutamente adorável e maluca de jogar pedra. Deu-me um trabalhão convencê-la a não largar o marido para vir morar comigo. Já pensou no escândalo, seu Afrânio? Veja a encrenca em que me meti.

 

   De regresso à sala, mestre Afrânio Portela disse a dona Rosarinho, que se sentara diante do rádio para ouvir o noticiário da BBC:

   - Veio me pedir...

   - ... o mesmo que eu ia te pedir. Que não permitas a eleição desse carniceiro. Não pretendo deixar de comparecer às festas da Academia, eu as aprecio muito. Agora, vai telefonar para Evandro que quer falar contigo exatamente sobre esse assunto.

 

   Sorriu para o marido o mesmo sorriso cúmplice do tempo de namorada, quando os pais milionários se opunham ao casamento da filha com um literato pé-rapado, sem eira nem beira.

 

UM VELHO ANDANDO PELA RUA

Velho insensato, pensava consigo mesmo mestre Afrânio Portela indo pela rua

a caminho da Academia para encontrar-se com outro detraquê, Evandro Nunes dos Santos. Quem ousaria levantar-se contra o DIP, o DOPS, as diversas polícias, os serviços secretos, contra aquele que era o todo-poderoso Chefe da Segurança Nacional candidato dasforças vivas do país, da ordem estabelecida, da ditadura do Estado Novo, dos senhores da guerra vitoriosos no mundo?

 

   Velho insensato mas ia pela rua com os ombros erguidos, um brilho nas pupilas cansadas, um sorriso de malícia. Aí vai um velho contente da vida, comentou um transeunte ao vê-lo passar.

 

A PRUDÊNCIA E OS TRUNFOS

 

   Enquanto espera Afrânio Portela, com quem marcara encontro, Evandro Nunes dos Santos, no gabinete do Presidente, deblatera, em longa e acerba catilinária, contra a candidatura de Sampaio Pereira, expondo as razões políticas e morais que a fazem inaceitável:

 

   - Uma injúria à Academia, um insulto!

   - Você pensa que fui eu quem inventou essa candidatura ou que tenho algum interesse nela, que a recebo com prazer? - Hermano do Carmo recorda a desagradável experiência da véspera, quando os dois guarda-costas se haviam metido a força no elevador, mas não menciona o fato para não botar lenha na fogueira: - O que posso fazer para evitá-la?

   A pergunta fica no ar, Evandro Nunes dos Santos resmunga que se devia fazer alguma coisa, fosse o que fosse. O Presidente prossegue:

   O regimento exige que o candidato haja publicado um livro; o homem publicou vários, incluindo um de versos, você sabia? Eu insinuei ao Lisandro que alguns acadêmicos haviam pensado no Feliciano, achando que o candidato ideal para substituir o Bruno seria outro grande poeta. Ele me respondeu com o título do tal livro e me garantiu que, poeta por poeta, seu candidato nada fica a dever ao Feliciano ou ao Bruno. Parece que são versos românticos, da juventude. Até esse trunfo ele tem.

   - Trunfo mais vagabundo...

   - Mas os outros, em compensação... Você precisa ver o Lisandro sacando-os, um a um, do bolso do colete: candidato do Exército, uma das figuras mais importantes do Governo, prestígio imenso, os tempos não estão para brincadeiras. Outro argumento de peso: essa cadeira é cativa do Exército, sempre foi, do primeiro até o penúltimo ocupante, a tradição precisa ser restabelecida. E daí para a frente... Não vejo saída, meu velho. Se você descobrir alguma, me diga. Eu não vejo nenhuma...

   - Ora essa... Você mesmo disse: lançar o Feliciano...

   - E você acredita que ele aceita ser candidato contra Sampaio Pereira? Duvido. Devo lhe dizer que essa história da cadeira pertencer ao Exército não deixa de ser um argumento válido. Em princípio, eu sou favorável à candidatura de uma personalidade do Exército, você sabe que a Academia sempre contou e deve continuar a contar com expoentes das várias classes.

   - Em matéria de expoente...

   - Depende do ponto de vista de cada um, não é? - o Presidente não pretende comprometer-se.

   Evandro Nunes dos Santos sorve o resto do cafezinho, deposita a xícara vazia, Afrânio Portela está demorando e não lhe parece fácil desatar o nó. Em troca, não receia comprometer-se:

   - Não há de ser com meu voto que esse pulha entrará na

Academia.

 

CONSPIRAÇÃO NA HORA ELEGANTE DO CHÁ

 

   Vindos de direções diferentes, Afrânio Portela e Lisandro Leite encontraram-se na porta do Petit Trianon. A satisfação reflete-se no rosto gordo do jurista:

 

   - A notícia da candidatura do Agnaldo já transpirou na imprensa falada e escrita.

 

   A voz em júbilo ao enunciar o prenome do onipotente Coronel, prova de invejável intimidade. Não revela a fonte informativa mas o romancista a adivinha sem esforço; igual a ele, Lisandro não perde tempo em serviço.

 

   Dirigem-se juntos ao gabinete do Presidente, o desembargador derreia-se numa poltrona, mestre Afrânio recolhe a ossuda humanidade de Evandro Nunes dos Santos, a tempo de evitar que o contundente ensaísta diga umas verdades àquele balofo puxa-saco.

   - Vamos tomar chá na Colombo, lá estaremos mais à vontade para conspirar, longe do Lisandro e perto de mulheres bonitas para regalo de seus olhos, velho assanhado.

   Assíduo freqüentador da Colombo, em companhia de Antônio Bruno, Afrânio atribui a Evandro seus hábitos e apetites. Lírico namoro do poeta com lindi costureirinha postada à janela do atelier situado em segundo andar do prédio fronteiro inspirara O Chá das Cinco, conto risonho e tocante, único retorno do romancista ao terreno da ficção, mais de dez anos após o lançamento de A Mulher no Espelho.

 

   Na mesa da confeitaria, Evandro, ainda de mau humor, começa por deblaterar contra o Presidente que não fizera segredo de sua posição favorável à candidatura do Coronel.

   - Favorável? Apesar do empurrão que levou ontem?

   - Empurrão? Que história é essa?

   - Daqui a pouco eu conto. Antes quero saber exatamente o que Hermano disse.

   - Que era favorável a um candidato do Exército. Para restabelecer a tradição.

   - Referiu-se a um candidato do Exército ou citou nominalmente o Coronel Sampaio Pereira? O Agnaldo, como diz o Lisandro, babando-se.

   - Falou em geral.

   - A diferença é grande, compadre. - Afrânio e Rosarinho tinham sido padrinhos de batismo de Álvaro. - Vou lhe fazer uma revelação: eu também sou favorável à candidatura de uma personalidade do Exército... - sorri maliciosamente.

 

   De quando em vez, o amigo e compadre consegue enervar o velho Evandro, sobretudo por ocasião de vaga na Academia. Apoiando quase sempre os mesmos candidatos, comportam-se

de maneira diametralmente oposta durante a campanha. Evandro proclama às escancaras as qualidades de seu preferido, argumentando, discutindo, enquanto Afrânio move-se discreto, age de manso, cabala nos bastidores - consideram-no o mais temível cabo eleitoral da Ilustre Companhia. Ainda agora, diante da ameaça medonha da candidatura de Agnaldo Goebbels Pereira (o próprio Coronel, em comentado artigo, afirmara aceitar com honra e orgulho a alcunha de Goebbels brasileiro com que os inimigos da Pátria pensavam ridicularizá-lo e ofendê-lo), Afrânio não se mostra indignado. Ao contrário, parece divertir-se, esfrega as mãos de tão contente. Evandro reclama, impaciente:

   - Explica-me de uma vez o que tens na cabeça pois eu não tenho nada, além de raiva.

 

   Mestre Afrânio obedece, presta contas, com riqueza de detalhes, de sua intensa atividade. De quando em quando interrompe o relato a fim de saudar conhecidos ou de chamar a atenção do compadre para uma mulher, digna de ver-se, desfilando na rua. Não perdera tempo (nem ele nem Lisandro). Na véspera, logo após a conversa com Evandro, telefonara para uns quantos acadêmicos, trocando impressões. Madrugador, saíra cedo de casa, visitando pela manhã nada menos que quatro colegas, almoçara com um quinto, Rodrigo Inácio Filho, e o atraso no encontro com Evandro devia-se à ida ao apartamento do pobre Francelino, vítima, ele também, de vigoroso trompaço.

Nos telefonemas e visitas, recolhera algumas evidências, tirara conclusões:

   - Existe sensível resistência ao nome do Sampaio Pereira.

   - Repulsa geral... - também Evandro mantivera contatos.

   - Não vamos exagerar, compadre, sejamos realistas. Existem restrições, algumas profundas, uma atmosfera incômoda, o sujeito malvisto, tem péssima fama. Para ele até Cristo é suspeito. O Rodrigo me contou que a censura proibiu, na Semana Santa, a publicação o Revista dos Sábados do Sermão da Montanha. O Diretor da revista, o Gil Costelo, dirigiu-se ao DIP, convencido de que o corte se devia à ilustração da matéria, um desenho modernista do Portinari. Ficou bestificado ao saber que a proibição se referia diretamente ao texto bíblico. Um funcionário, para livrar a cara, revelou o origem da ordem: o gabinete do Sampaio Pereira. O Rodrigo ouviu a história da boca do próprio Gil.

   - Quem pode votar num tipo dessa espécie?

   -Não se iluda. Apesar disso tudo, será eleito se não agirmos com a cabeça. Votarão apertando o nariz, com repugnância, como me disse o Alcântara, mas votarão. Os trunfos do Lisandro não são blefes nem ele é tolo. Apenas eu soube do acidente com o Francelino, corri para o apartamento do velhinho. A primeira coisa que vi, ao entrar, foi uma enorme cesta de frutas: maçãs, peras, uvas, e um cartão adulador, assinado com o nome do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, só que a letra era

do nosso Lisandro... - sorri novamente: - Ganhar essa parada vai exigir, seu Evandro, uma habilidade demoníaca. Demoníaca! - repete o adjetivo, agora sério: - Precisamos

encontrar um candidato...

   - Temos o Feliciano, não pode haver melhor. Poeta aplaudido por todos, reconhecido por velhos e moços e uma flor de pessoa.

  

   Não basta, compadre. Precisamos de um candidato em que os acadêmicos possam votar sem medo. Sem medo de represálias. Um candidato que ofereça garantias de segurança contra qualquer tentativa de revanche do Sampaio Pereira, indivíduo poderoso e de maus bofes. O que elimina de início qualquer civil, seja quem for. Temos de sair para a candidatura de um militar, seu Evandro. Um militar de patente superior à do Pereira, ou seja, um General.

 

   Arraigado civilista, autor de um livro de repercussão continental sobre os males do militarismo na história dos países da América Ufana, o velho Evandro reage, rebelde:

   -Não me venhas com essa história de cadeira cativa...

   - Não  se trata disso... - Já não se diverte .- Trata-se de evitar que um tipo comprometido  com o  nazismo e tudo que o nazismo  significa , com a  tortura  de presos políticos, com a censura que tem

guido escritores e jornalistas, o oposto do Bruno que morreu por  não suportar esses horrores, venha a sucedê-lo, sente-se entre nós, no plenário da Academia, seja meu colega, seu colega.

 

   Houve um instante de silêncio enquanto Evandro digere as palavras do romancista. Balança a cabeça:

   - É... Tens razão.

   - Tenho, sim. Para um candidato civil não garanto mais de quatro ou cinco votos, os nossos, o do Rodrigo, os de... - cita dois nomes: - E olhe lá! Enquanto que, com um General, se trabalharmos bem, poderemos ganhar a parada. Precisamos com urgência de um General, autor de pelo menos um livro, adversário do nazismo e do Estado Novo, que se disponha a enfrentar o Coronel Sampaio Pereira. De acordo?

   - De acordo. O difícil é encontrar um com todos esses requisitos...

   - Encontraremos, sim. Você, compadre, é um exagerado. Para você, vestiu farda, acabou-se. Entre os milicos há muita gente boa e séria, democrata: a maioria. Agora, ouça a história dos empurrões...

   - mesmo antes de começar a contar, põe-se a rir. Mestre Afrânio Portela divertia-se à grande, cobrava da vida tudo o que de melhor ela podia lhe oferecer.

 

O GENERAL À ESPERA DE UM TELEFONEMA

 

  Impaciente, o General Waldomiro Moreira abandona o jornal, consulta o relógio, levanta-se da espreguiçadeira, cruza o pequeno jardim, avança para a porta da sala, constata a indisciplina. Conforme imaginara, Cecília ocupa o telefone, namorando. Maldito cirurgião-dentista! Como se não bastasse o desgosto.

   - Ai! Não diga... - a moça desfeita em riso e dengue.    

   - Cecília!

   Fenecem riso e dengue, à voz de comando do General. Tapando com a mão o bocal do fone, a insubmissa suplica:

   - Só um minuto, Pai.

   - Desligue. Imediatamente!

   - Neste instantinho, Pai.

 

  O prestimoso Sabença ficara de telefonar assim houvesse conversado com o

doutor Félix Linhares e obtido o indispensável acordo. Ora, o encontro fora marcado para antes do almoço, na Santa Casa, onde o prolifero autor de romances sobre temas do Velho Testamento cumpre deveres médicos e atende assuntos relativos à Academia Fluminense de Letras, cuja presidência ocupa, reeleito pela quinta vez e por unanimidade. Ao café, o General proibira o uso do aparelho a partir das dez horas da manhã. A esposa e a filha demoram horas ao telefone, dona Conceição a bisbilhotar, a se queixar do custo da vida, Cecília em juras de amor.

 

   Admirador da atividade literária do General, em especial da campanha em prol da pureza da língua pátria, Claudionor Sabença, o da Antologia da Literatura Luso-Brasileira, da Coletânea de Escritores Fluminenses e dos livros didáticos para o estudo da gramática (de primeiro, segundo e terceiro anos), realizara profícuo trabalho de aliciamento em meio aos colegas acadêmicos, com evidente sucesso. O ambiente revelou-se receptivo e simpático ao nome do General, inclusive porque a fama do outro postulante, Francisco Ladeira, antes de se dever ao discutível valor dos sonetos parnasianos, devia-se à língua viperina. Malhando impiedosamente os confrades nas esquinas da subliteratura, ainda assim pretende eleger-se, anda recrutando votos, com a cara mais limpa do mundo. Contudo a palavra final depende do Presidente.

 

   O prestígio da medicina do doutor Félix Linhares, dono de rica e influente clientela, garante subvenções, favores e verbas que possibilitam ao grêmio sob seu comando uma existência real, mais além das atas das sessões, ao lhe assegurar sede em próprio estadual, publicação (com atraso porém gratuita) da revista, de opúsculos e até de livros de acadêmicos pela gráfica do governo, como, por exemplo, a Coletânea de Claudionor Sabença. Sem falar nos dois servidores públicos postos à disposição: um contínuo e uma secretária, vistosa, noiva e muito dada. Pequenas mordomias, tornando desejáveis e disputadas as vagas na Academia Fluminense de Letras, imortalidade limitada, circunscrita às fronteiras do Estado do Rio, nem por isso menos cobiçada.

 

  O nervosismo e a irritação do General resultam da situação ambígua que se criara, da incerteza que se prolonga. Além de peçonhento e de mau poeta, Francisco Ladeira revelava-se um sabidório. Falava horrores de meio mundo porém jamais abrira a boca para glosar os personagens bíblicos (e tão merecedores!) do doutor Linhares, atitude que decerto sensibiliza o Presidente. Na dependência de cabalas e conluios, o General se enerva.

 

  Tendo liberado o telefone, retorna à espreguiçadeira, na sombra do jardim. Nos começos de 1937, estivera a ponto de candidatar-se; o mesmo devotado Sabença iniciara contatos mas, na ocasião, superiores interesses político-militares se impuseram, ocupando por inteiro o tempo e os projetos do General. Entregara-se de corpo e de alma à campanha eleitoral de Armando Sales de Oliveira à Presidência da República. Com tamanho empenho a ponto de ter seu nome repetidamente citado na imprensa como provável futuro Ministro da Guerra, no caso de vitória do candidato oposicionista. Dona Conceição, de entusiasmo aguerrido e sonho fácil, gozou durante meses o prestígio decorrente dessa dourada perspectiva. Ah!, bem poucos meses, pois em novembro um golpe de estado implantou a ditadura do Estado Novo, dissolveu o Parlamento e os partidos políticos, liquidou candidaturas e eleições, e o General Waldomiro Moreira de futuro Ministro passou para a reserva remunerada, vestiu o clássico pijama e retornou, em tempo integral, às pacíficas e laboriosas atividades no campo das letras.

 

  Voltou a assinar coluna semanal Em Defesa da Língua Portuguesa, no Correio do Rio, suspensa durante a campanha armandista. Concluíra a redação de mais um volume, o terceiro, das Histórias da História do Brasil, contos e relatos de feitos militares, cujo recente lançamento, coincidindo com vaga na Academia Fluminense, levara o amigo Sabença a novamente se movimentar, com francas possibilidades de êxito. Se dependesse apenas dos acadêmicos... O encontro marcado para aquela manhã, entre o cabo eleitoral e o Presidente Linhares, selaria o destino da ambiciosa candidatura: a vitória ou a desistência.

O sino da igreja anuncia a hora do meio-dia, o fim da manhã. Por que Sabença ainda não telefonara? Adiamento da entrevista ou, quem sabe, o precavido Linhares decidira-se a favor de Francisco Ladeira para manter-se a salvo de epigramas e dichotes? O General teme por seu coração,

o cardiologista recomendara-lhe evitar emoções fortes.

    Parece-lhe ouvir o som da campainha do telefone e se contém para não sair correndo. Dona Conceição anuncia da porta da sala:

   - Telefone para você, Moreira. - Sempre tratara o marido pelo sobrenome, com respeito e devoção: - Disse que é o Acadêmico...

   - É o Sabença, eu sei... -já está de pé.

   - Não é, não...

   - Não é o Sabença? Então, quem é?

   - Disse que é o doutor Rodrigo Inácio Filho, da Academia Brasileira. Quer que você marque hora para receber uma comissão de acadêmicos...

   O General Waldomiro Moreira hesita, intranqüilo. Deve ser um trote, obra do pérfido Ladeira, dado a pilhérias de mau gosto.

   - O homem está esperando, Moreira.

   Um trote, com certeza. Cara fechada, o General marcha para o telefone. Ah!, se for um trote, esse crápula do Ladeira que se cuide pois pagará caro. Não se zomba impunemente de um General do Exército, mesmo estando ele na reserva, marginalizado.

 

Á ESCOLHA COM CONHAQUE NAPOLÉON

 

   Quem lembrou o nome do General Waldomiro Moreira foi Rodrigo Inácio Filho, posto a par do plano e a ele tendo aderido. E o fez quando mestre Afrânio preparava-se para dar a mão à palmatória e razão ao compadre Evandro: missão difícil, essa de encontrar General com livro publicado que seja declaradamente antinazista, não mantenha compromissos com o Estado Novo e se disponha a enfrentar Sampaio Pereira. Antinazistas, muitos, a maioria; contra a ditadura, vários, mas nas entrelinhas, não de público: com livro publicado, apenas uns poucos e, entre esses, quantos aceitarão candidatar-se, enfrentando a ira e o poder do Coronel? No gabinete do romancista, bebericando conhaque (grande fine champagne Napoléon, francês e guerreiro), os dois compadres eliminam candidatos:

   - Por favor, Afrânio: um livro de matemática... não dá.

   - Esse jamais aceitará concorrer com o Sampaio Pereira...

   - Seria um bom nome se em vez de major fosse General. Convidado a comparecer, Rodrigo Inácio Filho, a criatura menos belicosa do mundo, apresenta-se risonho, exibindo a roseta da Legião de Honra na botoeira, a caráter para participar da Resistência. Beija a mão fidalga de dona Rosarinho:

   - Recruta às ordens de seu marido, minha Generala. Tudo isso é absurdo mas agradaria a Bruno.

   - Absurdo, por quê? Absurda é a guerra - contesta Evandro. Dona Rosarinho toma da garrafa, serve ao Acadêmico recém chegado e o desafia:

  - Meta a mão no bolso do colete e tire dele um General a contento, Rodrigo. Conhece as exigências...

   - Obedeço às suas ordens, Rosarinho. Proponho o General Waldomiro Moreira.

   - Waldomiro Moreira... Conheço esse nome... - Mestre Afrânio puxa pela memória: - De onde, meu Deus?

 

   Rodrigo recebera havia alguns dias um novo livro do General Moreira, autor de boa meia dúzia de alentados volumes. O General não era nenhum desconhecido, gozava de certa projeção política e militar, sem falar na literária, seu nome andara muito nos jornais durante a campanha de Armando Sales, quando Rodrigo lhe fora apresentado. Haviam estado juntos em duas ou três ocasiões. Num banquete ao candidato, sentaram-se lado a lado e conversaram literatura e política, o General não estimava os modernos, criticando-lhes o desconhecimento e o desrespeito às regras do vernáculo, mas em troca era um democrata temperado nos campos da luta, motivo por que o Estado Novo o transferira para a reserva. Antinazista, próaliados, bastava ler os comentários de guerra que andara escrevendo no Correio do Rio; desancava Hitler, um louco, um degenerado.

   - Tão parcial, a ponto de recusar-se a crer nas vitórias nazistas, a negar a evidência.

   - Resta saber se aceita candidatar-se.

 

   Encarregado de buscar informações mais completas, mestre Afrânio, vinte e

quatro horas depois, regressa triunfante:

   - Não tem dúvida: é o nosso homem!

 

   No mesmo gabinete, degustando o mesmo bélico Napoléon, expõe fatos e qualidades referentes ao General: Revolução Constitucionalista, campanha do Armando Sales, retirado da ativa pela ditadura. Cinco livros publicados: uma trilogia de contos históricos, um volume de crônicas abordando problemas lingüísticos, além de brochura (esgotada) sobre aspectos da campanha militar de 1932, na frente mineira. Considerado homem de palavra e de coragem, um tanto opiniático e cabeçudo. Durão.

   - Para a circunstância, uma qualidade.

 - Acredita que ele vai topar a briga? - informa-se Evandro.

   - Estou convencido que sim... - Mestre Afrânio fita os companheiros de conjura com aquele olhar de divertida malícia: Duvido que adivinhem qual a sua ambição atual... o que está pretendendo... - um momento de suspense, um gole de conhaque: Nada mais, nada menos do que se candidatar à Academia Fluminense de Letras.

   - Mentira! Estás brincando.

   - Pura verdade. Já imaginou quando lhe propusermos a Brasileira? Vai perder a cabeça. No mais, o Sampaio Pereira nada pode contra ele, o que lhe podiam fazer de ruim, já fizeram. É o nosso homem. Rodrigo acertou em cheio.

   - E os livros? - Evandro abaixa a voz ao enunciar a pergunta:

   - Os livros, que tal?

   Numa prova de devoção à causa, Rodrigo percorrera o volume recém-editado:

  - E na base do me-ufanismo mas dá para ler. Escreve corretamente, a gramática é um de seus dogmas. O estilo terso, sabem?

   - Terso, hein! Castiço?

   Exato. Estaria melhor na Fluminense mas, além dele, não vejo outro.

   - Nem eu. - Confirmou mestre Afrânio: - Vou dedicar o resto do dia aos livros dele, consegui quatro, o Carlos Ribeiro ficou de obter o que está esgotado. Foi o Cadinhos quem me forneceu a maioria das informações sobre o General.

 

   Refere-se ao célebre livreiro carioca, o velho mercador de livros, como o próprio se intitulara. Freqüentavam sua livraria, na rua São José, gregos e troianos, acadêmicos e modernistas, literatos de reputação e valor desiguais, provindos de todos os horizontes, escolas, tendências, grupos e igrejinhas.

Melhor informado do que Carlinhos Ribeiro, impossível.

   - Aliás - mestre Afrânio amplia o sorriso bem-humorado -, comprei cada volume em duplicata, para mim e para você, compadre. Precisamos conhecer a fundo a obra de nosso candidato para poder elogiá-la.

   O velho Evandro não se dá por achado:

   - Elogiar, elogiarei, se necessário. Na guerra vale tudo, não é hora de se estar com escrúpulos. Agora, ler... não, é pedir demais. Meufanismo, estilo terso... Conheço o gênero. Quanto menos tenha lido, mais poderei elogiar.

 

AS BELAS-LETRAS, UM BÁLSAMO

 

Desfeita a ilusão ministerial, posto na reserva para esperar a compulsória, o General Waldomiro Moreira decidiu voltar-se exclusivamente para o trabalho literário e a glória dele decorrente, modesta porém reconfortante. Teve contudo uma reincidência beligerante e deu-se mal.

 

   A polêmica coluna dedicada à defesa dos cânones lingüísticos proporcionava-lhe seleta correspondência e cordiais relações com outros exaltados cultores do idioma, alarmados com o descaso pelos preceitos mais elementares da gramática, descaso evidente na literatura moderna, escrita em nagô, em cabinda, em quimbundo. Encontrava-se entregue à revisão do terceiro tomo das Histórias da História do Brasil quando a guerra estourou na Europa, dando lugar à reincidência.

 

   O General acumulava. Autoridade em questões de linguagem (competente filólogo, na opinião consagradora de Rivadávia Pontes, autor de Verbetes Gramaticais) e autoridade em ciências bélicas, aluno laureado pelos professores da Missão Militar Francesa, invencível nas manobras militares. Assim sendo, no mesmo Correio do Rio onde, aos domingos, ensinava como bem escrever, passou a ditar quotidianamente os rumos da Segunda Grande Guerra Mundial, em breve e afirmativo comentário, A Guerra, Dia a Dia - Análise e Previsões, assinado com suas iniciais, Gen. W. M.

 

   Não alcançou o estrategista o mesmo êxito do gramático. Entrincheirado na intransponível Linha Maginot, as panzerdivisionen de Hitler reduziram a pó seus sólidos conhecimentos. Num total desrespeito às regras estabelecidas da ciência bélica, desmentiam todas as tardes as análises e previsões matinais do comentarista. O Gen. W. M. começara a perder terreno com Gamelin, sucumbiu com Weygand, de derrota em derrota - uma hecatombe. Decepcionado, aproveitou-se dos repetidos cortes da censura aos epítetos com que se vingava do avanço do Führer e deu por findo o compromisso para alívio do diretor do jornal.

 

   Recolheu-se de novo às belas-letras que o compensaram da decepção gratificando-o com o bom acolhimento concedido ao volume das Histórias da História do Brasil, alvo de críticas favoráveis. O fiel Sabença escrevera longo artigo laudatório e o egrégio Altino Alcântara, da Academia Brasileira, agradecera com uma carta ao prezado confrade o envio de seu novo livro, em cujas páginas, a par da linguagem escorreita, palpita lídimo patriotismo, na resenha de façanhas memoráveis. Frase transcrita na seção Livros e Autores, do futuroso Mauro Meira, no Jornal da Manhã.

 

   Mais difícil de superar, afigurava-se o desgosto doméstico devido à leviandade de Cecília que abandonara o marido em Curitiba, um aplicado e correto Capitão, para vir se badalar no Rio, praça maior. Homem de palavra e honra, o General sentiu-se indignado (mas não surpreso).

 

   A vaga na Academia Fluminense e a possibilidade de conquistá-la foram um bálsamo, cicatrizando feridas. Os últimos ecos dos deboches em torno dos comentários de guerra recolhidos aqui e ali (...é de se morrer de rir... - e riam às gargalhadas no gabinete do Coronel Sampaio Pereira lendo em voz alta A Guerra, Dia a Dia), espinhos incômodos, desvaneceram-se. Quanto aos amores de Cecília - amores?, o General prefere não usar a palavra justa -, ele os deixou a cargo da mãe da transviada, dona Conceição do Prado Moreira, robusta senhora com quem se casara, quando, viúvo sem filhos aos trinta anos, servindo em Mato Grosso, não pudera suportar a solidão.

 

   Também dona Conceição provinha de tradicional família de militares. O mandonismo do marido não chegou a afetá-la, estava acostumada. Antes de sujeitar-se à sua autoridade, sofrerá a do irmão em cujo lar vivia até o abençoado encontro com Moreira. O casamento, além de retirá-la do barricão, a libertara dos maus bofes da peste da Cunhada. Quanto a Cecília, saíra ao pai, obstinada, cabeça-dura, insensível a argumentos e ameaças. Mas, sendo íntegro o General e comedida dona Conceição, de quem a filha herdara a ânsia incontida, a desbragada sensualidade, a incontinência? Só Deus sabe.

 

   Houvesse o General recebido, conforme combinado, telefonema de Sabença com a boa nova do acordo do Presidente, poderia almoçar tranqüilo, estendendo-se depois na espreguiçadeira para a sesta, o coração leve e alegre. Diria ao amigo que viesse no fim da tarde, juntos combinariam detalhes da eleição e da posse. De repente, tudo mudou. Em vez do estadual Claudionor Sabença, autor de antologia e de livros didáticos, membro da Academia Fluminense, telefonara o eminente Rodrigo Inácio Filho, autor das Memórias Alheias, obra-prima, membro da Academia Brasileira.

 

   O coração do General acusa o golpe, aquela pontada. Dona Conceição traz a pílula e o copo com água:

 

   - Por que você não se deita um pouquinho, Moreira, enquanto o almoço não sai?

Servido impreterivelmente às doze horas e trinta minutos, até o almoço se atrasou naquele dia.

 

HIPÓTESES,POUCAS E ABSURDAS

 

Uma comissão de membros da Academia Brasileira de Letras! Ao telefone, doutor Rodrigo fora formal: solicitava ao caro General Moreira marcar dia e hora, em data próxima, para receber uma comissão de acadêmicos. Isso depois de relembrar o encontro no memorável banquete, temas de conversa, desfazendo qualquer suspeita de trote, inocentando o malévolo Ladeira. Mas nada adiantara sobre o objetivo da visita e ao General parecera incorreto perguntar. Respondeu estar às ordens, a qualquer dia e hora, e referiu-se à subida honra.

 

   -Uma comissão da Academia Brasileira! Já pensou, Conceição? Que diabo os traz aqui?

   Tendo lhe dado o comprimido, dona Conceição tenta acalmá-lo:

   - Por que não   se deita, enquanto tiro o almoço?

 

   Deitar-se! Como se fosse possível. Recusa cama, poltrona, espreguiçadeira. O telefonema deve ser produto de um equívoco qualquer. Mas, qual? E, se não for um equívoco? Quem sabe, cogitam de seu nome para o Prêmio Machado de Assis, láurea máxima concedida anualmente pela Academia, coroando o conjunto de obras de um escritor. Já tem acontecido, em caso de impasse entre dois autores, ambos fortes, decidirem-se por um terceiro, imprevisto. Bem informado sobre os bastidores das letras, o General conhece regulamentos e hábitos da Ilustre Companhia. Sabe que, no caso do Machado de Assis, o escolhido é objeto de discreta consulta anterior, feita através de um Acadêmico de suas relações, com a natural reserva. Jamais ouvira falar de uma comissão dirigindo-se à casa de confrade para lhe perguntar se aceita o apetecível prêmio - alta honra acompanhada de polpuda dotação em dinheiro. Não sendo o Machado de Assis, que poderia ser? Problema capaz de enlouquecer o mais calmo dos homens. O General tem pela frente mais de vinte e quatro horas de aflição e desassossego, pois o doutor Rodrigo propusera o dia seguinte, às seis da tarde. Vinte e nove horas, para ser estrito na contagem do tempo de agonia.

 

O General marcha de um lado para outro da sala, em passo cadenciado - grande, corpulento, rosto avermelhado, cabelo à buscarré. Nem mesmo o pijama esconde a condição militar, visível em cada traço, em cada gesto, na autoridade que é parte integrante de sua pessoa. Que diabo traria à sua casa uma comissão de membros da Academia Brasileira de Letras?

 

   Sabe da morte do poeta Antônio Bruno e da vaga por ela aberta mas não se permite imaginar qualquer espécie de conexão entre a anunciada visita e o fúnebre acontecimento com sua conseqüente e festiva possibilidade. Nunca lhe passou pela cabeça tão impossível fantasia. Mas, quisesse ou não, a hipótese se impunha, perturbadora. Cecília, ao ter notícia do telefonema e da entrevista, irrompe na sala:

   - Vão botar o senhor, Pai, no lugar desse que morreu agora. Ai, o coração do General.

   - Não digas tolices.

   - Então vão chegar com uma lista, pedindo dinheiro para o busto de um deles. Vivem inaugurando bustos.

   - Busto! Não sabes o que falas.

   Dona Conceição chama para o almoço, com meia hora de atraso, que dia, Senhor! O General Moreira olha com desgosto a comida de regímen, perdeu o apetite.

 

   Larga o garfo para atender ao telefone o tardio Sabença que se desculpa pelo atraso e informa sobre o adiamento do encontro com o doutor Linhares. Preso à cabeceira de um enfermo, o Presidente não comparecera à Santa Casa. Mas ficasse tranqüilo o caro amigo, daí a vinte e quatro horas sua candidatura estaria oficializada com o apoio necessário. O General esforça-se para esconder o nervosismo, agradece com falsa efusão.

 

   Na mesa, dona Conceição discute com Cecília sobre o que servir aos importantes senhores, membros da Academia Brasileira, Imortais de verdade, com direito a fardão e a jeton. No inesquecível primeiro semestre de 1937, o ilustre General Waldomiro Moreira e sua Excelentíssima Esposa receberam convite para a sessão solene de posse do doutor Alcântara, aquele político de São Paulo, e compareceram:

  - Um deslumbramento, menina. Parecia uma corte real.

 

A Academia Brasileira, essa sim. Pagava a pena perder tempo, gastar os nervos, fazer força na disputa de uma vaga, mas essa pelo jeito não chega para o bico de Moreira, reduzido a pedinchar apoio para uma academiazinha de meia-tigela, sediada em Niterói, sem fardão, sem jeton, sem retrato nos jornais. Tais pensamentos ocorrem a dona Conceição mas os guarda para si, Moreira hoje está nos azeites e Cecília é uma cabeça-de-vento. Vai ver é ela quem está com a razão: facada, peditório de dinheiro para erguer um busto ao tal poeta que morreu, um arrasta-saias, segundo lhe disseram. No cemitério, escandaloso bando de mulheres chorando atrás do caixão. Ainda bem que Cecília não o conheceu.

   - O que é que vou servir? Cerveja, guaraná? Posso encomendar umas empadinhas, umas coxinhas de galinha?

   - É melhor não servir nada. Cerveja, onde se viu?-corta brusco o General.

   - Pelo menos um licorzinho de frutas. Ou chá? Não é chá que eles tomam lá na Academia?

   - Por que não serve somente um cafezinho, Mãe?

   O General esteve de acordo com a filha. Com o cafezinho e, a medo e esperançado, com a primeira conclusão a que ela chegara:

   - Vão botar o senhor no lugar desse que morreu agora. Vinte e nove horas de espera, com a noite insone pelo meio; se o coração agüentar fica provado que o clínico e o cardiologista não passam de meros charlatães.

 

BALE DO CANDIDATO

 

No dia seguinte, às onze da manhã, o General Waldomiro Moreira oficializou sua candidatura à Academia Fluminense de Letras. A carta contendo o pedido de inscrição foi entregue ao dedicado Claudionor Sabença que, após ter obtido a aprovação do Presidente Linhares, às nove horas, na Santa Casa, partira de bonde para a residência do General, no Grajaú, levando a boa nova. Para tanto, enforcara o jornal naquela manhã.

 

Oito horas depois, às sete da tarde, viu-se candidato à Academia (Brasileira, atendendo a convite de ínclita comissão de acadêmicos confiou a carta de inscrição ao romancista Afrânio Portela. Nunca imaginara o General tê-lo como leitor, quanto mais constatar o íntimo conhecimento de sua obra revelado pelo famoso autor de A Mulher no Espelho, em exaustiva análise da galeria de figuras exemplares retratadas nos três tomos das Histórias da História do Brasil e dos problemas abordados em profundidade no volume dos Prolegômenos Idiomáticos.

 

   Leitor veterano, tendo acompanhado passo a passo, livro a livro, vossa brilhante trajetória intelectual, conforme afirmou, mestre Afrânio dava a impressão de recém haver terminado a leitura, tal a segurança demonstrada ao citar de memória longos trechos, repetindo, ao pé da letra, imagens e diálogos.

   - Que memória extraordinária, Mestre! - Extasiou-se o emocionado Moreira.

   -Tenho lido e relido; não uma, várias vezes. - Sorriu sem pejo Afrânio Portela.

 

   Evandro Nunes dos Santos desviou os olhos do compadre: guerra é guerra, vale tudo. Passou a ratificar com vigorosos adjetivos os laudatórios conceitos do comparsa: -Admirável!, - Magistral!, Magnífico! Adjetivos provindos do velho e temido ensaísta cresciam em valor, não tinham preço. Também os outros três acadêmicos concorreram com sua quota de louvores. Confuso, o General já não encontrava palavras para agradecer. Dava-se conta de como subestimara a própria obra.

 

   Em certo momento convocara esposa e filha para que testemunhassem a ilimitada honra com que o cumulava aquela ilustre comissão, representando poderoso grupo de acadêmicos. Puderam assim ouvir os elogios aos livros do esposo e pai. Dona Conceição sentiu-se impressionada e Cecília vibrou.

 

   Quarenta minutos após a partida dos dois grandes automóveis levando de volta os Imortais, o General, tendo alcançado Sabença pelo telefone, devolveu-lhe a vaga fluminense, requisitando de volta a carta de inscrição e prometendo novidades excitantes. Venha depois do jantar e contarei tudo. O amigo -vai ter uma grande surpresa.

 

   - Quer dizer que não é mais candidato à Academia? - Sabença não conseguia entender: após a trabalheira para conseguir o apoio do Presidente, quando

tudo estava resolvido...

   - Sou candidato à Academia, sim. O que não sou é candidato à Fluminense...

   - Não estou percebendo...

   - Vai entender quando eu lhe explicar. Diga ao Linhares que agradeço o convite mas que ele pode dispor da vaga.

 

  Convite? - surpreende-se Sabença. Mas, se não houvera convite algum, só ele sabia o esforço gasto para convencer o doutor Linhares. Não fosse o respeito que lhe merece o General - patente é patente -, Claudionor Sabença deixaria escapar um palavrão ao telefone. Não o fez, desligou melancólico: a trabalhosa candidatura abrira-lhe as portas da casa cordial do Grajaú onde, mariposa de sonho, volita Cecília, ateando desejos. Vez por outra, Claudionor Sabença comete versos.

 

BALANÇO INICIAL DOS EFETIVOS

 

Havia uma semana, por ocasião do velório de Bruno, eles eram dois: Afrânio Portela e Evandro Nunes dos Santos. Logo foram três, com o recrutamento de Rodrigo Inácio Filho; à casa do General compareceram cinco, os acima citados e mais Henrique Andrade, biógrafo de Ruy, de Rio Branco e de Nabuco, e R. Figueiredo Júnior, dramaturgo cujas peças, antes disputadas pelas empresas de teatro, haviam desaparecido dos cartazes à proclamação do Estado Novo. Abordavam temas de cunho social e seus heróis, gregos ou cearenses, uns e outros apregoavam a liberdade e defendiam os direitos humanos.

 

   As sondagens realizadas entre os colegas, nos dias que precederam e sucederam a sessão de saudade, levaram Afrânio Portela a contar de início uns oito votos seguros para o General. Evandro garantia doze, mas sendo o velho ensaísta de entusiasmo fácil, seus cálculos não mereciam confiança.

 

Quanto ao Coronel, feitas e refeitas as contas, Portela concluiu que ele partia com quinze votos mais ou menos garantidos. Podendo, se agisse com rapidez e firmeza, aumentar sensivelmente esse número, assegurando a vitória. Mas podia também crescer pouco e até perder alguns dos sufrágios tidos como certos, se a iniciativa da rapidez, da firmeza e sobretudo da astúcia pertencesse aos adeptos do General Waldomiro Moreira.

 

   Somando os oito votos iniciais do General com os quinze do Coronel, obtinha-se um total de vinte e três compromissos. Assim, dos trinta e nove eleitores, sobravam dezesseis a serem ganhos durante a campanha eleitoral. Campanha eleitoral que viria a ser conhecida sob o nome de Batalha do Petit Trianon, quando os fatos se tornaram legenda.

 

   - Ação fulminante e chicana à vontade! - essa foi a ordem do dia ditada por mestre Afrânio após o primeiro cálculo dos efetivos. Na visita ao General, um detalhe surpreendera o romancista: a disposição com que o candidato aceitara enfrentar o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, como se não desejasse outra coisa. Tinham com certeza contas a ajustar. De natural curioso, mestre Portela pretende tirar a limpo as razões daquele combativo furor. Por ocasião do jantar, quando os vinhos quebrassem o protocolo.

 

   Com o fim de traçarem os planos de batalha e para atender às ordens expressas de dona Rosarinho - quero ver a fachada desse vosso General e a da mulher dele -, o casal Waldomiro Moreira fora convidado a jantar em casa dos Portela, em companhia de Evandro e de Rodrigo Inácio. O convite não incluíra Cecília mas ela se incluiu de moto próprio. Não ia perder aquela oportunidade de conhecer a civilizada mansão da Praia do Flamengo, tão citada por Jacinto de Thormes, Gilberto Trompowski e os outros ainda pouco numerosos mas já influentes cronistas sociais.

 

   Sem falar que esse doutor Rodrigo, o ar de fidalgo espanhol, as têmporas grisalhas, as mãos cuidadas e o blazer inglês, povoa, perturba e deleita há dias os sonhos de Cecília e a faz suspirar. Ah!, os sonhos de Cecília, se aqui fossem narrados, transformariam esta pequena fábula acadêmica em sensacional best-seller.

 

INFORMAÇÕES INDISPENSÁVEIS PARA A BOA COMPREENSÃO DA HISTÓRIA E ÚTEIS A ALGUM

EVENTUAL PRETENDENTE À ACADEMIA

 

Agora, inscritos os dois candidatos, impõem-se alguns esclarecimentos sem os quais será difícil acompanhar a sucessão dos fatos e entender a anedota em todos os detalhes. Estranho às boas regras da narrativa, este parêntesis regimental encontra desculpa na razão exposta e pode, quem sabe, vir a ser de utilidade a possível postulante à Academia, pondo-o a par de normas e hábitos de indispensável conhecimento.

 

   Morto e sepultado o Imortal, a cadeira que ele ocupou é declarada vaga na primeira sessão após seu falecimento - a já referida sessão de saudade. Quatro meses depois se dará a eleição do sucessor.

 

  Durante os dois primeiros meses dos quatro que separam a sessão fúnebre da festiva, as inscrições permanecem abertas a quem queira se candidatar: bastava ser brasileiro de sexo masculino (somente trinta e seis anos depois seria permitida a candidatura de mulheres) e ter publicado ao menos um livro. Esgotado esse prazo de dois meses exatos, as inscrições se encerram. Nos dois meses restantes, cumpre aos concorrentes cabalar os votos dos acadêmicos e a esses cumpre escolher a quem honrarão com seus sufrágios.

 

   Para ser eleito, o candidato necessita alcançar maioria absoluta dos votos (metade mais um) dos acadêmicos vivos, num dos quatro escrutínios permitidos na sessão. O voto é secreto; os Imortais presentes depositam as cédulas numa urna onde são incineradas após a contagem. Os ausentes participam do pleito, enviando seus votos em envelopes fechados, acompanhados de carta justificativa do não comparecimento.

 

   O Acadêmico pode se abster de votar e pode votar em branco. No primeiro caso, não reconhecendo qualidades intelectuais no(s) candidato(s), não deseja contudo hostilizá-lo(s) pessoalmente. Já o voto em branco significa discordância bem mais radical: demonstra repulsa do Acadêmico em relação à(s) pessoa(s) do(s) candidato(s) a quem não considera digno(s) de com ele conviver na Ilustre Companhia. A abstenção não compromete a unanimidade, se um candidato obtiver todos os demais votos. O voto em branco a impede.

 

   Concluída a eleição, os acadêmicos comparecem em massa à residência do novo companheiro, onde encontram farta mesa de comes e bebes, preparada pela família do candidato para festejar a esperada vitória. Hábito dos mais louváveis, o serviço se estende ao sempre considerável número de pessoas - intelectuais, políticos, autoridades, coestaduanos, amigos e admiradores - que acorrem a felicitar o recente Imortal. Brindam-se com champanha, escorre o uísque, a recepção prolonga-se pela noite gloriosa.

 

   Dois ou três acadêmicos, antes de levar seus abraços ao eleito, dirigem-se em triste obrigação à(s) casa(s) do(s) derrotado(s) para as explicações, a solidariedade na hora amarga e a abertura das perspectivas de praxe: da próxima vez... Na opinião de Rodrigo Inácio Filho, árbitro em decoro e protocolo, a compostura ordena que, nesses fatais encargos de consolo, os componentes da delegação, em respeito à acabrunhada família, não aceitem os doces, os salgados e as bebidas se por acaso encontrarem ainda posta a mesa comemorativa da vitória certa que não houve.

 

AS ETAPAS DA BATALHA

 

A batalha do Petit Trianon durou pouco mais de dois meses. O término, um tanto inesperado, aconteceu dez dias após o encerramento do prazo para inscrição de candidatos à vaga aberta na Academia Brasileira com a morte do poeta Antônio Bruno. Apenas dois concorrentes tinham se apresentando - o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira e o General Waldomiro Moreira (por ordem de inscrição). Nenhum civil ousou fazê-lo; generalizava-se a opinião segundo a qual a cadeira pertencia de direito e tradição aos militares. Fora ocupada indevidamente pelo poeta Bruno, paisano e boêmio, em razão de inexplicável descuido castrense.

 

   Os sucessos posteriores, ocorridos do fim da Batalha até a data da eleição, já nada tiveram a ver com a pugna proposta e comandada por  mestre Afrânio Portela. Não mais guerra e sim, guerrilha, na qual o romancista foi apenas lugar-tenente, tendo assumido o comando supremo das forças de resistência o velho Evandro Nunes dos Santos, disposto a provar não existirem

na Academia cadeiras cativas, reservadas a esta ou àquela corporação, qualquer que fosse seu caráter,

 

   No decorrer dos dois meses e dez dias da acirrada contenda pela conquista do Petit Trianon, o panorama bélico dividiu-se em três etapas distintas. Durante os primeiros vinte dias, a iniciativa coube às forças reunidas em torno do General Waldomiro. O impacto causado por sua inscrição - grata ou importuna surpresa para a maioria dos Imortais, convencidos de que o Coronel Sampaio Pereira seria candidato único, sem adversários - e a ação fulminante desencadeada a seguir, obedecendo à ordem de combate de mestre Afrânio, levaram o General a ocupar algumas posições valiosas, obtendo novas adesões, inclusive de desertores do campo inimigo. O inimigo, seguro da vitória, descurara-se da campanha; tão cônscio de uma marcha pacífica até o triunfo final, a ponto do Coronel ter adiado o início das visitas protocolares aos Senhores Acadêmicos para sua volta da viagem de inspeção ao sul do país, a Santa Catarina onde haviam ocorrido fatos intoleráveis e ao intranqüilo Rio Grande do Sul. Aproveitou-se Afrânio Portela para o impetuoso ataque.

 

  Ao avanço inicial da candidatura Moreira, sucedeu vigorosa, violenta reação das forças fiéis ao Coronel Agnaldo Sampaio Pereira. Refeito do abalo - a prometida candidatura única levara a breca -, Lisandro Leite convocou maciço apoio de aliados externos, dos mais influentes, capazes de mudar o curso da refrega, forçando o General a vergonhosa derrota, reduzindo sua votação a inexpressiva meia dúzia de sufrágios, tal a pressão exercida sobre os vacilantes eleitores.

 

   Como responder a esse embate de intervenções estranhas, de coação e suborno, armas do enfurecido Lisandro, características da segunda etapa? Não vacilou mestre Portela. Desencadeou o embuste e a chicana {chicana à "vontade!), usando e abusando da farsa e do absurdo.

 

   No último período, nos vinte dias derradeiros da mirabolante Batalha, constatava-se um equilíbrio de forças, pelo menos aparente, em meio à confusão reinante. Os mapas militares de um e outro exército - os impressos com a relação dos acadêmicos, nomes, endereços e telefones, rabiscados com sinais cabalísticos - repetiam idênticas conquistas; pelo menos uns dez nomes figuravam nas listas dos dois adversários: votos certos para o Coronel, segundo Lisandro, para o General, ao ver de Portela. Nessa altura da peleja, em ações de ataque e defesa os dois campos utilizavam sutilezas e ardis, o boato e a insinuação, estratagemas que iam da intimidação à lisonja.

 

   Quando mais rude e tenso estava o combate, aconteceu o repentino e definitivo término da Batalha do Petit Trianon. Mais do que um clamor de triunfo, houve um suspiro de alívio no campo dos vitoriosos.

 

OS ACONTECIMENTOS DE SANTA CATARINA

 

Intenso e permanente apoio externo favoreceu a candidatura do Coronel. Pelo menos uma vez, dele se beneficiou também o General - a tranqüilidade com que pôde manobrar nos primeiros dias decorreu dos acontecimentos de Santa Catarina. Apoio casual porém efetivo, pois o Coronel Sampaio Pereira teve de abandonar os assuntos acadêmicos para atender a outras frentes sob sua direta responsabilidade, sendo ele, como se sabe, um dos baluartes da ditadura e um dos principais fiadores da aliança (em plena vigência apesar de informal) entre o Terceiro Reich e o Estado Novo. Sem o saber, o Capitão Joaquim Gravata, nordestino destacado para servir em Santa Catarina, participou da Batalha do Petit Trianon, em sua primeira etapa, garantindo a liberdade de movimentos do General e dos patrocinadores de sua candidatura.

 

  Desde o advento do Estado Novo encontravam-se proibidas em todo o país manifestações políticas de qualquer tipo, e colocados fora da lei os partidos, fosse qual fosse sua condição e ideologia. Sobrepondo-se aos demais regímens totalitários, o Estado Novo dispensava inclusive o clássico partido único. Oficial educado no amor à Pátria, o Capitão Joaquim Gravata era extremamente sensível a tudo quanto diz respeito à integridade do território e à dignidade nacional. Servira na selva amazônica, sentinela vigilante pronta a repelir qualquer tentativa de violação de nossas fronteiras por vizinhos mal-intencionados.

Patriota provado no extremo norte, em Santa Catarina revelou-se ferrenho cumpridor da lei.

 

   No inquérito aberto a propósito dos acontecimentos, tentaram confundir esse

seu respeito à letra da lei com idiossincrasias políticas mas o processo terminou arquivado por falta de provas quando, após Pearl Harbour e Stalingrad, a Segunda Grande Guerra Mundial tomou novos rumos, abolindo alianças infames e levando o Capitão Joaquim Gravata aos campos de luta na Itália onde conquistou medalhas e dragonas.

 

   Vindo diretamente do meio dos caboclos ribeirinhos para comandar a Companhia sediada em Blumenau, cidade de colonização alemã, o Capitão Gravata pensou ter desembarcado em terras estrangeiras. Menos pela brancura da gente ariana, os cabelos loiros, os olhos azuis, a inconfortável predominância do idioma alemão sobre o português, mas sobretudo constatar completo desprezo e freqüente desobediência às leis ditadas pelo Governo - mau ou bom, tratava-se do Governo do Brasil, país independente, situado na América do Sul.

 

  Até bem pouco anos brasileira e pacífica, durante a guerra Blumenau parecia belicosa colônia germânica. Sergipano, favorável à miscigenação, exigente no respeito à soberania nacional, o Capitão aborreceu-se com o que ali viu e constatou. Realizavam-se constantes manifestações políticas, públicas e ruidosas, em clubes, escolas, templos, ruas e praças. Passeatas percorriam a cidade, comemorando vitórias dos exércitos nazistas, conduzindo bandeiras e emblemas, a suástica e retratos do Führer. Desfiles paramilitares, os jovens fardados com uniformes dos SS e dos SÁ, camisas pardas e camisas negras, marchando a passo de ganso, os braços levantados em saudação aos Chefes, os gritos de Heil Hitler! Nos palanques dos jardins e parques, pronunciavam discursos exaltados e agressivos - em dialeto bávaro soavam ainda mais insolentes.

 

  Ora, as manifestações políticas, em recinto fechado ou em praça pública, estavam todas elas proibidas. Também o funcionamento dos partidos, sem exceção. Todavia o Partido Nacional-Socialista Alemão, cujos órgãos supremos sediavam em Berlim, agia abertamente naquela cidade que, na opinião do Capitão Joaquim Gravata e da tropa sob seu comando, devia permanecer brasileira. Disposto a fazer respeitar a lei, o oficial procurou o Prefeito para uma ação conjunta. O antigo Prefeito fora substituído no começo da guerra e o novo acumulava cargo de chefe da secção local do Partido. Sorriu da ingenuidade do molesto e mestiço Capitão - os decretos sobre concentrações políticas não se referiam às manifestações de júbilo com que a comunidade germânica comemorava as vitórias da Wehrmacht e, quanto ao Partido, escapava, por alemão e nazi, das injunções da lei brasileira. Sorriu de novo, dando o assunto por encerrado. O Capitão não gostou das explicações nem do sorriso e agiu.

 

  Apreendeu bandeiras, cruzes suásticas, emblemas diversos, ampla literatura em língua alemã, cartazes com palavras de ordem, inúmeros retratos do Führer e boa quantidade de armas. Fechou a sede do Partido, guardou a chave. O Prefeito revidou com uma passeata, o Capitão a dissolveu, trancafiando no xadrez alguns dos manifestantes mais exaltados.

 

   O eco desses acontecimentos na imprensa do país foi quase nenhum. Breves notas em um ou dois jornais mas logo a censura proibiu qualquer referência ao ocorrido e às suas conseqüências: a precipitada viagem do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, a remoção imediata do Capitão Gravata, o inquérito militar instaurado contra ele, a reintegração da suástica ao som das fanfarras, os braços para o alto, os discursos e os rugidos de Heil Hitler!

 

   Enquanto o Coronel restabelecia a ordem e restaurava a autoridade em Santa Catarina, prosseguindo em inspeção ao Rio Grande do Sul para prevenir episódios semelhantes, fortalecendo com sua presença a aliança teuto-brasileira, o General apressou as visitas aos Senhores Acadêmicos. Declamava estudado discurso: escritor e militar, Oficial-General, historiador e filólogo, ao concorrer a uma cadeira tradicionalmente ocupada por figuras do Exército, vinha solicitar o apoio do ilustre Imortal, consubstanciado no voto.

 

   Para alguns acadêmicos tratava-se de gratificante candidatura: se ela não existisse, não teriam outro jeito senão votar no execrável nazista. Para outros, incômoda: se ela não existisse, o Coronel seria candidato único e, não havendo opção, eles poderiam votar tranqüilamente no prestigioso líder, sem receio de críticas e censuras, de insinuações malignas.

No desejo de evitar que se diga haver o Capitão Joaquim Gravata entrado na disputa dessa curiosa eleição acadêmica sem ter com ela a mais mínima ligação, vale a pena revelar que o nome do poeta Antônio Bruno não lhe era desconhecido. Lera emocionado, em amarfanhada cópia a mão, o Canto de Amor para uma Cidade Ocupada e nele encontrara alento e apelo à luta. Ao chegar a Blumenau, cidade também ocupada, decidiu libertá-la.

 

VINHO DO PORTO E BISCOITOS INGLESES

 

Dado o sigilo a cercar o deslocamento do Coronel Sampaio Pereira, que deixara o Rio de Janeiro com destino ignorado, em missão de segurança nacional, o Desembargador Lisandro Leite não pôde sequer preparar-lhe o espírito. Em vão buscou saber onde encontrálo, como se comunicar com ele. Antes da brusca partida, o Coronel lhe telefonara:

   - Devo ausentar-me por uns dias, assunto urgente. A visita ao Embaixador terá de ser adiada para minha volta.

   - Vá descansado, explicarei pessoalmente ao Francelino. Quando o caro Agnaldo regressar, organizaremos um calendário para as visitas. Candidato único goza dessas vantagens: não precisa correr... - não se dando por satisfeito, acrescentou: - Aqui ficarei eu, de sentinela... - palavras impensadas.

 

   Tendo entregue na Secretaria a carta de inscrição do Coronel em seguida à sessão de saudade, confiara no temor geral reinante no país: ninguém ousaria apresentar-se, afrontando o Governo, desafiando os donos do poder. Nos primeiros dias, ao sair do Tribunal, dava um salto no Petit Trianon, trocava gentilezas com o Presidente, constatando não haver novidade a assinalar. Depois, tranqüilizado, considerou dispensável tamanha vigilância, espaçou as idas à Academia, reservando o tempo para conversas telefônicas com os colegas de imortalidade, prometendo-lhes uma era de benesses oficiais para a Ilustre Companhia em conseqüência da eleição do Coronel Sampaio Pereira.

Cumprindo o combinado, ao fim daquela tarde, após a partida do caríssimo Agnaldo, o Desembargador rumou para o apartamento em  que residia o Embaixador Francelino Almeida, servido por uma velha criada que se ocupava de todo o serviço e a quem ele dava o título de Governanta. Ia levar as explicações do Coronel e marcar nova data para a visita de cortesia, quando o candidato pessoalmente comunica ao Acadêmico sua pretensão e solicita apoio. Decano da Academia, único dos fundadores ainda vivo, Francelino habitualmente era o primeiro a ser homenageado com a visita dos pretendentes, em prova de respeito e estima.

 

  Na sala onde a Governanta o deixara esperando, Lisandro bateu os olhos em magnífica cesta contendo frutas estrangeiras, latas de biscoitos ingleses, chocolates suíços, portos e quinados portugueses. Ao lado, na mesa, a etiqueta da mercearia Ramos Sc Ramos, a mais conceituada e cara da cidade, e um cartão, retirado do envelope: Ao ilustre Embaixador Francelino Almeida, expoente das letras e da diplomacia, homenagem de profunda admiração do General Waldomiro Moreira. O jurista conhecia de nome o General e de vista aquela letra, inimitáveis rabiscos traçados pelo maquiavélico Afrânio Portela. Sentiu um choque. Qual o significado de cesta tão opulenta, presente régio? Também ele enviara uma, menos vistosa, de etiqueta mais barata, ao mesmo Francelino, assinando no cartão o nome do Coronel. Diabólico Portela, além de tudo plagiário!

 

   Francelino Almeida, lisonjeador, prestativo, agradável comensal, alcançara altos postos na carreira diplomática: Embaixador na Bélgica, na Suécia, no Japão, Secretário Geral do Itamaraty e para tanto a Academia lhe fora de grande utilidade. Jovem de vinte e oito anos, de reduzida bagagem literária - magro livro de contos e laudatório opúsculo sobre a obra de Machado de Assis -, seu nome figura entre os dos quarenta fundadores da Ilustre Companhia. O que, na época, não causou surpresa ou mal-estar, pois a bisonha Academia era pobre, desconhecida, não tinha sede própria e não pagava jeton. Trinta anos depois, Francelino ampliou sua escassa bibliografia com um volume de impressões sobre o Japão: O País do Sol Nascente (paisagens e costumes). Solteirão, deixara fama de tenaz admirador do belo sexo nos países onde serviu.

 

   Sir Anthony Locke, Embaixador de Sua Majestade Britânica junto ao Mikado, no escandaloso livro de memórias que publicou após retirar-se do serviço ativo, cita repetidas vezes Mister Almeida, incomparável companheiro na descoberta da vida noturna e dos ritos eróticos do Oriente. Durante todo um lustro abrilhantaram o corpo diplomático credenciado no Japão, adquirindo notável popularidade em locais equívocos e alegres - até à transferência deMister-Almeida, the Geishas'King, tão lastimada pelo lorde inglês. No livro de Francelino Almeida sobre os costumes nipônicos não existem referências nem a Sir Anthony Locke nem à vida noturna, apesar de que a idade não o tornara insensível aos encantos femininos. Muito pelo contrário.

 

   Informado da presença do colega, veio encontrá-lo na sala, onde o precedera a Governanta trazendo bandeja com dois cálices, uma garrafa de porto e pequena travessa com biscoitos. O Decano ouviu e acatou as escusas dadas em nome do Coronel.

 

   - Quando ele quiser, marcaremos outra data. Não pode ser amanhã, já reservei a tarde para a visita do General Moreira. Vou lhe dizer uma coisa, seu Lisandro: o melhor da Academia são as eleições. Os candidatos mostram-se tão gentis, tão... aduladores. Se não fossem as eleições, quem haveria de ligar para um velho como eu, Embaixador aposentado, cobrando do Itamaraty uma miséria por mês, em moeda fraca? Ninguém, meu caro. Mas basta haver vaga e "veja: em menos de dez dias recebi duas cestas de frutas, vinhos e  guloseimas, tudo importado, tudo da melhor qualidade. - Embebeu o biscoito inglês no vinho do Porto, amolecendo-o.

   - Quer dizer que o General Waldomiro Moreira também é candidato?

   - Não sabia? Acaba de se inscrever. Candidato forte, meu amigo.

 

   Nada disse sobre a formosa secretária do General que viera, em seguida à cesta, combinar dia e hora para a visita protocolar do novo pretendente à vaga do Bruno. Simpática e descontraída, demorara-se em alegre palestra e no correr da conversa deixara perceber seu desinteresse pelos jovens, estabanados e descorteses. Cortês, como bem poucos, o diplomata Francelino Almeida. Lisandro despediu-se, ficando de telefonar assim regressasse o Coronel, partiu a todo vapor para a Academia. Candidatura única, era umavez.

 

A SEDUTORA

 

   - O que eu não faria por ele?

Rosa de cobre, rosa de mel, rosa menina, relembrou mestre Portela, sorrindo com ternura na mesa discreta da leiteria. A moça enrubesceu, cabelos longos e lisos de índia, carnudos lábios de negra, olhos verdes de branca:

   - Continuou a me enviar rosas, mesmo depois de tudo terminado. Não haverá outro igual a ele.

   Afrânio Portela lhe explicou a situação, a necessidade de preservar a memória de Bruno, a importância do voto do Decano, fundador da Academia, único sobrevivente dos quarenta primeiros. Durante toda a vida, Francelino Almeida procurara agradar apenas aos poderosos e às mulheres. Poderoso, poderosíssimo, o Coronel Sampaio Pereira.

   - Seduzir um ancião? - espantou-se Rosa. -E com essa idade ele ainda tem olhos para mulher?

   - Olhos, com certeza. Sou testemunha.

 

   Na porta da Academia, uns quantos meses atrás, ele e Bruno haviam acompanhado o olhar cobiçoso do trêmulo Francelino acendendo-se na perna morena de uma jovem. O poeta defendera o Decano do comentário irônico de Portela, confessando que, ele, Bruno, quando nada mais lhe restasse devido à senectude, velho caquético, pretendia ficar sentado ao sol num banco de jardim, olhando as mulheres, contente da vida. Em silêncio, mestre Afrânio e Rosa, ambos mergulhados em suas lembranças, ele a recordar o amigo, ela a recordar o amante.

 

   Rosa terminou de beber o copo de leite. Sendo quase menina, aos dezoito anos, seduzira um homem maduro, trinta anos mais velho do que ela, por quem se apaixonara, vendo-o da janela do atelier enquanto costurava para senhoras ricas, da sociedade.

 

A COSTUREIRINHA

 

Rosa lera O Chá das Cinco, o emotivo e divertido conto escrito por Afrânio Portela, inspirado no seu romance coM Bruno. A história parecera-lhe bonita, romântica e inteiramente falsa. Baseada em fatos  verídicos - o pedido de casamento, por exemplo -, relatava no  entanto o oposto do que sucedera. Na narrativa do romancista, o conflito ocorria entre dissoluto don Juan e ingênua e desvairada donzela, joguete nas mãos do sedutor. O contrário, o oposto, o vice-versa da realidade. Mas quem acreditaria na verdade nua e crua mesmo se Rosa a revelasse? Apesar de sua fama de conhecedor da alma feminina, nem sequer Afrânio Portela poderia admitir que uma simples costureirinha adolescente agisse como ela agira. A própria Rosa não sabe por que o fez e não busca explicar. Loucura não foi, muito menos luxúria. Apenas amor, sol do meio-dia e plenilúnio.      

 

   Um espanto, um alumbramento, temporal desabando repentino e voraz, encharcando a terra, rasgando o céu com a luz dos raios. Audácia sem limites, despudor de vagabunda, quem a imaginaria capaz de tanto, temerária e intemerata?

 

  Na rua suburbana, Rosa atravessava séria e indiferente entre os galanteies, as propostas, a súplica e a petulância dos rapazes. Zecão, center-half do Madureira Atlético Clube, com convite para treinar no Botafogo, desistiu de perder tempo, plantado em frente ao beco. Soberba, metida a besta, opinava a vizinhança ao vê-la grave, absorta, o pensamento longe, posto no senhor sentado à mesa da Colombo. Mais lindo do que qualquer galã de cinema, sem comparação. Ainda não o sabia poeta nem famoso. Primeiro amou apenas o homem, depois teve a revelação da poesia, Deus era bom demais.

 

   De tanto eu olhar para ele, terminará por levantar a vista e me descobrir aqui junto à janela, agulha vai, agulha vem. Acontecera: o poeta ergueu os olhos até as sacadas do segundo andar e reparou na moça que o fitava sorridente. Demorou-se um instante, observando, tentando adivinhá-la na distância. Na mão, o cálice de cassis, lentamente o depositou na mesa.

 

   Depois voltou-se para atender à conversa do amigo. A mulher, no balcão, devia ser jovem e bem-parecida.

 

  Não vinha todos os dias e não tinha dia certo para vir. Ao pé da janela, Rosa à espera, incontida, desatenta ao trabalho, espetando a agulha no dedo.

Uma tarde, o displicente, ao levantar-se para partir, dirigiu uma última mirada ao atelier, quem sabe, casual. Rosa acenou adeus e ele, sorrindo, respondeu. No dia seguinte, Rosa atirou-lhe um beijo com a ponta dos dedos, em crescente atrevimento. Discreta, quase não usava pintura e enfeites; acabara de completar dezoito anos e jamais tivera namorado a sério. O fogo a consumi-la fora ele quem o ateara, virando-a pelo avesso. De longe, igual a um raio que tomba sobre a mata e a incendeia.

 

   De uma feita, levou toda a semana sem aparecer. Logo quando ela, tendo cobrado uns extraordinários por costuras levadas para terminar em casa, comprara o livro. Madame Picq, a modista, ao descobrir o objeto dos olhares da ajudante, revelara a identidade de Bruno:- Un poète célebre, ma petite, toutes les femmes veulents e coucher avec lui. Rosa viu o volume na vitrina da livraria próxima, reedição de O Dançarino e a Flor, soube do preço, trabalhou dobVado. Na escola pública não se destacara dos colegas. Agora, sem fazer esforço, guarda na memória poemas inteiros, repete estrofes e traduz a frase de Madame Picq, todas as mulheres querem dormir com ele. Ai!, Rosa não pensa noutra coisa e ao ler os versos descobriu que o lindo cavalheiro é inconseqüente trovador, irremediável boêmio, divino amante. Para merecê-lo, rompeu os elos que a prendiam nos limites da rotina e a conformada garota suburbana transformou-se em vampe agressiva e oferecida.

 

 Quando Bruno reapareceu e elevou o olhar para o balcão distante, Rosa fez-lhe um sinal e despencou pelas escadas, empunhando o livro. A corrida a colocou arfante, face a face com o poeta mais que surpreso, boquiaberto: não a imaginara tão formosa. Sentia-se gratificado cada vez que falava com leitor provindo das camadas populares. Orgulhoso com o fato de sua poesia ser conhecida e amada não somente por uma elite esnobe mas também pela gente simples, como aquela encantadora costureira. Angelical.

 

    Estava sozinho à mesa, o amigo ainda não chegara. Convidou-a a sentar-se, a tomar alguma coisa, chá ou licor, ele bebericava o indefectível cassis, hábito adquirido nos bistrôs de Saint-Germain-des-Prés. A moça recusou, os olhos postos nele. Me chamo Rosa Meireles da Encarnação mas bote somente Rosa. Bruno tomou da caneta, começou a escrever com aquela letra quase desenhada.

   - Para Rosa... - suspendeu a escrita, perguntou-lhe a brincar:

   - Com quê?

   - Com um beijo.

   Bruno sorriu, divertido. Rosa acompanhava a mão bem tratada sobre a página branca, traçando aquelas linhas perfeitas. Tudo nele era perfeito. A voz quente, cariciosa:

   - Por que não quer se sentar?

   - Aqui não... - viu-se dizendo.

   - Onde então? - perguntou entre espantado e trocista.

   - Onde quiser.

   - E quando pode ser? - ainda a caçoar porém intrigado.

   - Hoje mesmo, se quiser. Saio às seis do atelier.

 

   Mocinha, o vestido feito em casa, simples mas gracioso, modelo que ela mesma inventara. Podia ser sua filha e era provadamente pobre. O poeta a encontrava a seu gosto, não se achando, porém, no direito de tirar partido da situação, abusando dos sentimentos da menina a quem seus versos haviam comovido. Se tivesse mais idade ou se fosse uma daquelas debutantes da alta sociedade, ele não hesitaria. Mas não passava de uma criança sem juízo, à sua mercê, auxiliar de modista obrigada a ganhar o pão de cada dia. Esplendor de sangues misturados, uma pena; as condições faziam-na intocável. Sobravam mulheres igualmente belas nos salões, ricas e ociosas. Desculpou-se:

   - Hoje não posso, meu bem, tenho compromisso para jantar

   -Amanhã, então. Na hora que quiser. Saio às seis mas posso faltar. Amanhã, não é? - Os olhos verdes, fulgurantes, a boca semi-aberta, a negra e lisa cabeleira, toda ela exigindo local e hora.

  Bruno já não se divertia. Jamais vira, pelo mundo afora onde vivera e amara, desassombro igual, mulher tão disposta. Rendeu-se. Por que não, se ela se oferecia? Sempre teria tempo de recuar.

   - Amanhã, está bem. Quando saíres, às seis, estarei esperando na porta da livraria.

   Entregou-lhe o volume autografado, Rosa quis mais:

   - Posso retribuir o beijo? - Os lábios carnudos queimaram a face árabe do poeta, havia um parentesco entre eles dois. De África e Oriente.

 

   Recordando a cena, Rosa se interroga: qual a imagem verdadeira? A atrevida vampe que nascera da paixão ou a antiga moça, retraída e séria? Engraçado: Afrânio Portela recriara no conto a Rosa de antes, cândida, recatada, simples menina da Estação de Madureira.

 

   Quem primeiro pronunciou a palavra amor foi ela. Teve de seduzi-lo pois o conquistador de aventuras sem conta, o libertino don Juan, imaginando-a adolescente enamorada e ingênua, no enleio da poesia, ficou perplexo, não sabendo como agir para não desiludi-la nem magoá-la sem contudo lhe causar mal irremediável, truncando-lhe o destino, fazendo-a infeliz. Levou-a a passear, a comer iguarias em discretos restaurantes, mostrou-lhe os recantos mais encantadores da cidade, ofereceu-lhe livros, seus e de outros poetas, trazia-lhe rosas, segredou-lhe versos sob as árvores do Jardim Botânico um domingo pequeno-burguês de cartão-postal, beijou-lhe os dedos marcados pela agulha, a face morena e os olhos verdes e confidenciou a mestre Afrânio estar vivendo um romance burlesco e sensacional, diferente de todos os anteriores, amor platônico, feito de poesia e pudicícia. Mas Rosa era um incêndio ateado e se bem amasse cada palavra, cada gesto, cada leve carícia de Bruno, o toque dos dedos nos cabelos, o roçar dos lábios na nuca, não se contentava com tão pouco. Ofereceu-lhe a boca e o poeta redescobriu o beijo. Talvez porque antes lhe coubesse a iniciativa, enquanto agora fora ela quem o beijara. Rosa decidira ser sua mulher, não apenas namorada.

 

  Não podendo mais suportar as limitações que ele impunha, gentil e cauteloso, Rosa pediu-lhe que a levasse a conhecer a casa de Santa Alexandrina, fotografada numa reportagem recente da Revista dos Sábados: as paredes cobertas de quadros, os objetos exóticos trazidos das viagens, o anjo pendurado das vigas do teto, as trepadeiras subindo pela fachada, o jardim de roseiras e o poeta sentado, indolente, num degrau rústico, à entrada.

  - Não tens medo?

  - Só vontade.

 

   De mãos dadas cruzaram o jardim, ele inventou versos, os caracóis e os lagartos te saúdam, quis sentá-la na sala para lhe explicar um quadro surrealista, mas ela viera decidida e encaminhou-se para o quarto; haveria tempo para a pintura.

 

   Com certeza - pensou ele quando Rosa o tomou pela mão e rolaram juntos sobre o leito - ai!, com certeza já dormiu com outros e eu não passo de um velho bocó a imaginar virgindades e virtudes. Enganou-se mais uma vez: Rosa era virgem e possuía, entre muitas virtudes, a da valentia e da inteireza.

 

   Deslumbrado fauno, o poeta desceu ao jardim que cercava e escondia a casa e colheu todas as rosas, uma braçada. Estátua de cobre, estendida nua na brancura recém-maculada do lençol, Rosa parecia rezar, agradecendo a Deus. Antônio Bruno desfolhou as rosas, uma a uma, sobre o corpo apenas pressentido.

 

    Talvez Bruno não tivesse conseguido jamais compreendê-la, aceitá-la inteiramente. O amor que Rosa lhe dava e ele retribuía, feito de avidez e de suavidade-não existe criatura mais suave, disse mestre Afrânio ao conhecê-la-, despido de qualquer interesse mesquinho, deixava-o com molesto sentimento de culpa. O fato de Rosa nada lhe pedir não modificava a realidade: ela continuava sendo uma pobre costureirinha, ingênua adolescente, destinada, antes de encontrá-lo, ao matrimônio, aos filhos, ao lar, a uma vida tranqüila e honesta. Ao fazê-la sua amante, mudando-lhe o destino, ele se tornara culpado pelo futuro incerto que a esperava, desonrada.

 

   No dia em que, passados vários meses, olhou com interesse para outra e a desejou, sentiu-se na obrigação de propor casamento a Rosa para não deixá-la desamparada, perdida. Rosa recusou. Claro como água, sem maldade nem subterfúgios, Bruno nada podia lhe ocultar. Rosa soube, sem fazer qualquer pergunta, os motivos da oferta e disse não. Fui tua mulher, me basta. Não nasceste para ter esposa, serias mau marido. Antes que aquele quase imperceptível laivo de fastio crescesse em indiferença e o tempo da mentira começasse, ela partiu. Saiu da vida de Bruno como entrara, sem explicação.

 

Nem candidato único nem eleição unânime. Inquieto, Lisandro Leite coca a cabeça, enfia os dedos na juba de leão: como reagirá o Coronel ao encontrar desfeitas duas das mais gratas perspectivas abertas ainda recentemente pelo entusiástico cabo eleitoral? No desejo de ser o principal, senão o único beneficiário da vitória do influente mandachuva, o Desembargador não aceitou dividir responsabilidades, ocupando-se de tudo quanto se refere à campanha de Sampaio Pereira. Em troca, deve arcar sozinho com as conseqüências do insucesso das otimistas previsões iniciais. Maldito Portela! Enquanto Lisandro neutralizava o Reitor Raul Lameira, convencendo-o a esperar a próxima vaga - iminente: o Pérsio já não sai de casa, os médicos desistiram de operá-lo; do pulmão a moléstia se alastrara em incontrolável metástase -, o infernal Portela desencavara um General com vários livros e uma disposição de atleta. Corre de Imortal a Imortal, disposto a liquidar as visitas no mais breve prazo.

 

    Rábula terrível, o jurista merece a fama conquistada. Busca e encontra argumento capaz de provar que a existência de outro candidato possui um lado extremamente positivo. Expõe sua tese ao Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, de retorno da viagem ao Sul onde esmagara vis inimigos da Pátria, ou seja, da ditadura e do Führer.

 

   O combate se trava em todos os setores. Também na Ilustre Companhia eles se infiltram, os traiçoeiros inimigos. Levantaram a candidatura do General Waldomiro Moreira para dar uma opção aos acadêmicos, imaginando com isso reduzir a votação maciça do caro amigo. Rematada tolice pois não conseguem nem de leve abalar a sólida posição do Coronel, ameaçar-lhe a eleição. Ao contrário, o tiro lhes sai pela culatra; além de não atingirem o objetivo visado, com a inscrição do novo pretendente, os recalcitrantes da marca de Afrânio Portela, Evandro Nunes dos Santos e R. Figueiredo Júnior ficam impedidos de votar em branco. Sufragando o nome de um dos concorrentes, o Imortal manifesta simples preferência, enquanto o voto em branco demonstra repulsa, insultuosa rejeição. O perigo do desmoralizante voto em branco desapareceu.

   - Vindo do inimigo, não desmoraliza, engrandece - discorda o Coronel a quem

as notícias não agradaram e a explicação não convenceu.

   - É claro que, se o caro amigo tiver maneira de pressionar o General, colega de armas, levando-o a retirar-se do pleito, ele, Lisandro, tratará de conquistar a adesão de alguns daqueles tipos francófilos e de obter dos mais intolerantes que, em lugar de votarem em branco, se abstenham.

   - Pressionar o Moreira? Não adianta. Não me tolera, acha que concorri para que fosse chutado para a reserva e não deixa de ter razão. Mas, há mesmo quem vote nesse infeliz? Um paspalhão, alijado do comentário militar do Correio do Rio por incapacidade. Liberalóide insignificante. Só tem empáfia. )

   - Sem dúvida. Não vai passar dos sete ou oito votos. Não chegará a dez.

   - Tantos? - O Coronel franziu o cenho.

   - Podemos ganhar dois ou três, já estou trabalhando nesse sentido.

   - É preciso. Oito votos em Moreira Linha Maginot? Inaceitável. Conto com sua eficiência, Desembargador.

   Afetado pela decepção, não o tratara por Lisandro. O jurista sente a reserva revelada na substituição do prenome pelo título mas não se abate, há de reconquistar a confiança e a intimidade:

   - Deixe comigo, não pouparei esforços, tenho experiência e sei o que dizer a cada um. Agora, se estiver de acordo, trataremos de estabelecer o calendário das primeiras visitas. A verdade é que sua Vlagem nos fez perder um tempo precioso, necessitamos recuperá-lo, caro Agnaldo.

   - Tem razão, vamos a isso, amigo Lisandro.

   Respira o Desembargador, abre a pasta e dela retira duas listas impressas com a relação dos acadêmicos, entrega uma ao ex-candidato único:

   - Ao ataque, meu Coronel

 

ORDEM DE SERVIÇO

 

Estomagado com a notícia da candidatura do General Waldomiro Moreira, cresceu a irritação do Coronel Sampaio Pereira no correr das cinco primeiras visitas aos acadêmicos. Para quem iniciara a campanha sem opositor e com promessa de eleição unânime, o panorama da batalha se revelou flutuante e nebuloso. Não teme uma derrota, a vitória parece assegurada, mas não vai ser aquela festiva passeata, sob os aplausos feéricos dos Imortais. O rancoroso Linha Maginot, ao que tudo indica, ultrapassará os dez votos. Se não atingir doze ou quinze. Precisa discutir a sério com Lisandro, traçar novo plano de ação, lançar uma ofensiva que realmente esmague as pretensões do inimigo. Ao que soube, Moreira, fanfarrão e petulante, anda arrotando vitória.

 

  Dos cinco acadêmicos visitados, dois lhe hipotecaram irrestrita solidariedade, à qual um deles acrescentou informações objetivas e valiosas.

 

   Deixando, a conselho de Lisandro, os impetuosos rapazes da segurança (escolhidos a dedo entre os efetivos da Polícia Especial) nos automóveis estacionados na rua, o Coronel, fardado para acentuar o caráter militar de sua candidatura, após os cumprimentos e as gentilezas de rotina, declamava seu speech, a exemplo do General Moreira. Havia pontos em comum nos dois arrazoados (e sensíveis diferenças na forma, influenciado um por Afrânio Portela, o outro por Lisandro Leite). Declinavam idêntica condição literária e bélica, ambos escritores e Oficiais Superiores concorrendo a uma cadeira tradicionalmente ocupada por expoentes do Exército. Sampaio Pereira acrescentava que se inscrevera devido a uma imposição de companheiros de farda, chefiados pelo Ministro da Guerra, à qual ele, Oficial da ativa, em posto de comando, obedecia. Revelava por fim detalhe secundário mas de valor para quem espera fazer o elogio de um poeta lírico no discurso de recepção. Ensaísta político, cuja obra vultosa - doze volumes - o credenciava a disputar a vaga aberta com a morte de Antônio Bruno, fundamentalmente prosador, era também poeta. Autor de um livro de versos românticos, considerava-se idôneo epígono do saudoso antecessor.

 

    Um dos dois acadêmicos a lhe assegurar o voto revelou-se admirador caloroso e hábil fuxiqueiro. Agradeceu a remessa dos doze volumes (enviados após a inscrição a todos os Imortais com caprichadas dedicatórias), a maioria dos quais já possuía, fiel leitor e simpatizante das idéias do conspícuo pensador. Insinuou em seguida não lhe parecer das mais convenientes a maneira como estava sendo conduzida a campanha do Coronel. O amigo Lisandro, prestativo e operoso, merecedor de todos os elogios, todavia cometera alguns erros graves! -, descurando aspectos importantes. Preocupado com Raul Lameira que nem mesmo pensara em candidatar-se, em lugar de cobrir a área militar, a única perigosa. Quem manda atualmente em nosso país, responda-me? Os militares, graças a Deus, que nos estão salvando da anarquia, impondo à nação ordem e decência. Por isso, apenas outro candidato militar poderia fazer mossa ao nobre Coronel. Ganhar, não, o General não ganharia mas ia tirar votos, vários votos, que seriam dele, Sampaio Pereira, se Lisandro não quisesse açambarcar a campanha, não dando vez aos demais admiradores do preclaro amigo, também interessados em trabalhar a favor de uma vitória retumbante. O Coronel ouviu atento, estima os intrigantes e os delatores, neles se apoia na luta diária contra a subversão.

   - Minha candidatura é de todos os meus amigos, não apenas do Desembargador, a quem sou grato pelo muito que tem feito mas de cuja habilidade, confesso-lhe, começo a duvidar. Que me aconselha o caro amigo?

   - Uns cartões do Ministro dirigidos aos acadêmicos. Para os conhecidos dele, um telefonema. Quem pode resistir a um pedido do Ministro da Guerra?

  

   Dois lhe garantiram o voto, dois o negaram pela mesma razão e quase com as mesmas palavras: lastimavam mas o Coronel chegara atrasado, já haviam assumido compromisso com outro eminente militar, também ele escritor, o General do Exército Waldomiro Moreira. Nas duas vezes, Pereira Sampaio sentiu-se como se houvesse recebido uma bofetada. Retirou-se dessas visitas visivelmente irritado, tendo de se controlar para não demonstrar frieza ou desagrado ao despedir-se. Não escondeu de Lisandro Leite sua insatisfação: os nomes daqueles dois acadêmicos não figuravam na relação dos oito que, segundo o jurista, seriam os únicos votantes prováveis do insolente Linha Maginot.

 

   Em ordem de serviço menos cordial e afetuosa do que desejaria o Desembargador, o Coronel lhe ordenou lançar ao combate os aliados externos. Movimentar o Ministro, o Chefe do Estado-Maior, diversas autoridades, fazer promessas e, se necessário, insinuar represálias.

 

O DIPLOMATA

 

Dois votos a favor, dois contra e um sugerido mas não afirmado: o do Embaixador Francelino Almeida, o primeiro Acadêmico a ser visitado, em obediência à praxe.

O velho diplomata recebera o Coronel com extrema cortesia, biscoitos e xerez. Agradecera a cesta de frutas (ainda bem que Lisandro dera conhecimento ao candidato da iniciativa tomada quando os nervosos agentes da sua guarda de segurança atropelaram o frágil Imortal), tecera-lhe os maiores elogios mas não lhe garantira o voto. Tampouco o negara, é bem verdade, não falou em compromisso anterior. Ficara numa conversa mole, meio lá, meio cá, obrigando Sampaio Pereira a forçar a barra e colocar a questão:

   - Espero merecer a honra do seu voto.

   - Merece muito mais do que isso. Fique descansado que o senhor está aí, está eleito. Nem precisa de meu voto. - Colocava o cigarro turco na longa piteira de marfim, tais refinamentos desagradavam ao Coronel.

   Linguagem dúbia, típica do Itamaraty, quem pode entendê-la? Acostumado a dar nome aos bois, o Coronel sentiu-se perdido diante daquele homenzinho franzino e saltitante que o envolvia num palavreado confuso. Já tendo sido visitado por Moreira, Francelino nem uma vez se referiu ao General, nem sequer lhe citou o nome. Que significaria esse silêncio? O diabo o sabe. Diálogo difícil, interlocutor escorregadio, fugindo do assunto para elogiar o xerez e os biscoitos, exibir a piteira. Bem mais fáceis e estimulantes são os diálogos com os subversivos nos interrogatórios, quando aos subterfúgios o Coronel pode opor oportunos argumentos. Francelino, gentilíssimo, o conduz até à porta:

 

    - Pode ir redigindo o discurso de posse. Tem os livros de Bruno? Um senhor poeta. Doido por mulher! - estalou a língua.

 

   Pelo jeito parecia disposto a sufragar-lhe o nome, mas por que não dissera meu voto é seu Lisandro tratou de acalmar o melindrado Coronel e se responsabilizou pela lealdade do Embaixador. Ele sempre se expressara assim, de forma ambígua, deixando apenas antever seu pensamento, hábito adquirido na carreira diplomática. Mas não tivesse dúvidas: em nenhum momento Francelino Almeida negara apoio a candidato bafejado pelo Governo. Que razões teria para votar no General Moreira, que nada pode lhe oferecer além da sortida cesta de licores e acepipes, enviada, aliás, por Afrânio Portela? Magnífica, sem dúvida, mas insuficiente para modificar o voto do astuto diplomata.

 

    Ainda assim, por via das dúvidas, e a seu conselho, o Coronel encomendou a remessa urgente para o apartamento do Embaixador de uma dúzia de garrafas de champanha (despesa por conta da verba de combate ao comunismo).

   - Tem uma champanha paulista muito boa. A marca é...

   Lembrando-se num engulho do vinho gaúcho de pura uva, um néctar!, Lisandro vetou:

   - Paulista ou gaúcho, é melhor não mandar. Não esqueça que Francelino passou trinta anos servindo no estrangeiro.

  - E daí?

  - E aconselhável mandar champanha francesa.

  O Coronel Agnaldo Sampaio Pereira suspendeu os ombros num gesto de pouco caso, a verba de combate ao comunismo já naquele então era praticamente ilimitada:

  - Escolha você mesmo a marca. São esses requintes que conduzem à decadência e degradam a raça.

 

REUNIÃO DE ESTADO-MAIOR ANTES DO ALMOÇO

 

O alarme foi dado por Henrique Andrade. Político liberal por vocação e herança - o pai fora Governador de Estado, Senador e Ministro -, em férias forçadas devidas à dissolução do Parlamento, gozando elevado conceito literário, o autor da biografia do Barão do Rio Branco figurava entre os acadêmicos que, em nenhuma circunstância, votariam no Coronel Sampaio Pereira. Compusera a comissão que convidara o General Moreira ase candidatar, comportando-se no encontro com a prudência que o caracterizava, insistente no apelo, sóbrio nos elogios. Possuindo amplo círculo de relações, inclusive entre os adversários, tinha fama de ser um dos homens mais bem informados do país, capaz de distinguir entre os fatos verídicos e a boataria reinante. Há quem afirme que, já nessa época, Andrade conspirava contra o Estado Novo, em conluio com conservadores, liberais e esquerdistas. Coestaduano e amigo devotado de Afrânio Portela (que muito o ajudara quando de sua eleição para a Academia, disputando a vaga com dois outros candidatos fortes), telefonou-lhe propondo a convocação do Estado-Maior da Resistência para a análise, em conjunto, da difícil conjuntura. Dona Rosarinho, interessada em participar da intriga, marcou um almoço dominical na mansão do Flamengo - comida baiana em homenagem ao autor da Vida de Ruy Barbosa, restrito porém aos homens. Se as mulheres viessem, dona Rosarinho teria de lhes fazer sala, banida das novidades eleitorais.

 

   Até Evandro Nunes dos Santos, habitualmente otimista, parecia preocupado. Lisandro Leite passara a preceder o Coronel nas visitas aos acadêmicos, portador descartas do Ministro da Guerra e de outras autoridades militares e civis, recomendando a candidatura do Sampaio Pereira. Além dele, dois outros calhordas dedicam-se à mesma suja tarefa - o velho ensaísta abandonava com freqüência a linguagem acadêmica ao referir-se a seus desafetos. Algum resultado estão obtendo: o voto do Marcondes, prometido a Moreira por solicitação de Evandro, mudara de dono. Marcondes recebera um pedido irrecusável-pedido?, ordem, ameaça! - do Ministro da Agricultura, a cujo Gabinete estava agregado com polpuda achega numa vaga e folclórica Comissão para o Fomento do Rebanho Caprino. Meio sem jeito, o Ministro comunicou-lhe que, se o bom amigo e eficiente colaborador persistisse na disposição de votar no General, inimigo ferrenho do regímen, tal atitude seria considerada ato de hostilidade ao Governo. Nesse caso, o Ministro não teria condições de mantê-lo na assessoria especial da Comissão para cuja eficácia ele tanto concorria (pela ausência, certamente). Posto contra a parede, Marcondes capitulara, não podia perder aquela marmelada dos caprinos. Tivera contudo a honestidade de vir a Evandro explicar os motivos do recuo.

 

   - O Governo decidiu considerar a eleição do Sampaio Pereira questão fechada. - Explicou Henrique Andrade: - O Estado Novo não pode admitir nenhuma oposição, quer controlar tudo. A Academia não escapa, precisamente devido ao prestígio que possui e à repercussão que cerca a escolha de cada novo Acadêmico. Sabem quantos pedidos o Bayma recebeu a favor do Pereira em menos de uma semana? Cinco...

 

   O Coronel e seus lugares-tenentes haviam mobilizado meio mundo. Ainda na véspera, no Palácio Episcopal, Andrade ouvira da boca do Cardeal o relato da visita a ele feita por Lisandro, na tentativa de levá-lo a influir junto a certos acadêmicos, os mais ligados à Igreja. O prelado negara-se a colaborar: não que responsabilizasse diretamente o Coronel Agnaldo pelas torturas dos presos políticos, pela invasão de lares nas horas mortas da noite, as razias efetuadas nas bibliotecas oficiais e particulares, a queima de livros em praça pública, a infinda série de tropelias. Ainda na véspera recebera informe do Arcebispo de Recife e Olinda, narrando fatos muito tristes, ocorridos em Pernambuco. Assim sendo, preferia manter-se distante da disputa acadêmica, sem envolver nela sua autoridade religiosa. Segundo Henrique Andrade, tampouco o Ministro do Exterior intervinha na blitzkrieg. O Chanceler, conforme era público e notório, desaprovava a violência dos organismos de segurança e detestava o Coronel Sampaio Pereira que mantinha sob censura os telefones do Gabinete e da residência do Ministro, aliás demissionário por não concordar com a política de aproximação com o Eixo nazi-fascista. Andrade concluiu:

 

   - Ainda bem que o General Moreira não é homem de arrepiar carreira. Em troca, que espécie de subliterato você nos arranjou, seu Rodrigo...

   - Aponte-me melhor se puder. A literatura dele não é genial, concordo, mas é um tipo firme, peitudo. Possuidor de muitas qualidades.

   - A melhor qualidade de nosso inefável General é a filha... considerou R. Figueiredo Júnior: - com licença de dona Rosarinho, eu penso que ela poderia ser de boa ajuda, se quisesse colaborar. E gostosona e tem cara de dadivosa.

   - Não  seja inconveniente, Figueiredo - interrompeu a dona da casa. - Deixe a moça em paz. Subliterato ou não, o General é o nosso candidato e não convidei vocês para virem aqui falar mal dele. O que eu quero saber é o que vão fazer para derrotar esse... - nunca encontrava a palavra exata para definir o Coronel Sampaio Pereira, devia pedi-la emprestada ao vocabulário do compadre Evandro.

   - O que vamos fazer? Misérias! - anunciou mestre Portela.

 

   Diante do quadro ameaçador, quando naquela segunda etapa a Batalha do Petit Trianon se apresentava favorável ao adversário, Afrânio Portela proclamou a necessidade de lançarem mão de todas as armas, da acusação verídica ao suborno sexual - a proposta de Figueiredo Júnior era válida, ele, Portela, já... já cogitara disso, apenas podiam usar colaboradoras mais capazes, experientes e desocupadas do que a filha do General, atualmente absorvida por uma grande paixão.

 

    - Como sabes, Afrânio, da vida íntima da moça? - admirou-se dona Rosarinho.

    -Meu Serviço Secreto... Preciso estar apar de tudo que se refere ao candidato e à sua família. Não  podes imaginar as coisas que sei...

Chegara a hora de abandonar os escrúpulos, pois vergonha, imoralidade, sordidez e insulto seria a eleição para a Academia Brasileira de Letras de um nazista, cúmplice quando não mandante das fogueiras de livros, da importação de peritos da Gestapo para dirigir a polícia nacional na tortura dos presos políticos. Tinham de derrotá-lo, fosse como fosse, para provar que ainda existe decência neste país, que a Academia se mantém independente e digna. Não se trata de uma brincadeira; estão em jogo a liberdade e a vida dos homens.

 

   Evandro, de viagem marcada para Recife onde ia pronunciar uma conferência na Faculdade de Direito, quis saber que acontecimentos eram aqueles, ocorridos

em Pernambuco, aos quais se referira o Cardeal.

   - Ouvi falar em prisões, na proibição de um espetáculo de teatro - informou Henrique Andrade-, mas faltam-me detalhes. Nem sei se o Sampaio Pereira tem a ver com eles. Evandro pode averiguar in loco e nos esclarecer.

 

   A reunião do Estado-Maior, com os pareceres e as resoluções, realizou-se antes do almoço. Depois do vatapá, do caruru, do efó, das frigideiras e das moquecas, teria sido impossível. O Comando da Resistência jiboiava.

 

OS ACONTECIMENTOS DE PERNAMBUCO

 

Se excetuarmos o pronunciamento efetuado na Rádio Olinda pelo teatrólogo Aristeu Arabóia e o número apreendido do Luzeiro de Caruaru, os acontecimentos de Pernambuco não chegaram a repercutir na imprensa falada e escrita do país. Apesar da importância cultural dos signatários do manifesto, ou por isso mesmo, a censura impediu não apenas sua divulgação como também qualquer referência aos fatos que o determinaram. O semanário da cidade de Caruaru era tão modesto em tamanho e circulação que o funcionário de plantão no DEIP (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda) esqueceu de enviar-lhe a portaria e assim o Luzeiro ainda hoje se orgulha de ter sido o único jornal a publicar o protesto dos intelectuais e o fez na primeira página pois entre os subscritores encontrava-se o diretor da folha, o folclorista João Conde. A edição foi apreendida, o plantonista admoestado - reincidisse o Luzeiro, teria o registro cassado; reincidisse o faltoso, seria vítima do implacável artigo 177 da nova Constituição, pelo qual qualquer funcionário, sem exceção, podia ser sumariamente aposentado ou demitido a bem do serviço público.

 

   Tudo se iniciou quando o Tenente Alírio Bastos, dito o Cão de Fila, e alguns soldados da Polícia Militar arrasaram a barraca na qual se exibia um mamulengo, nas aforas da cidade de Recife, em zona pobre, onde se misturavam operários e roceiros. O pequeno e cômico auto popular relatava as adversidades de uma família de amarelinhos, perseguida pela avidez e incontinência de usineiro rico e depravado, senhor de léguas e léguas de terra, apoiado em seus vis desígnios pela milícia e pelo Diabo. Os praças da Briosa obrigavam Joãozinho Empapuçado, o chefe da família, a trabalhar noite adentro no corte do canavial, enquanto Satanás tentava atirar a linda Chica, esposa honesta, nos braços do cúpido latifundiário. Apetite de famintos, estômagos de ferro, os barrigudinhos jantavam torrões de barro. Joãozinho, Chica e os moleques contavam apenas com a proteção da Virgem Maria e com a esperteza do cortador de cana.

 

  Apesar da imensa superioridade de fortuna e poder do usineiro, o iletrado autor da peça armara a trama de tal maneira ingênua e sábia que a vitória final cabia ao Empapuçado. Ardiloso sem igual, Joãozinho enrolava os milicos e obtinha da Virgem, madrinha e defensora, grandioso milagre: o tesudo usineiro pegou broxura, mal incurável, ficou impotente; os soldados machões passaram a falar fino, a revirar os olhos, definitivamente afrescalhados, e Belzebu, vira-casaca contumaz, carregou com os antigos aliados para as profundas dos infernos. A paupérrima assistência ria e batia palmas, descobrindo, na burlesca farsa e nos rústicos bonecos, a esperança e a arte. Dezenas de outros mamulengos apresentavam-se em ínfimos palcos armados com tábuas de caixotes e cartolina, em Recife, nas cidades vizinhas, nos engenhos e usinas, distribuindo quase de graça realidade, milagres e ensinamentos.

 

   De quem partiu a denuncia não se soube mas o Tenente Alírio Bastos, o Cão de Fila, famoso e temido por atrabiliário e cafetão - na zona, mulheres faziam a vida por sua conta -, apareceu acompanhado de quatro praças e quebrou no pau o teatrinho, o dono e o ajudante, pai e filho, sobrando ainda bastante pancadaria para o público. Os titereiros foram levados para o Quartel e lá exemplados para aprenderem a respeitar a farda - surra de criar bicho. Ó ajudante ainda não completara quinze anos.

 

   Postos em liberdade após alguns dias de xadrez, os mamulengueiros foram

se queixar a Aristeu Arabóia, autor de peças de sucesso no país e no estrangeiro, inspiradas nos autos populares do Nordeste: vivia metido com bufões, ceramistas, trovadores de cordel. Narraram-lhe a história e exibiram as marcas das tareias recentes. O escritor não teve dúvidas, botou a boca no mundo num programa de rádio de extensa audiência, verberando a ação da Polícia Militar e de Cão de Fila.

 

   A indignada denúncia de Arabóia produziu resultados imediatos: a Rádio Olinda foi advertida pelo DEIP, o programa sofreu pena de suspensão e a Polícia Militar desencadeou em todo o Estado de Pernambuco, especialmente em Recife, Olinda e adjacências, fulminante ação contra mamulengos e mamulengueiros: barracas destroçadas, títeres apreendidos, titereiros em fuga.

 

   Aristeu Arabóia, sertanejo impertinente e turrão, resolveu enfrentar a borrasca. Aliou-se ao diretor do Teatro de Amadores de Pernambuco, Waldemar de Oliveira, figura reipeitada em todos os meios, e decidiu realizar um espetáculo de solidariedade aos perseguidos mamulengueiros, trazendo para o palco nobre do Teatro Santa Isabel os toscos bonecos, com suas histórias de rir e chorar, a serem encenadas juntamente com peça em um ato, de Arabóia, O Mamulengo de Deus, escrita a propósito para a ocasião. A renda reverteria em benefício dos míseros tablados destruídos pela Briosa.

 

   Diante da categoria dos dois homens de teatro, os censores locais vacilaram: permitir ou proibir o espetáculo? Indecisos, resolveram entregar o caso à decisão da censura federal que, por sua vez, levou o assunto ao conhecimento das esferas mais altas da segurança nacional por nele estarem envolvidos membros das classes armadas. O processo terminou em mãos do Coronel Sampaio Pereira que imediatamente deu-se conta do caráter contestatório do mamulengo, posto a serviço do comunismo internacional, e a indisfarçável condição subversiva do projetado espetáculo. Mandou que a censura o proibisse e que o DIP reiterasse a ordem de silêncio à imprensa e ao rádio.

 

  Processo burocrático demorado, nesse meio tempo os organizadores da função voltaram à carga: a casa estava vendida, não restava uma única entrada, data marcada, tudo pronto. Se o Rio não respondera é porque nada achara de condenável no espetáculo. O Chefe estadual da censura terminou por concordar e concedeu o visto.

 

   Estava o Teatro Santa Isabel lotado, o pano de boca prestes a subir, quando os soldados cercaram o prédio, de baioneta em punho. O público foi evacuado, os mamulengueiros corridos a sabre. Conduzidos à Secretaria de Segurança, Arabóia e o diretor do Teatro de Amadores conseguiram saber, após muita discussão, que o Chefe de Polícia cumprira ordem do Rio, ditada pelo Coronel Sampaio Pereira. Por ele, pessoalmente. A ordem, aliás, mandava enquadrar os responsáveis na Lei de Segurança Nacional caso oferecessem resistência. Deviam se considerar felizes por escapar do processo. De ficha não escaparam, foto com número no peito, impressões digitais.

 

   Renitentes, esses intelectuais pernambucanos. Não se dando por achado, Arabóia, com a colaboração de outros suspeitos, redigiu um manifesto à nação assinado por escritores, músicos, plásticos, artistas de teatro, catedráticos de faculdades, gente de todos os horizontes políticos e religiosos, a começar pelo célebre sociólogo, glória nacional, até o autor de elogiado livro sobre Eça de Queiroz, comunista notório. O manifesto, narrando as violências exercidas contra os mamulengueiros e os teatrólogos que os apoiaram, citava apenas dois nomes: o do Tenente Alírio Bastos, o Cão de Fila da Briosa, conhecido proxeneta, e o do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, autoridade coatora.

 

   Apesar de publicado somente peloLwz«Vo de Caruaru, o manifesto circulou, clandestino. Foram efetuadas prisões de alguns dos signatários; o eciano já tinha a maleta preparada com o pijama e a escova de dentes, tantas vezes vinham buscá-lo. Residências varejadas, livros apreendidos, inquérito aberto. Picharam os muros da casa solarenga onde vivia o mestre dos estudos brasileiros, cujo renome se estendia aos Estados Unidos e à Eur0pa, neles inscrevendo insultos de baixo calão, dirigidos àquele que muitos consideravam a mais alta expressão da cultura brasileira; comparável a ele, somente o físico nuclear Pérsio Menezes, outra genuína glória nacional.

 

   Após pronunciar conferência na Faculdade de Direito, convidado a almoçar com o sociólogo, Evandro Nunes dos Santos foi posto a par dos sucessos de Recife, indignou-se com os palavrões traçados nos muros e ganhou cópia mimeografada do manifesto onde encontrou referência ao nome do Coronel Sampaio Pereira, candidato à Academia. No Rio, providenciou novas cópias, distribuídas entre, os acadêmicos, na quinta-feira, dia de chá e sessão.

 

A VIVANDEIRA

 

Maria João dá os últimos retoques na maquiagem antes de começar a se vestir para entrar em cena:

   - Eu era o Cão...

   - Era? - Nos lábios de mestre Portela nasce um sorriso de terna

malícia.

   - Uma noite, eu o infernei tanto, tanto, fazendo-lhe ciúmes, recordando umas coisas, dando a entender outras, insinuando nomes, que Bruno de repente me meteu a mão na cara.

   - Para Bruno chegar a isso, deves ter ido muito longe.

   - Longe demais... Me deu o tabefe quando eu disse que ele tinha vocação para corno manso. Aí eu parti para o insulto: cabrão, galheiro, chifrudo. Ele, coitado, arrependido do tapa, contendo-se para não perder a cabeça. Mas quando eu gritei em francês: cocu, rói dês cocus! Bruno me agarrou, que surra! Caiu em cima de mim, aos socos e bofetões, me embolei com ele. Não sei dizer a hora em que as pancadas se transformaram em carícias, foi uma noite gloriosa. A manhã nos encontrou em juras de amor eterno. No outro dia, eu estava toda roxa das mãos e da boca de meu poeta.

 

   Levanta-se, o roupão semi-aberto deixa ver os seios rijos e belos, jamais usara sutiã. Começa a vestir-se de Hedda Gabler. A peça de Ibsen, em tradução de Ri Figueiredo Júnior, estreara havia duas

semanas.

   - Por ele, mestre Afrânio, eu seria capaz de me vender ao Diabo

ou a Barreto Nojento, o que é muito pior.

 

   Conhecido nos meios teatrais por Nojento, o velho Stênio Barreto, comerciante riquíssimo, colecionava atrizes, a peso de ouro. Enchera o pé-de-meia de umas quantas, nacionais e lusitanas. Maria João recusara-lhe todas as propostas - por espírito de contradição ou esperando que ele elevasse o teto da oferta a alturas inimagináveis, quem sabe? Na ocasião, Nojento acenava com um apartamento de cinco peças em Copacabana contra um fim de semana em Petrópolis.

 

   Mestre Afrânio estende-lhe a lista  da Academia:

   - Os assinalados com um X são nossos, garantidos. Com um N são do inimigo, irremovíveis. Os que não têm nenhum sinal estão ainda indecisos. Entre esses últimos, com grandes promessas e pequenas intimidades, de quantos garantes o voto para o General Moreira? Meio Hedda Gabler e meio nua - valia o apartamento de cinco peças e era barato, considerou o romancista, o olhar de conhecedor -, Maria João estuda os nomes:

   - Garantidos, dois. Espere aí... Dois não, três. Pena que Rodrigo já seja dos nossos. Bem que eu gostaria de uma recaída com ele. Durou muito pouco.

- Nosso, firmíssimo. Tão nosso que ocupa em tempo integral a tresloucada filha do Moreira, impedindo que ela trabalhe pelo pai. Esses fidalgos são assim, Joãozinha, uns egoístas. Quais são os três?

   Batidas na porta do camarim, a senhora dona Maria João entrará em cena dentro de cinco minutos. Acabando de se vestir, aponta os nomes com um dedo trágico de Hedda Gabler, em caminho das brumas da Escandinávia:

   - Esses... O Paivinha está marcado com N, é do outro lado, mas se eu pedir... Não quer o voto dele?

  - É claro que sim, mas, mesmo sabendo-te irresistível, não acredito que consigas.

   - Quer apostar? - Morde o dedo: - O querido velhote é um carneirinho, come na minha mão, não me nega nada.

   - Tu é o Cão.

   - Vai ser uma chanchada de se morrer de rir.

Riso álacre de menina, quem lhe daria quarenta anos? O amor é o melhor de todos os tônicos, pensa mestre Afrânio enquanto Hedda Gabler, majestosa, sai do camarim em direção ao palco. Não somente conserva as linhas do corpo mas, sobretudo, exalta a alegria de viver.

 

A GRANDE ATRIZ

 

A eleição da Rainha da Micareme realizou-se no Teatro São José. Além do poeta Antônio Bruno, compunham o júri o Presidente da Sociedade Carnavalesca Tenentes do Diabo, o empresário Segreto, Jota Efegê, cronista especializado nos festejos de Momo, em ranchos, blocos e gafieiras, e a figura máxima do teatro brasileiro da época, Itália Fausta, no apogeu da glória.

 

   Também Antônio Bruno, à beira dos trinta e cinco anos, estava no apogeu. O sucesso do livro de estréia repetira-se em escala maior com o lançamento de três outros volumes: Os Sonetos de Ugne e Barcarola dos Antônios, ambos de poesia, e A Verdade Quase Nua, reunião de crônicas antes publicadas na imprensa. Elogiado com entusiasmo pela maioria da crítica: jovem grande poeta, sonetista incomparável, lírico cantor que renovou o canto e o lirismo, os pássaros, as árvores, as mulheres e o amor foram reinventados por Antônio Bruno numa poesia livre e autêntica, crônicas que são poemas do quotidiano e daí por diante. Não faltaram também ásperos ataques aos poemas e às crônicas: meloso e repetitivo, desatento aos novos caminhos da poesia, sentimentalismo para domésticas?, opinavam os pernósticos e os invejosos do êxito alheio, ofendidos até o fundo da alma: os livros de Bruno, além dos elogios desbragados, ainda por cima tinham público certo, repetidas edições. Seus poemas eram declamados nos palcos por vedetes famosas, em soares de benefício; por estudantes nos saraus literários e por admiradoras nas festinhas familiares.

 

   Para aumentar os magros proventos de oficial de secretaria do Ministério da Justiça, Bruno exercia variadas atividades: ditava conferências em clubes e salões, escrevia crônicas em jornais e revistas, esquetes para o teatro musicado, letras de canções. Desconhecido compositor de pouco mais de vinte anos, Heckel Tavares, pediu-lhe umas estrofes para melodia que acabara de inventar, assim nasceu Corrupião, modinha imortal de nosso cancioneiro. Leopoldo Froes anunciava para breve uma peça de Bruno, comédia da vida carioca, ainda por escrever. Sucesso do poeta e sucesso do homem, o romântico perfil de beduíno reproduzido em fotos, desenhos, óleos, caricaturas.

 

Suspiravam donzelas e casadas, meninotas e balzaquianas, ao contemplá-lo nas páginas do Fon-Fon, o queixo apoiado na mão, o olhar absorto, a cabeleira à Mascagni. Corria o ano de 1921, a Primeira Grande Guerra Mundial ficara para trás e o país começava a se preparar para as comemorações do Centenário da Independência.

 

   Ah!, que título mais cobiçado, o da Rainha da Micareme! Além da coroa de lata dourada, do manto de veludo e de um anel de água-marinha oferecido pela Joalheria Ouvidor, rendia, sobretudo, vasta badalação na imprensa, entrevistas, reportagens, perfis e a doida inveja das colegas. Daí a numerosa concorrência, empenhada em luta tão renhida que até parecia eleição para a Academia Brasileira de Letras. Competiam atrizes do teatro declamado, estrelas e coristas do teatro de revista e as desconhecidas e ávidas raparigas dos teatros de amadores, tentando aproveitar oportunidade e título para se tornarem profissionais da fascinante e mal paga carreira do tablado. Mal paga, ainda assim compensadora: o sucesso, a popularidade, a fama e, para corrigir a exigüidade dos salários, existiam Stênio Barreto e outros Nojentos, os pródigos velhinhos milionários.

 

   Trabalhados pelo empresário, três dos outros quatro jurados decidiram eleger a festiva e pícara Margarida Vilar, pernas perfeitas, longa e ruiva cabeleira, voz quente, vedete do elenco de Misses, Maxixe e Vatapá, revista que ultrapassara as cem representações. Mas, durante o desfile das candidatas, o poeta Bruno bateu os olhos numa daquelas ávidas desconhecidas e ficou siderado. Nunca lhe acontecera nada semelhante: paixão instantânea, tresloucada, atroz. Esguia e altaneira, diáfana, translúcida de tão loira, azulada pele de opalina, onde ele a vira? Num quadro, com certeza, mas em que museu? Que mestre renascentista a adivinhara e retratara séculos atrás? Apelo e oferta nos olhos noturnos, nos lábios onde o sexo começava, no passo de ancas afoitas e de seios atrevidos. Bruno sentiu a boca seca e uma contração no estômago. Diante dele, a mulher fatal, em carne e osso.

 

   Criou-se o impasse devido ao voto divergente do poeta mas eram todos bons amigos e amáveis pessoas e, para que a eleição de Margarida Vilar fosse unânime, resolveram instituir e conceder à anônima candidata o título de Princesa da Micareme.

 

   Bruno não a conhecia, se a vira antes fora em pintura ou em sonho, nada sabia sobre ela, idade, nome, profissão. Ouvida pelo Júri, declarou chamar-se Lúcia Bertini, de família italiana certamente  aparentada à grande Francesca Bertini, pois originária da mesma aldeia onde nascera a incomparável vedete do cinema; maior de vinte e um anos (maioridade exigida para concorrer ao título e participar do baile da coroação); dona de alguma experiência teatral, obtida quando residira na cidade de Campos e integrara o Grupo Fênix de Amadores. Viera ao concurso acompanhada de um primo, sorumbático personagem, sentado numa das últimas filas da platéia.

 

   O interesse de Bruno e o título que, em nome dos jurados, ele lhe ofereceu deixaram-na deslumbrada. Ao vê-lo subir ao palco com os demais membros da Comissão Julgadora, logo o reconhecera de fotos publicadas na Vida Doméstica e de uma caricatura em O Malho, onde o poeta de caneta em punho escrevia com letra caprichada o título de um livro, como era mesmo? O Barco... O Barco de quê? A Barcarola dos Antônios? Era isso mesmo, título gozado, que significava?

Concluídos em paz os tumultuados trabalhos do Júri, proclamadas e aplaudidas as vencedoras, Bruno quis sair com a Princesa, na esperança de naquela mesma noite saciar a fome que o devorava. Mas Sua Alteza Real, muito digna e casta, recusou, devia regressar com o primo:

   - Pai é muito rigoroso, só me deixou vir acompanhada por meu primo e não sabe que vim para concorrer. Se soubesse, era capaz de me bater e de me trancar em casa.

 

   Marcaram encontro para o dia seguinte, numa sorveteria, no Largo da Carioca. As taças de espumone (era gulosa), as palavras ciciadas, doces palavras boas de ouvir, o verso nascido do impacto da véspera ao descobri-la, a beleza do beduíno, a legenda do poeta conquistaram-na, deixando-a sôfrega, a respiração anelante. Confessou algumas das primeiras mentiras. Não vivera em Campos, jamais subira a um palco, não era Lúcia Bertini nem descendia de italianos, apelido e sangue roubados a uns vizinhos. Chamava-se Maria João, nome escolhido pelo pai, português e defunto. Nome horrível, não acha? Não existe nome mais lindo, vou te chamar Joãozinha, queiras ou não. Já não possuía vontade própria, queria tudo que Bruno quisesse, nunca imaginara conhecê-lo pessoalmente, quanto mais ser beijada por ele no escuro do cinema íris, beijos intermináveis como os do filme, sentir as mãos do poeta acariciando-lhe os seios soltos sob a blusa. Assim começou aquela tresloucada paixão, na fúria do desejo e do ciúme, envolta em permanente onda de mentiras, com agressões e escândalos em público. Nos quase dois anos que durou a ligação, Bruno jamais conseguiu separar a realidade da invenção, marcar limites entre a representação e a verdade.

 

   O primo não era primo e, sim, empregado no armazém deixado em herança pelo português, administrado pelo irmão e sócio. Da parca renda, viviam ela, a mãe e um irmão menor; na divisão dos lucros, o cunhado e tio aplicava regras próprias de aritmética. Quanto à idade, foi diminuindo pouco a pouco até chegar aos dezessete anos recém cumpridos. O falso primo fora o segundo a tê-la, precedido por um primo de verdade, menino de quinze anos, mais moço do que ela. Tendo acontecido, o rapazinho queria casar, imagine só! Narrava com detalhes, sem qualquer noção de pudor, e falava sem parar. Quando não tinha o que contar, inventava.

 

   No Grande Baile da Coroação, na sede dos Tenentes do Diabo, armou o primeiro escândalo. Após ter sido proclamada e adornada (coroa menor do que a da Rainha, manto brilhante de cetim em lugar do nobre e pesado manto de veludo, pequeno anel de turquesa oferta da citada Joalheria Ouvidor), percorreu o salão pelo braço de Antônio Bruno, tão ovacionada quanto a Rainha. O poeta sentia-lhe o seio palpitante, Maria João nascera para o aplauso e a exibição.

 

   -Também eu tenho um presente para ti, minha Rainha de Sabá, mas não o darei agora nem aqui.

 

   Pendurado em grossa corrente, um relicário em forma de coração, jóia portuguesa antiga, ouro de lei, descoberta num antiquário sério jamais enganara um cliente - e ladrão: para comprá-la Bruno tivera de tomar dinheiro emprestado a Afrânio Portela.

 

   Abriu o estojo, mostrou-lhe a prenda. Apesar de ainda ignorante sobre valor e qualidade de jóias, Maria João possuía um gosto inato, percebeu a categoria, sentiu a beleza do adereço e imaginou que custara uma fortuna.

 

   - Para mim? Nem acredito.

   Quis usá-la em seguida mas ele não permitiu:

   - Em casa, quando estiveres nua. Quero colocá-la sobre teus seios, meu presente de núpcias.

   - Mas assim ninguém vai ver...

   - Eu verei, não basta? Por uma vez, usarás somente para mim. Depois, poderás exibi-la onde quiseres.

   Então ela sorriu e mordeu os lábios, prevendo a cena. Fechou os mm olhos, saíram a dançar, par constante:

  - Quero um retrato teu para colocar no relicário.

  Exímio dançarino, com os requintes dos cabarés de Paris, Bruno encontrou em Maria João aluna aplicada, capaz de acompanhá-lo nas variações mais ousadas. Entre enfurecida e desdenhosa, ela controlava  os olhares que as mulheres lançavam à passagem do poeta. Algumas Um sorriam para ele, cínicas.

 

  Durante breve pausa do jazz-band, enquanto os músicos se desalteravam esvaziando canecas de chope, a Princesa da Micareme aproveitou para ir ao toalete. Ao regressar, a dança recomeçara e Bruno volteava ao som de um foxtrote, enlaçado à esfuziante Rainha Margarida. A fúria superou o desdém, a submissa Princesa virou uma  harpia, partiu em direção ao par. Antes de Sua Majestade dar-se B conta, a coroa real foi arrancada e o nobre manto de veludo varreu o chão da sala pois Maria João atirou-se sobre a estrela maior do teatro de revista e a arrastou pela cabeleira - Margarida Vilar sentia  particular orgulho dos reflexos de cobre fulgindo no palco, nascidos da incidência da luz sobre as ruivas madeixas. Nunca se viram tantos a cintilar como na noite do baile.

   - Não se meta com ele, bruaca velha, descarada. É meu e de mais a ninguém.

   Por pouco acabam baile e mi-carême. Para retirá-la da sala e levá-la embora Bruno precisou recorrer à força bruta. Maria João reagiu, mordendo-lhe a mão, tirando sangue:

   - Me largue, não quero mais saber de você. Fique com aquela vagabunda, dê o presente para ela, eu vou para minha casa.

   Foram para a casa dele, cama de insânia e de lascívia. A pesada corrente em torno do pescoço, o relicário entre os seios, coração de filigranas. A pele translúcida de opalina, o ventre desabrochando em trigo maduro, toda ela em ouro.

  

   Madrugada de lobos uivantes, de chupões e dentadas, assalto de famintos, luta corporal. Quando por fim a manhã os alcançou, ela disse:

   - Me perdoe, meu amor, mas sou assim. O que é meu, é somente meu, não reparto com ninguém. Agora, se quiser, me mande embora... - sorriu e se espreguiçou: -... só que eu não vou, daqui não saio mais.

 

   Muitas paixões ele teve e despertou, nenhuma tão desabrida e arrasadora. Durou quase dois anos e por vezes ele pensou que ia enlouquecer. Maria João foi a única mulher em quem bateu e o fez com raiva. Sentimento dominante, o ciúme envenenou o idílio. Ciúme alucinado que ela tinha e exibia a qualquer momento e em qualquer lugar. Ciúme que buscava causar, pondo à prova o amor de Bruno. Brigas repetidas, amiudando-se, fazendo-se quotidianas; tormentas que findavam no embate furioso dos corpos malditos de desejo.

 

   Maria João fez-lhe cenas terríveis, não suportava vê-lo falar ou rir com outra mulher. Ao mesmo tempo, deixava escapar nomes de homens, referia-se a propostas recebidas, escondia pedaços de papel em branco para que ele pensasse serem cartas comprometedoras, bilhetes marcando encontros. Quantas vezes repetiu o escândalo do Baile da Micareme?

 

   No ciúme, consumiu-se a paixão de Bruno. Duas mulheres num mesmo corpo, maravilhoso: Maria João, a terna e doce menina apaixonada, e sua antítese, a intolerante, incontrolável bruxa na qual ele pusera o nome de Mary John. Ambas sem rival na cama.

 

  Mary John intitulou-se a peça em versos que finalmente Bruno escreveu para o repertório de Leopoldo Froes, com a condição de caber a Maria João o papel-título. Antes, obtivera que ela participasse, sob o nome de Lúcia Bertini, de algumas revistas, cantando e dançando. Generosa, incapaz de guardar rancor, Margarida Vilar deu-lhe mais de uma oportunidade e se tornaram amigas. Apesar da beleza, do corpo magnífico, do charme, faltavam a Maria João certos requisitos exigidos por aquele tipo de teatro. Um dia, Bruno exclamou, no auge do desespero:

   - Tu és uma comediante nata, isso sim. you escrever uma peca para ti, Mary John.

 

  Não nascera dramaturgo e, sim, poeta. Na comédia, salvaram-se os versos e a interpretação da estreante, vivendo com extraordinário talento a figura contraditória da gentil e encantadora moça brasileira de cabeça virada pelo cinema americano, a imitar hábitos e poses dê Hollywood. Nunca mais Antônio Bruno escreveu para o teatro declamado, nunca mais ela voltou a ser Lúcia Bertini em pequenos papéis nas revistas da Praça Tiradentes. Surgira uma estrela, a grande atriz, uma nova Itália Fausta.

 

  Permaneceram amigos, ela e Bruno. Por duas vezes, aconteceram recaídas mas ambas duraram pouco tempo.

 

O DESGASTE

 

Penosa, deprimente, desgastante, a campanha eleitoral aproximava-se do fim da primeira etapa: os dois meses durante os quais os candidatos podiam se inscrever. A Batalha do Petit Trianon crescia em violência mas ninguém previu seu inesperado desfecho.

 

   Acostumado a mandar e a ser obedecido, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira irritava-se ao constatar franca ou surda resistência à sua pretensão à imortalidade. A marcha triunfal, anunciada por Lisandro Leite, transformara-se pouco a pouco em corrida de obstáculos. Terrivelmente desgastante.

 

   No calvário das visitas protocolares, obrigado à humildade e à adulação, por dez vezes vira-se constrangido a ouvir em silêncio a mesma insultuosa cantilena:

   - Lastimo imenso, Coronel, mas o meu voto já está comprometido. Por coincidência, com um colega seu, de farda, outra ilustre figura do Exército, o General Waldomiro Moreira.

   Mudavam as palavras, o conteúdo permanecia o mesmo: compromisso anterior com o bestalhão do Moreira. Descobriu que dois acadêmicos mentiram quando afirmaram ter prometido o voto ao Linha Maginot pois ele ainda não os visitara. Prova evidente de  oposição a seu nome e ao que ele representava. Bofetada dez vezes repetida, significativa pelo número e pela revelação de fato grave: os inimigos da Pátria haviam estendido seus tentáculos até à Ilustre Companhia.

 

   Sendo a Academia Brasileira uma assembléia de expoentes não apenas da literatura mas também dos demais setores da vida brasileira, da jurisprudência à política, do clero às forças armadas, da diplomacia à medicina, das ciências ao jornalismo -, de tradição conservadora, o Coronel jamais pudera imaginar que sofresse tamanha influência das forças, decadentes e dispersas, que se opunham às vitoriosas idéias renovadoras, simbolizadas nas figuras gloriosas do Führer e do Duce. A Academia revelava-se empestada pela podridão do liberalismo, infiltrada pelos comunistas. Acusavam-no de Quintacoluna, assim soubera. Pois bem: eleito, tomaria as necessárias providências para injetar sangue puro e sadio na corporação enferma, renovando-a a cada vaga. Os próximos Imortais seriam escolhidos a dedo.

 

   É bem verdade que quinze dos visitados comprometeram-se a sufragar seu nome e dois ou três dentre eles juntaram-se a Lisandro no apoio ativo à campanha. Ausentes do Rio (um aposentado em Minas, outro Embaixador no México), não podendo comparecer à eleição, dois acadêmicos lhe haviam confiado as cartas às quais devia juntar os envelopes fechados com os votos para os quatro escrutínios. Momentos de intenso prazer quando, assessorado pelo Desembargador, ele mesmo batera à máquina, nos papeizinhos, o nome completo, precedido da patente. Em troca, tivera de engolir sapos e cobras para assegurar a vitória.

Vinte e cinco votos definidos, quinze a seu favor, dez contra, e quatorze incertos. Quatorze, não; treze, pois Afrânio Portela, promotor da candidatura do General, era o inimigo número um de Sampaio Pereira. O controle do telefone do romancista revelava sua intensa atividade diária junto aos demais acadêmicos para impedir a entrada da Gcstapo no Petit Trianon, frase textual. Com Lisandro, o Coronel analisava até a exaustão os treze nomes, um a um, em subjetivo cálculo de probabilidades. Na opinião experiente do jurista, todos eles, sem exceção, votariam no querido Agnaldo. Mas o querido Agnaldo deixara de confiar cegamente na propalada experiência e nas previsões  do caro Lisandro. Andava tão desapontado a ponto de colocar entre os duvidosos

o velho Francelino Almeida,' apesar das frutas e da champanha (francesa).

  

   Faltava-lhe visitar apenas três dos trinta e nove acadêmicos. Cumprira o ritual com todos os demais e nem sempre fora fácil e agradável. Tivera de viajar a São Paulo para cortejar Mário Bueno, o poeta do Livro tios Salmos, e a Belo Horizonte para recolher o sufrágio de ex-Diretor do Banco do Brasil, catedrático aposentado, autor de livros de contos de reduzido número de páginas e reduzida circulação, hemiplégico. De Minas, trouxe a carta do paralítico no bolso da túnica. O poeta paulista lhe concedeu pouco tempo mas, cortês, lhe garantiu o voto, ficou de enviá-lo diretamente à Academia. Gentil com todos os candidatos, a todos, sem exceção, Mário Bueno garantia o voto, sempre enviado para a Academia; jamais se descobriu o nome que sufragava. A par da circunstância, o Coronel colocou o vate na lista dos incertos, apesar das garantias de Lisandro. Ao Embaixador no México, Renato Muller Vieira, visitou via Western, em caloroso e extenso cable (a verba de combate ao comunismo subvencionava essas pequenas despesas: correspondência, passagens, hotéis, o régio presente de casamento para a filha de um dos quinze incondicionais). Recebeu amabilíssima resposta e a preciosa carta para a eleição através da mala diplomática. Renato Muller Vieira, poeta e romancista, a quem não conhecia pessoalmente e cujos livros abstrusos não conseguira ler, o Deus Menino da recente crítica universitária, proclamava-se admirador incondicional de Sampaio Pereira: vossa obra imperecível e vosso exemplo magnífico inspiram a juventude do Brasil no alvor do novo mundo sonhado por Schopenhauer. Adesão entusiástica, a compensar a oposição e a ojeriza demonstradas por alguns vis simpatizantes de Moscou.

 

   Duas das entrevistas foram sumamente desagradáveis, despidas da mínima gentileza, deprimentes. Impelido, Evandro Nunes dos Santos não o acolhera em casa, marcara encontro na sede da editora de seus livros, a José Olympio. Ouviu-o em silêncio, de cara fechada, declarou-se solidário com o outro pretendente e lhe estendeu a ponta dos dedos, despedindo-o. Quanto ao teatrólogo R. Figueiredo Júnior, teve a petulância de lhe perguntar o motivo que o levara a pleitear a Vaga. Conhecendo-lhe a ideologia e a natureza das funções que desempenhava no Governo, não conseguia compreender seu interesse pela Academia Brasileira. Única alusão direta à sua condição de fascista e de Chefe das Forças de Segurança, a indagação maligna do dramaturgo ficara-lhe entalada na garganta, monstruoso sapo-cururu. Devia visitar ainda o Presidente Carmo, o egrégio moribundo Pérsio Menezes e o romancista Afrânio Portela.

 

   O intragável Portela, decadente liberalóide, inventor da candidatura do Linha Maginot, nem o visitaria, não fossem as ponderações de Lisandro: a abstenção assumiria o caráter de represália. Os Imortais são muito susceptíveis, poderiam considerá-la intolerável ruptura do protocolo, atingindo a todos. O querido Agnaldo, apesar de ter a eleição garantida, não devia criar problemas capazes de lhe reduzir a votação. Ademais, Portela, um parasita social, bon vivant, ao contrário de Evandro e Figueiredo, seria cortês e, quem sabe, até agradável.

 

  Na Igreja da Candelária, em missa de sétimo dia, Sampaio Pereira encontrara-se com Hermano do Carmo que ficara de marcar data para recebê-lo; ainda não o fizera. Demonstrara-lhe extrema consideração mas o Coronel o achava por demais discreto. Discrição inerente ao cargo, explicou Lisandro: o Presidente tem de respeitar a cláusula regimental que proíbe a divulgação antecipada do voto. Mas, apesar da reserva e do silêncio, revelava sempre sua preferência, de maneira curiosa. Como? Enquanto recebia os demais concorrentes pela manhã, servindo-lhes um simples cafezinho, convidava para jantar o candidato em quem ia votar.

Pérsio Menezes, sábio de projeção internacional, cuja preparação científica se iniciara corn Marie e Pierre Curie, colaborador de Einstein na Universidade de Princeton, professor de Mecânica Superior e Celeste, membro do Instituí du Radium, da Sorbonne, poeta surrealista nas horas vagas, casado com a pianista Antonieta Movais, tampouco respondera à sua solicitação de data para a visita. Por depender do estado de saúde, esclareceu Lisandro. Atacado de câncer generalizado, passava dias e dias sob o efeito de drogas para aplacar as dores, morfina em quantidade. Deixara de comparecer à Academia havia vários meses e recebia apenas os amigos mais íntimos. Mas então por que recebeu o Linha Maginot? Porque o General antecedera o Coronel no pedido de data para a visita e o eminente personagem era pontilhoso em questões de etiqueta. Receberia o querido Agnaldo  apenas se sentisse melhor; assim dissera a ele, Lisandro, que na véspera conseguira lhe falar ao telefone para cobrar a data. Acrescentara ademais uma frase que constituía, na prática, antecipada declaração de voto: faço questão absoluta de recebê-lo.

 

   Confiante na vitória, contudo o Coronel sentia-se decepcionado como se estivessem a esvaziá-lo por dentro. Resistências, armadilhas, enganos, palavras de duplo sentido, desfeitas, afrontas, tudo terrivelmente cansativo, desgastante. Se não almejasse com tamanha sofreguidão - ainda maior agora quando a eleição se transformara em batalha sem quartel - o título, a cadeira, o fardão, a imortalidade, abandonaria a disputa, desistiria. Inquieto, mortificado, abalada a autoconfiança, os nervos em frangalhos.

 

  Os subversivos e os suspeitos pagaram caro as consumições do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira. Vingava-se neles da sinistra quadrilha de acadêmicos, dos que lhe negavam o voto, preterindo-o em favor de um borra-botas; dos que o ofendiam com a frieza, a ironia, a repulsa e daqueles, os piores de todos, que, dizendo-o vitorioso, desde já eleito, resguardavam-se, deixando-o em dúvida, confundido, perdido em meio a um palavreado brilhante e inconseqüente. Socos na mesa, gritos, ameaças, ordens ferozes aos sequazes - os presos e suspeitos que passaram por suas mãos naqueles dias amargaram o pão que o Diabo amassou, atravessaram os quintos do inferno.

 

O CASAL (E A FILHA)

 

  -Andas preocupado, Lisandro. Por quê? - A voz calma e agradável de dona Mariúcia, em afetuosa indagação.

 

   As pessoas em geral se surpreendiam quando o Desembargador Lisandro Leite apresentava a esposa. Gordo, suarento, descuidado no vestir, extrovertido, de amabilidade exagerada, interesseiro e sabido, em tudo diferente da senhora delgada, elegante, bem penteada e bem maquiada, ainda atraente, sempre risonha e atenciosa. Tinham cinco filhos, quatro homens, todos formados - dois advogados, um médico, um engenheiro - t casados e Pru (Prudência, detestava o nome), solteira, quartanista de Direito, bonita igual à mãe, exuberante e disposta que nem o pai. Avó de sete netos, dona Mariúcia, louça e serena, não aparentava os cinqüenta anos a cumprir em breve.

 

   Dava-se bem com o marido. Sempre solidária, mesmo quando, em conversas com Pru, parecia discordar de pontos de vista e posições assumidas por ele. Juntos haviam feito longa caminhada, de começo muito difícil. Lisandro tivera de se bater como um leão para que não faltasse à mulher e aos meninos pelo menos o essencial. Esposo apaixonado, pai dedicado e bonachão, preocupado com o futuro dos filhos, trabalhara duro, metera a cara com coragem e ousadia, desconhecendo ética e escrúpulos, para proporcionar conforto à família e encaminhar os filhos - todos eles, graças a Deus e às manobras e diligências do pai, bem estabelecidos, a vida organizada. Em casa, ainda estudante e dependente, apenas Pru. Dependente, em termos: moradia, comida e roupa mas aí terminava a dependência pois no mais, expedita e insubmissa, Pru não admitia a menor interferência dos parentes. Disposta a viver sozinha, independente, assim tivesse condições. Começara a praticar num escritório de advocacia, onde não ganhava dinheiro mas ganhava experiência e cumpria um dever: o escritório se especializara na defesa de presos políticos diante do Tribunal de Segurança Nacional.

 

   Lisandro sentou-se ao lado da esposa:

   - É essa desgraçada eleição. Pensei que fosse fácil carregar a candidatura do Agnaldo, me enganei.

 

   Era grato a Mariúcia, desde a longínqua época do namoro. Balofo, as mãos sempre molhadas de suor, cabeludo, a barba malfeita, infenso aos esportes, mau dançarino, rapaz de pouca aceitação junto às moças, até hoje não sabe o que a levara a lhe dizer sim quando se declarou no baile de formatura. Custou a acreditar que a requestada professora - ensinava no grupo escolar do bairro - quisesse realmente casar com ele. Não a instigavam interesses escusos pois Lisandro provinha de família ainda mais pobre que a dela e, para custear os gastos com a Faculdade, tivera de trabalhar (até obter a bolsa de estudo) cobrando para uma loja de roupas e confecções as contas de insolváveis caloteiros - e conseguia receber. Considerou-se em dívida com a esposa durante a vida inteira. -

   - Muita gente contra ele?

 

    Em geral dona Mariúcia não se interessava pelas disputas de vagas na Academia, apesar do tempo e do empenho que Lisandro lhes dedicava. Acolhia os candidatos nas visitas protocolares, comparecia ao Petit Trianon por ocasião das sessões solenes e do chá festivo às vésperas do Natal, quando confraternizava com as senhoras dos demais acadêmicos. O círculo de amizades que freqüentava compunha-se sobretudo de esposas de magistrados e de familiares, seus e das noras.

   - Vários, mais do que imaginei. E velhacos... Afrânio Portela, lembras dele? Um grã-fino...

   - Sei, muito simpático. Lí uns romances dele, gostei. Adélia é lindo.

   - Simpático? Comparado com ele, Maquiavel é um estudante de leis. Sabes ao que chegou?

   - Conta. - Solícita, tomou-lhe da mão suarenta.

   - Não contente de arranjar um General para competir com o Agnaldo, botou Maria João a cabalar votos.

   - A artista de teatro? E dá resultado?

   - Basta te dizer que Paiva, o nosso querido Ministro, voto meu, de cabresto, anda querendo tirar o corpo fora. Nunca se viu uma coisa dessas, é uma falta de respeito à Academia.

   Dona Mariúcia riu:

   - Sou capaz de jurar que, por teu lado, tens feito outro tanto. Há perigo de teu candidato perder?

   - Isso não.  Vai ganhar.

   - Então por que te preocupas?

   - Porque eu queria uma vitória por unanimidade. Aí, aparece o peste do Portela com um General para estragar a festa.

   - Todas as vezes, é a mesma coisa. Essa briga feroz.

   - Creio, Mariúcia, que não existe nada que seja mais cobiçado no Brasil do que o fardão da Academia. A Academia é o supra-sumo, nada se compara com ela. Somos apenas quarenta, os eleitos dos deuses, os Imortais.

   - E tu chegaste lá, Lisandro. Fiquei muito orgulhosa. Mas, foi tão difícil? Não me lembro mais.

   - A ocasião era propícia, fui uma espécie de candidato de conciliação. Assim mesmo, tive de rastejar. O Paiva me ajudou muito.

   Silenciou, recordando a batalha de dez anos atrás; considerado o mais fraco dos três candidatos, ninguém acreditava que ele fosse eleito. Ah, a Academia custa suor e sangue!, mas o fardão limpa tudo, cicatriza as feridas. Olhou para a mulher com carinho:

   - És esposa de um membro da Academia Brasileira de Letras.

   - Muitas têm inveja, nem escondem. Seu marido é Acadêmico, não é? Que chique! Fico toda prosa.

   - Precisas ver o Agnaldo, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, cujo nome faz tremer meio mundo, um dos maiores figurões do Estado Novo, oferecendo caixas de champanha francesa ao velho Francelino, Embaixador aposentado, sem eira nem beira.

   - E por que patrocinas a candidatura desse Coronel? Li umas coisas sobre ele, de arrepiar. Nesses papéis que a Pru traz para casa, escondidos na bolsa.

- Pru anda metida com os comunistas, já te disse. Um dia desses é descoberta, nem quero pensar. Imagina, uma filha minha, na cadeia. , Estou pagando meus pecados.

 

   O manifesto dos intelectuais pernambucanos, do qual encontrara cópia em sua gaveta na Academia, aparecera também em casa, em cima da escrivania onde estudava os processos. Posto ali pela filha, para criticar a atitude do pai. Pru trouxera também o poema de Antônio Bruno sobre Paris e escrevera à margem: um nazista não pode suceder ao poeta da liberdade. Acusando-o, a rebelde. Mas quem irá tirá-la da cadeia se, um dia... Imagine-se se o Coronel desconfiasse...

   - Deixa Pru com a vida dela como eu te deixo com a tua. Mas, explica-me por que te afliges tanto por causa dessa candidatura, por que a patrocinas, se esse Coronel não é sequer teu amigo?

   - Ele manda, Mariúcia, acima dele somente o Ministro da Guerra e o Homem. Agnaldo, ele escolhe e nomeia. Eu te devo muito, te devo demais, minha querida. Já és esposa de um Acadêmico, quero que sejas também de um Ministro do Supremo Tribunal Federal.

 

   Delgada, elegante, ainda atraente, desejável, dona Mariúcia descansou a cabeça no ombro do marido:

   - Por mim o fazes, agora entendo. - Ofereceu-lhe os lábios.

 

DIÁLOGO AO TELEFONE

 

- Boa notícia, caro Lisandro.

   - Diga, querido Agnaldo.

   -Acabo de receber telefonema do Carmo, marcando visita para

amanhã.

   - Do Presidente? Ótimo! E, daí?

   - Convidou-me para jantar em casa dele, com minha mulher. Pediu-me que não divulgasse o fato.

   - Não lhe disse? Convite para jantar, garantia do voto.

   - Todos dizem que de fato é assim. Quis lhe comunicar imediatamente.

   - Obrigado. Sabe que dia é amanhã?

   - Amanhã? Deixe-me ver... Quinta-feira.

   - Não uma quinta-feira qualquer. Amanhã encerram-se as inscrições. A partir de sexta, ninguém pode mais se candidatar.

   - Será que o Presidente já recebeu Moreira Maginot?

   - Sei com certeza que ainda não recebeu o General Moreira. Mesmo tratando-se de um adversário, Lisandro não ousa retirar a patente que precede o nome de um oficial superior; quanto mais a tratá-lo por depreciativa alcunha, Deus o livre: - Mantenho-me informado sobre todos os passos do inimigo. O General terá de contentar-se com um cafezinho.

   - Podemos nos encontrar depois de amanhã para eu lhe dizer como correu o jantar?

   - É claro que sim, marque a hora. Estou sempre à disposição, sou seu ordenança, meu Coronel.

   - Comandante Supremo, isso sim, caríssimo Lisandro. Be

   Supremo Tribunal Federal.

 

INFORMAÇÃO

 

Abertos os trabalhos, lida a ata, naquela quinta-feira, dois meses exatamente após a sessão de saudade dedicada à memória do poeta dos Sonetos de Ugne, o Presidente comunicou aos Senhores Acadêmicos presentes (e ordenou o envio de circular aos ausentes) o encerramento do prazo de inscrição de candidatos à vaga aberta com a morte de nosso saudoso companheiro Antônio Bruno. Dois escritores, preenchendo os requisitos regimentais, se haviam apresentado: o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira e o General Waldomiro Moreira, ambos com vários livros publicados. A eleição seria efetuada daí a dois meses, na última quinta-feira de janeiro de 1941, por coincidência a derradeira antes das férias acadêmicas.

 

O JANTAR

 

Na moderna casa da Urca, à noite, o Presidente e Senhora receberam para jantar o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira e a esposa, dona Hermínia. Dona Hermínia parecia mais velha que o marido a quem tratava por Sampaio; calada, respondendo por monossílabos às tentativas de conversação da Presidenta, todavia, à sobremesa, saiu do mutismo para elogiar os pratos e os doces. Tudo muito fino, disse.

 

   O jantar iniciou-se tranqüilo, depois ganhou vivida animação. Hermano do Carmo narrou fatos de sua vida jornalística. Começara de baixo, menino de recados, levando originais e trazendo provas da redação para a tipografia, na Folha do Comércio, órgão do qual terminara diretor e proprietário. Antes de ocupar a presidência da Academia, ocupara a da Associação Brasileira de Imprensa.

 

   Apesar do esforço do Presidente para evitar temas conflitantes, como impedir que se comentasse a guerra? Tendo a dona da casa aludido com admiração à resistência oposta pelos ingleses aos monstruosos bombardeios aéreos alemães, citando Churchill, o Coronel não resistiu e, entre o peixe à escabeche e o rosbife com legumes, assumiu o comando da Luftwaffe, apagou Londres do mapa, em seguida ocupou a Inglaterra e meteu Churchill na cadeia.

 

   Na sobremesa, voltaram a assuntos mais amenos; ouviu-se a acanhada voz de dona Hermínia elogiando peixe, carne e doces. Doida por doces, contudo não  podia abusar, já estava gorda demais. Acrescentou imprevisto detalhe: Sampaio apreciava mulheres gordas. O Coronel confirmou: quem gosta de ossos é cachorro.

   Quando o casal se retirou, a Presidenta perguntou ao marido:

   - Vai ser eleito?

   - Infelizmente, sim. Por sorte, quando tomar posse, já não estarei na presidência. - Meio a sério, meio a sorrir, acusou a altiva dama de cabelos brancos: - Falaste em Churchill de propósito, não foi? Provocadora.

   - Por que o convidaste para jantar se não vais votar nele?

   - Não vou? Como sabes? - Também ela tomava conhecimento das preferências do marido somente quando ele lhe anunciava o nome do candidato convidado a jantar.

- Como sei? Porque não é possível que um homem de bem vote nessa espécie de bastardo de Hitler. Reparaste na mulher? Mulher, para ele, é ser inferior, boa para engorda e cama.

   - Com  meu voto ou sem ele, será eleito. Com diferença de oito a dez votos, por aí. - Passou o braço em torno da cintura da esposa: - Para a semana, na próxima terça, virão jantar o General Waldomiro Moreira e a mulher.

   - O outro candidato? Que novidade é essa?

   - Não precisas desfalcar a adega, vinho francês está caro e difícil. Serve o mesmo chileno de hoje.

   Iluminou-se num sorriso o rosto da Presidenta: 

   - Já percebi. Se convidas os dois, vais votar em branco.

   - Adivinhona.

   De mãos dadas, desceram para o pequeno jardim onde floriam jasmineiros, perfumando a noite.

 

CURSOS, CONFERÊNCIAS E VIVANDEIRAS

 

Conjunto de conferências pronunciadas por acadêmicos, o curso anual da Academia Brasileira de Letras sobre aspectos da literatura nacional em 1940 analisou o tema Poesia nos Movimentos da Abolição e da República. Público composto em geral por gente moça, na maioria estudantes, além de amigos e admiradores do conferencista da semana. Os de maior nomeada conseguiam lotar o salão e modificar a fisionomia habitual da assistência com a presença de professores universitários, editores, escritores, livreiros e senhoras da sociedade.

 

   Desde que se inscrevera candidato à vaga de Antônio Bruno, o General Waldomiro Moreira não perdera uma única aula. Sempre na primeira fila, bloco e caneta à vista, tomando notas, acompanhado do infatigável Claudionor Sabença. Superado o azedume decorrente do telefonema petulante, através do qual o General mandara a Academia Fluminense de Letras às favas, o enamorado Sabença passara a viver as peripécias da nova e gloriosa candidatura do autor de Prolegômenos Idiomáticos, secretário eficaz e gratuito. Em troca continuou a freqüentar a hospitaleira casa do Grajaú, prosseguindo na discreta corte à desquitada Cecília. Por falar em Cecília, a graciosa filha do General abrilhantou com sua presença a conferência sobre Luiz Gama, a cargo de Rodrigo Inácio Filho, aplaudindo com tamanho entusiasmo, a ponto de causar apreensão e ciúme ao bom Sabença - posto na reserva mas não desprezado. Cecília não era de jogar fora pretendentes mesmo em circunstâncias como aquela, quando em garçonnière de luxo acasalava-se corn a imortalidade. Tais benesses do destino, ai!, costumavam durar pouco. Sabia despertar interesse, fazer-se desejada, apetitosa conquista mas, insípida e impertinente, não conseguia manter acesa a chama inicial, cedo se desiludia o apaixonado e o idílio estiolava, flor de vida curta. Incapaz de suportar a solidão, recorria então aos suplentes. Perdera um deles, o cirurgião-dentista que a flagrara aos beijos com Rodrigo na limousine do Imortal. Revelou-se preconceituoso e vulgar em derradeiro telefonema - para insultá-la (para defini-la, dissera ele) empregou aquele nome.

 

   Observando o General Moreira tomar quantidade de notas, comandar as palmas por ocasião dos tropos mais eloqüentes, sair em disparada para ser o primeiro a felicitar o orador, elogiando-lhe erudição e sintaxe, o velho Francelino

Almeida recordou para um grupo de colegas, entre os quais Afrânio Portela e Henrique Andrade, divertido episódio do qual haviam sido protagonistas ele e Lisandro Leite, então candidato com reduzida chance de vitória.

 

    Na ocasião, o diplomata ditava ao fim da tarde, nas sextas-feiras, um curso de conferências na sede do Pen Club, sobre a cultura clássica japonesa. Assunto árido, público diminuto, a cada palestra mais diminuto. Lisandro Leite fornecia a maioria absoluta da assistência. Arrebanhava alunos ameaçados de reprovação na cátedra de Direito Comercial e, à base de promessas de melhores notas nas próximas provas, obtinha presença e aplausos de uma boa dúzia de ouvintes para as explanações do ex-Embaixador no Celeste Império sobre o Kojiki, o Manyo-shu, os monogataris, os nikkis e outras amenidades semelhantes. Na penúltima conferência, além de Lisandro e dos chantageados discípulos, haviam comparecido apenas o Presidente do Pen e o contínuo, obrigados ambos devido aos cargos que exerciam. A assistência coube nas duas primeiras filas do pequeno auditório. Na véspera da última palestra, realizou-se a eleição e Lisandro saiu vitorioso no terceiro escrutínio, para surpresa de muitos. Entre os que votaram nele, estava Francelino que, em dúvida entre os três candidatos, nenhum deles influente, decidira-se pelo assíduo e obsequioso freqüentador do curso. Pois bem: na última palestra, o público reduzira-se ao Presidente, ao contínuo e a quatro gatos-pingados, porteiros e vigias do Edifício, convocados pelo experiente bedel. Acadêmico eleito, Lisandro sentira-se desobrigado e desobrigara os alunos.

 

   - Quero ver esse General é depois da eleição. Se for eleito, perdemos o ouvinte. Mas ele tem qualidades apreciáveis, apesar do outro mandar um bocado no Governo. Páreo difícil, não é mesmo?

   O grupo dissolvia-se, Francelino Almeida despediu-se:

   - Obrigado, meu Henrique, mas hoje vou dispensar a carona. Tenho um compromisso no Centro.

   - Galante? - indagou, pilhérico, Henrique Andrade.

   O velho desconheceu a pergunta:

   - Simpatizo muito com esse General.

 

   A qualidade mais sedutora do General Moreira, motivo da crescente simpatia do Decano, costureira de profissão, secretária de mentira, dirigia-se naquele momento para a Cinelândia, onde tinha encontro marcado na Brasileira com o ex-Embaixador no Japão e na Suécia, prosa agradável, tendo muito a contar sobre curiosos aspectos da vida no Oriente e na Escandinávia, galanteador, mãos um tanto trêmulas mas ainda maneiras e empreendedoras.

 

    - Minhas vivandeiras estão minando as forças inimigas... comentou Mestre Portela, embarcando no carro de Henrique. Iam jantar naquela noite, com dona Rosarinho e dona Julieta Andrade, no Cassino da Urca, onde se exibiam a fabulosa orquestra de Carlos Machado, os Brazilian Serenaders e aquele jovem e extraordinário Grande Othelo, positivamente um gênio.

 

O CONVITE

 

   Dessa vez, no gabinete de trabalho e despacho, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira não está sentado de um lado da mesa, o inimigo do outro lado da trincheira, sendo esmagado. Candidato e paraninfo conversam no largo sofá de couro, num ângulo da sala. Na parede, mapas da Europa e da África, os alfinetes de cabeça negra avançando mar adentro sobre as Ilhas Britânicas. Na África, dominam o deserto. Respira-se guerra naquele posto avançado de comando.

 

   - Antes de ouvir o relato do jantar, deixe que eu transmita ao querido amigo uma boa notícia: a secretária do Pérsio telefonou e me pediu que lhe comunicasse que ele o espera na próxima segunda-feira, às dezoito horas.

   - Onde?

   - Em casa, já não vai ao Instituto de Física onde costumava receber as visitas. Mora no Cosme Velho.   ,

   - Sei, o endereço está na lista.

   - Vai lhe entregar pessoalmente o voto, o mais cobiçado da Academia. Uma vez, ouvi um candidato dizer que não se importava com a derrota pois tivera o voto de Pérsio Menezes. O querido Agnaldo vai ser o último a merecer tal consagração provinda de uma das maiores personalidades da ciência mundial, um gênio. Os historiadores, no futuro, recordarão este detalhe. - Deu tempo para o Coronel tomar plena consciência da significação do voto do sábio moribundo e da visita histórica resultante de seu empenho: - Agora, o jantar...

 

   - Ainda não. Também eu tenho uma comunicação a fazer, caro Lisandro. - Pôs-se de pé, marcial e solene; o Desembargador, imitando-o, se levantou, excitado; um pressentimento, súbita esperança: seria o ambicionado convite? Pareceu-lhe celeste a voz declamatória do Coronel: - Quero que seja o leal amigo quem pronuncie o discurso de recepção na minha posse. E não admito recusa.

 

   - Eu? Receber o querido amigo? Não imagina com que alegria cumprirei essa honrosíssima incumbência! Estou extremamente comovido. Permita-me abraçá-lo, meu Agnaldo! - Punha lágrimas na voz. Assim criara os filhos, abrira caminho na vida, subindo degrau em degrau até às alturas onde chegara. Naquele instante vislumbrou o cimo supremo a atingir em breve, graças à campanha e ao discurso. Bruno falecera na hora exata.

   Após o abraço que selava aquela amizade para a vida e para a morte, novamente sentados, Lisandro revelou:

 

   - Veja que coincidência: sem esperar essa grande prova de estima e confiança que acabo de merecer, comecei, por simples prazer intelectual, a reler sua obra ímpar, a estudá-la, pretendendo escrever um ensaio sobre ela. Utilizarei no discurso as anotações que fiz para situá-la no seu devido lugar na literatura brasileira contemporânea. Falta-me apenas seu livro de poemas, não consegui obtê-lo nem no sebo do Carlos Ribeiro.

 

    - Pecados da mocidade, versos românticos. Basta que se refira ao livro de passagem, cite o título. Vou ver se consigo um exemplar Para lhe oferecer. - Não tinha intenção de cumprir a promessa; versos românticos, superados, não condiziam com um líder de sua estatura. Lisandro conseguiu dominar a emoção:

   - E o ágape? Sei que não falaram na eleição, o assunto é tabu para o Presidente, o convite para jantar significa a declaração de voto.

   - E verdade, não se falou de eleição e voto, segui à risca suas instruções. Ele contou que foi contínuo do jornal, antes de ser dono. Depois a mulher dele se meteu a elogiar, imagine quem! Esse excomungado cão inglês que atende por Churchill. - Sorriu, contente de si: - Aí eu lhe dei uma lição sobre a guerra...

   - Discutiram sobre a guerra? - Alarmou-se Lisandro: Tínhamos decidido evitar temas políticos.

   - Não se assuste. Tudo correu bem, ela entupiu, não respondeu. Leve em conta que não fui eu quem puxou o assunto. É preciso reeducar essa gente, caro Lisandro.

 

   O Desembargador engoliu as objeções e as críticas, o mal estava feito, o erro cometido, não adiantava discutir. Churchill, De Gaulle, os maquis na França, o estóico povo inglês, os impávidos cidadãos de Londres, toda essa gente luta a favor do General, ameaça o Coronel. Ainda assim, na contagem feita ao final da conversa, Lisandro previu a vitória de Sampaio Pereira por vinte e oito votos contra onze. Margem ainda mais larga lhe daria se pudesse, para agradecer o convite tão avidamente esperado; em verdade já redigira o discurso, peça de fôlego, obra-prima da lisonja.

   - Que sejam vinte e sete contra doze, faço questão é de ter mais do duplo da votação do Linha Maginot. Sem o que, me sentirei derrotado.

 

PRIVILÉGIO

 

No domingo, dia de descanso, Lisandro burilava o discurso de recepção, quando foi chamado ao telefone por Sampaio Pereira. Pelo torn de voz, deu-se conta de que o Coronel já estava a par da desagradável notícia. Assim era:

   - Acabo de saber que o Presidente convidou o Moreira para jantar. O que significa essa comédia? É insuportável!

   - Churchill, querido amigo...

 

   - O quê? Que quer dizer com isso? Foi a mulher dele que começou... Considero a atitude do Carmo verdadeiramente intolerável. É um desfrute, uma chacota. Uma canalhice.

   Com a canalhice do Presidente, ao sapo-cururu atravessado na garganta, o

Coronel Sampaio Pereira juntou uma cobra venenosa a sufocar-lhe o peito, cascavel de picada mortal.

   - Tenha calma, não se exalte, vamos conversar. Mesmo que ele falhe, teremos vinte e sete contra doze, três mais que o duplo, sem contar que o voto do Pérsio vale por cinco.

 

    Lisandro soubera, na antevéspera, do estranho convite do Presidente ao General e concluiu que a discussão sobre a guerra o levara a modificar o voto. O querido Agnaldo não se convencera de que candidato à Academia não pode ter opinião própria, muito menos manifestá-la. Compete-lhe ouvir e, se não puder apoiar e aplaudir, deve ficar mudo, sorrindo. Jamais discutir, contestar. Dono do voto, o Acadêmico tem sempre razão. Essa é uma prerrogativa dos Imortais.

 

MARCHA FÚNEBRE

 

Surpresa, a moça séria e bem-posta - criada? secretária? parenta? demora-se um instante a reparar na movimentação dos agentes do corpo de segurança que saltam dos carros e ocupam a área em frente à casa. Com um gesto, convida o. Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, o uniforme repleto de condecorações e medalhas, a segui-la através do corredor imerso numa semi-obscuridade.

 

   Leva-o para a biblioteca. Pejadas de livros, as estantes cobrem as paredes, elevando-se até o teto. Os livros sobram por toda parte: amontoados no chão, em cima das cadeiras, abertos na pesada mesa de trabalho. Nos espaços vazios, entre as janelas (através das quais avista-se o Largo do Boticário), três grandes pinturas cuzquenhas e sobre uma peanha antiga a imagem secular de Nossa Senhora do Leite, o seio exposto, dando de mamar ao Menino. Num ângulo das estantes, está um cavalete de pintor e nele um quadro moderno, retrato de Pérsio Menezes assinado por Flávio de Carvalho, em cores quentes j e pinceladas violentas, a cabeleira revolta e a barba longa enredando-se, misturando-se ao sol e às estrelas, os olhos de fogo, Júpiter brandindo o raio, Vulcano forjando o inferno. Sobre a mesa, flores alegres num jarro de cristal.

  

   O Coronel sente-se perturbado, invadido por inesperada e molesta sensação de insignificância. Busca reagir ao desconfortável sentimento, concentrando-se nos acordes de piano provindos de sala vizinha. Conhece aquela melodia, onde a ouviu? Com os correligionários e companheiros de Santa Catarina, em festas de confraternização, escutara concertos de música alemã, soubera da admiração do Führer por Richard Wagner. Quem sabe, foram compostas por Wagner essas notas marciais, anunciadoras do triunfo final.

   - Tome assento. O Professor não demora.

   - Essa música? É de Wagner, não é?

   A moça parece estranhar a pergunta, tarda a responder, o olhar fixo nas rutilantes condecorações, que coisa!

   -Wagner? Não. É aTerceira Sinfonia de Beethoven, a Heróica. Muito conhecida. - Acrescenta, querendo talvez se antecipar a novas perguntas: - É dona Antonieta quem está tocando, ouvi-la é um privilégio. Com licença...

 

   Criada, parenta, secretária? Insolente, o tom professoral de quem ensina o bê-a-bá a um ignorante. Lança uma última mirada às condecorações, sai, deixando-o sozinho e ainda mais diminuído: música muito conhecida, o privilégio de ouvir a exímia Antonieta Novais Menezes, afastada das orquestras e dos palcos havia tantos anos. Informado pelo previdente Lisandro, sabe ter sido ela, em tempos idos, aclamada concertista.

 

   Em verdade, não existe motivo real para sentir-se assim complexado na penumbra do inusitado ambiente onde cada objeto revela saber e gosto, grandeza sem ostentação, austeridade sem tristeza. Na certa, a par de sua visita, a egrégia Senhora, num gesto de amável acolhimento, sentara-se ao piano, concedendo-lhe aquela regalia. Viera receber um voto praticamente garantido: o sábio dera a entender ao Desembargador que desejava entregá-lo em mãos. Em paga, para homenagear o ilustre cientista, o Coronel envergara o primeiro uniforme, coberto de condecorações e medalhas, o voto de Pérsio Menezes vale por cinco. Mas o fardamento de gala e os crachás destoam em meio à livraria, aos quadros, à Santa de devoção extinta. Talvez, se houvesse seguido o conselho de Lisandro - vá vestido à paisana, é melhor - sentir-se-ia mais à vontade, menos opresso e aturdido.

 

   Beethoven pode ser muito conhecido mas é de Wagner que o Führer gosta, há de ter razões para a preferência pois não se engana jamais, infalível ao opinar sobre guerra ou sobre arte. Não é a guerra a arte suprema, a mais bela? Cessam os sons do piano, o Coronel examina com repulsa o retrato no cavalete, arte degenerada. Afasta o olhar, não adianta, continua a ver aquelas pupilas de fogo que o perscrutam, intoleráveis.

 

   Retorna o piano, o ritmo mudou, cadência de marcha fúnebre. Fugindo do retrato, perseguido pela música poderosa, o Coronel Sampaio Pereira levanta a vista e depara com a Morte enquadrada na porta, a fitá-lo, as mesmas pupilas de fogo. Estremece.

 

   Passos lentos, a terrível visão avança tão devagar que para esperá-lo o tempo se deteve. Gigante disforme, antes da enfermidade era um possante atleta; agora, um esqueleto recoberto de pele macerada; a longa barba e a revolta cabeleira fizeram-se ralas; os dedos compridos são apenas ossos; as roupas folgadas acentuam a destruição do corpo. Rosto macilento, cor de cera, face de defunto.

 

    Passo a passo, Pérsio Menezes se aproxima. Espavorido, o Coronel ergue-se da poltrona, as medalhas se mexem no peito da túnica. Distantes porém audíveis, os sons da marcha fúnebre

   - Sente-se - ordena a voz cavernosa, sepulcral.

  

   Não oferece a mão, garra informe. Deseja evitar ao visitante o desagradável contato dos dedos descarnados, reflete Sampaio Pereira, agradecido. Ocupa uma cadeira, espaldar e braços de jacarandá, assento de couro, diante da poltrona do Coronel. Com um gesto breve, autoriza o espavorido candidato a falar. Esforçando-se para superar a insegurança, o Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, candidato a membro da Academia Brasileira de Letras, inicia a declamação do texto rotineiro acrescido de louvores ao Imortal tão próximo da Morte e com ela se confunde.

 

   O professor de Mecânica Celeste ouve em silêncio, os luminosos olhos semicerrados. Os acordes vão e vêm, sobem e descem, perturbam a exposição do postulante. Por que a pianista não escolheu música de Wagner se realmente pensou proporcionar-lhe um privilégio? Titubeante, o Coronel chega ao fim do peditório: espera merecer a honra insigne do voto do incuto Acadêmico, confia em que não tenha ainda se comprometido.

 

   -Meu voto está decidido, faz tempo. -A voz surda e vagarosa, cada palavra custa um esforço: - Desde já lhe informo que não votarei em seu adversário, o General que aqui esteve, há dias. Nada tenho contra ele, pessoalmente, mas a literatura que comete é de última qualidade. Por isso não voto nele. - Sem se elevar, a voz se impõe. Resta-me muito pouco tempo de vida mas antes de morrer desejava vê-lo pois sei tudo quanto se refere ao senhor, Coronel Agnaldo Sampaio Pereira.

   Pela primeira vez desde que atravessou os umbrais da porta da casa do Cosme Velho, o Coronel respira com certo alívio. Chegara o momento solene e glorioso da declaração de voto; a carta redigida com antecedência deve estar sobre a mesa, batida à máquina pela secretária. Aguarda, os nervos tensos, tentando não escutar os acordes do piano, maldita regalia.

   Pérsio Menezes levanta a mão esquálida, aponta com o dedo o peito de Agnaldo, estuante de medalhas:

   - Onde está a Cruz de Ferro?

Não deixa tempo para a resposta, o dedo se eleva à altura do rosto do estupefato Coronel:

  -A única que o senhor deve usar, sobre o coração. Numa túnica da Gestapo, não em farda brasileira.

   Perplexo, o Coronel balbucia:

   - O que quer dizer?

   Pérsio Menezes apóia-se nos braços da cadeira, com ele se levanta a Morte:

   - Como se atreve a esperar meu voto? O senhor, um nazista! O contrário da cultura, o oposto do brasileiro.

   Os sons da marcha fúnebre, a voz de sepulcro, arrancada das entranhas enfermas, longas pausas entre as frases, asco mortal em cada palavra:

   - Todos temos dois lados, um bom, um ruim. Pior do que um robô, o senhor é um homem pela metade, torturador de presos. O senhor terá por acaso esposa  e filhos, pessoa a quem ame? Não creio. Alguém que o ame? Ninguém, os que o servem fazem por medo ou interesse. Algum dia o senhor amou, sentiu afeto por uma mulher, sorriu para uma criança, teve um momento de ternura? Ou sempre foi assim, um desgraçado? O senhor está podre e cheira mal. Meu voto? Como pôde imaginar que eu votasse corn a Gestapo?

   A voz, até então lenta e surda, se alteia, medonha:

   - Fora daqui, antes que eu o esbofeteie!

 

   Levanta a mão, os dedos da Magra erguidos em direção ao rosto do desfigurado candidato. O Coronel Agnaldo Sampaio Pereira recua de costas, crescem altíssimos os acordes da marcha fúnebre. A Morte avança para o Coronel que sai em disparada corredor afora, atravessa a porta da rua, aberta pela secretária, cai nos braços dos gorilas de sua segurança, arria no assento do automóvel, cobre o rosto com as mãos.

 

O SEGUNDO-TENENTE

 

Ao acordar e descer da cama, dona Hermínia espanta-se ao ver o marido ainda deitado, em sono profundo. A essa hora, tendo feito os  exercícios para manter a forma, tomado a ducha de água fria, vestido a farda, engolido o café, devia estar no Ministério, jamais se atrasou. Excetuando ocasiões excepcionais, somente tarde da noite, por vezes de madrugada, dona Hermínia punha os olhos em Sampaio. O Coronel dizia e repetia com ênfase espartana que não se pertencia -

seu tempo, seus cuidados, sua vida pertenciam à causa. Dona Hermínia

se habituara.

 

   O sono do esposo parece-lhe por demais tranqüilo. Aproxima-se, toca-lhe o rosto com os dedos, estava morto.

 

   Metido no pijama, os olhos redondos e ingênuos semi-abertos, não se assemelha a herói tombado no campo de batalha, a personagem maniqueísta símbolo do mal e do obscurantismo, SS nazista, chefe da Gestapo armado de chicote. Apenas um pobre homem morto, estendido na cama, igual a tantos outros.

 

   Lembra alguém. Dona Hermínia vai buscar uma face no passado - parece o jovem segundo-tenente tímido e apaixonado que ela conhecera havia muito tempo, num outro tempo; declamava versos suplicando um beijo. Dona Hermínia de repente se recorda, começa a chorar baixinho.

 

GUERRILHA NA ESPLANADA DO CASTELO

 

OPINIÕES IMPUBLICÁVEIS

 

Enterremo-lo com grandiosidade e urgência, assim ficaremos livres dele o quanto antes e para sempre, aconselhou o Diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, a cuja duplicidade política já se fez referência anterior. Acabara de liberar a nota oficial da Chefia do Governo anunciando a morte do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, na qual era feito o elogio do bravo soldado da Pátria, portador de extraordinária folha de serviço, cuja dedicação ao regímen constituíra fator essencial na garantia da ordem e no esmagamento da ameaça comunista.

 

   O redator quis saber, para efeitos do noticiário a ser divulgado pela Agência Nacional:

   - O Homem acompanha o enterro? Ou apenas comparece ao velório?

   - Quem? O Presidente? Você está louco, nem enterro nem velório. Reconhecia a utilidade de nosso finado Goebbels mas tinha-lhe horror. Esse Pereira fede a Idade Média, me disse certa vez.

   Diante da confidencia, o redator adulou:

   - No dia em que o senhor puder escrever suas memórias, que livro, hein, doutor?

   - Se eu tivesse memória, não ocupava esse cargo, meu filho. Sou surdo, mudo e amnésico. Só não sou impotente. Ainda.

   Tão cínico, por que eu o acho simpático?, interrogou-se o redator, arriscando o comentário ouvido nas redações, ninhos de agitadores:

   - Odiado como era, o Coronel até que deu sorte. Morreu na cama, de morte natural. Porque, se um dia houvesse uma reviravolta, com ele vivo, não escapava do pelotão...

   - Na cama, sim. De morte natural, quem lhe disse? Morreu envenenado, pouco a pouco. Cicuta, para estar a caráter com o ambiente.

   Revelação sensacional, provinda de quem sabe. Ah!, que sensação quando o jornalista a espalhar entre os colegas! Bem se diz que nos bastidores do Estado Novo, na luta pelo poder, acontecem coisas medonhas:

   - Envenenado? com cicuta? Como? Por quem?

   - Pelos velhinhos da Academia. De dose em dose, aumentando a cada dia. O último cálice foi Pérsio Menezes quem lhe deu a beber.

   O olhar meio vesgo do Diretor se perdeu pela janela sobre a paisagem de cimento armado:

   - Um grande homem, esse Pérsio Menezes, um gênio. Sabe que em Princeton ele descobriu e localizou duas estrelas até então desconhecidas? Povoou o céu... - sorriu: - ...e o inferno também.

 

CANDIDATO ÚNICO

 

Logo após a morte de Antônio Bruno, Lisandro Leite prometera ao Poderoso Coronel Sampaio Pereira as regalias da candidatura única. Com a morte do Coronel, enterrado com ruidoso estardalhaço de tanques, soldados, toques de clarins, discursos e salva de tiros, tudo isso oito dias após o encerramento das inscrições, quem se encontrou de súbito candidato único foi o desacreditado e sortudo General Waldomiro Moreira.

 

   Soube do passamento do adversário (e inimigo) através de telefonema do fiel Sabença, copidesque na redação do Diário da Tarde, onde passava cinco horas diárias corrigindo o português das matérias escritas em caçanje pelo bando de analfabetos da reportagem e do noticiário.

 

   - Alvíssaras, meu General! Quero ser o primeiro a cumprimentar o novo Imortal.

 

   Ai, o coração do General Moreira, máquina cansada! Dispara com facilidade, necessita permanente controle, as emoções devem ser evitadas. Impossível fazê-lo em tais circunstâncias, em plena batalha eleitoral. Que sucedera? Afrânio Portela admitia a hipótese do calhorda do Pereira retirar a candidatura.

 

   -Ele retirou-se? - Ele e não Goebbels Pereira ou outras alcunhas aviltantes; o General está com o telefone sob censura desde que se inscrevera para disputar a vaga de Bruno. Um amigo o avisara, recomendando-lhe prudência nas comunicações, a ele e à estouvada Cecília.

   - Bateu as botas. Morreu.

   - Hein? Quando?

   A taquicardia cresce, onde se meteram Conceição e Cecília? Precisa de uma delas para lhe trazer remédio e água.

   - Amanheceu morto. O enterro sai às cinco, vai ser espetacular, com discurso do Ministro, desfile de tanques e salva de tiros. Agora,  com as inscrições encerradas, sem concorrente, o nobre amigo está eleito por antecipação.

   Por sorte, dona Conceição surgiu na sala, saiu correndo em busca do medicamento. Ao saber-se eleito, o General escapou por pouco do enfarte.

   Fora de perigo, recostado na espreguiçadeira, eufórico comunicou à esposa e à filha-Cecília surgira com a cara besuntada de creme, no início de demorada maquiagem, era dia de encontro com Rodrigo a  auspiciosa novidade:

   - Diante de vocês está o General Waldomiro Moreira, membro da Academia Brasileira de Letras, um Imortal!

   Posteriormente, dona Conceição lastimou-se: por que não se l morre na hora certa?

 

A MILITANTE

 

Ao tomar conhecimento da morte do Coronel, através do Jornal do Almoço, da Rádio Carioca, Maria Manuela ligou para Afrânio Portela, pedindo para vê-lo se possível naquele mesmo dia. Após a morte de «nino haviam mantido longas conversas telefônicas nas quais o romancista a colocava a par dos vaivéns da batalha. Solicitou o encontro, ávida por detalhes sobre a sensacional notícia e desejosa de comunicar pessoalmente sua próxima partida do Brasil, estava de malas prontas.

Bar discreto, no último andar de alto edifício na Praia do Flamengo, com vista para a baía, próximo à casa do romancista, superlotado à noite, quando exibia atrações de classe - Sílvio Caldas, Dircinha e Linda Batista, Dorival Caymmi, a mexicana Elvira Rios, Lamartine Babo, as picantes Irmãs Pagas -, nos fins de tarde a freqüência do Prive era diminuta: um ou outro casal apaixonado e ilegítimo, aos sussurros. Sentados ao lado da balaustrada, o romancista e a portuguesa contemplam o enterro que desponta no Russel, precedido pela banda de um regimento, cadência de músicas fúnebres. Em cima de uma carreta militar, o caixão recoberto pela bandeira brasileira. Soldados a pé e a cavalo, um contingente da Polícia Especial nos novos veículos alemães, carros possantes e motos rapidíssimas; os grandes automóveis negros com personalidades oficiais. Dois tanques de guerra encerram o cortejo. O Coronel Sampaio Pereira reassumira o posto de comando. Maria Manuela olha, fascinada. Reclama explicações:

 

   - Morte repentina, não foi? Qual a causa?

   - Eu diria: morte inesperada. A causa? Que outra poderia ter sido senão a batalha em que estávamos empenhados? Confesso que não a esperava, o objetivo visado era outro. Mas façamos justiça: o Coronel morreu em combate.

   - Por favor, meu amigo, troque essas charadas em miúdo. Morreu em combate, como? O Mestre não esperava a morte dele mas esperava outra coisa, o quê?

   - A desistência. - Retirou os olhos do enterro, preferia a visão da formosura melancólica da derradeira amante de Bruno: -Sampaio Pereira não passava de um tolo, cheio de empáfia, julgando-se todo-poderoso, convencido de que ninguém teria coragem de se opor a seus desejos. A estratégia era levá-lo à renúncia, à retirada da candidatura; a tática aplicada foi esvaziá-lo, através de uma série crescente de decepções e malogres. A cada golpe recebido, ia se irritando, se consumindo, corroído por dentro. Pensou ser candidato único, teve concorrente. Sonhou com eleição unânime, o sonho gorou. Depois, começou a perder votos considerados certos, a sentir a repulsa à sua candidatura. Figueiredo o destratou, Evandro nem se fala. Aturdido, humilhado, viu-se perdido.

   - Estava derrotado?

   O cortejo prossegue lento e solene conduzindo o herói à trincheira da imortalidade! (como disse o Ministro na vigorosa oração à beira do túmulo), o trânsito parado para lhe dar passagem, grupos de curiosos nos passeios.

   

   - Ainda não, longe disso. Não sei se o derrotaríamos caso chegássemos à eleição. Duvido. Motivo por que toda a campanha foi planejada para que se sentisse desmoralizado, repelido e, temendo a derrota, abandonasse o pleito. O lance dos jantares do Presidente, uma obra-prima, deixou o Sampaio Pereira em pânico. Nós o fizemos engolir sapos e cobras para que vomitasse a candidatura. Engasgou, morreu de sufoco.

 

    Os sons da banda se dissolvem no ar, o enterro atinge a Avenida da Ligação, começa a desaparecer.

 

  - Custou trabalho convencer Pérsio a recebê-lo, tal a repugnância que sentia pelo Coronel. Ele o fez por amor a Bruno e, por amor a Bruno, Antonieta sentou-se ao piano e executou a Marcha Fúnebre da Heróica. Falei com Pérsio ontem, pelo telefone, e ele me disse que temia se haver excedido. Quando o tipo lhe pediu o voto, Pérsio ficou fora de si e ameaçou esbofeteá-lo, Sampaio Pereira saiu correndo. Dose fatal, pelo visto. E isso que não chegou a me visitar... De qualquer maneira, minha linda menina, a memória de nosso Bruno está a salvo, cumpri minha promessa: fizemos o possível e o impossível. Valeu a pena.

   Maria Manuela tomou a mão de mestre Afrânio e a beijou:

   - Gostaria de beijar também a mão do professor Pérsio. A saúde dele? Não há mesmo esperança...?

   - Nenhuma, infelizmente. Temo que essa tenha sido sua última contribuição à cultura brasileira.

   -Agora, sim, posso viajar descansada. Afonso, meu marido, foi promovido a Embaixador e designado para a Venezuela. Seguiremos diretamente daqui, arranjo de meu Pai para evitar que eu corra os perigos da travessia marítima para Lisboa. No próximo mês devemos Partir, iremos por Manaus.

    Em silêncio contemplaram a paisagem deslumbrante: o mar da Guanabara, as ilhas, as montanhas, as praias, o casario de Niterói, distante:

   - Sabe onde conheci Antônio? Em Niterói... Uma coisa tão

gira... Se tem tempo para ouvir, eu lhe conto.

   - Hoje é meu primeiro dia de descanso desde que Bruno morreu e a menina me procurou na hora do jantar. Agora, tenho todo o meu tempo livre e adoro ouvir histórias da carochinha.

   Um sorriso quase brejeiro cortou a melancolia do rosto de Maria

Manuela:

   - Tem razão, foi um conto de fadas à moderna, com política e esposa infiel, fada absurda. - Fez uma pausa, antes de perguntar: Sabe que sou uma perigosa militante anti-salazarista, pois não?

   - Bruno me mostrou um poema no qual se referia a uma deusa do Olimpo empunhando a foice e o martelo. Um poema delicioso.

   - A Deusa e o jogral, um dos primeiros que escreveu para mim. Pois bem: eu tinha um encontro marcado em Niterói com um companheiro, um exilado que deveria me entregar documentos para serem remetidos a Portugal. Na minha posição, disponho de meios...

 

   Filha de Ministro de Salazar, nora do maior banqueiro do país, esposa do Conselheiro da Embaixada de Portugal, encontrava-se em situação privilegiada para combater o fascismo: dentro do covil do inimigo, ouvindo informações confidenciais, conhecendo os agentes da PIDE em atividade no Brasil, podendo usar a mala diplomática para sua correspondência pessoal. Afrânio Portela olha absorto para a mulher sentada diante dele: distinção, finura e elegância, endeusada pela crônica social, rainha nos salões da sociedade carioca e do corpo diplomático - quem a imaginaria às voltas com subversivos, agindo na clandestinidade, praticando ações ilegais? Eis aí um tema para romance, tão convidativo que ele se sentiu tentado a voltar à ficção.

  

   - O ponto era num bar, no Saco de São Francisco. Cheguei primeiro, conforme combináramos, dirigi-me ao posto de tabaco,  comprei cigarros, o companheiro apareceu assustado, quase correndo. Entregou-me o envelope e me disse que estava sendo seguido. Não deixe que o pide a veja, ordenou-me e se tocou porta afora. Meti o envelope na bolsa, como fazer para evitar que o policial me visse? Já pensou se ele me reconhecesse? 

   Mestre Portela saboreou o suspense, que cena de romance!

   - E daí?

   - Sentado a uma das mesas vi Antônio que bebericava, certamente à espera de alguma mulher. Eu o conhecia de fotografia e leitura, adorava os versos dele desde meus tempos de estudante. Não vacilei, ocupei uma cadeira a seu lado e, sem maiores explicações, lhe disse que não podia ser vista nem reconhecida por um tipo que ia passar em frente às portas e esquadrinhar o interior. Ele não fez perguntas. O pide pode ter desconfiado de qualquer outra pessoa, menos de mim, cujo rosto não pôde sequer vislumbrar, encoberto que estava pelo de Antônio, nossas bocas unidas no maior beijo do mundo... Deixou-me ir depois, num táxi, sem perguntar quem eu era...

 

   Afrânio Portela via-se construindo o romance: quem sabe tomaria da máquina de escrever, das resmas de papel em branco e, pondo de lado as fichas sobre os poetas da Inconfidência, buscaria recriar aquelas intrigas políticas, o ambiente da Embaixada de Salazar, as dificuldades dos exilados, a derradeira paixão do poeta, o enigma de Maria Manuela?

   - No dia seguinte, recebi um livro com dedicatória extremamente formal, acompanhado das mais belas orquídeas que já vi. O telefonema veio mais tarde... Foi Antônio quem me revelou o amor. Antes, eu era somente a militante, ele me completou, me fez mulher. A salva de tiros, ao longe, na distância. Caía a primeira pá de terra sobre o corpo do Coronel Agnaldo Pereira Sampaio.

 

A DAMA DE NEGRO

 

A princípio relutou. Não por deferência ao esposo ou respeito ao matrimônio. Nenhum afeto a ligava ao marido, indolente insignificante e frívolo, sequioso de distinções e honrarias, cuja maior aspiração consistia num título papalino de nobreza a adquirir assim herdasse sua parte na imensa fortuna do pai, construída nas colônias com o suor dos negros, multiplicada na metrópole com a mercê do Governo. Tamanha ambição de aristocracia levara Afonso Castiel à carreira diplomática, atividade nobre, deixando aos irmãos a responsabilidade da chula gerência de bancos, empresas agrícolas e industriais; e a casar-se com Maria Manuela Covo Silvares d'Eça, régio rebento de família antiga e fidalga, com brasão e divisa: Nas mãos de El-Rey coloquei minha vida e minha honra. Ah!, se pudesse, Afonso adotaria os patronímicos ilustres da esposa, em lugar de lhes acrescentar o seu Castiel, sobrenome com perceptível odor de gueto, íntimos laços de amizade e finanças ligavam o ricalhaço Salomão Castiel ao influente Ministro Silvares, dos Negócios Estrangeiros; gozavam ambos da confiança e da difícil estima do ditador. Quanto ao sacramento do matrimônio, Maria Manuela não o considerava digno do menor respeito, não passando seu casamento de uma tarefa, a mais pesada de todas. Relutou devido à moral proletária, razões ideológicas.

 

   Antônio Bruno a identificara no bar, em Niterói. Percebeu que o temor de ser reconhecida e a necessidade de esconder o rosto que a atiraram em seus braços nada tinham de comum com intrigas de alcova. Conjura política, quem sabe espionagem? Vira quando o indivíduo lhe passara o envelope, junto ao posto de venda de cigarros. A beleza da mulher e o mistério a rodeá-la deixaram-no desvairado, num desatino de paixão. Não poderia viver se não a conquistasse. Tinha de possuí-la, fosse como fosse: boca de romã, colo de cisne.

Empreendeu o cerco usando a totalidade dos recursos acumulados em copiosa experiência. Flores e livros, voz de carícia, lábia de mel, o brilho e a graça da conversa, o calor da cobiça. Cortês e reticente, Maria Manuela não sucumbia, sólida fortaleza.

 

   Bruno conseguiu abrir uma brecha através da literatura. Em troca de seus livros, enviados um a um, as dedicatórias cada vez menos formais, recebeu pelo correio o único volume publicado em vida por Fernando Pessoa: Ao admirado poeta brasileiro Antônio Bruno, esta Mensagem do maior poeta português contemporâneo, com profunda admiração, a leitora Maria Manuela Silvares Castiel. Bruno ouvira vagas referências ao colega lusitano cuja popularidade somente após a guerra se estenderia ao Brasil. Intelectual voltado para a cultura francesa, pouco sabia da literatura moderna de Portugal, além da grande geração de Eça, Ramalho, Antero. LeraA Selva, de Ferreira de Castro, conhecia de nome Aquilino Ribeiro, a merencória poesia de Antônio Nobre não o seduzia mas amava a de Cesário Verde. Fora daí, aquela total ignorância, a assombrar e revoltar os sentimentos patrióticos da formosa licenciada em Letras pela Universidade de Coimbra.

 

   Partindo de Fernando Pessoa e de seus heterônimos, alongaram-se as conversas telefônicas, terminando num primeiro encontro no Liceu Literário Português, onde ela chegou, esbaforida e bela, carregada de livros de poesia, títulos e autores desconhecidos para Bruno. Não foram, porém, os poetas lusitanos que ali a conduziram: acedera às súplicas do apaixonado porque aquele primeiro beijo, nascido da contingência política, continuava a lhe queimar a boca na qual permanecia o gosto dos lábios e da língua do poeta brasileiro, debilitando-lhe a vontade, acendendo anseios reprimidos.

 

   Um jogo de disparates: Bruno exaltado, a falar amor; Maria Manuela, erudita e platônica, a explicar o significado dos grupos reunidos em torno das revistas Qrfeu e Presença, oferecendo-lhe exemplares da Seara Nova. Que jeito, senão usar as mesmas armas? Bruno atacou com Prévert, Breton, Aragon, Eluard, Tzara e, poeta a poeta, verso a verso, a intimidade se impôs, doces palavras misturando-se às estrofes; o fogo da paixão incendiou o debate literário. Com Lorca, no Cancionero Gitano encontraram chão comum, terra propícia onde o amor medrou. Trocaram beijos, sentados em banco rústico entre árvores no alto do Silvestre, lendo os Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada, de Neruda.

  

    Maria Manuela deixou de resistir, sucumbiu, quando Bruno declamou, a voz dolente, sussurrada, a série de três sonetos à maneira de Camões, inspirados por ela: Visitações de Juno à Vila Real da Praia Grande de Niterói. Que significava exatamente moral proletária? Nunca lhe haviam dado uma explicação correta mas não era, com certeza, manter-se fiel a Afonso, marido além do mais indiferente às andanças da esposa. Faz de mim o que quiseres, disse a Bruno, vencida e satisfeita.

 

   Para ele, a derradeira aventura, um desatino, um desvario; para Maria Manuela, o primeiro amor, a descoberta do outro lado da vida dando nova dimensão ao humanismo que dirigia suas ações. Um camarada, Fernando Castro, lhe ensinara a solidariedade, com o poeta Antônio Bruno aprendeu o amor. Antônio me completou, confidenciara a mestre Afrânio no dia do enterro do Coronel.

 

   O primeiro amor, tardio, ela andava na casa dos vinte e oito anos. Conheceu um tempo de inteira felicidade - ternura infinita, infinita volúpia, libertada. O imprevisto encontro em Niterói sucedera pouco antes do Natal de 39, Bruno faleceu em setembro cie 40, dez meses perfeitos, durante os quais não houve um único instante que não fosse pleno de harmonia e de beleza.

 

Rompendo com os hábitos feudais da família, ao terminar o Liceu, Maria Manuela recusou-se às prendas domésticas, conquistou o  direito à Universidade, inscreveu-se no curso de Letras em Coimbra. Entusiasta, alegre, inteligente, começou de imediato a participar da vida estudantil. Após breve e decepcionante etapa de românticas serenatas à beira do Mondego, ligou-se a grupos de esquerda cuja seriedade a seduzia. Estudante de leis, fisionomia ascética e voz rude,

Fernando Castro encarregou-se de catequizá-la. Enquanto os demais colegas faziam-lhe a corte, desperdiçando tempo em declarações ridículas, ele falava de política, da miséria do país e do povo, da  opressão do salazarismo, das injustiças do colonialismo, da cupidez do imperialismo cujas garras sangrentas arrancavam as entranhas da nação lusa. Deu-lhe a ler livros proibidos de Marx e Lenin, O Manifesto Comunista, um resumo de O Capital, O Imperialismo, Etapa

 

Superior do Capitalismo (e ela os leu, esses e vários outros); A Mãe, de Gorki, e os poemas de Maiakovski. Descreveu a saga da Revolução de Outubro, bandeira e esperança dos explorados, forja de um mundo melhor, sem ricos nem pobres, sem classes, onde a propriedade privada não existisse, todos tivessem comida para saciar a fome e direito aos bens da cultura. Maria Manuela deslumbrou-se.

 

   Pediu inscrição no Partido e, após um período de provas, indispensável devido às suas origens, durante o qual a observaram e julgaram, foi admitida sob o nome de guerra de Berta. Feliz, ao voltar de uma madrugada de inscrições a piche nos muros da Universidade, entregou-se ao suarento camarada Castro que, arrenegando os rígidos princípios da moral proletária, reabilitou abandonadas teses de amor livre e as pôs em prática. Só mesmo um santo de pedra poderia andar dia e noite às voltas com a formosura de Maria Manuela e manter-se indiferente. O camarada Castro era quase um santo. Descarnado, mas não de pedra.

 

   Sectário por convicção e temperamento, ele a educou na ortodoxia e no dogmatismo, fazendo da camarada Berta uma espécie de freira marxista. Maria Manuela abandonou tudo que significasse luxo, ostentação, requinte, dos vestidos e sapatos caros aos cremes e pinturas, evidências da podridão capitalista. Limpa de artifícios, resplandecendo na beleza pura da face, na incomparável elegância do corpo liberto de atavios inúteis, enlouqueceu alunos e professores, inspirando dezenas de maus poemas, péssimas páginas em prosa, canções e fados execráveis. Nada disso a perturbou ou comoveu expressões néscias da burguesia decadente. O duro colchão e a parcimoniosa cópula do camarada Castro bastavam à sua sensibilidade embotada cujo apetite não fora despertado. Importante, apenas a Revolução, o resto era secundário. Trancou-se para o sentimento e o desejo.

 

   Num encontro de dirigentes, na Serra da Estrela, Fernando Castro caiu em mãos da polícia. Maria Manuela quis visitá-lo, o Partido se opôs, ela não entendeu os motivos mas obedeceu ao veto terminante. Continuou em Coimbra, concluindo o curso, prosseguindo no trabalho ilegal. Buscou na poesia substitutivo para a pregação política do camarada ausente, cujo discurso, apesar de severo e estreito, continha generosa inspiração. Não se interessou por nenhum dos companheiros, de estudos ou de ideais. Condenado a larga pena, Fernando Castro não a cumpriu; faleceu no campo de Tarrafal, alguns meses após ter sido preso. Maria Manuela sentiu profundamente a morte do camarada, não chorou o amante.

 

   Recebido o diploma, de volta a Lisboa, ofereceu-se para trabalhar na clandestinidade, rompendo com a família e o meio em que vivia, tornando-se revolucionária profissional. Não somente lhe negaram tal oportunidade: ao ser pedida em casamento por Afonso Castiel, aconselharam-na a aceitar o noivo que as famílias acordes lhe propunham.

 

  Conselho, não é bem o termo. O casamento com o diplomata lhe foi imposto, tarefa a cumprir. Tendo contado ao responsável do organismo de base no qual milhava a risível história do pedido de casamento, acrescentando que de maneira nenhuma aceitaria unir-se àquele fátuo imbecil, viu-se convocada dias depois para uma reunião altamente responsável e secreta. Longo percurso de automóvel, os olhos vendados, em completo silêncio, apenas ela e o desconhecido motorista. Pela primeira vez, Maria Manuela ia se encontrar com um membro do Comitê Central.

 

   Desceu do carro, o motorista a tomou pela mão e a conduziu, como se fora cega, ao interior da casa. Disse espere aqui e foi embora. Pouco depois uma voz educada e neutra fez-se ouvir: a camarada pode retirar a venda. Diante dela viu um homem de meia-idade, magro, as faces encovadas, os olhos ardentes, ar de apóstolo. Prazer em conhecê-la, camarada Berta. Estendeu-lhe a mão, depois apontou uma cadeira. Sente-se, ternos muito a conversar. Sou o camarada Neves. Maria Manuela sentiu o coração pulsar mais rápido. Tinha em sua frente o camarada Neves, membro do Bureau Político, legendário dirigente, herói de histórias fantásticas: duas fugas da prisão, uma do Forte de Caxias, em Lisboa, a outra de Tarrafal, enfrentando o mar-oceano em primitiva embarcação por ele mesmo fabricada; de sua capacidade teórica contavam maravilhas, cursara a Escola do Komintern, em Moscou. Desprendia-se dele um carisma que impunha respeito e obediência.

 

   Durante alguns momentos pareceu próximo e humano, ao falar quase com ternura sobre Fernando Castro, falecido no campo de Tarrafal, vítima das torturas a que fora submetido em Lisboa durante dos companheiros, de estudos ou de ideais. Condenado a larga pena, Fernando Castro não a cumpriu; faleceu no campo de Tarrafal, alguns meses após ter sido preso. Maria Manuela sentiu profundamente a morte do camarada, não chorou o amante.

 

   Recebido o diploma, de volta a Lisboa, ofereceu-se para trabalhar na clandestinidade, rompendo com a família e o meio em que vivia,  tornando-se revolucionária profissional. Não somente lhe negaram tal oportunidade: ao ser pedida em casamento por Afonso Castiel, aconselharam-na a aceitar o noivo que as famílias acordes lhe propunham.

 

   Conselho, não é bem o termo. O casamento com o diplomata lhe foi imposto, tarefa a cumprir. Tendo contado ao responsável do organismo de base no qual militava a risível história do pedido de casamento, acrescentando que de maneira nenhuma aceitaria unir-se àquele fátuo imbecil, viu-se convocada dias depois para uma reunião altamente responsável e secreta. Longo percurso de automóvel, os olhos vendados, em completo silêncio, apenas ela e o desconhecido motorista. Pela primeira vez, Maria Manuela ia se encontrar com um membro do Comitê Central.

 

   Desceu do carro, o motorista a tomou pela mão e a conduziu, como se fora cega, ao interior da casa. Disse espere aqui e foi embora. Pouco depois uma voz educada e neutra fez-se ouvir: a camarada pode retirar a venda. Diante dela viu um homem de meia-idade, magro, as faces encovadas, os olhos ardentes, arde apóstolo. Prazer em conhecê-la, camarada Berta. Estendeu-lhe a mão, depois apontou uma cadeira. Sente-se, temos muito a conversar. Sou o camarada Neves. Maria  Manuela sentiu o coração pulsar mais rápido. Tinha em sua frente o

camarada Neves, membro do Bureau Político, legendário dirigente, herói de histórias fantásticas: duas fugas da prisão, uma do Forte de Caxias, em Lisboa, a outra de Tarrafal, enfrentando o mar-oceano em primitiva embarcação por ele mesmo fabricada; de sua capacidade teórica contavam maravilhas, cursara a Escola do Komintern, em Moscou. Desprendia-se dele um carisma que impunha respeito e

obediência.

 

   Durante alguns momentos pareceu próximo e humano, ao falar quase com ternura sobre Fernando Castro, falecido no campo de Tarrafal, vítima das torturas a que fora submetido em Lisboa durante os interrogatórios. Comportara-se heroicamente, nada revelara do muito que sabia, responsável que fora pelos organismos estudantis de Coimbra. Assumira sua condição de comunista e anunciara aos verdugos a inevitável débâcle do salazarismo. Um exemplo para todo o Partido, concluiu, retomando o tom impessoal, de comando, a marcar a distância entre o dirigente e o militante: Agora, falemos da camarada.

 

   No decorrer da entrevista, ele a tratou com estima mas sem calor, estima puramente política; um único laço os ligava, a Revolução, mais nada. Camaradas de Partido, não companheiros, pois ele, membro do Bureau Político, decidia e comandava, competindo a ela executar as ordens recebidas. O dirigente conhecia toda a sua atividade anterior, em Coimbra e em Lisboa, fez-lhe elogios e críticas, sem exageros. Explicou, professoral e categórico, que o Partido não a soubera aproveitar como devido. Dada a posição ocupada pelo pai e ao prestígio da família, a camarada Berta devia cumprir tarefas específicas - havia muita gente para pichar paredes e distribuir volantes.

 

   O Bureau Político tomara algumas decisões a respeito do trabalho da camarada. De agora em diante, ligada à direção, afastada do organismo de base, teria contato permanente apenas com um responsável do Comitê Central que lhe daria assistência em sua nova atividade partidária. Estavam em plena Guerra da Espanha e a camarada, filha do Ministro dos Negócios Estrangeiros, com livre trânsito nos meios oficiais, poderia ser de extrema utilidade. Sua tarefa consistiria em informar-se e informar. O Bureau Político decidira ao mesmo tempo aprovar seu casamento com Afonso Castiel por significar sensível ampliação da área onde deveria agir.

 

   Boquiaberta, Maria Manuela pretendeu discutir. Não eram essas as perigosas tarefas para as quais esperava ser designada. Não escondeu o desaponto: ia sentir-se mais espiã do que revolucionária. A voz do dirigente, fria e cortante lâmina de aço, se elevou pondo término às queixas e à discordância:

  - A camarada Berta vem de revelar que ainda não se libertou das influências pequeno-burguesas, ainda não adquiriu a mentalidade bolchevique. O Partido resolve lhe confiar importante frente de luta, pensando que a camarada se encontra capacitada para ocupá-la, e, em lugar de se sentir grata e orgulhosa, a camarada tenta discutir decisões do Bureau Político. O que deseja? Exibir-se como heroína, pichando paredes e distribuindo material de propaganda nas feiras, discursando nos comícios relâmpagos? O Partido está lhe dando tarefas, à camarada cabe cumpri-las.

 

   Antes mesmo de constatar a inutilidade de qualquer resistência, Maria Manuela se convencera do erro cometido: não passava de pequeno-burguesa tola e romântica, muito longe ainda da fibra e da convicção que distinguem os comunistas provados. O camarada Neves, esse sim, era um bolchevique, educado na escola do camarada Stalin. Sentiu por ele imensa admiração:

   - Tem razão, camarada. Procurarei superar minhas limitações de classe e ser digna da confiança do Partido, fazendo autocrítica na prática. - Nas mãos do Partido, coloquei minha vida e minha honra, sua divisa.

   

   A festa do casamento de Maria Manuela Covo Silvares d'Eça com Afonso Castiel foi o acontecimento do ano, até hoje recordado pela sociedade lisboeta. A noiva, pálida e deslumbrante, vestido, véu e grinalda vindos de Paris, assinados por Coco Chanel; a Marcha Nupcial, executada pelo organista Klaus Bergmann, trazido especialmente de Viena, a peso de ouro; o sermão do Cardeal nos Jerônimos, louvando a aliança de duas grandes e ilustres famílias, ligadas agora pelos laços do matrimônio, sob as bênçãos de Deus! A seguir, a recepção, grandiosa, ostentação sem igual.

 

  Na cama, o pretensioso e perfumado Afonso a interessou ainda menos do que o acanhado e suarento Fernando. Ao retirar o fraque, o idiota mascarou-se de machão, recomendou-lhe coragem e prometeu agir com o maior cuidado - não tenhas medo, não sentirás nada. Convencido que ia deflorá-la e convencido de tê-lo feito quando nela se pôs e cantou vitória. Maria Manuela estava a par das relações de Afonso com popular fadista da Alfama, a quem sustentava - a ela e aos seus sucessivos primos, alegres mandriões.

 

   O dirigente tinha razão. Maria Manuela pôde fornecer ao Partido preciosas informações sobre assuntos confidenciais, por vezes secretos, informações obtidas no gabinete do pai, em casa do sogro, em conversas com o esposo boquirroto. Afonso adorava descobrir e contar os últimos boatos, recolher disse-que-disse nos corredores do Ministério, nas ante-salas do Governo. A par de tudo quanto se relacionava com a ajuda de Salazar a Franco, a camarada Berta foi de real ajuda à causa dos republicanos espanhóis.

 

   Com o acordo do Partido, acompanhou o marido ao Brasil, onde ele veio servir no posto de Conselheiro da Embaixada, e passou a ser o correio rápido e seguro entre os exilados comunistas e a direção em Portugal. Um camarada de confiança mantinha-se ligado a ela, o único a saber de sua filiação política. Um ano depois de estar no Rio, conheceu Antônio Bruno naquela tumultuada tarde, em Niterói.

 

Floresceu nos braços do poeta. Em Coimbra descobrira um mundo a transformar, no Rio soube da vida em sua plenitude. Estonteante revelação, quando finalmente, após tantas negaças, se desnudou no leito de Antônio e pela primeira vez gemeu de gozo e conheceu o espasmo. Não tardou a ser a fêmea mais completa, a mais voraz, sedenta e esfomeada, buscando recobrar o tempo perdido. Realizada e feliz.

 

   Realizada e feliz, não abandonou contudo a trincheira da luta antifascista. Não diminuiu a fidelidade ao Partido, não descuidou das tarefas, às quais juntou mais uma, por conta própria - transformar o poeta lírico Antônio Bruno num poeta engajado, fazendo de seu canto arma dos trabalhadores empenhados na transformação do mundo. Citava-lhe o exemplo do chileno Pablo Neruda, aquele dos Veinte Poemas de Amor responsáveis pelos beijos iniciais. Cônsul na Espanha durante a guerra civil, colocara seu estro a serviço do proletariado em armas.

 

   A propósito desse constante tema de conversação, Bruno lhe mostrou artigo de um crítico que, apesar de elogiar a qualidade brasileira de sua poesia, acusava-o de desconhecer os problemas sociais e não se definir num mundo convulsionado, em hora decisiva, quando Garcia Lorca, a quem chama de irmão, é fuzilado por Franco, Thomas Mann se exila para não acabar num campo de concentração de Hitler e Antônio Machado morre no desterro. Artigo publicado por casualidade no derradeiro número da revista Para Todos, proibida de circular pelo DIP apesar do prestígio e das relações de Álvaro Moreyra, proprietário e diretor. Maria Manuela deu inteira razão ao articulista: Antônio não estava cumprindo seu dever. Provavelmente a bela e sediciosa portuguesa contribuiu para o discurso que ele pronunciou na Academia sobre a torre de cristal posta abaixo pela guerra.

 

   Rindo, Bruno anunciava um livro inteiro de poemas de conteúdo social mas nunca cumpriu a promessa. Escrevia, isso sim, poemas de amor, de desvairada paixão, louco jogral, trovador aos pés da corajosa dama que por ele arriscava honra e fortuna.

 

   Não estava arriscando nada, repetia Maria Manuela; entre ela e o marido existiam apenas os laços formais do matrimônio. Afonso continuava a sustentar cantoras - agora uma espetacular mulata, sambista num dos teatros da Praça Tiradentes, igualmente rodeada de primos, divertidos marmanjos - e se Maria Manuela não tivera outros amantes antes dele, devia-se exclusivamente ao fato de não lhe haver interessado nenhum dos muitos que a cortejaram nos salões. Ameaçou inclusive abandonar marido e posição para ir viver com Bruno, na pobreza e na poesia. Para impedi-la de cometer tal loucura, o poeta teve de recorrer a razões políticas. Que pensaria o Partido a respeito? Seriam capazes de expulsá-la. Argumento decisivo.

 

   Aos cinqüenta e quatro anos, ainda em plena forma mas percebendo a aproximação da velhice, Bruno sentiu-se cumulado pelo destino com o amor dessa mulher formosa e jovem, culta e valente, nascida fidalga, que se elevara à condição de filha do povo. Ensaiou, às escondidas, escrever os poemas de combate que ela reclamava, não conseguiu, soavam falso. O único a receber o sopro da criação verdadeira, repositório de ódio, nojo, cólera, desespero e esperança, coração sangrando e punho erguido, foi o Canto de Amor para uma Cidade Ocupada, escrito com a intenção de chorar a queda de Paris, refeito para conclamar os povos do mundo à luta contra o nazifascismo, pela libertação de todas as cidades ocupadas, poema de Bruno e de Maria Manuela, cuja primeira cópia ela datilografara. Herança recolhida pela militante coberta de luto, a dama de negro, repartida na hora do desalento maior no Brasil, em Portugal e nas colônias africanas - lido nas selvas de Angola, da Guiné Bissau, de Moçambique, onde negros em revolta acendiam os fogos das primeiras guerrilhas.

 

DIÁLOGO ACADÊMICO A VOL D'OISEAU

 

Fino observador, o Decano Francelino Almeida notou de imediato sintomas de mudança na atitude do General Waldomiro Moreira. Sentado num sofá, ao lado do Ministro Paiva, do Supremo Tribunal, contemplava a mesa servida, onde vários acadêmicos tomavam chá, café, refrescos de frutas, comiam bolinhos, torradas e biscoitos, antes do início da sessão semanal, a primeira após a morte do Coronel Sampaio Pereira. Em voz baixa, advertiu o amigo sobre o fato:

 

   - Já não é o mesmo, preste atenção. Alguma coisa mudou. Na maneira de cumprimentar, de se dirigir a nós, no trato. Antes, admirador humilde, de fazer gosto. Agora ficou menos sabujo, empinou o peito. Também o outro esperou o encerramento das inscrições para morrer, deixando-lhe o caminho livre, dando a eleição de mão beijada...

   - Ias votar nele, se o Sampaio Pereira não morresse?

   - Estava em dúvida. O Coronel era uma potência, negar-lhe o voto, uma temeridade. Todavia, o Moreira tem padrinho poderoso... Podia acontecer que eu terminasse cometendo uma loucura...

   O pequeno e magro Ministro, piscando os olhos por causa da luz, baixou ainda mais a voz:

   - Conta-me a verdade, meu Francelino: padrinho ou madrinha?

   - Acertou. E que madrinha! - estalo de língua, significativo.

   - Não me digas que é a mesma...

   - Você também? Você, voto certo do finado... A secretária?

   - Secretária? Qual? De quem?

   - Do General, tão modesta e acanhada, chego a pensar que seja virgem...

   - Essa não conheço. Quer dizer que ele botou a secretária nas tuas pegadas? O que me admira é o prestígio do General junto às mulheres. Não tem cara nem jeito...

   - Quem havia de ser? Aquele adorável demônio que se chama Maria João.

   - A atriz?

   - Ela, sim. Fechou a questão, imaginas uma coisa dessas?

   Riram os dois velhinhos, mansa e alegremente. O Ministro comentou, ainda intrigado:

   - Quem diria que esse Moreira tivesse tais protetoras...

   Francelino constatou:

   - A verdade é que a morte do Pereira resolveu nossos problemas. Mas, repare no General, nem parece o pobre homem que me visitou. Aliás, não deve ser pobre, a julgar pela cesta de licores e biscoitos que me ofereceu.

   - E pobre, sim, vive do soldo. Tudo que tem é a casa onde mora, comprada com sacrifício. Deve ter gasto contigo o estipêndio do mês.

   - Como é que você sabe tanto sobre ele?

   - Por Maria João, é claro. O diabinho me azucrina o tempo todo com as virtudes e as provações do General, honrado e pobre.

   - Será? Esses milicos são econômicos e monógamos, têm despesas pequenas, juntam sempre um dinheirinho, fazem seu pé-de-meia... A cesta que me mandou deve ter custado caro.

   - Ele já tinha vindo ao chá? Eu sempre o vejo no salão, atento às conferências. Aqui em cima, não me lembro de tê-lo visto.

   - Creio que esteve uma vez, trazido pelo Rodrigo. Todo encabulado, mal provou um cafezinho. Hoje veio por conta própria, repare no apetite.

  Na mesa do chá o General Waldomiro Moreira falava alto, repetia o café com leite, dava uma baixa sensível no bolo de milho. Ao vê-lo assim, tão descontraído, ninguém o julgaria candidato, assumira a condição de Acadêmico eleito. O Ministro Paiva, homem de bom viver, voltou ao agradável tema do mulherio:

   - Aqui para nós: quem tem se regalado é o nosso Rodrigo. A "lha do General é um peixão...

   - Você diz isso porque não viu a secretária... Mulata divina...

   - Mulata? - Dilataram-se os olhos delicados do Ministro, a voz turvou-se de inveja: - Felizardo!

  

   Diálogo na Academia, à espera da sessão. Durante a qual o Presidente anunciou o falecimento do Coronel Agnaldo Sampaio Pereira; agora apenas um candidato concorria à vaga de Antônio Bruno, o General Waldomiro Moreira. O Acadêmico Lisandro Leite fez o elogio do falecido, requerendo inscrição na ata de um voto de pesar.

 

   Ainda na mesa do chá, sozinho, o General candidato único engoliu um último pedaço de bolo refletindo sobre certas tolices de regras e hábitos: sendo ele praticamente Acadêmico, seu lugar era lá dentro entre os outros Imortais. Em casos como o dele, não devia prevalecer o parágrafo regimental, em princípio justo, que proíbe a entrada aos não acadêmicos na sala das sessões - não há regra sem exceção.

 

O DERROTADO

 

Único Acadêmico, um dos raros civis a acompanhar o enterro do Coronel Sampaio Pereira - o querido e assustador Agnaldo -, de retorno do cemitério, Lisandro Leite encontrou-se derrotado. Pior: sem candidato. Aquela eleição, da qual esperava o máximo, resultará num desastre. Em cima da escrivania, na margem do jornal aberto na página com amplo noticiário sobre o falecimento do ilustre oficial e apreciado escritor, candidato à Academia Brasileira de Letras, Pru escrevera com lápis vermelho: Já foi tarde! Mal agradecida.

 

   Levou uns dias sorumbático, a cara fechada, de pouca conversa. Ao voltar da sessão da Academia, contou a dona Mariúcia:

 

   - Requeri um voto de pesar, disse umas palavras. Portela, Evandro, Figueiredo, os outros sorriam, gozando minha caveira. Vitoriosos. Nadando em felicidade, o General Moreira, que apareceu para o chá. O bocado não é para quem o faz, é para quem o come. Trabalheira perdida. E ainda por cima, Pru, essa ingrata...

   - Deixa Pru em paz e não te aflijas tanto.

   - Já contava com a nomeação para o Supremo.

   - Não te preocupes, vais chegar lá.

   - Ninguém dá nada de graça, Mariúcia, é preciso cavar cada coisa, criar as condições.

   - Conseguirás, tenho certeza. Levanta a cabeça, homem! Nunca te vi assim.

   - O jeito é esperar que o Pérsio se decida a morrer. Parece de ferro, pelos médicos já estaria enterrado há muito tempo... Aí eu levanto a candidatura do Raul Lameira que é íntimo do Homem.

   - O Homem era o Chefe do Governo: - Com o apoio dele e do Paiva, quem sabe...

   - Estás vendo? É só esperar, tudo tem seu tempo.

   O pensamento de Lisandro tomara por um desvio:

   - Tem uma coisa que eu gostaria de saber...

   - Qual?

   - O que se passou na visita do Agnaldo ao Pérsio. Ele tinha ficado de me telefonar em seguida. Não telefonou, andei ligando para todos os números dele, não o encontrei em nenhum. Falei depois com dona Hermínia, a carta do Pérsio para acompanhar os votos não estava entre os papéis que ele deixou.

   - Esquece isso, são águas passadas. Vou te dizer: tenho certeza de que mais dia menos dia hei de ser a esposa do Ministro Leite, do Supremo.

   - E eu só tenho certeza de uma coisa: de que não te mereço.

   - Tolo!

   De onde vinha a ambição a consumi-lo? Dele mesmo ou de Mariúcia, louça e serena?

 

ESCLERECIMENTO HISTÓRICO

 

A guerrilha se estabeleceu na Esplanada do Castelo, em torno da Academia Brasileira de Letras, exatamente após alarmada e significada troca de olhares entre o indignado Evandro Nunes dos Santos, o  pincenê na mão, e o pasmo mestre Afrânio Portela, na quinta-feira seguinte. Ou seja: uma semana depois da sessão durante a qual o Presidente Hermano do Carmo comunicou ao plenário o falecimento do candidato Coronel Agnaldo Sampaio Pereira, um mês e meio antes da eleição.

 

   Ao contrário do que tem sido veiculado por historiadores menos meticulosos e probos, a guerrilha não se iniciou no mesmo dia do funeral do Coronel. Existiu breve solução de continuidade entre o dramático fim da Batalha do Petit Trianon e o início do recrutamento de voluntários para a nova jornada. Pouco mais de uma semana, dias tranqüilos, quando tudo parecia estar na santa paz de Deus. Os que assim pensaram, não contavam com as mutações da natureza humana.

 

   No curto espaço de tempo decorrido entre a referida quinta-feira em que o experiente Embaixador Francelino Almeida detectou, na hora do chá, a existência de sintomas de mudança no comportamento do General Waldomiro Moreira, candidato único, e a seguinte, aqueles vagos sintomas se transformaram em evidência clara e ameaçadora - sinistra, classificou Evandro -, levando os dois velhos franco-atiradores a conspirativo encontro logo em seguida à sessão na qual os acadêmicos discutiram, com a polidez habitual, detalhes da projetada reforma ortográfica proposta pela Academia de Ciências de Lisboa.

 

O EX-FUTURO MINISTRO

 

Apenas entrou na sala de chá, todos puderam se dar conta de que o General Waldomiro Moreira, sem despir a farda, envergara o fardão da Academia. Candidato de contestação a adversário considerado imbatível, arrancara as estrelas do generalato, reduzindo-se a soldado raso, obscuro e obsequioso, submissa praça de pré, reverenciando os Imortais, bebendo-lhes as palavras, aplaudindo conceitos os mais diversos, em certos casos opostos aos seus. Também ele engolira alguns sapos. O maior de todos, indigesto, na visita a Evandro. O ensaísta lhe oferecera um exemplar do polêmico volume O Militarismo na América Latina, de conteúdo negativista - responsabilizava os militares pelas desgraças, pelo atraso, pela dependência dos países latino-americanos em relação à Inglaterra, aos Estados Unidos, à Alemanha. Impolido, fizera questão de repetir, de viva voz, opiniões sobre o papel das Forças Armadas que raiavam pelo insulto. Era silêncio, o candidato ouviu, sem contestar.

 

   Tudo mudou, de repente. Quinze dias atrás, após um balanço dos votos, feito com Afrânio Portela e Rodrigo Inácio Filho, fora dormir derrotado, acordara com a eleição garantida, o concorrente batera as botas. A fase da humilhação e dos sapos se encerrara.

 

   Envergou o fardão sobre a farda na qual estrelas, dragonas e medalhas haviam voltado a brilhar com extrema intensidade, pois, ao se prever Acadêmico, reintegrou-se no grau e na autoridade de General. Assim, duplamente fardado, apesar de estar vestido com mal talhado terno de casimira azul, novamente compareceu ao chá Acadêmico e tratou com familiaridade os futuros colegas, enunciou opiniões, exibiu discordância. Em relação ao apetite, deve-se levar em conta o magro regímen a que dona Conceição o sujeitava por ordem médica. Livre do controle da esposa, atirava-se às gulodices; na mesa variada e lauta, fartava-se.

 

   Pela segunda vez sucedia ao General Moreira, picado pela mosca azul, avançar intempestivamente, assumindo posições e comandos antes da hora, libertando-se da pesada máscara de humildade para se mostrar como Deus e a carreira militar o tinham feito: arrogante e autoritário.

 

  Durante a campanha de Armando Sales de Oliveira à Presidência da República, seu nome fora mencionado nas previsões ministeriais; em caso de vitória do candidato paulista, poderia vir a ocupar a pasta da Guerra.

 

   O General jamais concebera dúvidas sobre a vitória: todo mundo sabia que o escritor José Américo de Almeida, se bem ostentasse o rótulo de candidato oficial, não contava com o apoio do Presidente, o Governo o abandonara à própria sorte. Ademais, como imaginar que um malcriado sertanejo paraibano, representante de beatos e jagunços, de uma gente explorada, analfabeta e faminta, fosse capaz de derrotar o candidato dos bandeirantes e dos paulistas mais recentes, os grandes latifundiários do café e os novos industriais de apelido italiano, daquele povo rico, culto e progressista? Nas tribunas dos comícios, os oradores repetiam a orgulhosa imagem: São Paulo, possante locomotiva a arrastar sozinha os vagões vazios dos outros Estados.

 

  Convencido da vitória, ainda mais da pasta de Ministro. Não um ministro qualquer, da Educação ou das Obras Públicas. Ministro da Guerra, na prática a segunda pessoa do Governo, acima dele apenas o Presidente.

 

   Passou a freqüentar o Ministério, onde era visto, às vésperas do putsch do Estado Novo, sobraçando uma pasta preta, repleta de documentos. Visitava secretarias, serviços, quartéis, na busca de informações que lhe seriam de utilidade no cargo. Constituiu seu gabinete, substituiu comandos, transferiu, reformou e promoveu. Tudo no papel mas com grande alarde público dos planos traçados, do programa a ser executado. Chegou ao extremo de convidar alguns oficiais para postos de relevo.

 

   Fraco de apoio militar, é possível que no início da campanha Armando Sales tenha cogitado do nome do General Moreira, de cuja lealdade não podia duvidar, para aquele alto posto. Mas, se lhe ocorreu tal possibilidade, dela abrira mão, arrependido, bem antes do golpe de novembro enterrar os sonhos e as esperanças não só do General mas de todos aqueles que participavam a sério das campanhas dos dois candidatos à Presidência. Para compensá-lo da dedicação, lhe daria uma boa sinecura: adido militar em Paris, por exemplo, cargo a calhar para um ex-primeiro aluno da Missão Militar Francesa, função honrosa, sem perigo de comando e situado do outro lado do oceano. Porque o General, além de pretensioso e mandão, era um chato daqueles!

 

   Na mesa do chá, ouvindo Henrique Andrade se queixar ao Presidente de atrasos da secretária no envio da correspondência destinada aos acadêmicos, o General Moreira declarou alto e bom som:

 

   - O que está faltando à nossa Academia é um pouco de disciplina militar. Esta Casa não pode dispensar a presença de pelo menos uma figura das Forças Armadas em seus efetivos. Para impor ordem, evitar que a autoridade sofra arranhões.

  

   Arranhões, que arranhões? No silêncio que se seguiu, o velho Evandro Nunes dos Santos e mestre Afrânio Portela trocaram um olhar. Alarmado e significativo.

 

OS CONSPIRADORES

 

Os erros históricos sobre datas e outros detalhes referentes à guerrilha comandada pelo velho Evandro, decerto resultaram do caráter extremamente sigiloso das diversas ações empreendidas. Todos os dispositivos foram concebidos e acionados pelos conspiradores na mais secreta clandestinidade. Se em lugar de idosos literatos liberais, Evandro e Portela fossem provados bolcheviques com anos e anos de experiência no trabalho ilegal, nem assim teriam agido com mais eficiência e maior discrição.

 

  Para uma conversa reservada não existia sítio mais conveniente do que o automóvel do romancista. O chofer, Aurélio Sodré, silencioso no banco da frente, estava a serviço de Afrânio e dona Rosarinho há mais de vinte e cinco anos, merecendo toda confiança. O carro toma o caminho de Santa Teresa para deixar Evandro em casa. Mestre Portela corta-lhe os indignados resmungos:

 

   - O que é que você queria? Que a gente votasse no Sampaio Pereira? O Moreira é apenas um subliterato, o outro era um nazista.

   - Se fosse só subliterato, pouco me importava, não seria o único. Mas é um prepotente. Eu bem lhe disse: esse negócio de militar não dá certo. - Evandro continua fulo: - O candidato perfeito para substituir Bruno é o Feliciano.

   - Não discuto, estou de acordo. Mas, no aperto em que estávamos, não nos restava outro jeito senão recorrer a um General. Agora, é ter paciência e agüentar.

   - Agüente você, se quiser, não eu. Não sou paciente.

   - E que diabo você pode fazer? Agora o Moreira é candidato único.

   - E daí? Ele pensa que está eleito mas ainda falta mais de um mês para a eleição...

   - Você pretende...? - Mestre Afrânio fita o enraivecido compadre, uma suspeita o assalta, começa a se divertir.

   - Se pretendo! Para que é que existe o voto em branco?

   - Mas, compadre, nós fomos à casa dele convidá-lo, insistimos para que se candidatasse... Lemos os livros, elogiamos... Não podemos, decentemente...

   - Primeiro: fui à casa dele porque você me obrigou a ir. Segundo: nunca li urna única linha escrita por ele, Deus seja louvado! - Ia contando nos dedos. -   Terceiro: apoiei seus elogios para não o abandonar numa situação daquelas. Quarto: eu não sou decente.

   Retira o pincenê, leva um tempo a limpá-lo:

   - Nem eu nem você- Nunca vi cara-de-pau igual à sua, elogiando aquelas baboseiras, achando geniais.

   Mestre Portela ri devagarinho. Evandro prossegue:

  

   - Andei lendo um documentário que saiu nos Estados Unidos sobre a guerra civil da Espanha. Durante a batalha de Madrid, uma mulherzinha de cabelo na venta, uma tal de La Pasionaria, o nome diz tudo, comunista ou anarquista, não sei bem, inventou um slogan e com ele enfrentou os falangistas: No pasarán! Pois eu acabo de adotá-lo. Faça você o que quiser, seja decente, me acuse de salafrário, diga que convidei o Linha Maginot...

   - Evandro, isto é demais... Um apelido posto pelo Sampaio Pereira!

 

   - Ouvi do José Lívio e gostei, não quero saber de onde vem, se de comunista ou de nazista, aliás o Zé Lívio é apenas débil mental. O que lhe digo é que eu sou um civilista, não estou disposto a receber ordens de milico nenhum, nunca fui recruta, nem sequer reservista.

   No olhar de mestre Afrânio, aquela luz de malícia:

   - Não se esqueça, compadre, que, além do voto em branco, tem a abstenção. - Bate com a mão no ossudo joelho de Evandro: - Uma pequena guerrilha não faz mal a ninguém...

   - Quer dizer...? ,

   - Nasci mesmo foi para guerrilheiro... Coloco-me às ordens," meu Comandante. - Reflete um segundo: - Na presente situação, o fundamental é o sigilo. O inimigo não pode ter a menor desconfiança, deve se considerar garantido. Quanto mais eleito o Moreira se sentir, mais besteiras vai cometer.

   O carro estaciona em frente ao jardim que circunda a casa de Santa Teresa, Aurélio desce para abrir a porta traseira. Isabel avista os velhos, grita chamando o irmão:

   - Pedro! Pedro! O avô está chegando. Tio Afrânio vem com ele. Depois da morte do Coronel ainda não haviam estado pessoalmente com o amigo mais íntimo da família, o padrinho de Álvaro. Isabel beija os dois velhos nas faces, comenta:

   - Eu disse ao avô que tudo ia terminar bem, tio Afrânio.

   - Ainda não terminou, minha linda. Empunhamos as armas, novamente.

Pedro chega correndo, quer saber:

   - Que novidade é essa?

   - Aqui estamos, Dom Quixote, esse velho birrento, vosso avô,  e eu, Sancho Pança, seu fiel escudeiro, saídos em campanha.

   - E quem é a Dulcinéia? A donzela a proteger?

   O velho Evandro Nunes dos Santos atrai os netos para si, foram eles que o convenceram a lutar contra o nazista Sampaio Pereira. Na voz marcada pelo vício do fumo, uma ponta de emoção:

   - A mesma do Cavaleiro de La Mancha, meus filhos: a liberdade.

   A noite imensa de estrelas nasce entre as árvores do jardim.

 

A SECRETARIA PERDE O EMPREGO

 

Afrânio Portela mandou-lhe uma braçada de rosas e um cartão encontro na mesma leiteria. Rosa desembarcou de um carro Particular, com motorista de túnica e boné.

 

   -  A cada dia está mais linda. - Conteve a curiosidade, não perguntou pelo carro estacionado calçada  à espera. - Vim despedir a secretária do General.

   -Imaginei que isso não tardaria a suceder quando li a notícia da morte do sujeito. Não me alegro com a morte de ninguém mas dessa vez não tive pena. Me dava uma agonia quando pensava que ele ia falar sobre Bruno, elogiando da boca para fora, sujando o nome de meu bem.

   - Desse nos livramos, falta nos livrarmos do outro.

   - Do General? Não era seu protegido? Não inventou essa história de secretária para eu conseguir o voto de Lindinho?

   - De quem?

   - Do Embaixador. Só quer que o trate de Lindinho. Mestre Afrânio explicou a transformação do candidato, o funcionamento da eleição acadêmica, o voto em branco, a abstenção.     

  

   - Então, estou despedida? Olhe que já não é sem tempo. Lindinho anda indócil, quer a pulso que vá tomar champanha no apartamento dele. Sem falar nos beliscões. A sorte é que em minha pele morena as marcas pouco aparecem. Senão...

Mestre Afrânio calcula o valor do automóvel; essas mulheres de Bruno o surpreendem e perturbam, não resiste à curiosidade:

   - Senão, o quê?

   Rosa sorri ao vê-lo fitar o carro:

   - O senhor conhece, é seu amigo. - Pronunciou o nome de rico fabricante de tecidos, português de nascimento: - Vai botar um atelier para mim, na Rua do Rosário, num primeiro andar. Vou trabalhar por conta própria.

   - E a argentina?

   - Voltou para Buenos Aires. Quando ele enviuvou, queria que casasse com ela, a pulso... Botou a faca nos peitos dele...

   - Bonita mulher mas que purgante! La senora Delia Pilar, cantante de tangos - sorriu imitando o acento portenho: - Em matéria de cantora de tangos, nunca ouvi pior.

   - Madame Picq me enviou à casa dela para provar uns vestidos. Foi lá que conheci meu atual... protetor...

   - Quando o encontrar vou lhe dar meus parabéns. Livrou-se daquela antipática, ganhou a mais bela rosa do Rio de Janeiro. Também a ti, eu felicito. Trata-se de um homem bom e decente.

   - Sei disso. Quer apenas um pouco de afeto. Acho que vamos nos entender muito bem. Afeto e respeito, posso dar. - Sorriu com os lábios carnudos, na voz uma ponta de melancolia e ao mesmo tempo de orgulho: - Já tive o amor que desejei, basta que recorde aqueles dias para me sentir feliz. Mas, me diga, estou dispensada?

  

   - Demitida de secretária. Desejo apenas saber umas coisas: ele tem seu endereço? Como se comunica e marca encontro? Por telefone?

 

   - Pensa que moro num internato de freiras para moças onde tenho que estar antes das nove da noite. Que vim do interior sob a responsabilidade do General de quem meu pai foi ordenança. Inventei umas mentirinhas. Dei o telefone do atelier, com o consentimento de Madame Picq a quem contei a história, ela achou uma graça, quis colaborar. Lindinho liga sempre na hora do almoço, pensa que é uma freira francesa quem atende e diz que é meu tio. Um divertimento. Me conhece por Beatriz, me chama de Bia. Bia pra cá, Bia pra lá e tome beliscão.

 

   - Combine o seguinte corn Madame Picq: quando o Embaixador telefonar, ela deve dizer que você não quer mais vê-lo, que ele deixe de procurá-la. Ao mesmo tempo Madame deve dar a entender que ali não funciona pensionato nenhum, e, sim, coisa muito diferente, deixar Lindinho - Lindinho, já pensou? - baratinado...

   - Quer que ele imagine o quê?

   - Nada de inteiramente preciso. Basta criar um clima de dúvida, de algo pouco sério...

   - Para ele ficar com raiva de meu ex-patrão...

   - Exato. E não votar nele...

   - Coitado de Lindinho. Bolina igual a ele não existe. Quando menos a gente pensa a mão está se metendo no decote do vestido ou por baixo da saia. Quando moço, deve ter sido um trem-de-risco...

   - Até hoje a fama de Lindinho perdura no Japão e na Escandinávia.

   - E simpático, sabe? Adora contar uma anedota suja...

   - Eu te coloquei num conto, lembras, Rosa? Acho que vou te botar num romance. Antes eu sabia apenas que eras a mais suave e  doce das criaturas, agora sei que, além de suave e doce, és valente e intrépida, destemida.

   - Foi Antônio quem me fez assim. Nasci dele.

   Afrânio Portela recordou o verso: rosa de cobre, rosa de mel, rosa menina. - Beijou-lhe a mão: - Rosa de Bruno.

 

DESACORDOS IDIOMATICOS

 

   - Você leu isso? - R. Figueiredo Júnior estende o exemplar do Correio do Rio ao Presidente: - Passei por aqui para lhe mostrar. Aponta com o dedo a coluna Em Defesa da Língua Portuguesa, consultório gramatical onde o General Waldomiro Moreira ensinava aos povos ignaros como escrever em português castiço, em depurado vernáculo.

   - Não, não li. Por ora não tenho obrigação de fazê-lo pois o articulista ainda não pertence à Academia, se bem ele pense o contrário. Falta-me um mês para acrescentar essa provação aos demais encargos da Presidência.

   - Você deve ler exatamente porque o autor ainda não é Acadêmico...

Hermano do Carmo recolhe o jornal:

   - Com esse calor, seu Figueiredo... - inicia a leitura, levanta os olhos: - Esse candidato que vocês arranjaram... Para fazer frente ao que Deus levou em boa hora, vá lá... Era sua única serventia... retorna ao artigo: - Que pateta!

 

   Raramente o Presidente, cuja proverbial polidez se acentuara com o exercício do cargo que exige sagacidade e tato, usava expressões desagradáveis ao se referir a um confrade, Acadêmico ou simples mortal. Sentiu-se, porém, estomagado com a desfaçatez do candidato que não esperava sequer a eleição para ditar de público diretrizes referentes à atuação da Academia. Discordava abertamente da atitude de ponderável número de membros da Casa na explosiva questão da reforma ortográfica, em estudos na Comissão Mista formada com representantes da Academia Brasileira e da Academia de Ciências de Lisboa. Não se obtivera ainda unanimidade de pontos de vista entre os delegados brasileiros, o que estava dificultando a marcha dos trabalhos.

 

   - Esse homem é extraordinário. Antes não havia pessoa mais comedida, atenciosa, direi mesmo chaleira. Deu uma guinada de cento e oitenta graus, a candidatura única subiu-lhe à cabeça. Não perde o chá, fala muito e fala alto, dá ordens, critica. Outro dia, me pegou pelo braço e me impingiu uma lição sobre pintura. Acha que nós penduramos os quadros seguindo um critério incorreto. Não valorizamos artistas que ele considera de primeira ordem, enquanto damos destaque a outros que são, segundo ele, reles borra-botas. Você precisava ver a insolência.

   Leu as últimas linhas, devolveu a gazeta:

   - Ele devia se candidatar à Academia de Lisboa e não à Brasileira.

 

   Alguns dos delegados designados para fazer parte da Comissão Mista, entre os quais R. Figueiredo Júnior, defendiam a necessidade de se considerar a repercussão sobre a língua escrita no Brasil das características originais do português aqui falado pelo povo. Opunham-se à tendência de certos confrades portugueses, insistentes na imposição de pontos de vista rígidos, corretos para o português falado e escrito em Portugal, inaceitáveis para os brasileiros. O dramaturgo falava em colonialismo cultural para definir a posição dos filólogos que exigiam idênticas e rígidas regras de uma gramática unilateral para a língua escrita em dois países tão diferentes. Em verdade, ambas as delegações se encontravam divididas em torno dessa questão nevrálgica e melindrosa.

 

   Ora, em sua coluna semanal, de opiniões e conselhos idiomáticos, o General Moreira apoiava sem restrições a posição lusitana e ditava o comportamento que a delegação brasileira devia adotar ou seja, preservar a ferro e fogo a pureza da língua de Camões tal qual nos foi legada pelos clássicos. Respondendo a consulta de hipotético leitor, criticava aqueles cujas concessões aos biltres que abastardam o Kuoma conduziam a Academia ao abandono de seu mais sagrado dever: conservar a última flor do Lado na integridade de suas regras "imutáveis. Terminava anunciando para breve sua participação direta nos debates, lutando para impedir equívocos tão daninhos. Sôfrego, nomeara-se Ministro da Guerra antes da hora, ocupava a vaga acadêmica antes da eleição.

   - Estamos bem arranjados. Como seja não bastasse o Alcântara, com sua mania de purismo, a dividir a delegação...

   - Vosso General exagera. Devia esperar pelo menos ser eleito para nos passar um sabão público...

   - Por que diabo aquele tira imundo esperou que as inscrições se encerrassem para morrer? E agora?

   - Vocês arranjaram essa batata quente, que a descasquem, se puderem. -Acrescentou, como quem fornece uma informação sem com ela se comprometer: - O Evandro parece que tem umas idéias a respeito. Por que você não conversa com ele?

 

A COMISSÃO SE DISSOLVE

 

R. Figueiredo Júnior foi além do conselho do Presidente. Não procurou apenas o velho Evandro Nunes dos Santos. Convocou para um drinque em seu apartamento os componentes da comissão que se deslocara, havia cerca de três meses, até o Grajaú com o objetivo de convidar o General Waldomiro Moreira, autor, entre outros livros, de Prolegômenos Idiomáticos, a apresentar-se candidato à Academia Brasileira de Letras.

 

   Servidas as bebidas e os tira-gostos, exibiu aos demais o afrontoso artigo. Que achavam daquilo?

 

   Evandro o lera e mandara fazer cópias mimeografadas para distribuí-las entre aqueles acadêmicos que defendiam uma posição nacionalista na questão do idioma. Figueiredo iria encontrar um exemplar em sua gaveta. Em seguida, deu conta da resolução tomada por ele e Afrânio Portela, relativa à candidatura do General. Somos uns canalhas!, concluiu com seu jeito arrebatado.

 

   - Já que estávamos em pé de guerra - complementou o romancista -, montamos uma guerrilha, a exemplo dos maquis, na França, íamos comunicar a vocês mas já começamos a trabalhar. Com boa receptividade e muita discrição.

   - Não soube de nada - disse Rodrigo.

   - Por que não me falaram logo? - Queixou-se Figueiredo.

   - Apesar da discrição, farejei algo no ar. - Revelou Henrique Andrade: - O Paiva anda baratinado. Nossa divina Maria João levou mais de um mês tentando convencê-lo a votar no General, de repente exige que ele vote em branco. Percebi o dedo de mestre Afrânio nesse enredo.

 

   Discutiram a situação. Se bem concordassem em considerar o General um trapalhão arrogante e chato, disposto a transformar a Academia num quartel e os acadêmicos em disciplinados milicos, não houve adesão geral à guerrilha e a comissão dos cinco se dissolveu.

 

   Henrique Andrade desculpou-se. Em outras circunstâncias, com muito gosto se uniria a eles para impedir que tamanho subliterato ocupasse uma cadeira na Academia. Mas o país vivia uma tal contingência política, com a ditadura do Estado Novo, que, a seu ver, os democratas estavam obrigados a se aliar com todos aqueles capazes de concorrer de uma ou de outra maneira para modificar a situação. Ora, o General, se bem colocado na reserva, sem comando, ainda assim possuía ressonância junto à oficialidade. Durante a campanha acadêmica haviam conversado, trocado opiniões, assentado planos. Não considerando seu voto decisivo, por isso mesmo Henrique não o modificava. Se o General perdesse a eleição ele não se incomodaria. Mas não desejava concorrer para que tal acontecesse pois mantinha compromissos políticos com o candidato. Fosse qual fosse o resultado, queria continuar em boas relações com o General. Aliás, na data da eleição, estaria na Bahia. Antes de viajar, entregaria a carta com os votos ao próprio candidato.

 

   Rodrigo pediu igualmente que o dispensassem. Gostar, bem que ele gostaria de tomar parte na guerrilha, a batalha fora uma experiência empolgante, que ele narraria, futuramente, em novo volume de suas Memórias Alheias. Mas tinha também motivos para manter-se à margem das escaramuças. Não eram cívicos, como os de Henrique, mas eram igualmente respeitáveis.

   - Razões domésticas... - riu malicioso e compreensivo mestre Afrânio: - Está bem, meu fidalgo, ficas dispensado.

   Quanto a R. Figueiredo Júnior, não desejava outra coisa além de assumir um posto avançado de combate. Entusiasmou-se ao tomar conhecimento do que já havia sido feito.

 

VERSÃO DE AFRÂNIO PORTELA SOBRE MANOBRAS INDIGNAS DO CANDIDATO

 

Ao chegar à Academia propositadamente cedo, Afrânio Portela encontra o Decano Francelino Almeida, ao lado do tesoureiro, assinando o livro de presença, recebendo o pequeno envelope com o jeton. Juntos, dirigem-se para os armários em cujas gavetas privativas é guardada a correspondência dos Quarenta Imortais.

   - Estou achando você um pouco abatido, Francelino. Algum achaque? Na nossa idade é preciso ter cuidado com a saúde.

   - Minha saúde vai bem, não sinto nada.

   - Então? - Mestre Afrânio persiste, cheio de interesse pelo bem-estar do colega e amigo.

   - Coisas que me preocupam.

Recolhem a correspondência, voltam à Secretaria, o romancista conduz o diplomata para o vão de uma janela:

   - Que coisas?

   - Esse General, por exemplo. Mudou muito, não lhe parece? Recebida a deixa esperada, mestre Afrânio foi direto ao assunto:)

   - Para meu gosto, mudou demais. Devo lhe dizer, Francelino,! que sofri uma grande decepção com esse senhor. - Falava em voz) baixa: - Como talvez você tenha percebido, a princípio me interessei) pela candidatura dele, cheguei a falar com dois ou três amigos...    

   - Disseram-me.

   - Depois, porém, tomando conhecimento de certos fatos... como direi... degradantes, mudei inteiramente de posição. Aqui entre nós, que não se saiba, que ele sobretudo não saiba: decidi votar m. em branco.

   O Decano demonstra expressivo interesse:

   - Fatos degradantes? De que espécie?

  

   - Manobras indignas. Vou lhe contar, em confiança. Tenho uma velha amiga, dos tempos de boêmia, uma francesa que possui acolhedora pensão de mulheres, garotas bem escolhidas, nem parecem ser o que são. Outro dia eu a encontrei e ela me contou uma história incrível. Imagine você que o General Moreira, habitue da casa, pagou a uma das raparigas, com quem costuma regalar-se, para arranjar votos para ele, fazendo-se passar por sua secretária junto a alguns acadêmicos...

   Súbita palidez do Decano:

   - É inacreditável! Que canalha!

  

   - Madame Picq, a dona da pensão, divertiu-se à beca atendendo os telefonemas de alguns colegas nossos, à procura da rapariga. A pensão alegre virou recatado pensionato de moças, dirigido por freiras, e madame ao telefone era a Irmã Picq, monja francesa. Uma falta de respeito total.

   -Pensão de mulheres... Hum! Hum! O General, habitue, hein? Que espécie de patife! O Paiva me disse que ele é pobre, no entanto me mandou uma cesta, caríssima, da Mercearia Ramos & Ramos.

   - Para mim também. Para o Evandro, o Figueiredo...

   - E onde arranja o dinheiro para tantos gastos? Para empregar vagabundas, fazer compras na Ramos & Ramos, com o preço que eles cobram?

 

   Mestre Afrânio baixou ainda mais a voz, falando quase ao ouvido do diplomata, cuja lealdade ao Governo, qualquer que ele fosse, era notória; Francelino Almeida tinha horror à oposição:

   - Então você não sabe que o General é homem de confiança do Armando Sales, do pessoal que tentou o golpe em 38, junto com os integralistas? Não participou da baderna por não estar no Rio.

   - Sabia que tinha sido armandista...

   - Continua, é um dos mais ativos na conspiração contra o regímen. Quer ser eleito Acadêmico exatamente para ter uma cobertura que lhe garanta a impunidade. Por detrás, está o pessoal do Armando Sales, os Mesquitas de São Paulo. São eles que entram com o dinheiro para as despesas da candidatura. Os biscoitos que você comeu, meu velho, eram subversivos.

   - Mas, sendo assim, botar esse homem na Academia é um perigo!

  

   - Candidato único, dispensou a rapariga, parou com as cestas. A meu ver, o pior de tudo é a tentativa de utilizar a Academia para fins políticos. Você sabe que não sou simpático ao Governo mas aqui dentro não faço política, penso que a Academia deve ser preservada, estar acima de tais contingências e disputas. Por tudo isso, mudei meu voto.

 

   - Eu nunca pensei em votar nele... - afirmou o Decano com a deslavada naturalidade de traquejado diplomata: - Estava comprometido com o Sampaio Pereira. Você tem inteira razão, votar nesse homem é uma insensatez. Ainda bem que você me alertou.

   Ainda tinha algo que desejava esclarecer:

   - E a Maria João? Por que andou pedindo por ele?

   - Isso é diferente. Maria João é prima da esposa do General, interessou-se a rogo da parenta.

   - Pois eu lhe agradeço, Portela. Muito obrigado.

 

   - Sobretudo, não deixe que o General perceba sua posição. É um tipo perigoso, capaz até de uma violência. Faça como eu, que o trato muito bem, deixo que pense que tem meu voto garantido. Na hora de botar o papelzinho na urna... Depois dos votos incinerados, como adivinhar quem votou em branco?

 

A ALIANÇA ESPÚRIA

 

Lisandro Leite levou emburrado exatamente quinze dias, espaço de tempo a mediar entre as últimas três sessões da Academia realizadas após o enterro do Coronel Sampaio Pereira. Naquela tarde, ao chegar em casa, nem parecia o mesmo, o acabrunhamento desaparecera. Dona Mariúcia conhecia as variações de humor do marido:

   - Que foi que aconteceu? Já não estás de tromba amarrada.

   - Uma coisa incrível, se me contassem, eu não acreditaria. Mas tive provas, concretas. Os mesmos caras que levantaram a candidatura do General, a quadrilha

Portela, estão tratando de enterrá-la. Fiquei sabendo coisas de espantar. Desta vez, o mais exaltado é o Evandro. Só trata o General de Linha Maginot, apelido posto pelo Agnaldo.

   Narrou-lhe detalhes, frases com duplo sentido, confidencias arrancadas habilmente, palavras soltas no ar, cochiches percebidos.

   - E tu, que vais fazer? Apoiar o General?

   O rosto gordo do jurista abriu-se em largo sorriso:

   - Eu? Nem pensar. you me aliar a eles... A cadeira no Supremo ainda pode vir às nossas mãos em decorrência desta eleição. Se o General não for eleito, se não alcançar o quorum...

   Explica, analisando as circunstâncias: se o General não for eleito, ele, Lisandro, se fortalecerá duplamente, ficando em posição privile,  giada para reivindicar a vaga a ser aberta com a aposentadoria do p Ministro Paiva.

 

   Por um lado, os correligionários do falecido Coronel, poderosos , no Governo, ficarão satisfeitos se a Academia recusar o General oposicionista, inimigo do Estado Novo. Não irão atribuir a Evandro e a Portela o insucesso da candidatura e, sim, a ele, que vai comunicar imediatamente a todos aqueles com quem manteve contato na batalha por Sampaio Pereira, começando pelo Ministro da Guerra, Condestável do regímen, seu ingente trabalho para impedir a eleição do pertinaz inimigo das instituições. Tomou a si essa tarefa para honrar a memória de seu saudoso amigo, desaparecido quando mais a Pátria precisava dele. Por outro lado, declarada novamente vaga a cadeira, patrocinaria a candidatura de Raul Lameira, Reitor da Universidade Nacional, amigo do peito do Chefe do Governo. Médico, não aspirava a posto ia justiça. Lameira pode ser um trunfo decisivo na hora da lista tríplice e da escolha do novo Ministro. Toma lá o fardão da Academia, dá cá a toga do Supremo.

 

   Dona Mariúcia enfiou os dedos elegantes e bem tratados na mal cuidada juba de leão do esposo:

   - Não te disse para não te apoquentares, meu Ministro?

   Assim aconteceu a aliança espúria entre as forças de Evandro e as de Lisandro Leite, a guerrilha recebeu inesperado contingente de voluntários. Aliança informal mas atuante, provavelmente decisiva.

 

LÊS MAQUISARDS

 

Em conseqüência da guerra, intelectuais franceses de diversas tendências e categorias buscaram asilo no Brasil. Escritores, editores, jornalistas, cantores, pintores, gente de teatro. O mais eminente deles, Georges Bernanos, estabeleceu residência em Minas Gerais, os demais se repartiram entre Rio e São Paulo. Juntaram-se aos prestigiosos professores chegados em 1937 para reger cátedras nas recém-fundadas Universidades, entre os quais se destacava a figura do escritor e cientista Roger Bastide.

 

  Com o apoio de intelectuais brasileiros, organizaram o trabalho de ajuda à Resistência Francesa, às Forces Françaises Libres, de De Gaulle, e aos Maquisards. As condições reinantes no país eram adversas à atividade política dos franceses livres pois a ditadura do Estado Novo desenvolvia crescente colaboração com o Eixo nazifascista; anunciava-se à boca pequena próxima adesão ao Pacto AntiKomintern, concluído entre o Reich, a Itália e o Japão, com o apoio da Espanha de Franco; o chefe do Governo conferenciava, à revelia do Ministro das Relações Exteriores, com o Embaixador de Hitler, acertando medidas capazes de ampliar os laços ideológicos e econômicos a ligar as duas nações e de levá-las por fim a um tratado de aliança. Apesar disso, explorando as contradições existentes na composição do Governo e a extrema simpatia dos brasileiros pela França e por sua cultura, os exilados conseguiram pôr de pé atuante movimento que, não sendo inteiramente clandestino, tampouco era público. O Governo os mantinha sob vigilância da polícia mas tolerava sua) atividade. Figuras de grande destaque na vida intelectual, militar e política - o citado Ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, o General Leitão de Carvalho, e, segundo insistentes rumores, a própria filha do Ditador, Alzira Vargas-opunham-se à aliança com o Eixo e participaram do esforço do grupo de franceses livres, pouco numeroso porém dinâmico, que, longe da Pátria ocupada, combatia por sua libertação.

 

   Entre os intelectuais brasileiros mais ligados aos resistentes à franceses estavam os acadêmicos Evandro Nunes dos Santos, Alceu de Amoroso Lima, Afrânio Portela, R. Figueiredo Júnior, os poetas Murilo Mendes e Augusto Frederico Schmidt, o ator Procópio Ferreira e a atriz Maria João, os escritores Álvaro Moreyra, Sérgio Milliet, Josué Montello, Aníbal Machado e o diretor do jornal literário Dom Casmurro, Brício de Abreu, que vivera em Paris mais de dez anos.

 

   Todos esses e vários outros antifascistas se encontraram na casa de Evandro Nunes dos Santos, por ocasião da vinda ao Rio de mestre Roger Bastide para realizar conferências e estabelecer contatos. Estreita amizade, nascida de mútua admiração, ligava os dois ensaístas. Evandro reunira aqueles amigos da França em torno de Bastide para juntos estudarem maneiras efetivas de ajuda aos organismos gaullistas e aos maquis, à Resistência. Jovem dona da casa, Isabel recebia ao lado do irmão e do avô, vibrando de contentamento, não fosse ela afilhada de Bruno.

 

   Entre as decisões tomadas, uma adquiria especial interesse, pelo resultado financeiro garantido e sobretudo pela repercussão: Maria João se propôs a remontar, num espetáculo único, em benefício dos franceses livres, numa segunda-feira - dia em que as companhias de teatro descansam - a peça de Antônio Bruno, Mary John, com a qual estreara em 1922 na Companhia Leopoldo Froes. O pretexto seria a comemoração de seus vinte anos de palco. Entusiasmo geral: sob o patrocínio do Dom Casmurro, Álvaro Moreyra aceitou dirigir a nova montagem e Santa Rosa se encarregou dos cenários. R. Figueiredo Júnior escreveria a apresentação do programa, Procópio viveria o falso astro de Hollywood, personagem criado por Froes na montagem anterior, Afrânio Portela obteria o Teatro Fênix com os Guinle. Todos, a começar pelas senhoras, se encarregariam de passar os ingressos, a preço alto.

 

   Festa alegre, mesa bem servida, bebida de qualidade, conversa brilhante, o entusiasmo adolescente e libertário de Pedro e Isabel. Os convidados, após as decisões, se espalharam pelo jardim para gozar a brisa do mar na noite escaldante de dezembro. Mestre Afrânio, dona Rosarinho e Maria João sentaram-se num dos bancos rústicos, sob uma jaqueira.

    - Que idéia mais linda, a tua, Maria João... - dona Rosarinho toma a mão da atriz, com afeto.

 

   -Aprendi com Bruno muita coisa, uma delas foi amar a França. E ademais, sabe, sempre tive desejo de remontar a peça que ele escreveu para mim, a minha peça. Talvez hoje pareça ingênua mas os versos continuam magníficos, não é? O único problema é que fiz Mary John com menos de vinte anos, ando na casa dos trinta e oito...

   - Não espalhe. Ninguém te daria mais de trinta... - galanteou mestre Afrânio e não faltava à verdade.

   - Pensei em convidar uma jovem atriz para o papel. Mas, confesso que morro de desejo de vivê-lo novamente. É como voltar àqueles dias, Mary John sou eu aos dezenove anos. Será que ainda dá?

   - Tranqüilamente - respondeu dona Rosarinho: - Eu não te enganaria, não te deixaria cair no ridículo. Simples questão de maquiagem. - Eram amigas desde o tempo distante da outra montagem de. Mary John.

   Mestre Afrânio mudou de assunto:

   - E os nossos votantes? Como vai a reviravolta, lês tournants de l'histoire?

   O riso maroto de Maria João ressoou entre as árvores:

   - Chanchada mais divertida... Dizer que eu tinha conseguido quatro votos para esse tal de General, sem contar com o de Paivinha, e depois tive de desmanchar tudo, fazer meia-volta volver. Se vissem as caras dos queridos...

   - Como você explicou seu interesse pelo General? - quis saber dona Rosarinho.

   - Muito simples: interesse de parenta, declarei ser prima carnal e amiga íntima da mulher dele.

   - E agora, para pedir que votem em branco ou se abstenham?

   - Inventei uma história medonha que deixa os queridos na maior revolta. Indignada, quase em lágrimas, revelo o intolerável comportamento do General. Desrespeitando a esposa, o lar, a amizade, tentou me agarrar em casa dele, quis me arrastar para o leito do casal. Cena horrorosa, digna do melhor dramalhão italiano: o General tentando me estuprar, eu resistindo, heróica. Libertando-me com dificuldade, a blusa rasgada, o seio magoado, fugi enquanto ele me insultava com os piores nomes.

O efeito sobre os queridos é extraordinário. Eles sabem que jamais, em toda minha vida, fui para a cama com marido de amiga minha, fosse qual fosse.

 

   Afrânio Portela desvia os olhos para o céu de estrelas: quem mais sabe é ele. Intransigente Maria João, nos poucos erigidos preconceitos - os meus princípios, dizia ela. Quando, anos depois de Bruno, Afrânio se candidatara, ela, beijando-o no rosto, encerrou a conversa: 

   - Não pode ser, meu mestre adorado. Sabe o bem que lhe quero, mas sou amiga de dona Rosarinho. Impossível, não insista para não me entristecer.

   A brisa vem do mar, demora-se a brincar com os cabelos da grande atriz, que conclui a narrativa:

   - Os queridos ficam revoltados. Quem pode votar em tamanho monstro? Pobre General... Por que virou ruim assim, tão de repente?

   - Não é ruim, é General.

   R. Figueiredo Júnior se aproxima, o olho cobiçoso:

   - Maria, eu estava conversando com Alvinho - refere-se a Álvaro Moreyra -, tivemos uma idéia para o espetáculo, um achado.

   Levanta-se Maria João, oferece o braço ao dramaturgo que traduzira Ibsen exclusivamente para que ela pudesse viver Hedda Gabler:

  - Vem e me conta...

 

   O olhar de Afrânio Portela acompanha os vultos que desaparecem na sombra. Maria João não deve ser amiga da mulher de Figueiredo. Personagem vital, mastigando homens e sucessos, acumulando fortuna e glória, ex-Princesa da Micareme, nascida num subúrbio pobre, grande atriz. Os amores de Bruno, suas mulheres, todas marcadas por ele. A de Antônio, A de amor, marca indelével no coração.

 

   Mestre Portela não contara a novidade a Rosarinho pois ainda não se decidira a enfrentar as resmas de papel em branco. Mas a tentação do romance cresce na noite conspirativa em que os maquis assentaram seus bivaques no alto de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro.

 

CLOCLÔ E SETE PINOTES

 

Leviana, ai, leviana! Todavia possui bo coração e é justiceira, reflete o General Waldomiro Moreira ao ouvir a proposta de Cecília. A moça desviara a atenção do rádio, onde Stela Maris canta blues, para recomendar:

   - Pai, quando o senhor mandar lá na Academia, arranje logo um prêmio para Claudionor. Cloclô merece.

   - Dizes bem, méritos não lhe faltam. Amigo devotado, com senso de hierarquia, nem parece paisano.

 

   Realmente Claudionor Sabença mais parece ordenança do General, às suas ordens. Acompanha-lhe os passos, escuta e aplaude conferências dos acadêmicos, ouve o relatório das visitas protocolares, conta e reconta votos, contagem felizmente tornada inútil devido ao oportuno óbito do Coronel.

 

   Aliás, muito em particular, o autor da Gramática Expositiva da Língua Portuguesa (I, II e In Graus) reivindica a responsabilidade pelo passamento do temível adversário do pai de Cecília. Simpatizante do espiritismo, de quando em quando freqüenta um terreiro de umbanda, onde reina, gorda e absoluta, Mãe Graziela do Bunokô, que recebe, entre outras menos terríveis, a poderosa entidade reverenciada sob o nome de Exu Sete Pinotes, um Exu capaz de malefícios indescritíveis. Quando ele intervém, a pedido de Mãe Graziela, é tiro e queda. Para assuntos de dinheiro e amor, de cama a fazer e desfazer, de inveja e mau-olhado, a sacerdotisa recorre a outros encantados. Ao caboclo Curiboca, ótimo para curar enfermos, à Yemanjá Maré Alta, especialista em enredos de amantes, e ao preto velho Ritacínio, cujo forte é o jogo do bicho, a loteria e tudo mais que se refira a dinheiro. Mãe Graziela reserva Sete Pinotes para apelos desesperados, casos de difícil solução, exigindo tratamento especial, feitiço forte.

   Sabença encomendou e pagou trabalho de muito fundamento e preço salgado para Sete Pinotes fechar os caminhos da Academia ao Coronel Sampaio Pereira. A intenção do suplicante era apenas eleitoral, o sangue dos galos e a cera das velas deviam apenas trancar as portas da Casa de Machado de Assis ao oponente do General Moreira. Mas Sete Pinotes, como disse Mãe Graziela e Sabença constatou, tinha a mão pesada, não agia com meias medidas. Medida inteira, fulminou o Coronel.

 

   Católico praticante, o General Moreira não acredita nessas abusões. Mas dona Conceição e a desquitada Cecília não tiveram um momento de dúvida e enviaram um adjutório para a compra de cachaça e de charutos destinados ao benemérito Exu. Abusão ou coisa-feita, sabença tornou-se merecedor de gratidão.

   - Na distribuição de prêmios do ano que vem tratarei de laurear o Sabença. Ele poderá receber o Prêmio José Veríssimo com a Coletânea que publicou agora. - O General está a par de tudo quanto se refere aos prêmios concedidos pela Academia.

   - Não dá para ser ainda este ano, Pai? Era um bom presente de Natal para Cloclô...

   - Prêmio da Academia não é presente de Natal, sua tonta. Mas ele pode ficar tranqüilo, cuidarei desse assunto. E não ponha apelidos ridículos num filólogo que, apesar de moço, já conquistou certo renome.

   Cecília comenta, satisfeita:

   - Entrando para a Academia o senhor vai ser um bocado importante, não é, Pai? Lá só tem bambas, os maiorais.

 

   Aproveitando o raro momento de interesse da filha por tais assuntos, o General se entrega a confidencias: a Academia necessita de uma séria reforma nos seus quadros, obrigatoriamente lenta pois o posto é vitalício. Nas eleições realizadas nos últimos anos, houvera evidente abandono de alguns princípios que norteavam a escolha dos acadêmicos desde a fundação da Casa. Antes, a prioridade era dada aos expoentes das categorias superiores da sociedade. Hoje, a preferência vai para os escritores, mesmo quando não possuem outra qualificação além da literária. A tal ponto que a Ilustre Companhia ficara sem representante das Forças Armadas, um absurdo! Não que ele fosse contra a entrada de escritores, mas é preciso saber escolher. Alguns dos que lá se encontram, Deus me livre! Ignoram as regras mais elementares da gramática, assassinam a língua portuguesa. A alguns falta até o decoro exigido pelo fardão da Imortalidade. O exemplo da seleção perfeita - dizia sem vaidade - era ele próprio: escritor e Oficial Superior do Exército, General. Encara a filha que divide a atenção entre o discurso do pai e a música do rádio, voz divina a de Stela Maris, ordena:

   - Não vá sair por aí repetindo o que lhe disse. A ninguém, ouviu? Muito menos a algum Acadêmico.

   Não fosse ela contar ao Rodrigo, quando... Leviana, ai, leviana! Apesar de tudo, boa filha: coração de ouro e justiceira.

 

A lNSOSSA

 

Coração de ouro e justiceira, talvez. Generosa para com aqueles a quem se entrega, na eterna expectativa de encontrar quem dela não se farte.

 

   Por que há de ser sempre assim? Quando a conhecem, acendem-se em desejo, cortejam-na, buscam conquistá-la, põem o mundo a seus pés. A princípio tudo marcha bem, Cecília é graciosa, provocante e se entrega sem reservas, curso completo.

 

   Por que o interesse não se prolonga, em pouco tempo se desfaz? Um deles, bonito e estúpido, lhe atirara em rosto uma palavra cruel: vulgar, você é vulgar, não se dá conta? Outro, menos bonito e mais grosseiro, referindo-se à hora decisiva, usou insultuosa imagem: insossa, você é insossa como uma viçosa folha de alface sem tempero. A princípio, chorava, depois passou apenas a lançar mão dos reservas. Sim, porque sem homem não pode viver. A quem saíra? - Dona Conceição jamais obteve resposta para a pergunta.

 

  Primeiro e único na lista de espera - o cirurgião-dentista, boapinta, parecido com José Mojica, caíra fora ao surpreendê-la com Rodrigo -, Claudionor Sabença não tardará a ver recompensada a longa e insistente diligência. Cecília se humaniza, já se apoia em seu braço, de relance o observa e baixa os olhos ao ser surpreendida, ouve o poema a suspirar: Para mim? Mas, que beleza! Não mereço tanto. A hora do triunfo se aproxima.

 

  Com Rodrigo, Cecília atingira o cume: fidalgo, rico, o nome nas gazetas,

o retrato nas revistas, entre elogios, requintado até demais. Nunca lhe dirá: vulgar ou insossa, é a encarnação da cortesia. Contudo, ela sente que o interesse se acabou, os encontros se distanciam; de começo diários, em seguida dia sim, dia não, depois de três em três, agora apenas uma vez por semana e olhe lá. No último encontro, Rodrigo informou que em breve sairá para Petrópolis onde passará o Natal e o Ano Novo, regressando ao Rio na segunda quinzena de janeiro para votar no General.

 

   Cecília se oferecera para acompanhá-lo: poderia ficar numa pensão mas ele, sempre com a maior delicadeza, recusou, explicando que a breve separação fará o reencontro mais ansiosamente desejado. Mas Cecília sabe que não haverá reencontro.

 

   De qualquer maneira, ele não partirá imediatamente. Pretende assistir ao espetáculo que será apresentado às vésperas do Natal por Maria João, a nova montagem da comédia de Antônio Bruno. Na próxima semana, pois antes não tem um minuto livre, Rodrigo trará entradas para ela, o General e a esposa. Devendo fazer o elogio do poeta, no discurso de posse, o pai de Cecília não pode deixar de assistir à peça, toda ela em versos. Rei da boa educação, solicita licença para oferecer os ingressos à família. Na próxima semana, confirma. No derradeiro encontro, adivinha Cecília. Tão fino, elegante e gentil, tão bom de pernada, ai, que pena!

 

  Foi nessa ocasião que pela primeira vez Cecília tratou Claudionor Sabença por Cloclô, Cloclô respondeu em apaixonado impulso: Ciça, minha doce Ciça!

 

A INDISPENSABIL1DADE DA VISITA

A visita é absolutamente indispensável. Nenhum candidato pode se arvorar o direito de não visitar esse ou aquele Acadêmico, a qualquer pretexto que seja. O Acadêmico, sim, é senhor de dispensar ou mesmo de recusar a visita, mas ao candidato cabe apenas solicitar dia e hora para comunicar sua pretensão e pedinchar apoio.

 

   Na biblioteca, refestelado numa poltrona, a cigarreira entre os dedos, o velho Francelino Almeida expõe sua tese a três colegas que tratavam do assunto à sua chegada. Decano, Imortal há quarenta e três anos, sobrevivente do quadro de fundadores, autoridade indiscutível em tudo quanto se relaciona com estatuto, regimento e tradições da Academia, é ouvido com atenção e respeito:

 

   - Bem sei que a visita não consta do regimento, não se trata de imposição escrita. Todavia é mais obrigatória que qualquer item estatutário ou regimental. É condição sine qua non para que o candidato seja eleito. Não adianta falar em inimizade, tampouco em desapreço. Aqui, neste silogeu, não existem inimigos nem desafetos e todos são dignos de apreço.

  

  Sobre o assunto, podia perorar durante horas pois o tinha na conta de fundamental para que se mantivessem incólumes a hierarquia e a autoridade da Ilustre Companhia:

 

   - O fato de um Acadêmico demonstrar de público simpatia por determinado candidato, prometendo-lhe o voto, não desobriga os demais pretendentes. Ao contrário, a visita se torna ainda mais imprescindível.

 

   Sopra com prazer a fumaça do cigarro - apenas cinco durante o dia para evitar bronquite e catarro -, prossegue:

  - A Academia é uma única, sem igual; deve ser cortejada, adulada. E como a Academia é formada pelos acadêmicos, logicamente devemos ser cortejados, adulados. Que seria de nós, sem as visitas?

   Os colegas acolhem a pergunta com exclamações que ratificam as afirmativas do venerável diplomata. Conclui, severo:

 

   - O General comete grave erro, inescusável, declarando que não visitará o Lisandro. Por que assume essa atitude arrogante? Por haver o Lisandro trabalhado pela candidatura do Sampaio Pereira? Um direito que lhe cabia e ele o exerceu. O General é que não tem direito de se abespinhar e de romper com uma das tradições mais lídimas da Academia. Age muito mal.

   A exposição do Decano merece aprovação unânime dos colegas que a escutam. Um deles completa:

   -Além de arbitrário, Linha Maginot é boquirroto, não sei o que é pior.

 

   Podia acrescentar que, além de arbitrário e boquirroto, o General era um inocente: confidenciara a dois ou três Imortais sua decisão de não visitar o Desembargador Lisandro Leite que o tratara com animosidade no decorrer da campanha e que prosseguia no combate à sua candidatura, tentando arrebatar acadêmicos - ex-eleitores do Sampaio Pereira - para o voto em branco. Sua dignidade de General obrigava-o a tomar aquela decisão afrontosa. Candidato único, pode se dar a certos luxos, tem privilégios.

 

   Confidencia feita a Acadêmico em época de eleição é segredo em saco sem fundo, circula levado pelo vento - pelo ar dos ventiladores nas tardes caniculares do verão carioca. Sobretudo quando revela heresia e imposição. Quem inventou que candidato único goza de luxos e privilégios?

 

   Lisandro fora a única exceção aberta pelo General na peregrinação das visitas. Gramara de trem para Minas, sacolejando os ossos, valera a pena: trouxe o voto do hemiplégico contista. Para São Paulo viajou de avião. Foi recebido com a maior cordialidade pelo poeta do Romanceiro dos Bandeirantes. Recordaram episódios da Revolução de 32, da qual o vate participara no Estado-Maior do Coronel Euclides de Figueiredo. Em lugar dos vinte minutos habituais, a visita prolongou-se pela tarde afora. Quanto ao voto, o lírico do Livro dos Salmos ficou de enviá-lo diretamente à Academia, conforme inveterado hábito. Viagem cara devido à passagem de avião, mas apesar da despesa o General retornara eufórico pois constatara que aquele sufrágio ilustre seria certamente seu, mesmo se, em lugar de candidato único, ainda disputasse a eleição com o canalha do Sampaio Pereira. O poeta Mário Bueno era companheiro de letras e armas.

 

O VISITANTE ANTERIOR

 

Mais forte do que o companheirismo das armas revelou-se o da poesia. Poucos dias antes do General, estivera em São Paulo o guerrilheiro Evandro Nunes dos Santos, dito El Pasionario por Afrânio Portela, com o fim exclusivo de abraçar Mário Bueno e com ele debater assuntos acadêmicos. Velhos amigos, de certa maneira aparentados por ser a esposa do poeta prima da falecida Anita. Nas raras vindas ao Rio, Bueno hospedava-se na mansão de Santa Teresa.

 

  A sucessão de Bruno levara Evandro duas vezes à casa tão paulista do descendente dos bandeirantes. A primeira, para lhe pedir que votasse no General. Tarefa fácil, Mário Bueno detestava Sampaio Pereira que, ainda Major, exercera a chefia das forças de segurança e informação do Exército em São Paulo, após a derrota da Revolução de 1932, e pintara o diabo com os vencidos, acusando-os de separatistas.

 

   - É um Capitão-do-mato, como podes pensar que eu poderia apoiá-lo? Não me conheces? Veio me visitar, eu o tratei bem e lhe prometi o voto como faço corn todos, sou um homem educado. Mas é claro que voto no teu General que, aliás, participou da epopéia constitucionalista.

 

   Foi mais difícil da segunda vez, quando veio pedir ao poeta que não votasse no General, votasse em branco. A epopéia constitucionalista revelou-se um obstáculo sério:

 

  - Pode ser um subliterato, prepotente e chato, acredito que seja. Mas é um bravo, acudiu ao apelo de São Paulo! Além de tudo, freqüento tão pouco a Academia, quase nunca vou ao Rio, a mim ele não vai chatear.

 

  Evandro contava com a objeção, tudo quanto se relacionava com o movimento de 32 tornara-se sagrado para o bardo deAvante, por São Paulo!, canto heróico, a única coisa realmente ruim em toda sua copiosa produção poética. Evandro, porém, tinha um trunfo forte:

 

   - Bem, pensei que teu maior desejo era ver José Feliciano na Academia... - Limpava o pincenê devagar, recolocava-o no nariz: - Quando te telefonei para comunicar a morte de Bruno, concordamos que o candidato perfeito para substituí-lo era o Feliciano e foste tu quem pronunciou o nome dele primeiro. Grande poeta, ótima pessoa e, além do mais, paulista, gente de tua raça.

 

   - É evidente que o Feliciano é o ideal, mas com essa história de militares...

   - Eu quis levantar a candidatura do Feliciano mas Afrânio achou que precisávamos de um General para enfrentar o Sampaio Pereira, que era Coronel. Tinha razão e, aqui para nós, te digo que, com General e tudo, não sei se o derrotaríamos. Mas o fascistão não agüentou os tropeços da campanha, levou a breca. Para que diabo nos serve, agora, um General? Já ouviste dizer que na Academia existem cadeiras cativas? Uma do Exército, outra da Marinha, outra da Aeronáutica? Mais dia menos dia, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros reivindicam as suas. Ouve, Mário: vamos impedir que esse chato seja eleito, teremos novamente a vaga de Bruno e será a vez do Feliciano.

   -E... há possibilidades?

   -Pelas minhas contas, está na dependência de teu voto.

 

   Mário Bueno estimava José Feliciano como se fosse seu irmão de sangue. Companheiros desde a juventude nas redações dos jornais e na noite da paulicéia desvairada, haviam dormido com as mesmas mulheres fáceis, namorado idênticas filhas de família, brincado loucos carnavais em salões decorados por Lasar Segall, juntos participaram da Semana de Arte Moderna e assinaram violentos manifestos contra a Academia Brasileira de Letras. Em 1932, José Feliciano estava em Campos do Jordão, num sanatório para tuberculosos, fazendo pneumotórax. Não vacilou um segundo, foram descobri-lo soldado voluntário na frente mineira. Trouxeram-no de volta, a pulso, para completar a cura.

   - Ganhaste, velho anarquista. Não votarei em branco porque o General foi um combatente de 32 mas me abstenho. O resultado é o mesmo, porém há uma diferença...

   - Bem sei.

   - Guardo meu voto para o José. Afinal, se ele não chegou a combater foi porque os médicos o arrancaram da trincheira. E que poeta, meu velho... - Mário Bueno possuía o raro dom de admirar:

   - O maior de São Paulo.

   - Um grande poeta, sim, mas o maior poeta de São Paulo és tu. Mário Bueno possuía o raro dom de admirar e também o dom bem menos raro, bastante comum nos meios literários, de admirar a si próprio:

   - Não, Evandro. Não sou o maior poeta de São Paulo: sou o maior poeta do Brasil.

 

ANTECEDENTES DO ESPETÁCULO

 

Na última segunda-feira antes do Natal, sob apreensiva e sôfrega expectativa, Maria João apresentou no palco do Teatro Fênix, em Recita de Gala, a comédia em versos de Antônio Bruno, Maryjohn, dezoito anos após a estréia. Apesar dos preços altíssimos cobrados pelos ingressos, não sobrou um único lugar vazio; havia gente de pé nos corredores laterais e sentada no chão do corredor central. Até o momento de subir o pano, pretendentes a entradas se acotovelavam junto à bilheteria onde pequeno cartaz informava: lotação esgotada.

 

     Compareceu todo o Rio de Janeiro, o que a cidade tinha de mais importante, desde o Ministro Aranha, cuja presença adquiria caráter de desafio à duplicidade da política externa do Estado Novo, até Stênio Barreto, o Nojento, a quem Maria João passara três camarotes, cobrando uma pequena fortuna.

 

   O espetáculo havia sido fartamente anunciado e promovido pelos jornais e estações de rádio. Recita comemorativa dos vinte anos de cena de Maria João - contados a partir das pequenas pontas nas revistas estreladas por Margarida Vilar-, seria o fecho de ouro do ano teatral, acontecimento ímpar na vida cultural da metrópole.

 

   Durante uns quantos dias, o noticiário se referiu ao fato da renda ser dedicada à causa da França Livre. O Dom Casmurro publicara com antecedência a apresentação escrita para o programa por R. Figueiredo Júnior e assim o fato se tornou público: Ao comemorar vinte gloriosos anos de teatro, Maria João decidiu homenagear a França eterna, hoje pisoteada pelas botas nazistas, dedicando sua festa aos combatentes que lutam contra o ocupante sanguinário e obscurantista de sua Pátria, fazendo reverter para os franceses livres a totalidade da renda apurada. Vale a pena ressaltar um fato: todos os que cooperaram para a realização do espetáculo, desde os proprietários do Teatro Fênix até aos maquinistas e carpinteiros, fizeram-no sem nada cobrar, em prova de amizade e admiração à primeira-dama de nosso teatro e em prova de irrestrita solidariedade à heróica luta do povo francês que é também a nossa luta. Nenhuma peça mais indicada para essa festa de Maria João e da França Combatente do que a comédia de Antônio Bruno, Mary John. Composta especialmente para a estréia de Maria João no teatro declamado, contracenando com Leopoldo

Froes, para o grande e inesquecível poeta que a escreveu, a  França, onde residiu e de cuja cultura se alimentou, era uma segunda pátria. Seu coração não tolerou vê-la humilhada, em cativeiro. Antônio Bruno foi uma das primeiras vítimas da queda de Paris.

 

   Não tendo sido o semanário suspenso ou proibido, os demais jornais e as estações de rádio aproveitaram a deixa e louvaram o gesto de Maria João, os adjetivos choveram, grandiloqüentes e carinhosos. Soube-se que o Diretor do DIP - contraditória personalidade autorizara pessoalmente a publicação do texto de Figueiredo e fizera vista grossa ao noticiário. Não conseguiu manter essa posição liberal por muito tempo. Logo vieram ordens superiores, partindo do mesmo gabinete, no Palácio da Guerra, antes ocupado pelo Coronel Sampaio Pereira, condenando o noticiário, qualificando-o de sedicioso. Em conseqüência, o DIP proibiu qualquer referência, na publicidade e nas notícias sobre o espetáculo, à França, ocupada ou eterna, a dos nazistas e a dos maquis. Proibida também a distribuição do programa.

 

   Mas o mal estava feito. No Rio, não se falava noutra coisa, a não ser em Mary John, e a procura de bilhetes quase se transforma em batalha campal. Ofereciam-se contos de réis por uma entrada e ainda mais por um exemplar do programa com o texto de R. Figueiredo Júnior.

 

   Transpirou igualmente que, ademais da disputa de ingressos, outra batalha se travava, bem mais séria, no seio do Governo. Os setores mais radicais do Estado Novo reclamavam a proibição da recita; elementos simpáticos à causa dos Aliados defendiam sua realização. Os boatos circulavam, difundindo ameaças e previsões diversas. Falava-se de forte pressão exercida sobre os Guinles, proprietários do Teatro, para levá-los a recuar da cessão do Fênix; não deu resultado. Soube-se que os responsáveis pela remontagem da peça tinham decidido levá-la à cena mesmo se a censura a proibisse: as portas do teatro seriam abertas ao público e o pano de boca subiria, nas noras marcadas. Os atores iniciariam o espetáculo mesmo correndo o fisco de prisão e processo. Constou que a filha do Chefe do Governo, "Alzira, comunicara ao pai que ela própria compareceria ao Fênix se a recita fosse proibida e aplaudiria os artistas.

 

   Finalmente o espetáculo foi liberado com a condição de que não houvesse em nenhum momento - sobretudo em cena aberta referência a sua ligação com os organismos da França Livre. Apenas Recita de Gala, comemorativa dos vinte anos de tablado de Maria João.

 

   Tudo isso fez com que a remontagem de Mary John extralimitasse de sua importância inicial para se transformar num confronto entre as forças do nazi-fascismo caboclo e os intelectuais brasileiros, mais uma vez nas trincheiras da liberdade. Assim vem acontecendo, desde os tempos da colônia e da poesia de um mulato baiano, Gregório de Matos.

 

MARY JOHN, MARIA JOÃO, MARIANNE

 

A primeira salva de palmas irrompeu quando o pano de boca subiu no Teatro Fênix, mostrando o cenário de Santa Rosa, uma revolução na cenografia do teatro brasileiro, início de uma nova era. Palmas que se repetiram à aparição de cada um dos artistas. Crescendo em demorados aplausos para saudar Procópio Ferreira no papel do vigarista que se proclamava ator do cinema ianque (papel criado antes por Leopoldo Froes); contendo a emoção, começou a dizer os versos iniciais da peça ainda ao som dos aplausos. Quando Maria João entrou em cena, jovem de dezoito anos, trêfega e desmiolada suburbana, cabeça-devento girando ao sabor dos filmes norte-americanos, miss Mary John, a representação teve de ser interrompida - a ovação se estendeu por um longo minuto.

 

   Após esse vibrante início, o público se conteve e a comédia, na fragilidade de sua composição? e na sonoridade dos versos inspirados pela beleza e pelo temperamento de Maria João, atravessou os dois primeiros atos num clima alegre ao qual não faltava uma ponta de inquietação: ninguém se espantaria se a polícia surgisse de repente e evacuasse o teatro.

 

   Levantado o pano para o terceiro e último ato, os espectadores se surpreenderam vendo de pé, no fundo da cena, não somente o elenco completo como também o pessoal das diversas equipes técnicas, eletricistas, maquinistas, ponto, o autor do texto do programa, Acadêmico R. Figueiredo Júnior, o diretor da peça, Álvaro Moreyra, todos os que colaboraram para o espetáculo. Faltava apenas Maria João.

 

  Enorme cesta de flores azuis, brancas e vermelhas, cores da França, ocupava

o centro do tablado. O público voltou a aplaudir, aplausos que cresceram incontroláveis quando Maria João surgiu dos bastidores, vestida de Marianne, a saia e a blusa tricolores, o barrete frígio. Ela esperou que a ovação cessasse, a mão posta sobre o coração. Finalmente, com aquele acento de mistério na voz rouca, inesquecível para quem o ouvisse por uma vez que fosse, anunciou:

 

   - Canto de Amor para uma Cidade Ocupada, poema de Antônio Bruno, escrito após a queda de Paris, pouco antes da morte do poeta.

 

   Impossível descrever a comoção do público, ninguém esperava ouvir, declamado do palco do Teatro Fênix, o poema maldito. Foi como uma descarga elétrica, alguém se pôs de pé, outros acompanharam, logo toda a platéia se levantou, aplaudindo, e de pé se conservou. O silêncio se fez, por fim, um silêncio tão total que as palavras de sangue e fogo, as estrofes molhadas de lágrimas e sacudidas pela cólera, a humilhação e a revolta, o ódio e o amor pareciam chegar do fundo do tempo, dos quatro cantos do mundo, rompendo as paredes do teatro.

 

   O lamento nos primeiros versos. O poeta chorando a cidade violada, um rio de lama onde antes corria o Sena, os corpos dos sacrificados, as botas dos nazistas, o luto e o silêncio, o desespero e a morte na voz de cantochão da grande atriz. Depois o poema cresceu para o anúncio da libertação, sons de clarins, a voz vibrante e vitoriosa, dizendo da solidariedade, proclamando o dia luminoso de amanhã, a vida e o amor. Cada estrofe interrompida pelas palmas em crescendo, nunca se vira coisa igual.

 

   Na platéia, sentada ao lado de dona Rosarinho e de mestre Afrânio, a portuguesa Maria Manuela sorria entre lágrimas, repetindo em surdina, palavra por palavra, os versos do poema, seu poema. No dia seguinte partiria do Rio para Caracas, quem sabe nunca mais ali poria os pés, mas deixava rastro de sua passagem: para servi-la, Antônio conclamara os homens à luta pela liberdade. Também Maria Manuela se levantará do luto e da viuvez, conclui mestre Portela. Pela mão de Bruno, ao apelo do canto libertário.

 

   Correm lágrimas também pela face de Maria João mas a voz se mantém inteira e firme na apóstrofe final contra os assassinos dos povos, cada palavra uma granada e uma ovação. Paris acende a aurora nas mãos de Maria João, menina brasileira dos subúrbios que, de repente, é Marianne, a França Livre.

 

   Paris, Paris, Paris, flama acesa e eterna! Todos de pé, a voz de Marianne cada vez mais alta, repetindo o nome da cidade, escrito por Bruno com o sangue de suas veias. Os que ali estiveram, naquela noite, ficaram sabendo, de um saber sem dúvidas, que jamais a opressão, a violência, a morte conseguirão derrotar a liberdade, ávida, o homem.

 

   Maria João repetiu Paris pela última vez e a aclamação imensa e sem fim explodiu; o mar de aplausos subiu em vagas descomunais, estremecendo o arcabouço do Teatro Fênix.

 

   No fim do terceiro ato, enquanto Mary John, os demais personagens e o diretor da nova montagem da comédia de Bruno eram mais uma vez ovacionados, do fundo da platéia se elevou uma voz de mulher, logo por muitos reconhecida, a da poetisa Beatrix Reynal, entoando as estrofes iniciais da Marselhesa.

 

   Do palco, a comparsaria a acompanhou, seguida por todo o público. Muito mais do que um espetáculo ou uma festa, a recita de gala de Maria João foi triunfal surtida dos maquis.

 

REPRESÁLIA

 

Em represália, foi negada a subvenção pedida pela Companhia Brasileira de Comédia, empresada por Maria João, para a temporada de 1941. A programação proposta compunha-se de Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, de uma nova comédia de Joracy Camargo e de O Rio, primeira peça de um jovem escritor cujo prestígio começava a se afirmar, redator da recém-proibida revista Perspectivas, de Samuel Lederman, apontado como veemente articulista, exaltado tribuno, comunista dos mais perigosos, Carlos Lacerda.

Convidada a comparecer ao gabinete do diretor do DIP, com quem mantinha boas relações, Maria João adivinhou, sem dificuldade, o motivo da convocação. Sentaram-se lado a lado no sofá de couro negro. O olho troncho do controverso

personagem fitou a triste paisagem de cimento; ao longe, uma nesga de mar:

- Certas horas tenho vontade de largar o cargo - confidenciou ele -, mandar tudo para o inferno; você há de perguntar por que não o faço. Não sei o que pensará se eu lhe disser que vou ficando porque, de uma ou de outra maneira, consigo impedir certas coisas, atenuar medidas, deixar um respiradouro aberto. Se é assim, porque então não me mandam embora? Penso que o Homem precisa deles e de mim, de alguém que os enfrente. Pelo mesmo motivo não aceita o pedido de demissão do Oswaldo Aranha. Na maioria das vezes sou vencido, mas quem pode ganhar sempre?

 

   Maria João sorriu com simpatia, quase co pena:

   - Desembuche, estou preparada.

   - Tentei defender a verba, me empenhei, posso lhe garantir, você acreditará se quiser. Mas o escândalo foi grande demais, o poema de Bruno, a Marselhesa, nossos pequenos hitlers estão loucos de raiva. Pelo gosto deles, todo o elenco, você à frente, estaria na cadeia.

   Contemplou a mulher sentada a seu lado, a beleza, a elegância e o desafio:

 

   - Ainda por cima, o repertório que você propôs é de arrepiar os cabelos. Começa com Garcia Lorca, eu adoro mas eles odeiam: republicano espanhol, sinônimo de comunista, fuzilado por nosso bom aliado, o General Francisco Franco. Depois de Deus lhe Pague, a fama do Joracy não é melhor, e o novo dramaturgo que você descobriu, esse rapaz Lacerda, tem uma das fichas mais volumosas da polícia. Perdi meu tempo e minha saliva. - Uma pausa, o olhar fugindo pela janela: - E agora, que pensa fazer?

 

   Maria João acompanhou o olhar do diretor do DIP, de começo viu apenas cimento, por fim vislumbrou a nesga de mar azul:

   - Vou montar as peças que programei, a não ser que a censura

as proíba.

   - Com que dinheiro? Sei que Hedda Gabler, se não deu prejuízo, lucro também não deu.

   - Arranjo financiamento, tenho onde buscá-lo, não se preocupe. - Levantou-se: - De qualquer maneira, obrigada pelo esforço que fez. Sei que é verdade e agradeço.

 

   Estendeu-lhe os dedos, o diretor do DIP os beijou e a acompanhou até à porta do gabinete. Posto tão infame quanto importante, cada dia uma batalha perdida. Ainda assim permanecia agarrado ao cargo, não conseguia abandonar aquela controlada parcela de poder. Nascera na maior pobreza, em ínfimo lugarejo nordestino, deveria estar lavrando terra alheia como o faziam o pai, a mãe e os irmãos maiores. Mas lhe arranjaram uma vaga gratuita no Seminário, pois sua inteligência e a vontade de estudar sensibilizaram o Cura e o Bispo. Ao ver-se de batina, livro na mão, decidiu ser poderoso, custasse o que, custasse. Custava caro, por vezes caro demais.

 

   Na rua, Maria João mordeu os lábios, com força. Nunca tinham conseguido fazê-la recuar quando se decidia; assim conquistara um lugar e uma responsabilidade no teatro brasileiro. Levaria seu repertório à cena nem que fosse necessário passar um fim de semana em Petrópolis com o Nojento. Depois da remontagem de Mary John nada podia manchá-la, se colocara acima do bem e do mal.

 

CARÁTER DA CONFRATERNIZAÇÃO NATALINA

 

O contínuo de cabelos brancos serve o cafezinho. No gabinete da Presidência, Hermano do Carmo escuta as razões dos dois luminares da Justiça: o Ministro Paiva, do Supremo Tribunal Federal, e o Desembargador Lisandro Leite, do Tribunal de Apelação. Debatem detalhes do chá natalino cujo objetivo é a confraternização entre os acadêmicos, acompanhados pelas excelentíssimas esposas, e o funcionalismo da Casa.

 

  Realiza-se na última quinta-feira antes do Natal, reunindo em álacre intimidade, uma única vez ao ano, as senhoras dos Imortais. A mesa apresenta-se ainda mais lauta do que a farta mesa semanal. O Presidente - tendo a Presidenta ao lado - recebe os casais, oferece flores e mimos às damas. Para elas, as esposas, essa festa anual possui  sedutor e excitante caráter, pois podem percorrer todo o Petit Trianon, a biblioteca, os arquivos, a secretaria, as salas onde os maridos conversam e recebem, território proibido às mulheres - o clube de homens mais fechado do mundo, na definição do jornalista Austregésilo de Athayde, que publicara

recentemente extensa reportagem, completa e imparcial, sobre a Academia Brasileira de Letras.

 

   Quando da posse de novo Acadêmico, elas comparecem ao salão nobre, vestidas por costureiros famosos, recobertas de jóias, exibindo penteados, majestosas. Mas no chá natalino o encontro não comporta luxos e formalidades, não há discursos longos a suportar e aplaudir. Descontraídas, tratam os temas mais diversos, exibem fotos dos netos, falam de problemas domésticos, a falta de empregadas, o alto custo de vida. Prosseguem conversando e rindo, enquanto os acadêmicos realizam rápida sessão, para justificar o jeton, nessa quinta-feira doado aos empregados da Casa. Na época, as férias da Academia começavam a primeiro de fevereiro e se prolongavam até o fim de março. Assim sendo, o chá natalino não encerrava o ano Acadêmico, não tendo outro sentido senão o de promover cordial encontro das esposas dos Imortais, por ocasião da maior festa cristã, a pretexto de confraternização com os funcionários e serviçais.

 

   - Comparece todas as quintas-feiras como se houvesse tomado posse antes de ter sido eleito. É capaz de aparecer comboiando a esposa, no chá do Natal. Inadmissível! - o Ministro Paiva não esconde sua reprovação.

 

   Lisandro Leite, cuja oposição à candidatura do General Moreira se acentuara ferozmente ao saber que o postulante decidira não visitá-lo, opõe veto formal à inoportuna presença:

  

   - E necessário, caro Hermano, dar conhecimento ao General do caráter restrito de nossa reunião festiva: apenas nós, acadêmicos, nossas mulheres e os colaboradores da Casa. Não fazemos convites nem admitimos penetras.

 

   Aqueles pequenos problemas de ordem protocolar deixavam o Presidente quase maluco. A Academia, por sua própria condição, mantém um ritual preciso a regular cada acontecimento e os Imortais são extremamente ciosos de sua exata observância. Hermano do Carmo eleva as mãos aos céus:

   -Acreditem que se o General Moreira comparecer, não será por falta de insinuações e indiretas de minha parte.

   -Insinuações e indiretas não resolvem, Linha Maginot não tem esse apelido por acaso: é inabalável - considera, solene, o Ministro Paiva.

  

   - Sei disso; motivo por que não me limitei às insinuações. Na quinta-feira, aproveitando um pretexto qualquer, eu lhe disse, clara e diretamente, que o chá da semana do Natal é reservado aos acadêmicos, às suas esposas e aos nossos funcionários. Só comparecerá se for mesmo um casca-grossa.

   - Se ele vier, pego Mariúcia e vou embora - ameaça Lisandro.

   - Não, Lisandro, você não fará isso... - contesta Hermano.

   - Por que não? É candidato e anuncia que não vai me visitar...

  

   - Exatamente por isso. Essa infeliz declaração do General tem sido muito prejudicial à sua candidatura, marcou ponto contra ele. Mas, se você revidar, abandonando intempestivamente o convívio de seus colegas na festa de confraternização, estará dando razão ao General. Você por acaso deseja que ele tenha razão? Que lhe parece, Paiva?

 

   - Com certeza. O Lisandro falou sem refletir, está magoado, tem motivo. Mas não vai se retirar coisíssima nenhuma. Assumo a responsabilidade.

   O Desembargador não discute com o Ministro a quem sonha substituir quando, dentro de poucos meses, ele se aposentar:

   - O sujeito me ofendeu. Mas é claro que saberei me comportar nos limites da boa educação.

   - Penso que não virá. - Considera Hermano do Carmo: - Fui explícito até demais, temo haver ultrapassado os limites da boa educação que você acaba de fixar, meu caro Lisandro. Mas se, apesar disso, ele vier, o que é que acontece?

Os dois luminares esperam que o próprio Presidente responda:

   - Por um lado, teremos de tolerá-lo nos tais limites de Lisandro. Em troca, o General marcará mais um ponto negativo. Não existe nada no mundo que não tenha um lado bom.

  - Ora essa! Não é que tens razão! - concorda o Ministro Paiva que não era

destituído de malícia e sabedoria.

 

A FAMÍLIA FELIZ

 

Casca-grossa ou a convicção de já ser Acadêmico, carecendo apenas de mera e próxima formalidade para marcar a data da posse solene e começar a pôr em ordem (em ordem unida) a Ilustre Companhia? O General compareceu ao chá natalino, fardado e de braço dado com dona Conceição. Para completar, trouxe a filha Cecília e o amigo Sabença.

 

   O amigo Sabença, apaixonado candidato à vaga aberta na cama de Cecília, feliz, a um passo dos esponsais.

 

OS ACONTECIMENTOS DE SÃO PAULO E DO Rio DE JANEIRO

 

A morte súbita do Coronel Sampaio Pereira resolveu os problemas de consciência de vários acadêmicos, inesperado alívio. No que se refere, porém, às ações empreendidas pelos numerosos órgãos policiais do Distrito Federal e dos Estados e pelos organismos militares específicos, contra os elementos suspeitos de idéias e ações subversivas, liberais, antifascistas, esquerdistas variados, uns e outros rotulados de comunistas, não chegou a haver mudança, muito menos alívio.

 

  Se o Coronel fez falta à frente da numerosa, ativa e bem remunerada rede de repressão, o que provavelmente aconteceu devido à firmeza ideológica e ao prestígio literário do ex-candidato à Academia Brasileira, logo lhe arranjaram substituto à altura, pois, conforme comentário do dúplice diretor do DIP, no Brasil temos falta de pessoal competente em todos os ramos da administração pública, à exceção da Polícia. Servidores eficientes e devotados em todos os escalões, de alto a baixo, nas múltiplas especialidades, sobretudo no quadro de peritos  em torturas. Os instrutores importados da Gestapo não encontraram o que ensinar, concorreram apenas com alguns sofisticados engenhos.

 

   Mal haviam terminado as comemorações de Natal e Ano Novo, quando um comunicado do Departamento de Polícia Política e Social de São Paulo anunciou feito sensacional, primeiro de uma série a abalar o país: o estouro do aparelho onde se encontrava reunido um pleno do Comitê Central do Partido Comunista. Golpe mortal, segundo a nota da polícia, na estrutura da organização subversiva, que resultará de persistente labor, demoradas investigações, complexos estudos devidos ao eficaz sistema de segurança responsável pela ordem e pela tranqüilidade públicas.

 

  Além de brilhante, a ação das forças policiais foi difícil e revestiu-se de heroísmo, informava o comunicado distribuído à imprensa. Os comunas, quando se deram conta do cerco estabelecido em torno da casa situada na Serra do Mar, no caminho de Santos, reagiram abala, resultando do tiroteio dois secretas feridos e seis agitadores mortos, entre os quais o procuradíssimo Bexiga, membro do secretariado do Partido. Seis mortos, quinze altos dirigentes, dos mais responsáveis, encanados, grande quantidade de armas e de material de propaganda apreendida. Outras prisões poderiam ocorrer a qualquer momento, pois as investigações prosseguiam enquanto os detidos eram interrogados. O comunicado não fazia referências à participação de elementos militares na vitoriosa façanha.

 

   Poucos dias depois, o Chefe de Polícia de São Paulo convocou os jornalistas acreditados junto a seu Gabinete para anunciar novas e espetaculares atividades da polícia política. No prosseguimento das diligências e em conseqüência de dados obtidos nos interrogatórios, os investigadores haviam localizado a oficina gráfica clandestina onde eram impressos o órgão central, A Classe Operária, e a maior parte da literatura do Partido. Cinco elementos dos mais perigosos caíram em mãos da polícia.

 

   Os repórteres puderam ver e fotografar o material apreendido nas duas grandiosas operações: poucas armas - alguns revólveres, dois fuzis, uma estropiada metralhadora, cartuchos de balas -, abundante material impresso. Além de exemplares do último número deA Classe Operária, manifestos, prospectos, panfletos, volantes, contendo palavras de ordem, análises da contingência política nacional, relatos de  movimentos grevistas não noticiados pela imprensa, apelos aos operários e camponeses, pedidos de ajuda financeira para as organizações de luta e para os presos políticos. Retratos de Marx, Lenin, Stalin, Dimitrov e Prestes. Além do Canto de Amor para uma Cidade Ocupada, de A. Bruno, impresso num volante de cor alaranjada.

 

  Durante a entrevista coletiva, o Chefe de Polícia apresentou aos jornalistas o camarada Aço, nome de guerra de Félix Braga; pelas costas os companheiros o tratavam por Piolho de Stalin, devido à rudeza no trato, à exaltada admiração pelo secretário-geral do Partido Bolchevique, de quem traduzira o nome de guerra e por ele citado como exemplo a todo e qualquer pretexto, e devido ao feroz sectarismo. Ex-estudante de medicina, oriundo da classe média, escondia as origens burguesas, fazendo-se passar por operário têxtil. Abandonara a Faculdade para se entregar ao trabalho ilegal, fizera rápida carreira no organismo partidário numericamente reduzido em conseqüência dos golpes da reação, chegando a membro efetivo do Comitê Central e a suplente do Bureau Político.

 

   O Chefe de Polícia ressaltou a importância de Aço, seus títulos e sua periculosidade, antes de passar a palavra ao preso, que tinha uma declaração a fazer.

 

   A voz insegura, Piolho de Stalin leu um documento que assinara na véspera, por livre e espontânea vontade, como acentuou o Chefe de Polícia. Ao ver-se preso, na solidão da cela, pudera refletir, fazer um balanço de sua vida, e se dera conta de que sacrificara a juventude por uma causa indigna, milhando no Partido Comunista, monstruoso refúgio de assassinos e traidores da Pátria, de que se colocara a serviço dos interesses da Rússia. O Partido iludia os estudantes e operários, levando-os a conspirar e agir contra as instituições, a religião, a família, a Pátria. Percebendo o erro cometido, ele, Félix Braga, decidira abandonar publicamente as fileiras criminosas do Partido, fazendo-o através daquele documento que escrevera e assinara.

 

   Lia mal, errava palavras, voltava atrás, aos jornalistas parecia evidente que o texto não fora redigido por ele - um comunista, mesmo desertor, não escreveria Rússia e, sim, União Soviética. Mas a assinatura era dele, sem dúvida, pois ali mesmo a repetira nas diversas cópias distribuídas aos repórteres.

 

   Terminada a deprimente leitura, o Chefe de Polícia pediu a Aço que mais uma vez dissesse se escrevera tais declarações devido a ameaças ou a violências dos policiais. Os olhos baixos, respondeu que não; arrependido do seu passado de crimes, ele próprio resolvera dirigir aquela mensagem à mocidade brasileira, para que outros jovens não se deixassem corromper pelos comunistas. Respondeu ainda a outra pergunta do Chefe de Polícia sabia de algum preso que tivesse sido torturado? Não. Não vira nenhum com marcas de tortura nem ouvira queixas daqueles que com ele haviam sido presos. Batidas fotografias, o arrependido foi levado pelos tiras, os jornalistas não puderam interrogá-lo. Para que, se a matéria a publicar não poderia sofrer cortes nem acréscimos, nem ser sujeita a dúvidas e a debate?

 

   Manchetes nas primeiras páginas, fotos em quatro colunas, editoriais louvando a competência da polícia, chamando a atenção dos jovens para o comovente, sincero e dramático documento de Félix Braga, ingênuo estudante iludido pelo canto de sereia dos comunistas. Uma semana inteira de elogios ao Estado Novo, de insultos à União Soviética.

 

  Circulavam, todavia, à voz pequena, versões orais sobre os ruidosos acontecimentos, menos heróicos, mais aceitáveis. Segundo apuraram alguns jornalistas curiosos, tudo começara com a prisão, inteiramente casual, de um elemento que transportava um pacote contendo exemplares de A Classe Operária. Ia de pé no ônibus cheio quando, para desviar-se de carro vindo na contramão, o motorista atirou o veículo contra um poste, em violenta batida. Ao cair, o rapaz soltou o pacote que se desfez, espalhando exemplares do órgão proibido. Um tira, também passageiro, apreendeu o material subversivo e encanou o militante.

 

   Na Delegacia de Ordem Política, o célebre delegado Apolônio Serafim o interrogou. No segundo dia, transformado num trapo sanguinolento, o infeliz revelou os endereços da casa na Serra do Mar e da gráfica no Brás, referindo-se inclusive à reunião do Comitê Central. No auge da excitação, Apolônio Serafim foi ao Chefe de Polícia, o Chefe de Polícia foi mais adiante, aos organismos militares. Reunião do Comitê Central? Assumiram o comando das operações.

Um bolchevique deve possuir tempera de aço para enfrentar a reação, exigia Aço dos camaradas, ameaçador. Levado para ser interrogado, ao entrar na sala e ver os tiras com os cassetetes de borracha, o charuto fumegante na boca de um deles, os chicotes corn nós e o sorriso quase cordial nos lábios de Apolônio Serafim (Félix o conhecia de fama e de fotografia), ficou branco de cera e sentiu um frio nos escrotos. Acentuaram-se a palidez e o frio quando enxergou Bangu e Martins, nus de pé contra a parede, algemados, rebentados de pancada, cobertos de sangue. Estendido no chão, também nu e ainda mais maltratado, o rosto disforme, desmaiado ou morto, o camarada Gato. Martins e Bangu eram operários, Gato, um jornalista conhecido, Félix Braga sentiu que ia urinar nas calças. Apolônio se aproximou:

  - Vamos ver se tu é mesmo de aço!

 

   A mão fechada atingiu o peito de Félix, cortando-lhe a respiração. Apolônio Serafim possuía certo senso de humor. Minhas mãos valem seu peso em ouro, dizia, exibindo as patas de elefante, punhos de ferro. Um soco foi suficiente. Aço não passava de um piolho de Stalin, só faltou vomitar a alma:

    - Não me bata, por amor de Deus, conto tudo.

 

   Contou tudo, assinou o documento que leu para os jornalistas. Guiou pessoalmente as caravanas da polícia até os vários aparelhos que conhecia, dando azo a nova onda de prisões. Para escapar do processo e à convivência com os ex-companheiros no mesmo presídio, pediu ao Coronel que o ouviu diariamente durante uma semana que o mandasse para o Rio, onde militava habitualmente, podendo assim ser de grande utilidade. Quando o soltaram, meses depois, de sua atuação política restou apenas parte do apelido, até os tiras o tratavam de Piolho.

 

   Tais misérias e tristezas sucedem de quando em vez. Quanto mais sectário e radical se mostre um tipo, mais frouxo se revela diante da polícia. Quem já militou, sabe dessa verdade.

 

  Gato, visto por Félix Piolho estendido no chão na sala do delegado Apolônio Serafim, chamava-se Joaquim da Câmara Ferreira, jornalista, redator de um dos grandes diários de São Paulo. Levava vida dupla, legal e ilegal, na redação do matutino, na direção do mensário proibido. Era afável, amigueiro, risonho. Não exigia que os demais fossem de aço nem xingava os companheiros de pequenos burgueses, fazendo praça de bolchevique. Foi torturado durante quinze dias, nada lhe arrancaram além das unhas e de parte da pele. Certa manhã, quando o trouxeram da cela para a sevícia, correu em direção à janela fechada, rebentou o vidro a socos e neles cortou os dois pulsos. Levaram-no às pressas para que não morresse. A notícia de sua prisão e dos maus-tratos circulara nas redações. Os jornalistas, o sindicato de classe, a Associação Paulista de Imprensa, os proprietários do jornal onde Joaquim trabalhava se movimentaram. Não morreu mas foi processado e condenado, cumpriu parte da pena, a anistia o libertou em 1945. Era o oposto de Aço e depois de solto prosseguiu milhando até ser assassinado na outra ditadura.

 

   No Rio, as prisões não se reduziram aos elementos descobertos nos aparelhos apontados por Piolho (ainda com algemas nos punhos). Intelectuais, médicos, engenheiros, funcionários públicos, bancários e até banqueiros foram detidos e vários deles processados - seus nomes figuravam em listas de contribuintes para as finanças do Partido, encontradas num dos aparelhos varejados.

 

   Os investigadores invadiram, ocuparam e saquearam o escritório de advocacia localizado na Cinelândia, dirigido por um causídico considerado dos mais hábeis e capazes, tipo simpático, com livre trânsito em muitas esferas, respeitado inclusive pelos juizes do Tribunal de Segurança onde atuava defendendo presos políticos. Ele e seus colegas de escritório haviam obtido absolvições e reduções de pena, em numerosos processos. Chamava-se Letelba Rodrigues de Brito. Foi preso junto com um dos dois outros advogados e três dos quatro estudantes de Direito que o auxiliavam.

 

  Entre os estudantes, Prudência dos Santos Leite, mais conhecida por Pru. Ainda no quarto ano da Faculdade já se revelava mais competente e arguta do que muitos bacharéis. Herdara a esperteza, a obstinação e a bonomia do pai, a beleza e a tranqüilidade da mãe.

 

O PAI E A MÃE

 

Ao tomar conhecimento da prisão da filha, Lisandro Leite ficou desatinado. Louco pela mulher, pelos filhos e netos, adorava a filha ingrata, desmiolada, inconseqüente que se metera com os comunistas e não perdia ocasião de criticar posições e atos do Desembargador e Acadêmico. Durante a candidatura de Sampaio Pereira, por exemplo, cansara de encontrar notas agressivas, escritas por ela, em cima de sua mesa de trabalho. Lisandro reclamava, gritava com a maluca, ameaçava-a, nem por isso a queria menos. Babava-se de contentamento quando colegas de cátedra na Faculdade, professores de Pru, elogiavam o talento da moça, filha de peixe, peixinho é, o devotamento ao estudo, inclusive a meritória (na opinião deles) atuação junto ao Tribunal de Segurança Nacional, auxiliar do pouco recomendável (na opinião de Lisandro) escritório de advocacia do doutor Letelba de Brito.

 

  Moveu mundos e fundos para conseguir a liberdade de Pru, empenhou-se junto aos demais Desembargadores, a militares que conhecera através de Sampaio Pereira, fez Hermano do Carmo se movimentar, falando em nome da Academia.

 

  Transcorriam os dias e o jurista se mostrava cada vez mais apreensivo e macambúzio, perdera a graça, o bom humor, a extroversão. Não conseguira saber nem mesmo onde a filha estava, tampouco obteve permissão para visitá-la. Um dos militares a quem se dirigiu prometeu se interessar pelo caso mas, quarenta e oito horas depois, lhe disse que nada podia fazer por ser grave a situação do pessoal do escritório: todos, inclusive sua filha, estão enterrados até o pescoço.

 

   Uma noite, no leito do casal, dona Mariúcia, vendo o marido insone, revirando no colchão, passou o braço em torno de seus ombros e o trouxe para junto de seu corpo:

   - Precisas dormir, Lisandro.

   - Não consigo. Quando penso na loucura de Pru, tenho ganas de matá-la no dia em que ela voltar.

   - Eu entendo. Temes que a prisão de Pru venha prejudicar tuas pretensões ao Supremo.

   A voz irrompeu irada:

   - Que me importa o Supremo! Quero é minha filha em casa, só isso.

Baixou a voz, o acento dolorido, medroso:

   - Eles torturam, tu sabes?

   - Ouvi Pru dizer, li naqueles papéis...

   - Não é invenção dos comunistas, é verdade, eu sei. Queimam as costas dos presos com pontas de cigarro, arrancam unhas, espancam, abusam das presas... Seis, sete de uma vez. Defloram, estupram ... Quando penso que Pru está nas mãos deles, fico sem ação, não posso dormir...

   Dona Mariúcia beijou-o nos olhos, na face, na boca:

   - Não vão fazer nada disso com Pru, esqueces que ela é tua filha e tu és um Acadêmico?

   Aproximou-se ainda mais, Lisandro sentiu o contato dos seios, murmurou:

   - Não tenho vontade de nada, estou incapaz.

   - Não te aflijas tanto, Pru não tardará a voltar.

 

   Assim aconteceu. A requerimento dos advogados credenciados junto àquela corte de exceção, os juizes do Tribunal de Segurança se interessaram pelo destino do doutor Letelba Rodrigues de Brito e de seus companheiros de escritório.

 

   Quando Pru chegou inesperadamente ao apartamento, posta em liberdade no meio da noite, sem sinais de violência, eufórica por ter sido solta e por ter sido presa, Lisandro a recebeu aos gritos:

   - A culpa é toda tua, tiveste o que buscaste. Queres te desgraçar e desgraçar tua família...

   - Não se preocupe, Pai, que não continuarei a viver aqui, vou me mudar.

Dona Mariúcia soltou a filha do abraço em que a mantinha:

   - Não acredites em uma só palavra de teu pai. Enquanto estavas presa, só faltou morrer. Não comeu, não dormiu... - Acrescentou sorrindo: - ... nem quis fazer amor comigo, o que aconteceu pela primeira vez desde que nos casamos. Teu pai te adora.

   Pru sorriu para a mãe, caminhou para o pai:

   - Pensas que eu não sei? Esse velho reacionário é um piegas.

   Lisandro passou a mão gorda e suada nos cabelos da filha:

   - Não vais te mudar, não é mesmo?

   - Só se não me quiseres mais em casa, pai desnaturado.     

   - Maluca!

   Pru sentou-se no colo de Lisandro, como o fazia em pequena:

   - Fique tranqüilo, Pai. Eu não tive medo nem um minuto.

   - O medo ficou aqui, em casa, viveu conosco esses dias, Pru. Foi a mãe quem respondeu.

   Dona Mariúcia veio até o marido e a filha. Dele podia fazer o que quisesse, estava sob sua guarda e a seu serviço. Pru escapava de suas mãos, era inútil querer dominá-la.

   - Estás suja, cheiras mal. Vai tomar um banho, eu e teu pai vamos dormir.

   - Dormir? Será? - Além de rebelde, debochada. Lisandro sorriu, agora tinha fome, sede, desejo, voltara a viver.

 

A CADEIRA DO EXÉRCITO

 

A partir dos meados de janeiro, o General Waldomiro Moreira passou a freqüentar a Academia, diariamente, à tarde. Acadêmicos de passagem pelo Petit Trianon, para recolher correspondência, atender a algum leitor ou amigo, dar dois dedos de prosa ao Presidente, viam-no na biblioteca, a tomar notas, a redigir, a escrivania coberta de livros, e se interessavam pela surpreendente assiduidade. Vinham falar com ele, saber em que se ocupava. Tais interrupções não desagradavam ao General; ao contrário, tinha gosto em revelar detalhes do trabalho que ali realizava. Alguns Imortais davam corda ao candidato, falastrão e fanfarrão.

 

  Candidato único, acrescente-se, e, como tal, começara a coligir dados para o discurso de recepção. Pretendia ser empossado logo após o término das férias acadêmicas. Havia o problema do fardão, mas Altino Alcântara, amigo e correligionário, a quem convidara para recebê-lo, honrado corn aquele sinal de consideração e estima, prometera solução para o caso se o Governo de Pernambuco, Estado natal do ínclito militar e escritor, cometesse a indelicadeza de romper corn antiga tradição, assente e grata: a oferta ao novel Acadêmico do fardão, do espadim e do colar pela terra onde nascera, em prova do orgulho pelo conterrâneo que conquistara a imortalidade. Se acontecesse tal baixeza, o prestigioso Alcântara levantaria fundos em São Paulo, mais que suficientes para fardão, espadim e colar, sobrando ainda para a champanha comemorativa, após a sessão solene. Pelos feitos de trinta e dois, o General

Waldomiro Moreira fizera-se credor da gratidão dos paulistas, que jamais esquecem a solidariedade recebida em hora difícil.

 

   Claudionor Sabença, nos dias em que não dava aulas - além do trabalho no jornal ensinava Português num ginásio da Prefeitura -, acompanhava o amigo ilustre, o pai de Cecília, e lhe servia de secretário, procurando volumes nas estantes, copiando referências e citações. Quando sozinho, o General se dedicava a redigir trechos da oração.

 

   Seria longa, a cadeira tivera quatro ocupantes, três generais e o poeta Antônio Bruno. Com o patrono, somavam cinco figuras a serem estudadas para o elogio de praxe.

 

   O General Moreira simpatizava com o patrono da cadeira, um clássico do século XVIII. Escrevera extenso poema épico em doze cantos, As Amazonas, à maneira de Os Lusíadas. Desconhecido pelas novas gerações mas louvado e analisado nos compêndios de história literária: teria sido ou não um precursor do Romantismo? Precedido  de nota biográfica, as antologias escolares reproduziam trecho da epopéia, sempre o mesmo por estranha coincidência. O patrono manejava aquela perspícua língua portuguesa do agrado do autor dos Prolegômenos Idiomáticos que, aliás, se opunha aos críticos, não enxergando emAsAmazonas indícios de romantismo - os poetas da escola romântica foram extremamente descurados no trato do idioma, tão correto nos versos do patrono.

 

   Manuseando veneranda edição, raríssima, um dos tesouros da biblioteca, o General saboreou, um a um, os doze cantos, declamando páginas e páginas para o atento Sabença - amor a quanto obrigas! Sentia-se culpado por não ter lido antes aquela jóia de nossa literatura clássica. O amigo Sabença certamente a lera mais de uma vez, o General lembrava-se de ter visto um trecho reproduzido naAntologia da Literatura Luso-Brasileira. Sabença mentiu duplamente: sim, lera repetidas vezes, porém melhor ainda era ouvir as castiças estrofes ditas pelo General, a voz imperiosa, máscula, marcial. Em verdade não lera,  fato pouco recomendável para um autor de antologias, e na Luso- Brasileira reproduzira aquele mesmo famoso trecho, não sendo o primeiro a copiá-lo. Se alguém, no passado, tomara a si a tarefa da escolha, por que os demais haviam de atravessar o cipoal das duzentas páginas escritas em magistral e ilegível vernáculo? Enquanto o General lhe martelava os ouvidos com os versos do patrono, Sabença sonhava com Cecília, deslumbrado.

 

   No discurso de recepção, calculado para umas trinta e cinco a quarenta laudas, medida conveniente, cerca de duas horas de leitura, três páginas seriam dedicadas ao patrono. O General reclamaria maior atenção e culto para sua memória e seu poema. O miolo do discurso, contudo, faria análise da obra dos três Generais que haviam ocupado a cadeira, sucessivamente, antes da absurda eleição de Bruno. O General Moreira se adentrara, com a impávida valentia revelada nas trincheiras constitucionalistas, pelos livros dos bravos militares e os mastigara, um a um, com grande deleite intelectual.

 

   O primeiro General deixara apenas um volume e dos mais franzinos, cento e doze páginas em tipo graúdo, sob o título de Datas Faustas da Nacionalidade, reunindo alocuções comemorativas, pronunciadas nos aniversários de relevantes feitos, quase sempre batalhas vencidas pelas tropas brasileiras nas guerras do Império. Bastante, todavia, para que o autor, expoente das Forças Armadas, pudesse representá-las no quadro dos Fundadores da Ilustre Companhia. Viveu mais de noventa anos; se lhe faltavam livros, sobrava-lhe simpatia, tendo sido de muita utilidade para a Academia nos tempos iniciais de pobreza e descrédito.

 

   Em troca, foi sucedido por General de vasta bibliografia que morreu poucos meses após a posse. Historiador exuberante, deixou oito alentados tomos sobre 9! Guerra do Paraguai, quatro sobre a Questão Cisplatina e, quando faleceu, trabalhava numa série sobre a campanha contra o tirano Rosas, da Argentina, da qual publicou apenas o primeiro volume, deixando dois outros inéditos - inéditos se conservam até hoje. O General Moreira conhecia alguns desses livros e os tinha em grande estima. Sentia a obra do panfletário de López, o Déspota como precursora da sua, contendo uma e outra o mesmo exaltado (e cego) patriotismo.

 

   O terceiro General, além de autor de sérios e curiosos ensaios sobre os indígenas, publicados na Coleção Brasiliana, nos quais estudou seus costumes, línguas, tradições e crenças, era uma figura quase lendária. Sertanista, varara florestas e pântanos, cruzara rios, estabelecera contatos com tribos que jamais haviam visto um branco. Compreensão e simpatia pelos silvícolas marcavam com um sopro de humanismo sua obra e sua atuação. Antônio Bruno, no discurso de posse, descobriu nele um poeta, se não nos livros que publicou, decerto na saga que viveu.

 

   Da análise da obra e dos feitos dos três Generais nascera o título sob o qual o General Moreira pensava publicar seu discurso, breve e substancioso ensaio: A Cadeira do Exército.

 

   Reservara pouco mais de uma página para a poesia de Antônio Bruno que, a seu ver, melosa e frasearia, nem isso merecia. Mas, como diria o dissoluto vate, viciado em citações francesas, noblesse oblige...

 

   Percorrera os diversos volumes de poemas e crônicas do falecido e não guardara boa memória nem da poesia nem da prosa. Bruno usava e abusava do verso livre, abandonando rima e métrica, e sem rima e métrica não existe verso que se preze, afirmava o General. Freqüentemente obscuro, incompreensível, surrealista, em lugar de poesia compunha hieróglifos. Sem falar na linguagem chula e nos inúmeros galicismos.

 

   A peça em versos, Mary John, cuja remontagem assistira a convite do Acadêmico Rodrigo Inácio Filho, lhe parecera banal e frívola. Quanto ao poema sobre Paris, Bruno precisaria ter buscado inspiração em Os Lusíadas ou, ao menos, nas estrofes de As Amazonas se realmente desejasse compor canto guerreiro capaz de conclamar os povos. Em resumo, Antônio Bruno não passava de um enganador, de um poeta chinfrim. Evidentemente não proclamaria essa verdade do alto da tribuna, soaria mal - os ritos acadêmicos exigem do sucessor o elogio irrestrito daquele a quem sucede.

 

   Não escondeu, porém, seu desapreço pela poesia do leviano vate de O Dançarino e a Flor nas conversas com os acadêmicos, durante a quinzena de intenso trabalho na biblioteca do Petit Trianon. Importante, de fato, no discurso, era A Cadeira do Exército, cuja nobre prosápia seria retomada com sua eleição. Bruno nada tinha a ver com e por engano a ocupara.

   Alguns acadêmicos lhe davam corda, puxavam por sua língua falastrona, outros ouviam em silêncio. O General Waldomiro Moreira tomava corda e silêncio como aprovação e concordância. Candidato único, não tem motivos para guardar secretos seus pensamentos. Bruno, no discurso de posse, entrava de intrometido, paisano de condenáveis hábitos em meio a militares impolutos.

 

A BALZAQUIANA

 

Do grupo estofado, num recanto da biblioteca, para onde conduzira dona Mariana Cintra da Costa Ribeiro, mestre Afrânio Portela percebe o General Moreira debruçado sobre a escrivania, lápis em punho. Pede licença e, a pretexto de evitar a luz direta, muda de poltrona, ficando de costas para o candidato. Retira da pasta a lauda de papel apergaminhado. No alto, as letras AB, iniciais do poeta, impressas em relevo; abaixo, as palavras traçadas com a caligrafia bonita, quase um desenho: A Camisola de Dormir. Estende a página à senhora que mal pode conter a emoção:

   - Aqui está. Eu a recolhi para guardá-la, uma espécie de relíquia... Cada um tem seus santos.

   Uma lágrima brota e escorre, dona Mariana não busca impedi-la:

   - Morreu pensando em mim. Tantos anos passados, não se esquecera.

 

   No velório, Afrânio Portela a cumprimentara quando, silenciosa, escutava o elogio de Bruno, no grupo de amigos. Beleza fanada, os cabelos de prata, ainda assim se impunha pela dignidade do porte e pela nostalgia dos grande?, imensos olhos de água, também eles marcados pela idade, empapuçados. Mestre Afrânio a ouvira suspirar, que recordações esconderia no fundo da memória pejada de lembranças?

 

   Não voltara a vê-la no decorrer daqueles meses e na véspera se surpreendera com o telefonema interurbano, pouco habitual na época. De São Paulo, dona Mariana solicitava uma entrevista. Chegara de avião para encontrá-lo na Academia, conforme combinaram. Ali estava, a lágrima descendo pela face, a folha de papel na mão trêmula, a voz ameaçando romper-se em soluços. Conteve-se - sabia fazê-lo - e prosseguiu:

 

  - Comemoramos seus vinte anos com uma festa que durou vinte e quatro horas.

Fomos a uma casa de jóias e lhe dei um relógio de presente, para evitar que chegasse atrasado como sempre acontecia. Eu já completara os trinta e dois e ele me chamava de balzaquiana, mas não para me ofender, muito pelo contrário. - Um sorriso entre as lágrimas.

 

  Mestre Afrânio faz as contas, doze anos mais idosa do que Bruno, estava por conseqüência com sessenta e seis. Não aparentava tanta idade, aliás parece mais moça do que há quatro meses, os bolsões sob os olhos haviam desaparecido.

Como se adivinhasse tais pensamentos, dona Mariana informa:

 

   - Estou com sessenta e seis e se não o procurei antes foi porque, logo após a morte de Antônio, me internei numa clínica em São Paulo para uma pequena plástica. Só a fiz para atender a um pedido de Alberto, ele gosta de meus olhos, retirei as bolsas que os enfeavam.

 

   Alberto da Costa Ribeiro, o marido, uma das potências financeiras do país, rei do café, implacável homem de negócios, grande fazendeiro, maior exportador. Afrânio o conhecia de longa data, o pai de Alberto e o de Rosarinho haviam sido sócios em diversos empreendimentos.

 

   - Não podia me apresentar em público antes da cicatrização completa, fui me esconder na fazenda em Mato Grosso e lá me demorei todo esse tempo, gosto daquela paz. Trasanteontem, folheando um número atrasado da Careta, fiquei sabendo, por um artigo de Peregrino Júnior, que Antônio acabara de escrever, numa folha em branco, as palavras   a camisola de dormir quando teve o enfarte. Peregrino acha que devia ser o título de um poema. Não imagina a minha comoção. Na hora de morrer, pensara em mim, recordara sua balzaquiana.

 

   - Era realmente o título de um poema? - Curioso e discreto, mestre Afrânio.

   - Que não chegou a escrever. - Elevou a cabeça, semicerrou os olhos (teus olhos fluviais, dizia Bruno): - O que ele intitulava orgulhosamente de estúdio, era uma mansarda, no sexto andar de um pequeno hotel de estudantes, o Saint Michel. Até hoje existe, na rue Cujas, ao lado do Boul'Mich. Pensei que ao conhecer Antônio eu havia destruído minha vida, aconteceu exatamente o contrário. Volta o olhar para o rosto solidário do romancista: - Vou lhe dizer uma coisa absurda e verdadeira, meu amigo: foi Antônio quem salvou meu casamento e fez de mim uma esposa boa e fiel.

 

   Ai, as mulheres de Bruno! Não cessam de confundi-lo, de derrotá-lo, enigmáticas personagens, que romance mais ilógico!

 

   -Lembro bem aquela manhã porque durante toda a semana fizera mau tempo, sem sol. Quando acordei e estendi os braços para Antônio, ele estava de pé e me contemplava com uma expressão de encantamento. Eu... eu estava nua, é natural que assim estivesse. Com aquele sorriso lindo de menino sem juízo, me disse: estás vestida com a luz do sol, tua camisola de dormir. Vou escrever um soneto para ti, com esse título. Não lhe dei tempo, ficou para depois, na hora da morte se lembrou. Se lembrou de mim.

 

   Não consegue prender o soluço. Tapa a boca com o lenço, num esforço se refaz, grande dama habituada a dominar os sentimentos.

   - Vim lhe propor uma troca. Deixe essa página comigo e eu lhe darei uma coisa muito valiosa mas que na minha mão continuará inútil.

   Abre a bolsa de viagem, retira um caderno escolar:

  

   - Nesse caderno Antônio escreveu para mim uma coroa de sonetos. São impublicáveis, infelizmente, pelo menos em edição para vender nas livrarias. Pensei que o senhor poderia mandar imprimir uma edição pequena, de luxo, talvez com uns desenhos. Alberto tem muitas edições dessas, francesas e inglesas. Os desenhos podiam ser do Di Cavalcanti, é muito amigo de meu filho mais velho, Antônio.

   - Após dizer o nome, uma ligeira pausa: - É o retrato do pai..

Afrânio Portela recolhe o caderno, vai folhear as páginas, dona Mariana pede:

   - Por favor, depois que eu for embora. Não sei quanto custara |a edição mas, se o senhor aceitar o encargo, eu pagarei as despesas. Quero apenas que me mande um exemplar, quando sair.

   - Fique descansada, não precisa financiar, deixe tudo por minha conta. O Di, onde anda?

   - Em Lisboa com Antônio, vieram fugidos da França, tocados pela guerra. Entre as coisas que Antônio herdou do pai está a paixão por Paris. Vive mais lá do que em São Paulo. Estão esperando, transporte para o Brasil.

   - E os originais?

  

   - Faça doação à Biblioteca da Academia ou à Biblioteca Nacional, deixo ao senhor a escolha. Não quero guardá-los comigo por mais tempo. De repente morro, não desejo que Alberto encontre esse caderno em meio aos meus pertences. Somente o senhor sabe que esses sonetos foram escritos para mim, nem Sílvia teve conhecimento deles.

|        

   Desceram o elevador, mestre Afrânio foi levá-la ao portão de saída onde um táxi a esperava, o chofer lendo notícias da guerra, num vespertino. Mariana curvou-se para entrar no carro, o romancista sorri ao admirar o volume das ancas - ela não escolhera Di Cavalcanti ao acaso para ilustrar a coroa de sonetos, o livro inédito de Antônio Bruno, o primeiro, anterior a O Dançarino e a Flor, e ainda por cima, frascário, preciosidade bibliográfica.

 

   Mestre Afrânio não retorna à biblioteca. Refugia-se numa das salas do terceiro andar, em meio aos arquivos. Lê de um fôlego os quinze sonetos libertinos. Iniciação ao Gozo. Um subtítulo: Coroa de Sonetos para uma dama paulista, bacante de Parir, a dedicatória: Para M..., minha Maria de Médias.

 

   Retorna ao primeiro soneto, relê o verso devagar, a meia voz, como quem degusta um vinho de esquisito buquê:

  O calipígia Vênus de formosa bunda.

 

A SENHORA DE BELEZA PANADA

 

União de duas famílias tradicionais, aliança de duas poderosas fortunas, especularam os jornais no prolixo noticiário sobre o casamento de Mariana d'Almeida Cintra com Alberto da Costa Ribeiro. Entretanto fora um casamento de amor, noivos assim apaixonados eram raramente vistos nas altas camadas da sociedade onde o dinheiro comanda os sentimentos.

 

    Mariana, elevada estatura, loira de corpo exuberante-fugida de um quadro de Rubens, escrevera o poeta Menotti dei Picchia que por ela suspirara, curtindo aguda paixão -, aqueles olhos românticos, imensas gotas de água, perdidos no infinito; Alberto, ainda mais alto, belo, espadaúdo, moreno, aplaudido esportista, vencedor de provas hípicas, saltando obstáculos, montando cavalos excepcionais, com haras no Jóquei Clube, sócio do pai. A firma de exportação, sediada em Santos, comandava a bolsa do café, decidindo sobre a alta e abaixa, encaixando rios de dinheiro. As fazendas de uma e outra família ocupavam as terras mais férteis de São Paulo, onde floresciam extensões de cafezais de lavra superior. Em Mato Grosso, engordavam gado de raça pura e milhares de cabeças de zebu.

 

   Vinte anos completara Mariana, ele vinte e cinco, quando saíram em viagem de núpcias, num cruzeiro de três meses ao redor do mundo, mas a lua-de-mel prosseguiu durante mais de quatro anos: recepções, festas, bailes, passeios, viagens à Argentina, aos Estados Unidos, à Europa. 7

 

   Depois tudo mudou. Com a morte do pai, Alberto assumiu sozinho o comando da firma, a administração das fazendas, por ser o mais velho dos irmãos e a mãe não se envolver em negócios. Antes, auxiliava o pai, participava de decisões, dava palpites mas o comando era do velho. Alberto vivia para a esposa, satisfazendo-lhe os menores caprichos, amoroso e devotado. Talvez pudesse ser um pouco menos formal na cama, pensava por vezes Mariana, o corpo se consumindo em desejos cuja existência Alberto desconhecia pois ela, pundonorosa, jamais deixara transparecer a ânsia a devorá-la. Por isso, faziam uma vida sexual

corriqueira e freqüente, sem exageros e requintes. Para os exageros e os requintes Alberto recorria às francesas, na Capital e em Santos.

 

  Pouco a pouco, os inúmeros afazeres, a febre dos negócios, ocuparam-no por inteiro e Mariana se viu cada vez mais relegada a um segundo plano na vida do marido, a quem faltavam tempo e bom humor. Terminaram os dias de ócio, os cruzeiros de prazer. Alberto viajava muito, viagens de negócio, apressadas e cansativas. Cumpria as obrigações sociais, tão gratas a Mariana, reclamando, à força, esmagado pela trabalheira e pela responsabilidade que lhe pesavam

sobre os ombros. Ainda fazia um pouco de esporte mas já não era o imbatível cavaleiro de antes, descurara os ginetes e o haras estava - entregue aos irmãos mais moços.

 

   Doze anos após a festa maravilhosa do casamento, a vida conjugai de Mariana e Alberto chegara a um impasse. Num dia de chuva e  solidão, cansada do abandono que ela acreditava resultar de indiferença e desamor de parte do marido, Mariana decidiu desquitar-se. Não tinham filhos e a vida se transformara num sacrifício estúpido e inútil,  apenas humilhação e desgosto. Acontecia Alberto passar um mês ou mais sem a procurar; ao se mudarem para o palacete novo, de linhas

modernas, projeto de Warchavchik, ocuparam quartos separados.

 

   Quando comunicou a Alberto sua decisão, o exportador de café não quis acreditar. Ficou alucinado. Estás louca? Desquite por que, se vivemos tão bem e nos amamos? Ou será que não me amas mais? Ela o amava, sim, quem sabe talvez ele ainda a amasse, mas de que adiantava esse amor se já quase não se viam, raramente saíam juntos para uma sessão de cinema, um espetáculo de teatro, um compromisso social? Sabes há quanto tempo não bates na porta de meu quarto? Quase dois meses, te dás conta?

 

   Alberto defendeu-se. Fora a própria Mariana quem pedira quartos separados, o que a ele parecera revelar desdém, desinteresse da esposa, sentira-se machucado. Também a falta de filhos concorria para o afastamento, tanto haviam desejado as crianças que não chegaram. De quem é a culpa? Mariana sujeitara-se a tratamentos, consultara especialistas, tudo inútil. Alberto fez exames médicos, não era estéril. Foram se distanciando e Mariana começou a ficar amarga. Fêmea nascida para o amor e não o tendo, sofria trancada no orgulho de grande dama. Altiva demais para reclamar.

 

   A princípio manteve-se intransigente na decisão de separar-se. Mas Alberto a adorava, não admitia a possibilidade de viver sem ela. Sugeriu uma opção. A irmã mais velha de Mariana, Sílvia, que enviuvara havia pouco mais de dois anos, estava residindo em Paris, onde alugara um andar nas proximidades dos Champs-Elysées. Por que, antes de tomar uma decisão irrevogável, Mariana não ia passar uns meses com a irmã? Alberto propôs seis meses de férias conjugais. Caso suportassem viver longe um do outro, se desquitariam. Mas se sentissem a falta da vida em comum, voltariam para nova tentativa. Quem sabe, após esses meses de ausência, tudo tornaria a ser como nos primeiros anos? Ademais, os dois irmãos de Alberto estavam trabalhando com ele e o mais moço revelava boa cabeça para os negócios. Nesse meio tempo, trataria de passar para os irmãos o grosso do trabalho e parte da responsabilidade que até agora carregara sozinho. Mariana concordou, no fundo não desejava perdê-lo.

 

   Do cais de Santos, Alberto acenou adeus, Mariana chorou durante toda a viagem na suíte do paquete inglês. Não contava permanecer em Paris mais de mês, cumpriria os outros cinco na fazenda mais distante, uma que vinham de adquirir na fronteira de Mato Grosso com o Paraguai.

 

Sílvia deixara em São Paulo os véus de viúva e as obrigações de família, ninguém a diria oito anos mais velha do que Mariana. Remoçara em Paris.

   - Minha filha, fui escrava do marido e dos filhos ávida inteira. O marido morreu, os filhos estão criados, terminando a Faculdade, cheios de dinheiro, não precisam de mim, viva Paris!

   Foi ela quem apresentou Bruno a Mariana:

   - Precisas de alguém que te acompanhe, te leve a passear, a dançar, te ensine os restaurantes, os teatros. Daqui a alguns dias se realizará o Baile de Máscaras da Ópera, precisas ir à costureira encomendar tua fantasia. Para tudo isso e para o resto, é indispensável um gigolô. E eu sei de um feito à tua medida. É lindo e escreve versos.

   - E tu, tens um?

   - Para falar a verdade, tenho dois, o pequeno Jean e o grande André, são opostos no tamanho e em tudo mais, gosto de variar.

   - Só que eu não gosto de variar, para mim até hoje só existiu Alberto.

   - Exatamente porque sei que és monógama, te aconselho somente Bruno. Se chama Antônio Bruno, estudante, poeta e baiano, queres melhor? Em matéria de dengue, não tem igual.

   -Ficaste maluca. Vim aqui para esquecer meu marido, não para traí-lo.

   - Quem te falou em trair? Estás trágica, mulher! Bruno vai apenas te acompanhar, passear contigo, te levar à modista, ao restaurante, um pajem. Só irá mais longe se tu consentires, se não fores capaz de resistir.

 

   Resistiu ao dengue, ao encanto, à poesia do rapaz durante mais de uma semana, sucumbiu por ocasião do Bal Masque da Ópera, ao nono dia.

 

   Antes, em companhia de Antônio - nunca o tratou por Bruno -, rapazola de terna e atrevida presença, descobriu uma Paris que não conhecera nas viagens precedentes, visitou museus, catedrais, aprendeu a Notre-Dame em seus detalhes e aprendeu a amar a graça, o encanto da cidade, sentiu o sopro de seu hálito verdadeiro, mais além do turismo a que estava acostumada. Ora com Jean, ora com André, sempre com Sílvia, varavam as noites dos restaurantes, bistrôs, teatros, cabarés, dançando, rindo, bebendo champanha, ele a lhe repetir declarações e versos de amor. Estaria realmente apaixonado? Era belo e gentil, irresponsável e imprevisível. O perfil moreno e forte recordava-lhe Alberto quando ela o conhecera, jovem e audaz cavaleiro saltando obstáculos na Hípica, um Alberto que fosse poeta e louco. Cedeu-lhe beijos furtivos aqui e ali, nas pistas de dança, incomparável dançarino!, nas madrugadas à hora do retorno, quando Sílvia, desavergonhada, se atracava com o acompanhante de plantão. Mas não passara disso.

 

   Recordando-se dos galanteies de outro poeta, o das Máscaras, fantasiou-se de Maria de Médicis como ela é vista na hora do casamento por procuração, no quadro de Rubens. Fantasia? Era a própria Maria de Médicis e foi a Rainha do Bal Masque. Bruno enfiara o mesmo Arlequim do ano anterior. As saias pesadas da fantasia a impediam de ser o par ideal na dança do maxixe, mas Bruno era um virtuo-se, a ponto dos outros pares se afastarem e aplaudirem. Sílvia aproveitou o sucesso da irmã para sumir com André.

 

   Na barra da manhã, Mariana se encontrou, Rainha pela metade, escrava da cintura para baixo, no leito do moço dançarino, vagabundo e gigolô, François Villon dos trópicos, como ele, gaiato, se intitulava a rir, após ter subido, bêbada e irresponsável, os seis íngremes lances de corroídos degraus, até a mansarda no sexto andar do Hotel Saint Michel.

 

   Ao tomar posse do corpo esplêndido da paulista, Bruno morria de desejo contido a duras penas. Nenhuma outra lhe custara tanto tempo, tamanha lábia, todo o dengue. Mariana abusara de sua paciência, respondia aos galanteies com o nome e as qualidades do marido, ultrapassara todos os prazos; o competente conquistador sentira-se à beira do fracasso. Humilhante. Assim, na primeira vez, ele a possuiu com ferocidade, quase com raiva, despedaçando as faustosas saias reais (a fantasia de rainha ficara pelos olhos da cara, encomendada a chiquérrimo costureiro), arrancando engomadas anáguas, deixando-a de espartilho e grande gola armada. Um furacão.

 

   Passado o ímpeto inicial, sentindo a adúltera estreante estremecer na hora do gozo, prendendo um gemido, Bruno deu-se conta do drama daquele corpo de mulher feito à medida da incontinência para a festa da cama e dela carente pois tivera apenas o limitado leito matrimonial de rico homem de negócios. O marido, cujo nome e vitórias na Hípica ela mantinha na boca em permanência, podia ser cavaleiro emérito, campeão de sensacionais torneios, bonitão, multimilionário distinto, agradável e tudo o mais, porém, na matéria básica que determina todo o resto, não ia além do trivial, como Bruno pôde facilmente comprovar.

 

  Depois de tê-la violado com furor de apache, começou a desvestila devagar, peça por peça, gastando tempo, pois, enquanto o fazia, apossou-se de todos os detalhes, em cada minúcia se detendo, levando o corpo da mulher a vibrar inteiro, aceso, no espanto e na revelação do gozo. Perito na arte do prazer, por gosto e ofício, Bruno a trouxe do trivial de Alberto para os manjares refinados, desvendando-lhe usos e costumes para ela inéditos, delicadezas de línguas e sensações de tato, quando naquela primeira madrugada tocou nas ancas e nos peitos modelados por Rubens, na flor desabrochada em mel. Por fim a viu inteiramente nua, os altos seios, as fornidas coxas, os imensos olhos de água pura. Virou-a de costas, o dorso magnífico, os quadris de égua, montaria que Alberto não soubera cavalgar. Em; espuma de champanha a saboreou devagarinho.

 

  Mariana reagiu numa explosão ansiosa e-urgente, demonstrando ao mesmo tempo ignorância e vontade de aprender. Vulcão adormecido, de súbito em erupção: chamas elevaram-se aos céus e pelas colinas do corpo da rainha escorreram lavas. O pequeno estúdio, a pobre mansarda, na hora de luxúria gemeu na música dos ais de amor; se perfumou com aroma de mulher, suor de homem, odor de esperma, de sexo satisfeito, saciado e insaciável; se iluminou com a luz nascida nos olhos de água de Mariana, ainda maiores pois cheios de lágrimas. Assim teve início a bacanal, durou três meses.

 

   Três meses durante os quais Mariana se entregou e recebeu, recuperando os anos perdidos. Nada desejava senão estar na mansarda do poeta, do rapazola, do menino da Bahia que lê bon Dieu de France lhe enviara pela mão fraterna de Sílvia. Enchia-o de presentes, bebiaIhe palavras e versos. Beliscada, mordida, lambida, chupada, penetrada, cavalgada, cavalgando, cada noite uma estréia, uma nova sensação, os sabores tão diversos, as diferenças de buquê - e tudo em francês, língua na qual nenhuma palavra referente ao amor é obscena: lê beau vit et lê gentil con, la verge et la chatte, la rosette et lês feuilles de rose, lês nichons et lês cuisses, la niotte, lê cul. Bruno dizia-lhe poemas eróticos de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Apollinaire: tes fesses lourdes comme desfromages de Hollande e os praticava: ma queue éclatait sous tes lèvres/comme une prune de juillet. Mariana aprendia e repetia com o acento das freiras do Dês Oiseaux onde estudara francês: mon culs'éveille au souvenir/d'une inoubliabk caresse. Maravilha, adormecer nos braços de Bruno, despertar ao toque da língua exímia:Ah!, comme c'est bon.

 

   Cama de gigolô e de balzaquiana, de vagabundo e de bacante, gana e cio, fome

e apetite. Não lhe bastando a poesia dos outros, Bruno compôs para Mariana uma coroa de sonetos dissolutos, onde cantou detalhe por detalhe seu corpo magnífico, dando rima e metro libertinos ao romance parisiense do François Villon da Bahia e da Maria de Médicis de São Paulo, vivido no Boul'Mich.

 

O romance não se limitou porém às manhãs e noites de carícias, à imensa bacanal. Foi completado e engrandecido pelas tardes de p   passeios, pelas infindáveis conversas à borda do Sena, nos bistrôs de Saint-Germain, nos jardins do Luxembourg, teusjardins e teu palácio minha Maria de Médicis. Mariana narrou alegrias e tristezas, passou em revista sua vida. As ilusões da aluna do Dês Oiseaux, os primeiros bailes, a herdeira exigente recusando noivos, o encontro com Alberto, o amor desmedido, o casamento feliz, a volta ao mundo, a lua-de-mel que se prolongara por mais de quatro anos e depois o lento abandono, indiferença, a ausência de filhos, os quartos separados, o marido no afã de ganhar dinheiro, dividido entre São Paulo e Santos, por fim o desespero, a proposta de desquite, a vinda para Paris antes de uma decisão final e irremediável. Em Paris encontrara Bruno, a felicidade. A felicidade? Ou apenas o prazer, o frenesi de maravilhosa aventura, depravada e dulcíssima? Fosse o que fosse, tornara o desquite obrigatório, já não se tratava de saber se sentia ou não falta de Alberto. Ela o traíra, acabara-se tudo.

 

   Bruno escutava com aquela terna atenção que desde cedo soube conceder às mulheres, tomava-a nos braços, mudava de assunto, beijava-lhe os imensos olhos de água para afastá-la dos tristes pensamentos:

   - Tens duas coisas, minha rainha, que nenhuma mulher possui mais belas: teus olhos e teus quadris.

 

   Falava de cançonetas e quadros, dizia-lhe um verso recém-escrito mas ela voltava ao eterno tema do marido agora perdido para sempre. Uma noite, após galgarem os abruptos lances de escada que levavam ao sexto andar do Saint Michel, Bruno perguntou:

   - Por que estás preocupada? O que aconteceu?

   Mariana abriu a bolsa, procurou o telegrama:

   - Lê...

 

   Alberto anunciava o embarque num navio francês, estaria em Paris na quinzena seguinte, não suportara esperar os seis meses combinados, entregara a firma aos irmãos, obtendo tempo para a esposa: sem ti não posso viver, afirmava no cable da Western.

 

   Ia ser desagradável, desagradável não, muito pior, ia ser um horror mas tinha de lhe dizer que a continuação da vida conjugai se tornara impossível, ela o enganara... Bruno a tomou nos braços, começou a despi-la enquanto falava:

   - Não vais fazer nada disso, minha Maria de Médicis, não contarás coisa alguma, tu amas teu marido, essa é a única coisa verdadeira, ppor que queres fazê-lo sofrer

   -Achas que ainda amo Alberto? Se é assim, por que o traí?

 

   - Falas nele sem parar, andas com Alberto a teu lado o dia inteiro, se eu não fosse um bom rapaz podia até me ofender. Eu não sou teu amor, apenas te dei algo que te faltava, o conhecimento do prazer. Foste mal amada, certamente tanto por tua culpa quanto por culpa de teu marido. Quem sabe, rainha, te fechaste em tua altivez, em teu decoro imperial? Eu pude romper teu orgulho porque estavas embriagada e te tomei à força. Quando rasguei tua roupa, desnudei teu coração. Não é certo?

   - Acho que sim... - tão jovem ainda, Antônio sabia ou adivinhava?

  

   - Então? Volta para teu marido e faz de tua cama de casada a garantia de teu amor. Entrega a Alberto tudo o que te dei, tudo o que tomei de ti e te restituo. Mas somente na véspera dele chegar. Até lá serás minha, unicamente minha. Mariana Maria de Médicis da Costa, nunca te esquecerei. Na hora da morte, me lembrarei de ti. Agora, vamos, depressa, temos poucos dias para a festa da despedida.

   - Mesmo que eu o ame, agora é impossível voltar para ele, Antônio...

   Bruno se assustou. Pensaria ela em vida em comum, em transformar a aventura alegre, exaltante e efêmera em concubinato pior que o casamento?

   - Já te disse, lembras?, que não pretendo me ligar a mulher nenhuma, não sou permanente, apenas provisório.

   - Não tenhas medo. Vou voltar para o Brasil...

   - Quero te dizer outra coisa: tu nasceste para casada, para ser fiel a teu marido. Não te vejo passando de mão em mão, não serias feliz..

   - Não se trata de nada disso, Antônio. Escuta: além de tudo que me deste, dos versos e do prazer, tu me engravidaste. Te aviso logo que não vou abortar, sempre quis ter um filho. Mas não vou te aborrecer, terei meu filho no Brasil. Ele fará que me recorde de ti, de meu Antônio provisório.

   Bruno sorriu, a face iluminada:

   - Um filho? Por que teu filho? Tão teu quanto meu, nosso menino!

   Ficou pensativo durante longo minuto, depois a tomou nos braços e a beijou nos olhos e na boca. Então falou, de súbito sério e refletido, experiente aos vinte anos como acontece apenas aos poetas; eles possuem o dom divinatório:

     

   - Teu marido também deseja um filho, não é? Ademais somos parecidos, ele e eu, assim me disseste. Não penses que abandono o nosso menino; sei que vai ser um menino e tu lhe darás o nome de Antônio. Mas, reflete comigo: por que vais criar um filho sem pai, adulterino? Ele pagará caro por isso, a vida inteira. Para o nosso Antônio, o melhor que pode acontecer é nascer filho de Alberto Ribeiro da Costa e eu quero o melhor para meu filho. Não te exaltes, não me julgues indigno, pensa devagar, com calma, verás que tenho razão. Quero te dar mais do que o prazer e o filho, quero te dar de volta teu marido. Com ele, tu e Antônio serão felizes.

 

   Assim foi. Na véspera da chegada de Alberto, na hora do adeus, ela agradeceu, chorando, e Bruno lembrou que ficava lhe devendo um poema, um dia o escreveria pois guardava na retina a imagem do corpo de Mariana vestida com uma camisola de luz, da luz da aurora.

 

   Ao menino concebido em Paris, em leito de bacante na mansarda do sexto andar do Saint Michel, deram o nome de Antônio, em ação de graças ao santo protetor do matrimônio a quem Mariana recorrera pedindo um filho. O milagre aconteceu na noite da chegada de Alberto quando ela se despiu para o marido, em casa da irmã, e pondo de lado o pundonor se deu corn fúria e exigência. Deslumbrado, Alberto afirmou:

   - Hoje vou te fazer um filho, tenho certeza, meu amor.

 

   Depois, em São Paulo, nasceram Alberto Filho e Sílvia, assim batizada em homenagem à tia que continuava em Paris ç. não pensava voltar. Apenas, em lugar do pequeno Jean e do grande André, alternava Bob, um loiro e delicado norte-americano - os norte-americanos estavam em moda -, com o francês Georges, um francês é absolutamente indispensável.

 

   Na alta sociedade paulista não se tem notícia de casal mais feliz, conforme constatou mestre Afrânio Portela em busca de maiores informações, material para o romance. Esposo dedicado e atento, esposa fiel e amante, envelhecendo juntos, dentro de quatro anos festejarão bodas de ouro. Mariana e Alberto provaram que mesmo entre os grã-finos e os multimilionários, feitos de dinheiro e de futilidade, pode medrar o amor e ser eterno. São mágicas devidas aos poetas, em matéria de amor mais milagrosos do que os santos entronizados nos altares.

 

A RETA FINAL

 

Na reta final, na semana da eleição, naquele tórrido janeiro de 1941, o mormaço pesando sobre a cidade do Rio como uma laje de cimento armado, duas boas notícias, ambas devidas à intervenção do Acadêmico Altino Alcântara, abriram agradáveis perspectivas para o candidato único.

 

   A primeira, referente ao fardão, possuía interesse sobretudo econômico. Com o peito, os punhos e o colarinho bordados a ouro no tecido de feltro verde, caríssimo, o fardão custa uma fábula, fábula e meia com os indispensáveis complementos: o bicorne corn debruns de ouro e plumas brancas, o lavrado espadim e o dourado colar. Altino Alcântara, surpreendido e lisonjeado com o convite do correligionário  para pronunciar o discurso de recepção - pensara que o escolhido seria Rodrigo Inácio Filho, um dos patronos da candidatura do  General e amigo íntimo da família, segundo lhe disseram -, prometerá lançar uma subscrição em São Paulo destinada a financiar o suntuoso traje da imortalidade. Ia ser tremenda e demorada mão-de-obra, se bem não desagradasse ao antigo combatente de trinta e dois  a idéia do reconhecimento público de seus feitos de guerra pelos

habitantes do grande Estado.

 

   Arrependido da promessa, Alcântara preferiu agir por portas travessas, pedindo a mediação de um amigo comum junto ao Interventor de Pernambuco, que se mostrou receptivo, prometendo assinar decreto abrindo verba para as despesas com o fardão do conterrâneo. O orgulho estadual superava as divergências políticas. Ademais, dissera o Interventor ao Chefe de Polícia, o General Waldomiro

Moreira, na reserva, sem comando de tropa, acomodado na poltrona acadêmica, não representava nenhum perigo para o Estado Novo. A dádiva oficial iria neutralizá-lo por completo - uns contos de réis bem empregados.

 

   Além dessa alvissareira notícia, o benemérito Alcântara abrira-lhe a perspectiva de eleição unânime. O General dava por descontado um voto em branco, o de Lisandro Leite. Supunha que fosse o único, ainda assim suficiente para impedir o prazer da unanimidade tão vasqueira nas votações da Academia. Contavam-se nos dedos de uma única mão os Imortais assim eleitos.

 

   Político em recesso, eminente advogado à testa de uma das maiores bancas de São Paulo, responsável pelos interesses jurídicos do Banco Português do Brasil e de grandes indústrias, Altino Alcântara, desde a clausura do Parlamento pelo golpe de 37, pouco vinha ao Rio e ainda menos à Academia. Correligionário do General, declaradamente simpático à sua candidatura, escolhido para recebêlo - o General não fizera segredo do antecipado convite -, nem Evandro e seus sequazes, nem Lisandro e os fiéis do Coronel Sampaio Pereira falaram com ele sobre a problemática eleição do General. Pura perda de tempo, não pagava a pena. Todavia, o Presidente Hermano do Carmo, numa das raras aparições do Acadêmico tão pouco assíduo, se referiu à deplorável atitude do candidato que proclamava a decisão de não cumprir o protocolo, deixando de visitar Lisandro Leite: o fato repercutira mal.

 

   Antes de regressar a São Paulo, Alcântara procurou o General para lhe entregar os votos pois uma audiência à qual não podia faltar, marcada para o dia da eleição, impedia sua vinda ao Rio. Desculpou-se por não comparecer à casa do prezado amigo após a votação, levando pessoalmente o abraço de parabéns a ele, à sua digníssima esposa e à encantadora filha. Aproveitou para lhe aconselhar maior flexibilidade no trato com Lisandro, começando por rever a posição assumida em relação à visita.

 

   - Perdoe-me, meu ilustre amigo, mas como Oficial Superior de nossas Forças Armadas, General do Exército, sinto-me impedido. Está em jogo minha honra...

 

   Hábil político, Alcântara encontrou o caminho da conciliação sempre encontrava caminhos para a conciliação:

  

   - Compreendo que não queira ir pessoalmente. Faça o seguinte: deixe seu cartão com uma palavra na portaria do edifício onde ele reside. Existem precedentes em eleições anteriores. Assim talvez seja possível obter-se que o Lisandro não vote em branco, apenas se abstenha, possibilitando que o amigo seja eleito por unanimidade.

 

   O argumento pesou, o General Moreira amoleceu:

   - O caro amigo daria uma palavra a ele sobre o assunto?

   - Farei uma cartinha, de São Paulo.

   - Nesse caso, deixarei o cartão. Amanhã mesmo.

 

  Seguindo o conselho, depositara na portaria do prédio o cartão de visita, acrescendo ao nome impresso, Gen. Waldomiro Moreira, umas palavras do próprio punho: Cumprimenta o Acadêmico Lisandro Leite. Esperava que o canalha retribuísse o gesto delicado, abstendo-se, recuando do voto em branco. A unanimidade coroaria sua escolha, situando-o entre os dois ou três privilegiados que, via de regra, não perdiam ocasião para fazer praça da raríssima distinção.

 

Azáfama

 

Palavra ao gosto do General Moreira, ele a utiliza para designar a agitação reinante na casa do Grajaú naquela última Quinta-feira do mês de janeiro de 1941, data da sessão da Àcademia Brasileira de Letras, a se iniciar às dezessete horas, na qual os trinta e nove Imortais deviam eleger o sucessor do poeta Antônio Bruno, falecido havia pouco mais de quatro meses. Acontece, em eleições extremamente disputadas, nenhum candidato obter o quorum indispensável. Em caso de candidato único, jamais sucedeu.

 

   Azáfama! Dona Conceição não conhecia o termo mas, ao ouvir a explicação do lingüista quase Imortal, concorda: trabalheira igual jamais enfrentara em toda a sua vida de serva da cunhada e do irmão, e de casada. Trabalheira infernal, responsabilidade medonha. Anda pela casa, barata tonta - pareces uma barata tonta, comentou o General ao vê-la aflita -, dando ordens, cobrando tarefas. Surge na copa, onde Cecília e Sabença descascam frutas para o ponche, abacaxis, maçãs, peras, laranjas, uvas e, quando a sós, trocam beijinhos dia feliz!

   - Vocês acham que virão mais de cinqüenta pessoas?

   - Cinqüenta? Bote gente nisso, dona Ceição. - Sabença aprecia os diminutivos e as abreviações, sinais de estima e intimidade:

   - A senhora ainda não se deu conta da importância da Academia Brasileira. Fazer parte da Ilustre Companhia é a consagração máxima a que um homem de letras pode aspirar. Conte com cem pessoas, daí para cima.

   - O jeito é aumentar a encomenda de coxinhas e empadas na panificação de seu Antero. Pedir mais vinte de cada. Telefone, Cecília.

   - Deixe que eu me encarrego, dona Ceição.

 

   Pessoa mais prestativa esse senhor Sabença. Se Cecília tiver de se juntar com  alguém-mesmo que queira voltar para o marido, ele não vai aceitar e tem razão -, que seja com seu Claudionor: não é menino, deve andar pelos quarenta, ganha born dinheiro como jornalista e professor, separado da mulher que arribou com outro, um namorado antigo, três meses após o casamento; Cecília pelo menos esperou completar um ano. Sem contar que, apenas quarentão, seu Claudionor já pertence a uma Academia. Academia de segunda, no dizer de Moreira; mas isso ele diz agora. Antes de receber a comissão de Imortais bem que ele queria entrar na outra, andava atrás do senhor Sabença, doidinho.

 

    Mas não é hora de pensar no destino de Cecília nem nas qualidades de seu Claudionor, será o que Deus determinar! Sabença volta do telefone, missão cumprida. Dona Conceição, antes de partir para o quartel-General da cozinha, exclama:

    - Que despesa! Será que compensa?

 

   Na cozinha, fritam montanhas de bolinhos de bacalhau e de pastéis. Três ajudantes, à base de polpudas gratificações, duas primas e uma cunhada vieram auxiliar Eunice, fiel pau-para-toda-obra a serviço da família Moreira desde tempos imemoriais. Uma delas, especialista em doces, se encarregou de preparar quindins, fios-de-ovos, olhos-de-sogra, bom-bocados, brigadeiros. Dona Conceição, ao passar, mastiga um quindim, está uma delícia. No forno, o presunto enorme; prontos, o peru e o pernil de porco. Seu Arlindo anda às voltas com as bebidas. Garçom recomendado por um vizinho festeiro, chegou logo após o almoço, cobra caro mas é eficiente - dona Conceição não sabe se deve ou não descontar do pagamento a taça de cristal que ele quebrou ao lavar os copos. Prejuízo material e sentimental: a taça, presente de casamento, fazia parte de uma dúzia que ficara incompleta. Além do ponche, dos refrigerantes e da cerveja dois barris de chope dos pequenos -, três garrafas de uísque escocês e duas de conhaque francês, custaram horrores! Exigência de Cecília, a par dos maus hábitos dos acadêmicos:

 

   - Uísque e conhaque não podem faltar... - não faltavam na garçonnière de Rodrigo, estrangeiros. - E nada de uísque nacional e conhaque de alcatrão...

 

   Dona Conceição punha as mãos na cabeça mas, que fazer? A conta no Banco, onde as economias amassadas no correr dos anos rendiam juros, sofreu um rombo sério. Cecília exigira que os vestidos para a noite após a eleição, quando receberiam os parabéns, e para a grande noite da posse, daí a uns três meses, fossem confeccionados por dona Dinah Amado. Informadíssima sobre os bastidores da Academia, Cecília a escolhera por sabê-la costureira das senhoras de vários acadêmicos. Quatro vestidos, dois chapéus, uma bolada de dinheiro ;dona Dinah arrancava o couro das freguesas.

 

   Dona Conceição abandona a cozinha, dá instruções a Cosme, antigo ordenança do General, retirado das atividades militares, exercendo profissão menos nobre porém melhor remunerada, a de bicheiro. Requisitado desde a antevéspera, para serviços pesados: carregar engradados, buscar mesas e cadeiras emprestadas pelos vizinhos, encerar a casa.

   - Quero essa sala brilhando que nem um espelho.

 

   Não pode esquecer o remédio de Moreira. Na visita mensal ao cardiologista, o médico, constatando que a pressão subira ainda mais, acrescentara um comprimido aos outros medicamentos. Aparentando calma, o marido está tenso, ela o conhece - prepotente mas não grosseiro, pelo menos com a esposa e a filha. Naquele dia, a tratara de barata tonta, sinal de nervosismo.

 

   Dona Conceição aparece na copa, de repente, por pouco flagrando Cecília e Sabença atracados num chupão de dia de festa:

   - Cecília, largue essas frutas, entregue a seu Arlindo, vá ajudar Eunice na cozinha, para as moças poderem fazer os quartos. E o senhor, seu Claudionor, vá conversar com Moreira para distrair ele um pouco.

 

   Sabença lança apaixonado olhar a Cecília, Ciça o devolve a Cloclô repleto de promessas. Dona Conceição suspira: queira Deus seja duradouro, terminem se juntando, não acabe de supetão como os anteriores; ai, a cabeça de vento de Cecília!

 

   Incapaz de manter-se na espreguiçadeira, o candidato cruza o quintal de lado a lado, em passo de marcha. Sabença, mau recruta, erra o passo mas ainda assim acompanha o amigo e, quem sabe, futuro sogro. Combinam mais uma vez os detalhes para a hora solene da eleição. Sabença ficará no hall que separa a sala de chá da sala das reuniões, mantendo-se ao lado do aparelho telefônico colocado em cima de uma cômoda. Assim termine a votação, telefonará o resultado final: algum voto em branco ou a consagradora unanimidade? Talvez, em deferência ao cartão de visita, Lisandro Leite não recorra ao voto em branco. Nesse caso, o General se dispõe a esquecer os agravos do f assado e a estender a destra ao colega de imortalidade- conforme revela ao bom Sabença.

Copo e pílula na mão, dona Conceição se aproxima:

   - O remédio, Moreira. Não acha que hoje você deve tomar dois comprimidos em lugar de um?

   - Não vejo por quê. Sinto-me perfeitamente bem. - Engole o remédio, bebe um gole de água: - Quero tudo pronto e em ordem para a hora da chegada dos Acadêmicos.

   Deixa que um sorriso corte a seriedade habitual do rosto, belisca, gesto raro, a face da esposa:

   - Amanhã irei ao Pena, alfaiate oficial da Academia, tirar as

medidas para o fardão.

  

   A posse do General vai lhe custar um traje novo, pensa Claudionor Sabença, mas será dinheiro bem empregado: a mão de Cecília, o prêmio José Veríssimo e, no futuro, quem sabe... com o sogro lá dentro, trabalhando por ele... Os sonhos povoam  a casa do Grajaú onde dona Conceição se agita em meio à espaventosa azáfama.

 

O CANDIDATO AMINISTRO

 

Renato Muller Vieira, Embaixador do Brasil no México, chegou ao  Rio, em férias, exatamente na véspera da eleição. Acadêmico há cinco  anos, escolhido no quarto escrutínio de um pleito difícil, pela primeira vez tinha ocasião de votar de corpo presente. Suas vindas ao Brasil não coincidiram com as duas eleições realizadas, votara por correspondência. Também para a vaga de Bruno mandara a carta ao falecido candidato Sampaio Pereira apenas recebera seu extenso e caloroso cable.

 

   Não conhecia o Coronel a não ser de nome: nunca o vira nem lera nenhum dos polêmicos estudos políticos de sua autoria. Mas se apressara em enviar votos e congratulações por se tratar de personalidade influente no Governo, de reconhecido prestígio nos meios militares. Poderia ser decisivo para as ambições de Muller Vieira, que  estava na relação dos possíveis substitutos de Oswaldo Aranha no Ministério, caso se concretizasse a anunciada renúncia. O fato de haver servido na Alemanha depois da tomada do poder por Hitler parecia-lhe credencial de peso: deixara bom ambiente junto às autoridades nazistas, útil na circunstância atual quando a política exterior do Brasil se inclina no sentido de uma aliança com o Eixo.

 

   Poeta e romancista, poesia hermética, cabalística ficção, com meia dúzia de volumes publicados, muito estimado por certos críticos que, em meio a elogios, citavam Dostoiewski, Joyce e Kafka para explicar a angústia e a solidão presentes em suas obras; pouco lido, dado o extremo elitismo e a temática intimista: em seus romances o Brasil não existia, em sua poesia nem os mais argutos perceberam amor. Não é lido sequer pelos críticos que tanto o exaltam, afirmava R. Figueiredo Júnior (e vários outros maldizentes), críticos que, aliás, segundo o mesmo ácido dramaturgo, tampouco haviam lido Joyce e Kafka, quando muito tinham folheado traduções de Dostoiewski. A verdade é que, lido ou não, criara-se em torno de Renato Muller Vieira uma aura de gênio: seus romances e poemas refletiam, na opinião daqueles teóricos de literatura, o patético mundo atual, a violência desencadeada, não a da guerra  - cirurgia universal e necessária - mas a violência interior do ser humano.

 

   Recebera também cable do General Moreira, curto; o General pagava com seu rico dinheirinho, o Coronel usava a verba do combate ao comunismo. Respondera agradecendo a comunicação e informando estar comprometido com Sampaio Pereira. Após a morte do poderoso Coronel, mostrou-se mais gentil ao acusar recebimento de carta do agora candidato único, chamando sua atenção para a nova conjuntura e pedindo que lhe enviasse os votos. Informou que estaria no Brasil no momento da eleição e teria prazer em sufragar pessoalmente o nome do eminente General. Não disse quanto lastimava a morte do Coronel. Poderoso, pagaria o apoio com juros. As virtudes do candidato único reduziam-se às estrelas da túnica. De qualquer maneira, mesmo oposicionista, General é sempre General.

 

   Chegara disposto a aproveitar as férias para tirar a limpo a verdade sobre a renúncia de Aranha e consolidar o trabalho em torno de seu próprio nome. Contava com amigos no gabinete do Chefe do Governo. Passou a manhã e o começo da tarde no Itamaraty, de onde saiu diretamente para a Academia. Recebido com abraços e palavras de boas-vindas, na Secretaria embolsou o cheque correspondente aos jetons em atraso - mesmo sem comparecer os recebia numa deferência do Presidente - e na sala de chá houve quem o tratasse de Ministro. Lisandro Leite, não se contentando com o abraço e as boas-vindas, arrastou o colega para o vão de uma janela:

 

   - Antes que lhe falem em outro nome, quero lhe avisar que o nosso Raul Lameira será candidato...

   - O Reitor?

   - Ele mesmo. Mais do que Reitor, amigo do peito do Homem. Para quem está com um pé no estribo para ser Ministro...

   - Mas, candidato a que vaga? Morreu alguém de anteontem para ontem, enquanto eu estava no avião?

   - Na vaga de Antônio Bruno.

   - Mas essa será preenchida hoje.      

   - Isso depende...

   - Depende de quê?

   - De seu voto, por exemplo. Pode ser decisivo. Eu estou autorizado pelo Raul a conversar com você. Ele saberá ser grato.

   - Não estou entendendo nada. Fale claro.

   - Vamos para a biblioteca, lá estaremos mais à vontade.

 

A NATUREZA HUMANA

 

Ao desembarcar diante do portão do Petit Trianon, vindo de Petrópolis para a eleição, Rodrigolnácio Filho vê-se apertado pelos braços ossudos de Evandro Nunes dos Santos:

   - Felizardo, gozando as delícias da serra enquanto nós sufocamos nesta fornalha...

   De braço dado se encaminham para a Secretaria, Rodrigo pede informações sobre a marcha dos acontecimentos:

   - Então, como vai a guerrilha, El Pasionario? Quem inventou o apelido foi seu compadre Portela, aquele gozador.

   - A guerrilha vai fazer a derradeira surtida daqui a pouquinho.

   - Evandro se detém no meio do vestíbulo, retira o pincenê, risonho.

   - O inimigo está acuado, vamos liquidá-lo.

Rodrigo confidencia:

- A natureza humana é muito salafrária, seu Evandro.

- Acha?

   - Fui eu quem descobriu o General quando você e Portela estavam atrás de um com as condições necessárias. Fiz parte da delegação que foi à casa dele convidá-lo a se candidatar...

   - Eu também, Afrânio me obrigou.

   - ... li um livro que me enviou...

   - Não cheguei a tanto.

  

   - ... tive um namorico com a filha, moça galante, um pouco sensaborona... Enfim, sou amigo da família, quase parente. Contudo, voto nele somente para estar bem com minha consciência e, o que é pior, torço pela vitória de vocês, contra o pobre homem. Não há dúvida, a natureza humana é muito salafrária.

 

   - Pobre homem? Já manda e desmanda e diz que o Bruno era uma besta quadrada. Imagine se chegar a ser eleito... Olhe que seu voto pode nos fazer falta. Pensando com lógica, você vai votar contra sua consciência e não devido a ela. Raciocine...

   Rodrigo retoma a marcha para a Secretaria:

   - Vade retro!

   - Galante e sensaborona! Vá lá, pague o preço da libertinagem. Mas, por favor, não se comprometa para daqui a quatro meses: nosso candidato é o Feliciano. Você já sabia, não?

   - Votarei nele com muito prazer, se vocês ganharem.

   - Ainda duvida? Comigo aqui, ninguém troca a farda pelo fardão. Nem farda, nem batina.

   - Você é o último anticlerical do mundo...

   - Não sou anticlerical, sou materialista. Tenho muitos amigos entre os padres, não quero é que venham pregar religião aqui.

   - ... e o último antimilitarista...

  - Sou civilista, isso sim. Tenho amigos também entre os milicos, mas não admito que venham se meter aqui para enquadrar a gente... Cadeira do Exército, onde já se viu?

 

A URNA

 

Como de hábito, o Decano Francelino Almeida posa para os fotógrafos, a mão estendida para a urna na atitude de quem está depositando o voto. Após a retirada dos repórteres, as portas da»sala de reunião são fechadas.

 

   Vestido com a elegância de um lorde inglês, negro retinto, os cabelos brancos, o velho contínuo apresenta a urna ao Presidente, o primeiro a votar. Prossegue pelos membros da mesa, desce ao plenário.

 

   O número dos acadêmicos presentes é pequeno naquela última sessão antes das férias. A maioria fugiu do calor para as cidades serranas, alguns foram passar as festas nos Estados natais, ainda não regressaram. O velho contínuo vai de poltrona em poltrona, cada Imortal deposita na urna a tira de papel. O Presidente dera conhecimento, antes da coleta ser iniciada, das cartas recebidas de ausentes, acompanhadas dos votos em envelopes fechados.

 

   Entregue de volta à mesa, a urna é esvaziada. A contagem dos sufrágios vai começar. Assim termine, as papeletas serão repostas na urna e o velho contínuo as embeberá em álcool antes de riscar o fósforo para acender o fogo que as consumirá. Assim, o segredo do voto ficará enterrado em cinzas.

 

   Na sala de chá jornalistas e fotógrafos liquidam o que restou da mesa bem servida. Nas eleições disputadas, sobra gente pelas salas, na biblioteca, no hall, adeptos das diversas candidaturas, um burburinho. Eleição com candidato único não tem luta nem surpresa, não tem graça. Ainda assim compareceram alguns curiosos, entre os quais o velho mercador de livros, Carlos Ribeiro. Aguardam o encerramento da sessão para pegar uma carona até a casa do Acadêmico recém-eleito, para os parabéns e os comes e bebes. De pé, junto à cômoda onde está o telefone, Claudionor Sabença espera o instante de comunicar ao General Waldomiro Moreira a conquista da imortalidade.

 

O TELEFONEMA

 

Sentado na poltrona, ao lado do telefone, o General Waldomiro Moreira espera a chamada do amigo Claudionor Sabença que vai lhe comunicar a conquista da imortalidade. A farda de gala, o rosto grave, aparenta digna serenidade. A filha ao lado, leviana mas dedicada ao pai. Dona Conceição vai e vem, nas últimas providências. Nos trinques, as duas.

 

   Algumas visitas chegaram para aguardar a auspiciosa notícia em companhia do candidato, espalham-se pela sala: vizinhos, amigos mais próximos, alguns companheiros de caserna, oficiais que serviram com ele. Admiram as mesas bem sorridas, travessas e pratos de salgados e doces, as bandejas com o presunto, o pernil, o peru. Os íntimos sabem das qualidades culinárias de Eunice. No quintal, seu Arlindo montou o bar: os barris de chope, as poncheiras cheias, os refrigerantes e, escondidas, as garrafas de uísque e de conhaque reservadas para os Imortais e outras Excelências.

 

   Jamais o tempo decorreu tão lento, o General espera, os presentes conversam em voz baixa, de quando em quando o som de um riso. Dona Conceição mostra-se à porta, vinda da cozinha, traz uma última travessa:

   - Ainda nada?

   Nesse exato momento soa a campainha do telefone, o General estende a mão, Cecília arvora um sorriso, dona Conceição fica parada.

   - Sabença? Sou eu, sim. Então? Unânime?

   Escuta, arregala os olhos, abre a boca, a voz estrangulada:

   - O quê?

 

   O sangue sobe rosto acima, um filete entre os lábios, o General larga o aparelho, o corpo se dobra para a frente, na cadeira. Dona Conceição deixa cair a travessa, bolinhos de bacalhau rolam pela sala. Corre para o marido, se abraça com ele.

Sons distantes e repetidos, quase inaudíveis, no telefone: alô!, alô! Cecília atende, a voz desfeita:

   - Venha depressa, Papai teve uma coisa...

   Morreu na hora errada, disse dona Conceição tempos depois. Deixara passar a hora certa, a do outro telefonema, quando se soube candidato único e se considerou eleito.

 

A NOTÍCIA

 

Afrânio Portela deposita o chapéu e a bengala, a empregada está à

espera, com o recado:

   - O doutor Hermano pede que o senhor telefone para ele imediatamente, é assunto da maior urgência.

   Caminhando para o gabinete, mestre Afrânio sorri a dona Rosarinho que está vindo a seu encontro, ansiosa pelo resultado. Enquanto aguarda que o Presidente atenda, beija a esposa e promete satisfazer-lhe a curiosidade:

   -Já te contarei tudo. - Atende à voz do outro lado do fio: Sim, Hermano, pode dizer, estou ouvindo.

   Escuta, a mão apoiada no ombro de dona Rosarinho. A mão se contrai, a exclamação escapa:

   - Porra!

   Desliga, fica parado, em silêncio. Dona Rosarinho toma-lhe o

braço:

   - O que foi, Afrânio?

   - Matamos o General.    

  

O SEGUNDO

 

O avô entra em casa, um neto de cada lado.

   - Conta, avô.

   - Depressa, meu bem, estamos doidos para saber. Evandro Nunes dos Santos senta-se em sua cadeira preferida, acende o cigarro. Enquanto fala, brinca com o pincenê:

   - Teve dezesseis votos, faltaram quatro para obter o quorum. Doze se abstiveram, onze votaram em branco. Acabou-se essa história de cadeira cativa na Academia. Bruno terá o substituto que merece, o Feliciano.

   - Você não acha que os poetas podiam ter cadeira cativa, meu bem? - Lembra Isabel, insaciável leitora de poesia.

   A campainha do telefone, Pedro atende:

   - Vosso Presidente, avô. Acho que deseja lhe felicitar, está muito excitado.

Evandro toma do fone:

   - Estamos de... - não completa a frase, fica ouvindo: - Não me diga. Lastimável, sem dúvida. Triste, de acordo. Mas, afinal, guerra é guerra.

   Repõe o aparelho, comunica aos netos o sucedido ao General:

   - Ao saber da notícia, caiu fulminado. Morte instantânea.

   - Enfarte?

   - Podes chamar assim, se quiseres, Isabel. Para mim, foi morte

matada.

   - O segundo, avô. Não esqueça o Coronel...- relembra Pedro.

- Para uma briga, foi uma briga e tanto, avô.

 

DOIS VELHOS LITERATOS

 

Dois velhos senhores literatos de renome, democratas, um apenas liberal, Afrânio Portela, o outro com laivos anarquistas, Evandro Nunes dos Santos, bebericam na Colombo, ao fim da tarde, no dia seguinte ao da eleição. O olhar de mestre Afrânio se eleva até a sacada do atelier de Madame Picq, de onde, em tempos passados, Rosa flertava Antônio Bruno. Ela já não se debruça no balcão, inaugurou  seu próprio atelier, um andar na Rua do Rosário, mandara um cartão oferecendo os préstimos a dona Rosarinho.

    - Comecei a escrever um romance, compadre. Depois de amanhã subo para a chácara em Teresópolis, vou botar papel na máquina.

   - Já era tempo.

   - Pensei que  A Mulher no Espelho tivesse sido o último, perdera o gosto pelos enredos dessa gente que vive nos salões e nas garçonnières e Lençóis ficou muito para trás, não dava para criar outra Maluquinha.

   - Mas eu li um conto, não faz tanto tempo assim... Até a Colombo entrava na história, me recordo muito bem.

   Mestre Afrânio sentiu-se envaidecido ao ouvir Evandro falar do conto, não sabia que o compadre o houvesse lido e guardado memória de detalhes:

   - O Chá das Cinco, publicado há uns quatro anos. Inspirado num caso que Bruno manteve com uma costureirinha do atelier ali em frente, no segundo andar daquele prédio. Pois vou voltar a ela...

   - A quem, à costureira?

   - A ela, sim, agora a conheço bem, no conto falsifiquei sua personalidade por completo. As personagens serão ela e três outras amantes de Bruno. Todas quatro estavam no velório. Aliás, o romance começa no velório.

  

   - Foi ali também que a nossa peleja começou, com a entrada do Sampaio Pereira, te lembras? Bateu continência para o defunto, a fotografia saiu nos jornais para ninguém duvidar. - Evandro pega o cálice: - Que diabo vou fazer agora? Tu tens o romance que vai ocupar teu tempo em Teresópolis. Vou sentir falta da guerrilha.

   - Não ias começar tuas memórias?

   - A guerrilha pode dar um bom capítulo... O enterro do General foi hoje pela manhã, não foi? - Levanta o cálice e o esvazia.

   Também Afrânio Portela bebe o último trago, antes de responder. Os cálices erguidos, parecem propor um brinde.

   - Foi, sim. Enterraram-no às onze horas. Rodrigo compareceu às exéquias, correram com ele.

   Chama o garçom, pede a conta. Olha para o compadre Evandro Nunes dos Santos, nos lábios aquele sorriso de malícia. Conclui voz macabra e afetuosa:

   - Assassino!

   Caminham os dois velhos literatos, em passos medidos pela rua contentes da vida. Dirigem-se à livraria, para o vício de folheai volumes, saber das últimas novidades saídas do prelo, comentar sucessos e fracassos, adquirir por baixo do balcão livros estrangeiros de venda proibida pela ditadura.

 

A MORAL DA FÁBULA

 

A moral? Veja: em toda parte, pelo mundo afora, são as trevas novamente, a guerra contra o povo, a prepotência. Mas, como se comprova nesta fábula, é sempre possível plantar uma semente, acender uma esperança.

 

                                                                                            Jorge Amado  

 

                      

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