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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FARSA DO CLÉRIGO DA BEIRA / Gil Vicente
FARSA DO CLÉRIGO DA BEIRA / Gil Vicente

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Gil Vicente

 

 

 

 

Segue-se outra farsa de folgar, que trata como um Clérigo da Beira, véspera do Natal, determinou de ir aos coelhos, e indo pera à caça com um filho seu às matinas. Trata-se o outro de um vilão, que indo vender à Corte uma lebre e uns capões, e um cabaz com fruta, foi roubado, que até o chapeirão lhe furtaram, o qual furto foi descoberto por Cecília demoninhada, em quem diziam que foliava um Pedreanes. Foi representada ao muito poderoso e cristianíssimo Rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, em Almeirim, na era do Senhor de 1526.
FIGURAS: UM CLÉRIGO FRANCISCO (seu filho) GONÇALO (Vilão) ALMEIDA DUARTE UM NEGRO UMA VELHA CECÍLIA PEDREANES MOÇOS DO PAÇO


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(Entra o Clérigo com seu filho Francisco, e diz o filho)
 
FRANCISCO Vós haveis de celebrar missa de festa em pessoa, e não fazeis a coroa antes que vamos caçar? Pois, pai, não haveis de olhar que sois clérigo da beira, porque a gente cabreira em tudo quer atentar.
 
CLÉRIGO Tua mãe ma trosquiará, não cures tu de conselhos; cacemos nós dos coelhos, que isso à noite se fará.
 
FRANCISCO Sabeis, pai, que esqueceu lá a furoa? 
 
CLÉRIGO Vai por ela.
 
FRANCISCO De uma légua hei de ir trazê-la? Melhor viva eu que lá vá.
 
CLÉRIGO Pesar da ida e da vinda, vai, torna pela furoa.
 
FRANCISCO Va lá quem tiver coroa, que eu não na tenho ainda.   CLÉRIGO Creio que a vara há de andar. Se isso vai dessa maneira.
 
FRANCISCO Eu não sou vossa oliveira que a haveis de varejar.
 
CLÉRIGO Renego destas respostas: vai muito asinha. 
 
FRANCISCO Eu creio que cuidais que sou correio que vai e vem pelas postas.
 
CLÉRIGO Crê tu se me a mim não fora que tua mãe logo se assanha, já te eu dera uma tamanha, que tu foras logo essora. requeiro-te que vás embora, antes que se assanhe o abade.
 
FRANCISCO Ainda eu não tenho vontade, lá é ela algures fora.
 
CLÉRIGO Vai, Francisco. 
 
FRANCISCO Si, irás. Ide vós: não tendes pés?
 
CLÉRIGO Filho de clérigo és, nunca bom feito farás.
 
FRANCISCO Piores são os de Frei Mendo, e os do beneficiado, que vão tomar o bocado que seu pai está comendo.
 
CLÉRIGO Vai, que já está no cortiço, senão tomá-la e trazê-la.
 
FRANCISCO Já má-hora vou por ela, mas hei de furtar chouriço.
 
(Vai o moço pela furoa e fica o Clérigo entre si dizendo)
 
CLÉRIGO Medraria este rapaz na corte mais que ninguém, porque lá não fazem bem senão a quem menos faz. Outras manhas tem assaz, cada uma muito boa: nunca diz bem de pessoa, nem verdade nunca a traz. Mexerica que por nada revolverá São Francisco; que pera a corte é um visco, que caça toda a manada.
 
(Vem o filho com a furoa, e diz)
 
FRANCISCO Já minha mãe tem tascada a regueifa do batismo: andai vós cá, pai, ao bismo, Que ela não lhe escapa nada.
 
CLÉRIGO Rezemos matinas logo, antes que entremos à caça; que como homem se embaraça nela, não é senão fogo.
 
FRANCISCO Matinas de cá da Beira, ou como quereis rezar?
 
CLÉRIGO Si, pera que é mudar cada dia uma maneira? porque os capelães del-rei, que cá na Beira tem renda, se razão lá de outra lei, tem outra lei de fazenda. Mas deus dê muita prebenda a Antone Álvares, que é razão que ele e outros que lá estão, nos leixarão esta lenda.
 
FRANCISCO Nome de Deus começar.
 
CLÉRIGO Pater noster. 
 
FRANCISCO Que siso! Na caça pera que é isso, senão Domine labia? Andar.
 
CLÉRIGO Domine labia mea, tu priol a pé irás.
 
FRANCISCO Se cansares, assentar-te-ás, pois que não tens facanea.
 
CLÉRIGO Venite, exultemus, que cães e furão que temos pera tempo de mister!
 
FRANCISCO Domine Dominus noster nos dê com que os manter, e coelhos que levemos.
 
CLÉRIGO Coeli enarrant gloriam Dei, não cuide papa nem rei que está no cume da serra.
 
FRANCISCO Domini est terra, que é senhor de toda grei.
 
CLÉRIGO Ora te Deum laudamus, pois que tal manhã levamos pera provarmos a perra.
 
FRANCISCO Jubilate Deo, omnis terra: diz que rezemos e vamos.
 
CLÉRIGO Assi manda Deus, Deus meus, e nos dá dia para eles.
 
FRANCISCO Lauda Dominum de coelis. Pois os coelhos são seus.
 
CLÉRIGO Cantate: diz que cantemos cantar novo e não usado.
 
FRANCISCO Cante o beneficiado, que nós pouco pão colhemos.
 
CLÉRIGO Laudate Deum, omnes gentes, Laudate Nuno Ribeiro, que nunca paga dinheiro, e sempre arreganha os dentes.
 
FRANCISCO Levavi oculos meos, vi que os dinheiros alheios muitos os repartem crus.
 
CLÉRIGO Nisi quia Dominus nos dará os melhores meios.
 
FRANCISCO Qui confidunt in Domino tem esperança direita.
 
CLÉRIGO In convertendo boa peita deste tal não hajas dó.
 
FRANCISCO Beati omnes que tem, que estes podem dizer bem Loetatus mum in iis.
 
CLÉRIGO Laudate, Hierusalem, a todo o homem que tem vinténs, tostões e ceitis.
 
FRANCISCO Soepe expurgaverunt me: diz a lira na sua grosa, que é cousa perigosa andares à caça a pé.
 
CLÉRIGO Se beato imaculato me emprestasse o seu mulato, mas não sei se quererá.
 
FRANCISCO Jam lucis orto si dará em que leves ti e o fato.   CLÉRIGO Dixit Dominus que tinha uma muito boa asninha Non sede a dextris meis.
 
FRANCISCO Donec ponam tem seis e mais uma mulatinha; vede se as havereis.
 
CLÉRIGO Beatus vir que tem sendeiro, que lhe aparou Deus deorum.
 
FRANCISCO Habet consilium impiorum não o emprestar sem dinheiro.
 
CLÉRIGO Deus in nomine tuo de graça salva-me na tua faca.
 
FRANCISCO Com dous arráteis de vaca escusaríeis a caça.
 
CLÉRIGO Ir à caça cada dia aleluia, aleluia.
 
FRANCISCO Vamo-nos a bom bispo, pedrada no teu toutiço.
 
CLÉRIGO Oremus. 
 
FRANCISCO Bem faremos.
 
CLÉRIGO Venham-me os cães, as redes e o furão, mas o coelheiro não. que vives e reinas na vila do pedregão.
 
FRANCISCO A bem.
 
CLÉRIGO Requescant in pacem.
 
FRANCISCO Mãos pagadores te paguem.
 
CLÉRIGO Inducas in tentationem.
 
FRANCISCO Responda-te Luiz Homem.
 
CLÉRIGO Exaudi orationes nostras.
 
FRANCISCO Azambujo nessas costas.
 
CLÉRIGO Pater noster. torna a casa muito prestes e leva esse breviário.
 
FRANCISCO Em dia de algum fadairo foi quando vós, pai, nascestes; porém se eu lá volver benzei-vos se cá vier.
 
CLÉRIGO Virás, Francisco; ora vai, que filho es de bom pai, e tua mãe boa mulher.
 
Dize-lhe que se eu tardar, que tanja a véspera e repique muito bem, porque não fique a festa sem repicar. E há mister que correja muito bem essa igreja, e as galhetas bem sabe ela que hão já mister barrela; E olé tudo e proveja.
 
Anda Tejo à Fragueira. e dirás a tua mãe mais, que me guarde os corporais, Que ficam na cantareira.
 
e o calez achará no almáreo de cá Atado com os seus toucados, E os amitos pendurados Onde a minha espada está.
 
E a vestimenta achará dobrada sobre a albarda. Que ponha tudo cm guarda, como ela sabe já. E que alimpe bem a pia, não asse sempre castanhas; e tire as teias de aranhas à mártel Santa Luzia.
 
E solte a cabra também, que está presa pela estola, e logo não seja tola, que correja tudo bem. Porque se deus cá aportar marcos esteves da corte, e achar tudo dessa sorte, vê-lo-eis vós espirar — ai, ai.
 
À ribeira, que esse é ele, pelos santos evangelhos; já lhe ele pruem os artelhos, e se lhe escarrapiça a pele.
 
CÃO Ham, ham. 
 
CLÉRIGO Guarde-o cabrão.
 
CÃO Ham, ham. 
 
CLÉRIGO Ora, cadela.
 
CADELA  Hão, hão. 
 
CLÉRIGO Ei-lo vai pela portela, sem cadela e sem cão! Oh renego da vida, perdoe-me Deus consagrado. Algum grande excomungado me olhou à minha partida.
 
(Vem um filho de um lavrador, e traz um cesto coberto e uma lebre e dois capões, e chegando ao Clérigo diz)
 
GONÇALO Ora Deus vos dê prazer.
 
CLÉRIGO Que é isso que levas aí?
 
GONÇALO Uns marmelos levo aqui, samicas pera vender, e esta lebre pera haver dinheiro dos cortezões; e levo este par de capões, e limões pera os comer, que eles dinheiro terão.
 
CLÉRIGO Pois que vás vender à corte, olha bem pelo virote, não te fies de rascão.
 
GONÇALO E rascões que aves são? Samicas são alguns bichos.
 
CLÉRIGO Mas são lobos pera michos, e raposos de nação.
 
GONÇALO Bem hei de saber vender.
 
CLÉRIGO E eles melhor comprar. Se te puderem furtar as orelhas, hás de ver.
 
GONÇALO Não me quero mais deter; vou-me e Deus vá comigo.
 
CLÉRIGO Olha bem por ti, amigo.
 
GONÇALO Bem sei o que hei de fazer.
 
(Entram dois moços do Paço muito louçãos, um chamado Duarte, outro Almeida, o qual começa dizendo ao Duarte)
 
ALMEIDA A tormenta da má vida que eu levo neste paço, sabes que conta lhe faço? Que vou numa não perdida, rota pelo espinhaço.
 
DUARTE Bom dizer é esse, porém dai a Deus tal apontar.
 
ALMEIDA Isso não será zombar? Já me disse não sei quem bem do vosso motejar.
 
DUARTE. Abasta: folguei de ver sair-vos Túlio do seio: muitos criará o centeio, mas poucos de tal saber.
 
ALMEIDA Logo vos foram dizer que era eu ratinho, senhor.
 
DUARTE Não sei, vós tomastes cor, eu não sei que isso quer ser. E vejo-vos, mano, morto, e tendes ar de mirrado.
 
ALMEIDA Vós estais mais aguçado que canivete do Porto. Viva o conde do redondo, que lhe furtais quanto tendes; mas da sua graça mendes vos acho eu todo mondo.
 
DUARTE Logo falais per mondar, como homem daquela terra: já vós veríeis na serra algum gadozinho andar, não digo eu pera o guardar, senão vê-lo-eis pascer, e pera vosso prazer sabereis assobiar.
 
ALMEIDA Per muitas fôrmas zombais, fôrmas bem as conheceis; olhai não vos demudeis primeiro que me entendais.
 
DUARTE Assi como bafejais, inda me cheirais a nabos.
 
ALMEIDA Bem parece que a dous cabos cozeis tudo o que falais.
 
DUARTE Eu vejo vir um vilão, hei-o certo de abraçar, porque se pôde acertar que será algum vosso irmão.  Guarda-porcos, dá cá a mão.
 
GONÇALO Nunca os guardei per mi, mas já eu a vosso pai vi morder um bom cordavão.
 
ALMEIDA. Parece-me que per sua arte vos sacode ele a badana. Dos michos desta semana te dou, vilão, minha parte. 
 
Olhai cá, Senhor Duarte.
 
DUARTE Almeida, que me quereis? Tantas Cousas paroceis, que não sei de qual me farte.
 
Porque é certo que eu vos vi levar já a merenda à vinha, e cá pregais a boquinha como Dom Priol daqui. E propriamente assi sabeis tudo, ah narizinhos! E onde fordes vizinhos grande frio fará ali.   GONÇALO Bofá vejo eu portugueses da corte muito alterados, mais propínquos dos arados que parentes dos meneses.
 
DUARTE Oh fideputa avisado! E o vilão é castiço: o rapaz rapa chouriço, rapaz mouro engrageijado.
 
GONÇALO Vós sombreiro acutilado, cuidareis que sois alguém? Pois vos eu conheço bem, falai vós mais conchavado.
 
DUARTE Rapaz, es tão namorado! Ora falia sem sabor, rapaz, que mudas a cor.
 
GONÇALO Ora estais bem aviado.
 
ALMEIDA. Vendes a lebre, vilão?
 
GONÇALO Si, fidalgo. 
 
ALMEIDA Mostra cá: quanto a dás? que custará?
 
GONÇALO Samicas meio tostão.
 
ALMEIDA E no cesto, que tens lá?
 
GONÇALO Trago aqui estes capões, e bons marmelos valentes, se deles fordes contentes; e er também trago limões pera aguçardes os dentes.
 
(Enquanto Gonçalo se abaixa a descobrir o cesto para mostrar tudo o que traz, foge Almeida e leva a lebre, e Gonçalo achando-a menos, diz)
 
GONÇALO E a lebre que foi dela?
 
DUARTE Que sei eu? 
 
GONÇALO Hu-lo parceiro?
 
DUARTE Não te deu ele o dinheiro?
 
GONÇALO Pardeus de graça vai ela: lá a leva ele o escudeiro.
 
DUARTE Vai, vai correndo asinha, que inda agora vai per i.
 
GONÇALO Olhai-me vós perequi, porque ela não era minha, e é mal perdê-la assi.
 
DUARTE. Oh que gostoso vilão, e que boa festa temos! Almeida e eu partiremos como irmão com irmão.
 
GONÇALO Ô mulher do amarelo, viste cá, se vem à mão, um fidalgo terrastão com uma lebre no capelo?
 
Ô vós do saco de palha, viste-me cá minha lebre? Oh! dou-me a Deus que me leve, não hei de achar nem migalha. dize, senhor sapateiro, a minha lebre vai cá?
 
Pera que é buscá-la já! Dou ó demo o escudeiro.
 
Leve-a por amor de Deus, pela alma de meus finados, porque lhe somos obrigados, eu e todos meus éreos.   (Duarte tanto que Gonçalo se partiu a buscar a lebre, foi-se e levou o cesto e os capões, e diz Gonçalo quando não acha novas da lebre)
 
GONÇALO Pior é que me dá cá na vontade que os capões foram com os outros rascões caminho da ira ma.
 
Pardeus, tal vos é ela a vós: isto é o com que eu renego. fizera mais um galego na meta de uns inatos sós? Uma escandola como esta encé de birra a pessoa; nem tal chufa não é boa pera véspera de festa.
 
Como assi se usa cá? Ai eramá que é mal; que quem furta um furto tal outro melhor furtará. As almas dos cortezões são coma não sem governo, porque cuidam que o inferno que se come com limões.
 
O carmelita nos sermões Bem lhes mostra o paraíso, mas tanto vem eles isso como eu vejo os meus capões.
 
(Indo assim Gonçalo tornando pera a sua aldeia, torna a achar o Clérigo, o qual lhe diz)
 
CLÉRIGO Já tu, Gonçalo, vendeste? asinha tu despachaste.
 
GONÇALO Praza ao mártir Santiaste que nunca lhe a lebre preste. Abaste, eu não fui sisudo.
 
CLÉRIGO Conta, rogo-to, Gonçalo!
 
GONÇALO Mais porei eu em contá-lo, que eles em furtar-me tudo.
 
CLÉRIGO Estava isso mau de ver.
 
GONÇALO Sois proféteguo, padrinho: mas se eu torno outro caminho, não há ela assi de ser. Porém quereis-me dizer um responso ou uma aquesta, que me apare deus a cesta, e dar-vos-ei do que tiver?
 
CLÉRIGO Se queres miracula ver, torna lá com um par de patos, que se os capões vão baratos, estes assi hão de ser. Calamitas demones hás de trazer; porém o dinheiro será de mau mês. Cedunt maré vincula res que perdunt quanto vieres vender.
 
Quero ora ir catar cousa que me mate a brasa.
 
GONÇALO Eu não ouso de ir a casa; meu pai há me de cocar.
 
CLÉRIGO Espera-me a par do lugar, e eu irei lá contigo, e rogar-lhe-ei como amigo, que não te deixe de dar.
 
Se topares lá em fundo um negro, põe-te a recado, porque é um perro malvado, maior ladrão do inundo. Não olhes no que falar, que é muito falso o cabrão. Olha per teu chapeirão, porque ele há-te de atentar se tens tu olho ou não.
 
(Indo Gonçalo seu caminho, apartando-se do Clérigo, topa um Negro grande ladrão, e entra cantando buscando um mulato: e diz Gonçalo, depois de cantar o Negro)
 
GONÇALO Dize, negro, es da corte?
 
NEGRO Que isso? 
 
GONÇALO Se és da corte?
 
NEGRO Já a mi forro, não sá cativo. Boso conhece Maracote? Corregidor Tibão é. Ele comprai mi primeiro; quando já paga a rinheiro, daita a mi fero no pé. É masa tredora aquele, aramá que te ero Maracote.
 
GONÇALO Mais tredor era o rascote que me a mim furtou a lebre.
 
NEGRO Que é que isso que te furtai?
 
GONÇALO Uma lebre de meu pai, de meu cunhado uns capões, e marmelos e limões; abonda tudo lá vai.
 
NEGRO Jesu, Jesu, Deoso consabrado! Aramá tanta ladrão! Jesu! Jesu! um caralasão: Furunando sá sapantado. Jesu! cralasam.
 
Pato nosso santo paceto  ranho tu e figo valente  tu e cinco sego salva  terá pão nosso quanto dão  dá noves caro é debrite noses  já libro nosso galo.  Amen Jeju, Jeju, Jeju
 
Sa pantaro Furunando. Dize, rogo-te, falai: conhece tu que furtai? Porque tu não bruguntando?
 
GONÇALO Perguntarei por meu pai.
 
NEGRO Cale-te: Deóso cima sai, que furtai ore oiai. Deuso nunca vai dormi, sempre abre oio assi tamanha tu sapantai.
 
Guarda mar esso mal, e senhora Prito santo. Nunca rirá homem branco furunando furta real. Não sabe mi essa careira: Para quê? para comê? Muto come imito bebê, turo turo sa canseira.
 
Vira mundo turo canseira: senhor grande, canseira; home prove, canseira; muiere fermoso, canseira; muiere feio, canseira; negro cativo, canseira; senhoro de negro, canseira. Vai missa, canseira; pregação longo, canseira; crerigo nam tem muiere, canseira; crerigo tem muiere, canseira, grande canseira: firalgo solto, canseira; chovere muto, canseira; não pôde chovere, canseira: muito filho, canseira; nunca pariro, canseira; papa na roma, canseira; essa ratinho, canseira; não vamo paraíso, grande canseira: vira resa mundo turo turo he canseira.
 
Mi nam falia zombaria. Pos para que furtai? Que riabo sempresa! Abre oio turo ria. mi busca mulato bai, ficar abora, ratinho.
 
GONÇALO Eu aguardo meu padrinho, que vá comigo a meu pai.
 
Eu vou ao rio perem, porque hei sede e beberei, e sicais que nadarei enquanto o clérigo vem. Leixarei o chapeirão metido nesta mouteira, e o cinto e esmoleira, porque lá logo o verão, não me aqueça outra tal feira.
 
(Espreita o negro como Gonçalo esconde o chapeirão e o tal, e tanto que se vai entra dizendo)
 
NEGRO A mi abre oio e ve ratinho tira besiro: ere dexa aqui condiro: não sei onde ele metê. Senhora Santo Francico, Santa Antonia, San Furunando! Pois mi há d'andar buscando, e levare ele na bico o servo santa maria.
 
Sabe a Regina Malho misercoroda nutra de um cego savel até que vamos. A oxulo filho d'égoa alto soso peamos já mentes já frentes vinagre que ele quebraram em balde já ergo a quante nossa há ilhos tue busca cordas óculos nosso convento e geju com muito fruta ventre tu já treines já pias. Seuro santa Maria dinhero! me lá darão é ve esa carta da me mucho que furte cantara Furunando. 
 
(Acabada assim esta Salve Regina, acha o Negro o que Gonçalo deixou escondido, e diz)
 
Ei-lo aqui sá! Deuso graça. Graça deuso esse é capote; nunca dexa aqui palote: ratinho, quem te forcasse! Aramá que te ero vilão! que palote saba sam, barete tambem bo era. Mi cansai e à deradera a mior fica sua mão.
 
Vejamos bolsa que tem: um pente para que bo? Três ceitil sá qui so: ratinho nunca bitem. O riabo ladarão!
 
Corpo re reos consabrado! Essa vilão murgurado sá masa prove que cão.
 
Quando bolsa mi achase Fernão d'Álvaro, esse si; nunca pente sá ali. Ah reos! quem te furtasse bolsa, Nu na Ribeiro! Home bai busca rinheiro: a toro ere rise: já rinheiro feito é. Arama que tu ero gaiteiro!
 
Fernão d'Álvaro me acontenta; ele nunca risse nam. Logo chama cá crivam, — crivaninhai esormenta; toma rinheiro, vás embora. Boso home de bem, que buscai? — Mi da cureiro agarba sai. — Boso que buscai corte agora?
 
— Buscai a Rei jam João, paga minha casaramento. — Dá cá, moso, trai esormento; crivaninhai boso, crivão: home, tomai um dos quatro sete: vás embora turo turo. Sua rinheiro sa segura, mioro que ele promete.
 
Marco Estevez moladeiro ele rise: Santa Maria! Rinheiro boso queria? Bai bai dormir paieiro. — Boso que pedir, muieiro?
 
— Tanta filho mi tem qui... — Quem manda boso pari, boso grande parideiro?
 
— Boso seria muito bô: vaca ne Francico paia; tenha seis filho e mi só nam temo comere ni migaia. Ele rise: que culpo tem a Rei jam João? Boso parir como porco, bai buscai sua pai torto, que dai a sua fio pão.
 
Velha, que boso querê? — Mola, que a mi pobre sai. Ele rise: porque boso nam guardai rinheiro que boso bebê? — Jesu! Jesu! moladeiro sá riabo aquela home; quando a mi more da fome nunca buscai sua rinheiro.
 
Porém graça a Reos, a mi nunca minga que furtá; pouco cá, pouco rela, pouco requi, pouco reli, grão e grão galo fartá. Quem furta, home sesuro: e louvar a reos com turo e senhoro prito santo. A mi bai furta emtanto camisa que sá na muro.
 
(Vem Gonçalo tremendo com frio e diz)
 
GONÇALO Mui mau nadar faz verão até meado o janeiro; mas agora é o ribeiro que corta homem como cão. Jesu! e o meu chapeirão E o cinto e a esmoleira? Pois esta era a mouteira e este é ô mesmo chão.
 
Agora merecia eu um par de trochadas boas, porque fiar nas pessoas nunca outro fruto deu. Bem vi eu que o guincu me viu tudo aqui leixar; mas o seu negro pregar me levou a mi o meu.
 
Quem se faz mais verdadeiro, crede que é o mentiroso; e nunca vistes medroso que não finja de guerreiro, e o ladrão de piedoso. Já todo o inundo é raposo já não há i que fiar, a mi mesmo hão de furtar se me eu daqui não acosso.
 
(Roubado assim Gonçalo vem uma velha e traz consigo Cecília da Beira, em que fala Pedreanes)
 
VELHA Amara do meu fadairo! Ui Fernando neto meu, que é do que teu pai te deu? Que lá contou o vigairo quão pouco trazes de teu. E teu pai é tão cruel, e tua mãe tão sundia, que trouxe da estrebaria uma vara d'azemel pera te tirar a azia.
 
Quando vi tamanha aquela, trago esta demoninhada a Cecília nomeada fala pedreanes nela, e descobrirá a cilada. — Pedreanes! 
 
CECÍLIA Aqui estou.
 
VELHA E aqui haveis de estar, e haveis-vos de assentar; e pois sabeis quem roubou meu neto, fazei-lho achar.
 
CECÍLIA Não há muito de tardar; mas logo aqui virão ter quem isso lhe foi fazer; e se quiserem pagar eu bem lho hei de dizer.
 
GONÇALO Que é o que me furtarão? Vejamos se adivinhais.
 
CECÍLIA Dous mancebos te enganaram, e os limões que te levaram venderão por seis reais.
 
E uma moça corcovada está agora depenando o capão de tua cunhada, e o outro se está assando, e a lebre pendurada. Ainda por mais sinal cobriram-na com um sombreiro em casa de um alfaiate.
 
GONÇALO Que besteiro é este tal! Este é o Déxemo inteiro em trajos de carafate.
 
Mais hei hoje de saber, pois me eu acho aqui à mão. Assi Deus te dê prazer que tu me queiras dizer se hei de casar cedo ou não?
 
CECÍLIA Casarás polo natal com mulher sem tua perda; seu corpo como cristal, e achar-lhe-ás um sinal no meio da coxa esquerda.
 
E tem na teta direita um luar com três cabelos: pela cinta muito estreita, de uma nádega contreita. e zambra dos cotovelos.
 
GONÇALO Não hei de casar dess’arte, nem Deus não há de querer.
 
CECÍLIA Esta mesma hás tu de haver, nem cases em outra parte, senão pouco hás de viver.
 
VELHA Bento e louvado serás Deus e a Virgem da Franqueira, que me tirou de canseira de casarás, não casarás, sei freira, não sejas freira.
 
CECÍLIA Pois que vós isso dizeis, e não me perguntais nada, antes de um ano e um mês vós haveis de ser casada com um criado do Marquês.
 
VELHA Agora me quero eu rir: sabedes vós isso certo?
 
CECÍLIA Digo que estais tão perto como eu de me partir pera o meu negro deserto.
 
VELHA Pedreanes, não vos vades, rogo-vo-lo, que ainda é cedo. sebedes vos — eu hei medo serem isso vaidades, e esse outro estar-se quedo.
 
(Vem Duarte e Almeida)
 
DUARTE Mantenha-vos Deus, Brancanes, Deus vos dê sempre boa hora.
 
VELHA Não faleis em Deus agora, porque está aqui pedreanes, que chegou agora esta hora.
 
DUARTE A ele buscamos, senhora, que o havemos bem mester, e dar-lhe liemos, de alma em fora, tudo quanto ele quiser, que o leve muito embora.
 
VELHA Pedreanes a um grou achará o rasto no ar, pois que me ele foi achar que velha assi como estou, hei ainda de casar. Creio-o-lho polo que vejo, porque eu sou muito sadia, e tenho a pele macia como costas de cranguejo ou lagosta d'Atouguia.
 
E tenho minhas arnelas: ponde me ora aqui a mão, mancebo e haja eu perdão, ainda eu como com elas uma posta de cação. O bafo, a Deus louvores, é coma algalia de Arruda.
 
Ora eu farei outras cores, porque hei de entrar em muda, como fazem os açores, então venham meus amores.
 
DUARTE Pedreanes. 
 
CECÍLIA Aqui estou.
 
DUARTE Estai por amor de mi, e não vos vades daqui; porque minha fé vos dou que somos vossos enfim.
 
CECÍLIA Se quereis levar na mão isso porque me buscastes, pagai a este vilão a lebre que lhe tomastes, e três vinténs por capão, e um tostão dos marmelos, e pagai-lhe seus limões.
 
VELHA Parece-me a mi, rascões, que vos tornais amarelos.
 
DUARTE Paguemos-lhe três tostões.
 
ALMEIDA Duarte, tendes vós i dinheiro na fraldiqueira?
 
DUARTE Eu vendi patos na feira?
 
ALMEIDA Nem eu tampouco os vendi, nem tenho eira nem beira.
 
CECÍLIA Gonçalo, sei tu lembrado que dixeste que por Deus lhe havias por perdoado pola alma de teus éreos, e não te devem cornado. Vai pedir o chapeirão ao negro do Maracote.
 
GONÇALO Ora fiai de rascão, que farpa lodo o pelote, e não se farta de pão.
 
ALMEIDA Já nós somos sabedores que é muito teu poder, e queríamos saber planetas de alguns senhores, e sinos de seu nascer.
 
E a que são inclinados por sua constelação, e quais são mais namorados. E também as condições de que planeta lhes vem, declarado por item.
 
CECÍLIA Dizei embora, rascões, que eu sei isso muito bem.
 
Porque por astrolomia conheço os seus nascimentos, e pela filosomia sei todolos pensamentos que trazem na fantasia.
 
DUARTE Qual é o mor namorado de Portugal e Castela?
 
CECÍLIA É o Conde de Penela; mas anda dissimulado por amor da sua estrela.
 
ALMEIDA O senhor Embaixador do César Imperador creio que nasceu no céu; mas se na terra nasceu, qual planeta em seu favor foi a que lhe aconteceu?
 
CECÍLIA Nasceu uma noite clara quando a lua aparecia, e vênus tomava a vara com que as graças repartia, como em ele se declara. E estando assi lustrosa, o fez tão sábio e humano, de condição tão graciosa, que não tem em nada grosa, senão só ser castelhano.
 
DUARTE O Conde de Marialva sabes quanto há de viver?
 
CECÍLIA Mau é isso de saber, que ele não é flor de malva que apodrece sem chover. Com todas suas feridas, e muito enferma canseira, contratou-se de maneira, que deus lhe deve três vidas, e esta é inda a primeira.
 
ALMEIDA. Do Védor é necessário saber a planeta sua.
 
CECÍLIA Sua planeta é a lua, o sino é sagitário, com uma frecha atabua. Tem fôlego como gato, digo vida perlongada; porém não coma de pato senão só uma talhada, inda que custe barato.
 
DUARTE Sabes quantos anos há que Vasco de Foes é nado?
 
CECÍLIA Quando foi a do Salado, era ele mancebo já, mas não era tão barbado.  
 
ALMEIDA O senhor Conde meu senhor do Redondo em que estrela, ou que Planeta é aquela que o fez tão sabedor, pera que adoremos nela?
 
CECÍLIA Esse Conde e outros assi por agora hão de ficar, de outrem podeis perguntar: mas eu tornarei aqui, e vós me ouvireis falar.
 
ALMEIDA Afonso de Albuquerque, irmão, que foi ao Imperador, que sino tem por senhor, e porque a sua condição não pudera ser melhor?
 
CECÍLIA Mercúrio é a sua estrela, e será bem esquençado se jogar jogo assentado; porém se jogar a pele, não lhe ficará cruzado.
 
DUARTE Eu tenho Jorge de Melo por um Padre São Gião; traz sempre contas na mão, mas não sei lá no capelo como vai à devoção.
 
ALMEIDA Ele reza pela rua, que traz contas todo o dia; ou é por galantaria?
 
CECÍLIA Mui boa vontade é a sua, mas o cuidado o desvia. reza mais que cinco donas, e Deus se está sem paixão.
 
DUARTE Que lhe pede na oração?
 
CECÍLIA Que lhe dê sete atafonas a porta de Santo Antão. e que lhe dê tanto gado como Isaac trazia, e uma capitania, com que fosse tão honrado como ele merecia.
 
ALMEIDA Gaspar Gonçalves, Pedreanes, em que sino nasceria? Faze-me esta obra pia; e olha que não me enganes, porque vai sobre porfia. Desejo sabê-lo em cabo.
 
CECÍLIA Nasceu no Escorpião, afagua-vos com a razão, mas despeja-vos com o rabo no cabo da conclusão.
 
DUARTE E Brezeanes guardador das damas, que és perro viejo?
 
CECÍLIA Esse Brezeanes, senhor, o seu sino é de cranguejo, porque anda através do amor e através do desejo. E é tomado da lua, muito seco dos espíritos, porque há i sinos malditos que não tem graça nenhuma.
 
E o que quereis saber das damas e amadores, o domingo que vier eu direi quanto souber delas e seus servidores. Ensinar-vos-ei então cantigas com que folgueis; e agora não canteis, fique por conclusão que este dia cantareis.

 

 

                                                                  Gil Vicente

 

 

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