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CAPÍTULO 40
Adrian carregou Jim até a cama e ajeitou seu corpo dolorido em cima do colchão. O pobre coitado estava tremendo muito, seu esqueleto parecia chacoalhar contra a pele para tentar se libertar – mas ao menos a ânsia havia acabado.
Ao se endireitar, Adrian olhou para o outro lado do quarto. Matthias e Mels estavam sentados juntos em uma poltrona, a mulher com a cabeça encostada no ombro do homem.
Estava muito claro que Devina tentara armar alguma coisa contra a repórter, e que Jim defendera a garota. O que o fez imaginar qual era a condição em que Devina se encontrava.
Não podia ser nada bom. E Adrian podia apenas torcer para que ela estivesse se ferrando bastante.
– Vocês dois querem comida? – ele perguntou para o casal de pombinhos.
– Ele não precisa de um médico? – Matthias respondeu.
– Precisa apenas de um tempo.
– O que há de errado com ele?
– Comeu comida estragada.
– Você está tentando me enrolar.
Ad lançou um olhar na direção de Mels e manteve a boca fechada – mas não porque desrespeitasse a repórter. Acontece que Matthias agora era um deles: estivera no Inferno e conhecia Devina, mesmo que não lembrasse totalmente. E também estava inextricavelmente envolvido nisso tudo.
Mels, porém, não estava, e quanto menos soubesse, melhor ficaria sua mente quando tudo terminasse – contanto que ela sobrevivesse, é claro. Podia ser um verdadeiro choque descobrir o quanto a realidade é maleável e quantos pesadelos são reais. E, uma vez que você sabe dessas coisas, é impossível voltar para os dias agradáveis em que você só se preocupa com as roupas para lavar, o imposto de renda e se ainda restou leite para o cereal no café da manhã.
A boa notícia era que ao menos Matthias entendera a atitude de Adrian: ele assentiu uma vez e também ficou calado.
Vendo os dois juntos, Ad quase sentiu pena do casal, já que aquilo não duraria muito. Na melhor das hipóteses, Matthias tinha os dias contados – na pior, ele era parte de um declive que jogaria todos eles contra o maldito muro de Devina. E Mels? Considerando o que Devina era capaz de fazer, a repórter teria sorte se ela simplesmente acabasse em um caixão.
Estranho, Ad pensou. Ele não sentira nada além de dor e raiva desde que Eddie fora morto. Mas vendo aqueles dois juntos, ele...
Ah, que merda importava? Ad tinha seus próprios problemas – e a recuperação de Jim era um deles.
– Estou bem – o outro anjo disse, como se tivesse lido seus pensamentos.
– Cala boca e deita aí.
– Você é uma péssima enfermeira – mas o cara acatou a ordem, provavelmente porque seu corpo não dava ao cérebro uma escolha.
Mels se endireitou na poltrona.
– Um médico precisa cuidar dele.
– Se isso faz você se sentir melhor, saiba que ele já esteve nessa condição antes. Apenas espere uma hora ou duas – talvez mais. – Ele vai ficar bem. Onde está o cardápio do serviço de quarto?
– O que exatamente aconteceu com ele? – Mels exigiu saber.
Ad virou para a escrivaninha.
– Ah, aqui está. Vejamos... – ele folheou o cardápio e parou nas entradas. – Boa seleção.
Enquanto decidia entre um contrafilé e um rosbife, ficou ouvindo a conversa ao fundo – Matthias dizia para sua garota não se preocupar e que saberiam as respostas quando Jim melhorasse.
Talvez sim, talvez não, pensou Ad.
Passou o cardápio para os dois, pegou o telefone e pediu um belo jantar. Após desligar, olhou para o casal.
– Estamos atrapalhando a noite de vocês, não é?
Os dois se ajeitaram na poltrona, mostrando um pouco de embaraço.
– Eu realmente posso ir embora – Jim disse, fazendo um impulso para levantar a cabeça dos travesseiros.
– Já falei pra calar a boca e ficar deitado aí – rosnou Adrian, repentinamente se sentindo enjaulado. – Dane-se, vou sair e esperar o rango lá fora.
A verdade era que seu cérebro estava zumbindo, e tudo naquele quarto parecia irritar seus nervos: aquela mulher, Matthias, Jim vomitando. De repente queria gritar com todos eles, consigo mesmo, com Eddie por ter morrido, com Devina...
Sempre queria gritar com Devina.
Já no corredor, ele fechou a porta e se apoiou nela, fechando os olhos.
– Mamãe, é o anjo de novo!
Ah, mas que merda.
Ele tinha se esquecido de ficar invisível.
Abrindo as pálpebras, Ad olhou para baixo e viu a garotinha de olhos grandes. Desta vez, seu cabelo estava preso com uma fita que combinava com o vestido azul, e seu sorriso era tão aberto e sincero que fez Ad sentir-se com um milhão de anos.
– Você é um anjo! – a magricela parecia capaz de falar apenas com exclamações, como se a diferença de altura entre os dois exigisse que ela gritasse. – Posso ver suas asas?
A mãe surgiu atrás da filha com a mesma nuvem de exaustão da outra vez: o peso do mundo em que ela vivia era claramente difícil de carregar.
– Desculpe. Vamos...
– Por favor! Eu quero ver suas asas!
Ad balançou a cabeça.
– Eu não tenho nenhuma asa, foi mal.
– Você tem, sim! Todos os anjos têm asas.
– Eu não sou um anjo.
A mãe colocou um braço ao redor dos ombros da menina – e parecia pronta para arrastá-la dali se não se mexesse logo.
– Vamos. Temos que ir.
A mulher se recusou a fazer contato visual com Ad – mas a filha olhava o suficiente pelas duas.
– Vamos.
A choradeira começou, mas a garotinha deixou que a mãe a arrastasse dali.
– Eu quero ver suas asas...
Adrian ficou olhando para as próprias botas, concentrando-se nas pontas de metal, deixando que a mãe dirigisse aquela preciosa carga pelo corredor até os elevadores.
– Um pouco cruel demais com a pequenina, não acha?
Adrian soltou um palavrão ao ouvir aquele sotaque aristocrático familiar.
Fantástico, uma visita do andar de cima. Era só o que faltava.
– Oi, Nigel.
O arcanjo permaneceu quieto até Adrian erguer o olhar. Veja só, quem diria, estava vestido todo engomadinho de novo: usava um terno de linho branco com um colete combinando, e as peças eram tão claras que Adrian desejou ter um Ray-Ban igual ao de Matthias. A gravata era listrada em rosa e branco, assim como o bolso quadrado.
O filho da mãe parecia saído de uma propaganda de revista.
– Pensei em descer e ver como você estava – disse Nigel, sua arrogância transformando o que seria bondade em condescendência. Ou talvez isso fosse apenas o mau humor de Ad.
– Quer saber como eu estou ou como Jim está?
– Ele também.
– Estamos ótimos. Supercontentes, e você? – quando aqueles olhos brilhantes estilo “poderoso chefão” se estreitaram, Ad abaixou a cabeça. – Diga uma coisa: se você está preocupado com seu time aqui embaixo, por que não traz Eddie de volta?
– Isso é competência do Criador, não minha.
– Então fala com Ele. Faça alguma coisa de útil.
– Seu tom deixa muito a desejar.
– Então me processe! – enquanto Nigel o encarava, Ad voltou a olhar para as próprias botas. – Agora não é uma boa hora pra conversar comigo.
– Que tragédia, não é mesmo? Pois este é o preciso momento em que você é mais necessário.
Adrian jogou as mãos para cima.
– Nigel, amigão, chefe, ou qualquer outra coisa que você queira que eu te chame... me dá um tempo, certo?
– Sua afirmativa para aquela criança estava correta. Você não é um anjo. Não com essa atitude.
Ad bateu a cabeça contra a porta.
– Vai se foder. Foda-se tudo isso.
Houve um longo silêncio – tão longo que Ad se perguntou se o chefão teria voltado para o Céu.
Então Nigel disse suavemente:
– Nós dependemos de você.
– Pensei que ser o grande salvador era trabalho de Jim.
– Ele está doente. E agora... agora é o ponto da virada.
Adrian olhou diretamente para o arcanjo inglês.
– Pensei que você não podia influenciar as coisas.
– Tenho permissão para aconselhar.
– Então que diabos você quer que eu faça?
Nigel apenas balançou a cabeça lentamente, como se Adrian o tivesse desapontado tão completamente que ele tivesse perdido a habilidade de falar.
Então, o arcanjo desapareceu.
O que, se considerado ao pé da letra, significava que ele não queria que Adrian fizesse coisa nenhuma.
No lado mais distante do corredor, a porta de serviço se abriu e um funcionário do serviço de quarto apareceu empurrando um carrinho de metal. Ele se movia rapidamente, como se aquilo fosse algo que fazia muitas vezes por dia.
– Esse é o pedido do 642? – Adrian disse quando o funcionário se aproximou.
– Sim.
– É pra mim – colocou a mão no bolso e retirou uma carteira. Pegou uma nota de vinte dólares e a entregou. – Onde eu assino?
– Ei, obrigado, cara – o funcionário retirou uma prancheta com a conta. – Assine aqui em baixo.
Ad rabiscou alguma coisa e bateu na porta para que Matthias abrisse. Quando o cara abriu, o funcionário começou a empurrar o carrinho para dentro, mas Ad bloqueou o caminho.
– Pode deixar.
– Certo, apenas deixe o carrinho no corredor depois. Tenham uma boa noite.
Isso seria muito improvável, pensou Ad.
Matthias segurou a porta aberta enquanto Ad empurrava o jantar para dentro do quarto e, cara, o chiado das rodas do carrinho parecia alto demais. E o fechar da porta também. E também as vozes da repórter e de Matthias arrumando as coisas na escrivaninha e perguntando para Jim se ele conseguiria comer alguma coisa.
Ad se afastou. O zumbido em sua cabeça o fazia sentir como se a pressão atmosférica no quarto tivesse aumentado até o limite. Puxando a gola da camiseta – como se aquilo fosse ajudar – ele bateu de costas em alguma coisa.
Ah, sim, a porta de novo.
Sincronia perfeita. Ele tinha de sair dali.
A triste verdade era que se sentia melhor ficando com raiva do que assumindo responsabilidades. Mais competente lutando do que raciocinando. E aquele cretino do Nigel não tinha dado nada em que ele pudesse dar umas pancadas.
Porém, ficar com ódio não traria Eddie de volta e não mudaria o jogo ou o fato de que todos eles, até aquela vadia da Devina, estavam presos naquela situação, as regras do conflito definindo o cenário e deixando-os cercados dentro daquela armadilha que era o jogo.
Tudo isso fez Ad querer gritar – e o fez sentir tanta falta de Eddie que até doía. Com seu amigo por perto, ele sempre tinha um ponto de equilíbrio... contava com Eddie para tomar decisões e o tirar de situações em que se sentia prestes a fazer alguma bobagem.
Mas acontece que Ad era um maldito adulto – ou anjo, que seja.
Talvez fosse o momento de começar a fazer essas coisas por si próprio.
De repente, ele voltou os olhos para o casal do outro lado do quarto.
Quando Mels começou a retirar a cobertura dos pratos, Matthias estava ao seu lado com os olhos vidrados nela.
De repente, a voz de Jim surgiu dentro da mente de Adrian.
Ele é a alma, mas ela é a chave para todo o resto.
Em seu lugar, Eddie não perderia tempo batendo os pés e ficando frustrado, não teria permitido distrações com aquela garçonete em corredores escuros, teria se mantido alerta mesmo quando nada mais parecia ser justo.
Adrian respirou fundo e, quando exalou, o caminhou ficou mais claro para ele.
Aplicando a lógica de Eddie, sabia o que podia fazer para ajudar.
Seria uma mudança um tanto brusca, mas... o que se pode fazer? Nigel queria que ele se envolvesse? Entendido.
Além do mais, era o que Eddie teria feito.
Enquanto sentava na poltrona com sua comida, sentindo suas pernas cansadas e doloridas descansarem do peso do corpo, Matthias assistiu Mels fazendo sua refeição na escrivaninha.
Batata frita de novo. Com um hambúrguer bem passado. E uma Coca-Cola.
O brilho sutil do abajur era gentil com sua face, disfarçando as olheiras de cansaço e o arranhão que tinha em uma têmpora. Mas ele notou tudo isso, e também a tensão que percorria os ombros dela. Dois quase acidentes? Em 24 horas? Ele até podia entender o cara caindo do teto no hospital – mas e a situação no embarcadouro?
Matthias tinha uma grande suspeita de que alguém tentara machucá-la. Ou pior.
E ainda assim, ali estava ela, tão inteira quanto os outros naquele quarto.
Pensou sobre o que Mels contara a respeito de seu pai e teve certeza de que, se o cara estivesse vivo, estaria percorrendo as ruas para achar quem quer que fosse que a empurrara nas águas frias do rio.
Pelo jeito, agora isso era trabalho de Matthias – e ele estava preparado para o desafio.
Como se Mels soubesse que ele a estava observando, seus olhos se levantaram e ela sorriu.
– Você não vai comer?
Matthias não estava com fome de comida naquele momento. Nem um pouco. Algo naquela quase tragédia o fazia querer ficar grudado em Mels, como se isso fosse a única maneira de ter certeza de que ela realmente sobrevivera.
De fato, em sua mente, ele cruzou a distância entre os dois, puxou-a para perto e a despiu enquanto a beijava desesperadamente.
Não era um plano ruim, mas acontece que a cama já estava tomada – e por algum motivo ele duvidava que um quase afogamento pudesse ser um afrodisíaco para uma mulher.
– Matthias?
Ele assentiu e pegou o garfo, levando a comida para a boca e mastigando como um robô. O silêncio que se seguiu tinha tudo a ver com espera: Adrian querendo que Jim ficasse melhor o bastante para se levantar; Jim esperando para se recuperar; Matthias esperando um momento a sós com Mels – seguido de uma conversa cara a cara com Jim para descobrir exatamente o que acontecera.
– Posso falar com você por um minuto? – Adrian disse de repente.
Matthias ergueu o olhar. O cara estava de pé ao lado da cama, uma figura grande e austera que parecia sombria como um cemitério.
Matthias se perguntava como aquele cara podia não ter sido recrutado para as Operações Extraoficiais.
– Ah, sim, claro.
– Em particular.
Matthias limpou a boca com o guardanapo de pano, largou-o no braço da poltrona e se levantou.
– Pra onde vamos?
Adrian olhou ao redor e então acenou para o banheiro.
– Já volto – Matthias disse para Mels.
O pequeno banheiro já era apertado o bastante com o vaso sanitário, a pia e o chuveiro. Com Adrian lá dentro, a coisa se tornava uma verdadeira caixa de fósforos.
– E aí? – perguntou Matthias.
– Poderia tirar os óculos?
– Está com medo de não conseguir ler minha expressão? – quando não houve resposta, ele removeu o Ray-Ban e encarou o outro homem com seu olho bom.
– Você é muito importante nisso tudo – Adrian disse com um tom de voz baixo e regular. – Então nós precisamos fazer tudo para ajudá-lo.
– Você e Jim?
– Isso mesmo.
– Quem é você, exatamente? Pois não me lembro de você nos bons e velhos dias – ele apertou os olhos. – E não por causa da minha perda de memória. Eu nunca te conheci.
– Não, você não me conhece. Mas nunca mais vai se esquecer de mim.
– Que diabos você está falando...?
Adrian jogou as duas mãos para frente e segurou os dois lados da cabeça de Matthias, encarando-o com seus olhos que pareciam ter mudado... mostrando uma cor que ele nunca tinha visto antes.
Matthias tentou se soltar virando a cabeça, inclinando-se, balançando, mas não havia como se libertar. Estava preso ali, como se alguém tivesse pregado seus pés no chão.
Com uma voz estranha, Adrian começou a falar em uma linguagem que Matthias nunca ouvira antes. As palavras eram profundas e rítmicas, quase como uma canção – mas não, eram muito mais que simples sons: as sílabas se tornaram sólidas no ar, formando filamentos de luz colorida que envolveram seu corpo, uma após a outra em uma sucessão infinita, como linhas se entrelaçando e formando um tecido.
Matthias lutava contra aquilo, esperneando, empurrando, as memórias de quando estava preso no Inferno lhe dando uma energia extra...
Mas não chegou a lugar algum. Os fios tênues continuaram saindo daquela voz, aquelas palavras cadenciadas o envolvendo cada vez mais, cobrindo-o da cabeça ao pés, formando uma prisão que o apertava, apertava... e, de alguma maneira, aquilo o retirou do banheiro no qual havia entrado.
Matthias começou a gritar, mas tinha a sensação de que o som não se propagava, ele parecia estar em um plano totalmente diferente...
Em seguida, sentiu uma sucção, um grande puxão que o fez sentir como se seus órgãos internos estivessem sendo tragados para fora da pele, seu corpo de alguma maneira virando do avesso. A dor foi atordoante, um gemido de agonia surgiu em sua garganta e passou por seus lábios enquanto ele continuava a lutar dentro daquele casulo.
Tudo começou a se mover.
A vibração começou como um zumbido quase imperceptível, mas logo reverberou por seu corpo, multiplicando-se até ele chacoalhar dentro da camada física das palavras, batendo de um lado a outro a mil quilômetros por hora... até ter certeza de que iria explodir lá dentro.
E então a rotação começou. Devagar a princípio, mas aumentando a velocidade a cada volta, tudo se transformando em uma jaula de luz que girava rapidamente ao seu redor. Quando a rotação tomou velocidades impossíveis, a pressão chegou a um ponto de explosão, seus ouvidos estalavam, seus pulmões mal conseguiam respirar, seu corpo levado ao limite da resistência física.
Ele estava prestes a explodir em pedaços, cada molécula levada ao limite.
O turbilhão começou a levitar, a jaula inteira subindo por seus pés, subindo... subindo... passando pelos calcanhares, as pernas, os quadris... acima dos ombros... e finalmente passando pela cabeça e livrando seu corpo.
Então, ele sentiu como se não tivesse ossos e desabou no chão, sem forças.
Mas não era o fim.
Do chão, ele enxergou uma vista impossível. Aquele caos girando e brilhando agora sobrevoava o outro homem, e então começou a descer e envolver Adrian, cobrindo primeira a cabeça, depois o peito e todo o torso... até que ele ficou completamente coberto pelo turbilhão.
Atrás dos filamentos, o homem lutava como se estivesse sendo invadido, seu corpo sacudindo em espasmos. Seu rosto contorcido pela agonia sugeria que estava passando pelo mesmo processo que Matthias passara.
Então, houve um som de estalo.
Com o chiado alto, aquela coisa começou a se dissipar da mesma maneira que surgira, filamento por filamento soltando e desaparecendo no ar como fumaça. O casulo se desfez fio por fio... até Adrian cair no chão.
Matthias levantou a cabeça e olhou para seu corpo. Depois mediu o corpo de Adrian.
Ironicamente, os dois caíram exatamente na mesma posição, com uma mão para cima, a outra para baixo, uma perna esticada, a outra dobrada.
Eram o espelho idêntico um do outro.
Matthias ergueu a mão para tocar Adrian...
Ele piscou. Piscou de novo. Sentou-se repentinamente no chão.
Segurando a mão à frente do rosto, ele a moveu para frente e para trás como se estivesse checando a visão.
Com um grito, Matthias deu um impulso e se ergueu o bastante para olhar seu reflexo no espelho da pia.
O que viu era impossível.
Seu olho ruim, aquele que fora arruinado pela explosão há dois anos, estava azul, igual ao outro.
Ele inclinou-se totalmente na frente do espelho, ficando nariz com nariz consigo mesmo – como se isso pudesse revelar a verdade ou algo assim... e achou que foi realmente isso que aconteceu, mas não de um jeito que achava possível: a proximidade simplesmente provou que as cicatrizes em sua têmpora haviam quase desaparecido. Se ele não soubesse onde elas tinham estado, não conseguiria mais achá-las.
Matthias deu um passo para trás e olhou para o próprio corpo. Mesma altura. Mesmo peso. Mas as dores haviam sumido, assim como a sensação de dormência e as pontadas, que amaldiçoavam seus ossos tão constantemente, que só agora que sumiram ele percebeu que elas haviam existido.
Subiu a perna da calça. Ainda havia vestígios de cicatrizes na pele da panturrilha, mas, assim como as do rosto, elas não eram nem sombra do que houvera antes. E, quando dobrou o joelho, não sentiu as dores que antes quase tiravam seu fôlego.
Olhou para o homem no chão.
– Que merda você fez comigo?
Adrian grunhiu quando sentou, e então teve dificuldades para se levantar. Quando finalmente ficou de pé, franziu a testa com toda a força.
– Nada.
– Então, que diabos foi aquilo?
Adrian se virou.
– Vou ver como Jim está.
Matthias segurou o braço do cara e sentiu uma pontada de medo.
– O que você fez comigo?
Mas ele sabia. Mesmo antes de Adrian olhar por cima de seu grande ombro, ele sabia.
Matthias fora curado. Por algum milagre, Adrian, o colega de Jim, ou seja lá quem realmente era, fizera aquilo que dois anos de hospitais, médicos, cirurgias, drogas e reabilitação não conseguiram.
Seu corpo estava inteiro... mais uma vez.
Pois Adrian tomara para si todos os ferimentos.
Encarando o olho – agora leitoso – de Adrian, Matthias não ficou pensando no lado metafísico da coisa, no lado religioso, na estupefação ou mesmo em agradecimentos.
Tudo o que podia pensar era: como diabos iria explicar aquilo para Mels?
CAPÍTULO 41
– Oi, mãe, como você está? – enquanto ouvia a resposta, Mels colocou outra batata frita na boca. – Ainda estou no trabalho. Só liguei para dizer que estou bem.
Aquelas simples palavras tinham conotações que iam muito além de uma explicação da hora em que ela estava ligando e da referência ao “trabalho”.
Fechando os olhos, ela se esforçou para deixar a voz em um tom normal.
– Ah, você sabe como é o jornal. Sempre tem alguma coisa acontecendo... Então, como foi seu jogo de cartas?
Ao menos desta vez, em vez de detestar jogar conversa fora com assuntos mundanos, Mels acabou gostando da normalidade. O normal era bom. O normal era seguro. O normal era completamente distante de águas frias, do aprisionamento invisível e do espectro da morte.
Ela estava viva. Assim como sua mãe.
Isso era... realmente bom.
E era interessante o quanto a resposta da mãe importava. E também o relato sobre como Ruth, sua vizinha, havia jogado. E também a risada ao contar sobre um blefe que não dera certo. Mels ouvia atentamente, e se importou de verdade, o que dizia muito sobre coisas por que ela passara nos últimos dias.
Pelo jeito, o choque das águas frias acordara coisas que há muito estavam dormentes.
Abrindo as pálpebras, ela observou Jim Heron, deitado muito imóvel debaixo das cobertas.
O que realmente acontecera no embarcadouro?
– Mels? Você está aí?
Ela segurou o telefone com um pouco mais de força, mesmo não tendo perigo de deixá-lo cair.
– Sim, mãe, estou.
Como seria esta noite se as coisas tivessem terminado de outra maneira?
Uma onda de medo percorreu seus ossos, congelando sua coluna, e uma súbita tremedeira fez seus pés baterem debaixo da cadeira e seus dedos batucarem na escrivaninha, ao lado do prato de comida quase vazio.
Ela olhou para o banheiro e se perguntou o que Matthias estava fazendo lá. Por um momento, pôde ouvir um barulho surdo, como se o chuveiro estivesse ligado, mas agora havia apenas silêncio.
– Mels? Você está tão quieta... está tudo bem?
Eu quase morri hoje...
Certo, aparentemente a compostura que ela estava mostrando desde que saíra do rio Hudson era resultado de um estado de choque. Agora, uma crise de choro estava se anunciando.
Mas ela não iria se descontrolar no telefone com sua mãe.
– Desculpa. Estou apenas... feliz de ouvir sua voz.
– Oh, que gentil da sua parte.
Outras coisas foram ditas, coisas normais e agradáveis, e então Mels ouviu a si mesma explicar que não iria chegar em casa até tarde da noite.
– Mas estou apenas no centro da cidade, no hotel Marriott. E meu celular está sempre comigo.
– Estou mesmo contente por você ter ligado.
Mels olhou para o espelho acima da escrivaninha. Lágrimas escorriam por seu rosto.
– Eu te amo, mãe.
Houve um instante de silêncio. Então, as três palavras foram ditas de volta, em um tom surpreendente, que acelerou seu choro.
Duas vezes em um único dia. Quando foi a última vez que isso havia acontecido?
Quando sua mãe desligou, foi um milagre que Mels conseguisse achar o botão para terminar a ligação. O próximo movimento foi encontrar o guardanapo em seu colo, dobrá-lo na palma das mãos e mergulhar o rosto naquele pano macio.
Os soluços a faziam chacoalhar, sacudindo os ombros, fazendo a cadeira soltar um chiado. Não havia como parar aquela explosão, não havia pensamentos, nem mesmo imagens.
E a crise emocional não era apenas por causa do rio e de Matthias; ia mais longe que o presente, estendendo-se até a morte de seu pai.
Ela chorava porque sentia saudades e porque ele morrera jovem. Chorava por seu pai, por sua mãe e por si mesma.
Chorava porque quase morrera há algumas horas... e porque Matthias ia deixá-la, e saber disso era como saber que o homem que ela amava morreria em breve.
O peso caloroso de uma mão em seu ombro fez Mels levantar a cabeça. No espelho, viu que Jim Heron estava atrás dela.
– Você está brilhando – ela disse franzindo a testa. – Você está...
Asas.
O homem tinha um par de asas atrás dos ombros, lindas asas delicadas que se erguiam no ar, fazendo sua imagem parecer um...
Virando-se, Mels ergueu o olhar para encarar o homem, mas ele não estava perto dela. Jim ainda estava deitado debaixo das cobertas, como uma montanha silenciosa e imóvel.
Ao voltar e olhar no espelho novamente, ela viu apenas a si mesma.
Naquele momento, a porta do banheiro se abriu.
Matthias saiu de lá, usando a maçaneta para se equilibrar.
No instante em que o viu, Mels sabia que algo estava diferente.
– Matthias?
Ele se aproximou com passos cuidadosos, como se tivesse saído de um barco e suas pernas ainda estivessem se acostumando com a terra firme.
Então, a porta que dava para o corredor se abriu e fechou – o colega de Jim saíra.
– Matthias?
Ele ficou de frente com Mels, se abaixou e ajoelhou. Quando ele levantou o olhar, ela quase engasgou.
Na cama, Jim escolheu aquele momento para se recuperar. A raiva, mais do que qualquer outra coisa, clareou sua mente e o motivou. Seu corpo ainda estava poluído, mas ele já cansara de ficar deitado esperando se sentir melhor.
Jogando as cobertas para o lado, ele grunhiu quando se levantou.
Sua nudez não era uma boa notícia.
E, cara, seu estômago ainda estava se revirando.
– Posso pegar umas roupas emprestadas? – ele perguntou, sabendo que Matthias e Mels estavam ao lado na escrivaninha.
Alguém limpou a garganta. Foi Matthias.
– Ah, sim... estão na bolsa ao seus pés.
Inclinando-se para frente, ele pegou a bolsa. A coisa viera da loja de conveniências no saguão e, quando abriu o zíper, ele disse a si mesmo para não ter nenhuma ideia brilhante. Lá dentro, havia alguns pares de moletons pretos e camisetas com o logotipo da cidade de Caldwell.
– Você tem certeza de que está bem pra se levantar? – perguntou Matthias.
– Sim... onde está Ad?
– Ele acabou de sair.
Jim usou seus poderes mentais para vasculhar os arredores. Seu colega estava no corredor, ao lado da porta. Ótimo.
Ele resolveu o problema da nudez sentando na cama para não ter de mostrar a bunda para a dama que estava no quarto. A camiseta ficou um pouco apertada e a calça de moletom era um pouco curta, mas Jim não se importava com a aparência.
Ao levantar, ele se desequilibrou um pouco e se apoiou na parede.
– Tem certeza de que não precisa deitar mais um pouco? – Matthias perguntou.
– Sim.
– Seus cigarros, celular e carteira estão do lado da TV.
– Você é um salvador de vidas – pois, cara, no instante em que viu aquele maço vermelho e o isqueiro preto, ele pôde dar um longo suspiro.
Jim então pegou aquelas posses essenciais, as guardou no bolso da calça e se dirigiu para a porta. Ele não olhou para trás – não podia olhar. Estava puto demais para conversar.
– Chame se precisar. Ad sabe o número – ele murmurou enquanto saía.
No corredor, Jim olhou ao redor.
– Adrian! – gritou.
O outro anjo tornou-se visível, revelando seu corpo poderoso encostado na parede ao lado de uma mesa com um arranjo de flores. Seus olhos estavam fixos no chão, suas sobrancelhas estavam tensas como se tivesse uma dor de cabeça.
– Tenho de ir a uma reunião – disse Jim. – Volto mais tarde.
Adrian deu um pequeno aceno.
– Não tenha pressa.
– Certo.
Jim não perdeu tempo saindo do hotel a pé. Uma boa ideia, já que deixara as botas e meias no quarto de Matthias.
As Vias Aéreas dos Anjos o levaram para onde queria: de volta para o embarcadouro.
A noite já havia caído e a iluminação pública do lugar era forte o bastante para clarear o interior, jogando sombras desiguais por toda a parte. As aves no teto observavam de seus ninhos, com pequenos olhos suspeitos.
Andando até a baia na qual Mels havia “escorregado”, Jim estava pronto para matar seu inimigo.
Aquela cadela não mudara em nada. Devina podia ter sido repreendida pelo Criador, com toda essa história de repetir a disputa por Matthias, mas claramente ela não aprendera a lição.
O que não era surpresa.
Fechando os olhos, Jim enviou uma convocação para o demônio, exigindo que ela viesse até ele.
Enquanto esperava, seu corpo recuperou toda a força, como se a fúria fosse uma bateria de carro e a chegada iminente de Devina fosse uma carga elétrica.
Naturalmente, Devina demorou o quanto quis para aparecer e, enquanto Jim andava descalço de um lado para o outro, sentindo o frio do chão de madeira, com as mãos fechadas em punhos, tudo o que conseguia pensar era naquilo que Matthias dissera sobre Sissy no Poço das Almas... e como aquelas duas mulheres assassinadas foram maquiadas para se parecerem com sua garota.
Não que ela fosse sua...
Deus, ele podia imaginar a mãe de Sissy lendo as notícias na primeira página do Correio de Caldwell. Como se perder uma filha da maneira mais horrível possível não fosse ruim o suficiente. Ela ainda tinha de ler sobre um assassino imitador?
– Você me chamou – disse o demônio, com a voz insinuadora e cortante.
Jim se virou, e a primeira coisa que notou foi o que ela estava vestindo: o inimigo havia coberto aquele corpo espetacular com um vestido azul que ele já vira antes.
Parecia uma cena perfeitamente planejada. Aquele era o vestido que ela usara na noite em que se encontraram pela primeira vez naquela boate – e Jim se lembrava dela usando aquela roupa debaixo de uma luminária do teto: uma mentira incrivelmente linda, que era pura maldade.
Em termos do calendário, aquela intersecção de caminhos antes divergentes acontecera poucas semanas antes. Em termos de experiência, fora há muitas, muitas vidas atrás.
O ódio deu a Jim uma ereção enorme, mas a excitação não tinha nada a ver com atração, mas sim com o exato oposto.
Queria rasgar Devina pela metade e ouvir seus gritos. Queria que ela conhecesse a sensação de ficar impotente e à mercê de alguém que não se importava com merda nenhuma.
Queria que ela implorasse...
Devina parecia saber exatamente o que ele queria. O demônio sorriu como se tivesse recebido um presente de aniversário.
– Está procurando algo em particular, Jim?
CAPÍTULO 42
Mels ouviu a porta se fechando após Jim sair, mas não prestou atenção nele. Seus olhos estavam presos no rosto de Matthias. Por algum... milagre, ele fora totalmente transformado: pela primeira vez desde que ela o conhecera, havia cor em seu rosto, a pele não estava acinzentada pelos anos de dor. As cicatrizes tinham desaparecido. E seus olhos...
Os olhos.
O olho que antes era leitoso estava agora claro, tão claro como se ele tivesse simplesmente tirado uma lente defeituosa.
Mas aquilo não era um simples caso para um oftalmologista.
– O que... – isso foi o máximo que ela conseguiu falar antes que sua voz falhasse completamente.
– Eu não sei – Matthias balançou a cabeça. – Eu... não tenho ideia.
Ela esticou o braço e tocou as quase invisíveis cicatrizes.
– Você está curado.
Como pode ser possível...?
Virando abruptamente, Mels olhou para o espelho e visualizou a imagem de Jim Heron atrás dela, com todos os detalhes.
Então ela ouviu a voz de Matthias... acredito no Inferno... porque estive lá pessoalmente...
Oh, Deus... literalmente.
– Existem outras coisas além da vida ao nosso redor, não é? – ela disse com a voz ainda falhando. – E tem a ver com Jim Heron.
Matthias aproximou os lábios da palma da mão de Mels e lhe deu um beijo. Essa foi a única resposta que ela recebeu.
No silêncio que se seguiu, ela pensou em algo que dissera a seu pai muitos anos antes. Mels era uma típica adolescente na época, discutindo com tudo e todos. Enquanto dirigiam de volta para casa depois da missa, ela anunciou que não acreditava em Deus, no Céu ou no Inferno – e por que, então, deveria ter seus domingos arruinados?
Seu pai olhou pelo retrovisor e respondeu: “Só porque você não acredita não significa que não existe.”
Encarando o rosto do homem que amava, Mels não conseguia acreditar na transformação – mesmo assim, ela podia passar os dedos na pele agora sem cicatrizes.
E quanto mais pensava, mais percebia que pouco daquilo fazia sentido: a maneira como tudo começara em frente ao cemitério... os dois homens que cercavam Matthias... aquilo que acontecera debaixo da água... e agora essa transformação.
Mas, como disse seu pai, o fato de não fazer sentido não significava que essas coisas não eram reais.
– Eu quero te beijar – Matthias focou em sua boca. – É só isso que sei.
Isso sim fazia sentido. Em meio a essa confusão e emoções pós-estado de choque, a única coisa que parecia real – a única coisa que parecia tangível – era que Mels desejava ficar com ele de qualquer maneira que fosse possível.
Ela aproximou os lábios do ouvido de Matthias e sussurrou:
– Parece que a cama está vazia agora...
Matthias encurtou ainda mais a distância, resvalando em sua boca. Então ele se levantou e colocou um braço debaixo dos joelhos dela e outro debaixo dos braços.
– Não, espere, eu sou muito...
Não deu tempo de dizer “pesada”. Matthias a levantou da cadeira e a carregou até a cama sem dificuldades.
– O que aconteceu naquele banheiro?
Em vez de responder, ele a deitou em cima das cobertas e então abriu as pernas dela, inclinando sobre Mels o seu grande e renovado corpo.
– Eu não sei. E isso é a verdade. Eu entrei lá... então o Adrian... olha, não vamos falar sobre isso. Vamos... fazer outras coisas. Palavras não vão ajudar a tornar o que aconteceu mais compreensível.
Mels sentia que ele estava certo. Nada fazia sentido, exceto a necessidade de ficarem juntos – e isso ficou especialmente claro quando Matthias passou a ponta do dedo pelo pescoço dela até a gola de sua roupa.
– Onde você conseguiu esse vestido?
– É uma capa de chuva. E é dobrável... eu sempre deixo uma na bolsa.
– Então não tem zíper?
– Não – ele soltou um pequeno sorriso, mas então voltou a ficar sério, como se lembrasse do motivo por que ela trocara de roupa. – Não pense sobre o embarcadouro – ela disse. – Não agora.
Afinal, ela também tinha o direito de fazê-lo parar de pensar em outras coisas naquele momento.
– Como posso não pensar naquilo? – ele disse, com um tom sombrio. Mesmo assim, Matthias se abaixou e a beijou, pairando com seu corpo sobre ela, levando as mãos até o cordão que amarrava as duas metades da capa de chuva...
– Você está nua debaixo disso? – ele perguntou baixinho.
– Do jeito que vim ao mundo.
Ele se afastou um pouco.
– Não consigo decidir se isso é a coisa mais sexy que já ouvi...
– Ou...?
– Ou se eu quero matar qualquer outro homem que te viu vestindo isso.
– Mas não estou mostrando nada...
– A questão não é essa.
A possessividade naquela voz profunda a fez sorrir – principalmente quando ele abriu a capa e passou suas grandes mãos pelo corpo de Mels. A boca veio em seguida, com os lábios macios e os dentes afiados mordiscando com delicadeza, demorando-se em cada seio até os mamilos ficaram sensíveis e eretos.
Ela o impediu de ir mais longe.
– Eu adoraria um banho... quer me acompanhar?
Debaixo de pálpebras insinuantes, seus olhos brilharam.
– Acho que estamos muito bem assim.
– Vem comigo.
Quando ela sentou na cama, ele rolou para o lado.
– O que você acha se eu apenas assistir?
– Se é disso que você gosta...
O grunhido que ela recebeu de volta era um grande e animalesco “sim, madame”, e Mels não faria a indelicadeza de não começar o show com antecedência: quando saiu nua da cama, ela deliberadamente esticou os braços até a cabeça e arqueou as costas, deixando à mostra os seios firmes e erguidos.
Especialmente quando ela os envolveu com as mãos e apertou os mamilos.
– Meu... Deus... – sussurrou Matthias.
Mels demorou-se ao dar a volta na cama, deixando-o olhar para seu corpo enquanto ela passava as mãos pelos quadris. Havia tanta liberdade naquela privacidade, e na maneira como o abajur a iluminava, e no jeito como o olhar de Matthias a seguia em cada movimento.
– Você vem junto? – ela perguntou.
– Sim... – ele sentou para se levantar, mas então franziu a testa, olhando confuso para si mesmo. – Ah... sim.
– Você pode ficar vestido – ela disse gentilmente, sem querer deixá-lo embaraçado. – E tem bastante espaço no chuveiro.
Matthias balançou a cabeça, como se quisesse clarear a mente.
– Sim – ele riu constrangido. – Aliás, “sim” parece ser minha palavra favorita no momento.
Mostrando as costas novamente, Mels ouviu o afastar das cobertas enquanto Matthias se levantava, e então suas mãos quentes agarraram o quadril dela e a puxaram. Enquanto ele beijava seu pescoço, as mãos dele se moveram por toda parte até chegarem aos seios, onde apalparam e acariciaram delicadamente.
– Mels... Deus, você é tão macia! – ele passou o nariz por sua nuca e chegou até o ouvido. – Você é...
– Quer ver como eu sou talentosa com uma barra de sabonete?
– Ah, merda!
– Vou entender isso como um “sim”.
Dentro do banheiro, ela se esticou e abriu o chuveiro enquanto Matthias abaixou a tampa do vaso e sentou, esfregando o queixo como se estivesse com fome e pronto para comer.
– Você vai deixar isso aberto, é claro – ele afirmou.
– A cortina?
– Sim.
– E se eu não deixar?
– Eu vou rasgar ela para fora.
Mels abriu totalmente a cortina.
– Bom, não posso deixar você destruir o hotel.
Mels entrou debaixo da água quente e se arqueou, deixando a parte da frente do corpo ser banhada primeiro. Então se virou e molhou os cabelos, colocando a cabeça para trás enquanto a água escorria, lhe dando uma sensação de mãos percorrendo o seu corpo.
As mãos dele.
O sabonete do hotel era uma pequena barra que já estava gasta com o uso – e, quando ela o molhou, sentiu o perfume de gengibre atingir seu nariz.
Tão escorregadio!
Passou pelo pescoço e seios, então mais abaixo, no umbigo e sobre os quadris... Mels ensaboou todo o corpo, deixando a espuma cobrir sua pele e escorregando por curvas deliciosas... algumas das quais passando pelo meio das coxas.
Matthias estava congelado enquanto observava, jogando os olhos de cima a baixo como se não desse conta de olhar tudo o que acontecia.
Por um momento, Mels perdeu o ritmo: o mistério daquela cura voltou à sua mente... mas então Matthias falou:
– Você precisa de ajuda com as costas?
O som ápero da voz dele fez Mels se concentrar novamente.
– Paciência.
– Eu não tenho nenhuma.
– Aprenda a ter – quando ele soltou palavrões baixos e vis, ela sorriu e se abaixou para ensaboar as pernas, deixando os seios suspensos e convidativos. – Faz bem para a alma.
– O mesmo pode ser dito sobre você. E, pelo amor de Deus, não pare...
Feliz em obedecer, ela foi cuidadosa e devagar com o calcanhar e a perna, seus mamilos balançando de lá para cá, raspando no topo das coxas.
– Deixa que eu assumo daqui pra frente – ele se esticou e tomou o sabonete. – Oh, meu Deus... eu preciso te tocar.
Mels não negaria esse desejo. Ou qualquer outra coisa.
Matthias molhou as mãos na cachoeira que se formou ao lado dos quadris dela; então começou a tocar a pele de Mels, a espuma sedosa aumentando o prazer do contato enquanto ele ensaboava a parte de trás da perna e se demorava quando chegou perto de seu sexo... e então voltou para a coxa, acariciando, alisando, excitando-a e esquentando o ambiente mesmo sem a ajuda dos vapores do chuveiro quente.
Mels fechou os olhos.
Ela estava ao mesmo tempo no céu e na terra, de pé no banheiro e voando nas alturas, dividida entre os extremos de desejar que aquela tortura nunca acabasse... e desesperada para liberar a energia que já ameaçava deixá-la de joelhos.
– Me dê sua perna.
Abrindo as pálpebras, Mels pôs a mão no ombro dele para se equilibrar e levantou o pé oposto.
Tudo em que ela podia pensar era a cabeça dele no meio de suas coxas.
– Você está ficando molhado – ela disse com a voz rouca.
Os olhos faiscantes de Matthias encontraram os dela.
– Espero que você também esteja – quando ela assentiu, ele deu um pequeno sorriso. – Diga pra mim.
– Dizer o quê?
– O quanto você está molhada bem aqui... – sua mão deslizou no sexo de Mels, seus dedos longos passando no meio daquele calor, esfregando apenas o suficiente para fazê-la gemer... e então parou. – Diga.
Ele escolheu aquele momento para abrir a boca e mergulhar o dedo entre os lábios, saboreando a essência de Mels, soltando um som de aprovação que reverberou em seu peito.
– Diga – ele ordenou.
Mels pôde apenas gemer algo parecido com “estou muito molhada”.
Matthias sorriu como um garoto malvado cheio de más intenções.
– Você vai lavar o cabelo para mim? – ele encarava os seios dela enquanto falava, como se estivesse imaginando eles balançando enquanto ela movia os braços acima da cabeça.
Com. Certeza. E depois talvez pudessem partir para outras coisas...
Não demorou nem um segundo para ela pegar o frasco de xampu. A tampa já estava aberta e, enquanto derramava o líquido na palma da mão, Mels observou a consistência de mel e a cor âmbar do líquido.
Os olhos de Matthias continuaram presos nos seios dela enquanto Mels erguia os braços. Como esperado, os movimentos deixaram Matthias ainda mais fascinado com o que via, e Mels sabia exatamente o quanto ele estava gostando: as mãos dele começaram a subir do calcanhar até o joelho dela, indo cada vez mais longe.
Até que chegou onde ela queria.
Quando seus dedos habilidosos tocaram o sexo dela novamente, Mels tremeu de prazer – e isso foi bem útil para a hora do enxágue. Enquanto a água carregava o xampu dos cabelos, Matthias provocava e explorava, a massagem levando-a até o limite.
– Quero ver você gozar – ele ordenou.
Sem problema. O som de sua voz e a maneira como ele a penetrava foi mais do que suficiente para transbordar aquela sensação em um orgasmo imenso: Mels lançou a palma da mão contra os azulejos molhados enquanto ondas de prazer percorriam seu corpo.
E ouviu a si mesma dizendo algo... o nome dele, sim, era isso – e ela disse duas vezes.
O chuveiro foi desligado enquanto ela se recuperava e uma toalha envolveu seu corpo.
– Você já está limpa o bastante para seu padrão de higiene? – ele disse ao levantá-la do chão.
Mels estava quase certa de ter respondido “sim” – ao menos era essa a palavra que estava em sua cabeça. Deus sabe o que ela disse realmente...
Com um súbito desespero, Matthias pressionou a boca contra a dela e a beijou com força enquanto esfregava o tecido macio da toalha. E então, começou a levá-la de volta para a cama.
Quando ele a deitou, Mels pensou que ele ia beijá-la novamente, então fechou os olhos e levantou o queixo.
E Matthias realmente a beijou. Mas não foi na boca.
Ele foi diretamente para o meio de suas pernas, separando as coxas bem abertas, mergulhando em seu sexo e sugando tudo o que podia. A sensação daquela língua molhada e quente em seu interior a levou de volta para a beira de um abismo, seu corpo atormentado novamente com um orgasmo que se anunciava.
E que aumentava de intensidade sem nunca oferecer alívio.
De volta ao embarcadouro na beira do rio Hudson, Devina podia sentir o calor emanando do anjo que a encarava – e, uau, quem diria, aquele calor não era apenas raiva.
Ele a desejava.
E, ainda melhor, ele odiava a si mesmo por causa disso: Jim desprezava totalmente a ereção que pressionava contra sua calça.
A combinação era melhor do que absinto e ostras, um afrodisíaco que quase a fez esquecer que Jim a traíra na rodada anterior.
Mas ela não esqueceu. Nem um pouco. Ela ainda podia ouvi-lo dizendo aquelas palavras.
Eu menti.
E veja só, ela também estava queimando com emoções em dois extremos, amor e ódio colidindo e se ampliando mutuamente.
A voz de Jim saiu em um grunhido incrível, com um tom grave e maldoso, repleto com o poder de seu corpo.
– Chega de brincadeira, Devina.
– O que exatamente você quer dizer, Jim? – ela deixou sua voz ronronar com toda a delicadeza que possuía, primeiro porque um lado dela realmente queria seduzi-lo, e segundo porque sabia que isso o irritava ainda mais.
O fato de que Devina também estava ficando excitada serviria como mais um tapa na cara dele.
Deus, quem diria que os dois teriam um encontro justo naquela noite? Se ela soubesse, teria arrumado melhor o cabelo.
– Quero que deixe aquela repórter em paz.
– Qual repórter? Brian Willians? Diane Sawyer? Ou talvez alguém do jornalismo impresso?
Jim jogou a mão para frente e agarrou um punhado do cabelo de Devina, puxando tão forte que ela quase teve um orgasmo ali mesmo.
Inclinando-se, ele parecia prestes a mordê-la.
– Engraçado, eu achei que seus métodos não estavam funcionando tão bem.
– Aquela primeira vitória com Matthias ainda é minha – ela gritou, com a cabeça tombada para o lado.
– Mas você ficou sem a alma pra prender, não é?
– Foi um preço pequeno pra vencer a guerra.
– É isso que você acha que vai conseguir? – ele se aproximou, dobrando-a ainda mais. – Porque eu não acho que isso vai acontecer.
Os dois estavam tensos, os rostos quase colados, os corpos dobrados em uma mesma curvatura. E tudo ao redor estava silencioso – não apenas porque era noite lá fora. Jim jogara um feitiço no lugar: mesmo com sua raiva e seu preocupante ódio, ele ainda tinha energia suficiente para manter os humanos longe dali.
Era quase romântico.
Aproveitando a deixa, Devina se soltou, deixando um punhado de cabelo moreno nas mãos de Jim.
Certo, aquilo doeu. Mas foi divertido.
– Você me quer – ela disse, passando a mão no lugar onde o cabelo foi arrancado e fazendo crescer mais fios ondulados perfeitos.
– Eu quero você morta, isso sim.
– Em primeiro lugar, eu sou imortal. E em segundo lugar, deixa eu te ensinar uma coisa, Jim...
– Não preciso de nada que venha de você.
Ela sorriu e começou a olhar diretamente para sua ereção – que havia armado uma verdadeira tenda na calça de moletom mais horrível que ela já vira.
– Não tenha tanta certeza disso. E eu ouviria atentamente se fosse você. Jim, você é um novato na área. Já eu e o Criador temos muito mais história juntos do que você pode imaginar. Ele me criou, Jim. Sou tão amada por ele quanto seu chefe, Nigel. Eu sou o equilíbrio: sem mim, não existe Céu, bondade, coraçõezinhos apaixonados e toda essa merda, porque, em se tratando de livre arbítrio, é necessário contraste para que as dádivas possam ser apreciadas. Eu sou uma ideia Dele.
O anjo cruzou os braços sobre o peito.
– Então por que o jogo depende da sua destruição?
– Você quer dizer a destruição de Nigel – Devina olhou Jim de cima a baixo, medindo seu corpo, aquele corpo grande e musculoso que ela havia possuído de tantas formas diferentes: com consentimento... e sem. – Sabe, eu também participei da sua escolha, não foi apenas seu “chefe” quem escolheu. No começo disso tudo, eu concordei com Nigel: você seria a pessoa enviada para o campo de batalha. Você tinha uma parte maligna e uma parte bondosa, e foi o mais equilibrado que conseguimos encontrar – Devina se aproximou novamente. – Então, se você tem algum problema com a maneira como qualquer subordinado, como aquela repórter, está sendo tratado, a culpa é sua.
– Minha?
Ela colocou a ponta do dedo no peito dele.
– Você supostamente era para ser meio a meio, bem e mal na mesma medida. Mas, eu devo dizer, você me desapontou e não está representando muito o meu lado. Portanto, você não me deixa escolha a não ser agir da exata maneira como fui criada para conduzir meus negócios...
Quando as mãos de Jim tentaram agarrá-la de novo, Devina tomou seu pulso rapidamente e com força.
– Toque meu cabelo de novo e eu vou foder a sua cara... em vez de foder outra coisa...
– Eu não quero você, Devina. Você me dá nojo.
A mão dela viajou até seu pênis e agarrou com vontade.
– Tem certeza?
Jim se soltou, jogando Devina para trás e se afastando. De repente, a voz dele voltou a ficar normal, mas estava apenas fingindo.
– O negócio das loiras não está funcionando comigo. Você está perdendo seu tempo com elas.
– Estou? Ou você apenas quer que eu acredite nisso? – ela se aproximou, deixando seus corpos um ao lado do outro novamente. – Eu acho que a última opção é a correta.
– Os assassinatos não estão me incomodando, demônio – ele abaixou os lábios para ainda mais perto do rosto dela. – E você vai contribuir para seu próprio funeral se for longe demais. Ou você acha que repetir uma das almas é a pior punição que seu Criador pode fazer? Eu acho que não – Jim inclinou-se ainda mais, até suas bocas quase se tocarem. – Eu acho que Ele pode fazer muito pior.
Apenas para irritá-lo, Devina mordeu os lábios de Jim, arrancando sangue, um sangue muito saboroso.
Ele nem mesmo piscou.
Não, em vez disso virou a cabeça e cuspiu. Então, apenas olhou para ela – como se quisesse matá-la com as próprias mãos.
Como. Aquilo. Era. Delicioso.
Deus, ela estava mais do que pronta para uma boa e velha sessão de sexo sem limites, do tipo que a deixava dolorida e cheia de marcas por vários dias.
Em meio àquele tenso silêncio de indecisão, ela considerou suas opções. Mais discussão. Mais cerimônia.
Ou... poderia pegar um fósforo e acender o pavio dessa bomba.
– Se eu fosse você, eu seria mais gentil comigo – ela disse, esticando a língua e lambendo o sangue fresco que ainda escorria do lábio inferior de Jim. – Pois eu tenho algo que você quer, não é mesmo? E as coisas podem ficar realmente desconfortáveis para sua garotinha se eu assim desejar. Qual é mesmo o nome dela? Sissy, não é...?
Bum.
CAPÍTULO 43
Enquanto Matthias se esbaldava com sua mulher, apenas parte de sua mente estava no sexo. A outra metade estava ocupada prestando atenção nas coisas que aconteciam abaixo da própria cintura.
Parecia que ele estava com uma ereção do tamanho de um bonde.
Enquanto lambia entre as pernas de Mels, sugando toda sua essência, explorando com a língua até o fundo, Matthias não podia acreditar no tamanho de sua ereção. Naquele exato instante, seu pau se divertindo com a fricção proporcionada por estar preso entre a barriga e o colchão.
Surpresa!
Ele percebeu essa mudança em seu corpo no momento em que tirou a roupa de Mels. Apenas uma olhada nos seios perfeitos foi suficiente para ele sentir um choque na cabeça do pênis.
Ele olhou para os quadris e pensou que estava ficando louco.
Mas, quando levantou do colchão para seguir Mels até o banheiro, podia jurar que sentia dentro da calça uma movimentação muito específica.
E agora, com Mels gozando em seu rosto, com o sabor de sua amada invadindo sua boca, Matthias sabia que o impossível acontecera.
Descendo o braço até o quadril, ele colocou a mão entre as pernas.
O gemido que soltou ressoou por todo o sexo dela.
Ele estava ereto.
Duro como pedra.
E desesperado, aparentemente: pois um único e rápido movimento por cima daquela calça de couro fez Matthias desabar em cima da perna de Mels, sentindo gratidão, choque e...
A lógica esfriou toda aquela comemoração, lembrando-o que só porque tinha uma ereção, não significava que conseguiria ir até o fim.
– Matthias? – Mels claramente sabia que algo estava acontecendo, então ele limpou a garganta e sentou na cama. – O que foi?
Endireitando-se, ele subiu no colchão e se apoiou nos joelhos. Então pegou a mão de Mels e a puxou para perto. Ele não confiava na própria voz e, afinal, não era preciso usar palavras para descrever aquilo. Ela entenderia no instante em que o tocasse.
Pensando naquela loucura com Adrian no banheiro, ele ainda não tinha ideia do que acontecera – mas, além de ter sua visão de volta, ele agora estava duro e mais do que disposto. E, graças a Adrian, estava também capaz, depois de tanto tempo.
Matthias quase chorou.
Afinal, estar com ela, estar com ela de verdade...
Aquele homem era um anjo capaz de fazer milagres.
Matthias colocou a palma da mão de Mels em si mesmo. Quando fizeram contato, ele imediatamente jogou os quadris para frente, pressionando seu pênis contra o toque dela enquanto seu queixo ficava tenso por causa do choque provocado pelo prazer.
Mels congelou.
Fale alguma coisa, seu idiota. Vamos, fale alguma coisa.
Em vez de falar, tudo o que ele conseguiu fazer foi esfregar a si mesmo na mão dela – o que era quase o mesmo que implorar, ele pensou.
E, oh, meu Deus... Mels tomou o controle a partir dali, com o rosto em êxtase e os olhos brilhando ao agarrar seu pau através da calça.
Caindo para o lado, Matthias deixou que ela comandasse enquanto seu corpo relaxava. Mels se ajoelhou entre suas pernas e começou a baixar a cintura da calça de couro que Adrian lhe emprestara.
– Tudo bem se eu fizer isso? – ela perguntou.
Ele ficou agradecido por ela tratar a questão das cicatrizes com sensibilidade. Mas as marcas já não eram tão visíveis assim, não é mesmo?
– Sim... se estiver tudo bem pra você também...
Ela respondeu apenas desamarrando o fio elétrico improvisado ao redor da cintura.
– Cinto interessante.
– Pelo menos é preto.
– Então combina com o resto – ela disse com aprovação.
Então, Matthias ficou só com a roupa de baixo.
Engraçado, com a vista que tinha dos seios de Mels, ele podia ter os dois braços amputados e não se importaria.
Mas ele teve de olhar para si mesmo, embora não fosse para checar as pernas.
Certo, realmente não era apenas imaginação: seu pênis apertava o fino tecido da cueca como se estivesse preparado para rasgar um buraco e chegar até Mels. E era estranho... quando ainda funcionava, aquele pau grosso e longo não parecia uma parte verdadeira dele – talvez por causa de seu passado. Mas quem se importava? Naquele momento, a coisa parecia mais importante do que sua própria mente.
Ainda assim, ele precisava alertar Mels de que aquilo talvez não terminasse bem...
No momento em que as mãos dela o tocaram, no instante que aquela palma quente o envolveu através do tecido, o corpo dele respondeu com um choque tremendo e sua boca se abriu para soltar um palavrão explosivo.
Quando abriu os olhos novamente – nem havia percebido que estavam fechados –, Matthias viu o rosto de Mels próximo ao seu.
– Gostou? – ela perguntou com um sussurro. Mesmo sabendo a resposta.
E então ela o deixou completamente nu.
Com um impulso, ele a agarrou pelos ombros e a puxou para perto, beijando-a intensamente quando ela começou a agarrá-lo de verdade, subindo e descendo as mãos por seu pau, devagar a princípio, depois rapidamente, cada passada subindo e apertando a cabeça, provocando ainda mais prazer.
Matthias perdeu-se completamente nos movimentos de Mels e, naquela incrível desorientação, ele lambia entre os lábios dela, indo até o fundo, enterrando a mão nos cabelos sedosos atrás do pescoço dela. Mais... ele precisava de mais...
Com um único movimento, ele a puxou para cima e usou o peso do corpo para montar em Mels.
– Eu quero entrar em você – ele disse em meio aos beijos.
Ela assentiu imediatamente e disse:
– Deixa eu ver se tenho algo na bolsa – com um beijo rápido, ela saiu da cama e pegou a bolsa. Procurando lá dentro, sussurrou agradecida: – Ainda bem.
Quando se virou de volta, Mels segurava um par de camisinhas.
– Só pra esclarecer, essas duas eram de uma amiga minha. Ela me pediu pra deixar na minha bolsa quando saímos juntas.
E ele acreditou nela.
Mas chega de conversa.
– Venha aqui – ele ordenou, estendendo a mão.
Eles cuidaram rapidamente da precaução e logo estavam de volta na mesma posição, Mels com as coxas abertas, Matthias pairando por cima.
Enquanto ele a beijava, sugando seus lábios, ela usou aquela mão talentosa para guiá-lo até seu ponto central. Ele tomou o controle a partir dali. Com um impulso poderoso, seus quadris avançaram e a penetração foi algo que Matthias sentiu em sua medula, o calor escorregadio sugando-o com força para o fundo e deixando-o ainda mais duro.
Em resposta, Mels soltou um grito e cravou as unhas nas costas dele, seu corpo estremecendo contra o de Matthias, seu sexo claramente tendo espasmos enquanto ela atingia o êxtase.
– Oh, Deus – ele grunhiu, apertando o corpo perfeito dela contra seu peito enquanto se movia na cadência do orgasmo dela.
Ele até queria ir devagar. Queria mesmo.
Mas, quando ela prendeu as pernas ao redor do corpo dele e começou a pressionar de volta em cada movimento, algo aconteceu. De uma vez, Matthias libertou toda sua ferocidade em cima dela – seus quadris tornaram-se uma máquina desenfreada, a urgência transbordando até ele começar a estocar sem piedade em cima dela.
E, Deus a abençoe, ela o acompanhou em cada passo, desejando tudo o que ele tinha a oferecer, recebendo-o em êxtase enquanto ele gozava...
Com um estrondo, o orgasmo com certeza o despedaçou tanto quanto aquela bomba no deserto, jogando-o para as alturas, explodindo-o em mil pedaços.
A diferença era que, em vez de enviá-lo para um inferno na Terra, essa explosão o levou direto para os céus.
Enquanto Mels sentia a ereção de Matthias pulsar dentro dela, ela o prendia com força, absorvendo seu clímax e sentindo um novo orgasmo em si mesma. Envolvendo-o com os braços, ela enterrou o rosto no pescoço e ombro de Matthias, sentindo o poder de seus músculos naquele corpo que não era o mesmo de antes.
Aquilo parecia... um milagre.
Não havia outra palavra para descrever o que acontecera.
Quando sua mente finalmente voltou ao lugar, Mels encontrou o rosto de Matthias observando-a intensamente com uma expressão grave... ou até mesmo sombria.
– Eu estou bem – ela disse com um sorriso. – Você não me machucou.
Ele abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas então apenas a beijou.
Matthias ainda estava duro.
Rolando pela cama, ele os manteve unidos.
– Não quero que isso termine – ele disse com a voz rouca.
Ela também não queria.
Com movimentos rápidos, eles cuidaram dos preparativos para a segunda rodada, usando a outra camisinha.
Desta vez, ela estava no comando.
E Mels queria ficar por cima.
Ela se posicionou sobre os quadris de Matthias, plantou as palmas das mãos em seus ombros e começou a cavalgá-lo, fazendo seu pau sumir e reaparecer de dentro dela, iniciando um novo incêndio que percorreu seu corpo. Com o ritmo aumentando, os dois se moviam na mesma cadência, grudados, o impulso do sexo tornando-se um vulcão por si só.
Eles gozaram ao mesmo tempo, Matthias despejando sua carga em seu interior, ela sugando com vontade, o prazer tão grande e contínuo que era quase como uma dor que não passa...
E então, depois do que parecia um século, tudo acabou.
Mels desabou em cima dele, depois rolou para o lado e ficaram deitados em um abraço aconchegante.
Encarando os olhos dela, Matthias disse:
– Você é incrível.
– Não, você é.
Ele passou as mãos no cabelo dela e colocou uma mecha atrás da orelha. Então, com um dedo gentil, traçou as linhas do rosto de Mels, como se estivesse memorizando aquele desenho com o toque.
– Você vai partir amanhã cedo, não é? – ela sussurrou, sentindo um súbito pavor.
Matthias confirmou, balançando a cabeça devagar.
Mels fechou os olhos e deitou de costas com a cabeça no travesseiro. Colocou o braço debaixo da nuca e começou a encarar o teto.
Droga... isso doía.
– Estou apaixonado por você – ele disse com a voz baixa.
Mels virou a cabeça. Matthias ainda a encarava com o olhar parado e penetrante, o rosto duro com uma expressão séria.
Por um momento de pura estupidez, ela quis dar um tapa naquele rosto. Ele estava deixando a cidade para algum lugar desconhecido, de onde nunca retornaria, e agora jogava uma bomba dessas, em meio a toda aquela confusão?
Vai. Se. Foder.
– Só queria que você soubesse.
– Antes de ir embora – ela completou contrariada.
– Certas coisas valem a pena ser ditas.
Ela ficou novamente de frente para ele e prendeu as mãos debaixo do corpo – para o caso de elas tentarem agir por impulso.
– Se isso é verdade, então por que você vai embora?
– Essa decisão não cabe a mim.
– Então alguém vai comprar sua passagem e te forçar a entrar num ônibus? – Deus, ela soava como uma ingrata. – Ah, inferno... olha, eu não quero que você vá embora. Mas você sabe disso. Então, é assim que estamos.
Ele a amava.
E quando Mels observou o rosto de Matthias, os sentimentos dela também ficaram muito claros.
Estendendo a mão, ela tocou o rosto dele – e não foi com um tapa.
– O que vou fazer sem você?
Aliás, como alguém que ela acabara de conhecer podia significar tanto? Não era como se ela fosse uma adolescente atingida por uma paixão passageira, naqueles anos em que qualquer namoro poderia se transformar em uma tragédia estilo Romeu e Julieta. Mas lá estava ela, à beira das lágrimas porque seu tempo juntos estava acabando.
– Algum dia vou ter notícias de você? – ela perguntou.
Matthias respondeu beijando-a e, no meio do beijo, os olhos de Mels arderam tanto com lágrimas acumuladas que ela precisou piscar com força.
Dessa vez, o sexo foi lento e delicado, mas não menos devastador em termos de paixão: quando ele a tocava, quando ele a penetrava, quando se moviam unidos, Mels dizia a si mesma para lembrar de cada gemido, de cada movimento, de cada suspiro.
A lembrança teria de durar por uma vida inteira.
CAPÍTULO 44
Sentado completamente nu em uma baia do ancoradouro, Jim pegou seu maço de cigarros do bolso da jaqueta, com as mãos tremendo. Fez o mesmo com o isqueiro. E colocar a chama na ponta do cigarro também não foi fácil.
Enquanto isso, o rio Hudson produzia um som ameaçador, suas águas batendo contra as paredes de pedra, fazendo Jim sentir como se estivesse cercado de grades por todos os lados.
– Na verdade, ela não é a chave pra isso tudo – Devina disse atrás dele.
Sua audição parecia estar sensível demais: o zíper dela sendo fechado parecia um grito dentro de sua mente, e não deveria ser possível escutar o arrastar de pés calçando sapatos de salto.
– A repórter – o demônio insistiu, como se esperasse uma resposta. – Matthias se perdeu há muito tempo, nada pode salvá-lo.
Jim bateu levemente no cigarro e observou as cinzas caírem e flutuarem pelo rio.
Devina estava certa sobre uma coisa: ela conseguiu fazê-lo sentir-se ainda pior do que antes. Ele estava poluído por inteiro, tanto por dentro como por fora – por causa de sua raiva, do sexo, do jogo.
Salvadores não podem se desesperar – mas lá estava ele, completamente cercado por uma total falta de otimismo.
Os saltos de Devina se aproximaram marchando e pararam ao alcance de sua visão periférica, aqueles sapatos azuis de pele de crocodilo ou sei-lá-o-quê quase queimando suas retinas.
Ele não tinha a intenção de transar com ela.
Mas transou. Duas vezes.
Essa colisão teve proporções bíblicas – e dava para perceber. Os barcos que antes estavam tão cuidadosamente empilhados foram derrubados e espalhados por toda parte depois que Jim a jogou de cara contra eles. As boias estavam espalhadas ao redor. Vários coletes salva-vidas foram rasgados e seus preenchimentos ficaram caídos, como sangue em um campo de batalha.
Parecia que um furacão havia passado por ali.
Será que foram três vezes seguidas?
O demônio se ajoelhou e aquele rosto perfeito e mentiroso invadiu a visão de Jim.
– Jim? Você está aí?
Ele não estava muito certo disso.
– Estamos chegando ao fim desta rodada – ela disse suavemente. – Talvez depois de tudo, eu e você possamos tirar umas férias juntos. Viajar pra algum lugar quente e esquentar ainda mais o clima?
– Eu prefiro morrer.
Ela sorriu, sorriu verdadeiramente, como se tudo estivesse bem com o mundo.
– Então tá combinado.
O demônio se levantou e os olhos de Jim a acompanharam enquanto ela se endireitava. Tão linda, tão maligna.
– Você quer que eu deixe a repórter em paz? – ela disse. – Está bem. Vou fazer isso. Porque eu acho que o jogo já está ganho. Eu estava apenas disfarçando com ela. Você quer saber a verdade sobre aquela mulher? Matthias e seu passado vão cuidar dela. Afinal de contas, ele é um dos meus. É um mentiroso e um megalomaníaco, e as escolhas dele vão passar diretamente por cima dela, mesmo se você tentar dissuadi-lo com seus delírios de moralidade. Mesmo que você argumente que a bondade pode fazer os dois ficarem juntos, não vai conseguir tirar as amarras que prendem a alma de Matthias. Suas ações no passado vão sempre voltar para assombrá-lo.
Jim deu outra tragada no cigarro.
– Apenas lembre-se de que podemos fazer isso de novo – ela disse com satisfação. – Quando você precisar de um pouco de exercício. Tchau por enquanto, inimigo meu.
Devina desapareceu no ar, deixando Jim sozinho com o barulho constante da correnteza e o frio cortante da noite.
Quando jogou a bituca no rio, pensou em todos aqueles ambientalistas que ficariam furiosos por ele jogar lixo na água.
Então acendeu outro cigarro.
Fumou.
Acendeu um terceiro.
Enquanto acendia um Marlboro atrás do outro, não tinha certeza exatamente de quanto tempo ficara sentado lá sem roupas, soltando anéis de fumaça e sentindo nojo de si mesmo. Porém, a verdade era que o que acontecera ali era muito pior do que a tortura que ele sofrera no Poço das Almas.
Agora fora voluntário. Da outra vez havia sido contra sua vontade.
Observando o rio adiante da baia, ele assistiu ao luar refletido na ondulação das águas. A correnteza, ou talvez fosse o vento noturno, criava agitação suficiente para dar formas angulares para a luz da lua.
Era tão bonito, mesmo naquelas águas poluídas pelas enxurradas da primavera. Mesmo com seu péssimo estado de espírito. Mesmo com o ódio que sentia de si próprio e do jogo, que era forte ao ponto de fazê-lo querer desistir de tudo.
Mas a dança do luar era pura graciosidade na superfície do rio...
Quando aceitou o papel de salvador, Jim nunca considerou que aquilo poderia consumi-lo vivo. Inferno, depois de trabalhar com Matthias por todos aqueles anos nas Operações, ele pensava que tinha visto o pior de si – e da humanidade.
Nunca pensou que chegaria em um nível tão baixo.
Agora, Jim precisava de alguma coisa para acreditar.
Algo tangível, algo ainda maior do que seu temor pela eternidade de sua mãe – e também pela sua.
Ficou de pé, sentindo-se com mil anos de idade, se aproximou e pegou a calça de moletom que Matthias lhe emprestara. Devina rasgara a calça de suas pernas e elas acabaram debaixo de um daqueles malditos barcos. Pelo menos, não foram parar dentro do rio.
Pegando a calça rasgada, ele a segurou pela cintura e chacoalhou...
Algo saiu voando de dentro do bolso.
E ele sabia o que era no instante em que viu – mesmo na escuridão, sabia exatamente o que era.
Vestiu a calça e depois pegou a coisa.
O artigo de jornal dobrado havia caído a um centímetro da beirada.
Ele não queria olhar. Não tinha interesse nenhum em olhar aquela fotografia que já havia memorizado. Não queria ler nem mesmo uma palavra daquele artigo que já decorara.
Mas suas mãos pareciam ter outra intenção.
No instante seguinte, Jim encarava o rosto de Sissy, aquele lindo, esperto e jovem rosto. E já que não conseguia parar de olhar, ele disse a si mesmo que estava cativado pela imagem porque era um símbolo de tudo o que odiava em Devina.
Mas não era só isso. Não completamente.
Passando os dedos pela foto composta de pontos claros e escuros, ele tocou a imagem do delicado colar de ouro que ela usava ao redor do pescoço, aquele que fora um presente de sua mãe... e Jim pensou naqueles momentos que passara com sua garota, conversando sobre seu cachorro, tentando dar alguma esperança para ela, algo em que ela pudesse acreditar nas horas em que sentia que nada nunca iria melhorar...
Em um momento de clareza feroz, ele entendeu que Devina estava vencendo. Apesar do placar de dois a um, aquela merda com as loiras estava realmente o corroendo por dentro, mantendo a amargura e a raiva por causa de Sissy em primeiro plano na sua mente.
Era uma estratégia excelente.
A garota realmente era seu calcanhar de Aquiles.
Jim voltou a olhar para a luz refletida no rio. Depois olhou a foto novamente.
Devina não mudaria. Ela continuaria a explorar sua fraqueza – como ela mesma disse, aquilo fazia parte de sua natureza. Fora criada para isso.
Então Jim teria de ser diferente.
Praguejando, ele dobrou o artigo e andou ao longo da baia. Quando chegou na beirada, fora do alcance do teto do embarcadouro, ele parou sob a luz do luar.
Segurando o artigo pela parte superior, Jim começou a rasgar o pedaço de papel ao meio, levando as mãos em direções opostas...
Mas não foi muito longe.
– Droga – murmurou. – Faça! Apenas faça isso!
Apesar de nada estar bloqueando suas terminações nervosas, suas mãos não conseguiram aceitar a ordem do cérebro.
Passando a mão pelos cabelos, Jim realmente queria deixar Sissy para trás. Realmente queria.
Na verdade, ele rezava por isso.
Mas a única coisa que veio à sua mente foi a realidade de que ela não estava apenas sofrendo na sala de estar do demônio. Ela estava sob o controle de Devina – e isso significava que não estava segura.
Seu inimigo era capaz de tudo.
O que Jim precisava era tirar Sissy de lá.
CAPÍTULO 45
Mels acordou com um sobressalto, sentindo a escuridão ao redor puxando-a de volta para o rio e para o estrangulamento das águas fundas...
No instante em que viu a faixa de luz percorrendo o chão, a realidade retornou. Estava no quarto de hotel. Com Matthias.
Ela virou o corpo para ficar de frente a ele, e o encontrou em um sono profundo, com o peito subindo e descendo lentamente debaixo das cobertas. Ele estava de costas, os braços fora do cobertor, as mãos pousadas de cada lado. Parecia que poderia levantar da cama em um piscar de olhos.
E também parecia estar em um caixão.
Que pensamento feliz.
Deus, que noite.
Graças a uma rápida ida até a loja de conveniência, a noite passou da mesma maneira que a outra que tiveram juntos: com episódios de muita conexão erótica alternados com o tipo de sono que vem quando você está mais do que exausto.
Mas desta vez puderam ir muito mais longe do que antes.
De repente, Matthias abriu os olhos.
– Você está bem?
– Como sabia que eu estava acordada?
Ele deu de ombros.
– Eu não durmo de verdade.
– É o que parece.
Ele desviou os olhos e passou a encarar o teto, ficando tão imóvel que parecia nem respirar – e foi então que Mels teve certeza de que aquela seria a última vez que ficariam juntos. Afinal, todo aquele exercício aeróbico não o faria mudar de ideia, não é?
Porém, aquilo fora muito mais do que apenas sexo, Mels pensou. Pelo menos para ela.
No horrível silêncio que se seguiu, ela se permitiu sentir a perda e, como se soubesse exatamente o que ela estava pensando, Matthias pegou a mão dela e a apertou.
– Vou tomar um banho rápido – ele disse.
Ele a beijou demoradamente, então se levantou tão rápido que ela até se encolheu um pouco.
A mudança era impressionante. Ele andou pela escuridão até o banheiro como se nunca tivesse mancado na vida.
Um segundo depois, uma luz se acendeu e o chuveiro foi ligado.
Uma rápida olhada no relógio mostrou que já eram sete horas da manhã.
Hora de ir para casa, tomar seu próprio banho e se vestir. Com alguma sorte, sua mãe estaria na aula de pilates e Mels poderia evitar o desfile da vergonha – não que ela se arrependesse da noite. Apenas não estava muito feliz naquela manhã.
Afinal, tudo estava chegando ao fim.
Levantando-se da cama quente, ela foi até a escrivaninha e acendeu o abajur – e lembrou que não tinha roupa de baixo nem uma roupa normal. Que maravilha.
Deus, a queda no rio parecia ter acontecido com outra pessoa – pelo menos até ela sentir as dores nas costelas e braços por ter se erguido para fora do Hudson.
Olhando para o banheiro e ouvindo o som do chuveiro, ela pensou que talvez pudesse se juntar a ele – não, se fizesse isso poderia parecer que ela estava se acovardando e tentando convencê-lo a ficar mais um pouco.
Mels ainda tinha seu orgulho.
Bom, pegaria então uma cueca de Matthias. Ela não sairia por aí novamente sem nada por baixo daquela capa de chuva.
Pegando a mala que Jim Heron havia vasculhado anteriormente, ela encontrou duas cuecas. Vestiu uma delas, puxando do calcanhar até a cintura. Até que serviu bem – e, veja só, ainda havia outra calça de moletom junto com algumas camisetas.
Mels teve de enrolar a calça na altura da cintura e praticamente sumiu dentro da camiseta, mas pelo menos era tudo da cor preta. Depois de calçar os sapatos e vestir a capa de chuva, ela sentiu-se menos como uma prostituta.
Matthias ainda estava no banho.
Era tentador sair de fininho e poupar os dois de uma despedida embaraçosa. Mels olhou para a porta e jogou sua bolsa no ombro. Talvez pudesse escrever um bilhete...
Não. Ela se recusava a ser uma covarde.
O som abafado do despertador do celular disparou dentro da bolsa.
Ela colocou a mão lá dentro e vasculhou até encontrar a coisa. O bipe familiar e irritante a fez estremecer, mas esse era o objetivo. Qualquer som mais agradável poderia fazer ela continuar dormindo.
Depois de desligar o despertador, ela voltou a observar a porta do banheiro.
A espera já a estava cansando e ela checou o correio de voz para passar o tempo. Havia três mensagens na caixa de entrada.
– Olá, aqui é o Dan da oficina Caldwell Auto. Estamos avaliando seu carro e, para ser sincero, ele quase deu perda total. Um carro com essa idade e esse tipo de estrago... Podemos consertar, mas não posso garantir que não vá dar problema depois de uma semana. Meu conselho é pegar o dinheiro do seguro e comprar um novo. Ligue pra mim...
Por alguma razão, a ideia de que seu carro estava morto fez lágrimas surgirem em seus olhos.
Droga, ela precisava se controlar.
A segunda mensagem era de seu salão de beleza, lembrando que ela tinha hora marcada com Pablo.
A terceira mensagem era...
– Oi, aqui é o amigo do Tony? Da polícia? O Jason? – a inflexão da voz dele transformava tudo em perguntas, como se não estivesse muito certo do próprio nome. – Escuta... preciso falar com você urgentemente. A bala que você encontrou? O resultado do teste foi positivo. Ela foi disparada pela mesma arma usada no tiroteio do Marriott – um calafrio percorreu as costas de Mels e se espalhou por seu corpo. – E isso significa que você precisa vir até aqui e falar com a polícia. São dez horas agora e eu preciso dormir um pouco. Mas preciso relatar isso logo de manhã e a sua...
Naquele momento, o chuveiro foi desligado no banheiro.
Inclinando-se para o lado, Mels observou Matthias sair do boxe. Ele parecia tão maior agora, e quando ela olhou para baixo, viu apenas vestígios de cicatrizes na parte inferior do corpo dele, nada que pudesse envergonhá-lo. E não mancava, também.
O amigo de Tony ainda estava falando quando Matthias se virou para pegar a toalha que havia deixado na pia...
Mels quase deixou o celular cair.
Cobrindo as costas dele, desde o topo dos ombros até abaixo da cintura, havia uma enorme tatuagem do Ceifeiro da Morte em um cemitério cheio de túmulos – e, abaixo do desenho, havia dezenas e dezenas de grupos de cinco traços riscados ao meio.
Era exatamente igual à tatuagem que Eric havia mostrado...
Fuja. Agora.
Mels correu para a porta, mas não conseguiu sair.
Assim que ela começou a correr, Matthias saiu do banheiro e a impediu de prosseguir.
Matthias tomou um banho não porque queria ficar limpo, mas porque precisava esfregar sua cabeça, que doía muito. Ele nunca gostara de despedidas – embora parte disso fosse por causa de sua falta de conexão emocional com as pessoas.
Agora, a perspectiva de deixar Mels doía como o diabo.
O que foi que ele disse? Como poderia deixá-la para sempre?
Enrolando uma toalha ao redor da cintura, ele saiu do banheiro e... Mels parou de brusco na sua frente, como se estivesse tentando correr, mas ele bloqueou seu caminho. Vestida com algumas das roupas que ele comprara na loja de conveniência, ela parecia estar sendo perseguida.
– Mels...?
– Se afaste de mim – ela colocou a mão dentro da bolsa e, antes que retirasse, Matthias sabia que ela pegaria sua arma.
E, como previsto, o cano de uma pistola foi apontado diretamente para o peito dele.
Matthias levantou as mãos.
– O que está acontecendo?
– Bela tatuagem. Ah, e eu acabei de descobrir que você atirou naquele homem aqui no hotel. O teste da bala foi positivo.
– Que bala?
– Aquela que eu encontrei do lado de fora da garagem, quando fui te encontrar pela primeira vez. Você lembra, não é? Bom, eu entreguei a cápsula para uma pessoa fazer um exame de balística. E a sua arma é a mesma que foi usada no tiroteio.
Matthias fechou os olhos. Merda, aquela bala deve ter saído da pistola de Jim, a que Matthias pegara para si. É verdade, ele atirara com ela naquele agente no corredor.
– Foi você que fez o corpo desaparecer do necrotério? Suponho que vocês sejam ligados de alguma maneira, já que têm a mesma tatuagem. Mas nem se importe em dar os detalhes. Não vou confiar em nada que você disser – Mels balançou a cabeça, a revolta evidente não apenas em seu rosto, mas em todo o corpo. – Mentira, foi tudo uma grande mentira, não é? A amnésia... a perna manca... aquelas malditas cicatrizes, o olho ruim – ela soltou um grande palavrão. – Meu Deus, era uma maldita lente de contato, não é? Junto com maquiagem pra fazer suas cicatrizes antigas parecerem piores. Oh, Deus... – agora ela estremecia. – A impotência também, certo? Pelo jeito você decidiu que dar uma transada valia o risco de ser descoberto. Ou você só se descuidou?
Matthias sentia que estava morrendo por dentro, e tudo que pôde fazer foi cruzar os braços sobre o peito e aguentar as palavras de Mels. Ele não a culpava pela extrapolação: milagres são inexplicáveis por uma razão, e as conclusões que ela estava tirando, embora o ferrassem cada vez mais, pareceriam a única explicação possível – ele pensaria o mesmo se estivesse no lugar dela.
Quando ela finalmente parou de falar, ele abriu a boca; depois fechou novamente quando percebeu que não tinha nada para acrescentar. Odiava ter mentido para ela – mas ela não lhe daria ouvidos se ele dissesse isso.
Merda, seria melhor que ela puxasse o gatilho. Ele com certeza sentia como se ela o tivesse ferido mortalmente – mas, honestamente, a culpa de tudo era dele próprio. Embora pedaços do passado ainda permanecessem escondidos em sua memória, ele sabia que aquele era exatamente o tipo de acerto de contas que o esperava em relação a Mels.
No fim, a única coisa que ele podia fazer era dar um passo para o lado e deixá-la seguir seu caminho – e talvez isso fosse uma coisa boa. Ela com certeza não iria mais procurá-lo depois disso tudo.
No instante em que ele se moveu, Mels se dirigiu para a porta, ainda apontando a arma para Matthias, e ao pisar no corredor deu uma última olhada para trás.
Com uma voz letal, ela sussurrou:
– Só não entendo uma coisa. Por que você me usou? O que eu tenho pra te oferecer?
Tudo, ele pensou.
– Então, foi tudo um jogo – ela disse. – Bom, não tenho certeza sobre o que você pensou que o prêmio seria, mas nunca mais me contate de novo, sob quaisquer circunstâncias. Ah, e vou ligar pra polícia agora mesmo e contar tudo o que sei sobre você. Apesar de provavelmente não ser muita coisa.
E então ela foi embora e a porta se fechou.
Matthias fechou os olhos e encostou na parede.
Ele sabia que deixá-la seria doloroso – mas desse jeito? Com ela pensando que ele era um manipulador e um mentiroso?
Por outro lado, no fundo de seu ser, ele sabia que aquilo era verdade. Ele sempre fora um mestre da mentira.
Um maquinador.
Um enganador...
A dor de cabeça surgiu rápida e com força, e acabou sendo a última... não porque ele morreu, mas porque, naquele chão acarpetado do quarto de hotel, ao pé da porta que Mels usara para sair, toda a sua memória voltou, de uma vez. Tudo.
Do começo ao fim, passando por toda a maldade do meio, suas lembranças retornaram com um rugido, explodindo as amarras que as prendiam, preenchendo os espaços em sua mente, tomando conta de todo o seu corpo.
Era como dez mil televisores em um único quarto, todos com o volume ao máximo, o estrondo tão grande que era incrível que as pessoas na rua não ouvissem.
Foi um tsunami que varreu a costa, destruindo os últimos dias de relativa inocência com Mels, arruinando a paisagem que Matthias criara para si mesmo junto com ela, revelando a fétida terra debaixo dos sentimentos que ele tinha por ela.
Aquilo parecia, de muitas maneiras, pior do que o pesadelo do Inferno.
Pois, após enxergar o que ele realmente era, de perto e em detalhes, sem sombras para obscurecer a feiura, Matthias soube que o jogo no qual estava envolvido, fosse o que fosse, não terminaria bem.
Sua alma estava apodrecida até as raízes.
E ele já havia aprendido que as pessoas colhem aquilo que plantam.
CAPÍTULO 46
Quando chegou em casa, Mels tomou o banho mais longo de sua vida: depois de esfregar a pele com uma esponja, ficou debaixo do chuveiro quente até a água do aquecedor acabar e a temperatura desabar de repente.
Após sair do boxe e enrolar uma toalha em seu corpo corado, ela pensou que não deveria ter falado para Matthias que ia chamar a polícia. Com certeza agora ele já sumira daquele quarto de hotel – mas, considerando o quanto sempre foi paranoico, provavelmente teria feito isso de qualquer maneira agora que fora desmascarado.
Ao menos ela fez a coisa certa. Mels ligou para o detetive De la Cruz ainda no táxi – e direto para a casa dele. Contou tudo, mesmo sentindo que tinha envergonhado seu pai com a maneira como se comportou.
E o detetive agiu imediatamente: o quarto de Matthias receberia uma visita a qualquer momento – provavelmente até já acontecera.
Droga. Ela realmente deveria ter ficado no hotel para ter certeza de que Matthias seria encontrado pela polícia, mas quando saiu, Mels estava focada apenas na própria segurança.
Deus, ela se sentia suja... absolutamente imunda, e suas emoções estavam em completa desordem.
A ironia, é claro, era que a repórter dentro dela estava convencida de que se sentiria melhor se soubesse os porquês: Por que ela? Por que agora?
O que diabos ele realmente queria?
Mas pensar desse jeito talvez fosse a mesma coisa que perguntar para um ônibus desenfreado por que ele “escolheu” as pessoas que atropelou.
Entrando em seu quarto, Mels tomou mais cuidado do que o normal para se vestir, e também se demorou uns bons quinze minutos para cuidar do cabelo, usando um modelador – algo inédito.
A última vez que usara aquela coisa fora no casamento de uma amiga, um ano e meio antes.
Maquiagem parecia também uma boa ideia, e ela até borrifou um pouco de perfume.
Fazendo uma pose, ela se olhou no espelho da porta do armário.
Merda. Ainda era ela.
Pelo jeito Mels esperava enxergar outra pessoa no espelho, alguém que não tivesse passado a noite anterior transando com um estranho que mal conhecia... e que acabou se revelando um criminoso violento.
– Oh, Deus...
Com nojo de si mesma, ela se virou, desceu as escadas e começou a fazer café. Mas não pegou uma xícara no armário para se servir. Em vez disso, ficou sentada em sua cadeira na mesa da cozinha, mesmo quando a cafeteira começou a fazer barulho indicando que a bebida já estava pronta.
No silêncio opressivo da casa, sua mente parecia obcecada em reprisar o filme de Matthias, desde o momento do impacto em frente ao cemitério e a visita no hospital... o momento em que ela o encontrara naquela garagem e depois no hotel... desde a primeira noite até a última...
Ela tivera suas suspeitas desde o início, e veja só como as coisas terminaram.
– Tão estúpida... tão completamente estúpida!
Ela colocou as mãos na cabeça e esfregou as têmporas com os polegares, imaginando quanto tempo levaria até parar de se culpar por tudo o que acontecera.
Seria muito tempo. Talvez uma eternidade.
Parte dela queria poder voltar no tempo para aquela noite quando Dick parou em sua mesa e teve aquela rotineira atitude de cafajeste. Se ao menos ela tivesse decidido ir embora antes daquilo, às cinco horas por exemplo, como todos os outros funcionários, ela poderia ter evitado o chefe pervertido... e tudo o que veio depois.
Se... apenas se...
Sentada na cozinha alegre de sua mãe, os minutos corriam enquanto o sol se movia, passando de suas costas até começar a esquentar a lateral do rosto. Suas reflexões também continuaram, o foco mudando de Matthias para outras áreas de sua vida, como a carreira, o tempo que passara morando naquela casa e como foram os últimos anos sem seu pai.
Em retrospectiva, estava claro que ela precisava dessa sacudida para acordar. Nos últimos tempos, Mels estivera muito focada, mas ao mesmo tempo presa em ponto morto: morando na casa de sua mãe, mas não estando lá por ela; ainda de luto pelo pai, mas sem se dar conta disso.
Mas, falando sério, se a sua vida precisava de uma mudança, por que ela não podia simplesmente mudar o corte de cabelo, ou comprar um cachorro, ou fazer algo menos explosivo do que ter um caso desastroso? E que possivelmente teria implicações com a lei.
Baixando as mãos, ela se esticou e encarou a cadeira que sua mãe sempre usava. O sol que entrava pela janela estava esquentando a madeira, deixando clara a razão de a mulher gostar daquele lugar.
Além disso, quando ela cozinhava, daquele ponto tinha visão de todos os cantos da cozinha.
Franzindo a testa, Mels percebeu que escolhera a cadeira de seu pai, aquela que ficava ao lado esquerdo de sua mãe e de frente para o corredor que dava na porta da frente.
Quando era menina, sempre sentava na cadeira de frente para esta.
Estava assumindo o papel do pai de várias maneiras, não é mesmo?
Na verdade... era possível que a verdadeira razão de ter desistido do emprego em Manhattan fosse para poder voltar e ficar com a mãe.
Quanto mais pensava sobre isso, mais sentia que era verdade. Primeiro, soube das últimas palavras dele e de sua preocupação com a esposa. E então, depois do funeral, sua mãe ficou tão sozinha, perdida em tantos sentidos. Como qualquer boa filha, e como imaginava que seu pai gostaria, Mels se apresentou para preencher o vazio... mas o sacrifício a deixava maluca – e ela ficou ressentida com a mãe, com o emprego, com toda a sua vida em Caldwell.
Tivera a melhor das intenções. Mas o resultado não fora tão bom – ou mesmo necessário. Ninguém lhe pedira para fazer o que fez. Nem seu pai, nem sua mãe. E, ao olhar para a cozinha, para a sala de jantar e para o jardim lá fora, na entrada da casa... percebeu que tudo estava em ordem.
Mas não porque Mels conseguira manter as coisas: foi sua mãe quem cuidou de tudo.
Balançando a cabeça, ela se perguntou como aquela mudança de papéis tinha acontecido sem ela perceber. Porém, como ela poderia se perguntar isso depois do que aconteceu com Matthias? Claramente, relações interpessoais não eram seu forte.
O som de chaves abrindo a fechadura foi seguido pela porta da frente se abrindo, e quando o hall de entrada se encheu de luz, a forma diminuta de sua mãe foi iluminada por trás. Ela trazia um tapete de ioga e falava ao telefone quando fechou a porta e entrou pelo corredor.
– ... ah, eu sei que ela fez isso, e eu gosto de acreditar no melhor das pessoas, até elas provarem o contrário. Então, sim, eu acho que você deveria cortar isso de vez e parar de falar com ela – ela parou para acenar um olá e colocou suas coisas em cima da pia ao lado da geladeira. Então franziu a testa, como se tivesse percebido que as coisas não estavam muito bem com Mels. – Escuta, Maria, posso te ligar depois? Certo, obrigada. Falo com você mais tarde.
Ela desligou a chamada e colocou o celular ao lado da sua ecobag.
– Mels, o que aconteceu?
Mels se esticou na cadeira e lembrou de seu pai fazendo o mesmo. A cadeira sempre estalava com o peso dele, mas com Mels ficou silenciosa.
– Posso perguntar algo realmente bizarro? – ela disse para sua mãe. – E, por favor, entenda que eu não quero te ofender.
Sua mãe sentou-se devagar.
– É claro.
– Você se lembra de como o papai se sentava aqui e pagava as contas, quando ainda estava com a gente? – Mels deu um toque na madeira à sua frente. – Com aquele talão de cheques aberto, aquele grande que tinha três folhas em cada página? Ele sentava aqui, preenchia os cheques e colocava nos envelopes, depois anotava tudo num livro de registros.
– Oh, sim – disse sua mãe com tristeza. – Todo mês. Como se fosse um relógio.
– Ele tinha aqueles óculos de leitura, que sempre caíam na ponta do nariz e irritavam ele. E ficava o tempo todo quase vesgo olhando através daquelas lentes.
– Ele odiava tudo aquilo. Mas fazia tudo direitinho, até o fim. Todo mês.
Mels limpou a garganta.
– Como você... quer dizer, eu sei que você paga as contas agora. Mas onde? Quando? Nunca vi você preenchendo um cheque.
Sua mãe sorriu um pouco.
– Seu pai gostava de fazer tudo à mão. Ele não confiava em bancos. Eu achava que aquele ritual mensal era sua expressão física da desconfiança contra o banco. Mas eu não sou assim. Todas as minhas contas, desde as parcelas do carro, a eletricidade, seguro, está tudo em débito automático. Acesso minha conta pela internet e confiro os pagamentos toda semana pelo computador. Isso me poupa de usar selos, envelopes e ir ao correio. É mais eficiente.
Mels sentiu a surpresa percorrendo seu corpo – mas isso era uma besteira, afinal, sua mãe não era criança.
– E quanto ao... ao jardim? O papai costumava cortar a grama, mas quem faz isso agora?
– Logo depois de ele morrer, eu perguntei pras vizinhas como elas faziam. Algumas pediam para os maridos ou filhos e isso obviamente não era uma opção para mim. Tentei cortar eu mesma algumas vezes, mas era muito trabalho, então percebi que teria de contratar alguém. Procurei uma empresa, pois não queria me preocupar toda semana se o trabalho estava sendo feito. Além disso, eles fazem uma limpeza no outono e na primavera. Mels, você está preocupada com alguma coisa?
– Sim, na verdade estou – ela passou a mão na mesa novamente, acariciando o lugar de onde seu pai cuidava de tudo à sua maneira. – Eu... estou preocupada achando que passei os últimos anos tentando ser igual ao papai pra você, e que isso não apenas não funcionou, como na verdade não consegui ajudar em coisa alguma. E, sozinha, você conseguiu cuidar muito bem de tudo.
Houve um longo silêncio.
– Sabe, às vezes eu me perguntava – murmurou sua mãe – por que você decidiu ficar. Você parece tão infeliz aqui. E parece muito claro que você sente um ressentimento contra mim.
– Que não é sua culpa... e foi um decisão muito errada da minha parte – Mels bateu na mesa outra vez. – Eu só... ele gostaria que eu cuidasse de você. Ou que alguém cuidasse.
– Ele era assim mesmo – ela balançou a cabeça lentamente. – Seu pai sempre foi antiquado, um homem com valores tradicionais. Eu amava ele, então deixei que ele me amasse da maneira que achasse melhor.
– Mas você não precisava disso, não é?
– Eu precisava dele. Eu era muito feliz com ele – uma expressão triste surgiu em seus olhos. – Ele era o tipo de homem que precisava estar no controle, e casei com ele e te dei à luz quando era muito jovem. Mas eu também amadureci.
– Você teve... problemas por causa disso? – Deus, aquilo parecia tão pessoal.
Houve mais um longo período de silêncio.
– Eu o amava e ele me amava. Ao fim do dia, nada podia mudar isso.
– Eu sinto muito.
– Por quê?
– Por ele ter morrido e te deixado sozinha.
– Não estou sozinha. Eu tenho uma vida cheia de amigas e coisas que gosto de fazer. E o que mais me preocupa é que isso parece não estar acontecendo com você. Este é o momento de você fazer o que quiser, ser bem-sucedida naquilo que desejar, escolher seu próprio caminho. Foi o que fiz com seu pai... e fico feliz por ter aproveitado isso, porque o acidente me tirou mais uns trinta anos que eu poderia ter passado por ele. Você merece a mesma coisa, com a pessoa que amar, no lugar que escolher.
Lágrimas começaram a se acumular.
– Não sei por que não tinha percebido isso antes. Sou uma repórter, eu deveria conseguir investigar a minha própria vida.
– As coisas nem sempre são fáceis e claras de se enxergar – sua mãe estendeu o braço e tocou a mão de Mels. – Os últimos anos foram realmente difíceis. Mas eu estou construindo meu próprio lugar no mundo... e acho que você deveria fazer o mesmo.
– Você está muito certa – Mels limpou o rosto e riu um pouco. – Sabe no que estou trabalhando nos últimos meses?
– No quê?
– Um artigo sobre pessoas desaparecidas. Ainda não cheguei a lugar nenhum. Depois de horas e horas na minha mesa encarando estatísticas, buscando fontes, questionando várias e várias vezes, não estou mais perto da solução do que qualquer outro repórter.
– Mas talvez você encontre as repostas, mais cedo ou mais tarde.
Mels encontrou os olhos de sua mãe.
– Acho que eu deveria estar olhando para o espelho em vez disso. Pode soar estranho, mas... desde que ele morreu, eu estou desperdiçando minha vida. Não sei se isso faz sentido.
– É claro que faz. Vocês dois eram farinha do mesmo saco. Tenho certeza de que você sabe disso, mas ele se orgulhava muito de você.
– É engraçado... quando eu era criança, sempre me perguntava se ele não preferiria ter tido um filho.
– Ah, não mesmo. Ele queria você. Seu pai costumava dizer que você era a filha perfeita para ele. Nada deixava ele mais feliz e orgulhoso do que você, e eu o amava muito por causa disso. Essa ligação entre pai e filha é muito importante, e eu sabia disso. Eu também amava meu pai e sempre quis isso pra você. Só gostaria que tivesse durado mais.
– Deus, eu amo você, mamãe – Mels levantou da cadeira e deu a volta na mesa. Ajoelhando-se, ela abraçou sua mãe. – Eu te amo tanto!
Ao sentir ser abraçada de volta, ela pensou que esse era o momento em que mais precisava daquilo.
Sob a luz do sol, na cozinha, nos braços de uma mãe que achara que nunca entenderia, Mels percebeu que seu pai não era a única pessoa sensacional da família – e teve a terrível impressão de que, se ele não tivesse morrido, este momento talvez nunca aconteceria.
Lembrou-se daquele ditado que diz que Deus nunca fecha uma porta sem abrir uma janela.
Mels desfez o abraço e limpou as lágrimas novamente.
– Bom. É isso.
Sua mãe sorriu.
– Seu pai costumava dizer isso.
– Ele era tão bom com você quanto era comigo?
– Com toda certeza. Seu pai era um em um milhão. E sua morte não mudou isso.
Mels se levantou.
– Eu, ah, fiz café agora há pouco. Quer uma xícara?
– Sim, por favor.
Enquanto se virava para pegar as xícaras no armário, Mels pensou que pelo menos nem tudo estava perdido. Por mais devastada que estivesse por causa de Matthias, a conversa com a mãe lhe dera um pouco de paz interior.
E a fez pensar no que faria agora.
Ela podia não ter encontrado todas aquelas pessoas desaparecidas, mas não ficaria mais perdida em sua própria vida.
CAPÍTULO 47
De volta ao centro da cidade, no hotel Marriott, Adrian teve um lugar na primeira fila para assistir a partida de Mels: sentado no corredor, ele observou enquanto a repórter saía do quarto de Matthias. Seus passos determinados mostravam que ela não estava nada feliz.
E a arma em sua mão era outra indicação do seu humor.
Pelo jeito ele desistira de sua vida sexual para nada.
Quando ela entrou no elevador, Adrian tentou se levantar e, pela primeira vez na vida, não conseguiu se erguer de uma vez.
Seu corpo simplesmente se recusava a funcionar direito: a dor nas juntas impedia movimentos rápidos e a falta de percepção de profundidade atrapalhava o equilíbrio.
– Que diabos há de errado com você?
Ad olhou para a esquerda. Jim havia chegado em toda sua glória – ou, nesse caso, em todo seu desalinho. O cara parecia ter sido arrastado através de uma plantação de cactos: seu cabelo estava desarrumado, as roupas amarrotadas, os olhos com duas olheiras enormes.
O outro anjo congelou no momento em que seus olhos se cruzaram.
– O que foi que você fez?
Ad deixou que Jim tirasse suas próprias conclusões. A conta era muito simples – e, veja só, Jim estava chegando ao resultado: sua cabeça lentamente virou para a porta do quarto de Matthias.
– Ele está inteiro?
– Você disse que ela era a chave. Então eu possibilitei que ele chegasse, digamos, um pouco mais perto.
Adrian esfregou a nuca e se preparou para ouvir um sermão. Francamente, ele não tinha energia para mais drama.
– Você está bem? – Jim perguntou com a voz endurecida.
– Sim, só um pouco travado. E vou conseguir superar a falta de percepção de profundidade. Ainda vou ser útil no campo de batalha...
– Foda-se o campo de batalha. Quero saber se você está bem. Isso é permanente?
Adrian piscou.
– Ah, provavelmente.
– Meu Deus... – Jim olhou novamente para a porta do quarto. – Você realmente se sacrificou pelo time!
A admiração e o respeito na voz do anjo fizeram Ad ficar encarando os próprios coturnos.
– Não se anime muito. A coisa não deu certo.
– Como assim?
– Ela acabou de sair. E não foi pra comprar pão e pegar o jornal. Não sei o que aconteceu lá dentro, mas ela não estava nem um pouco feliz.
– Merda! – Jim limpou a garganta. – Bom, eu falei com Devina. Disse pra ela deixar a repórter em paz.
– Como foi a conversa?
Quando o outro anjo cruzou os braços e apertou os lábios, Adrian pensou, oh, merda...
– Você transou com ela de novo, não é? – ele disse, com a voz pausada.
Jim limpou a garganta.
– Eu estava com raiva. E ela também. Então apenas... aconteceu.
– Bom, isso também é um jeito de discutir. Quem ganhou?
– Não era uma situação de ganhar ou perder.
Ad não tinha tanta certeza quanto a isso.
– Onde a vadia está agora?
– Eu não sei.
Quando Jim olhou para o elevador, como se estivesse preocupado com a namorada de Matthias, Ad assentiu.
– Vá checar Mels. Eu fico de olho no príncipe encantado.
– Não estarei muito longe.
– Sem pressa. Eu cuido de tudo por aqui – tirando sua adaga de cristal da bainha, ele a segurou no alto para que a luz refletisse na lâmina. – Confie em mim.
Jim hesitou.
– Me chame se precisar de alguma coisa.
– Okay, mas eu não vou precisar.
Em um piscar de olhos, Jim já não estava mais lá.
Adrian mancou até a porta, bateu e entrou no quarto. Matthias estava vestindo uma calça e congelou no meio do caminho.
– Eu bati – disse Adrian.
Matthias terminou de vestir o moletom, apertou o cordão da cintura e colocou a camiseta do Caldwell Red Wings para dentro da calça.
– Você tem sorte por eu não ter atirado em você.
A arma realmente não estava longe, e Ad sabia muito bem que ela fora recarregada depois da batalha na floresta. Mas não era como se tiros pudessem lhe fazer qualquer coisa além de irritá-lo.
– Você está indo para algum lugar? – Ad perguntou.
Movendo-se com pressa, Matthias sentou na beira da cama e calçou um par de tênis Nike pretos.
– Você sempre é bom assim com portas?
– Sou bom com várias coisas.
Matthias parou por um instante.
– Você está mancando, sabia disso?
Ad deu de ombros.
– Meu pé está doendo.
– Mentira.
– Já disse tudo o que tenho pra dizer.
Matthias praguejou ao se levantar para pegar a carteira e o casaco.
– Certo, que seja. Mas temos que sair daqui. A polícia está a caminho.
– Por quê?
– Mels está indo pra delegacia agora mesmo. Ela descobriu que eu e Jim tivemos um probleminha aqui no porão na outra noite. E, aliás, minha memória voltou.
– Inteira?
– Sim.
Merda.
– Parabéns.
– Não é motivo pra festejar – Matthias falava com rapidez e poucas palavras. – Escuta, Jim disse que vou encarar uma encruzilhada.
Ad assentiu.
– O que aconteceu com sua garota?
– Ela descobriu quem eu realmente sou.
– Isso não vai nos ajudar muito.
– Bom, o banho de água fria a ajudou e isso é o mais importante. Eu nunca deveria ter me envolvido com aquela mulher.
Depois disso, Matthias ficou muito quieto. Após um momento, finalmente disse:
– Eu sei o que tenho que fazer. É a única maneira... de consertar as coisas. Sei exatamente o que preciso fazer.
Ad deixou a cabeça cair de lado, frustrado. Eles realmente não precisavam de mais ideias brilhantes.
– Temos que sair daqui – disse Matthias ao se dirigir para a porta. – Mas primeiro, vamos fazer uma invasão.
– Aqui no hotel? Mas já não estamos dentro?
Quando Matthias saiu para o corredor, Adrian praguejou e pegou a bengala que estava do lado da televisão.
Isso até que foi uma boa ideia, pois a bengala aumentou sua velocidade. Mas seria difícil se acostumar a depender dela.
Não fazia muito o seu estilo.
Quando Matthias usou a saída de emergência e começou a descer os degraus de concreto, a voz de Mels ecoou em sua cabeça.
Mentira, foi tudo uma grande mentira, não é?
Ele ouvia aquela única frase, de novo e de novo, como um rifle de repetição – ou uma metralhadora –, sem parar, fazendo-o desejar que a amnésia voltasse.
A tragédia era que tudo o que ele sentia por ela era a mais pura verdade. E também a sua condição física anterior e a sensação sobre onde esteve... e para onde corria o risco de voltar.
Mas, no decorrer de sua vida, sim, havia inúmeras mentiras.
E era isso que ele precisava resolver.
Depois de deixar Mels daquele jeito e de sua memória voltar com força total, não havia como ele deixar de fazer algo sobre a teia de mentiras e maldade que tecera por tanto tempo.
Definitivamente, aquele era o acerto de contas que Matthias merecia, e ele com certeza pagaria o preço... e faria a coisa certa. Finalmente.
Mantendo os passos rápidos e silenciosos escada abaixo, ele de repente lembrou que seu parceiro provavelmente não estava seguindo o mesmo ritmo. O que era uma situação absurda. Olhando por cima do ombro, ele...
Matthias parou imediatamente e agarrou o corrimão.
O maldito atrás dele estava flutuando dez centímetros acima do chão, como se fosse um fantasma ou tivesse botas antigravidade.
– O que é você? – Matthias sussurrou.
Instantaneamente, os coturnos de Adrian tocaram o chão.
– Nada de especial.
– Pare de me enrolar.
– Nós não estamos fugindo da polícia? Você realmente quer ter essa conversa agora?
O cara estava certo, mas havia muita coisa em jogo. Especialmente sua sanidade.
– Apenas responda uma coisa. De que lado você está? E, antes que venha dizer que isso não importa, eu sei muito bem onde estive. E não estou me referindo ao Oriente Médio.
– Estou do lado que pensa que está certo.
– O que não quer dizer nada. Até mesmo o diabo pensa que está fazendo a coisa certa.
– Ela não está.
– Ela, hum? – Adrian deu de ombros, como se estivessem falando sobre esportes... ou carros... ou as jornalistas da NBC. Matthias praguejou baixinho. – Então você conhece o diabo e você é apenas um cara normal. Você toma todos os meus ferimentos, internos e externos, e você não é nada de especial.
Adrian levantou os ombros novamente e parecia completamente despreocupado com o nó na cabeça de Matthias.
Mentira, foi tudo uma grande mentira, não é?
– Sabe – Matthias disse –, eu ouvi dizer que o diabo... ouvi dizer que ele, que ela é uma grande mentirosa.
– É a única coisa em que você pode apostar.
– Acho que tenho isso em comum com ela.
– Você tem, mas as coisas mudam, não é?
– Onde Jim Heron se encaixa nisso tudo?
Adrian suspirou como se fosse um velho.
– Se preocupe com você mesmo, Matthias. É o único conselho que posso te dar. Apenas faça a coisa certa, mesmo que seja doloroso.
Matthias encarou aquele olho leitoso – que apenas doze horas antes havia sido seu.
– Está falando por experiência própria?
– Não mesmo. Agora, não deveríamos estar correndo da polícia?
De repente, ele pensou sobre a noite com Mels. As coisas terminaram tão incrivelmente mal, mas a noite... e tudo o que tinha a ver com ela... ajudaram Matthias a reencontrar sua própria alma. Sem aquilo, e sem ela, ele teria apenas deixado Caldwell – e seu passado – para trás.
– Obrigado – murmurou Matthias. – Eu te devo uma.
– Não sei do que você está falando.
Claramente, Matthias estava batendo em uma porta que estava trancada a sete chaves. Que seja. Ele sabia como era – a gratidão podia ser mais difícil de lidar do que a dor.
Pelo menos sabia o que fazer. Havia apenas mais uma coisa...
– Jim é igual a você? – exigiu saber.
Adrian estava tão exausto daquele assunto que parecia querer gritar, mas que se dane.
– Fale – gritou Matthias. – Preciso ter alguma informação sólida!
Adrian esfregou o queixo.
– Você pode perguntar isso para o Jim quando tudo acabar, certo? Agora, minha tarefa é manter você vivo para que possa fazer a coisa certa quando chegar a hora. Não posso dizer o quanto isso é importante. Apenas faça a maldita coisa certa pelo menos uma vez nessa sua vida miserável.
– Entendido – Matthias disse, virando-se e voltando a descer as escadas.
CAPÍTULO 48
A vários quarteirões de distância do Marriott, na redação do Correio de Caldwell, Mels estava sentada em sua cadeira musical, balançando para frente e para trás ao som de “Yankee Doodle”3. Sua conta de e-mail estava aberta no monitor e periodicamente a caixa de entrada recebia novas mensagens. A proteção de tela também surgia a intervalos regulares, e a cada vez que as bolhas coloridas apareciam, ela estendia a mão e chacoalhava o mouse.
O único telefonema que fez desde que chegou foi para o amigo de Tony no laboratório de investigação criminal. Mels lhe informou que já havia falado com o detetive De la Cruz e feito uma declaração contando tudo o que sabia.
Ela esperava que o telefone tocasse a qualquer minuto com uma atualização da situação, mas De la Cruz e sua equipe com certeza estavam bastante ocupados no hotel realizando uma busca no quarto, que já devia estar vazio.
Matthias provavelmente já estava muito longe.
– Psiu!
Mels chacoalhou a cabeça e olhou para o corredor. Tony estava inclinado para frente em sua cadeira com um bolinho na mão, oferecendo a pequena e gloriosa bomba calórica como se fosse um diamante.
– Você parece estar precisando de um destes.
– Obrigada – ela forçou um sorriso e pensou, por que não? Talvez um pouco de açúcar e conservantes pudessem acordá-la daquele entorpecimento. – Estou fora do ar hoje.
– Dá pra perceber. Você passou a última hora sentada aí encarando a tela do computador.
– Tenho muitos e-mails pra ler.
– Então por que não está lendo?
Ela abriu a embalagem da guloseima e deu uma mordida. O exterior do bolinho se desfez e várias migalhas caíram no colo de Mels. Antes que pudessem derreter e se fundir com o tecido da saia, ela os retirou um a um e jogou no cesto de lixo.
Bom, mas isso não a impediu de aproveitar o delicioso bolinho. Nada como um bom lanchinho cheio de química industrial!
– Ei, escuta, Tony... sei que nunca falamos sobre carreira, mas... você gosta de trabalhar aqui? Quer dizer, você se vê trabalhando neste jornal para o resto da vida?
Tony deu de ombros.
– Eu não fico pensando muito sobre isso. Apenas escrevo meus artigos, faço minhas pesquisas... estou relaxado quanto ao futuro. E, se isto aqui for tudo o que eu fizer na vida, eu não me importaria – ele pegou um chocolate e abriu a embalagem. – Mas sempre achei que você iria se mudar a qualquer momento.
– De Caldwell? Você acha?
– Sim – ele deu uma mordida. – Você nunca se estabeleceu aqui. Nunca criou contatos. Nunca os manteve.
Ele estava certo, é claro. E talvez fosse esse o motivo de Mels nunca ter realizado tudo que desejava. Sim, Dick era um cretino e um membro de carteirinha do clube dos cafajestes, mas talvez ela estivesse se escondendo atrás disso como desculpa para o estado lastimável de sua carreira.
– Acho que quero voltar pra Nova York – Na verdade, exclua o “acho”, ela pensou. – Já está na hora.
Sua mãe estava bem; era Mels quem precisava de uma direção.
– Você é uma ótima repórter – Tony deu outra mordida. – E está sendo desperdiçada aqui. E acho que Dick sabe disso.
– Nós nunca nos demos bem.
– Mulheres em geral não se dão bem com Dick – Tony amassou a embalagem do bolinho e a jogou no lixo. – Então, o que você vai fazer? Você ainda tem contatos em Manhattan?
Abrindo a gaveta, ela retirou um cartão que guardara ali no dia em que se mudara para aquela mesa. Havia um nome escrito, “Peter W. Newcastle – Editor de Conteúdo”, junto com o icônico logotipo do The New York Times.
Ela conhecera Peter em Manhattan e ele ainda trabalhava no Times. Mels vira seu nome no expediente do jornal de domingo.
– Sim, acho que tenho – ela murmurou. – Ei, falando em despedidas, tem uma coisa que eu gostaria de te dar.
– Almoço?
Ela riu um pouco.
– Tragicamente, não.
Tirando a si mesma do ponto morto, ela abriu a pasta no computador que continha toda sua pesquisa sobre os casos de pessoas desaparecidas. Observando as palavras que escreveu, os gráficos que compilou, as referências que reuniu, ela não podia deixar de pensar que aquilo era tudo o que vinha fazendo até que a tempestade desabou sobre sua vida.
Memórias de Matthias surgiram como lanças atravessando sua pele e a dor a fez perder o fôlego.
Fechando os olhos brevemente, ela disse a si mesma para se controlar.
– Estou enviando por e-mail – ela disse.
Tony pegou outro bolinho e voltou a olhar o próprio computador.
Um momento depois, ela o ouviu murmurar alguma coisa e então ele voltou a olhar para Mels.
– Isto é... incrível. Absolutamente incrível. Nunca vi... Desde quando você está juntando essas informações? E qual é a sua tese? Quem são... espera, você não está dando isso tudo pra mim com exclusividade, não é?
Mels sorriu com um pouco de tristeza e assentiu.
– Pense nisso como meu presente de despedida. Você tem sido muito generoso comigo desde que comecei a trabalhar aqui. E talvez consiga ir mais longe com isso – ela olhou para seu trabalho que estava à mostra na tela dele. – Cheguei num beco sem saída, mas tenho a sensação de que isso vai estar em boas mãos com você. Se existe alguém que pode desvendar a verdade por trás desses desaparecimentos, esse alguém é você.
Quando os olhos de Tony ficaram ainda mais abertos, ela soube que fez a coisa certa – por si mesma, por ele... e, mais importante, por todas aquelas almas que, por algum motivo inexplicável, desapareceram na noite de Caldwell.
Tony encontraria as respostas. De alguma maneira.
Enquanto caminhava por um corredor acarpetado exclusivo para funcionários no andar térreo, Matthias manteve a cabeça erguida e os braços balançando casualmente. Passando por portas abertas, ele lia as placas de identificação de cada uma e checava os vários funcionários da administração, recursos humanos e contabilidade que trabalhavam duro falando ao telefone e digitando nos computadores.
Ocupados, ocupados. O que era perfeito se você queria se infiltrar onde não seria bem-vindo. O segredo era andar com propósito, como se uma reunião estivesse esperando por ele, e fazer contato visual de maneira casual e aborrecida. Essa combinação, mais do que um terno e gravata, era essencial: ele não queria dar motivo para nenhum dos trabalhadores se meter no seu caminho.
Ainda bem que Adrian concordara em esperar no saguão. Alguém como ele, com todos aqueles piercings, seria a perfeita definição de um peixe fora da água.
Ao prosseguir, Matthias sabia que mais ou cedo ou mais tarde encontraria o que procurava: um computador livre conectado ao banco de dados do Marriott. E, veja só, encontrou uma sala vazia com um computador esperando por ele: a pequena placa que indicaria o nome do dono da sala fora retirada e não havia objetos pessoais em lugar nenhum – e nada de janela também. Foi um achado melhor do que a encomenda.
Após entrar e fechar a porta, ele pensou que ajudaria se tivesse acesso aos recursos das Operações Extraoficiais – um crachá com sua foto e um título de técnico em informática ajudariam a evitar perguntas. Mas, do jeito que estava, tudo o que tinha era uma arma carregada, equipada com silenciador.
Sentou-se na cadeira de couro, e parte dele sabia muito bem que qualquer pessoa era dispensável: se alguém entrasse por aquela porta enquanto ele estivesse trabalhando, Matthias atiraria e esconderia o corpo debaixo da escrivaninha.
Mas, Deus, ele estava rezando para não chegar a esse ponto, por várias razões.
Esticando o braço, ligou o computador e impediu que o sistema operacional iniciasse com um inevitável pedido de senha. Operando fora do alcance do sistema, Matthias tomou o controle mascarando seu endereço IP e mergulhando na internet de forma anônima.
O sistema de computadores das Operações fora criado pelos melhores especialistas que Matthias pôde recrutar, fossem eles formados pelo MIT, garotos arrogantes de quinze anos ou hackers multimilionários – e cada um desses grandes cérebros foi silenciado com o poder da influência... ou pelo frio abraço da morte.
Afinal, os construtores de sua fortaleza conheciam as saídas secretas – e ele não gostaria que ninguém na organização soubesse do caminho escondido que estava tomando agora para entrar na rede.
Mais cedo ou mais tarde, alguém poderia descobrir que Matthias entrara e saíra usando uma conta de administrador fantasma, mas isso levaria semanas, meses – ou talvez nunca acontecesse...
A senha funcionou. Ele estava no sistema.
Uma rápida olhada para o relógio no canto da tela mostrou que ele não tinha mais do que sessenta segundos antes de correr o risco de ser identificado como um usuário não autorizado.
Mas precisava de apenas trinta.
Colocou a mão no bolso e retirou um pen drive que comprara na loja de conveniência. Conectando o objeto na porta USB da frente do computador, ele iniciou o download de arquivos que eram essenciais em sua abrangência, mas relativamente pequenos em termos de tamanho.
Afinal, não existiam muitos agentes, e suas missões eram sempre curtas e objetivas.
Isso sim era informação valiosa – aqueles arquivos eram a chave para sua própria estratégia de saída: ele compilara esse banco de dados completo, junto com uma ferramenta de atualização automática, na época em que o sistema das Operações foi criado. Era tão importante quanto as armas e o dinheiro escondido em Nova York. E Londres. E Tangier. E Dubai. E Melbourne.
Um imperador senta no trono apenas pelo tempo que conseguir manter o poder – e nunca se sabe quando sua base poderia ruir.
De fato, o retorno de sua memória mostrara como Matthias mantivera sua influência e permanecera vivo e no comando... até começar a feder por causa da sujeira de suas ações; até sua alma, ou o pouco que tinha disso, começar a apodrecer e a morrer; até suas emoções sumirem e ele se tornar praticamente um objeto inanimado; até entender que a morte era a única saída e que seria melhor se pudesse escolher o momento e o lugar.
Como no deserto, em frente a uma testemunha... com uma bomba que ele mesmo preparara.
Mas acontece que ele não estava realmente no controle de tudo, pois Jim Heron não o deixara caído na areia para morrer, conforme ele planejara.
Porém, sem essa interferência de Jim, Matthias não teria conhecido Mels.
E não usaria essas informações da maneira que estava prestes a fazer.
Sentia que esse era um final melhor para sua história.
Exceto pela perda de Mels, é claro.
Um pouco antes de desconectar, uma curiosidade incontrolável o atingiu. Com uma mudança rápida, ele saiu da conta fantasma e entrou com sua senha real de administrador, que havia criado seis meses antes.
A conta ainda estava ativa. E a senha não fora trocada – o que era estúpido.
Entrando no banco de dados pessoal, ele digitou um nome e apertou enter.
No centro da tela cinza, uma pequena ampulheta girava devagar e pareceu ficar nessa rotação eternamente. Na verdade, durou provavelmente um segundo ou dois. A informação que surgiu era o perfil de Jim Heron, e Matthias passou os olhos rapidamente nas anotações.
Matthias não estava preocupado se suas ações seriam rastreadas – e com certeza seriam. Mas nenhum agente poderia aparecer imediatamente naquele computador específico.
Naturalmente, eles saberiam que Matthias era o responsável e não ficariam surpresos.
O outro perfil que revisou foi o seu próprio, e voltou ao de Jim antes de desconectar. Não tinha certeza sobre o que realmente estava errado, mas uma coisa chamou sua atenção, uma coisa que não parecia correta. Mas não tinha tempo de ficar pensando nisso – ao menos não naquele escritório.
Matthias tirou o pen drive e o guardou. Depois de desligar o computador, ele abriu a porta, olhou para os dois lados e ganhou o corredor. Começou a andar e...
– Posso ajudar? – uma voz feminina disse.
Ele parou e virou-se.
– Estou procurando o RH. Estou no lugar certo?
A mulher era baixinha e gordinha e vestia um terno cinza. Tinha um corte de cabelo curto que chegava até o queixo, como se precisasse provar que era uma mulher de negócios séria o tempo todo.
– Sou a chefe dos Recursos Humanos – os olhos dela se estreitaram. – Quem exatamente você veio encontrar?
– Vim atrás da vaga de garçom no restaurante. A recepcionista me enviou até aqui.
– Oh, pelo amor de Deus! – a senhora superimportante parecia prestes a explodir. – De novo?! Eu disse pra eles não enviarem vocês para cá!
– Sim, eu sei... eu não deveria me encontrar com o gerente de serviços ou algo assim?
– Atravesse o corredor até o saguão. Passe o restaurante e ande até perto da saída de emergência. Você vai encontrar uma porta com a placa de “Escritório”. Peça pra falar com o Bobby.
Matthias sorriu.
– Obrigado.
Ela se virou e começou a marchar na direção oposta, murmurando alguma coisa que sugeria que já estava ao telefone, pronta para dar um sermão em alguém.
Divirta-se, ele pensou enquanto caminhava até a saída.
N.T.: “Yankee Doodle” é uma canção patriótica tradicional americana.
CAPÍTULO 49
– Você está bem, garotão? – Jim perguntou, enquanto carregava o Cachorro pelas escadas até o apartamento acima da garagem.
O pequeno cão ficara de guarda na frente do local durante a noite inteira, mantendo tudo sob controle, com os olhos mostrando toda a ferocidade que seus pelos desgrenhados escondiam.
Dentro do apartamento, Jim colocou o animal no chão e foi até a cozinha.
– Só tem sobras hoje, desculpa. Mas vou trazer um sanduíche de peru quando voltar, certo?
Quando o Cachorro soltou um murmúrio concordando, Jim pensou que um sanduíche de frios provavelmente não era a melhor dieta para o animal, mas a vida é curta demais para não se aproveitar as coisas simples que se gosta de fazer. E o Cachorro adorava sanduíche de peru.
Jim abriu a torneira da pia, enxaguou uma pequena vasilha vermelha e a encheu de água. Colocou a vasilha no chão ao lado de uma lata de ração pela metade e deu um passo para trás, permitindo que o Cachorro se aproximasse, farejasse e começasse a comer seu café da manhã.
Com a refeição em progresso, Jim caminhou até a porta e pegou seus cigarros. Acendeu um Marlboro na varanda do lado de fora do apartamento, exalou e se apoiou no corrimão de metal.
A repórter estava no trabalho; ele checara seu estado assim que saiu do Marriott. Considerando que não havia sinal de Devina em lugar nenhum, e que o feitiço de rastreamento continuava funcionando em Matthias e Mels, Jim decidiu voltar para seu quartel-general para ver se as coisas estavam bem.
Agora ele não tinha certeza sobre o que deveria fazer... além de escutar o Cachorro comendo.
Do outro lado do campo, uma caminhonete viajava pela estrada em um ritmo constante. Mais próximo, corvos grasnavam uns para os outros no meio dos pinheiros. Atrás dele, o Cachorro continuava a mastigar sua comida.
Tudo estava tão tranquilo que Jim teve vontade de gritar.
Foi no segundo cigarro que ele percebeu que estava esperando Nigel aparecer. Aquele engomadinho britânico tinha o dom de sempre aparecer em momentos decisivos, e aquele com certeza parecia um. Jim não conseguia acreditar no que Adrian havia feito. O autossacrifício, a dedicação à missão, o amadurecimento. Era inimaginável.
Eddie teria ficado muito orgulhoso de seu amigo.
Mas o que fariam agora? Jim ainda não sabia onde estava a encruzilhada e Devina sem dúvida planejava alguma coisa.
– Nigel, meu camarada – ele disse enquanto exalava fumaça –, onde você está?
Em vez de uma visita da realeza, tudo o que conseguiu foram as cinzas caindo da ponta do cigarro. Jim começou a pensar que o sermão que o Criador passara em Devina talvez fosse um sintoma paralelo: aparentemente, os arcanjos também estavam evitando interferir nessa rodada.
Que seja...
Assim que se virou, outro veículo entrou em seu campo de visão, do outro lado do campo. Estava viajando rápido – e era acompanhado por outro perfeitamente igual.
Policiais.
E veja só, eles viraram à esquerda e começaram a descer pelo caminho que levava até a garagem de Jim.
– Temos companhia, Cachorro – ele murmurou, apertando a bituca no cinzeiro que estava equilibrado no corrimão. – Venha aqui, meu amigo. Vamos desaparecer juntos e assistir o show.
Após Jim entrar no apartamento novamente, o par de carros de patrulha desceu até o portão principal e estacionou em frente à garagem, levantando poeira após frear no caminho de cascalho.
E é claro que o celular de Jim começou a tocar enquanto os policiais saíam dos carros. Com o Cachorro debaixo do braço, ele atendeu à ligação com calma e ficou observando através das cortinas.
– Estou ocupado, Ad.
– Onde você está?
– Na garagem. E a polícia acabou de chegar. Faça meu dia e diga que você se livrou do corpo.
– Nós jogamos ele no rio, junto com o carro. Eles não vão encontrar nada.
– Então por que a polícia veio até aqui?
– Eu não sei. Espere um pouco – Jim ouviu uma conversa ao fundo. – Matthias está comigo. Ele disse que é por causa de uma bala que Mels pegou quando foi até aí. Ela mandou analisar, e é claro que a bala combina com a munição que eles acharam no Marriott. Já dá para tirar uma conclusão, não é?
– Que ótimo.
Agora, a voz de Adrian também começou a sussurrar:
– E, a propósito, seu velho chefe é muito bom com computadores.
– O que ele está aprontando?
– Acho que ele vai desmascarar todo esse negócio de Operações Extraoficiais.
– Ele vai fazer o quê?! – Jim quase se esqueceu de manter a voz baixa. – Como você sabe disso?
– Nós dois saímos juntos do quarto do hotel, e no caminho pra saída, ele fez um pequeno desvio pra brincar no computador. Agora ele tem um pen drive cheio de informações. E eu estava bem atrás vendo ele carregar a maldita coisa.
O que diabos ele iria fazer com isso?, pensou Jim.
A repórter. Matthias ia dar o pen drive para a repórter e dizer para ela fazer o seu trabalho.
Isso sim era uma reviravolta. Matthias dedicara sua vida a manter as Operações em segredo. Havia matado, torturado e se voltado contra amigos e aliados por essa causa. Ele ameaçara a Casa Branca e amedrontara líderes internacionais; usara sexo e dinheiro como armas; traíra, enganara e enterrara aqueles que se opunham.
E agora iria acabar com tudo isso?
– Conseguimos – Jim falou. – Esta é a encruzilhada.
– É o que parece – a voz de Ad voltou ao volume normal. – Enfim, ele está todo preocupado com você, não quer que fique sozinho e mandou eu te ligar.
O que era outra surpresa.
– Diga que agradeço, mas posso cuidar das coisas por aqui. Onde ele está indo agora?
– Não quer me contar e pediu privacidade.
– Bom, deixe ele sozinho, mas fique por perto.
– Pode deixar, chefe.
Jim deligou o celular e esfregou o rosto. Parecia que ia vencer a rodada... pois a encruzilhada poderia ser qualquer escolha ou decisão que relevasse a qualidade da alma em questão.
E aquele homem estava desistindo de seu lugar no time do mal – não simplesmente pedindo para sair, mas explodindo tudo de uma vez só.
Jim até gostaria de comemorar... mas não queria assustar seus visitantes: lá embaixo, os policiais vasculhavam o local, checando as portas trancadas onde ficavam o F-150, o Explorer e as Harleys. Depois subiram pelas escadas e Jim agradeceu pelo silêncio do Cachorro.
Bateram na porta.
– Aqui é a polícia de Caldwell. Tem alguém em casa?
Bateram de novo.
– Polícia de Caldwell!
Um dos policiais juntou as mãos e tentou olhar através da janela.
Jim levantou a mão invisível e deu um tchauzinho apenas para ser amigável – mas o que ele realmente queria era levantar o dedo do meio. Aquela visita provavelmente significava que eles teriam de achar outro lugar para estabelecer uma base – paz e sossego seriam impossíveis então, principalmente após a polícia interrogar o proprietário da garagem.
Mas Jim tinha outros problemas no momento.
Especialmente quando os policiais decidiram rasgar os direitos civis e começaram a arrombar a fechadura.
– Mels Carmichael – Mels franziu a testa. – Alô?
Quando não houve resposta, ela desligou e olhou para o relógio. Era quase uma hora. Ela pegou o casaco, se levantou e acenou para Tony.
Ao sair pela porta da frente da redação, ela se perguntou se não deveria pedir que seu amigo a acompanhasse. Da última vez que saíra sozinha para encontrar uma fonte, ela quase morreu.
Por outro lado, desta vez Mels não ia encontrar Monty em nenhum lugar perto do rio. E uma livraria Barnes & Noble devia ser um lugar seguro, não é?
Ela pisou na calçada, mediu o trânsito e a temperatura, e decidiu andar a pé em vez de pegar um táxi: Monty queria que o encontro acontecesse naquele shopping a céu aberto onde ela conversara com o técnico em balística no dia anterior. O lugar ficava a apenas cinco quarteirões dali – além disso, talvez a caminhada pudesse espairecer sua mente.
Doce ilusão.
Mels ficou o tempo inteiro olhando por cima do ombro, tentando ver se estava sendo seguida.
Mas pensando pelo lado bom, nada melhor que um pouco de paranoia para combater a preguiça do começo da tarde. Era melhor do que uma xícara de café expresso, e era de graça.
O shopping estava movimentado, muitas pessoas perambulando debaixo do sol de abril pelas lojas e por aqueles restaurantes onde você pode pedir um grande almoço e sobremesa por apenas quinze pratas. A livraria ficava quase no fim e, quando entrou, Mels casualmente olhou os livros nas grandes pilhas ao redor.
Um dos pontos positivos de deixar Caldwell para trás era que não precisaria mais aguentar Monty e aquela baboseira de agente secreto.
Como instruída, Mels andou até os fundos da loja, passou pela seção de revistas, subiu os três degraus que davam na seção de romances e ficção, e seguiu até a seção de livros militares.
É claro. Pois quando você está fingindo que vai vazar informações de segurança nacional, você não quer fazer isso na frente da seção de saúde e beleza. Um cenário cheio de livros com figuras de armas e guerras faz muito mais sentido. Óbvio.
– Você veio – disse a voz rouca.
Quando se virou para Monty, Mels se preparou para uma surpresa – mas desta vez, era realmente ele. A mesma testa grande, a mesma boca pequena, os mesmos óculos escuros – porque, claro, usar aquilo dentro de um lugar fechado era a melhor maneira de ser discreto. Outra belíssima ideia.
Deus, o Ray-Ban... Matthias ficara com os óculos escuros dela, não é mesmo?
– Então, o que você tem para mim? – ela disse secamente, forçando a si mesma a se concentrar na conversa.
Estava difícil fazer isso. O desastre com Matthias a abalara tanto que tudo que acontecera antes parecia um passado remoto. Mas aquelas duas mulheres ainda estavam mortas e Mels estava determinada a terminar a história antes de se mudar para outra cidade.
Monty pegou um livro sobre aviação na Segunda Guerra Mundial e folheou as páginas casualmente.
– Sabe a vítima que foi encontrada na escadaria da biblioteca? Minhas fotos combinam com os desenhos na barriga dela.
– O abdômen dela também tinha marcas?
– Pois é.
– Bom, isso é interessante – e altamente suspeito. – Mas ainda não combinam com o corpo que realmente está no necrotério. E esse é o problema.
– Mas você não acha isso curioso? Duas mulheres mortas com inscrições idênticas no mesmo lugar da barriga. E foram mortas da mesma maneira.
– Você quer mesmo que eu tire conclusões disso? Tem certeza?
– Como é?
– Bom, pelo menos uma das possibilidades pode ser um pouco perturbadora. Talvez você seja o assassino.
A cabeça dele se virou tão depressa que seus óculos quase caíram.
– Que droga você está falando?
– Vamos olhar as coisas desde o começo. A verdadeira “primeira” vítima foi aquela encontrada na pedreira. Ela era jovem, loira e teve a garganta cortada. A vítima número dois é uma prostituta que tingiu e alisou o cabelo e teve a garganta cortada. A terceira? Tingiu e alisou. Mesma causa da morte. E aqui está você, no meio disso tudo, surgindo com uma foto da segunda vítima com marcas na barriga. Igual às mulheres de números um e três. Essa segunda vítima é uma prostituta. Uma ótima primeira vítima se você quer ser um assassino copiador. Você dá dinheiro pra ela e depois a mata, mas é interrompido antes que pudesse colocar as marcas no lugar. Você então pega as fotos do crime, usa o Photoshop e mostra pra mim porque precisa de alguém para olhar seu trabalho. Alguém que não seja você mesmo.
Ele fechou o livro com um tapa e tirou os óculos. Seus olhos estavam mortalmente sérios.
– Isso não aconteceu, de jeito nenhum.
– Então, como você explica aquilo que me deu?
– Alguém mexeu no corpo. Já te disse isso.
– Sem ofensa, mas isso é mentira. Cicatrizes não desaparecem da pele.
No instante em que disse essas palavras, Mels pensou em Matthias – e então lembrou a si mesma que mágica não existe neste mundo. Porém, maquiagem era uma coisa bem real. Ela usava nos próprios machucados. E ele também.
Monty se inclinou com as mãos nos quadris.
– Não vou mais te passar nenhuma informação. Eu tinha algo que você talvez gostasse de saber, mas você pode ir pro inferno. E dê adeus ao seu emprego. Posso fazer com que ninguém mais fale com você sobre qualquer coisa.
Mels fechou os olhos e mordeu a língua.
A verdade era que ela não acreditava mesmo que Monty pudesse matar alguém. Egomaníacos não eram necessariamente assassinos – e ela oferecera aquela hipótese apenas porque estava cansada de ser embromada.
Depois de um momento, ela disse:
– Desculpa. Você está certo... – afague o ego dele e lance um olhar bem sedutor, Mels pensou. – Eu não tinha intenção de passar dos limites e te ofender.
– Você precisa aprender como as coisas são feitas por aqui – Monty resmungou.
– Claramente – oh, por favor, me ensine, seu grande garotão. – Então... o que mais você tem pra mim?
Ele não respondeu com muita pressa e Mels precisou jogar um pouco mais de charme. Mas eventualmente ele voltou a falar.
– Alguém trouxe uma bala que é igual à munição que eles acharam no Marriott.
Mels levantou as sobrancelhas.
– É mesmo?
– Pois é. Uma fonte confidencial. Mas a perícia confirmou que a bala foi disparada pela mesma arma usada no assassinato do hotel. E aqui vai o fato bizarro: sabe em nome de quem estava registrada a arma? Um homem que já morreu chamado Jim Heron.
Certo, Mels não podia acreditar que Monty estava vazando para ela a sua própria maldita história.
Monty se aproximou ainda mais.
– A questão é: como a arma de um sujeito morto acaba atirando em alguém num hotel, mais de uma semana depois que ele morreu?
– Alguém roubou a arma – ela disse prontamente. – E usou.
Monty deu de ombros.
– Eles enviaram policiais para o último endereço registrado de Jim Heron. E não preciso dizer que qualquer vínculo com aquele corpo desaparecido é relevante.
– É verdade... – bom, pelo menos ela sabia que sua denúncia fizera a diferença. Mels teve de citar Jim Heron quando falou com De la Cruz: apesar de ele ter salvado sua vida mais de uma vez, um criminoso é um criminoso, e obstrução da justiça não é apenas um crime, mas, na opinião de Mels, era também um desvio moral.
– Talvez eu deixe você saber o resultado disso tudo – Monty disse. – Vai depender.
– Do quê?
– Se eu ainda estiver bravo com você.
Quando ele se afastou, Mels praguejou e desejou chutar a pilha de livros ao seu lado. Que bela maneira de lidar com uma fonte: acusando-o de assassinato.
Observação para si mesma: guarde os insultos para depois de conseguir as informações.
Mas, vamos lá, o que foi que ele deu para ela?
Cruzando os braços em frente a um conjunto de três volumes sobre os ataques aéreos dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, Mels colocou a mão no rosto e praguejou...
– Não se vire.
CAPÍTULO 50
De pé atrás de Mels, Matthias sabia que precisava falar rápido. Ela com certeza não queria mais respirar o mesmo ar que ele, além de ser exatamente o tipo de mulher que simplesmente começaria a andar e o deixaria falando sozinho – ou faria coisa pior.
– Sei que você não quer mais me ver...
– E nem falar com você – ela soltou entre os dentes.
– ... mas tenho uma coisa pra te dar.
– Não quero – e, considerando a tensão nos ombros dela, Mels cogitava dar um soco nele. – Eu não quero nada vindo de você.
Esticando o braço, Matthias colocou o pen drive na prateleira e o deslizou até o alcance da visão periférica de Mels.
Mantendo o dedo em cima da memória portátil, ele disse:
– Você acredita que eu atirei naquele homem. Então, acredite nesses arquivos – ele deu um toque no pen drive. – Aqui está a história inteira.
– Uma autobiografia de mentiras? Eu não gosto de ler ficção.
– Não é ficção – ele deu outro toque. – É a completa verdade. Tudo o que eu fiz, tudo o que escondi.
Mels virou a cabeça devagar e Matthias foi tomado pela visão do perfil dela: a imagem da mulher que ele amava o abateu profundamente, remoendo-o até os ossos. Ele queria tocá-la, agarrá-la, mergulhar o rosto em seus cabelos e cheirá-la.
Em vez disso, apenas empurrou o pen drive para mais perto.
– Está tudo aqui. E estou te dando.
– Por quê?
– Porque, depois que analisar isto, depois de verificar as informações... e eu sei que você vai verificar... você vai ter que acreditar no que estou dizendo agora. Quando se tratou de você, e de estar com você, eu sempre disse a verdade. Isso foi real, a única coisa real que já tive. Estou indo embora agora e precisava dizer isso antes de partir...
– Vá se ferrar, eu não quero sua confissão e nunca vou acreditar em você sobre qualquer coisa...
– Pegue isto. Abra no computador. Navegue pelas pastas – Matthias deu um passo para trás. – Só uma advertência: não abra estes arquivos num computador conectado à internet. Use um laptop sem internet. É mais seguro assim.
Mels balançava a cabeça.
– Você está louco se acha que vou...
– Você quer o furo de reportagem da sua carreira? Agora você tem – Matthias limpou a garganta. – Porém, tenha em mente que as informações nesse pen drive são explosivas, então escolha sabiamente as pessoas com quem vai compartilhar.
– Não vou olhar esses arquivos.
– Você vai. Você precisa. Para o bem de todos, por favor, apenas olhe os arquivos.
Matthias levantou a mão e a deixou suspensa acima dos cabelos de Mels, que estavam soltos e levemente ondulados. Ele baixou a mão como se estivesse acariciando os fios sedosos, então deixou o braço cair... e desapareceu no meio da livraria.
Nenhum agente das Operações iria atrás de Mels: parte do que ele construiu dentro da organização era um protocolo de autodestruição. Se houvesse algum vazamento de informações para a imprensa, todos deveriam se dispersar, negar conhecimento e desaparecer em meio à população do país que escolhessem para viver.
Afinal, assassinos cujos crimes são revelados não gostam de simplesmente se apresentar para o júri e confessar tudo como se fossem crianças obedientes. Se permanecessem juntos e reivindicassem seus direitos, ou – e isto é o mais importante – retaliassem por causa da exposição, correriam o risco de prisão perpétua ou até mesmo pena de morte por causa de crimes contra a humanidade.
Além disso, se quisessem mesmo revidar por terem suas vidas arruinadas, eles teriam como alvo a pessoa que fez a denúncia e não a repórter.
A intuição de Matthias dizia que ficaria tudo bem – e nunca errava quando tinha esse nível de certeza. Nunca.
Mas não saiu da livraria.
Usando seus anos de treinamento e experiência, ele se disfarçou como um consumidor qualquer usando um boné acima dos olhos, uma blusa com capuz até o pescoço e um livro aberto na frente do rosto.
Na verdade, ele era um assassino profissional que não deixava pegadas, vestígios ou qualquer outro sinal de que um dia esteve naquela livraria.
E manteve os olhos em Mels.
Principalmente quando ela pegou o pen drive.
De pé na seção de livros militares, Mels pegou o pen drive com mais força do que o necessário. Ela odiou ouvir o som da voz dele e, mais do que isso, detestou completamente a maneira como seu próprio corpo parecia reconhecê-lo, mesmo que sua mente estivesse focada somente na raiva.
– Vá se foder, Matthias. Você pode pegar esse pen drive e enfiar...
Ela se virou, pensando em jogar o objeto direto na cara dele.
Mas Matthias não estava mais lá.
Ela deu a volta na prateleira e olhou para o corredor... para as pilhas de livros à esquerda e à direita... para as pessoas na loja.
– Maldito...
Mels andou por todo lado, procurando na seção de ficção, depois a seção de revistas, e seguiu até a área dos caixas. Matthias não estava em lugar algum, não importava onde ela procurava. Inferno, ele provavelmente saíra por uma porta exclusiva de funcionários.
Ao sair da livraria, Mels parou e protegeu os olhos do sol enquanto vasculhava a multidão.
Quando se tratou de você, e de estar com você, eu sempre disse a verdade. Isso foi real, a única coisa real que já tive.
Certo, certo, a coisa mais saudável a fazer era jogar o presentinho de despedida de Matthias no lixo, deixar todo esse drama para trás e se concentrar nas coisas que realmente importavam – por exemplo, o que faria com o resto de sua vida e como terminaria o artigo sobre as mulheres assassinadas.
Pois, até onde sabia, aquele pen drive devia estar cheio de músicas românticas dos anos 1980.
Sem ter mais nada para fazer no shopping, Mels caminhou de volta para a redação do Correio de Caldwell, passou pela porta principal e parou em meio ao caos. Era tão familiar, o som de telefones tocando e vozes murmurando, os passos apressados de pessoas saindo de suas escrivaninhas ou entrando na cozinha para tomar mais café.
Ela ia sentir falta daquele lugar.
Meu Deus... estava indo embora de verdade!
A decisão irrevogável pairou em seus ombros, não como um peso a ser carregado, mas como uma âncora que oferecia estabilidade. E, Deus, ela contava com essa sensação positiva, pois, no momento, realmente precisava de algo que não parecesse uma derrota épica.
O encontro com Matthias tirara seu fôlego da mesma maneira que um caminhão faria se a atropelasse.
Caminhou até sua mesa, sentou na cadeira e começou a rascunhar seu pedido de aviso prévio. As palavras saíram rígidas e em um tom muito formal, mas que outra opção teria? Após mexer no texto por um tempo e refazer o início, ela salvou no computador sem imprimir. Ainda havia algumas pontas soltas para resolver, e Dick era o tipo de pessoa que poderia mandá-la engolir o aviso prévio e sumir dali imediatamente.
Além disso, era melhor saber para onde iria antes de pedir demissão. Do jeito que está a economia, ninguém deve simplesmente desistir de um emprego.
Esticando-se em sua cadeira, Mels encarou novamente a tela do computador.
Difícil dizer quanto tempo levou antes que tirasse o pen drive do bolso. Podem ter sido quinze minutos. Cinquenta. Uma hora e meia.
Ela rolou o pen drive por um tempo na palma da mão, então tirou a tampa, expondo a ponta de metal.
Inclinando-se, estendeu o braço para conectar a memória na entrada USB do computador... e parou um pouco antes de fazer isso.
Levantando-se, pendurou a bolsa no ombro e andou até a mesa de Tony.
– Vou parar por hoje. Se alguém me procurar, peça pra ligarem no meu celular, certo?
– Pode deixar – disse Tony quando seu próprio telefone tocou. – DiSanto. Oi, sim, eu estava esperando você ligar...
Quando ele acenou e mergulhou de vez na conversa, Mels lembrou que continuava sem um carro.
Lá fora, levou um tempo até conseguir um táxi e, é claro, às quatro da tarde já havia trânsito na Northway. Quando finalmente chegou em casa, sua mãe estava fora. Ao checar o calendário na parede, Mels descobriu que era noite de bingo, e se perguntou por que nunca tinha notado todos aqueles registros nos quadradinhos logo abaixo. Baralho, pilates, ioga, trabalho voluntário na igreja, ajudar com o balcão de informações na pediatria do St. Francis, almoços e jantares com as amigas...
Olhando ao redor da cozinha, soube ao menos que a mãe não ficaria sozinha após sua partida.
Ela pegou um suco de framboesa da geladeira e subiu as escadas, com os degraus estalando como sempre fizeram, desde sua infância. No quarto, ela fechou a porta e abriu o armário.
Por alguma razão, sentiu que deveria fazer as malas.
Mas em vez de começar essa tarefa muito prematura, ela olhou para a escrivaninha. Seu velho laptop estava no mesmo lugar em que ela costumava fazer o dever de casa quando ainda estava na escola.
Aproximando-se, ela sentou na cadeira giratória e pegou o pen drive.
Antes de ligar, esticou o braço e desconectou o cabo do modem. Então ligou a máquina e desabilitou o Wi-Fi.
– Eu devo estar ficando maluca.
Ela conectou o pen drive e uma janela apareceu no centro da tela. Dentre as opções para o “Disco removível (E:)”, ela escolheu “Abrir a pasta para visualizar os arquivos”.
– Mas que... diabos?
A pasta tinha tantos arquivos que ela precisava descer uma barra lateral para visualizá-los. Havia documentos do Word, PDFs, tabelas do Excel. Os títulos eram códigos alfanuméricos que claramente pertenciam a um sistema organizador, mas que não faziam sentido nenhum para ela.
Escolhendo um arquivo aleatório, Mels clicou duas vezes e franziu a testa.
O arquivo parecia conter... dossiês de homens, com foto, nome, data de nascimento, altura, peso, cor dos olhos e cabelo, detalhes médicos, certificados de treinamento e tarefas – Deus, as tarefas. Separadas por data e com anotações sobre países e alvos... de extermínios.
– Oh, meu Deus...
Voltando à pasta principal, ela abriu outro arquivo, que parecia detalhar quantias de dinheiro, enormes quantias de dinheiro... e outro arquivo codificado com contatos em Washington D.C., junto com os “favores” que esses indivíduos pediram... e mais coisas sobre recrutamento e treinamento...
Você quer o furo de reportagem da sua carreira? Agora você tem.
Enquanto o sol se punha e a noite tomava conta de Caldwell, Mels sentou em frente à escrivaninha de sua infância e leu tudo.
Depois de um tempo ela voltou aos dossiês, e desta vez revisou tudo com muita calma.
De certa maneira, os homens eram todos iguais, seus rostos e características se fundiam em um único arquétipo de agressividade e eficiência. E se as atribuições listadas fossem reais, ela tinha acabado de ler sobre mortes que haviam sido declaradas publicamente como “causas naturais”, “acidentes” ou “ataques terroristas”. Havia também alvos que ela pensava ainda estar vivos... ou será que a imprensa mundial ainda não tinha descoberto a realidade?
Será possível que aquilo era verdade?
Esticando-se na cadeira, Mels tomou um gole de seu suco, que já estava quente, e experimentou considerar que, talvez, talvez aquilo pudesse ser real.
Certo, na hipótese de ser verdade, a paranoia de Matthias não parecia injustificada... e isso também explicaria por que ele estava fugindo na noite em que Mels o atropelou. Também poderia explicar por que a identidade que possuía era de outra pessoa – e a razão por que, mesmo com amnésia, ele sentia que a casa no endereço da carteira de motorista nunca fora sua.
E talvez esse fosse o motivo para ele ter matado aquele homem no porão do Marriott. Se Matthias fizesse parte dessa organização – e esse tipo de acesso sugeria que sim –, então faria sentido se estivesse tentando sair e alguém fosse atrás dele para assassiná-lo.
E ele teria de se defender...
Lendo os dossiês pela terceira vez, ela notou que ao lado de cada nome havia uma marca vermelha, verde ou laranja.
Jim Heron estava entre os homens. O que, de certa forma, não era surpreendente.
E ele tinha uma marca laranja. O que, considerando a conexão com os sinais de trânsito, significava que não estava vivo, mas também não estava morto.
Interessante.
Continuando com a lista, Mels quase engasgou. Após sete homens seguidos, ela encontrou um nome marcado em vermelho com uma anotação: Caldwell, Nova York, Recuperado, e a data de dois dias atrás.
Era o cara morto. Do Marriott.
Em quem Matthias atirara.
E veja... tinha mais um. Com uma marca laranja ao lado do nome, último contato em Caldwell, 24 horas atrás.
Ela poderia apostar que era um segundo homem enviado atrás de Matthias.
Mels deu outro gole no suco e estremeceu com o gosto doce e quente demais. Seu coração batia rápido e ela sabia que não era por causa da cafeína.
E se fosse tudo verdade?, ela pensou novamente. Tudo isso...
Voltando à pasta inicial, ela cuidadosamente revisou os outros arquivos e começou a juntar as peças da estrutura da organização, incluindo a estratégia de recrutamento e a maneira como era financiada. Não havia nada sobre o local do quartel-general, ou sobre qualquer tipo de suporte administrativo, nem sobre como exatamente os “clientes” sabiam como contratá-los.
Será que essa organização tinha afiliação com o governo? Ou fazia parte do setor privado?
Mels pegou uma caneta e fez algumas anotações em um bloco de papel.
Considerando as identidades dos alvos que foram eliminados, ela teve a sensação de que essa organização sombria – que não tinha logotipo e nem mesmo um título, em nenhum dos documentos – estendia seus tentáculos até os círculos mais altos. A maioria das pessoas eliminadas eram figuras políticas proeminentes no mundo todo, o que sugeria uma atuação internacional ampla demais para ser gerada por civis, um grupo de interesse comum ou mesmo uma corporação multinacional.
Aquilo era negócio de uma nação inteira.
E, considerando os eventos dos últimos três anos, estava bastante claro que os extermínios alavancavam a posição dos Estados Unidos no cenário internacional.
Batendo com a caneta na escrivaninha, ela pensou em outros grupos de operações especiais, como os Navy SEALs ou os Rangers. Aqueles homens eram heróis, soldados legítimos que operavam dentro de regras determinadas.
Já a rede de assassinos que ela descobria agora parecia completamente fora de qualquer círculo oficial.
A última planilha era provavelmente a mais sinistra: uma lista de todas as missões da última década – e os mortos, incluindo uma coluna com todos os danos colaterais.
Mas não havia muitos danos colaterais. E nada de mulheres ou crianças – ao menos, não listados.
Considerando a forma como a organização funcionava, Mels sentia que essa falta de danos colaterais não era resultado de qualquer objeção moral, mas sim de uma diretiva para permanecerem fora dos radares.
E, de novo, ela conhecia noventa por cento dos homens que morreram, e todos eram pessoas que praticavam a maldade... pura maldade. Eram do tipo que extermina os próprios cidadãos, ou que lidera regimes brutais, ou comanda atos terroristas de proporções horríveis.
Mels imaginou que os poucos que não conhecia eram da mesma estirpe.
Esse grupo de exterminadores fazia um bom trabalho de uma maneira ruim: era difícil argumentar que suas ações não eram justificadas, considerando o currículo dos alvos.
Era mais ou menos como a atitude de seu pai, mas em escala global.
Mels voltou mais uma vez para os dossiês.
Matthias não aparecia em nenhuma das fotos ou nomes.
Mas ela tinha uma arrepiante hipótese sobre isso.
Ele era a base de tudo, era o condutor. Não é mesmo?
Quando se tratou de você, e de estar com você, eu sempre disse a verdade. Isso foi real, a única coisa real que já tive.
Esfregando o rosto, ela praguejou no meio das mãos.
Matthias lhe entregara aquele pen drive para provar que estava falando a verdade – e, por mais que Mels quisesse encontrar alguma mentira entre os arquivos, algum tipo de ficção, de contradição nos detalhes, muito daquilo podia ser verificado, por se tratar de eventos internacionais conhecidos pelo público. Ela acompanhara as reportagens, as notícias, os comentários em torno dessas mortes durante os últimos anos.
Isso era real.
Isso era o furo de reportagem de sua carreira.
CAPÍTULO 51
Do outro lado da rua de Mels, Matthias estava de pé sob um grande carvalho, braços cruzados em cima do peito, pés plantados firmes no chão.
Ele podia vê-la no quarto do andar de cima, em sua escrivaninha, a cabeça baixa, a testa franzida, sob a luz que brilhava no teto. De tempos em tempos, ela se esticava na cadeira e encarava o vazio a sua frente – então voltava para o laptop.
Mels estava checando tudo.
O trabalho de Matthias estava terminado.
Então, por que ele não se sentia em paz? Com certeza aquela era a encruzilhada onde deveria provar seu valor ou perder tudo: a confissão que seria lançada por Mels ao mundo seria sua forma de redenção, não é? Naquele único pen drive, ele desfez seus anos de trabalho, enviando a organização para uma queda livre que a varreria em várias escalas: os agentes se espalhariam para manter seu disfarce; os políticos jurariam inocência e negariam qualquer envolvimento; um comitê especial do congresso ou senado seria convocado. Ao final dos meses de investigação e às custas de rios de dinheiro dos contribuintes, o assunto seria encerrado.
E então, um novo braço de operação seria iniciado por outra pessoa: trabalho sujo ainda seria procurado por essa nação que segue as leis sempre que possível, mas que às vezes precisa descer até os níveis mais baixos do seu inimigo para poder jogar de igual para igual.
Essa era a realidade.
Então por que diabos ele não estava, neste exato momento, dirigindo-se para Manhattan até seu abrigo com mantimentos antes de partir para algum país desconhecido?
Não era por causa de Mels.
Deixá-la significava a morte para Matthias em vários sentidos, mas ele já tinha digerido essa escolha. Seu desaparecimento era a melhor coisa para ela e era isso que importava – mesmo que Matthias fosse sentir saudades em cada batida de seu coração até que morresse de verdade e permanecesse assim.
E também não era por causa de sua consciência. Ele não sentia a necessidade de se entregar, isso só possibilitaria que seus inimigos o encontrassem na prisão e o matassem. Sua única chance de sobrevivência estava no mundo real – o que não significava que viver escondido para sempre seria uma festa divertida.
Seria apenas um tipo de prisão móvel.
Matthias pagaria seus pecados pelo resto da vida.
Então, qual diabos era o problema?
De repente, uma imagem do deserto surgiu em sua mente: era a lembrança dele e de Jim naquela cabana abandonada, a areia debaixo dos pés de seu agente... a bomba debaixo dos seus próprios.
Matthias não se lembrava de nada após a explosão, nada da horrível dor que deve ter sentido, nada dos quilômetros sendo arrastado pelas areias, nada do jipe que trouxe Isaac Rothe, nada daquela primeira e interminável noite após ter explodido a si mesmo. Mas sabia o que acontecera um pouco depois: Jim veio até a beira de sua cama e ameaçou revelar o que sabia sobre sua tentativa de suicídio.
Ele libertou Jim das Operações naquela noite, dando ao homem um passe livre para sua saída.
O único que já existiu.
E então, depois de dois anos, seus caminhos se cruzaram novamente, desta vez em Boston. Em contraste com o que acontecera do outro lado do planeta, aquele pedaço do passado recente ainda não estava nítido para Matthias: os detalhes do que se passou estavam enevoados, mesmo que o resto de sua vida estivesse claro como o dia...
No final do quarteirão, um homem virou a esquina lentamente e entrou debaixo da luz dos postes. Ele conduzia um cachorro, um grande cachorro, e estava vestido com algum tipo de terno... um terno estranho, que parecia muito antiquado.
Era o homem que Matthias vira no restaurante do Marriott.
Matthias colocou a mão no cabo da arma de Jim.
Quando se está nesse tipo de situação, precaução é a única forma de pensar possível.
O homem se aproximou, saindo brevemente do alcance da iluminação antes de reaparecer na luz do próximo poste.
O cão era de um wolfhound. Era um wolfhound irlandês.
Quando a dupla passou por ele, o homem olhou para Matthias com olhos que pareciam brilhar.
– Boa noite, senhor – ele disse com um sotaque inglês.
Quando o sujeito engomadinho continuou andando, Matthias franziu a testa. Havia algo estranho, algo que não estava certo...
O homem não tinha sombra. Era isso. Mas como poderia ser possível?
Matthias olhou rapidamente para a janela de Mels. Ela estava bem, ainda sentada na cadeira lendo os arquivos sobre suas atividades – e, quando discou um número no telefone, Matthias se perguntou para quem ela estaria ligando.
Era hora de ir.
Esse era o lema de sua vida quando se tratava de Mels, não é mesmo?
Deu outra olhada para a rua, esperando ver o engomadinho e seu cão.
Já não estavam mais lá.
Certo, ele definitivamente estava ficando maluco.
Virando-se, Matthias caminhou até seu carro alugado e pegou a chave com uma pequena etiqueta de plástico. Ao abrir a porta, Jim Heron ainda estava em sua mente, como se o cara fosse um grande letreiro cognitivo plantado ali.
Entrou no carro, trancou a porta e deu a partida no motor. Fez uma última verificação para ter certeza de que não havia mais ninguém e que o engomadinho e seu cão não decidiram reaparecer magicamente...
Nesse momento, um sedan entrou na rua, vindo da via expressa, e andou devagar até a entrada da casa de Mels. A porta da garagem se abriu e uma mulher bem arrumada saiu e entrou na casa, parando no meio para apertar o controle que fechava a porta.
Mels não estava sozinha.
Isso era bom.
Matthias acelerou e foi embora, pensando sobre as informações, o desafio, a oportunidade que entregara para ela. Além da despedida que ele esperava que, com o passar do tempo, faria Mels reavaliar o tempo que passaram juntos.
Ele era um homem do mal e ela trouxera à tona a única bondade que ele já sentira dentro de si. Talvez algum dia Mels acreditasse nele. Afinal, a verdade era feia, mas talvez tivesse servido para algum propósito.
Nesse instante, Matthias teve um sobressalto no assento do motorista e sentiu um choque percorrendo seu corpo. Um pensamento invadiu sua mente. Lembrou-se da última coisa que acessara antes de desligar o computador no Marriott: seu próprio perfil, o perfil que deixou de fora, de propósito, do pen drive cheio de informações que acabariam com as Operações...
Meu Deus.
Aquilo não fazia sentido.
Até onde o pessoal nas Operações sabia, ele estava morto – isso estava bem na sua frente, tão óbvio que Matthias nem prestara atenção na marca vermelha ao lado de sua foto.
Então, por que diabos eles enviaram um agente até Caldwell para pegá-lo?
Ele freou em um sinal vermelho no mesmo momento em que tudo ficou claro.
– Ah... merda!
O primeiro agente foi até o Marriott. O segundo apareceu na garagem de Jim. E, nos dois casos, todos pensaram que os assassinos haviam sido enviados por causa de Matthias.
Mas acontece que não estavam atrás dele.
O alvo era Jim Heron.
Seu dossiê tinha uma marca laranja, o que significava que sua “morte” em Caldwell não fora confirmada. Então, até onde a organização sabia – e estavam certos –, Heron ainda estava bem vivo e respirando.
E iriam atrás dele.
A primeira regra das Operações Extraoficiais sempre foi não deixar pontas soltas. Havia um bom número de pessoas que desaprovavam a decisão que Matthias tomara ao deixar Jim impune – e, agora que ele não estava mais na jogada...
Heron voltou a ser um alvo.
CAPÍTULO 52
Não é que Jim não admirasse o trabalho da polícia, mas vamos lá. Eles apareceram no começo da tarde e agora já eram quase nove da noite, e os oficiais ainda estavam perambulando por lá.
A invasão inicial acabou sendo apenas uma olhada dentro do apartamento. A diversão começou mesmo quando eles ligaram para o proprietário – que, depois de ser informado que seu inquilino estava morto há mais de uma semana, veio imediatamente e deu permissão para uma busca na propriedade.
Engraçado, o velho sujeito ainda vestia um uniforme tradicional de mordomo – e parecia que deveria ser internado em um asilo em vez de ficar subindo e descendo escadas e oferecendo refrigerante para todo mundo. Mas ele estava sendo muito gracioso e abriu todas as portas. Exceto uma.
Nem mesmo ele conseguiu abrir a porta do espaço onde Eddie estava. Afinal, o feitiço que guardava aquele compartimento havia deixado as paredes tão fortes quanto um cofre de banco.
Quando os policiais terminaram a busca preliminar, não encontraram muita coisa. Nada de armas, pois Jim já recolhera todas. Nada de laptop, pois estava debaixo do seu braço. Havia algumas cápsulas no terreno da frente, que ficaram lá depois de ele ter praticado tiro ao alvo – mas eles já tinham uma igual. Bitucas de cigarro em um cinzeiro e um pouco de comida na geladeira – grande coisa.
E então chegou a hora da segunda rodada de buscas: a equipe forense chegou com o equipamento para buscar impressões digitais e o fotógrafo clicou tudo, dentro e fora. Finalmente, a fita de isolamento da polícia foi colocada ao redor de toda a propriedade. E mais fotos foram tiradas, do exterior.
Por fim, começaram a ir embora – e pelo menos não foi uma total perda de tempo. No meio das buscas, Jim deu uma escapadinha, levando o computador e o celular, e fez os arranjos para alugar outro local em Caldwell.
Tirou vantagem do fato de que algumas de suas identidades falsas ainda estavam ativas – ele e seus companheiros com certeza já não podiam mais ficar ali.
Quando o último carro da polícia foi embora junto com a van da equipe forense, Jim colocou o Cachorro no chão.
– Achei que eles nunca iriam embora.
O cão grunhiu, concordando, e se espreguiçou, mesmo não tendo se estressado muito durante as buscas: ele dormiu profundamente nos braços de Jim o tempo todo. Porém, agora ele queria sair um pouco.
Mas foi Jim quem foi ao banheiro primeiro. E enviou uma mensagem para Adrian dizendo que a barra estava limpa.
Ao abrir a porta que dava na escadaria do lado de fora, ele partiu a fita que a polícia tinha colocado com tanto cuidado.
– Ops!
Carregando o Cachorro até o andar térreo, ele deixou o animal fazer suas necessidades em seu arbusto preferido.
Assim que o animal voltou e Jim começou a conduzi-lo de volta pelas escadas, um carro surgiu correndo na estrada principal do outro lado do campo. O veículo fez uma curva acentuada e entrou na faixa que levava até a porta da garagem.
Matthias estava atrás do volante.
Jim podia sentir sua presença, clara como o dia. E Ad estava com ele, como combinado – na verdade, estivera junto o tempo todo, enviando uma série de mensagens de texto atualizando a situação: o anjo seguiu Matthias até um encontro com Mels em uma livraria, depois até uma locadora de carros... e então até a rua da repórter, onde aparentemente fez uma última visita para checar se tudo estava bem.
Parecia que Matthias seguira com o plano de vazar as informações das Operações, dando para Mels a chave da caixa de Pandora.
Então... e aí? Se esta era a encruzilhada – e parecia lógico pensar que era –, a qualquer minuto Matthias poderia ser convocado pelo Céu e a vitória seria confirmada. Mas em vez disso, ele estava ali, acelerando para encontrar Jim?
Ou... será que a repórter precisava fazer sua parte no plano para que a vitória tivesse validade?
Não, isso fazia parte do livre arbítrio dela, não dele – e Matthias era o foco da rodada. A questão envolvia suas escolhas e ações – Jim aprendera isso na rodada inicial com o cara: quando Matthias puxou o gatilho daquela arma, com a intenção de matar Isaac Rothe, isso foi suficiente para condená-lo – o fato de que o cara não morreu não teve influência no resultado.
A intenção foi o que realmente importou.
Jim colocou o Cachorro para dentro e desceu novamente as escadas, tentando imaginar qual seria a reviravolta dessa vez.
A porta do motorista se abriu antes mesmo de o carro estacionar – o que provavelmente não era um bom sinal.
Matthias saiu com pressa e passou debaixo da fita de isolamento da polícia.
– Nós estávamos errados.
– Como é?
– Os agentes estavam atrás de você. Eles pensam que eu estou morto, vi isso no meu arquivo. E os agentes não perdem tempo com mortos, a não ser pra recuperar os corpos.
Jim franziu a testa. Ele pensava que a organização acreditava que ele também já batera as botas.
– Eles acham que eu ainda estou respirando?
– Entrei no sistema e vi a informação diretamente no seu dossiê. Sua condição aparecia como “não confirmada”.
– Mas você foi checar minha morte.
Dessa vez, foi Matthias quem franziu a testa, como se estivesse com dificuldade para se lembrar.
– Eu fui?
Bom, isso explicava por que o registro das Operações aparecia daquela maneira.
Matthias balançou a mão no ar, como se estivesse dizendo que os detalhes eram a última coisa com que precisavam se preocupar.
– Veja, os assassinos só vieram quando nós estávamos juntos, e aquele primeiro agente pode até ter me visto, mas ele morreu antes de poder passar a informação para frente. Pense um pouco: eles estavam atrás de você o tempo todo.
E daí?, pensou Jim. Não era como se eles pudessem matá-lo.
Mas então, percebeu uma coisa.
– Então, o que você está fazendo aqui? Pensei que ia sair da cidade.
Matthias olhou ao redor, procurando nas sombras.
– Eu queria te avisar, pra você poder tomar cuidado.
Jim balançou a cabeça lentamente, quase sem acreditar no que ouviu. Se fosse com o velho Matthias, essa conversa nunca teria acontecido. A autopreservação era a única coisa que importava para ele.
– Eu sempre tomo cuidado – Jim disse suavemente. – Você deveria saber disso.
– Bom, acho que percebi que eu te devo uma.
– Você nunca foi assim.
– Que seja, apenas não quero que acabe morto amanhã – os olhos de Matthias continuavam a vasculhar os arredores: sua visão estava perfeita, graças a Adrian... que pairava invisível ao fundo. – Você salvou minha vida alguns anos atrás e eu não achava que isso tinha sido bom pra mim. Mas agora? Isso me deu... alguns dias inestimáveis que valem qualquer tortura que eu vá receber em breve.
– Você parece muito certo disso.
– Você faz parte desse jogo... ou seja lá o que for. Você tem que fazer parte. Então, sabe muito bem onde eu estive. E quanto às Operações, nos próximos dias, talvez semanas, tudo estará acabado. Você vai saber quando acontecer. Todos vão. Se eu fosse você, encontraria um bom esconderijo e não sairia mais de lá.
Certo, tudo isso era uma grande maravilha, mas onde estava a encruzilhada?
– Você veio até aqui só pra me dizer isso? – Jim perguntou.
– Certas coisas precisam ser feitas pessoalmente. E você... eu me importo com você. Posso perder a mim mesmo, tudo bem. Inferno, na verdade, isso é inevitável. Mas não vou ficar com a sua morte na minha consciência. Não se puder fazer algo pra impedir.
Jim piscou incrédulo e ficou surpreso ao sentir um certo alívio.
Deus, ele não esperava que fosse ficar sentimental. Achava que isso já nem era mais possível.
Matthias soltou um longo suspiro.
– E eu ficaria se pudesse, mas não posso. Preciso continuar minha viagem. Além disso, sei que você tem um bom parceiro. Aquele colega seu é um guerreiro e tanto...
Nesse instante, outro carro fez a curva e começou a acelerar em direção à garagem.
– Mas o que é isso? Uma maldita convenção? – Jim murmurou. Mas então ele sentiu a presença da pessoa que dirigia.
Não era a polícia. E não era um agente.
– Acho que a sua garota veio te ver – Jim disse suavemente a Matthias.
Quando a luz dos faróis iluminou a garagem em meio à mata, as mãos de Mels apertaram com força o volante do carro.
Matthias estava de pé ao lado de um carro com placa da cidade de Missouri – claramente um carro alugado. Ao seu lado, Jim Heron agigantava-se como um sentinela.
Nenhum dos dois parecia particularmente contente em vê-la, mas que se dane.
Ela freou do outro lado da faixa policial, desligou o motor e saiu marchando em direção aos homens.
No tenso momento antes que ela falasse alguma coisa, Mels notou distraidamente que o céu noturno estava espetacular naquela noite, com nuvens iluminadas pairando através dos céus, formando um caminho entre a lua e as estrelas.
– Preciso conversar com você – ela disse rispidamente. – A sós.
Matthias virou-se para Jim e falou alguma coisa com a voz baixa; então Jim se afastou. Matthias encarava o rosto de Mels sem parar, como se pensasse que nunca mais a veria: seus olhos pareciam querer tomá-la por inteiro.
Mels lutou contra a necessidade de fazer o mesmo. Deus, ela ainda estava fascinada por ele – mas isso não era apenas maluquice: era suicídio.
Cruzando os braços acima do peito, ela ficou de cabeça erguida.
– Pelo jeito você evitou a polícia. E parece que vai continuar assim.
– Eu disse que preciso ir embora – a voz de Matthias estava rouca. – O que você está fazendo aqui?
– Eu li todos os arquivos. Você achou que eu não teria algumas perguntas?
– Nenhuma que perguntaria para mim.
– Mas quem melhor pra responder do que a própria fonte?
Quando ele encontrou os olhos de Mels, seu olhar estava firme e focado, como se fosse um homem que não tem nada a esconder.
– Os arquivos não precisam de explicação...
– Aquilo era criação sua, não era? – ela acenou na direção de Jim. – Você comandava, recrutava, dizia a eles o que fazer, mantinha controle de toda a organização.
– Então você acha que eu devo ir para a cadeia.
– Bom, sim. Embora, se os arquivos forem verdadeiros, você tenha feito um favor para o mundo – ela fez uma breve pausa. – Pra ser honesta... estou surpresa por você ter passado aquilo tudo pra mim.
– O que eu disse é verdade – Matthias baixou o volume da voz. – Preciso que você acredite que o que tivemos foi algo verdadeiro pra mim. Eu não posso... não posso viver com a ideia de que você pensa que eu menti sobre aquilo. E quanto ao agente no Marriott... ele foi enviado pra matar, e se nós não o pegássemos primeiro, ele teria sido bem-sucedido na missão. Não tivemos escolha.
– Você e Jim Heron?
– Sim.
– Vocês roubaram o cadáver?
– Não, não roubamos. Mas a recuperação dos restos mortais é uma operação padrão nas Operações Extraoficiais. Outro agente cuidou dessa parte.
– Então esse é o nome? Operações Extraoficiais?
– Não existe um nome, mas é assim que nós chamamos.
– Alguns dos homens estavam marcados com a cor laranja. O que isso significa? – ela apontou para Jim. – Ele, por exemplo.
– Nesses casos, alguma informação apontava para a morte, mas o corpo nunca foi recuperado ou a morte não foi confirmada visualmente.
– Jim com certeza está bem vivo.
– Sim, está.
Um instante de silêncio se seguiu e Mels pensou nos momentos que os dois passaram abraçados um ao outro, movendo-se juntos debaixo dos lençóis – tão próximos, com seus corpos colados até o mundo desaparecer, a força e combustão entre eles se propagando e varrendo tudo ao redor.
– O que posso dizer pra te ajudar com isso? – ele sussurrou. – O que posso fazer?
– Diga para onde você está indo.
– Não posso.
– Ou você terá que me matar, não é isso que dizem?
– Nunca. Não você.
Isso foi a deixa para mais um momento de silêncio, e no meio da tensa quietude, Mels refez em sua mente os passos que a levaram até ali: assim que terminou de revisar todos os arquivos no pen drive, o desejo de confrontar Matthias a dominou. Uma rápida ligação para um de seus contatos na polícia indicou que ele não fora preso e que não havia pistas de seu paradeiro. Por fim, ela decidiu dirigir até ali, pois Jim Heron era o único contato que tinha em relação a Matthias.
E agora lá estava ela, completamente sem palavras.
Mels queria gritar com Matthias, como se o passado dele tivesse existido apenas para ferrar com ela.
Ela queria xingar toda a duração de sua... Deus, aquilo nem poderia ser chamado de “relação”, não é mesmo? Estava mais para uma colisão que envolvera muito mais do que apenas o carro dela.
Mels queria jogar seus braços ao redor do corpo dele... pois, ao olhar para o rosto de Matthias, tinha a sensação de que aquilo poderia ser verdade... as coisas que ele lhe entregara no pen drive – mas também os seus sentimentos. A situação inteira parecia totalmente bizarra, mas os sentimentos... será que poderiam ser reais?
– E agora? Como fica? – ela exigiu saber, quase que falando apenas para si própria.
– Como assim?
– Tenho a sensação de que, mesmo que eu chame a polícia, você vai dar um jeito de escapar.
Ele baixou a cabeça.
– Sim, eu fugiria.
– Então é isso que vai fazer para o resto da vida? Fugir?
– Evitar a morte. Até que ela me encontre e me leve para o Inferno. E as duas coisas vão acontecer.
Um calafrio subiu pelas costas de Mels, arrepiando sua nuca. De repente, tudo ao seu redor parecia mais nítido, desde o cheiro dos pinheiros no ar, a leve brisa gelada, até as nuvens que viajavam lentamente no céu noturno.
Matthias emanava uma tristeza que beirava a agonia.
– Mels, eu preciso que você saiba que eu não tinha ideia do que deveria fazer. A amnésia era real e, quando minha memória começou a voltar, eu não a compartilhei com você porque... a expressão no seu rosto naquele quarto de hotel hoje de manhã era algo que eu nunca queria ver. Mas eu sabia que aconteceria. Sabia que era inevitável. Acontece que não havia nenhuma boa notícia nas minhas lembranças. E nenhuma bondade. Mas com você, eu era diferente – Matthias passou a mão nos cabelos e tocou a lateral do rosto, correndo os dedos ao redor dos vestígios de suas cicatrizes. – Isto eu não posso explicar. Simplesmente não posso. Mas não era maquiagem e lente de contato. E isso é a mais pura verdade. E também vale para a impotência. Eu realmente não menti sobre isso.
Merda. Ele parecia tão honesto – tudo aquilo atingia Mels com a marca da sinceridade.
Mas não é exatamente isso que os bons mentirosos fazem? Eles fazem parecer que estão falando algo tão importante quanto o evangelho – e sabem descobrir o que funciona melhor para cada indivíduo, qual comportamento, quais tipos de palavras e combinações podem ser mais eficazes para fazer a pessoa acreditar.
Bons mentirosos são muito mais do que apenas contadores de histórias. Eles são sedutores egoístas com motivos próprios.
– Eu não posso acreditar em você – Mels disse, com dificuldade.
– E eu não te culpo. Porém, é a verdade. Meu acerto de contas está se aproximando. De um jeito ou de outro, meu passado vai voltar pra me condenar, e estou em paz quanto a isso. Tive sorte. Fui enviado de volta pra consertar as coisas, pra poder te dar as informações necessárias pra expor toda a organização. É a única maneira que possuo para reparar os erros que cometi. E isso também vai ajudar você a conseguir o que quer. É uma história que pode marcar uma carreira. No fim, nós dois teremos aquilo que merecemos.
Engraçado, mas a carreira dela nunca parecera tão desimportante.
– Sabe o que ainda me incomoda? – ela disse, meio entorpecida. – Nunca entendi por que eu me apaixonei tão profundamente por você. Isso me incomodou o tempo todo. Simplesmente não consigo encontrar uma razão, quer dizer, por que justamente um homem que eu não conhecia e que também não conhecia a si mesmo? Mas você foi atrás de mim, não é mesmo? E conseguiu o que queria. Então, seja honesto comigo agora: por que você fez isso? Por que... eu?
– Por causa da razão mais simples que existe.
– E qual seria essa razão?
Ele ficou quieto por tanto tempo que Mels pensou que não responderia. Mas então, Matthias disse, com a voz falhando:
– Eu me apaixonei por você. Eu sou um monstro, é verdade. Mas abri os olhos naquele hospital e, no segundo em que te vi... tudo mudou. Eu fui atrás de você... porque estou apaixonado.
Mels respirou fundo e fechou os olhos, a dor em seu peito fazendo-a perder o fôlego.
– Oh... Deus...
– Não!
Os olhos dela se abriram quando Matthias gritou, e então tudo ficou em câmera lenta.
Com um forte empurrão dele, ela voou para o lado, seu corpo jogado ao ar enquanto algo passava zumbindo por seu ouvido em direção à garagem.
Um tiro.
Mels atingiu o chão de cascalho e deslizou por alguns metros. Tentando desacelerar, ela agarrou as pedras soltas enquanto virava de costas.
E viu tudo.
Assim que a lua saiu de trás das nuvens e a luz prateada cobriu a paisagem noturna, Matthias ergueu seu corpo inteiro no ar, sua trajetória colocando-o diretamente na frente de Jim Heron.
Mels gritou, mas era tarde demais.
A iluminação vinda dos céus clareou a cena enquanto ele colocava seu peito no caminho do segundo tiro... que claramente tinha como alvo o outro homem.
Ela nunca esqueceria o rosto de Matthias.
Ao ser atingido mortalmente, seus olhos não estavam focados na pessoa que fez os disparos ou na pessoa que estava salvando. Estavam focados na luz que vinha de cima. E Matthias parecia... em paz.
Como se a última ação de sua vida tivesse aliviado profundamente a sua alma.
Mels esticou os braços, como se pudesse impedi-lo, ou agarrá-lo, ou fazer o tempo voltar – mas o fim havia chegado. E, Deus, parecia que Matthias já esperava.
Talvez até desejasse aquilo.
Ela gritou, o som agudo rasgando através da garganta.
– Matthias...!
O corpo dele aterrissou com um estrondo, e a maneira como não tentou se proteger da queda era uma prova do quão ferido estava.
Lágrimas surgiram nos olhos de Mels enquanto ela tentava rastejar até ele...
Mas foi impedida por mãos invisíveis.
CAPÍTULO 53
Em última análise, foi o luar que realmente mostrou o caminho.
Enquanto Matthias conversava com Mels, ele manteve os olhos colados em seu rosto, pois era crucial que ela acreditasse em suas palavras. E Matthias sabia que não teria outra chance. De fato, ele nunca proferira palavras tão verdadeiras, apesar de algumas delas soarem malucas – e, de várias maneiras, sua vida só seria completa se por algum milagre ela pudesse acreditar naquilo que ele estava dizendo.
E então ele teve a chance de dizer que a amava. Pessoalmente.
Era mais do que ele esperava ou merecia.
Mas enquanto dizia aquilo, a lua apareceu no meio das nuvens, lançando sombras ao chão, sombras de árvores, galhos, carros... e pessoas.
Incluindo a de um agente vestindo preto que rastejava em meio à mata.
E que estava mirando sua arma em direção à garagem.
O primeiro movimento de Matthias foi tirar Mels da linha de fogo e, quando ela atingiu o chão de cascalho, ele ouviu o primeiro tiro atingir a garagem. O segundo disparo seria letal – mas não para ela.
Jim estava de pé desprotegido ao lado do carro alugado – era óbvio que ele era o alvo.
Matthias reagiu em um instante, jogando a si mesmo na direção do segundo disparo, tornando-se um escudo humano para proteger Jim. Voando pelo ar, ele de alguma forma conseguiu sincronizar com perfeição o pulo e a trajetória da bala.
Ao sentir a bala penetrar em seu peito e atingir o coração, ele pensou, bom... então o momento chegou.
Seu último instante na terra.
E parecia correto, parecia muito correto. Ele fizera tantas maldades ao longo das décadas, mas ao menos tudo terminava com um gesto positivo: ele deu tempo para Jim sacar sua arma e acabar com o assassino.
E Heron faria isso. Ele era um dos melhores. Sempre fora.
Jim cuidaria de tudo, ele e aquele seu colega letal.
E Mels ouvira a verdade, mesmo que não conseguisse acreditar.
No breve momento em que Matthias caía no chão, seus olhos viraram e focaram o céu noturno. Ele voltaria para o calabouço do Inferno, então pensou que deveria aproveitar a vista paradisíaca uma última vez...
Deus, aquele luar, aquele lindo e brilhante luar com sua luz branca tão pura banhando todo o desenrolar daquele drama...
O chão de cascalho recebeu seu corpo pesado. Ao aterrissar, sua visão se clareou de um modo sobrenatural, permitindo-lhe enxergar aquilo que sabia que iria acontecer: Jim sacando sua arma, esperando um segundo, dois segundos... e, quando o atirador ergueu a cabeça para checar o estrago, Heron puxou o gatilho e acertou o agente, atingindo diretamente no crânio e jogando-o para trás.
Foi um tiro certeiro, que só poderia ter saído da pistola de um especialista.
E agora Mels estava segura.
Deitado de costas no chão, Matthias virou a cabeça na direção de sua mulher. Ela estava lutando contra algum tipo de barreira invisível, com os braços esticados em sua direção como se quisesse alcançá-lo.
No instante em que Jim gritou que o perigo havia passado, ela se livrou daquilo que a prendia e correu até Matthias.
Ele sentiu Mels pegar em sua mão e, quando ele olhou para seu rosto, ela parecia mais linda do que a própria lua.
Ele sorriu, e então percebeu que ela estava chorando.
– Não – ele disse com dificuldade. – Não, você vai ficar bem...
– Chame uma ambulância! – ela gritou.
Era tarde demais, mas ele ficou agradecido pela tentativa.
Engraçado, não deveria sentir dor? Ele estava morrendo – sabia disso por causa da maneira como sua respiração ficava cada vez mais difícil. Mas não havia agonia, nem mesmo desconforto. Em vez disso, sentia um pouco de vertigem e seu cérebro parecia estar zumbindo.
À beira da morte, ele estava totalmente vivo.
Matthias apertou a mão de Mels.
– Eu te amo...
– Nem pense nisso! – ela gritou.
– É... o que sinto por você.
– Não, não venha com essa de morrer. Você não vai morrer nos meus braços – ela levantou a cabeça. – Ligue para a emergência!
– Mels. Mels, olha pra mim – quando ela olhou, ele sorriu, apesar de saber para onde estava indo. – Apenas... me deixe olhar pra você... você é tão linda...
– Mas que droga, Matthias...
– Sim, eu sei... – o que ele sabia era que estava condenado. – Escute... não, apenas me escute. Eu quero que você use cinto de segurança. Use o cinto. Prometa...
– Vá se danar, fique comigo e me obrigue!
– Use... o cinto...
– Não me deixe – ela gemeu. – Não agora, não quando... estou tão confusa...
– Use o cinto.
E essas foram suas últimas palavras, e Mels foi a última coisa que ele viu: uma abrupta falta de ar o atingiu, suas células famintas daquilo que não mais receberiam, o caos tomando conta de seu cérebro, roubando os últimos momentos que possuía junto com ela.
E então tudo acabou.
A visão se foi, o corpo ficou paralisado, sensações de paladar e olfato se extinguiram.
Mas ainda tinha um pouco da audição.
A voz de Mels o envolveu.
– Fique comigo...
Deus, ele queria, realmente queria.
Porém, esse não seria seu destino.
Quando o agente caiu no chão da floresta como um pedaço de carne sem vida, Jim abaixou a arma, pronto para dar um chute no próprio traseiro. Ele e Adrian ficaram tão envolvidos com o drama que se passava que nenhum dos dois prestou atenção ao assassino que espreitava na floresta.
Por outro lado, se tivessem interferido... merda, quem iria adivinhar que Matthias levaria um tiro para salvar alguém?
– Adrian, vasculhe as redondezas – Jim disse.
Ad assentiu e desapareceu. Segundos depois, o anjo enviou um sinal de que tudo estava em ordem.
– Ligue para a emergência! – Mels gritou, agachada ao lado de Matthias e segurando sua mão.
Esta era a verdadeira encruzilhada, pensou Jim. E Matthias havia passado no teste.
Eles haviam vencido...
Mels levantou-se e o encarou.
– Precisamos de uma ambulância...
Do alto, um raio de luz cortou os céus, brilhando cem vezes mais intensamente do que a luz da lua: era a ascensão de Matthias, os raios derramando-se das nuvens como uma cascata de luz, eclipsando seu corpo ao redor de onde estava caído.
Por um momento, Jim apenas assistiu ao processo: a alma cintilante de Matthias foi puxada pelo turbilhão, retirada de sua carne, seguindo em direção à Mansão das Almas.
Ele conseguiu.
O maldito filho da puta conseguiu.
No momento que Matthias escolheu salvar a vida de outra pessoa em troca da sua própria, quando ele se jogou na frente daquele tiro – mesmo que Jim não fosse ser afetado –, a encruzilhada se apresentou e o livre arbítrio foi o que definiu... a vitória.
– Ele está morrendo! – o som da voz de Mels arrancou Jim de seus pensamentos. – Ele está...
– Morto – Jim disse sombriamente, levantando a mão e despedindo-se de seu velho... amigo, aparentemente.
– Não, não está!
Voltando a se concentrar, Jim se aproximou e se abaixou.
– Sinto muito, mas ele se foi.
Mels agarrou a camiseta de Jim. Seu rosto estava furioso, dentes à mostra, olhos estreitos.
– Ele não está morto!
Ela largou a camiseta e foi pegar seu celular...
Jim tirou o telefone de suas mãos.
– Ele se foi. Eu sinto muito mesmo, mas ele já não está mais conosco. E você precisa sair daqui...
– Que merda você está falando? Devolva meu celular!
– Mels...
Ela se lançou contra Jim, e ele a deixou extravasar, permitindo que ela liberasse sua energia e frustração ao socá-lo com toda a força. Depois de um tempo, Jim a impediu de continuar e a virou de costas, segurando seus braços para que ela não acabasse arrancando um olho dele.
Quando finalmente se aquietou, Mels respirava com força. E soluçava.
– Ele se foi – disse Jim com a voz áspera. – E eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Mas você precisa me escutar. Você precisa ir embora. Você não quer ser parte disso. Ele me contou sobre os arquivos que entregou pra você. Então eu sei que vai entender quando digo que não é seguro se envolver com o que vai acontecer em seguida. Vá pra casa e comece a trabalhar nas informações: essa é a maneira de você ficar segura. Assim que você vazar a história, a organização vai se despedaçar. Mas até lá, as coisas ficam como estão, e isso significa que você está exposta. Vá pra casa. Faça seu trabalho. E faça rápido.
Mels soltou o corpo nos braços de Jim e apenas ficou lá, pendurada por ele, a cabeça baixa na direção de Matthias.
– Você sabe que eu tenho razão – Jim falou gentilmente. – E vou cuidar bem dele. Eu prometo.
De repente, Adrian saiu do meio da mata.
– Você nunca vai acreditar em quem eu acabei de encontrar: o Nigel.
Jim franziu a testa.
– Eu não senti a presença dele.
– Nem eu. Mas ele esteve aqui.
Para manter Devina afastada?, pensou Jim. Ou será que Nigel fora a verdadeira razão de Adrian e Jim não terem sentido a aproximação do assassino?
– Ele já foi embora?
– Sim. Não disse nada. Apenas acenou e desapareceu.
Certo, os motivos de seu chefe não eram importantes agora.
– Ad, eu quero que você a leve pra casa.
– Entendido.
– Mels? – Jim a virou. – Você precisa ir. Não é seguro pra você ficar aqui. Vá e faça o que puder.
– Ele não pode estar morto...
– Mas está. Você sabe disso. Confie em mim, vou cuidar bem dele. Agora vá... deixe Adrian te levar pra casa em segurança. Não posso deixar você também morrer por minha causa.
Mels permitiu que Jim a conduzisse até o carro que ela dirigira até ali. Ele abriu a porta do passageiro, e a ajeitou no banco. Considerando a maneira como não reagia, claramente ela estava em estado de choque – então eles precisavam agir rápido, antes que ela acordasse e voltasse a resistir.
Antes de fechar a porta, Jim se aproximou.
– Tem uma pessoa que você precisa encontrar. Isaac Rothe. Ele é um de nós. Você pode encontrar ele através de Childe, com um “e” no final, em Boston. Diga que Jim Heron te enviou, certo?
Ela assentiu, mas Jim não tinha certeza de ela que realmente o ouvira.
Mas, de repente, ela agarrou sua mão e disse:
– Por favor, não deixe ele... em algum lugar anônimo. Quer dizer...
– Vou cuidar bem dele. Eu prometo.
Olhando em seus olhos, Jim acariciou o rosto de Mels, transmitindo assim um pouco de paz para confortá-la na tristeza.
Ele podia sentir o amor que ela tinha por Matthias, e sentiu também sua dor. E estava agradecido. Afinal, como era mesmo o velho ditado? O amor de uma boa mulher pode consertar um homem.
Isso fez toda a diferença, não é mesmo?
Jim estivera certo o tempo todo: Matthias era a alma, mas Mels era a chave.
– Eu juro para você – ele disse novamente. – Agora vá e faça o que é certo.
Depois de fechar a porta, ele bateu no teto do carro e Ad deu marcha ré, manobrou no caminho de cascalho e partiu em direção à estrada principal.
Sozinho, Jim virou-se e procurou por Nigel, mas o arcanjo não estava em lugar nenhum. Havia apenas a floresta... e os dois corpos caídos no cascalho.
Matthias fora enviado para o Céu.
Dá para imaginar o quanto ele devia estar surpreso agora. Por outro lado, ele fizera tudo certo em seu caminho para o final e realizara o ato redentor definitivo: sacrificou a própria vida para salvar outra.
Na escala da justiça, ele ainda tinha muita coisa das quais precisava se redimir, mas apenas alguns momentos atrás, ele abrira mão de tudo por outra pessoa.
Jim se aproximou do corpo de seu antigo chefe. Mal podia acreditar no quanto ele mudara. Porém, o Inferno claramente é uma experiência transformadora. Assim como o amor.
Ajoelhando-se, Jim disse suavemente:
– Se você tivesse falado que um dia chegaríamos a esse momento... eu nunca teria acreditado.
A realidade era mesmo mais estranha que a ficção.
Jim esfregou o rosto e deixou o corpo cair até sentar no chão ao lado do homem que por tanto tempo havia definido sua vida. No silêncio, ele podia sentir a própria respiração com total clareza, percebendo a maneira como o ar frio entrava pelo nariz e saía aquecido pela boca.
Passou a mão no rosto mais uma vez. E de novo.
No alto, a lua fez outra aparição. A luz banhou novamente o cenário ao redor e Jim precisou fechar os olhos. Por alguma razão, não queria enxergar nada daquele momento, simplesmente não podia aguentar a visão.
Ele havia vencido a rodada, é verdade – mas Matthias estava morto, e Jim sentia profundamente essa perda.
E Adrian continuava a sofrer. E Eddie continuava morto. E quanto a Jim?
Ele sentia-se vazio. Tão vazio... como se os orgasmos que tivera com Devina houvessem sugado os últimos vestígios de sua alma.
Mas precisava se recompor. Precisava se livrar dos cadáveres.
Olhando para o agente, Jim não dava a mínima para onde jogaria seus restos mortais. Por outro lado, não sabia o que fazer com Matthias. Para onde deveria levá-lo? Afinal de contas, tratar o morto com dignidade era um sinal de respeito – isso ainda era importante, mesmo que sua alma estivesse livre. E o homem salvara sua vida... pelo menos, até onde Matthias sabia.
Parece que finalmente estavam quites...
De repente, uma convocação surgiu vinda de cima. Nigel e seu bando de almofadinhas estavam chamando-o para os céus para que pudesse ver a bandeira que conquistou ser hasteada no topo do grande muro – junto com as outras duas.
Não, ele pensou. Não queria ir.
Fodam-se os arcanjos e foda-se o jogo.
Negando a convocação, ele se manteve em terra firme – mandou a cerimônia para o inferno, mandou Devina para o inferno, mandou o Criador para o inferno.
Jim estava fora do jogo no momento. Talvez no próximo minuto, nas próximas horas ou dias, ele ficasse disponível novamente, mas agora? Fodam-se todos.
Iria tomar conta de seu morto da única maneira que podia. Isso era tudo que sabia.
Praguejando, forçou a si mesmo a ficar de lado e colocou os braços debaixo dos joelhos e ombros de Matthias. Ao começar a se levantar, Jim sentiu-se tão morto quanto o outro homem – e sabia que isso não fazia sentido. Agora, ele tinha três vitórias na guerra. Mais uma e poderia fechar este capítulo bizarro de sua vida e seguir em frente.
Ele deveria estar celebrando...
Matthias teve um espasmo e puxou fortemente todo ar que podia.
– Mas que merda...! – gritou Jim.
E deixou o homem cair no chão como um saco de terra.
CAPÍTULO 54
Após seu “motorista” estacionar o carro de sua mãe na garagem, Mels apenas ficou sentada no banco do passageiro, encarando as ferramentas de jardim empoeiradas que estavam bem na sua frente.
– Você pode ir agora – ela ouviu a própria voz dizer.
Ela não olhou para o homem e rezou para que ele fosse embora rápido.
Como ele não se moveu, ela disse calmamente:
– Se você não sair deste carro agora mesmo, eu vou gritar até estourar o para-brisa. E acho que nenhum de nós precisa passar por isso. Concorda?
– Ele era um bom homem.
Mels fechou os olhos e lentamente colocou os braços ao redor de si mesma. Ela pensou que perder seu pai seria a maior dor que sentiria na vida.
Talvez esta fosse mais forte por ser mais recente.
– Matthias vai ficar bem – disse o homem.
– Ele está morto.
– Mesmo assim, ele está bem.
Deus, Mels realmente queria chorar, chorar desesperadamente. Mas sentia-se congelada por dentro.
– Olhe pra mim – disse Adrian. Como ela não olhou, ele colocou um dedo gentil debaixo do queixo dela e mudou sua cabeça de posição. Mesmo com Mels se recusando a olhar em seus olhos, ele continuou: – Eu não posso compartilhar certas informações, mas acho que você precisa de algo pra passar o resto da noite. Acredite em mim, eu sei como você se sente.
– Não há nada que você possa dizer...
– Seu pai está no mesmo lugar que Matthias está agora. Os dois estão bem...
– Como você pode ser tão cruel?
– ... no lugar onde estão...
– Estar no Cemitério Pine Grove não é a mesma coisa que estar bem!
Ele apenas balançou a cabeça.
– Eles estão no descanso eterno, e isso não tem nada a ver com o local onde seus corpos foram enterrados. E você os verá novamente, mas isso ainda vai demorar um longo tempo.
Finalmente encontrando seus olhos, ela...
Com um sobressalto, Mels focou os olhos dele... principalmente o olho que parecia igual àquele que Matthias tinha. Exatamente igual. E havia cicatrizes em seu rosto que não estavam lá antes – bem no local em que Matthias também tinha.
Era como se o homem tivesse retirado os ferimentos diretamente da carne de Matthias.
Com a mão trêmula, Mels esticou o braço para tocar o rosto dele, mas ele se afastou, evitando o contato.
– Era verdade – ela murmurou. – Matthias não encenou a cura ou os ferimentos.
– Fique em paz – disse o homem em um tom de voz estranho que parecia falar diretamente dentro de sua mente em vez de entrar pelos ouvidos. – Você não precisa se preocupar com nenhum dos dois. Eles estão seguros.
Naquele momento, Mels soube em seu coração o que ele era.
E o que Jim Heron também era.
Ela enxergara a verdade no espelho do Marriott e também agora.
– Você é um anjo! – ela sussurrou com espanto.
Essas palavras de alguma forma arrancaram Adrian daquela conexão. Ele se afastou repentinamente e disse:
– Imagina, sou apenas um cara que passou pela sua vida.
Mentira, ela pensou.
Abruptamente, o homem saiu, fechou a porta do carro e apertou o botão da porta da garagem... e então, em um piscar de olhos, ele se foi.
Mels virou a cabeça, procurando atrás do carro enquanto a porta automática descia lentamente. Pulando para fora, ela quis chamar seu nome. Mas...
– Você ainda está aqui. Eu posso sentir.
Nenhuma resposta. Nenhuma revelação...
– Mels?
Ela se virou. Ali, na porta que dava na cozinha, pôde ver a silhueta de sua mãe envolvida pela luz do teto.
Mels correu até ela, tropeçando nos próprios pés, quase perdendo o equilíbrio. Quando chegou até a mãe, Mels se jogou em seus braços acolhedores.
– Mels, o que foi? Você está tremendo... Oh, meu Deus, Mels...
– Sinto muito... sinto muito...
Sua mãe a sustentava com aquele abraço.
– Mels? Por que está se desculpando? O que aconteceu?
As lágrimas vieram e não pararam, toda sua emoção se libertou de uma vez, todos aqueles anos em que guardava a dor para si mesma se partiram como um espelho, mil rachaduras se espalhando até estilhaçar completamente.
Mas sua mãe estava lá para confortá-la enquanto Mels desmoronava.
E pensar... que ela acreditava ser a pessoa mais forte entre as duas.
CAPÍTULO 55
– Isso doeu, seu filho da puta!
Jim quase ficou maluco ao olhar para seu antigo chefe, que – surpresa! – estava bem vivo.
Apenas um pensamento passou por sua mente:
– Não me diga que vamos ter uma terceira rodada com você.
Enquanto sentava e esfregava atrás da cabeça, Matthias disparou um olhar na direção de Jim.
– Você me deixou cair de cabeça no chão.
– Você está morto!
– Ah, e isso por acaso é desculpa? – o homem levantou-se e limpou o cascalho da calça. – Aliás, eu descobri o que você realmente é.
Jim começou a apalpar os bolsos.
– Eu preciso de um cigarro. Urgente.
– Você é um anjo.
– Eu sou? – quando encontrou o maço de Marlboro, ficou tentado a fumar todos os dez cigarros de uma vez só. – Eu pareço um?
– Eu me encontrei com o seu Criador.
Jim congelou com o isqueiro a meio caminho dos lábios.
– É isso mesmo – Matthias parecia um pouco presunçoso. – Ele mandou dizer “oi”, e disse que gostou dos sanduíches de peru. Não entendi essa parte.
– Como é?
Matthias deu de ombros.
– Não faço ideia do que ele quis dizer. Mas eu o encontrei. E acho que ele gosta de você. Ele me contou sobre o seu jogo. Aliás, boa sorte com isso...
Jim colocou a palma da mão bem em frente ao rosto de Matthias.
– Pare. Que diabos você está fazendo aqui?
Matthias andou ao redor de um pequeno círculo, como se estivesse escolhendo bem as palavras, ou talvez relembrando uma conversa em sua mente.
– Bom, acontece que, veja bem, não é que eu não confie em você, mas... ela é minha garota. Eu tenho que protêge-la. Essa é a única maneira.
– A única maneira do quê?
Matthias bateu no peito com o punho.
– Estou de volta à ação, meu amigo. Bom, não àquela ação...
– Isso não faz sentido...
– É um simples caso de livre arbítrio. Fui até lá em cima – olhou para o céu e franziu a testa, como se não estivesse certo sobre como isso tudo acontecera. – Tinha um castelo imenso, com um fosso em volta da entrada. Um cara com jeitão britânico estava me esperando na frente das portas fortificadas, no começo de uma ponte de madeira. Na verdade, eu já tinha visto ele antes... no Marriott. E depois, levando um cachorro pra passear. Enfim, acho que entendi, mesmo sem terem me explicado, que tudo o que eu precisava fazer era atravessar a ponte acima da água e estaria dentro para sempre.
As palavras secaram nesse ponto, as sobrancelhas de Matthias se abaixaram com força, seus olhos focaram o chão.
– E...? – Jim disse, esperando que ele continuasse.
– Eu não consegui. Eu sabia que, se cruzasse a ponte, nunca mais voltaria. Quer dizer, eu nem podia acreditar onde estava. Era maravilhoso, mas... não era pra mim.
– Deixa ver se eu entendi. Você está se ofereceu como voluntário para ir até o Inferno?
– Não é isso. O Criador apareceu do nada e nós tivemos uma conversa. No final, eu apenas desisti de uma versão daquele lugar por outra, que é muito melhor. Entende? Pra mim, o Céu é estar com aquela mulher e vou passar o resto da vida tentando provar isso pra ela. Mesmo não existindo nenhuma garantia sobre... merda, sobre tanta coisa. Mas eu tenho muita certeza sobre querer tentar.
– Isso não pode estar certo.
– O que posso dizer? O Criador é um fã do livre arbítrio. Talvez porque, quando as pessoas fazem as escolhas certas, elas reafirmam o propósito da criação Dele? Eu não sei.
Jim se aproximou e ficou cara a cara com Matthias. Uma estranha fúria o impulsionava.
– Isso não é justo. Se você pode escolher, então por que todo mundo simplesmente não fica com as pessoas que amam?
Como a sua mãe, por exemplo.
Pelo amor de Deus, como Sissy!
Jim estava cansado demais de ser jogado de um lado para outro por esse jogo.
– As pessoas podem sim voltar dos mortos – disse Matthias. – Acontece o tempo todo.
– Mas não com todo mundo – não com os mortos que Jim amava. Isso era tão injusto!
– Eu tive sorte. Olha, se você tem algum problema com isso, vá conversar com Ele.
Jim andou de um lado para outro, praguejando – ao ponto de quase dar um chute no agente morto, simplesmente porque podia.
– Jim? – Matthias disse calmamente. – O que se passa nessa sua cabeça, meu amigo?
Naquele momento, a solução se apresentou por si própria. Uma coisa que Nigel havia dito no começo da rodada voltou à sua mente, criou raízes e se transformou em um plano tão herético que até fez sua raiva parar por um instante. Mas então se lembrou das coisas que Matthias lhe contara sobre o andar de baixo – e olhou para o rosto do outro homem, aquele rosto que respirava como se nunca tivesse levado um tiro.
O calor da violência dentro de Jim era muito familiar, a mesma força que o levou a transar com Devina, a mesma ardência que às vezes tomava o controle e o deixava cruel, a mesma merda que o levou a matar pela primeira vez – quando eliminou os homens que tiraram a vida de sua mãe.
Era o demônio dentro dele, pensou Jim. Essa fúria que se acendeu... e logo se estabeleceu como uma fria determinação que iria mudar o rumo do jogo.
Mas, caramba, como disse Matthias, certas coisas precisam ser feitas pessoalmente.
– Escuta, Jim, que tal nos livrarmos desse corpo e procurarmos o carro que trouxe ele aqui? Seria realmente útil usar um carro que não seja alugado, e com um pouco de esforço, eu posso achar o rastreador e me livrar dele.
– Sim – Jim disse, sem prestar muita atenção. – Claro.
– Você está bem?
Não.
– Sim – ele apagou a bituca do cigarro com uma das botas. – Claro.
CAPÍTULO 56
O sol raiava entre os galhos da floresta criando longas sombras no momento em que Jim e Matthias terminaram o trabalho da noite anterior.
Que envolveu muito mais do que apenas se livrar do cadáver.
Enquanto acendia o último cigarro do maço, Jim checou novamente se as duas Harleys estavam seguras na traseira da caminhonete F-150. O espaço quase não fora suficiente, mas eles não deixariam a moto de Eddie para trás.
Jim dirigiria a caminhonete. Matthias estava montado na terceira Harley, de Ad. E Adrian estava atrás do volante do Explorer.
Pois foi nesse carro que eles colocaram Eddie.
– Está tudo pronto? – perguntou Matthias.
Quando Jim fez um sinal positivo, Matthias colocou um par de Ray-Bans no rosto, deu partida na Harley e acionou o acelerador, bombeando gasolina. O rosnado do motor gritou alto e depois silenciou em meio à quietude matinal.
O grupo partiu com Jim à frente e, que pena, ele rasgou a fita de proteção da polícia ao sair da garagem.
Foi mal, policiais de Caldwell.
Mas ao menos deixaram o carro alugado de Matthias para que os oficiais tivessem alguma coisa com que se empolgar.
Entrando na estrada principal, eles seguiram para o norte sem muita pressa. Dirigiriam ao redor da cidade por um tempo para ter certeza de que não estavam sendo seguidos. Então, às dez da manhã, iriam para seu novo quartel-general.
Foi uma longa noite – e Jim gostou de poder sentar um pouco, mesmo que fosse para dirigir. Esvaziar o apartamento de cima da garagem não foi o problema, afinal, ele não tinha muitas posses. O que o incomodou mesmo foi lidar com o corpo do agente. A boa notícia é que Adrian sabia de um ótimo lugar para levá-lo – um pequeno lago em meio às montanhas, onde o outro agente fora jogado sem cerimônia, como se fosse uma âncora.
Era melhor desse jeito. Em um futuro não-tão-distante, o pessoal das Operações provavelmente não se importaria mais com isso, mas nesse meio tempo, eles poderiam ficar ocupados brincando de esconde-esconde com os mortos.
No caminho para o lago, encontraram o carro abandonado na estrada perto de onde o primeiro agente também deixara seu carro – mas Jim convenceu Matthias a não usar aquele veículo. Jim lhe daria a caminhonete assim que chegassem à nova casa e descarregassem tudo. Era mais seguro do que tentar achar o rastreador no carro abandonado, e trocar de placas não era difícil se você soubesse aonde ir...
O estômago de Jim roncou tão alto que até o Cachorro, que estava deitado no assento do passageiro, levantou a cabeça.
– Desculpa... aposto que você também quer comer alguma coisa, não é? – ele disse. – Como talvez um sanduíche de peru. Certo, Cachorro?
O “animal” lhe olhou de volta com aqueles grandes olhos castanhos, sem piscar uma única vez. Então, uma de suas patas peludas se levantou e pareceu agarrar o ar – como se estivesse pedindo por dois... não, por três sanduíches.
Então, o Criador estava junto dele, pensou Jim. E esteve, por todo esse tempo.
Ficou imaginando qual seria a próxima jogada do garotão.
Considerando a expressão séria do Cachorro, Jim se perguntou se Ele já sabia o que seria.
– Desculpa – ele murmurou. – Mas certas coisas precisam ser feitas pessoalmente.
Quando o relógio digital mostrava que faltavam cinco minutos para as dez da manhã, Jim já dirigia pelo caminho de entrada de seu novo, digamos, Lar Angelical. O Explorer e a Harley chegaram atrás dele e alguém assoviou, impressionado com o lugar.
O que era claramente irônico.
– Esse lugar parece assombrado – Matthias disse ao desligar o motor da Harley.
– É barato e isolado – Jim retrucou através da janela aberta da F-150.
E, por mais feio que fosse o lugar, Jim não sentia a presença de Devina ali.
Pegando o Cachorro, ele saiu de trás do volante e viu que até Adrian parecia um pouco surpreso – o que, considerando o estado em que se encontrava, realmente significava algo.
– Você realmente pagou por essa espelunca? – murmurou Adrian.
Certo, certo, eles tinham um pouco de razão. Mas quem mais iria alugar alguma coisa para uma figura estranha como Jim? E sem pedir referências?
E “espelunca” era a palavra certa: a mansão estava toda pintada em tons de cinza, desde as pequenas torres no telhado, o pórtico de pedra na entrada, até as persianas desiguais em cada andar. Inferno, até a planta trepadeira que subia pelas paredes e cobria a porta da frente estava sem folhas: parecia apenas um esqueleto, um vestígio de uma planta, como uma infecção que brotou da terra preta e se espalhava pela propriedade.
O terreno da mansão se estendia com um gramado irregular por cem mil metros quadrados em todas as direções até atingir uma fina barreira de árvores.
Ao longe, outras propriedades colossais podiam ser vistas vagamente – nenhuma em condições decrépitas.
Dava para apostar que os vizinhos adoravam aquele lugar.
– Tem água corrente aqui? – perguntou Ad.
– Sim. E eletricidade.
– Quem disse que milagres não existem?
Jim se aproximou da caixa de correio. Quando tentou abrir a tampa, ela se despedaçou e saiu na sua mão.
– Aqui está a chave.
– Quer dizer que eles tiveram o incômodo de trancar essa porcaria?
Quando, durante as buscas da polícia, Jim ligou para o número no anúncio, a proprietária pareceu surpresa, como se nunca esperasse conseguir alugar aquela casa. Enquanto conversavam, Jim ficou com medo que ela fosse pedir referências, pois não poderia hipnotizá-la por telefone, mas ela nem se importou com isso. Tudo o que queria era um depósito de entrada, o primeiro e último aluguéis, e que os outros pagamentos fossem feitos com débito automático – e Jim estava mais do que feliz em aceitar essas condições. Após trocarem as informações das contas do banco, ela disse que deixaria a chave na caixa de correio. E fez exatamente isso.
Pronto. Negócio fechado.
Jim andou pelo caminho de pedra até a entrada principal. Suas botas não faziam barulho, como se o chão absorvesse seus passos. O Cachorro não o seguiu. E nem os outros dois homens.
Medrosos, todos eles.
A chave não era do tipo que se compra em supermercados – era feita de bronze antigo e a haste era tão grossa quanto um dedo. Jim achou que teria de forçá-la dentro da fechadura e depois lutar contra o mecanismo... mas ela entrou como manteiga e abriu facilmente.
Como se a casa quisesse que ele entrasse.
Ele esperava que o interior estivesse coberto por teias de aranha e lençóis empoeirados, como naqueles antigos filmes de Abbott e Costello. Mas em vez disso, o grande saguão estava vazio, porém limpo: o chão gasto, o papel de parede envelhecido e as antiguidades corroídas formavam uma prova da riqueza que um dia cobriu o lugar.
À esquerda, havia uma sala de lazer para convidados, e atrás desta, o que parecia ser a sala de estar. A sala de jantar ficava à direita. Uma grande escadaria ficava logo à frente. E, debaixo do conjunto duplo de degraus, havia um solário que dava no terraço atrás da casa.
Olhando para cima, Jim pensou que essa disposição realmente podia abrigar oito quartos, como dizia o anúncio.
Ele se virou e olhou através da porta aberta.
– Vocês vão entrar? Ou ainda não terminaram de molhar as calças de medo?
A resposta só poderia vir em xingamentos, é claro.
Mas que se dane.
– Comecem a descarregar os carros, certo? – ele gritou.
Andando até os fundos da casa, encontrou uma cozinha saída dos anos 1940 e um quintal que se estendia até perder de vista.
Essa provavelmente fora uma mansão importante em seus dias de glória.
Quando o sino de um relógio antigo começou a bater, Jim se perguntou onde poderia estar.
Um, dois, três, quatro...
Lentamente, ele contou a marcação das horas enquanto andava de volta para o saguão procurando pelo relógio.
Oito... nove...
Franzindo a testa, Jim se aproximou da escadaria e começou a subir, pensando que o relógio só poderia estar no pavimento entre os andares.
Mas não estava.
Dez.
No momento em que Jim realmente ficou apreensivo, Adrian e Matthias entraram trazendo a bagagem dos carros, suas vozes ecoando pela casa.
Em vez de descer para ajudar, ele continuou subindo os degraus, dirigindo-se para o saguão do segundo andar.
Onze.
Ele pisou com seu coturno no último degrau.
Doze.
O relógio também não estava lá – ao menos, em nenhum lugar que ele pudesse ver. Tudo o que enxergou foram portas abertas por todos os lados: os quartos estavam distribuídos ao redor de um tapete oriental em uma grande área de estar que era maior do que o apartamento que usavam em cima da garagem...
Treze.
Ou essa última batida fora apenas sua imaginação?
Esfregando a nuca, ele considerou a opção de desistir dessa mudança. Mas isso seria besteira, covardia. O relógio não soara uma batida a mais. E ponto final.
Balançando a cabeça, Jim voltou para o primeiro andar.
– Preciso sair – ele disse para os dois.
Adrian não respondeu e não parecia contente. O que sugeria que o anjo tinha adivinhado para onde Jim estava indo. E, é claro, o cara teve de murmurar um “tome cuidado”.
Matthias colocou um saco de roupa suja no chão – não, espere, eram roupas limpas?
– Eu não vou ficar aqui por muito tempo.
Jim sentiu um aperto no peito, como se alguém tivesse socado seu coração por uma fração de segundo.
– Certo. Tudo bem.
– Eu não vou te ver de novo, não é?
– Não, não vai. É assim que funciona.
– Como nas Operações. Você entra, faz seu trabalho, depois some.
– É por aí – mesmo agora, com a rodada definida, Jim não contou a Matthias como exatamente as coisas funcionavam. E o cara também não perguntou. Mas seu antigo chefe não era nenhum idiota.
Os dois ficaram se encarando por um longo período, até Jim não aguentar mais a tensão.
– Boa sorte com sua garota.
– O mesmo para você com... – Matthias olhou ao redor – o que quer que esteja fazendo aqui.
– Obrigado, cara.
Matthias limpou a garganta.
– Eu ainda estou te devendo.
– Não... depois da noite passada, estamos quites.
Matthias esticou o braço oferecendo a mão, e Jim apertou com força. Engraçado, eles se conheceram com um aperto de mão, lá atrás, quando começaram a treinar juntos nas Operações, quando nenhum dos dois fazia ideia de em que estavam se envolvendo. E agora acontecia o mesmo, com a exceção de que aquilo era uma despedida.
– Se você precisar de mim... – Matthias começou a falar.
– Apenas cuide de si mesmo.
Eles se abraçaram nesse momento, um daqueles abraços másculos, peito com peito, que durou apenas o suficiente para baterem com força nas costas um do outro. E então se separaram.
Jim não se despediu. Ele apenas se virou... e desapareceu de vista.
Nas profundezas do Inferno, Devina estava sentada em sua mesa de tortura, as pernas apodrecidas balançavam na beirada, a cabeça estava abaixada, as mãos agarravam a madeira com tanta força que os dedos até sangravam.
Ela violou as regras – e perdeu.
Ela tentou seguir as regras – e perdeu.
Mais uma vitória e Jim venceria o jogo.
O embaraço era quase pior que a perspectiva de perder a guerra: ela sempre se orgulhara da habilidade de influenciar as criações imperfeitas do Criador – e Jim não poderia ser diferente. Na verdade, após terem transado no embarcadouro, ela ficara radiante, sentindo que progredia com seu homem e certa de que ganharia com Matthias.
Mas o cretino fez a escolha errada. E, pelo amor de Deus, quem teria imaginado? O maldito sempre fora um bom menino, sua inclinação para a violência era um exemplo para os outros. E então, no último minuto, ele se transformou em uma mocinha? E tudo por causa de uma garota?
Mas. Que. Merda.
E sabe o que é o pior? Devina não pôde fazer absolutamente nada a respeito disso: ela apareceu na cena final, preocupada com aquele gesto pela repórter, pronta para intervir no ponto mais crítico... mas Nigel estava por lá, como um maldito cão de guarda da moralidade.
Não tinha como manipular a situação, não com aquele arcanjo escondido na droga da floresta. E Jim, outro cretino, continuou a traí-la na maneira como estava influenciando as almas.
Nesse ritmo, ela iria perder...
Devina ergueu a cabeça quando uma onda de energia surgiu em seu corpo. Era um chamado.
Jim, ela pensou.
Mas se ele estava pensando que ela o deixaria descer até o Inferno, ele estava muito enganado. A última coisa que Devina queria agora era ver Jim se gabando de sua vitória.
Ignorando o chamado, ela ficou onde estava até os sintomas de seu transtorno obsessivo-compulsivo empalidecerem frente à angústia da derrota.
O que ela iria fazer...?
– Ah, mas que droga! – olhou para cima em direção ao distante círculo de luz que ficava no topo de seu poço. – Quer parar com isso, Heron? Eu não quero te ver!
O chamado apenas ficou mais alto.
Talvez algo estivesse errado.
Isso seria tão divertido.
Ela vestiu seu belo traje de carne feminino, aquele que Jim gostara tanto de foder na outra noite. Seu cabelo estava perfeito, como sempre, mas ela checou com as mãos, só para ter certeza.
Continuando onde estava, ela permitiu que Jim entrasse. No momento em que ele apareceu na forma física, sua presença lançou uma onda elétrica pelo corpo de Devina.
Interessante... não havia manifestação de triunfo em seu rosto, nada de se gabar da vitória, nada de jogar sua vantagem na cara dela.
Ele ficou lá de pé na frente de Devina, sem parecer abatido, mas também sem se vangloriar.
Ela estreitou os olhos.
– Você não veio fazer piadinhas?
– Eu não perderia meu tempo com isso.
Não, provavelmente não. Mas ela faria – pelo jeito, essa parte Jim puxara de Nigel.
– Então, por que está aqui? – ela desceu da mesa com um pulo e andou em um círculo ao redor de Jim. – Não estou com vontade de transar.
– Nem eu.
– Então...?
– Estou aqui para entrarmos em um acordo.
Ela riu na cara dele – e considerou cuspir também.
– Já fizemos isso uma vez e, caso não se lembre, você não manteve sua parte do acordo.
– Mas agora eu vou.
– Como posso acreditar? E quem disse que estou interessada?
– Você está interessada.
Ela parou em frente à mesa de tortura e pousou a mão na superfície, tentando lembrá-lo que abusara dele em cima daquela coisa.
– Duvido.
O anjo tirou o braço de trás das costas e em sua mão havia... uma bandeira da vitória.
Devina levantou as sobrancelhas.
– Está aprendendo a costurar?
Ele balançou levemente a bandeira.
– Eu tenho algo de que você precisa. Você tem algo que eu quero.
O demônio parou de respirar – mesmo não precisando de ar para sobreviver. Ele estava realmente sugerindo... que simplesmente lhe entregaria uma de suas vitórias?
Bom, isso fazia parte das regras, ela pensou. Ao menos tecnicamente. Aquela vitória era propriedade dele... e Devina achava que ele podia transferir a posse, se assim desejasse.
– Nigel sabe o que você está fazendo? – ela disse suavemente.
– Não estou falando dele. Isto aqui é apenas entre eu e você.
Ah, então o arcanjo deve ter ficado furioso com isso... ou ainda não sabia.
Se isso funcionasse, o placar ficaria empatado em dois a dois, em vez de três a um. Seria outro jogo.
O demônio começou a sorrir.
– Diga, meu amor... o que você quer em troca?
Mas ela sabia muito bem.
Bom, bom, bom, não é que o jogo iria se tornar muito interessante daqui para frente? E parecia que sua terapeuta estava certa: era possível, com exposição suficiente, reprogramar seu cérebro – ou o cérebro de outra pessoa – para produzir a reação desejada.
Toda aquela tintura de cabelo valera muito, afinal – exatamente como dizia a propaganda da L’Oréal.
Devina se aproximou de seu amante cheia de segundas intenções – sua sexualidade florescia em meio ao tenso silêncio.
– Diga, Jim, e talvez eu pense no assunto. Mas eu quero ouvir você dizer as palavras.
Ele demorou para responder.
Mas então, Jim falou, em claro e bom som:
– Eu quero a Sissy.
EPÍLOGO
Três semanas depois...
– Você está pronta?
Mels assentiu e apertou os olhos debaixo do sol forte do meio dia. Protegendo os olhos com as mãos, ela disse:
– Mal posso esperar.
A Redd’s Garage & Service era o tipo de lugar de que seu pai seria cliente: uma oficina mecânica cheia de sujeitos das antigas, com tatuagens do exército, graxa nas mãos e ferramentas, em vez de computadores, para fazer o trabalho.
E, diferente da oficina Caldwell Auto, eles consideravam que valia a pena salvar a Fifi.
O velho Civic estava sendo apresentado ao estilo das grandes revelações da West Coast Choppers.
Afinal, a volta triunfal da lata velha de Mels era mesmo um milagre digno de fanfarra: de algum jeito, a equipe conseguira ressuscitar o carro.
– Oh, olhe para ela! – Mels se aproximou enquanto o mecânico saía de trás do volante. – É... um verdadeiro milagre!
Essa era a única palavra que aparecia em sua mente: seu carro velho de guerra fora ressuscitado de seus ferimentos catastróficos e podia mais uma vez botar o pé na estrada.
Francamente, ela sentia mais do que afinidade com o Civic. Mels enxergava uma similaridade entre suas jornadas: ela própria passara por uma grande colisão, conseguira se recompor e agora estava pronta para voltar à ativa. Com a ajuda de Fifi, é claro.
– Eu agradeço muito a você – ela murmurou, piscando rápido por causa do sol.
Assinou rapidamente alguns papéis e então sentou no banco do motorista, passando as mãos lentamente no volante. Partes do painel precisaram ser substituídas por causa do air bag, e a Fifi cheirava diferente – um pouco como produtos de limpeza. Mas o som era o mesmo e o jeito de dirigir também.
Mels fechou os olhos brevemente quando aquela dor familiar surgiu novamente.
Então os abriu, esticou o braço e colocou o cinto de segurança. Com o cinto no lugar, ela engatou a primeira marcha e acelerou devagar até entrar no trânsito.
As últimas três semanas foram... esclarecedoras. Assustadoras. Solitárias. Afirmativas.
E seu consolo, com exceção do trabalho, foi colocar tudo no papel... desde histórias de seu pai, passando pelos detalhes do homem por quem se apaixonou, até a conclusão de tudo.
Bom, pelo menos parte da conclusão.
Entrando na via expressa, ela permitiu que os outros carros determinassem a velocidade, em vez de dirigir apressada entre eles. E parou em uma padaria na volta para casa, pois já passava da hora do almoço e ela estava cansada e com fome depois de empacotar tudo em seu quarto e colocar sua vida inteira dentro de um trailer de mudança U-Haul.
A viagem para Manhattan seria apenas na manhã seguinte, então pensou que quando chegasse em casa poderia tirar um cochilo na varanda.
Engraçado, ela vinha fazendo muito isso ultimamente: se esticado no sofá que ficava de frente para o jardim, com a cabeça deitada no travesseiro macio, as pernas cruzadas nos tornozelos, um cobertor protegendo-a até os quadris.
Mels tinha muito sono atrasado para compensar.
Logo após Matthias ter morrido na sua frente, ela não conseguiu dormir por vários dias, sua mente girando com uma ferocidade que a fez sentir que estava ficando maluca. Ficou obcecada em rever toda a história de novo e de novo, desde o acidente em frente ao cemitério até a bala que atingiu Matthias no caminho de cascalho. Desde encontrá-lo no hospital até dividir a cama com ele. Desde suas suspeitas aumentando, até ela se apaixonar novamente.
Além do pen drive.
Quando se aproximou de obras na pista, onde o trânsito estava mais lento, Mels olhou para o rádio. Preparando-se para o que estava por vir, esticou o braço e apertou o botão.
– ... uma explosiva investigação conduzida pelo New York Times sobre uma organização misteriosa que, por décadas, operou debaixo do radar da nação, conduzindo missões em território nacional e internacional...
Ela desligou imediatamente.
Olhando através de seu novíssimo para-brisa, Mels apertou o volante.
Depois de três dias sem dormir e pensando nas opções que tinha, ligara para seu contato no Times e pedira uma reunião pessoalmente.
Quando entregou o pen drive – e o nome de Isaac Rothe – para Peter Newcastle, suas únicas condições eram que ele não perguntasse onde ela conseguira aquilo e que não tentasse continuar a história com ela, pois Mels não tinha mais nada para acrescentar.
A notícia finalmente veio a público na manhã anterior, na primeira página de um jornal que possui todos os recursos necessários, além de coragem e alcance mundial para fazer justiça àquelas informações. E as consequências já estavam surgindo: agências do governo negando tudo, senadores e congressistas encarando câmeras e microfones com indignação, o presidente de entrevista marcada com Brian Williams para o horário nobre.
No final, Mels decidiu dar para outra pessoa a história que faria uma carreira, por duas razões: primeiro, ela valorizava demais sua vida para querer correr o risco de retaliações; segundo, se ela assinasse com o próprio nome, isso significaria que ela usara Matthias, que ele não fora nada mais do que uma fonte, que ela o ajudara não por bondade, mas para benefício próprio.
Era quase o mesmo pensamento que ele teve ao dar as informações para provar que estava sendo sincero – Mels repassou as informações, para que ninguém nunca pudesse dizer que ela não o amava de verdade.
Não que alguém soubesse dessa história.
Pelo menos, não a história verdadeira. No jornal não havia nada sobre sua morte – ou seu corpo. E quando Mels voltou àquela garagem, durante suas 72 horas de loucura, tudo o que encontrou foi uma cena de crime que voltou a ser interessante para a polícia.
Tudo desaparecera. Os veículos, os objetos pessoais, qualquer sinal de que alguém habitara o local.
Jim Heron e seu amigo haviam sumido.
E as pistas acabaram ali.
Foi estranho. Ela voltou a dormir depois de sua viagem para Manhattan, onde se reuniu com Peter. E foi assim que soube que fez a coisa certa com o pen drive.
Porém, Mels não esperava que ele a procurasse novamente.
Três dias antes de a reportagem ser divulgada, ele ligou para lhe contar que o enorme artigo seria publicado – e lhe ofereceu um emprego. Disse que gostaria de alguém com aquele tipo de foco e perseverança para trabalhar em uma posição júnior – e Mels o interrompeu imediatamente, explicando que uma fonte lhe entregara o pen drive do jeito que estava, ou seja, ela não fez nada para compilar, organizar ou formatar a informação.
– Mas você conseguiu a fonte, não é mesmo?
Bom, sim. E teve seu coração partido no processo.
No final, ela acabou aceitando a oferta. Ela não era idiota – e estava pronta para voltar ao trabalho pesado e às longas horas na redação. Talvez isso ajudasse a administrar a dor...
Deus, ela sentia saudades de Matthias.
Ou, na verdade, sentia por aquilo que eles poderiam ter tido.
Pois ele dissera a verdade. Sobre tudo.
Entrando na garagem de sua mãe, Mels estacionou a Fifi atrás do caminhão da mudança e deixou a janela do carro aberta, já que o céu estava claro e sem nenhum sinal de chuva.
Na cozinha, ela comeu sobre a pia metade do sanduíche que comprara na padaria, bebeu o refrigerante e limpou tudo, para caso sua mãe chegasse mais cedo de seu piquenique no Lago George.
Sofá?
Ora, mas é claro... por favor.
Pisando nas tábuas do chão da varanda, ela abriu as janelas e sentiu o calor vindo da rua. Lá fora fazia 24 graus e o ar cheirava a grama fresca, pois o jardineiro fizera seu trabalho pela manhã.
O sofá estava perfeitamente macio e acolhedor e, ao deitar-se, Mels pegou o cobertor e cobriu as pernas, como sempre fazia. Aconchegando-se, ela olhou ao redor para os vasos de plantas em cima das mesinhas, a cadeira de balanço e a velha poltrona no canto. Tudo tão familiar, tão seguro.
Não percebeu quando fechou os olhos e dormiu... mas um pouco mais tarde, um estranho som a acordou.
Um tipo de arranhão.
Esfregando o rosto para acordar, ela levantou a cabeça do travesseiro. Do outro lado da porta de tela, havia um cãozinho com o pelo todo desarrumado, a cabeça baixa, os olhos escondidos pelas sobrancelhas.
Mels sentou-se.
– Ei... olá, você.
O cão arranhou novamente, mas com cuidado, como se não quisesse estragar a tela.
– Ah... acho que não somos o tipo de família que possui um cãozinho... – eles nunca tiveram um cachorro. – Você está perdido?
Ela achou que o cão fugiria quando ela se aproximasse, mas ele apenas sentou ao lado da porta, como se quisesse mostrar um gesto de educação.
No momento em que Mels abriu a porta, ele entrou na varanda e se deitou enrolado nos pés dela.
Abaixando-se, ela procurou por uma coleira com seu nome ou algo assim.
– Olá.
Mels congelou.
Então ela se virou tão rápido para a porta que acabou caindo.
De pé, debaixo do sol, entre os batentes da porta... estava Matthias.
Mels agarrou a própria garganta e começou a respirar com dificuldade.
Ele levantou uma das mãos.
– Eu... ah... pois é... oi.
Enquanto ele gaguejava, Mels pensou que finalmente acontecera: ao invés de melhorar, seu cérebro pirou de vez.
Espere um pouco, isso deve ser um sonho.
Certo? Era apenas um sonho – ela dormira no sofá e agora estava imaginando aquilo que gostaria que acontecesse.
A voz dele soava perfeita em seus ouvidos.
– Eu sei que eu disse que nunca voltaria, mas pensei que talvez, agora que a história foi publicada, você pudesse me ver.
– Você está morto.
– Não – Matthias levantou o pé como se fosse entrar na varanda, mas parou. – Posso entrar?
Mels assentiu, ainda chocada – afinal, havia outra reação possível?
E no sonho, a aparência de Matthias era a mesma de antes: alto, rosto endurecido, intenso. Porém, ele não mancava, e os olhos e cicatrizes estavam iguais à última vez em que o vira.
Depois que aquele anjo recebeu seus ferimentos.
Matthias se encostou no batente da porta.
– Fiquei surpreso por você dar a história pra outra pessoa.
Bom, quem diria, seu subconsciente estava em dia com os acontecimentos.
– Era a coisa certa a fazer. A escolha mais segura.
– Sim, eu...
– Eu te amo – agora, foi a vez dele ter um sobressalto. – Desculpa, mas eu precisava dizer isso. Vou acordar deste sonho em pouco tempo e eu me arrependeria se não te dissesse isso ao menos uma vez. Mesmo que seja apenas em meus sonhos.
Matthias fechou os olhos como se estivesse absorvendo um golpe físico.
– Eu sei o que o anjo fez com você – ela explicou. – Com sua visão e ferimentos. Então, agora sei que você não mentiu sobre isso. Ou sobre seus sentimentos. E, pra ser honesta, isso é a única coisa que está me ajudando a superar esses dias difíceis.
Depois de um tempo, ele abriu os olhos.
– Isto não é um sonho.
– É claro que é.
– Estou vivo, Mels. Estou aqui de verdade.
– É claro... – o que mais ele diria naquela reconstrução da realidade que sua mente estava encenando? – Só quero que saiba que entendo suas razões pra fazer o que fez, e que estou realmente feliz por você ter entregado todas aquelas informações sobre as Operações Extraoficiais. Você fez a coisa certa. Foi uma boa maneira de terminar tudo. Então, o Inferno não pode ser seu destino final. Não é mesmo?
Matthias se aproximou e ajoelhou no tapete verde-claro que imitava grama.
– Isto não é um sonho – ele esticou um braço e tocou o rosto dela com a mão trêmula. – Confie em mim.
– É exatamente o que eu gostaria que você falasse – ela murmurou, segurando o pulso dele, mantendo-o no lugar. – Oh, Deus...
Ao respirar fundo, o coração partido de Mels doeu tanto que ela mal podia aguentar – pois sabia que acordaria logo e tudo terminaria, e teria de voltar para um mundo onde sentia uma imensa saudade, onde as coisas que deveriam ter sido ditas não foram, onde aquilo que poderia acontecer nunca aconteceu.
Um lugar solitário. Um lugar frio.
– Venha aqui – ele disse, puxando-a para perto de seu peito.
Ela deixou-se guiar e pousou o rosto contra o corpo dele, ouvindo a batida vital de seu coração dentro do peito. E Matthias começou a falar com ela, dizendo novamente como aquilo era real, com a voz grave e rouca, como se estivesse lutando contra as próprias emoções.
Quando um nariz frio e molhado encostou no braço de Mels, ela se afastou.
– Olá, você.
– Vejo que você já conheceu o Cachorro – disse Matthias.
– Ele é seu?
– Ele é de todo mundo.
Como é?
– Ele apareceu aqui do nada. Um pouco antes de você.
– Porque ele gosta de você. E... por acaso você tem um pouco de comida? Acho que ele está com fome.
– Tem só metade de um sanduíche.
O pequeno cão sentou e balançou o rabo, como se tivesse entendido cada palavra e não se importasse de comer o resto da refeição de Mels.
Por algum motivo, ela mal podia acreditar que eles estavam conversando tão normalmente sobre um sanduíche de padaria. Mas nos sonhos coisas estranhas acontecem.
– Oh, olá! Quem é o seu amigo?
Mels teve um sobressalto e olhou para a cozinha através da porta aberta: sua mãe estava de pé lá dentro com uma sacola nos ombros, o nariz bronzeado e um sorriso no rosto.
– Mãe?
– Voltei pra casa um pouco mais cedo – ela guardou a sacola e arrumou o cabelo. – Você não vai nos apresentar?
De repente, a voz de seu pai apareceu na mente de Mels, dizendo que não é preciso acreditar em algo para que seja verdade.
A pele de Mels começou a se arrepiar da cabeça aos pés enquanto seus olhos iam e vinham passando por sua mãe e por... bom, seja lá o que ele fosse.
Quando um silêncio constrangedor surgiu no ar, ela tomou a mão de Matthias e apertou o máximo que podia. Até ele reclamar um pouco.
E foi assim que soube.
Aquilo... não era um sonho.
Certo, Matthias nunca esperara conhecer os pais de qualquer mulher – e certamente não daquela maneira... com a mulher que amava pensando que ele era um fragmento de sua imaginação e sua mãe parada na porta como se não soubesse se deveria tentar falar de novo... ou desaparecer completamente.
Antes que as coisas ficassem ainda mais esquisitas, ele tirou Mels de seus braços e se levantou. Ajeitando a camiseta, ele desejou não estar parecendo um mendigo, mas sua imagem era exatamente essa. Ele não tinha onde morar, mas pelo menos estava com a barba feita.
Nas últimas três semanas, Matthias se hospedara em alguns hotéis da região, mantendo um olho em Mels e vigiando à distância para ter certeza de que ela estava bem. E estava mesmo.
O que não significa que não houve algumas surpresas. Em todas aquelas manhãs em que ela dirigira até a redação do jornal, Matthias achava que Mels estava trabalhando na história, mas não. Após aquela viagem para Manhattan – na qual, claro, ele a seguira, aproveitando para pegar seus suprimentos de emergência – ela não mais saiu de casa para o trabalho.
Foi apenas quando a história foi publicada no jornal, no dia anterior, que Matthias entendeu o que ela fez.
De alguma maneira, ele a amou ainda mais por causa disso.
Ele se aproximou e estendeu a mão.
– Ah... eu sou o Matt. Um amigo de Mels.
Sua mãe não era nada como ela: baixinha, mais delicada, com cabelos grisalhos e olhos verde-claros – mas era absolutamente adorável... e com um aperto de mão firme que imediatamente o lembrou de Mels.
– Meu nome é Helen. Estou muito feliz em te conhecer – o que, considerando a maneira como seus olhos brilhavam, era verdade. – Você vai ficar pro jantar?
Ele olhou para Mels. Quando pareceu que ela seria incapaz de responder, Matthias pensou, por que não?
– Sim, senhora. Se vocês aceitarem minha companhia.
– Oh, que maravilha! – Helen bateu as mãos juntas e então se abaixou para a bola de pelo que havia se aproximado para dar as boas-vindas a ela em sua própria casa. – Este cachorro é seu?
– Ele é de todo mundo – Matthias e Mels responderam ao mesmo tempo.
– Bom, ele também é bem-vindo. Sim, você é, cachorrinho! – depois de brincar um pouco com ele, Helen olhou para cima. – Vou sair e comprar uns hambúrgueres pra colocarmos na grelha. Vai ser ótimo, a noite será agradável e temos que aproveitar o clima enquanto podemos.
A mulher levantou, pegou as chaves e saiu – como se soubesse que eles ainda precisavam conversar longe dos ouvidos de terceiros.
Com exceção de ouvidos caninos, é claro.
Matthias olhou para Mels, que o encarou de volta.
– Você realmente está de volta?
Ele assentiu.
– Sim.
– Eu vi você morrer.
Ele respirou profundamente. Matthias passara muito tempo pensando em como explicaria tudo isso para ela, e então decidira que, se tivesse a oportunidade, ele seria vago. Não havia razão para ela pensar que estava mentindo – ou que tivesse alguma doença mental.
– Pois é, pareceu que sim.
– Você esteve num hospital? Pra onde levaram você?
– Jim tomou conta de mim.
– Achei que isso significava que ele enterraria seu corpo.
Com o tempo, pensou, ele explicaria tudo. Mas parecia que o cérebro de Mels estava dando um nó naquele momento. Então, pois é, dizer algo do tipo estive-no-Céu-e-bati-um-papo-com-Deus provavelmente não era uma boa ideia.
– Mas não foi preciso – ele se abaixou. – Vamos apenas dizer que fui salvo. No final... fui salvo, e desde então só consegui pensar em voltar pra você.
Lágrimas caíram dos olhos dela.
– Achei que nunca mais iria te ver.
– Estou aqui. Então, você vai deixar eu te beijar agora?
Ela esticou o braço envolvendo seu pescoço, suas bocas se encontraram e os dois se tornaram apenas um novamente.
E aquilo foi melhor do que o próprio Céu.
De fato, se não fossem os vizinhos, ele a teria possuído ali mesmo – mas haveria tempo e privacidade para isso mais tarde.
Se Deus quiser.
Após o beijo, ele acariciou o cabelo dela e colocou uma mecha atrás da orelha.
– Tem uma coisa que você precisa saber. Eu não vou me entregar.
– Para as autoridades?
– Se fizer isso, serei morto na prisão. Talvez por um agente, talvez por um velho inimigo... e eu já cumpri meu tempo de prisão. Já paguei por meus pecados.
Aquela passagem pelo Inferno foi merecida e, apesar de na Terra o tempo ser medido em dias, lá embaixo se passara uma eternidade, uma verdadeira prisão perpétua.
– E eu juro pra você, chega de mentiras, chega de enganação, chega disso tudo. Vou trabalhar em um supermercado, em um posto de gasolina, em qualquer lugar... Mas vou arranjar algo e será algo honesto.
Mels observou o rosto dele, então passou a mão pela face até o queixo.
– Se você está em paz, então eu estou em paz – ela murmurou. – Quem sou eu pra julgar? E é engraçado: meu pai iria gostar da maneira como você age. Não estou dizendo que é um jeito certo, mas... você sempre foi bom pra mim e talvez eu seja egoísta por pensar assim, mas isso é tudo o que importa. Bom, isso e a sua atitude de vazar as informações sobre a organização.
– Essa parte da minha vida terminou. Para sempre – graças, em grande parte, a ela... e a Jim Heron... Matthias simplesmente já não tinha mais aquela maldade dentro de si.
Quando Mels começou a sorrir, ele a beijou novamente, demorando-se em sua boca, segurando firmemente as curvas do corpo dela.
– Eu te amo – ele disse.
Mels devolveu as palavras contra seus lábios e ele as absorveu por inteiro, não só as palavras, mas tudo aquilo – a salvação, o alívio, a pura alegria de estar com ela. E também pensou sobre Jim Heron e o quanto ainda devia para o cara.
Ele não encontraria mais aquele homem; sabia disso em seu íntimo. Mas tudo bem. Tudo estava bem, desde que tivesse Mels.
Um latido fez os dois desviarem a cabeça.
O Cachorro tinha ido até a cozinha e estava sentado de frente para a geladeira, com uma pata levantada no ar.
Melhor assim, Matthias pensou. Ele estava quase arrancando as roupas de Mels.
Enquanto andavam até a cozinha, ele perguntou:
– Por acaso esse sanduíche é de peru?
– Pra falar a verdade, é sim.
Matthias se inclinou e beijou o rosto de Mels.
– Perfeito. O Cachorro adora sanduíche de peru.
– Então ele pode comer tudo o que restou e qualquer outra coisa que tiver na geladeira.
Ao abrirem a porta, o cãozinho andou ao redor de seus pés, o rabo abanando, e a perna manca não diminuía nem um pouco seu ritmo e entusiasmo.
Matthias beijou sua mulher novamente.
Então, eles se ajoelharam e cuidaram do cãozinho, entregando-lhe o sanduíche pedaço por pedaço... juntos.
Afinal, era o mínimo que poderiam fazer, pensou Matthias. Considerando que Deus lhe deu tudo o que ele pediu... e que não poderia viver sem.
J. R. Ward
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