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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FARINHA ÓRFÃ / José Mauro de Vasconcelos
FARINHA ÓRFÃ / José Mauro de Vasconcelos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

EM BREVE OS JABURUS que faziam ronda ao vento da tarde, os magoaris e as garças, pousariam na beira das praias brancas do Araguaia para receber o frio da noite. E deveriam descer tão suave que nem assustariam os jacarés modorrentos.
Ciganos já se agrupavam nas ramas dos sarões para fazer o mesmo, resmungando num vozerio ensurdecedor se acaso qualquer coisa os incomodasse.
O sol se punha depois de uma jornada quente e cansativa. Mas mesmo assim Adão Jesus na sua canoa, zingava na beira das praias. Sorria movimentando os braços emagrecidos e achava que aquele momento era o maior retrato de Deus. A hora da calma, da procura do pouso. Do foguinho feito para a janta. O banho no rio para refrescar a fadiga de um dia bem remado. Depois dormir, abrindo os olhos e vendo o farinhol de estrelas, fechando-os em seguida para a paz do sono.
- Vô, por que a gente num fica de uma vez nessa praia?
- Espere, Nenéa. Pode ser que sim. Mas vamos até a ponta porque sempre a gente encontra mais lenha seca e encalhada na areia.
A menina franzina voltou à posição antiga da paciência.
O papagaio sentindo o vento frio se encolhera todo na beira da ubá e enfiava a cabeça sob a asa. Quando ouvia barulho, punha a cabeça para fora. Acabada a curiosidade voltava a se agasalhar. Lauatári, a cadelinha magrela nem se importava. Continuava enrodilhada em cima das cobertas. Chegando na praia dava uma alegria nela e desembestava a correr, latindo contra tudo. Pior ainda se encontrava ninho de gaivota com pintinho novo. Aí que o barulho se dana com os camiás e as gaivotas mergulhando aos gritos para afastar o inimigo. Mas Lauatári era boazinha. Só queria mesmo era brincar e se alegrar, saindo da prisão da canoa.

 


 


Adão Jesus puxou mais a velhice das suas costas e empurrou a vida pra frente. Ia distraído de tudo. Fazia tempo que a sua vida era aquela caminhada comprida.
Entretanto, quando Adão Jesus alcançou a ponta da praia, seu peito soltou um gemido tão grande que Nenéa, o papagaio e Lauatári voltaram-se para ele.
Adão Jesus tinha tirado o chapéu e o apertava contra o peito. Seus cabelos brancos revoltavam-se ao vento. Benzeu-se e Nenéa pôde observar que os seus olhos criavam um brilho desusado. Que o rosto de seu avô parecia ter remoçado apesar da barba grande e da magreza das suas carnes.
Lauatári ficou toda eriçada e o papagaio comentou coisas incompreensíveis.
- Que foi, Vôzinho?
- Lá.
- Aquela árvore grande na curva?
- Árvore grande, sim. É a pedra. É isso que eu estou procurando todo esse tempo. Todos esses anos. Vamos acampar lá.
E Nenéa ficou feliz. Porque precisava variar um pouco no jeito de dormir. Era às vezes ruim ficar embu-çada na praia, quando vinha vento e fazia muito frio. Quase não dava para respirar. Precisava cobrir a cabeça. E no amanhecer gelado das praias, acordava com os cabelos empastados de areia.
A árvore era bonita e a barreira bastante alta.
Adão Jesus voltou ao comum de ser. Contudo abandonara a zinga e se apossara do compasso do remo atravessando o rio.
E quanto mais se aproximava da árvore ia descobrindo que superava expectativa, e pelo arredondado da copa, via-se logo que era um piquizeiro macho em plena forma e beleza. E a pedra, crescia ainda mais porque era cercada de outras menores. Já se podia ouvir o cantar das águas se debatendo contra a corredeira e fazendo música.
- Precisa cozinhar de novo, Vô?
- Não, minha netinha. A gente requenta o feijão que sobrou no caldeirão e come mais farinha de puba.
E Adão Jesus encostou a canoa e pulou na beira da barreira.
- Segure a canoa pela corda, Nenéa. E vamos procurar uma raiz bem durona para amarrar bem. Não deixe a cachorra saltar antes do tempo.
Subiu a barreira para sondar, enquanto Lauatári, parecendo compreender, permaneceu ao lado da menina.
Antes que a boca da noite chegasse de todo, Adão Jesus regressara ao barco.
- Vamos começar a levar os trens de dormir e de comer. O resto a gente apanha amanhã. Aqui, o lugar é alto e não tem perigo de jacaré mexer na canoa.
Subiram lentamente. Nenéa acalmou a aflição de Lauatári e carregou o papagaio no ombro.
• • •
O acampamento ficou pronto antes da noite amadurecer inteira. Fácil porque apenas uma relvazinha suave e areia fina por baixo, não exigiam limpeza nem roça.
No fogo que sobrou da fogueira feita para esquentar o de comer, Adão Jesus aumentou lenha e fizeram uma coivara-banzeira protegida por umas pedras para render durante o sono da noite.
Quando Nenéa deitara-se nas suas cobertas abrigando Lauatári a seu lado, Adão Jesus desenrolou sua esteira e aprontou sua coberta.
E Nenéa viu seu avô se ajoelhar e olhar o céu de tantas estrelas, se benzer e falar com voz contrita:
- Obrigado, Senhor meu Deus. Aqui está a Árvore que o Senhor me deu. Ali embaixo a Pedra que também é sua. Obrigado por ter me dado um lugar tão bonito para morar. Aqui vou fazer minha roça e meus plantios. Aqui vou construir o meu rancho todo bem-feitinho com coberta de palha nova. Todas as noites rezarei ao Senhor agradecendo. E prometo que só abandonarei tudo isto quando o Senhor me chamar para uma grande viagem em Sua companhia.
Deitou-se e sentiu o chão mais suave do que as areias do Araguaia. Sentia um prazer há muito tempo não sentido em seu coração.
- Vô!
- Que é, Nenéa?
- É bom a gente dormir assim debaixo dessa árvore grande, não é? Parece que a gente está debaixo da casa maior do mundo.
- Esse é o lugar mais bonito que eu já vi. E olhe que pangolei muito pela vida. E além do mais, é meu.
- Não tem nem mosquito nem faz muito frio...
Calaram-se um pouco, mas Nenéa estava curiosa demais.
- Vô, como é que você sabe que Deus lhe deu tudo isso?
- A gente sabe com o tempo. Um dia você vai saber quando Deus fala baixinho no peito de quem O respeita. Agora vamos dormir.
- Tou sem sono, Vô.
- Fique contando as estrelas entre as folhas da árvore que você dorme.
Depois se lembrando recomendou com prudência:
- Mas conte só com os olhos, porque senão faz mal.
Nenéa não se interessou muito pelo conselho. Ao contrário, apertou Lauatári entre os braços e cantou uma canção de nana que acabou por embalar as duas.
• • •
De dia era tão bonita a paisagem vista ali daquele alto, tão bonita como à noite. Tudo ali era igual em qualquer hora. Por que duvidar do bom gosto de Deus?...
Quando as pedras acabavam surgia uma pequena praia quase escondida pelo sarão verdinho. A areia estava sempre desenhada por patas de galinholas, saracuras e também de garças pescadeiras.
Do futuro rancho até a praia era um pulo. Facinho, facinho de Nenéa trazer a mobília de cozinhar para lavar. Praia boa, de água limpa e corrente, não havendo nem perigo de piranhas piranhar.
Precisava de vera, fazer muita coisa. Mas tinha tempo, porque dali não sairia mais, nunca mais.
Quando cortasse os paus da pindaíba para fazer os mourões, quando limpasse o mato lá bem dentro para fazer a roça, quando trouxesse toda a palha de palmira para cobrir o teto...
Aí Adão Jesus riu na boca quase sem dente. Tinha tanto quanto que melhor seria fazer tudo com calma. Muito tempo antes de aparecerem as primeiras águas aprontava tudo. Era então de se ver a beleza do Rio enchendo-se todo. Daquele bruto Araguaia, crescendo, crescendo. Pela prática que tinha de ser sempre vizinho dos rios, sabia que a água mesmo na maior enchente não invadiria o rancho.
Todo trabalho que praticava vinha mais leve porque a faca e a foice, a pá e a enxada dos sonhos ajudavam a maneirar o serviço.
- Vô, tou ouvindo barulho de remo e de canoa. Parou os seus pensares, limpou o suor do rosto com as costas da mão e assuntou.
- Vem mesmo. É de índio. Pelo ritmo de remada é de índio.
Ficaram de cócoras ao lado de Lauatári que medrozinha nem latia, observando o rio.
O índio vestindo só uma calça velha e com os cabelos muitos longos, sungou a canoa na areia e veio devagar, olhando e olhando.
- Bom dia, índio.
- Bom dia, homem.
O índio ficou também de cócoras olhando o rio demorando a conversar.
- De quem é essa menina?
- É minha neta.
Aí o índio olhou bem nos olhos dele, desconfiado.
- É mentira! Dizia sem se zangar.
- É sério.
- E cadê a mãe dela?
- Morreu.
- E cadê o pai dela?
- Morreu.
- Ah! Tá bem. Tem cigarro?
- Só um pedaço de fumo grosso. Dou um pedaço pra você e depois você fabrica cigarro.
- É bom, porque tenho muita paia de milho na ubá. Voltou a espiar as águas corredeiras do rio batendo na pedra grande.
- Cumo chama?
- Adão.
- É mentira.
- Por quê?
- Porque só conheço dois Adão. Um lá em cima, morador no São Pedro e outro Adão no fim da aldeia de Maçaúba. E Adão lá e de cá são pretos.
- Pois tem branco que se chama Adão. Eu sou Adão Jesus.
O índio repetiu três vezes Adão Jesus e no fim se convenceu que era um nome bonito.
- E você, cumo chama?
- Curumaré Sarikini Arutâna Uraíde Aratuma Nikiri.
- Tudo isso? Não é mentira?
- De vera, não. índio tem muito nome grande. Mas índio da aldeia só fala o primeiro. Curumaré.
Calaram-se e o sol forte batia no rio e jogava sombra de folhas sobre a pedra.
- Pedra bonita!
- É. Pedra bonita.
- Menina, cumo chama?
- Nenéa.
- Curumaré troca pedra bonita pela menina, quer? Adão Jesus sorriu porque ele fazia aquela proposta, não porque quisesse a menina, mas só para agradar.
E Nenéa nem ficou com medo quando ele alisou os seus cabelos encaracolados e disse que ia pedir para a mulher fazer dois brincos de pena para enfeitar os seus ouvidos.
Aí os três se levantaram e Lauatári veio cheirar sem desconfiança as velhas calças do índio.
- Pois olha amigo Adão. Vamos lá na minha canoa que eu lhe dou dois peixes pra comer.
Durante a caminhada nada disseram. Mas ao se abaixar para pegar um pacu e um tucunaré, Curumaré perguntou:
- Mas você cumpadre Adão, está só passando?
- Não, cumpadre Curumaré. Eu vou ficar ali. Fazer o meu rancho perto mas não embaixo da árvore pra que quando vente não caia bolota de piqui sobre o meu teto e fure.
O índio ficou tão espantado que se sentou no chão.
- Mas não pode, cumpadre.
- Por quê?
- Você não conhece muito daqui pra cima, não é?
- É.
- Pois, não pode. É terreno de índio. E os home lá no Serviço não deixam não.
- Alguém já tentou? Alguém como eu?
O índio balançou a cabeça porque nunca lhe passara tal idéia.
- Não.
- E por que índio não fez casa ainda num lugar tão bonito?
- Porque é lugar bonito só para se ver. Lugar bonito pra morar é lá na aldeia, onde nasceu meu pai, minha mulher e meus filhos.
- Fica longe?
- Mais de uma légua de subida.
Enfiou o chapéu na cabeça e sentou-se bem no fundo da canoa pegando o jacumã. Mesmo assim continuou com as pernas mergulhadas sem soltar a montaria.
- Quando dá fé, cumpadre Adão quer morar aqui mesmo?
- Se quero. Foi Deus que me indicou essa Pedra e essa Árvore.
- Mas antes de fazer tanto trabalho, era melhor pegar no remo e dar uma conversa com o chefe. Se quer falo na frente.
- Fale se faz favor, para adiantar a empresa. Mas vou lá.
O índio deu adeus com a mão e lá se foi remando sem olhar uma vez para trás.
Adão Jesus veio caminhando muito não, quase contrariado, mas quando chegou lá em cima deu com a beleza da Pedra conversando com o Rio. Deu com o vento se balançando nas folhas do piquizeiro, sorriu. Tinha a certeza que Deus não querendo criar cacunda não ia tomar o presente dado.
• • •
A grande aldeia era Raumalá-Mandô-Dessé. Talvez a maior aldeia de caboclo que seus olhos viram.
Encostou a canoa com todos os seus habitantes: Nenéa, Lauatári e o papagaio.
- Não saia da canoa. Espere aí.
Um mundão de gente, tudo sem roupa. Desde os menininhos até gente grande não se vestia não. Nenéa no começo nem queria olhar. Virava o rosto para o outro lado do rio. O coração da menina batia muito. Mais ainda o de Lauatári. Ela sabia que os índios eram amigos, não iam malinar, mas tinha medo.
Ficou assim pouco tempo. Porque logo vieram as crianças marronzinhas de sol e entraram nágua e brincaram e falaram com ela e mexeram com o papagaio e ficaram todos amigos.
Enquanto isso Curumaré e outros índios conduziam Adão Jesus até a casa do Serviço. Tudo estava muito limpo de mato e bem cuidado. Casa de branco era bem pouquinha, mas do lado a aldeia era aquela montoeira de cabanas todas parecidas, umas com as outras.
Então ele subiu dois pequenos degraus e ficou sentado esperando num tosco banco de madeira.
Curumaré o encorajou.
- Tenha medo não, Adão. O homem é muito bonzinho.
Pouco depois, pautando os dentes apareceu o Chefe do Serviço. Era um mulato bem nutrido e simpático.
Estendeu a mão para Adão Jesus que se levantou cheio de respeito.
- Se sente. Se sente. Já me contaram, velho, qual é o seu problema e eu francamente não sei resolver. Nunca aconteceu um caso assim antes.
- Pois é, doutor. Toda a minha vida eu procurei um recanto assim. É tudo que eu desejei de mais. Se o senhor não me deixa ficar, eu acho que desanimo. As forças estão começando a fraquejar. Mesmo minha netinha vive cansada, reclamando de tanta pangolação.
Falou quase sem respirar com medo que o chefe o mandasse embora de imediato.
Mas ao contrário, recebeu em troca um sorriso.
- Tá bem. Eu tinha pensado que poderia convidar o senhor para trabalhar no Serviço.
Fez uma pausa e analisou o começo de velho que estava a sua frente.
- Mas não vale a pena, sabe? Melhor o senhor trabalhar o seu próprio serviço. Mesmo porque os pagamentos só saem com um atraso de oito meses, quando saem... Desanima qualquer cristão.
E houve um silêncio dolorido. Os índios fitavam Adão Jesus e Adão Jesus devorava a boca do chefe, de onde sairia sua sentença.
E a coisa demorava que demorava...
O homem cocou a cabeça de cabelos cortados rentes e cheio de caminhos de ratos e decidiu:
- Sabe de uma coisa? Se o senhor quiser ficar que fique. Mas aviso: não vou ficar tomando conta dessa joça a vida inteira. Dois anos é castigo demais para qualquer cristão. Fico até quando terminarem as águas. Quer dizer, o senhor tem oito meses para se organizar de moradia. Agora se o outro chefe que me substituir não permitir a sua permanência lá, paciência.
Levantou-se. Estendeu-se a mão com um sorriso.
- Tá tudo certo. Agora vou tirar uma soneca porque passei uma manhã danada no sol brabo.
E foi aquela alegria toda. Todo mundo ficou feliz. Agora tocava Adão Jesus trabalhar e muito. Esquecer que o tempo passava.
De vez em quando, um ou outro índio aparecia lá para dar uma demãozinha. A moçada cortava palha e batia. O rancho foi crescendo, criando teto e mais sombra.
Enquanto isso foi aumentando sua amizade com os caboclos. Criando raízes com as outras árvores vizinhas, mas não tão lindas como o Piquizeiro que Deus lhe dera.
A casa ficou de uma beleza só e lá de cima podia descansar na rede todo pôr do sol.
Esperava a passagem das canoas pesqueiras e os índios sempre lhe davam peixe e banana. Nenéa começara até a perder aquela magreza franzina.
Depois fez sociedade com Curumaré no plantio da cana e do milho, da mandioca e da batata.
Estava feliz. Mesmo quando veio a cheia e as praias viajaram. Mesmo quando o rio cresceu e diminuiu o tamanho da Pedra Bonita e aumentou o barulho criando belezas de rodamoinhos; mesmo com os mosquitos, com o aumento dos grilos serrando, dos botos bufando, dos sapos e rãs coaxando, a vida era linda e calma...
Mas quando passasse a chuva?
E a chuva passou. E o rio baixou. E chegaram novas praias e o homem bonzinho foi embora com todo o seu sorriso.
• • •
No mesmo terraço, cercado dos mesmos amigos, sentado quase no mesmo lugar, mas o chefe era um magro que nem sequer procurava compreender.
- Sabe, Doutor, é a Pedra que Deus me deu. É a Árvore também Dele. Pergunte a todos, eu não sou ma-lino. Só quero viver o resto da minha vida e acabar de criar a minha netinha.
- Não, meu velho, não dá. Tem uma lei no Serviço que proíbe branco construir em terras de índio. É a lei. E a lei foi feita para ser cumprida.
- Mas doutor, o meu rancho que deu tanto trabalho? E a minha roça de sociedade com o meu cumpadre Curumaré?
- Não pedi que o senhor fizesse, pedi?
E virou-lhe as costas penetrando na Casa Grande deixando todo mundo desanimado. Dava até vontade de chorar.
Curumaré abraçou Adão Jesus e foi com ele até o porto.
- Faz mal não, cumpadre Adão. Eu tenho um rancho meio usado na Barreira da Cotia. Eu ajudo com a minha turma a mudar os seus teréns. Você fica lá. Usa um resto de roça que eu fiz ano passado. Depois volta.
- E como sabe que eu volto?
- Sei mesmo. Tudo que é índio vai fazer feitiço. E esse homem ruim vai embora logo.
E foi dois dias depois que ajudado por uma porção de canoa, levou todos os seus cacarecos para longe, três léguas rio abaixo.
Só tinha notícias da sua Árvore e da sua Pedra quando algum índio saía mais longe para pescar e parava no seu novo rancho velho. Acontecia que quando a saudade era demais, zingava sua canoa para ver de longe o teto do rancho cercado de capim em volta. E a sua Árvore cada vez mais alta e bonita e a Pedra se azulando toda ao sol da tarde.
E como falara Curumaré, o homem não agüentou nem um ano.
• • •
O terraço e o banco. Outro homem. Um chefe gordo e muito sério. O rosto redondo indicava bondade. E por trás dos óculos de vidro grosso os olhos aumentados diziam que podia ficar. Isso era o coração cochichando, aumentando suas esperanças.
- Sabe, doutor, ali está a Pedra, a Árvore que Deus me deu. Que custa, doutor? Minha netinha está crescendo e eu estou velho para sair daqui. Só quando Deus me chamar para uma grande viagem com ele.
- Vai, meu velho, vai em paz. No tempo que eu demorar por essas bandas, tudo é seu como Deus lhe disse.
E toca a capinar tudo. E a fazer novo teto e embelezar a vida. Olhar as tardes e ganhar peixe e banana. E foram dois anos de felicidade quase.
• • •
- Já me contaram o seu caso, velhinho, mas não dá. A lei não deixa.
- Mas doutor, ali está a Pedra e a Árvore de Deus. Ali minha roça de cana pegou fogo e o meu papagaio foi embora.
- Não dá. Não dá mesmo.
E de novo a Barreira da Cotia com o rancho mais velho o recebeu na sua tristeza grande. E mais três anos se passaram.
• • •
Já meio desanimado de tanto esperar Adão Jesus foi contando tudo. E o homem que o fitava era baixinho com a roupa sempre sobrando como se não lhe pertencesse.
- Doutor, não deixe eu voltar para a Barreira da Cotia.
- É a Árvore.
- É a Pedra de Deus.
- Aqui perdi minha roça com o fogo.
- Aqui meu papagaio foi embora.
- Aqui os jacarés comeram minha cadelinha Lauatári.
O homem cruzou os braços.
- Pois que fique meu velho. Ora a lei. Lei num fim de mundo desses? Só para prejudicar um velhinho que não faz mal a ninguém. Pois que fique com tudo que Deus ainda lhe deixou.
• • •
Verdade que aqueles três anos passaram tão depressa. Agora a Árvore estava plena e a Pedra cada vez mais bonita.
- É a Pedra.
- A Árvore de Deus.
- Aqui meu papagaio foi embora.
- Aqui meu canavial pegou fogo.
- Aqui os jacarés comeram minha cadelinha Lauatári.
- Aqui minha canoa rodou o rio.
E lágrimas correram pelo seu rosto encarquilhado.
- Aqui eu enterrei minha netinha Nenéa que morreu de febre.
O homem balançou a cabeça.
- O Brasil tem que ir pra frente! E comigo não tem moleza. As leis precisam ser cumpridas. Não é por mim, velhinho, mas tenho um cargo sobre a minha responsabilidade...
E os dois velhinhos: Adão Jesus e Curumaré baixaram na canoa do índio até o rancho quase caindo na Barreira da Cotia.
• • •
Que adiantava reclamar? Não era Deus que tirava o seu presente. E sim a maldade dos homens. Mas no coração guardava a imagem do ranchinho que logo, logo precisaria mudar a cobertura. Revia de olhos abertos a grandiosidade da sua Árvore derramando sombra e frescor sobre tudo. E a Pedra onde Nenéa gostava de ficar pescando horas inteiras. Conversando seus sonhos até.
Que adiantava pensar nisso tudo? Mesmo se quisesse pegar a canoa, para ver a sua paisagem de longe, não tinha mais canoa. E os pés cansados e as pernas trôpegas não ajudavam tão grande caminhada pelo mato a fim de realizar os seus desejos.
Uma tarde Curumaré veio de lá da aldeia e subiu também com dificuldade os degraus cortados na barreira. Equilibrava-se pior porque as mãos traziam peixe frito e uma penca de banana.
- Ei, cumpadre Adão!
Como não obtivesse resposta foi andando. Entrou no rancho e viu que o velhinho dormia sossegado. Sentou-se a seu lado na esteira e esperou. Quando Adão Jesus abriu os olhos, esfregou-os bem.
- Ah! é você cumpadre. Meus olhos custam a reconhecer as pessoas. Aceitou a mão do velho índio e sentou-se.
- Pra você.
- Obrigado.
- Sabe, cumpadre Adão, trago novidade. Desceu muita gente de motor. Eles acabaram ontem um campo grande, muito grande. Maior que qualquer praia. E amanhã vem um pássaro grande que disseram que se chama avião. E vai chegar o Chefe mais poderoso de todos. E todo mundo disse que se você pedir, ele vai deixar você ficar para sempre na Pedra e na Árvore.
Adão Jesus mal podia sorrir.
- Mas que adianta agora tudo isso?
- Adianta sim. O pé de piqui está tão cheio de flor nova para esperar você. Nunca ele ficou tão bonito assim. E a Pedra está cercada de ramagem de mururê tudo também de florzinha roxa.
- Não posso mais ir.
- Vai sim. Eu vim dormir aqui e amanhã a gente sai bem cedinho.
E de fato saíram bem cedinho. Curumaré que era menos velho remava lentamente. Mas chegaram. Chegaram depois de meio-dia. Muito mais. Já tinham comido o churrasco e todo mundo ria no terraço.
- Meu Deus o que é aquilo?
Os dois velhinhos vinham subindo a ladeira, apoiados na mesma velhice de amizade. Curumaré falou:
- Agora, você vai. O chefe grande está esperando. Ir como? O vento forte quase não deixava. Seus olhos confundiam a Casa Grande ao longe. Mas foi andando. O vento batia as pontas esfiapadas da sua calça contra as pernas magras. A camisa quase se soltava do corpo desabotoando-se toda. E o peito magro mostrava até as costelas salientes.
O coração o empurrava para frente: Vai, Adão Jesus.
Do terraço falaram:
- É o velhinho que vem.
E o chefe comovido desceu os degraus e veio em sua direção. Forçando a vista e dominado pela emoção Adão Jesus enxergou o rosto do doutor. E ele era tão moço e tão forte.
Quis dizer qualquer coisa mas a voz faltou. Ele então não agüentou o seu próprio peso caiu de joelhos e para que o vento não o derrubasse abriu os braços em cruz. Mas a voz não vinha.
Só pôde levantar a vista e mostrar o seu rosto inundado de lágrimas. E o homem parecia tão grande como o próprio Deus.
- Já sei meu velhinho.
- É a Árvore.
- É a Pedra de Deus.
- Aqui o fogo devorou o seu canavial.
- Aqui seu papagaio foi embora.
- Aqui os jacarés comeram a sua cadelinha.
- Aqui sua canoa rodou no rio.
- Aqui você enterrou a sua netinha...
Fez uma pausa e ajudou Adão Jesus a levantar-se.
- Não é assim, meu velhinho?
Balançou a cabeça tentando limpar as lágrimas do rosto.
- Pois bem, de hoje em diante tudo será seu, somente seu. A Árvore e a Pedra. O rancho e uma canoa novinha que mandei comprar para você. Nunca mais haverá uma lei que tome aquilo que Deus lhe deu, está bem?
E os índios amigos levaram Adão Jesus e o sentaram na canoa nova e o deixaram viajar com um menino porque a distância era muito grande.
E no dia seguinte iriam até o seu rancho para fazer uma festa.
• • •
Cedinho, bem cedinho, Curumaré Sarikini Arutâna Uraide Aratuma Nikiri já viajava na sua canoa para ajudar o amigo a receber os festeiros.
Chegou na prainha e estranhou que a canoa não estivesse ali amarrada.
Foi subindo ansiosamente, com a ligeireza que as suas velhas pernas ainda permitiam.
- Ei! cumpadre Adão!
Nenhuma resposta.
- Está dormindo ainda.
E parou extasiado ante o sol do amanhecer que tornava a Árvore de Deus mais florida e a Pedra bonita mais azulada.
E tudo aquilo agora era do amigo. Ninguém ia tirar mais. Sorriu e entrou no rancho. Tudo vazio. Tudo vazio e em silêncio.
Então Curumaré ficou olhando o mistério do Rio Araguaia.
E a verdade veio aos poucos sem muita dor:
Adão Jesus tinha ido fazer a grande viagem em companhia de Deus.

 


BÔCA-DE-SELVA
SEU TRINDADE FOI falando, repetindo a mesma coisa, o mesmo comentário, com a mesma voz fanhosa de todos os dias e de todas as noites.
- Nessa hora é que é dureza, não Doto? A gente pode passar dois mil e duzentos anos por essas bandas que não se acostuma.
Sorri sem nada responder. Todo mundo sabia daquilo, naquela hora. No momento da boca da noite, varando o espesso véu da chuva e o embaçado negrume da noite que vinha, apareciam os enxames das muriçocas danadas e famintas. Ninguém sabia de onde vinham. Se do rio, se das águas das lagoas próximas. A verdade era que o inferno estava formado.
- Tome lá Doto.
Atirou um vidro de álcool onde folhas de fumo amarelavam o líquido.
Esfreguei os braços, as pernas, os pés, a cabeça e as mãos.
O cheiro enjoado aborrecia o estômago, porque o contínuo da chuva já impregnava o ambiente com o bolor do sapé, cada vez se molhando mais.
- Quando acender o lampião vai ser pior ainda. Seu Trindade foi quem riu forte, olhando o vulto sentado na abertura de uma das portas, espiando o rio que começava a se esconder para dormir. Vendo o pé de tamboril, imenso como atalaia da selva, envolvido pelo brilho das chuvas em suas folhas.
- Pra você tanto faz como tanto fez, não é Chulé? O anão voltou-se sem se incomodar.
- Comigo elas não malinam não. Essa é a vantagem da gente ser desse tamanho.
- Não é pelo tamanho, não, seu jegue. É o cheiro dos seus pés...
Chulé era encarregado das poucas vacas do lugar e tomava conta dos dois cavalos. Era montar num deles que o bicho se esquecia da preguiça do ambiente. Ia direto atrás das vacas. Chulé juntava o cavalo perto delas e elas chutando água, chegavam alvoroçadas ao curral. Toda a bicharada queria se livrar depressa do cheiro daqueles pés. Não havia banho, lama, creolina, desinfetante, chuva, que conseguisse dar um sumiço naquele mau cheiro. Por isso ele ficava sempre distante das outras pessoas pegando vento ao contrário para que não surgisse reclamação.
Seu Trindade saiu fora do balcão com a lamparina bem mofina para o meio da venda.
- Minha gente chegou a hora da abanação e dos palavrões. Retirou da parede as cordas dos lampiões e foi descendo um por vez.
Acendeu o primeiro sobre uma das mesas cheia de furos de cupim. Suspendeu o lampião no alto do teto e amarrou a corda de novo. Repetiu o mesmo com o outro e o cheiro de querosene veio se juntar ao mofo, ao barato do fumo bravo que recendia no ambiente, ao suor fedido a terra na camisa de todos os homens e sobretudo ao incostumado e constante exalar de Chulé.
A sala mal iluminada criou um halo de alegria.
Apareceu a grande mesa de sinuca, com as bolas vermelhas descoradas fazendo o triângulo e as outras bolas também descoradas adormecidas no pano verde muito ruço.
Entrou um negrão sacudindo o chapéu de palha, dando boa noite e retirando dos ombros o capo grosso e molhado.
Foi olhando para todos, se acostumando com a luz de dentro, até que sorriu tristemente para mim.
- Doto, chegou quinino?
Balancei a cabeça desanimado. Todas as noites Rubião vinha e como sempre a resposta era negativa.
- Como é que havia de chegar? Nenhuma tropa se atreve a aparecer por aqui. Estamos ilhados, meu velho. Você sabe disso, Rubião?
- Ele não sabe direito, Doto. É o primeiro ano que passa nessa chuva brabeza.
Trindade sorriu.
- O jeito, home, é se acostumar. Todo ano é assim. Às vezes muita chuva e outras vezes ainda muito mais.
Rubião matou muriçoca batendo nos braços e abanando-se com o chapéu.
- É que no meu rancho a febre tá comendo solta. Até eu tou começando a quebrar.
- Se eu cair de maleita, amigo, ficarei como você porque não guardei um comprimido de Maleizin nem uma injeção de Paludan.
Lembrei os remédios locais.
- O jeito é tomar chá de amargozinho ou chá de casca de pau-jacaré. Que dá uma pena danada, isso dá.
Ele agradeceu e enfiou o capo grosso mais o chapéu e se retirou.
- Esse não falha não é, Doto?
- Nunca. Agora, caninga maior são os índios. Pelo menos, dez por dia me perguntam com voz chorosa:
- Totó, rapadura chegou, chegou? Totó, bedionkre bidirá. (doutor me dá rapadura). É uma lenga-lenga que não acaba mais.
- Quando dá fé, tá todo mundo cego. Será que essa gente ignora que em bôca-de-selva, na chuva, a gente fica ilhado do resto do mundo?...
- E ainda por cima, durante seis ou oito meses. Seu Trindade bateu nos ombros com as duas mãos como se se lembrasse de alguma coisa. Minha vista que estava presa nos cinco tacos de bilhar pendurados na parede e no velho marcador de bolinhas foi atraída por aquele gesto. Adivinhava que por trás do sorriso matreiro se escondia a mesma história. - Vamos esperar, Trindade. Qualquer hora dessas a chuva diminui, as estradas secam um pouco e quem sabe aparece uma tropa mais decidida trazendo quinino e rapadura.
- É, mas o senhor tá repetindo essa cantiga faz quase dois meses.
Era sabido por todo o pessoal do lugarejo que anos antes um homem do Serviço de Proteção aos índios, desesperado com a chuva e com a insistência dos índios, foi até a venda e o seu Trindade resolvera o problema:
- Tem um carrego grande guardado de goiabada. Quando dá fé o senhor corta uma lata em quatro e vai distribuindo cada semana. Uma casa, uma lata.
Fazia assim porque se livrava num lugar onde o dinheiro era raro como padre, de um montão de latas de goiabada, que se encalhara enferrujando num quartinho dos fundos.
O homem aceitou a idéia como a salvação de sua paz. Mas depois quando veio o frio, o sol e o verão das selvas; que as estradas secaram e as tropas condutoras voltaram a funcionar... foi aquela água.
Ele chegou esfregando as mãos de contente.
Chegou na aldeia alvissareiro.
- Minha gente, rapadura que é bom tá lá.
Um silêncio comprido e uma indiferença atroz paralisaram cada expressão. Cada linha do rosto endureceu.
- Ué, vocês não queriam tanto rapadura? Não achavam que sem ela iriam morrer?
O capitão da aldeia se levantou sério e respondeu pelos outros:
- Rapadura é ruim. Rapadura dá dor de barriga. Tem feitiço.
E antes que o homem retomasse do seu espanto, o capitão afirmou categórico:
- Agora só goiabada. Goiabada é que é bom e faz bem pra gente e engorda muito.
Foi preciso que os anos passassem para que se esquecessem do episódio e a rapadura voltasse ao normal.
- Ainda é cedo, seu Trindade. Ainda é cedo, seu Trindade.
- Pois o senhor já sabe. O quartinho é o mesmo, lá nos fundos. E a quantidade das goiabadas é marmo.
Não satisfeito com a informação, apontou para a porta e as janelas da noite.
- Essa chuva vai longe, Doto. Vai é longe. O pé de tamboril ainda não está coberto nas raízes. Falta mais de metro e meio.
Alguém interrompeu a conversa bichada e gritou:
- Ei, Chulé, agora destroça um pouco de lugar. Tás sentado bem em cima do vento que vem pra nóis.
O anão nem se zangou. Pulou da cadeira de pernas serradas que seu Trindade fizera de propósito para ele. Trouxe-a para o fundo da sala bem distanciada e se sentou. Mesmo de pernas curtas, a cadeira ainda era alta para ele. Por isso ficou balangando devagar as suas perninhas, fazendo o possível para não criar vento.
• • •
Seu Trindade fumava um de palha. A noite ia aumentando. A chuva Ia fora também. Tinha gente enchendo a venda, a sala, mas ninguém se arriscava a nada. Nem a pinga, boa e barata no possível, era pedida. A mesa de sinuca continuava adormecida na sua indiferença.
Mesmo assim Prupo quebrou o silêncio.
- Topa uma, Zé Corre-Mundo?
- Por enquanto não. Tou liso. Vamos esperar se o Gringuês aparece.
- Pelo jeito acho que não.
E ninguém jogava, ninguém comprava nem cigarro de retalho, ninguém se atrevia a molhar a goela e o resultado se fazia logo, dando quase aquele mutismo de enjoar; ou substituir o barulho da chuva no sapé com diálogos que não passavam de uma frase e uma resposta vindo em sim ou não.
Seu Trindade pesquisou lá fora, escutando entre as gotas d'água e o coaxar dos sapos.
- Adivinhe que dia é hoje, Doto.
- E eu lá sei, seu Trindade?
- E que horas?
- As mesmas de ontem, se é que houve ontem!
Seu Trindade riu e pediu silêncio. Ninguém disse um pio.
Lá fora um barulho de tamanco pisando na lama e nas poças d'água dava um toque conhecido.
- Agora eu sei. Hoje é terça-feira e faltam dez pras nove.
- Toque, Doto. Matou!
Foi quando Avelurdes penetrou no salão, resmungando contra a chuva. Limpou os tamancos na soleira da porta. Fechou a sombrinha, chacoalhando a chuva dela.
Soltou um bonoite estridulado e sorriu mostrando um bruta canino e ouro que faiscou à luz dos lampiões.
Encostou-se no balcão fazendo pose e tirou a sua capa-fêmea da idade de Matusalém. Um cheiro de suor adocicado por água-de-cheiro barata encheu pelo menos três metros.
Entretanto antes de tudo isso, Avelurdes tinha colocado sobre o balcão um pacote, ou um velho saco de papel e a bolsa de couro descascada no verniz preto.
- Agora com sua licença, seu Trindade, vou lá na casinha me arrumar.
- Pois não, coração. A casa é quase sua. Só não é mais porque a princesa não resolve.
- Te cuida, velho sévérgonha! Se tua mulher te pega nessas falações era uma vez um home de voz grossa.
Todos riram e Avelurdes na sua simpatia de mulher-dama comentou andando pra dentro do cômodo:
- Depois vai dizer com voz fininha: "Foi Piranha, minha gente"...
Fiquei olhando a mulher tentando ser ondulante no final do seu outono. Estava numa blusa de organdi transparente branca ou creme, suspendendo os seios volumosos e apertando com força a barriga ou a cintura tão utilizada na vida.
Todos aqueles homens tinham conhecido a magia velha de Avelurdes. Pelo menos uma vez. Primeiro porque uns comentavam com os outros no estrebuchar do zunzum. E lá iam escondidos das mulheres experimentar a novidade. Ficavam satisfeitos com aquela só vez, visto que o dinheiro estava sempre curto e a família de meninos buchudos crescia e clamava por mais de-comer.
Eu fiquei falando comigo mesmo. Vida, hem, meu São Deus?
Donde viera aquela mulher quase velha, parar ali, naquela bôca-de-selva? Contara-me uma vez que nascera em Caicó e orgulhava-se acrescentando que aquela cidade do Rio Grande do Norte antigamente se chamava Cidade do Príncipe. Como todas as damas da sua condição tivera pontos altos na vida. Depois de certa idade viera aos trambolhões na ladeira. Até que parará ali. Dali era difícil descer mais. Dali só descia gente para o dentro grosso da selva. Eram os castanhais, os garimpos e a borracha. Ia acabar-se de velha naqueles barrancos. Era até capaz de virar beata e acompanhar as outras velhas na festa do Divino.
Avelurdes retornou ao cenário. E houve um uh! moleque da rapaziada. Ela tornou-se risonha porque achava que aquilo era sucesso sincero.
Seu velho rosto adquirira um colorido de ruge. Os cabelos soltavam-se mais e crescera sua elegância calçando os sapatos trazidos naquele saco de papel.
Caminhou com certa graça até o balcão e abrindo a bolsa perguntou:
- Velho, você tem cigarro Continental?
- Cabou-se, meu bem. Serve Belmont?
- Já que é assim, vai.
- Um maço?
- Tás louco, Trindade. Retalhe quatro e olhe lá.
Numa miséria que a gente não faz nada, queimar dinheiro assim...
Depois procurou um tamborete a seu gosto e ficou em evidência mas sem penetrar muito na indiscrição da luz. Cruzou as pernas, suspendendo a saia numa espécie de provocação. Quando dava fé alguém poderia cair em tentação. Acendeu o cigarro para fazer pose e também gozar um desejo que deveria ter durado todo o dia.
Voltei a encarar a mulher nos meus pensamentos. O que não deveria ter passado essa criatura de Deus. Mormente quando atingia os degraus da velhice. Não fazia dois anos que encalhara aqui. Viera com uma mulata gordalhona e meio preguiçosa que quando no tempo da seca faziam-lhe proposta, respondia sempre: "De dia não gosto. Só depois do pôr do sol". De tanto falar ficara sendo chamada de Maria-Pôr-do-Sol.
E elas ignoravam tudo como também me acontecera na primeira viagem. Saíra de São Paulo, num trem horrível e torrando calor. Chegara moído em Araguari onde de novo pegara aqueles trens matungos e rinhentos horrivelmente superlotados e atingira Anápolis.
Aí foi que eu vim saber o que era chuva, caminhão e atolar de dez em dez metros, levando dias e dias para chegar à Goiânia recém-nascida. E tome mais chuva. E ainda mais chuva. Era desanimador desencalhar o caminhão na lama, em muriçoca, no carapanã e no borrachu-do. Por noites e noites, sem ter viva alma ou rancho vivo a gente amarrava a rede debaixo do caminhão. E ainda precisava dar graças a Deus.
E na serra era pior. Ninguém acreditaria. O cuidado, as pedras, a estrada ruim. Pedaços caminhando a pé sob a chuva. Passando em pinguelas trôpegas que era mesmo que olhar para a morte...
E Avelurdes olhava em silêncio a mesa de sinuca. Virou-se e comentou sem exageros:
- Só queria saber como é que essa danada dessa coisona aí veio parar até aqui. Fico matutando na descida da serra e se ela pegou o tanto da chuva que eu peguei...
Riu e baforou comprido.
- Velho, você sabe contar essa história?
- Sei lá. Deve ter vindo na Arca de Noé. Quando comprei essa bodega do falecido Manuel do Poção, já encontrei esse bicho aí.
- Quer dizer que veio ainda mais antes?
- Que veio, veio.
Aí Avelurdes ficou passando os olhos matreiramente sobre o enxame dos homens. Primeiro os mais velhos que poderiam ter alguma erva... nada. Depois os casados moços... nada. Depois os mais frangotes sem compromisso na vida... nada.
Baixou os olhos do seu marisco para levantá-los tristemente sobre a prateleira onde havia peças coloridas de fazenda. Certamente se perguntava quando poderia comprar uma roupa mais nova. O modo era esperar a chegada do frio, do verão e da seca. As estradas se abriam para os tropeiros, para os cavalos. O rio diminuiria apresentando as praias brancas e barcos a motor e canoas de remo, traria gente para diminuir a sua angústia financeira.
Mudou de posição e colocou as pernas como qualquer mulher. A garganta queimava um pouco de saudade. Foi o que fez.
Seu Trindade que conhecia todas as suas representações perguntou:
- Vai uma pinga, Avelurdes?
- Não. Agora não sou mais mulher-dama. Sou dama só. E uma dama não bebe pinga em sociedade.
Abriu a bolsa e contou os miserendos níqueis.
- Me bote aí uma dose de Conhaque de Alcatrão de São João da Barra.
Recebeu o copo e sorveu aos poucos aquela gostosura.
Deu os níqueis e levantou-se meio espreguinhenta.
Foi procurar a casinha e não demorou muito. Já estava nos velhos tamancos e com os sapatos guardados no saco de papel. Enfiara de novo a capa-fêmea e readquiriu a sombrinha.
Seu Trindade fez a gentileza:
- É cedo, meu bem.
- Vou pra casa.
- Fazer?
- Rezar. Armo a minha rede e balanço uma semana. Rezar por uma porção de coisa. Pedir pra Deus que traga logo o sol. Pra que chegue cigarro novo. Pra que chegue a rapadura dos índios e os remédios da febre. Pra que trague sobretudo muito homem. E que tire deles todos a dureza do bolso mas conserve em todos a dureza do pinto.
Ia sair. Todos os olhos acompanharam a sua retirada.
Aí foi quando Zé Corre-Mundo se iluminou todo.
Esbarrando na porta com Avelurdes, entrava o Gringo.
- Espia, Prupo, quem vem lá.
- Pomba! O Gringuês. Hoje a gente raspa ele.
O Gringo respingou o chão com o chapéu de palha e veio de lá sorrindo de inocência, com os pés brancos, alvos, cobertos de lama no calcanhar e nas pontas dos dedos.
Seus cabelos compridos e lisos ficaram prateados à luz dos lampiões. Estava com um casaco de couro bem molhado e que deixava escapar um cheiro azedo diferente. Um cheiro de terra estranha. Mas ele não se despregava dele. Talvez só para tomar banho se é que tomava.
- Ei Gringuês! A gente pensava que você não vinha hoje.
O Gringo respondeu num português atravessado mas que todo mundo entendia.
Foi logo na parede e sorrindo a mesma inocência apanhou o taco.
Corre-Mundo e Prupo não se mexeram do lugar.
O Gringo ficou meio desapontado.
- Jogar?
- Hoje não vai ser assim, Gringuês. A gente tá cansado de perder todos os dias. Você chegou aqui sem saber nada de nada e agora virou campeão e não deixa a gente ganhar mais nenhuma.
Nem de leve desconfiava que a arapuca estava armada. Insistiu.
- Jogar?
Prupo levantou-se.
- Hoje não.
- Jogar não?
- Entenda de uma vez, Gringuês. Hoje ou o dobro ou nada, sabe?
- Jogar tudo?
- Tudo. E dinheiro casado na caçapa. Bom?
O Gringo meteu a mão no bolso de dentro do paletó e puxou um monte de notas.
- Tudo?
- É.
Ele separou uma nota para a cerveja. Chamou seu Trindade e entregou-lhe.
O Gringo olhou-os antes de depositar o dinheiro na caçapa.
- E dinheiro?
- Seu Trindade se responsabiliza por nós, não é seu Trindade?
O velho confirmou, afastando a desconfiança do alemão. Então num gesto decidido enfurnou as notas na caçapa e com o fundo do taco comprimiu-as mais ainda. Sorriu.
- Quem sai é você.
Corre-Mundo também se munira de um taco.
O ruído das bolas a se entrechocarem dava vida ao ambiente. O Gringo já tomara um trago da cerveja. Deus meu! Uma puta duma cerveja quente e choca.
Encostei a cadeira contra a parede e reproduzia de olhos fechados a partida. Iam jogar o trinta e um. A primeira o Gringo ganharia. A segunda seria o empate e a negra, a durona.
Fui para perto da chuva olhar o escuro da noite, desinteressado no começo da disputa. Não queria nem pensar, mas acabava pensando, ouvindo o chiar da água cantando por todo canto.
Donde viera o Gringo? Ninguém sabia. Ninguém perguntava. Pra quê? Viera de outros mundos. Talvez até fugindo da guerra. Mas quem ali se interessava com a nacionalidade de todas as guerras? O que importava é que o moço era bom e trabalhador. Pastejava o pouco gado da fazenda vizinha, atravessava a boiada nos lagos sem medo das piranhas, dava um duro muito maior do que aquela moçada toda que esperava passar a chuva para se pendurar no cabo de um caniço e pescar o sem-pressa da vida. Isso é que era. O Gringo viera de longe, tão loiro, tão vermelho, tão sadio. Chegara à bôca-da-selva como outra farinha órfã. Sem dizer se tinha alguém, se deixara lar ou se vinha à procura de um...
Um grito de todos anunciava a primeira vitória do Gringo. Até palmas batiam.
A segunda já fora iniciada.
Mas a chuva para mim era mais importante. Tanta água ali e noutra parte do Brasil tanta seca. E daí? Que é que eu tinha com isso? Não fizera a vida. Nem sequer era primo de Deus para julgar o "cuisarim" do mundo.
E a segunda partida foi mais depressa, mais calculada. As palmas eram para os dois adversários.
Agora valia a pena assistir.
As bolas rolavam se entrechocando e a cada tacada Prupo e Corre-Mundo se entreolhavam calculando tudo. Os pontos iam sendo marcados nas bolinhas pretas. O povo se comprimia mais para assistir o final.
E o Gringo nem desconfiava de nada. Ignorando no seu sorriso inocente que as vitórias de outras noites tinham sido preparadas...
O Gringo fazia os cálculos com os dedos.
- A verde, Gringuês. A número três. Tu já tem vinte e oito. Encaçapa a verde que tu ganha.
Mas a bola verde sempre se achava encostada nas tabelas ou em sinuca difícil de tirar.
- A gente está pela marrom. Pela bola quatro.
O Gringo levantava os olhos para a lousinha e somava a virada. E estudava antes de dar a tacada.
Olhei o rosto alegre de Corre-Mundo. Prupo ia dar a jogada em que a bola quatro ficaria na boca da caçapa. O jogo seria encerrado porque logo em seguida o Gringo atirava na verde, difícil de acertar e Prupo o toque final de misericórdia matando a bola quatro.
Ninguém respirava. Só observavam o estudo de Corre-Mundo.
Mas aconteceu o inesperado. O diabo pendeu para o outro lado. O taco de Corre-Mundo espirrou, empurrando a bola quatro com violência e esta foi chocar-se contra a bola três.
Todos os olhares aflitos da torcida tentavam segurar a bola verde. Mas esta calmamente, sem pressa alguma, veio deslizando para o meio do bilhar e postou-se quase caindo na caçapa do meio.
Foi um gemido geral de descontentamento.
Só o Gringo ria. O resto da cerveja dera-lhe à face um vermelhidão sadio. Era o rosto da vitória.
Ele olhou para os dois satisfeito da vida. Seu dinheiro. O dinheiro do seu trabalho pesado de um mês voltava fàlcimente ao seu bolso e ele era de fato o "campeão".
Aquela gozação do Gringo foi fatal. Aquela demora em acabar a partida foi que criou a minha revolta.
Olhei como um raio o rosto preocupado de seu Trindade. A palidez de Prupo e Zé Corre-Mundo. E agora como é que eles iam pagar o velho?
E o Gringo abrindo mais o blusão de azedo estrangeiro. Fitando superior quem cercava a mesa da sinuca.
Meus pensamentos chegaram quase a atropelar a minha raiva. Que importava que ele viesse de longe, de outras terras? Que ele estivesse jogando todo o seu salário? Por que haveria de ganhar uma partida da gente? Sim, porque naquele momento eu era bôca-de-selva. Eu era brasileiro. Era índio, branco, negro e mulato. Era Brasil. Agora vinha um Gringo qualquer lá de longe, de terras que espezinhavam todo o nosso sentimento de gente subdesenvolvida para ganhar a partida nossa, de nós, os brasileiros. Nunca.
Corri para o canto da sala e enfiei a mão no bolso, retirando sem pena todos os meus níqueis.
- Toma, Chulé, te mete debaixo da mesa e fica balançando os pés com todo o vento possível perto das pernas do Gringuês.
O anão desabalou nas perninhas miúdas e penetrando entre todos sem ser percebido se enfiou debaixo do bilhar.
O Gringo tomou respiração forte e apanhou o taco para caprichar na direção. Seu rosto parou o sorriso e sua testa enrugava contrariado.
Meu coração rezava: "Capricha, Chulé, capricha!"
E o cheiro foi subindo tão forte tão forte que deve ter combinado com a cerveja choca no estômago do alemão.
Passou nervosamente a mão no peito e tentou se abaixar. Precisava vencer aquele mau cheiro horrendo. Só era bater na bola e tudo estava acabado. Mas o cheiro, via-se que subia terrível. Naquele momento Chulé sublimava-se. Era como se alguém estivesse sobre a pior carniça da selva.
- Vamos, Gringuês. Que está esperando?!...
Ele balançou a cabeça e decidiu-se a perpetrar a jogada.
A ânsia de vômitos invadia a sua vontade. Um suor frio porejava na sua testa.
Olhava o pano verde e as bolas se confundiam. Não poderia parar. Ia ficar feio.
Firmou o pulso e arremessou o braço no golpe final.
Final para ele porque a bola branca passou bem longe do alvo e foi matar a bola preta, a bola sete, que não tinha nada com a história.

 

 

CHÃO DE ESQUECIMENTO
ABRI OS OLHOS.
O cheiro de carne podre me asfixiava. E era carne humana, fedendo. Falei roucamente desesperado:
- Bom-dia, mão desgraçada!... Bom-dia, mão desgraçada!...
Entretanto são os primeiros matizes da manhã. A luz que nasce se infiltra friamente entre a selva. E as árvores só aparecem quando a mão pendurada sobre o meu rosto me permite. Vejo pouca coisa: a mão, as árvores, o dia ou a noite.
Depois e sempre, só sinto além do meu desespero, o cheiro de carne se decompondo. O fedor da carne humana carbonizada. Todos morreram no inferno, menos eu. Talvez todos estejam vivos, transfigurados e só eu me encontro realmente morto.
"Não queria viajar de avião, queria? Meus pressentimentos não avisaram antes que morreria? Que o avião iria cair? Pois se estou aqui é porque quis. Só que pensava, jurava, tinha certeza de morrer".
Não sei o que é o tempo. Os primeiros dias foram contados com a febre da angústia e a dor do esmaga-mento.
Pequenos que somos. E eu fui tão rico! Tão irreali-zado!
- Bom-dia, mão desgraçada! Mão de túmulo! Mão de quem és não sei!
E os primeiros dias foram cortados pela mão. Entretanto os primeiros momentos por outra mão:
- Meu filho, porque tu vais? Precisas mesmo ir? Minha mãe me abraçando, me apertando, talvez com ternura, talvez com fingimento. Tinha muita gente no aeroporto assistindo às despedidas.
Minha mãe era suficientemente cínica para representar. Melhor dito, nunca vivera sem representar.
O casaco de peles sobre os ombros arredondados, o perfume escapando do vestido bem feito, de origem parisiense, subindo do corpo prostituído, do corpo amarrotado pelas mãos de tantos homens, trazia-me ao nariz uma repugnância imediata.
- E por que não ir? Por que não ir? Eu sempre me fora. Sempre.
Ela pedia para não partir. Muito tarde. Com que caridade fria ela me abandonara num colégio interno na Suíça. Nada me faltara, é verdade. Sobrara o vazio de tudo e exacerbando o meu abandono sem sossego. Minha infância fora seca como a neve eternamente grudada naquelas montanhas...
Depois, meus estudos em Paris, numa libertinagem desenfreada. Um correspondente me proporcionando todo o dinheiro necessitado.
Algumas vezes meu pai também procurava se encontrar comigo. Ou em Londres, em Viena, ou mesmo em Paris. De uma feita fui obrigado a procurá-lo em Nova York.
Ele era muito rico. Que desgraça, todo o mundo que me pertenceu, toda a família que me sobrou, ser vultosamente rica.
Fui vê-lo porque me mandou chamar.
Seus cabelos estavam grisalhos, sua mão nervosa acariciava o copo de bebida. Uma orquestra esbravejava uma música irritante, tão medíocre como tudo, como os tipos, como a vida daquela grande metrópole.
Olhávamo-nos desconfiados. Eu com nojo de existir. Ele com medo de me ter criado. Duas condenações se defrontando.
Tentou conversas, pois que tinha me analisado com a minha aproximação. Mas não disfarçava ao descobrir a cada instante os milhares de quilômetros que nos separavam.
"Estou um homem, vê? Um homem. Um ente morto de tédio. Sim, meus ombros são largos. Sou regularmente forte. Até bonito, não? Pareço com você ou com ela? Tenho já mulheres. Amantes fixas. Amantes circulantes como as suas. Sustento com o dinheiro que você herdou dos seus avós. São umas chatas. Tão chatas como as suas. Elas brigam, choram, reclamam. As suas amantes não são assim? Os gigolôs da minha mãe também são chatos. Um tédio enorme, não?"
O que me doía era aquilo. O modo obrigatório que eles tinham para me encontrar.
Além da curiosidade do meu progresso físico, nada possuíam para me conquistar. Conquistar seria o termo porque eles nunca angariaram, nunca participaram do meu ser ferido, abandonado, louco, inquieto.
Matar-me? não. Morrer, sim, talvez...
- Estás gostando de Nova York?
- Não.
- Já esperava.
- Eu também. Não gosto de nada. Depois, era ela, em São Paulo ou no Rio.
- Está lindo, sabes?
Encarava-a desprezivelmente. Seria bom que em minhas taras encontrasse desabrochado em mim, um resquício do complexo de Édipo. Suas mãos finas, alongadas, lindas, brancas como orquídeas, eram tão leves, tão transparentes como lenços de cambraia. Davam dinheiro. Compravam jóias, aplaudiam artistas, dirigiam volantes, apertavam taças, aconchegavam desvarios, mas se esqueciam, se esqueciam de mim.
- Onde ficas este verão?
- No Rio.
- E depois?
- Vou caçar búfalos no Pará. Na Ilha de Marajó.. - Que horror, meu filho I
- Horror por quê? Eu gosto. Eu gosto de matar. É sensacional qualquer caçada.
- Quando partes?
Nem se preocupava com a possibilidade de minha vida se perder nos pantanais de Marajó. Nem se incomodava em se amedrontar com uma possível desaparição do ser que gerara ao mundo. Ela me parira sem dor.
Não fosse eu o produto do dinheiro. Duas fortunas se juntando. Dois sexos, duas camas inadaptadas. Eu nascia. Brigas. Escândalos. Tribunais. Casa de avós. Até os nove anos no Rio. Palacete em Laranjeiras. Colégio interno na Suíça. Ignorando quem vencera a questão. A quem pertencia e qual dos dois era mais estranho para mim.
- Partirei em abril. Irei pelo Brasil Central. Sobrevoarei o Rio Araguaia e depois pousaremos em Belém do Pará...
- Precisas ir, mesmo?
O cheiro doce do corpo perfumado. O beijo frio em meus lábios. A mão acenando em languidez de indolência...
- De quem és não sei!
A mão estava ali. Limpa agora. Completamente limpa e ressecando-se mais e mais. Entre cada chuva ela ressequia-se e escurecia.
Eu precisava partir. Precisava de sol. O verão no Rio se acabara. Logo chegaria o inverno. Oh! como sempre detestei o inverno! O frio me trazendo aos olhos as lembranças das montanhas da Suíça. Não. Eu queria o sol, o trópico, o equador. Queria exterminar dos meus complexos o gelo cristalizado em minha infância.
Partiria. Ela me perguntava se era necessário mesmo partir. Talvez tentasse, sabendo impossível me deter no inevitável. Agora compreendo que ela se amedrontava com a velhice e eu tinha vinte e sete anos. Dentro dos casarões memoráveis, no vazio das salas, tão nua como os pianos negros a que nunca permitira um enfeite, ela choraria solidão. E eu seria a última, talvez a única esperança.
Em outro canto, estraçalhando dinheiro, muito dinheiro em corridas de cavalos e outras manias mais caras, meu pai. E como a vida condena e cobra! Meu pai apertaria entre os dedos o mesmo sentimento de velhice. E eles eram tão porcos que poderiam se encontrar e sé suportar, transformados pelo próprio abandono.
Contudo eu não era alívio para ninguém. Não seria tábua de salvação para qualquer tristeza. Eles nunca me quiseram. Pouco me doía a consciência e Deus não passava de um ser suficientemente superior para se incomodar comigo.
Deus era o avião, o meu sol, a minha fuga e ainda a minha morte que eu sabia me esperar.
Tínhamos levantado vôo de Goiânia. Sobrevoamos o Araguaia.
Os passageiros, sim, o avião estava cheio, se penduravam nas janelas para observar a linha de prata de cada rio que surgia, cortando o verde compacto da selva.
Uma senhora a meu lado, entusiasmada me perguntou:
- Não gosta da paisagem? É uma maravilha.
- Não. Não gosto. Já conheço tudo... E mesmo...
- Mesmo o quê?
- Nada...
"Pensei: "Não se deve fixar demais a paisagem da morte".
- Quando escrever aos meus conhecidos, vou dizer-lhes que viajem, que façam esta viagem.
- A senhora não dirá nada. Completamente nada.
- Por que, meu jovem?
- Por quê?... Olhe um momento nos meus olhos. O que vê?
- Nada, moço. Só os seus olhos refletindo o meu rosto.
Fixei os seus olhos claros brilhando meio decepcionados no meio de rugas cansadas.
- Pois eu vejo a morte dentro dos seus.
- senhor está louco. Meu Deus! Que maneira esquisita de brincar.
Virou-se para o canto. Teve um leve estremecimento e tentou se fixar na paisagem que agora parecia ter perdido o encanto anterior.
À minha direita sentava-se um francês de boina. Na frente um português de barba cerrada, bem aparada. Outras mulheres comuns. Outros homens vulgares se colocavam no avião. Nenhum deles, a não ser estes citados, poderia chamar atenção sobre qualquer coisa.
A aeromoça era bem bonita. O piloto quando descansava nas primeiras poltronas ou aparecia na porta de comunicação, notava-se, era alto e moço, sobretudo ruivo...
A mão seca sobre o meu rosto de quem seria?
- Bom-dia, mão desgraçada! De quem és não sei!
Um grito de horror. Todos gritavam, menos eu. O avião estava pegando fogo. Ia cair. Já estava começando a cair.
A senhora a meu lado apertou-me o braço desesperadamente. Olhava-me como se fosse o causador da desgraça. Suas pupilas se dilatavam enquanto o queixo en-treaberto caía de desespero e dor.
Olhei a paisagem. Agora precisava olhar a paisagem. A terra girava alucinadamente. As árvores verdes, unidas num disco verde, vinham se aproximando de nós num delírio de velocidade.
Todo o meu estômago parecia se comprimir na garganta. Depois... Um estrondo infernal. E todo o verde se metamorfoseando em fumo.
• • •
Somente música sibilante. Abertos os olhos sondando aquele mistério de fumaça.
Adelgaçava-se a cortina de fumo. Os destroços apareciam mais nítidos. Ao redor um silêncio mórbido de catacumba.
"Não tinha corpo. Ou tinha? Ou quem poderia me garantir que aquela massa ígnea me devorando não seria o espírito se revoltando no fogo dos infernos."
Todo o meu todo ardia. Não me movimentava. Não podia me mexer. Só o meu rosto solto no montão de ruínas quentes. O resto do meu resto se escondia debaixo de um amontoado de coisas que escaparam da explosão. E naquela mistura de tudo deveria haver pedaços de gente misturados com pedaços de avião.
Não me movia. Não me obedecia. Não morrera. Vivia pois. Teria ainda voz?
Primeiro experimentei gritar e sentindo que existia a voz e que o grito não aumentava a minha dor, esbravejei.
Gritei, gritei e gritei. Somente o silêncio respondia ao meu desespero.
- Tem alguém por aí? Há alguém vivo?
Firmava o ouvido. Nada. Nem um gemido.
Tinha de esperar. Mas esperar como? Daquele jeito? Enterrado? Soterrado?
Sem saber se tinha corpo? Se quando aquela fogueira que me consumia se acabasse, eu iria sentir a mesma dor pelo corpo? Estaria mutilado, ou a pressão dos destroços, me impedia de saber como era, ou se ainda era o que fora?
Sonolência morna pesou nos meus olhos. Delírio de febre anulou o meu raciocínio. Dormi exausto.
Quando novamente acordei, a fumaça tinha se acabado para ceder lugar a um cheiro acre de carnes carbonizadas.
Tornei a ouvir, procurando escutar um gemido de solidariedade.
Nada.
E por que não podia enxergar direito? A minha vista esquerda estava sendo tolhida por uma massa arroxeada.
Levantei um pouco o rosto e enxerguei "ela". Foi então que apareceu a mão. A mão desgraçada a quase dois palmos do meu rosto.
Entre os dedos anular e indicador uma pequena brecha deixava passar um filête de sangue pingando sobre o meu olho esquerdo.
Era o começo da loucura. Havia alguém sobre mim. Um ser morto, inanimado. Um cadáver me comprimindo, a uma altura de dois metros do solo.
Nem mesmo adiantaria blasfemar. Tinha somente de esperar. E esperar quanto?
Ou a vida me abandonaria logo, de acordo com os possíveis estragos do meu corpo, ou a doidice apagaria dos meus olhos o significado das coisas.
Esperar.
Esperar o sangue estancar nas veias da mão, no resto do braço.
Assaltava-me a vontade de chorar, mas nem o sabia mais.
A febre. O sono. A noite. O dia. O dia. A noite. O sono. A febre...
Depois apareceram as feras da noite rondando, remexendo os escombros.
O orvalho derretia o sangue que coagulara em minha face. O sangue fora daquela mão, daquela mão que agora se convertia em um vulto negro de cinco dedos e que entre eles surgiam estrelas do céu.
A mão era um pêndulo das horas; uma divisão do tempo; uma indicação do futuro... A mão que iria secar. Que destruiria as linhas da vida e do coração. A mão que criara, distribuíra pancadas e carinhos. Talvez destruído... Aquela mão humana morta e viva tornar-se-ia minha companheira contínua e calada...
Às vezes gritava, pois que só podia gritar e pensar.
Lembrava de minha mãe. O meu pai. O colégio de gelo na Suíça. A infância apedrejada de ódios. Lembrava. Lembrava e gritava. Uma rouquidão se apossava de mim. Quem sabe uma surdez diminuísse a importância da minha voz. Alguém deveria vir. Alguém precisava vir. Talvez a comunicação do desastre, um avião sobrevoasse à procura do exemplar riquíssimo que eu fora. A minha ex-casa se encheria de gente pedindo notícias. Todos os telefones tilintariam procurando algo sobre o desastre. Os poucos íntimos, amigos do dinheiro e do champanha, diriam coisas sem significado e profundidade para a minha ex-mãe. Talvez ela desmaiasse. Choraria duas lágrimas de amêndoas arredondadas. Em seguida correria ao espelho vendo se o rimei fora prejudicado pelas crises de choro, de sensacionalismo barato.
Sim... Podia ser que um avião sobrevoasse aquele imenso emaranhado de selva.
Outras vezes ainda acordava da febre, alucinado e urrava até me conformar com a passividade brutal da minha situação. Gemia de mansinho; sem querer sacudia o peito com os espasmos do meu desintegramento.
Coitados dos outros. Coitados por quê? Eles estavam pelos lados e formavam uma parte invisível da paisagem que gostaria de enxergar no chão. Eram pastos de milhares de germes indissolúveis. Mãos soltas, braços revirados. Ossos descobertos: pernas, braços, crânios. Todos cantando um salmo de silêncio sem notas de gemidos. Postas de carne, juntas, concentradas numa enlatação de morte, irmanando os homens numa desgraça inconsciente.
Mas de quem seria a mão?
Vinha de novo o sono. O dia azul penetrava rompendo o aranhol da mata, trazendo pouco sol. As árvores se agigantavam com brincos de flores, parasitas e vermelho. Macacos chegavam perto do local, guinchando. Outros bichos também. Quatis subiam pela carcaça do avião. Ao longe nas clareiras, os tamanduás desconfiados ostentando as longas e ondulantes caudas. Outros também viriam e cada vez mais, logo findassem o banquete se aproximariam do meu resto, do meu rosto. Então urgia que não dormisse mais, que reagisse contra o torpor para poder gritar e afastar os bichos.
Dormia. Acordava com a chuva regando as minhas pálpebras. Não sentia fome nem dor. E mesmo a água que escorria sobre a mão e que desaguava no meu rosto já não possuía aquele mau cheiro horrendo dos primeiros dias.
Não poderia afirmar se as minhas necessidades fisiológicas se realizavam naturalmente. Ou mesmo se se realizaram nos primeiros dias. Agora sem alimentar-me não haveria probabilidade delas existirem.
Vinha a pergunta: de quem seria a mão que afinava e se escurecia? Da mulher ao meu lado? A que tinha olhos de morte e que ameaçava escrever aos amigos? Do português de barba cerrada? Do homem de boina ou do piloto ruivo? Assim passivamente morta, quase toda escondida, não poderia somente pelos dedos e pela palma, designar o sexo. Nada de descobrir. Por que ela não aparecia mais dois centímetros acima do punho? Seria de alguém. Seria de alguém, era inegável. Continuava imóvel e nada poderia fazê-la balançar. Nem mesmo se a soprasse como diversas vezes tentara.
Veio um visitante inesperado; o vento. Foi ele que me acordou misericordiosamente. Porque o segundo visitante estava perto de mim. Os olhinhos brilhantes e redondos me encarando a menos de dois palmos do meu rosto. Era um quati avermelhado. Juntei forças e gritei a ponto de me sentir babar e ele se afastou espavorido. Mas aos poucos ele voltaria, descobrindo que a minha defesa não passava daquele grito inofensivo...
E o primeiro visitante acordou os mortos, desprendendo um cheiro horripilante. O fedor da carne podre agora era insuportável. Monstruoso. A carne queimada, carbonizada criava personalidade de renascimento ao sabor daquele vento uivante.
Renovava o fétido exalar da decomposição que se alastrava em todos os cantos.
Até a mão que secava voltou a feder de novo. Sinal de que a decomposição estaria iminente. Mas até encostar a pele aos ossos muita coisa teria de acontecer.
- Bom-dia, mão desgraçada! De quem és não sei!
E nas gotas da outra chuva o que temia aconteceu.
A mão se desfazia totalmente e pingos fétidos a escorregar dos dedos, viscosos, a chuviscar sobre o meu rosto. Felizmente deslizavam à altura do nariz, não atingindo meus lábios emurchecidos. Mas insistiam em tombar sobre a minha pálpebra esquerda.
A loucura me atingia ao auge.
Ia morrer. Certo disso me encontrava. Senão como compreender a mistura de todos os meus pensamentos? A confusão reinante entre o que era e o que fora? Aquela bifurcação que se realizava entre o ódio da minha infância e o resto do meu jeito de homem feito?
Acordava homem e adormecia menino. E os pingos caindo continuadamente a martelar-me o rosto num ritmo sincopado.
No colégio, sim foi no colégio. Father John se escandalizava comigo:
- Quando comungo tenho vontade de mastigar a Hóstia para ver se sinto os ossos, se sinto o sangue, se sinto o corpo. Se machuco Deus. Se O esmago.
Na vida a língua fala, a língua paga.
Eu agora era uma hóstia.
E vieram dessa feita os animais selvagens na disputa dos entes apodrecidos. Os urubus atraídos pelos meus gritos e pelo cheiro asqueroso. Onças pintadas se agachavam sobre os restos dos cadáveres. E grunhiam barbaramente tirando lascas de carne pútrida entre os caninos. E os abutres voavam assustados pousando nos galhos próximos na espera humilde e paciente das suas horas.
Estranho os caninos das onças pardas: parecem menos ferozes e menos devastadores. Quando elas, passados os dias, acabassem com o banquete do chão, viriam remexer os destroços mais altos à procura de uma continuação...
Seria o momento chegado para saber se tinha corpo ou não.
Tinha consciência de tudo até o último momento. E nada disso me aterrorizava ou me causava horror. A loucura se propagava infinita. E tudo se remexia e se confundia. O fogo cedera lugar à dor; a dor se aplainara numa paisagem de gelo. Retornava à Suíça dos meus ódios. Entretanto eu queria o sol. O equador. Os trópicos.
A mão de quem era não sabia, secou-se contra a pele. Morrera de uma vez. Mão de múmia.
A noite não tinha diferença do dia porque eu ia morrer. Ia descansar. Minha vida de tédio se desgastaria sem esperança de quê? O que eu queria era dormir de uma vez. Não mais sentir o cheiro do mar. O perfume das flores. Nada. Eu queria era dormir. Encontrar o chão do esquecimento forrado de folhas da morte.
Morrer? Sim, morrer...
Aos quinze anos, Meu Deus! Eu terei de morrer. Que coisa horrível. Morrer. Não me movimentar. Não escutar o canto do mar. Não ver a onda na areia, nem sentir o sol no rosto. Somente sombra e a dor do momento da morte. Aos quinze anos, pensava na morte; e quem pensa na morte tão cedo, já começa a morrer...
Aos vinte anos: se terei de morrer, encontrar a maior dor da vida, que seja rápida. Um desastre de avião. Um choque. Um colapso.
Aos vinte anos continuava morrendo.
Aos vinte e três anos: morrer. Sim, morrer. Mas saber-se que se está morrendo. Implorar aos amigos, aos padres, a alguém próximo, que não me deixassem morrer sem saber. Nunca como um simples sono. Que me despertassem para a morte.
Aos vinte e três anos aprendera a letra e a profundidade da morte...
Aos vinte e sete anos quando morria mesmo, despertado para morte, caindo de um avião, tentava abrir os olhos e reconhecer-me todo. E o que estava sendo? Nada. Doía-me a morte? Não. Chorava a despedida do meu corpo? Não. Eu era apenas uma continuação de pétalas se destacando uma por uma na teia do sono.
E não me sentia mais estraçalhado do que a ignorância de já o ser embaixo daquelas ruínas.
Não tinha mais voz. E se ainda conseguisse gritar, ainda conseguisse ouvir o se perder dos meus próprios ecos.
Uma linha de pontos se estabelecia na minha memória. Uma linha que diminuía de intensidade e força:
Noite ou dia. Verdade ou morte. Meus olhos se abriram na penumbra para aquilo que deveria ser o meu último momento.
E quem sabe por quê?
Mas a mão estava viva, balançando-se sobre os meus olhos. A mão se enchera de carne e movimento. Seria a mão de minha mãe? Duvidava. A mão de minha mãe era como uma orquídea branca que deslizava adeus nos lenços de cambraia.
E vieram outras mãos. Mais outras. E todas vivas. Mexendo-se. Mexendo-se. Remexendo-se. Remexendo os escombros.
Depois vozes. Mais vozes.
Vinham salvar-me. Mas salvar-me para quê? Logo agora que eu estava tão perto do chão de esquecimento... Quem poderia viver depois de tudo que passara? Por que não se iam e me deixavam em paz com a felicidade do término do meu tédio?... Por quê?... Por quê?... Por quê?...
Por que me salvaram? Por que me salvaram sabendo que nunca mais estaria salvo?...
Pois bem. Estou vivo. Completamente vivo e respirando. Olhando tudo. Curado do tédio, do abandono, da lágrima, da opressão e da dor.
Obrigado a viver, viver e viver. Estender a "minha mão" e apresentar ao público um cartão de visita forjado pela bondade humana:
HOSPITAL DE ALIENADOS DE NATAL RIO GRANDE DO NORTE

Nome: Proximegordes Absalão da Silva
Número: 888
Sexo: ---------
Profissão: Empalhador de Perereca
Filiação:---------
Diagnóstico: Psicose Maníaco-depressiva
Observação: Sem cura

 

 

ETERNECÊNCIA
O SOL ESTAVA MEIO enfraquecido, mas mesmo assim ainda calorava o dia. Pegara o trieiro, um arisco bem de areia fininha que dava gosto e macio.
As árvores quase fechadas não faziam sombra no chão, nem dele e nem da égua Xonga.
Soubera muito atrás que o Rio estava por perto. E pela granditude da mata e pelos cantos dos passarinhos devia...
Um homem de chapéu de palha desfiando saiu de uma vereda e olhou pra ver o caminhante cavaleiro que marchava. Encostou a enxada no chão e fez apoio com as duas mãos. Tinha que tinha uma camisa de três cores: caqui, arroxeada na gola puída e de cor suada. Jogou o chapéu para detrás e se alarmou nas expressões divisando a Foblé que cochilava nana na anca da égua.
- Sou de paz, amigo-brasil.
O caboclo sorriu no desdente da boca vermelha.
- Que tu sois tá logo se vendo.
Esperou o caminhar do cavaleiro na sua égua e ritmou os pés no mesmo compasso andejando calmo.
- Calor, não?
- Bem calor. Tá certo.
- A prepósito se mal lhe pergunte: vem de onde e vai pra onde?
Torceu-se sobre a sela e indicou a vastidão do mundo:
- Vim de lá.
Traçou um círculo no ar.
- E vou pra lá, se Deus quiser!
- Toca trabáio?
- Procurando por necessidade. Faço de tudo: machadeio, foiceio...
- Ainda bem, porque da vila já passou.
- Que tem a vila para um homem que labuta?
- Num tem. Tem venda. Tem pinga. Dinheiro ninguém.
- Não trabalha. Se chove chuva grau da fica seis meses de espera. Se a chuva passa, vem sol grande, vai para pesca e pesca o rio o dia inteiro. Ou pode também ficar de rede arqueada balançando a quentura até boquinha da noite. Dureza, seu moço!
- Mas vosmecê está armado de enxada.
- Ia pro rancho da Rosa. Lá sempre dá pra goro-roba e pra puba.
- Tem pra mais de um homem?
- Sempre ela emprega um. Mais de um nunca se viu.
- Então não adeanta prêsse canto.
- Olhe, sabe de uma coisa? Num vou não.
- Por que desistência?
- É que a gente morre logo, mesmo vivendo muito.
Amanhã vou é pescar. Tá subindo Matrinchão, Papa-terra e outros mais. Truveram a nutiça inda ontem. Ora melhor de ser é segurar num caniço amigo do que azu-lejar os calos no cabo da enxada que muito embora amiga é dureza, sô.
Cocou os cabelos que caíam na frente do chapéu e continuou.
- Tem peixe pra uma temporada larga. Se a mulher ficar buchuda de nenê, que coma peixe. Nada de luxuria. Peixe é comida de sustança. Peixe é Deus.
Ficaram em silêncio escutando o chinequete que as patas de Xonga faziam na estirada do arisco.
- Quer ir, vai no meu lugar, mas vou delatando: Rosa é dureza.
- Explique mais.
- Rosa é viúva, tem um filho metido a estudar pra dotor nas Goiânias. Tem rigideza. Se pega na mão do sol e se deixa na mão da noite. Se paga tanto não dianta pedir quanto.
- E vive sozinha nesse fim de mundaréu?
- Tem lá uma Tio Joana. Mulher gigante que toma conta dela desdequê miudinha Rosa era. E ninguém pode fabular mais alto que ela nem demonstrar estranheza que Tio Joana desce a peita, desinguéla o tal e inda por demais atira que nem jagunço de romance.
Retacou-se um pouco e riu.
- Se a gente fosse de dois, claro Rosa te queria. Eu um monte de pouca gente, vosmicê um cepo de pau de homem. Levava de vitória... Agora siga em frente e duas horas antes do sol sumir no Rio o amigo verá uma porteira grande, trancada de cadeado. Mas a chave está no lado bem no ôco da porteira.
Deu adeus com a mão e foi pegando na direita, descobrindo uma entradinha malsã entre o capim. Mas antes que se perdesse no seu destino, parou e observou:
- Tudo depende de Mijimpedra. Se ele gostar do amigo feito está o trato do trabalho.
Não entendeu bem, sorriu e tocou o manso na anca caridosa de Xonga pra que fosse sempre.
• • •
Quando foi de fato encontrou a porteira, desdeceu da égua, encontrou a chave do cadeado. Transpôs tudo como fora contado antes, carregando as rédeas do Xonga. Rebotou tudo no lugar e montou com jeiteza na égua de novo. Andavam agora mais devagar, embora o sol menos alto dava calor na sede. Ia espiando de análise tudo que o cercava.
Longamente já se via o fumo subindo entre as ramas e cheiro acolhedor da casa.
Nem vinte metros se viam e uma mulherona estacava debaixo de um cajueiro segurando numa das mãos um rifle e na outra fazendo sinal para que parasse. Devia ser a Tio Joana aquela.
Estancou Xonga e sorriu.
- Sou de bem, busco trabalho e trago a paz de Deus no coração.
Mas a mão em riste não desarmava.
Virou-se na égua e retirou o Foblé atirando-o no chão. Meteu a mão na cintura e desarmou-se da faca fazendo a repetição.
A mão abaixou e ele e Xonga se aproximaram bem de leve.
- Que deseja?
- Trabalho para trabalhar.
- Trabalho tem de muito. Mas nessa terra homem não quer.
- Por isso é que vim de longe longamente. Tio Joana virou-se pra dentro e gritou firme:
- Se chegue, Rosa. Tem um homem que busca trabalho e pelo jeito parece sim.
Rosa veio resmungando de dentro dando bem de se ouvir.
- E isso é raro, muito raro.
Olhou o homem na sua montada. O homem olhou Rosa e por dentro sentiu desassossêgo inotado. "Mas que Deus, não é mulher é uma alvorada".
Desamarrou o laço do chapéu de couro e descobriu-se todo no respeito.
Mas nem assim Rosa deixou de entreolhar o negrume do seu cabelo tão liso que não obedecia e descia sobre o rosto.
- Trabalho é o que não falta. Lenha para torar. Desmilhar espigas, carpir todo o mandiocal e no mais que ainda for preciso.
Mas Tio Joana não se deu por convencida.
- Aguarde um pouco, Rosa. Isso não é assim e nunca foi assim.
Assobiou para o lado do mato maior e aguardou. Tornou a reassobiar e de lá em carreira veio um cachorro marmo.
O homem ficou espiando sem receio. Aquilo não era um cão. Era um onço amarelo talvez de maior.
Mijimpedra parou olhando a montaria e o cavaleiro.
- Vai lá, Mijimpedra e cumpra tua função.
O cão obedeceu e rondou os chegantes. Nem um músculo se mexia no homem, nem um sinal de amedron-tamento em Xonga.
O cão cheirou suas botas, lambeu poeira. Depois ficou em pé e encostou a cabeça na sua mão.
Correu os dedos entre suas orelhas de leve e o cão ganiu de alegria.
Rosa comandou:
- Agora chega Mijimpedra.
E riu que riu para o homem.
- Está empregado. Trabalho é o que há. Dinheiro é o que veremos. Pode apear.
Ele fez. Marrou as rédeas de Xonga e pediu sem autoridade.
- Se não for assim de muito trabalho, pedir um caneco de água é muito?
- Não.
E Tio Joana foi lá dentro e buscou o pedido.
O homem sentou-se na beira do alpendre e ficou de costas para Rosa pra não desrespeitar. É ao mesmo tempo conversar assim do jeito que índio fazia de comum.
O cão veio apoiar sua cabeçorra entre os joelhos do homem.
E ele tornou a carinhar carinhoso o seu pescoço.
- Se mal lhe pergunte, o nome dele é diferente.
- Desde que nasceu que ele é diferente. Foi a primeira vez que eu vi um cachorro desgostar de árvore. Só se necessita nas pedras...
- Compreendi.
Bebeu a água gelinha e molhou com o resto as mãos esfregando o rosto e o pescoço. - E seu nome? Tenho não, dona. Sempre me chamam de homem.
- Pois bem, Homem. Nessa lordeza toda a gente tem que ver que não é gente de eito.
- De vera, não. Sou o que sempre fui: vaqueiro. Mas quando a gente se desanda por esse mundo de Deus, serviço diferença não faz.
- De onde veio vindo?
- Do lado do Sol e caminho para o lado da Noite. Lá.
- Sempre assim?
- Quase.
- Não é capaz de se deter sem relâmpago?
- É difícil. Não posso, num sabe? Sou bondade ruim.
Mesmo porque comigo bondade boa não dá. Cansa cedo.
Aí ele se levantou espreguiçando e pensou no que pensou. Levar Xonga para qualquer canto, tirar-lhe os arreios e dar água de beber.
Findou de se explicar.
- Sou vaqueiro quando quero. Homem sem peia. Sem raiz que nem o vento.
Olhou a mulher. Era mesmo uma alvorada. Nem moça nem velha. No ponto em que tudo arredondava de macio. Seus olhos tinham aquela luz fazente de se gostar. E o corpo reclamava saudade e tempo sem.
Foi então que ela resolveu se apresentar. Precisava? Não. Mas a vaidade exigiu. E foi bem pouco.
- Eu sou Rosa.
Aí ele riu. Precisava dizer?
- De que cor?
- Cor de tudo. Verdemelha. Verdemilho. Amarela e Chá também...
- Gosto.
• • •
Já tinha um pequeno rancho distante pouco. Armara a rede e se banhara num poção bem fundo. Dera comida pra Xonga e esperava rodeando as duas pernas num abraço apertando a rede.
Só esperava que a fome desse em Rosa para que a janta aparecesse família. Enjoado que tava da carne no espeto no sereno das noites.
Enquanto isso Rosa se banhava em casa. Gastando do melhor cheiro de sabonete. A alma falava calma que a esperança chega um dia. Quem sabe?
- Rosa, cuidado!
- Já sei. Tio Joana.
- Home é bicho-macho e como bicho é sévérgonha.
- Por isso que é.
- Quer dizer que conforme amanhã já posso dormir em casa?
Rosa riu rindo muito.
_ Por pouco já era de hoje.
- Aconselho cuidado. Mas se Mijimpedra gostou dele é porque se pode confiar.
Penteou os cabelos e pediu para Tio Joana alumengar os lampiões.
Joana resmungou e fez.
- Homem e com nome de Homem é desses que pegam logo. Que entram no corpo da gente sem nem sequer pedir licença.
Rosa riu rindo mais.
Tudo pronto, mandou chamar o vaqueiro.
Mijimpedra veio ao seu encontro abanando o rabo e Rosa pensou:
"Cachorro é que nem mulher: precisa de homem-dono".
Ficaram os dois de cada lado da mesa e Tio Joana servia.
Comeram sem se falar. O lampião no meio deles colocado de propósito pela velha, tinha menos luz que a luz dos olhos deles.
Depois Homem foi no alpendre para fumar na noite farinheira. Roubava aquela estrela pra ela, roubava aquela outra pra mim.
Rosa também veio e encheu o fora de mais perfume.
- Daqui pouquinho vou dormir. Tou com o corpo cansado e preciso de uma noite bem noite.
- Sei.
Tio Joana passou em silêncio perto deles aumentando o volume das suas sombras com torcida baixa do lampião.
Depois veio um calado comprido que não acabava mais.
Homem desencostou do mourão e se espreguiçou.
- Já vai?
- Precisa, não?
- Você não falou no cansado? Pra que caminhar tão longe?
Homem riu suave. E na certeza que a escuridão oferecia sentiu os cabelos, o pescoço, os seios, sentiu mais tudo, tudo mais. E se incomodou de aflitez gostosa.
- É mesmo.
Então Rosa segurou na mão dele e se encaminhou para o corredor que acabava no quarto.
- Deite, Homem.
E Homem obedeceu. Rosa aumentou a chama do lampião e soltou os cabelos de vez numa cachoeira negra desabando.
Sentou-se a seu lado e foi desabotoando a camisa. Tirando tudo. E viu à luz que Homem passava do que sonhara.
Ele puxou-a para si.
Pouco mais e não foi muito conversavam baixinho.
- Você não queria uma noite para o seu cansaço?
- Mas isso não cansa e você é outra noite mais macia.
- Você não vai logo, não vai?
- Quando que chegue o momento.
- Por que não fica muito? Eu também sou vaqueira e sei parturiar a noite no rodeio dos meus braços. Mas isso pra quem não desvai.
- Já disse, Rosa. Aflitez faz meu coração de triste repetir: não aninhe, meu bem, entre os seus macios bondade que seja ruim.
Homem desgrudou guardando distância para que sua boca beijasse de Rosa os dois seios.
Depois amolengou-se porque o dia fora de caminhada tamanha e os olhos pesavam horas.
Rosa pegou e ficou alisando desenhos nas costas dele e na doçura do semi-sono Homem foi atracoalhando a fêmea que se encobrilhava suave entre os peleios do peito.
• • •
Coração de Rosa desensofria vendo de longe Homem perdido na paisagem do trabalho.
Uma semana já passara. E ele limpara o assoalho de todo mandiocal.
Aparara o inútil e o quebradiço das ramas das abóboras-meninas.
Começava de cedo a carretear Xonga até o pé do poção e lá vinha ele sem camisa no brilho do suor do meio-dia puxando a égua. E os baludes sordilhando de água, sacolejavam pingos rondinhos, rondinhos sobre os costelos do alimar.
E de noite, no descanso do cansaço ainda tinha forças pra dizer coisas de poesia com beleza de oração, alisando todo o seu corpo naquele pronunciamento suave:
- Se muito rico me fora fabricava esporas de ouro das rosêtas dos seus seios.
- E pra mais?
- Pra mais? Ora! Montava no meu cavalo de sonhos e subia no negrão do céu, descascando as pontas das estrelas...
- E se tanto?
- Pois que não é demuito?
E o coração de Rosa adivinhava nos longos pensamentos que a hora de Homem andar estava urgindo.
• • •
Aí foi que Tio Joana veio de próximo. Homem sorriu e parou o machado e vendo o silêncio da velha per-meiou:
- Pois se desdiga logo, meu Tio Joana.
Tio Joana se arribou num pegatronco de pau incor-tado. Depois soltou os pés da areia e se cocou um com outro.
- Quem gosta de vento, gosta quando ele chega e desencanta quando ele se êvai.
- Verdade em Cristo, Tio. Vento não tendo mais serviço, não tendo maltrato, distrato se vai mesmo.
A velha olhou Homem de todo em todo. De pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. Não se lhe malqueria. Porque liberdade é pouca no mundo e quando tem função deve se desgastar.
- Também, serviço acabado, o vento se vai e faz dos outros ausência e sofrença.
- Rosa?
- É.
- Gosto Rosa.
- E por que vai?
- Serviço acabado, Homem vai. Braço parado foi feito pra as damas santas de altar de templo.
- Mas Rosa nas suas possensas tem na vila loja de vender tudo.
- Eu eu, Tio? Sou por acaso lago que pára na seca para diminuir as águas? Mato meu queimado de sol para desbranquecer por detrais de um balcão de vendilhas? Deixo a minha égua Xonga repetindo a mesma caminhada, suando a sombra indo e vindo? Ela fenecia de tristeza e de desgrume.
- E Rosa?
- Dei carinho, recebi amor. Promessas nem a vida faz pra gente quando nascer faz o humano.
Fez uma pausa e viu as formigas fulventas sobedesce na madeira cheirando a cortado novo.
- Labutei, que tanto e depressa para não prejudicar no ganho o dinheiro de Rosa.
- Vento não usa peia, nem gravata, tá certo. Levantou-se mais pesada e assim sendo fundeou mais a areia comprimida e poeira se elevou malsã.
• • •
Apertou Rosa entre os braços.
E Rosa sentiviu que o momento viera ligeiro como tudo que é bom não demora, mete espora.
As mãos de Homem pronongavam ternúcias delatando tudo. Falando e sem repetir o segredo adivinhando. Homem ia.
E era por tal que as palmas quentes também iam pra lá e decá. De cima até o limite de baixo se parandando quase no envolume dabun.
- Sentindo, Homem?
- O que minha flor?
- Coração que é meu geme com a dor da piranha que fisga anzol e fica rolando na praia do rio.
- Mas o rio não liga. Vida tem de ser assim: horas e horas melhores. Alimentar do que é bom e deixar o resto no resquício do Deusquerer.
- Dá razão. Nada prende Homem. Nem lação de amor maduro, nem rede de amor-carinho.
- Deus me fez e Deus me disse: não use camisa xadrez para que o peito não prenda liberdade nem amor.
- E quando?
- Dou dois dias de premunência.
- É pouco.
- Ia de um, ser.
- Pois que presenteie minha saudade com dois mesmo.
- Prometido.
- Mas amanhã. Pago o dia de trabalho sem trabalho. Vamos andando pelo dia juntamente, usando todos os momentos para endurificar menos as juçaras de ausência no amargo do meu gosto.
• • •
E foi que foram desde cedinho. Pouco, bem pouco, desgastavam as palavras do silêncio.
Foram se banhar na lagoa, e as águas estavam tão mornas que nem se importavam com o resto. Homem viu o corpo-Rosa que estava pleno e redondo bem no ponto de parar: era noite bem madura mas com perigo de amanhecer. Deus do tempoI Deus do tempo! Fique mais...
Depois passearam na beira do rio. E Rosa sorveteou a areia da praia branca entre os dedos. Queria até chorar mas não queria.
- Você também, Homem, é farinha órfã.
- No exato. Farinha que ninguém sabe quem é o pai, quem é a mãe? Pois sou. Farinha como o homem que nasce só e vai morrer mais isolado ainda. Farinha vem dê qualquer canto, de todo o canto e é tão cheia de solidão como o homem. É isso?
Rosa abanou a cabeça e os cabelos ainda agualigados balançaram sempre tristes.
- Arroz vem de lugar que se conhece, sal aparece de cidades de nome. Farinha não.
Desderam a mão e recomeçaram a caminhada.
- Olha, Homem.
E Rosa mostrava o grande piquizeiro fazendo sombra redonda sobre o verde.
- Olha, Homem.
E Rosa apontou grande pedra no rio usando ainda o sombredo da árvore.
- Ali é a Pedra de Deus. Ali é a Árvore de Deus.
- Como sabe?
- Contaram e recontaram esta estória muito linda, quer?
- Quero
- Um velhinho que veio de muito longe, assim falou e viveu. Jurou pra todo mundo que aquela Árvore era meia-praça sua e de Deus. E a Pedra também, também. Ficou muito morando ali. Um dia de farinha órfã ele se foi de adeus.
Sentaram-se na pedra, na sombra de Deus e ficaram vendo as águas gorgulharem xoem-xoem-xoem.
Tarde com vento minguinho. Primeiros brilhumes de estrelas. Verrugens no começo do escuridiço sobre as árvores da selva ponteando o lado do rio. E logo o maruscar dos fogumes do pôr do sol.
- Vamos. E vieram.
• • •
- Olha, Rosa, amor não se cobra nem se paga quando é. Mas minha necessidade me obriga a cobrar o suor do meu labuto. Dado que preciso encher de muito a matula para caminhar o meu destino. E no mais todos os caminhos da vida pedem da gente muita força.
E Rosa deu o dinheiro que não era muito mas ficou muito porque veio aquela pena.
Rosa foi sem sentir os passos até o fundo do alpendre, até o decote da janela da cozinha.
- De hoje e todas as noite, Tio Joana, você volta a me nenear.
Voltou. Homem tinha encilhado a égua. Homem tinha alisado com fermência a cabeça de Mijimpedra.
Homem olhou Rosa no semi-escuro dos seus olhos-noite.
- A noite chegou-se, Rosa, e dado me ser partir. Veja que negrexume bonito me chamando quase em eco: vou.
Antes se montando ainda disse:
- Nem apreciar partir com o sol. Sol maludo, sol quentêro. Noite sim, porque dá no coração da gente a esperança de se ir partindo docemente para o sono, para a morte.
Firmou-se todo e não se voltou mais. Apenas cocou a cabeça de Xonga, falando sussurrada-mente:
- Vamos, vida.
E se foi sem estar triste nem alegre, mas todo de muito em paz acalentava seu coração.
E Rosa vendo o vulto se perder na esquina da solidão rezou uma reza de obrigado:
- Té que mais, meu Deus!

 


PRIMAVERA DOS ENFORCADOS
SALATIEL TOMOU A decisão de uma vez por todas.
Levantou-se e caminhou entre a relva, pegando um trilheiro até chegar em frente ao rancho.
Entrou sem fazer muito barulho como era de seu feitio. Os homens levantaram a vista sem se mexer do lugar.
Salatiel tirou o chapéu de couro e fitou os rostos cansados e queimados de sol dos três irmãos. A pele descascava no nariz de cada um e nos braços também dava mostra de querer se rachar.
- Que foi Salatiel? Descobriu alguma coisa?
- Que tem bugre por perto, nem se discute. Vi fumo deles. Vi rastro deles que o vento não apagou. Felizmente eles já estiveram aqui antes. Estão indo embora, mas ainda vão demorar por perto.
Sentou-se, encostando-se na parede de pau-a-pique.
Os furos no sapé e o barro caindo das paredes indicavam que o abandono morava ali fazia tempo.
Todo mundo sabia da história daquele rancho. Pertencera a Amâncio da Luz que teimara em vir morar e fazer roça em terra de xavante. E o resultado: massacrados; até as criancinhas não foram poupadas. Nem bicho, nem criação. Uma sangueira só. No meio do mato ainda se via um resto de plantio de mandioca que em breve também desapareceria. Felizmente aquilo servia para ser comido. Se bem que só podiam fazer fogo quando o vento soprasse dos índios para aquele lado. Todo cuidado era pouco.
- E se eles voltarem? perguntou Rubino.
- É difícil. Se eles chegarem perto o jeito que tem é a gente levar um cavalo bem longe e soltar na selva. O bicho assustado vai relinchar. Eles vão atrás e o cavalo desesperado leva eles pra bem longe, dando tempo da gente atravessar a lagoa e alcançar o Bêérokan. Mas vamos ter calma.
Nemésio o mais moço deles mostrava mais apreensão. Medo até.
Diogo passou a mão na barba de vários dias e resmungou.
- Gostava mesmo era de fumar nem que fosse um palha-brava.
Salatiel cocou os cabelos quase totalmente embranquecidos que lhe davam mais escurecimento no rosto de cobre de tanto sol da selva.
- Mas não foi isso que eu vim falar, não. Os três o fitaram curiosos.
No começo ficou enrolando a tentativa de falar.
- É lá, ele.
- Que é que há com aquele filho da puta?
- Tá ainda desmaiado.
- Se não fosse aquele desgraçado a gente não estaria passando o que estamos.
- Isso eu sei. Mas vosmecês não podem mais bater tanto naquela criatura. Senão ele não chega vivo.
- Que chega, chega. E que vai pagar toda aquela desgraça, isso vai.
- As costas dele são uma chaga só. Os olhos quase não se abrem.
- Ora, ele é bugre. É uma fera e agüenta.
- Agüenta até certo ponto. Porque quando a gente tiver de atravessar rio, lagoa e riacho, com água até no peito... piranha dá cabo dele.
Diogo que parecia o mais malvado retrucou.
- Então a gente só bate na cara.
- Vosmecês é que sabem. Mas também não se deve esquecer de uma coisa: ele é bugre, mestiço, a gente pode precisar do faro e da vista dele.
Nemésio relembrou.
- Então é melhor parar. Temos de chegar até a fazenda e o Pai pediu que a gente trouxesse o Bugre com vida.
Salatiel ergueu-se.
- Vou fazer uma salmoura nele e depois alivio as costas com água de mandioca e folha de sicupira.
Saiu e parou olhando a paisagem. Entardecia e a primavera da selva se anunciava em todas as árvores. Os ipês faziam manchas amarelas deixando o azul do céu aparecer mais bonito ainda. Sorriu apesar de tanta apreensão. A natureza sabia de tudo. Quando devia vir a chuva, o tempo da seca e o florescer da Primavera. No ponto mais alto os vultos dos jaburus rodopiavam na correnteza do vento. Aquilo seria bonito toda a vida.
Foi se encaminhando para a árvore do Bugre. As moscas e os tatuquiras enxameavam o seu corpo.
Trouxe uma cuia de água e primeiro molhou os lábios, fendidos. Depois suspendeu os longos e lisos cabelos negros, apoiando sua cabeça contra o tronco.
Com a dor das feridas se roçando na casca, Bugre deu um gemido grande.
- Não é nada, companheiro, a gente melhora logo isso.
Fitou o corpo retalhado do índio e ficou indeciso por onde começar o tratamento.
- Primeiro, se você está entendendo vou dar boa notícia. Está?
Gemendo ainda Bugre fez um meneio de cabeça com muito esforço.
- Pois bem. A gente tem de ficar aqui ilhado pelo menos três dias. E eles não vão mais açoitar você até chegar na Fazenda.
Salatiel em seus pensamentos reviu o moço que era tão alegre na Fazenda e transformado agora numa posta de sangue. Reviu a brutalidade em cada amanhecer, em cada entardecer. Quando amarravam o rapaz entre duas árvores como se fosse um Jesus Cristo e o chicoteavam até que as suas pernas não agüentassem mais o corpo e a cabeça descaísse desfalecida.
- Agora vou limpar o sangue pisado e o sujo da poeira de cima dos seus olhos.
Teve pena. Afinal o moço era quase um bruto. Por que o tinham tirado da aldeia para criá-lo como vaqueiro? Para esse fim?...
- Quando você puder olhar, vai ver que o bom Deus já mandou pra gente olhar toda a beleza das flores da primavera.
Contornou a árvore e desatou os pulsos feridos pelas cordas.
- Vai doer um pouco o peito, mas a gente precisa lavar os lanhos das costas.
Tirou a camisa suada e forrou o chão para que o índio deitasse de bruços. Fez com que se apoiasse em seus braços e o ajudou.
Com a mão bem leve foi espargindo a salmoura nas costas e no pescoço. Que doía muito, doía, mas o rapaz não reclamava mais.
- Hoje você não vai dormir amarrado na árvore. Vou amarrar seu pulso no meu e fico dormindo e montando a guarda perto de você.
Com a mão, Bugre apertou o joelho de Salatiel, agradecendo. Pois falar quase não podia.
• • •
Nem fizeram uma fogueira para esquentar a noite que mesmo sendo de Primavera prosseguia no frio.
Dentro do rancho, os três irmãos dormiam um sono pesado, cansados que estavam da jornada de sangue Sobretudo por terem vindo da cidade e desconhecerem a dureza da selva.
Salatiel montava guarda com um rifle de repetição e encostava-se na árvore onde todo o tempo o índio estivera amarrado. Prendera o pulso do rapaz ao cabo da arma para que a qualquer movimento feito o despertasse. Mas não dormia. Ficava atento a qualquer ruído e espiava o céu esfarinhado de brilhos rompendo o negrume da noite.
Bugre continuava deitado de bruços e Salatiel colocara cuidadosamente uma coberta sobre o seu corpo para abrigá-lo um pouco.
Um movimento que fizesse aparecia um gemido.
Agora os dois falavam baixinho.
- Latiel, que é que vão fazer comigo?
Pensou em esconder a verdade. Depois convenceu-se do contrário. Era melhor contar tudo para que aparecesse no índio um desejo de reação ou talvez uma vontade de escapar...
- Muita coisa, Bugre.
- Então me conte.
- Do que ouvi, vão te levar até lá. Depois vão usar você como mulher de todo peão da fazenda. Depois na frente de todo mundo vão arrancar os seus grãos. O Coronel é maludo mesmo. Ainda...
Ficou com pena de acabar.
- Conte tudo mesmo.
- Vão desenterrar o corpo da moça, deixar você duas noites dormindo junto do cadáver dela e depois, falaram em enterrar você vivo na mesma cova.
Apesar das dores Bugre engoliu em seco e um pavor tremeu todo o seu corpo.
Calaram-se. Salatiel não conteve a curiosidade. Perguntou bem baixinho.
- Mas por que você foi fazer tudo aquilo, Bugre?
- Não adianta contar, já foi feito. Pode ser que não aconteça nada disso. Xavante anda rondando por aqui. Eu vi rastro. E se a gente conseguir atravessar a lagoa é época de Caiapó beiçudo fazer andança pro lado de cá. Foi por isso que me lembrei do rancho de Amâncio da Luz e fugi pra esse lado.
- Pensava que ninguém vinha buscar você por isso?
- Foi. Quem deu a idéia de que eu estava aqui?
- Quiriba. Quiriba calcula tudo.
- Bom que me contou. Se escapar daqui, pode ser que um dia eu encontre com ele.
Os olhos começaram a se fechar de cansaço e Salatiel deitou-se a seu lado, bem junto do corpo do índio para encontrar mais calor.
• • •
Estava ouvindo. Tinha certeza de que estava ouvindo. Alguém caminhava na escuridão da noite. Sentou-se.
Unhas arranharam na janela do quarto e seu nome foi murmurado.
Ergueu-se em silêncio e abriu a porta. Era ela. Que louca!
Abriu a porta e a moça penetrou rapidamente, fechando-a e recostando-se nela.
Acendeu um fósforo e ateou o pavio da lamparina.
O corpo arfante e os olhos esgazeados o fitavam. A blusa entreaberta mostrava a liberdade dos seios rijos. A sua pele trazia um cheiro diferente de tudo que conhecia.
- Que foi que veio fazer aqui, dona? Volte logo para Casa Grande antes que gente veja.
Ela colocou os dedos nos seus lábios, obrigando-o a calar-se. Puxou-o para a cama e sentou-se a seu lado. Viera descalça e a sua respiração arfava pela emoção e esforço feitos.
Bugre reclinou-se no colchão velho sem saber o que fazer.
Soprou a luz e sentiu que ela viera apoiar-se no seu peito. Agora era o cheiro daqueles cabelos macios, dourados como o sol na areia do rio, alisando-se no seu queixo. Sentia-se entontecido.
- Melhor voltar logo. É perigoso.
- Todos estão dormindo lá em casa. Ninguém viu. Pulei a janela da sala dos fundos.
- Mesmo assim, volte. Seu Pai me mata se souber disso.
- Não podia mais dormir. São noites e noites que eu não durmo. Só vejo você. Foi por isso que eu vim.
E suas mãos penetraram entre os fios dos seus cabelos negros e lisos. E desceram sobre o seu rosto. Sobre os seus lábios e por fim com as pontas das unhas arranhou seu peito forte.
- Você gosta de mim, não gosta, Bugre?
- Não sei. Você é filha de fazendeiro. Eu sou só um vaqueiro-índio. Por favor volte, antes que alguém descubra.
- Não. Eu vou ficar. Você não vai me fazer nenhum mal. Depois...
Depois ele lembrou-se do tempo que não via mulher. E fazia muito tempo mesmo. Depois ele sentiu aquele corpo duro se roçando violentamente no seu. E foi dando aquela loucura. Esqueceu-se de tudo. Só o sangue fervendo no seu corpo.
- Não, Bugre. Eu ainda sou virgem...
O desejo o arremessava selvagemente contra a mulher.
Ela quis gritar mas a mão impediu-lhe o movimento. Apenas um pequeno uivo se escapou.
Bugre apanhou o travesseiro e cobriu-lhe a boca para impedir qualquer reação.
Rasgou-lhe a blusa e a saia. O mundo todo zuniu e caiu quase desfalecido ao lado do corpo da moça. Precisou levantar-se e escancarar a janela para respirar. Lá fora a noite estava ainda alta e as constelações faziam a sua ronda indiferente.
Caiu em si e tremeu. Estava perdido. Urgia que ela voltasse logo para casa. Amanhã combinariam qualquer coisa. Uma fuga, talvez...
Acendeu a lamparina e retirou o travesseiro. Os cabelos de ouro brilhavam mais com a luz. Eles jaziam longos e desarrumados pela cama. A boca entreaberta não respirava mais. Colocou o ouvido sobre os seios e o coração parará.
Como doido sentiu o corpo todo molhado de suor. Precisava fugir. Tinha o resto da noite para ajudá-lo.
Por sorte o seu pequeno casebre ficava distanciado da sede.
Arrumou o que podia. Apanhou seu arco e suas flechas de pesca e também a faca. Colocou uma velha rede dentro de uma coberta surrada e enfiou tudo no pescoço e no ombro. Apanhou também o remo recostado na parede.
Fechou tudo, apagou a luz e saiu procurando calma.
Se acaso o vissem, pensariam que saía para a pesca.
No porto, desatou a canoa e procurou sem ruído a correnteza do canal.
No meio do rio pôde respirar e um alívio sossegou o seu coração.
Não pretendia continuar descendo o rio, porque na fazenda logo que descobrissem, viriam em ubá grande com motor na popa e seria alcançado logo. Defenderia com unhas e dentes sua vida. Melhor seria, depois que se afastasse bastante, encostar na selva do lado de Mato Grosso e sumir pelos gerais adentro. Pouca gente tentaria procurá-lo. Era época de caçada dos Xavantes e de andança de Caiapó beiçudo. O seu sangue e o seu instinto ajudariam a evitá-los. Mas os brancos não, se o pegassem estaria perdido.
E a canoa continuava no centro do rio, evitando as remadas mais fortes ou as aproximações das aldeias ou um possível e remoto povoado. Ali, o mundo era muito grande e só se contavam as léguas...
A cada momento os fatos voltavam ao seu pensamento.
- Sabe Bugre, os filhos do fazendeiro vêm passar as férias de junho aqui.
Muito de longe sabia da história deles. Desde que o velho ficara viúvo enviara os filhos para estudar em São Paulo. E fazia anos que não visitavam o pai. Tamanha era a dificuldade, tamanha a distância.
- Quantos são?
- São quatro. Seu Diogo, seu Rubino, seu Nemésio e dona Júlia. Essa quando foi simbora era ainda uma cunhãzinha desse tamanico. Hoje já deve tá moça feita no caminho de casamento.
- Eles nunca vieram aqui?
- Nunca. Duas vezes o pai foi lá visitar eles. Os homens tá tudo se formando em doutor.
- Hum,
Foi tudo que teve para dizer. A vida dele era o campo, pastorear gado, procurar vaca parida ou laçar gado brabeza, fugido de outras fazendas e virando fera na selva. Não tinha muito que pensar. Só sabia que eram três homens e uma moça.
Remou mais e o vento da noite avançada doía nas costas nuas e os cabelos compridos batiam as pontas sobre os ombros.
Foi uma festa na fazenda. Apareceu até cantador e fizeram fogueira grande. Deram até pinga para todo o pessoal. Ficou de longe olhando tudo. Só comeu batata-doce na brasa. Beber não deixavam porque era índio.
Melhor ficar no seu canto distante, só espiando. Mas que a moça era bonita, era mesmo. Diferente de tudo quanto era mulherada que vivia por aquelas bandas. Os cabelos eram tão louros, tão brilhantes. E na luz da fogueira chamava mais atenção ainda.
"Mais uma légua, vou ter de pegar a beirada da barreira. Depois furo a canoa e afogo ela. Assim não deixo pista nenhuma. Só gente do meu sangue é que pode saber me seguir. Ou um mateiro muito experimentado mesmo."
Depois a moça resolveu conhecer tudo. Primeiro o rio. E ele foi o encarregado de remar pra ela. E ela riu mostrando os dentes muito brancos, a boca muito vermelha e a pele muito clara se afogueando no sol.
- Bote chapéu, dona. Sol tá forte e pode lhe ofender o rosto.
- Como é que você se chama mesmo?
- De cristão sou Tonho.
- Não, falo do seu verdadeiro nome de índio.
- É feio. Temacuíra Mabitiôre Andedura.
Ela riu e fez com que repetisse muitas vezes.
- E que quer dizer tudo isso?
- Temacuíra é nome mesmo. Não quer dizer nada. Mabitiôre quer dizer pequeninho, sabe como é? É filhinho. E Andedura quer dizer arara-vermelha.
- Então sua mãe quis dizer que você era filhinho de arara-vermelha?
- Acho que era isso que minha mãe queria dizer sim. Mas o pessoal da Fazenda só me chama de Bugre.
Ela ficou colocando os dedos n'água enquanto a canoa deslizava.
- Perigoso isso, dona. Pode ter peixe.
Júlia retirou a mão e recostou-se na canoa. Deixou a paisagem para observar Bugre.
- Que idade você tem, Bugre?
- Não sei direito, não. Mas já passei de muito dos vinte anos.
- Você é casado, Bugre?
Por dentro ficou meio irritado com a moça, por ser tão perguntadeira. Mas ela o tratava bem e era filha do patrão. Tinha de responder mesmo.
- Não senhora, dona.
- Mas por quê?
- Índio só casa com índia. Um dia vou procurar uma que nem eu, numa aldeia de baixo. Mas índia sempre é muito feia.
Júlia riu, divertindo-se com a conversa.
- E como é que você se arranja?
Tremeu até por dentro. Isso era lá pergunta que se fizesse? Nem teve tempo de responder porque ela se adiantou.
- Por aqui só dá gente feia. Cada mulher de arrepiar. É branca, preta, mulata. Gente feia que não acaba mais.
Ele ficou até espantado com a resposta que foi dando.
- Pois é, aqui só tem gente feia e um dia vou lá em baixo numa aldeia e trago uma índia feia para mim.
Ergueu-se e apanhou a zinga. Firmou na areia do raso e flexionou o corpo.
- Agora vamos voltar, dona, porque já andamos muito. Podem ficar com cuidado na fazenda.
Ela deitou-se mais na canoa e ficou vendo o ritmar dos seus músculos. Sentia que os olhos da moça seguiam todo o movimento do seu corpo.
Bugre estremeceu no momento chegado. A barreira Rekan estava findando e logo apareceria uma pequena praia sua conhecida, cercada de mato-sarão.
Saltou na areia e puxou a canoa. Retirou os seus trens e emborcou a ubá. Dava até pena sacrificar um pau de landi tão bonito como aquele. Vergou as costas e com a faca começou a perfurar a embarcação.
Tornou a puxá-la para o rio e empurrou-a com os pés.
O rio ficou fazendo borbulhas com o seu desaparecimento. Disse uma série de palavras amigas para a ubá que morria.
Virou-se para a mata. Não havia tempo a perder, nem do que hesitar.
Caminhou todo o resto da noite meio assombrado porque o fantasma-cunim de Júlia o perseguia.
- Bugre quero andar pela mata. Você como índio deve conhecer melhor que qualquer peão da fazenda.
- Melhor pedir pra seu pai deixar.
- Papai não me nega nada.
- É perigoso. Tem bicho.
- Você conhece tudo. Eu quero ir.
- Mas nesse tempo estrada de mato tem bastante carrapato que de noite coca muito.
- Você evita.
Teve mesmo que ir. Entardecia e ela sentou-se cansada numa raiz de uma mirindiba grande.
- Sente também, Bugre. Sentou-se.
- Aqui mais perto. Quero conversar.
Sem jeito, aproximou-se. Júlia entreabriu a blusa e o colo muito alvo apareceu. Soltou os cabelos e abanou-se com o chapéu de palha.
Ficou na gostosura da sombra espiando o céu azul tão longe e cheio de aves enormes, voando nele.
Virou o rosto de repente e deu com o índio que a observava em silêncio.
- Como é que índio enxerga tão bem com os olhos tão pequeninos?
- É que desde menino a gente arranca as sombrancelhas e as pestanas.
Ela fez uma careta de horror.
- Dói muito?
- Nem um pouco.
Num gesto inesperado, Júlia passou as mãos nos seus cabelos.
- Quanta mulher na cidade não daria a vida para ter os cabelos assim tão negros e tão bonitos.
Arrepiou-se todo e sabia que de noite sentiria a maciez daqueles dedos nos seus cabelos. Iria até perder o sono.
- Mas os meus são mais macios. Quer ver?
Bugre não se atrevia. Queria correr, fugir. Imagine se o patrão soubesse disso? Seria massacrado de pancadas.
A mão de Júlia agarrou a sua e pousou-a nos cabelos sedosos. Arrancou a mão como se tivesse tomado um choque. O pior era o cheiro que subia de seu corpo, que escapava sempre daquela blusa entreaberta. Ela riu.
- Bobo.
Bugre levantou-se.
- Vamos embora.
- Dê-me a mão.
Ajudou-a a levantar-se e ela de um ímpeto encostou os seios duros contra o seu peito.
Caminharam em silêncio. Aquela moça estava lhe fazendo mal e não sabia como sair de tudo aquilo.
- Amanhã quero ir na fonte do Poção. Disseram que é um lugar lindo.
Não respondeu. Preferiu caminhar mais depressa.
- Você me leva lá.
- Amanhã não posso. Vou levar um gado até o pasto bem longe.
- Mas quando voltar me leva, não?
Queria dizer não. Fugir, sumir, antes que aquela febre de loucura o tomasse de uma vez. Mas encontrava-se em frente à fonte e as águas caindo num pequeno fio d'água enchiam o Poção.
- Vamos banhar?
- É perigoso, dona. Pode ter ninho de Lei.
- Que é Lei?
- Lei é sucuri na língua da gente.
- Tem nada. Vamos.
- Não trouxe calção. Ela riu.
- Vire-se e só se volte quando eu chamar. Obedeceu nervoso. Escutou o barulho da roupa caindo. Um correr sobre a areia e o barulho das águas se revoltando com o mergulho.
Uma risada gostosa e a voz ordenando.
- Vire-se agora.
Ficou até entontecido. Ela estava nua dentro d'água e deixava à mostra da cintura para cima; os seios brancos como leite escorrendo água. E as rosêtas eram da cor das asas do colhereiro em vôo.
- Venha. Venha!
Negava-se a obedecer.
- Estou mandando que venha.
Aí não se conteve nem sabia o que estava fazendo. Sem retirar a velha calça foi penetrando alucinadamente na água.
Mergulhou e saiu perto da moça.
Ela prendeu-lhe o pescoço nos seus braços.
- Bugre, Bugre. Já lhe disseram que você é lindo?
E o rosto dela se aproximando do dele e as suas mãos descorrendo sobre seu dorso musculoso e queimado.
Ela puxou seu rosto para perto, para mais perto, para mais perto ainda. Sentia o seu respirar, o cheiro gostoso do seu hálito...
- Você nem sabe beijar, não é bugre?
E mordeu a sua boca e beijou todo o seu rosto.
- Nunca você fez isso com uma mulher branca, não é, Bugre?
Com esforço separou-se dela e ela continuava rindo. Na sua boca, no seu corpo, nos seus cabelos, em todo pedaço do seu ser, Bugre sentia que o beijo o devorava...
Parou um pouco e viu que o amanhecer para a sua paz, aparecia. Precisava caminhar muito e esquecer. Esquecer que ela agora estava sendo procurada. E que quando arrombassem a porta do seu casebre iriam ver o corpo nu e os cabelos loiros se derramando sobre a cama.
Se nos cinco dias que viessem conseguisse alcançar o rancho de Amâncio da Luz, poderia dormir, dormir muito e depois não quereria mais se lembrar de nada.
• • •
- Bugre, onde você achou aquela panela de barro onde a gente cozinha a mandioca?
- Tava lá mesmo. Eles deixaram emborcada bem no caminho de quem pega a antiga roça.
- Sei. Você calcula de que tribo?
- Gente de minha raça não é, porque ninguém fabrica panela assim. Nem mesmo de ser de índio xavante...
Salatiel contraiu os músculos da face e nada disse. Mas Bugre interrompeu o seu silêncio com uma pergunta:
- E os homens?
- Tudo lá dentro. Dormindo de bêbados. Eles nem sabem o que fazer para passar esses dias.
- Tão se cagando de medo, não é? A gente vê nos olhos deles. Quando dá fé estão pensando que os caboclos vão voltar a qualquer momento.
- Só mais dois dias. Vou desamarrar as suas mãos do tronco para descansar um pouco.
- É bom.
Bugre friccionou os pulsos inchados. Levantou os olhos rapidamente e deu com Salatiel segurando o revólver em sua direção.
- Nem pense em nada, Bugre, que eu te apago.
- Nem sou louco de fugir assim, Latiel e depois você é amigo. Mas eu só queria lhe perguntar uma coisa. Por que você trouxe pinga?
- Sempre que viajo levo umas quatro ou cinco garrafas comigo. De repente a gente pode ser mordido de cobra ruim. E também gosto de tomar minhas bicadas.
- É. Mas até agora você não molhou a boca nenhuma vez.
- Fale a verdade, Latiel. Que é que você tá pensando fazer? índio sente as coisas de longe.
Salatiel deu de ombros indiferente.
- Por que você não deixou eles me baterem mais? Salatiel olhou longe como se recordasse de algo muito cruel.
Fixou o índio sombriamente.
- Alguma vez você já me viu sem camisa?
- Nunca.
- Já me viu alguma vez banhar no rio, de dia ou perto de alguém, viu?
- Nunca.
- Pois então você vai ver.
Arrancou a camisa e mostrou-lhe as costas.
Bugre espiou espantado. No ombro esquerdo do vaqueiro estava a marca feita com ferro em brasa. Negras e fundas as letras da marca do gado da Fazenda.
Cobriu-se rapidamente.
- Eu era bem moço. Estava como escravo, trabalhando. Não ganhava nunca o que desse para pagar o que comprava na Fazenda. Resolvi fugir. Apanhei uns cavalos e uns trens e abri unha. Mas fui caçado. Apanhei uma semana. Parecido com o que estavam fazendo com você. Depois fui marcado com ferro em brasa para servir.de exemplo. Toda minha vida eu tive de ficar lá. Envelheci esperando uma vez...
Sem dizer nada fez sinal para que Bugre colocasse as mãos em volta da árvore e amarrou-o novamente.
- Vou apanhar mais raiz de mandioca e fazer fogo para cozinhar porque o vento tá vindo pra cá. Depois vou apanhar mais capim para os cavalos.
Viu Salatiel descer até o corguinho que vinha da lagoa e voltar com o panelão de barro derramando água.
- De noite a gente acaba de conversar.
O vento da tarde trazia o cheiro das flores de piqui.
Bugre ouvia o barulho dos homens dentro do rancho.
Deviam ter acordado e falavam baixinho. Depois quando tudo escureceu, ele sentiu que estavam comendo mandioca, pelo cheiro que fugia da panela. Esperou com pontadas no estômago que se lembrassem dele. Agora que os ferimentos começavam a cicatrizar o corpo reclamava alimento. E uma esperança fortalecia-se em seu peito.
O vulto de Salatiel deslizava no escuro e nem se ouvia o som dos seus passos.
Trazia nas mãos pedaços cozidos de mandioca.
Bugre sorriu. Estranhamente, depois que os homens deixaram de lhe bater, talvez devido ao medo, evitavam passar junto dele. Via-os às vezes procurar o mato ou o córrego para se lavar, mas bem longe da sua árvore cati-veira.
- Vou lhe soltar de novo. Coma com calma. Depois que todos dormirem a gente fala mais. Eles estão meio desconfiados da gente conversar tanto.
Ficaram algumas horas em silêncio e novamente Bugre foi aprisionado.
Salatiel sumiu em direção ao rancho.
Não demorou e reapareceu.
Sentou-se encostando-se na árvore e sua boca quase tocava no ouvido do índio.
- Preste bem atenção. Eles beberam de novo. Estão apavorados. Eu disse que amanhã à noite a gente ia tentar atravessar a lagoa.
Parou um pouco para escutar se ouvia algum ruído suspeito e continuou.
- Não vou levar você porque essa é minha vez. Deixo você no seu destino. Se você conseguir voltar até aqui no rancho caminhe de lado pelo trilheiro fininho e por trás das três canjiranas brancas tem um pé grande de simbaíba. Na raiz dela, veja bem, na mais grande, vou enterrar um... e junto deixo uma...
Respirou fundo o ar frio da noite.
- Agora, vou ter de deixar você dormindo amarrado e se um dia na vida a gente se encontrar de novo, a gente nunca se conheceu.
Botou a manta sobre os ombros do índio preso.
- Pode ficar com isso.
• • •
O sol tinha se levantado bastante e Bugre fingiu que dormia com a cabeça pendurada sobre o ombro. Seus ouvidos estavam atentos aos passos que se aproximavam.
Levou um ponta-pé no peito e suas costas doeram contra a árvore. Não pôde conter o gemido.
- Onde está ele, índio desgraçado? Abriu os olhos espantados fitando Diogo.
- Onde está Salatiel?
Tremeu todo o rosto fingindo medo.
- Ele falou que ia dormir no rancho perto de vocês.
- Perto de nós, seu índio filho da puta? Desamarrou as mãos de Bugre e tornou a amarrá-las atrás das costas.
- Venha conosco.
Deu-lhe um safanão forte fazendo-o cambalear.
Furioso empurrava-o sempre em direção ao rancho.
Na entrada, deu-lhe um pontapé tão violento que caiu de bruços, arranhando mais os seus ferimentos. Sentiu dificuldades em levantar-se. Primeiro ajoelhou-se entontecido. E encostando os ombros e o rosto na parede conseguiu ficar em pé.
- Veja, miserável. Ele levou tudo. As armas... Levou tudo... até as garrafas de pinga.
Foi novamente arremessado fora do rancho e chutado por Diogo.
- E você não sabia de nada, não, índio desgraçado? Suspendeu-o pelos cabelos.
- Roubou os cavalos. Vaqueiro ladrão. Homem de confiança de meu pai. E você não viu nada, não sabe de nada.
E sem soltar os cabelos, vibrava-lhe o punho contra o rosto. O gosto de sangue molhava os lábios novamente fendidos.
Rubino e Nemésio agarraram o irmão.
- Pare, louco. Pare de bater nesse infeliz. Puxaram-no para longe do Bugre. Rubino enfurecido sacudia-o.
- Pare de uma vez. Nós prometemos. E não vê, idiota, que estamos perdidos? Que estamos com o nó no pescoço? Sem esse Bugre não chegaremos a lugar nenhum.
Nemésio veio ajudar o mestiço a levantar-se. Com a boca sangrando, Bugre comentou:
- Eu não vi nada. Se visse podia ter pedido que Latiel me levasse com ele.
- Roubou tudo. Todos os cavalos. E sumiu como uma sombra.
Bugre principiou a sentir que aqueles homens estavam a sua mercê. Salatiel deixara-o em seu destino e apresentava-se a sua vez.
Os homens foram se reunir perto do córrego e combinar alguma coisa. Voltavam agora sem a mesma violência da descoberta. Iriam poupá-lo de tudo. Nem era preciso fazer muito plano. Eles não tinham conhecimento de nada. Ignoravam tudo sobre a selva. Viraram homens de cidade. E eram aqueles homens amedrontados os escolhidos para vingar a honra da irmã. Os escolhidos para levá-lo vivo, somente vivo interessava, ao porco, ao senhor da Fazenda. Por dentro ria. Um momento haveria de aparecer. E se esse momento viesse mesmo, aqueles homens não voltariam nunca... Não voltariam nunca.
Cruzaram os braços a sua frente. A indecisão morava em cada expressão.
- Você tem de nos ajudar. Se não o fizer nós o moeremos de pancadas e será lançado às piranhas.
Falavam aquilo mas sem convicção alguma. Olhou os três sem medo.
- A gente tem de andar em seu encalço. Se ele atravessou a lagoa, é porque os índios já se foram. E se os índios já se foram a gente também arrodeia ela e caminhando com cuidado dentro de quatro dias, aparecerá Bêérokan. E na beira do rio é mais fácil alguém dar ajuda ou socorro.
A alegria alastrava-se em seu íntimo. Haveria de matá-los de cansaço antes que tudo isso acontecesse. Violentamente se decidiram.
- Vamos esperar a noite que a gente pode se esconder mais.
Bugre retrucou.
- De noite a gente não enxerga o rastro dele nem dos cavalos.
- Então, vamos e é já.
• • •
Caminhavam famintos sob o sol de fogo. Mas a raiva de Bugre era tanta que nem aquilo doía mais em seu corpo retalhado. Ao entardecer, sedentos e trôpegos pararam.
- A gente precisa se esconder e a noite não vai demorar muito. Amanhã antes do meio-dia a lagoa aparece.
Agora era Nemésio que dormia a seu lado, amarrando as suas mãos fortemente contra um dos seus pés. E eles tremiam de medo e de frio também. Pelo jeito ia ser mais fácil do que esperava.
Levantaram-se bem cedo. Precisavam chegar logo à lagoa para se lavarem e beber.
Voltaram a caminhar em fila, guardando um silêncio de morte. Não falavam para economizar energias.
Perto do meio-dia, quase cambaleavam. Foi quando Bugre apontou para o céu. Os corvos voavam baixo em grandes círculos.
- Tem carniça nova bem por perto!
- Como é que você sabe?
- Se fosse carniça velha eles já estariam pousados. Andaram mais. O medo dava novas forças àqueles miseráveis. O capinzal batia-lhes nos rostos e arranhava-lhes os braços. Sussurrou.
- A lagoa está próxima e a gente precisa se cuidar.
Riu por dentro, mas fingia-se apreensivo. Ajoelhou-se e pediu para que lhe soltassem as mãos ou as amarrassem na frente.
- Senão não poderei rastejar.
Obedeceram. Deitaram-se sobre o capim ressecado de sol e o foram seguindo com dificuldade. A cada parada sua, estavam amedrontados.
"Aqueles eram os homens que vinham buscá-lo."
Em seus pensamentos imaginava chegando à fazenda, amarrado à cauda de um cavalo, cambaleante, parando à frente do Patrão. O rosto do triunfo estampado em cada um deles. Dera-se o contrário. Mesmo de mãos atadas eles o seguiam como cachorrinhos.
Apareciam as primeiras árvores que circundavam as areias da lagoa grande.
Ajoelhou-se e os três repetiram o seu gesto. De imediato um ruflar de asas horrendo balançou todo o arvoredo. Urubus assustados alçaram vôo.
Olhou o susto dos três irmãos e ouviu os três chacoalharem os dentes como se tivessem atacados de maleita. A palidez unia os lábios à pele das faces.
- Vejam.
Ficou em pé e caminhou pela areia amarelada da lagoa. Um homem nu boiava no raso das águas. Era um paliteiro humano. Até a marca do ferro em brasa estava atingida pelas flechas.
Aproximaram-se de Bugre, espavoridos.
Havia rastros na areia. Eram as patas dos cavalos e muitos pés.
- Era por isso que os urubus não tinham atacado o corpo. É melhor puxar Latiel para a beira, assim eles darão cabo do desgraçado.
Puxou o homem emborcado para a areia. Com as mãos amarradas retirou uma flecha e exibiu-a aos homens.
- Xavante andou até por aqui. Mas essa não é flecha deles. É de Kralanrú.
Nemésio perguntou baixinho:
- Que vem a ser Kralanrú?
- Kralanrú é caiapó beiçudo. Não adianta desvirar o rosto porque piranha já deve ter comido os olhos, a barriga, o nariz, tudo.
Sentaram-se vencidos pela emoção e pelo cansaço. Não sentiam coragem de banhar-se.
Bugre entrou na lagoa com água até os joelhos e fazendo das mãos uma concha, bebeu calmamente.
Retornou e fez companhia aos três.
Rubino olhou o seu rosto marcado de pancadas que não deixava transparecer uma emoção sequer.
- E agora?
- Vocês devem beber o quanto puderem. Depois só há um jeito.
Com os pés roçou as areias mornas. Fazia aquilo para torturá-los. Haveriam de pagar cada momento de dor... haveriam, sim.
- Qual?
- A gente demorando muito aqui está sendo visto também. Suspendeu as mãos e indicou o corpo flechado.
- Ninguém atravessará a lagoa. Eles estão escondidos, esperando que venha mais gente.
Os três levantaram-se de um só ímpeto. Mas Bugre permanecia sentado. E sem se importar continuava remexendo as areias.
- Não temos armas nem nada. O jeito que tem é a gente voltar para o rancho de Amâncio da Luz e esperar.
Pensava nas três canjiranas brancas e na raiz do pé de simbaíba.
- Lá pelo menos tem mandioca. Lá a gente espera pessoal da Fazenda que vendo a demora, aparece.
- Então o que estamos esperando?
- Muita coisa. Preciso explicar. A gente vai voltar ao rancho mas não pode ser pelo mesmo caminho. Tem de ser pela selva que é mais braba mas ajuda mais. Vocês decidem! O mesmo caminho e a morte ou a selva? Na selva a gente pode escapar...
Afastaram-se para confabular. Retornaram decididos.
- Se você sabe o caminho, voltaremos pela selva. Idiotas! Ditavam as suas próprias sentenças. Numa caminhada fácil pareciam semimortos... Na selva, judiaria tanto deles, daria tantas voltas, procuraria lugares de pedra canga e enredados de tiririca e macambira, que até a roupa do corpo não iria resistir.
• • •
Só podia ser o ódio que fazia os três irmãos caminhar. Acompanhavam-no arfantes e trôpegos. Não viam a hora de chegar ao rancho. O sol queimava como brasa viva. E eles estavam estraçalhados e rotos. Famintos e sedentos.
Rubino xingava irritado.
- E esse maldito rancho que não chega nunca!
- Está bem pertinho. Só chegar naquela esquina da selva a gente já avista o teto dele.
Pareceram criar mais ânimo e se equilibrar na caminhada.
Quase correram para alcançar a água emagrecida do regato. Caíram de borco e beberam longamente. Depois lavaram o rosto e os cabelos.
Bugre observava cada gesto, cada movimento. Noutra ocasião até que teria pena daqueles homens tão maltratados.
Esperou que acabassem para também se ajoelhar e beber. Fazendo das mãos atadas uma cuia, jogou água sobre os cabelos.
- Para o rancho.
A água despertara neles um pouco de ânimo, revivendo a antiga crueldade. Na certa, ali esperariam o socorro e continuariam a cumprir a missão designada.
Dentro do rancho, respiraram aliviados. Agora era a fome doendo no estômago.
- Que é que vamos comer agora, índio desgraçado!
- Só procurando na roça. Eu vou lá.
- Vai coisa nenhuma. Pensa que o deixaremos sozinho?
Diogo virou-se para os irmãos.
- Eu vou com ele buscar comida. Vocês apanham água e vamos usar de novo aquela panela. Inda bem que não quebramos...
Empurrou o índio com brutalidade e na porta parou para recomendar.
- Peguem gravetos e paus secos. Vamos cozinhar aqui mesmo.
Caminhou para a roça. Sempre seguindo o índio nos calcanhares.
Bugre pensava no jeito de apanhar as coisas que Latiel deixara enterradas. Teria de haver uma oportunidade. Agora não dava porque as mãos estavam muito bem amarradas. Talvez de noite, roçando as cordas contra o tronco escapasse. Aquilo iria maltratá-lo ainda mais.
- Ali tem mandioca. Está meio velha e mirrada. Pegaram um pequeno atalho.
Indicou uns pés de mandioca. Ia abaixar-se mas levou um pontapé nas costas que caiu com o rosto no chão. Diogo vociferava.
- Filho da puta! índio vagabundo! Pensa que eu não sei o que você fez para maltratar a gente na selva? Quer matar a gente de fome?
Sentou-se espantado, limpando a areia da boca. E novamente o sangue escorreu de seus lábios.
Atacado de uma força que Bugre não esperava, puxou-o pelos cabelos fazendo-o erguer-se.
- Pensa que eu não estou vendo que ali adiante tem uma plantação de mandioca maior?
Arrastou-o pelos cabelos e atirou-o contra as ramas da mandioca indicada.
- Eu não tinha visto. Estou muito cansado.
- Pois arranque.
Ajoelhou-se e sentou-se sobre as pernas para arrancar. Primeiro respirou forte e olhou o céu lá em cima muito azul. Muito azul mesmo. E contra ele recortavam-se miudinhas as folhas da mandioca. Estava chegando a sua vez. Sua alma quase sorria: "gente burra da cidade que não sabe de nada, que não sabe de nada..."
Enfiou as mãos e com os dedos machucados foi removendo as areias e o barro das raízes. Levantou-se e apertou a rama com força; a areia foi rebentando e as grandes raízes escurecidas apareceram. E eram muitas.
- Ainda quer mais?
- Arranque mais uma. Assim a gente já guarda para fazer de noite.
Quebrou os tubérculos um por um e esperou que Diogo os colocasse entre os braços.
Sentia-se fraco caminhando quase vergado com tanto peso. Mas estava por pouco. Se tudo corresse como imaginava, era questão de horas.
O fogo fora feito no rancho e a panela lançava fumaça.
Jogou as raízes no chão e sentou-se contra a parede do rancho.
- Nemésio, dê o canivete para ele descascar.
- A gente pode descascar também.
- Nada disso. Se não fosse por esse vagabundo não estaríamos penando como estamos.
Desataram as suas mãos para que começasse o preparo.
- Essa mandioca está velha e sem sal vai parecer mais amarga.
- Ninguém está te perguntando nada, animal. Mergulhava a mandioca descascada na água fervendo. Sentia um prazer enorme espiando a comida ser preparada.
- Preciso deixar umas de fora, senão a água não dá.
- Dá sim. Tem umas cabaças velhas. A gente trás água nelas.
Concordou com a cabeça e viu a panela quase cheia. Recostou-se na parede, esperando. Os dois outros irmãos quase cochilavam de cansaço. Mas nenhum deles o desfitava.
- As mãos.
Ergueu-as e sentiu-se novamente preso. Ainda bem que não tiveram a idéias de prendê-lo com as mãos nas costas. Tudo parecia melhor do que esperava.
- Eu sei onde tem uma garrafa de pinga. Aquilo despertou-os de uma vez.
- Onde?
- Se estiver mentindo, desgraçado, chuto seu estômago e quebro suas costelas.
- Sei sim. Vi quando Latiel escondeu ela de vocês. Lá da árvore, dava pra ver.
- Mostre logo, seu sacana.
- Ali. Do lado de fora, enterrada na palha do rancho. Rubino que era mais alto, circundou o rancho e enfiou a mão no teto velho. Descobriu a garrafa e puxou-a.
- Ainda bem que você presta para alguma coisa. Com o canivete destamparam a cachaça. Passaram de mão em mão. Sorviam o líquido no gargalo com mostras de grande alegria.
Bugre olhou-os demoradamente. Eles nem sabiam que estavam bebendo a morte devagarzinho.
Três vezes foram buscar água no córrego, se revezando para não deixá-lo sozinho. E de todas as vezes davam mais uma rodada de pinga.
Agora a mandioca se rachava toda, borbulhando.
- Pronto.
Arrancou pedaços de tição e espalhou as brasas para que o fogo se apagasse.
A fome neles era tão grande que se esqueceram que o fogo poderia atrair os caiapós. Bugre continuava sorrindo por dentro. Aquilo nem tinha mais perigo. Se eles não fossem brancos nojentos da cidade, saberiam que os índios já andavam por bem longe.
Derramou a água da panela e viu os riozinhos que levantavam fumaça no chão do rancho.
- Agora vamos dar mais uma rodada de pinga e guardar o resto para mais tarde.
Via-se que, com a fraqueza, o álcool já se apossara de todos. Esperaram, enquanto bebiam, que a mandioca esfriasse.
- E ele não vai comer?
- Se sobrar alguma coisa. Isso não é gente: é um bruto.
Iam começar a comer e ele espiava.
- Vá se sentar lá fora. Não quero ver essa cara de palerma, espiando enquanto como. Mas se fizer um só movimento de fuga, juro que o enforcarei.
Obedeceu contente mas sem demonstrar.
Sentou-se à sombra de um arbusto e ficou curioso, apreciando. Nem um só músculo do seu rosto se movimentava; nada traía os seus pensamentos.
Aguçava os ouvidos para não perder nada.
- Está meio amarga, não?
- Um pouco. Mas é porque a mandioca é velha.
- E mesmo a boca da gente está queimada da pinga. Continuaram comendo em silêncio e até com certa esganação.
De repente Nemésio comentou:
- Acho que estava com fome demais. Meu estômago ficou ardendo.
- Também comer tudo isso sem sal...
- E não esquecer que faz três dias que a gente não come.
Rubino deu um gemido. Seu rosto aparecia congestionado. Apertou a barriga com violência.
- Vamos beber um pouco de pinga que passa. Diogo bebeu e passou a garrafa rapidamente. Notou que suas mãos estavam geladas e sua testa porejava um suor frio. Um mal-estar subia-lhe pela garganta.
De fora, Bugre assistia a tudo. Levantou-se sem se aproximar.
Nemésio deu um grito e soltou a garrafa de pinga e caiu rolando no chão. Rubino tentou acudi-lo e emborcou junto do irmão.
Bugre ouvia os gemidos aumentarem. Eram quase urros. Não pensara em tamanha sorte.
Virou-se e correu um pouco. Entrou no mato e caminhou direito para as canjiranas e a grande raiz da sim-baíba.
Procurou com os pés a terra fofa coberta de mato mais ressecado. Enfiou as mãos e descobriu. Não mentira Latiel. Puxou primeiro um revólver. Soprou a areia e o sujo. Depois, apanhou o principal: a faca.
Sentou-se sorrindo. Sorrindo após tanto tempo de sofrimento. Aquilo tudo salvaria sua vida.
Soltou a lâmina da bainha e apertou-a contra os joelhos. Principiava cortar as cordas dos pulsos. Agora sim, estava livre.
Examinou o HO e viu que estava com a lotação de balas, completa.
Só faltava voltar para o rancho e assistir à agonia daqueles brancos porcos. Foi o que fez.
Acercou-se do rancho com cuidado. Pelos fundos, enxergou os dois no estertor da morte. Aqueles não iam agüentar muito. Mas faltava Diogo.
Ele estava se arrastando em direção do riacho.
- Burro!
Bebendo água, ia ser pior. O estômago incharia mais. Postou-se em frente, com o revólver enfiado na cintura.
- Onde vai? Ajoelhou-se perto do homem.
- Água... água...
- Não. Você não vai beber.
Ficou passando a faca de uma mão para a outra.
- Que foi que você fez, índio miserável? Explicou com calma.
- Nada. Foi você que escolheu, não foi? Foi você que me chutou para arrancar aquela mandioca, não foi? Pois bem. Eu quis dar a mandioca boa e você escolheu a mandioca-brava. Aquilo é veneno puro. Vaca se comer uma folha morre. Você que escolheu.
Sentou-se em frente a Diogo e impediu o seu rasteja-mento.
- Água...
E tentava caminhar puxando o corpo com as mãos. Sua boca arroxeava-se e a testa deixava sair um suor viscoso.
Com o pé empurrava sua cara, impossibilitando-o de prosseguir.
- Água...
- Você não vai beber, não. Você disse que ia me capar, me bater muito. Eu tenho a faca, mas não vou rebentar sua cabeça, não. Mas vou fazer uma coisa.
Virou o corpo de Diogo. Ajoelhou-se perto e com as mãos abertas veio se aproximando do seu pescoço. Sem pressa foi apertando as garras, mas as mãos escorregavam no suor da morte. Precisou passar as palmas das mãos na areia. Só então conseguiu. Apertou, apertou até que os pés e o corpo deixaram de estrebuchar.
O corpo morto ficou mais leve e mais fácil de arrastar até o rancho. Os outros estavam de olhos vidrados, de boca arroxeada e aquele mesmo suor imundo da morte que empapava até os cabelos.
Amontoou os três bem no meio do rancho.
Soprou o resto das brasas e reacendeu o fogo. Foi tomado de uma idéia. Revistou o bolso de Nemésio e achou a caixa de fósforos. Aquilo ia servir na sua grande caminhada.
Tirou um tição, agitou-o e esperou a chama crescer. Foi tocando fogo nas palhas do rancho.
Saiu e não olhou para trás. Porque mesmo sem se virar, sabia que com o vento que iria trazer a tarde, o rancho seria uma imensa coivara.
• • •
Estava salvo. Pena que Latiel perdera tudo. Perdera os cavalos pela segunda vez na vida. E da segunda vez perdeu a vida também. Ia passar de novo na lagoa. Arrancar umas flechas do resto do corpo dele, porque as flechas dos índios caiapós beiçudos eram de muito boa qualidade.
Chegou na lagoa e estava tudo como imaginara. Ficou com pena de novo do vaqueiro Salatiel. Mas não adiantava fazer mais nada.
Precisava andar. Andar muito. Quando tivesse passado um mês de atravessar campos, lagoas e selva, aí então voltaria para a beira do Bêérokan.
Nenhum índio caiapó apareceria. Porque eles roubando os cavalos e matando o branco, iriam assustados para bem longe. Isso ele sabia, os outros, não. Os outros não tinham culpa de não serem índios.
Quando alcançasse o rio grande, esperaria a noite para procurar uma aldeia. Roubaria uma canoa e voltaria para sempre e o para sempre era apenas a aldeia de Cué-Berô. Nunca mais quereria saber de gente branca.
Resolveu banhar para diminuir a dor de tantos dias de sofrimento. Ficou deitado no raso da água se aliviando todo.
- Pois bem, falou. Agora quando chegar lá, vou fazer meu rancho pra mim, minha roça pra mim e vou procurar para mim uma mulher bem feia para casar comigo.
E tudo aquilo era a felicidade.
Ainda de cabelos molhados e se levantando olhava as árvores da lagoa se balançando na brisa gostosa da tarde. E o vento da Primavera derrubava as flores de todas as cores fazendo a lagoa ficar ainda mais bonita.

 

 

GOYAZ
OS QUATRO HOMENS pararam ao mesmo tempo. E durante um minuto de indecisão, nem sequer sentiram a força da chuva que há seis meses escurecia o céu e ensombrava a vida, caindo sobre as abas desfiadas dos chapéus de palha e sobre as costas protegidas por velhas estôpas.
O mato se iluminava de molhado e a lama pegajosa se grudava grossamente em seus dedos descalços.
Quando o primeiro tomou a iniciativa de abaixar-se os três outros o fizeram ao mesmo tempo, e quatro ombros se tocaram e quatro mãos pararam sem que os dedos decidissem a segurar o objeto.
Eles se levantaram trazendo nas mãos o mesmo vazio anterior.
A curiosidade morava nos olhares cruzados enquanto a chuva das brenhas escorregava luminosa por entre os rostos barbados.
Um deles falou, empurrando com o pé o estranho objeto semi-surgido entre as águas da poça.
- Será o que é, hem?...
O segundo abaixou-se e apanhou a coisa entre os dedos, comentando:
- Tem um jeitão de tamanco inteiro, num tem?
- Que tem, tem. Toque como é molinho Jeremias!...
- Eu é que não, sei lá o que é isso!... E se for man-dinga de sexta-feira, ou pé de "mão-pelada"?
O quarto homem, que era mais calmo, mais silencioso e mais prático, ponderou:
- Olha que milho a gente leva na corrutela e assunta com o sinhô vigaro...
A sugestão foi aceita sem outros comentários, e os homens recomeçaram a caminhar encolhidos, remexendo os pés no lamaçal, insignificantes como se fossem outros pedaços de chuva...
• • •
A única rua cobria-se de sapé e o cheiro de roupa suja escapava de todos os ranchos; as taperas se confundindo com o cheiro queimado de fumaça, e a fumaça se entranhando nos olhos remelentos das crianças que se rojavam pelo barro amassado do chão.
Atrás da igreja, bateram humildemente à porta da sacristia. Passos pesados vieram lá dentro se aproximando da porta.
O rosto gordo do padre apareceu na fresta da porta, ajeitando com os dedos os óculos cujas lentes eram fortíssimas.
O vigário abotoou a gola do pijama desbotado onde as riscas vermelhas persistiam teimosas.
Os homens se descobriram deixando à chuva, os cabelos grossos e grudentos.
Um se adiantou com o objeto na mão e com voz calma e leve, principiou a falar:
- É isso, seu vigaro. A gente achou isso... e ninguém que a gente assuntou sabe que espécie de coisa que é... Então se pensou que o sinhô é home de viage, talvez...
Os olhos do padre se arregalaram por trás dos vidros grossos. Uma súbita emoção obrigou-o a contrair doridamente o nó da garganta.
Sem querer a sua vista transpassou a moldura do objeto e a paisagem da miséria cresceu espantosamente ante a sua observação: as casas de paredes rasgadas, lançando fumaça humilde para o céu sempre úmido, escorregadio. E os homens eram nus porque os trapos não cobriam bem os corpos.
E a febre invadia tudo, todo o território humano. Sem uma saída além da esperança de Deus. O corpo morto não ultrapassava a vida em 50 anos. E sob a terra e a chuva, as selvas se revestiam de flores vermelhas, roubadas do sangue do homem.
O padre olhou os olhos puros dos homens e o objeto que se imobilizava aos poucos na mão distendida. Controlou a emoção e falou suavemente.
- É uma galocha. Um sapato da cidade. Um tamanco de borracha...
E não teve forças de explicar. De dizer aos homens a estranha diferença entre os seres. O mundo que existia dentro e fora de uma galocha...

 

 

                                                                  José Mauro de Vasconcelos

 

 

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