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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FEBEAPÁ 1 / Stanislaw Ponte Preta
FEBEAPÁ 1 / Stanislaw Ponte Preta

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

  

— AMIGO COMO Sérgio Porto a gente só acha um num milhão" — me disse Lan. E conta: quando ele, Lan, deprimido e com uma úlcera perfurada, cismou de morar em Paris, depois da Copa da Inglaterra, Sérgio adiou sua volta ao Brasil, ficou quinze dias na casa do caricaturista até convencer o carioca honorário, casado com Olívia — uma das legendárias Irmãs Marinho — portelense e flamengo doente, de que ele não tinha nada a fazer na Europa e que o jeito era voltar para o Terceirão.

— "Com seu jeito brincalhão, sempre que me via ca­lado e arredio — logo eu que falo pelos cotovelos", conti­nua Lan — "não sossegava enquanto eu não me abria com ele."

— "O que há com você, Italiano?" — e sempre dava um jeito de me dar força.

Um ano depois de sua morte, Luís Carlos Maciel es­creveu no Pasquim, de 25 de setembro de 69: "Sérgio tinha uma espécie de amor à primeira vista por toda a humanidade (...) a bondade dele aprendera a mover-se no pântano venenoso em que a cidade se tornou, principal­mente nos seus bares, seus jornais, suas estações de tele­visão, e o enfrentava com paciência e bravura." Quando Maciel esteve desempregado, numa fase de baixo astral, Sérgio não lhe faltou. "Ele chegou junto de mim e disse: 'Estive pensando num troço, sabe? Tenho um secretário, mas acho que estou precisando de outro. Se você quises­se topar, seria ótimo.' Disse isso absolutamente descon­traído, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Eu entendi. Recusei, é claro (...) Com um simples gesto, ele havia despertado o melhor de mim, a minha força, se é que vocês entendem o que quero dizer."

Comigo também não negou fogo. Depois que fiz con­curso para o Banco do Brasil e fui aprovado — tinha desis­tido da Marinha Mercante por motivos que não vêm ao caso - mandaram que me apresentasse na Agência Cen­tro, onde hoje é a cinemateca do Centro Cultural do BB. Minha função seria datilografar ordens de pagamento.

Virei-me para o funcionário que deveria conferir o meu trabalho.

- Não me leve a mal, companheiro, mas vou desis­tir; é que não sei bater à máquina — e fui me levantando para ir embora.

- Peraí, - cortou o ex-quase conferente - isso não é problema. A gente ganha aqui uma grana razoável (era 53, e o banco não pagava a micharia de hoje), o horário é ótimo (e bota ótimo nisso; das três às oito da noite). Olhou-me com aquele jeito de gozador, e completou:

- Qualquer idiota é capaz de aprender a bater à má­quina, até você.

A esta altura é desnecessário dizer que o conferente era nada mais nada menos que o próprio, Sérgio Porto.

De fato, fiz um curso intensivo; em menos de duas semanas já estava me garantindo nas pretinhas.

Pouco tempo depois Sérgio se demitiu do Banco. Graças ou por culpa dele, ainda fiquei ralando lá 17 anos até fazer o mesmo. Nessa época Stanislaw Ponte Preta ain­da não tinha nascido. Mas Sérgio Porto já assinava crôni­cas na Tribuna da Imprensa. E eu nem pensava em ser desenhista. Anos mais tarde fui ilustrador de praticamen­te todos os livros do Stanislaw. O que é a natureza!...

No Pasquim, dois anos depois dele nos ter deixado, foi Millôr Fernandes quem tomou a palavra: "Nas areias fofas de Copacabana ou nas dunas ondulantes de Ipane­ma, as dores ladravam e Sérgio Porto passava. Eu brinca­va, sempre que ele me contava um caso de envolvimento pessoal que abalaria qualquer tronco de ipê Se eu tivesse 15% do seu cinismo seria um homem imensamente feliz. Ele ria, saudável, e continuava recortando, no violento sol da praia, pedaços de jornais que lia sem parar, apro­veitando o tempo. Pois era, como quase todos os humo­ristas brasileiros, um terrível trabalhador braçal. Sua ex­traordinária competência ele a adquiriu cavucando uma datilográfica dez horas por dia, dezesseis anos seguidos."

Como os humoristas e os cariocas em geral, traba­lhava como um mouro — se é que os mouros trabalham, pra mim são é de mascar tâmaras à sombra das palmeiras dos oásis — mas disfarçava bem. Num dia em que fui levar as ilustrações de um de seus livros ao apartamento na Leo­poldo Miguez, em Copacabana, me disse com cordial fatalismo:

- Só levanto os olhos da Olivetti para pingar colírio.

Fomos colegas de banco menos de um ano. Mas foi bom enquanto durou. A gente sempre ia fazer um lanche lá pelas cinco da tarde num boteco em frente à agencia,

na esquina de Primeiro de Março com Buenos Aires. Era um desses bares que hoje só existem nas letras de Noel Rosa, onde se podia pedir uma "média com pão e mantei­ga à beca" sentado numa daquelas mesinhas de tampo de mármore que agora custam uma nota preta nos antiquários. No lugar do boteco atualmente tem, é claro, um ban­co. Num daqueles lanches descobri, toda empoeirada numa prateleira quase no teto do boteco, uma garrafa de Johnny Walker. Virei-me para o garçom:

— Duas doses daquela bebida ali.

O cara subiu numa cadeira e trouxe o precioso néctar escocês. Botou na nossa frente dois copos de geléia e encheu até a borda, sem gelo nem nada. Sérgio me pis­cou o olho. Evidentemente aquele garçom nunca tinha servido uma dose de scotch em toda a sua vida.

Durante quase uma semana a cena se repetiu. A gen­te chegava e dizia "o mesmo de sempre". Voltávamos meio adernados para a seção de Telegramas e não quero nem imaginar os prejuízos que demos ao banco, eu de porre batendo as ordens de pagamento e ele, não menos, con­ferindo meu trabalho.

Sempre detestei, como todo biriteiro, aquele medi­dor de uísque, mas pela primeira vez — e última — adorei o sinistro objeto depois que o português da caixa, flagran­do o garçom enchendo até transbordar os nossos copos, deu-lhe a maior bronca e mandou servir as doses com o medidor, sem choro nem vela.

Foi assim que nos salvamos da cirrose.

Sérgio, eterno moleque, com a minha total cumplici­dade, passava no Lidador e comprava duas garrafas de cerveja tcheca, que mais pareciam de champanhe, com papel metálico dourado no gargalo. Deixava na geladeira do nosso boteco; na hora do lanche gritávamos para o garçom, para todo mundo ouvir:

—Aquela cervejinha especial! E lá vinham, fulgurando na bandeja, e ele nos servia a loura gelada do primeiro mundo. Aí, todos os vagabundos do pedaço, de olho rútilo, pediam também. A resposta do garçom era sempre a mesma:

— Essas eram as últimas.

Saíamos do trabalho às 7:30 e íamos esperar o ôni­bus 12 — Central do Brasil-Ipanema — que o carioca tinha apelidado de Camões; o motorista ficava numa espécie de carlinga que avançava paralela ao motor, de modo que o ônibus parecia ter um só olho, daí o nome. Morávamos em Copacabana e enquanto esperávamos diminuir a fila e acabar o rush, ficávamos nas mesinhas da calçada do Sim­patia, na Rio Branco quase esquina da Miguel Couto, to­mando chope com colarinho e comendo o inimitável san­duíche de presunto na fôrma que vinha envolvido num guardanapo úmido e que os anos não trazem mais.

Para passar o tempo instituímos o concurso Miss Fila em que, júri soberano, elegíamos uma Miss todos os dias. Como eu era mais cara de pau que Sérgio, no fundo um tímido, — como vocês verão adiante — era o encarregado de comunicar à vencedora a boa notícia. O prêmio era sentar à nossa mesa, o que — fato para nós inexplicável — era recusado por 95% das candidatas, às vezes de maneira até desaforada, incompatível com uma Miss.

Mas já considerávamos lucro os 5%. E muito mais o 1% que topava algo mais que um chopinho ou o imbatível refresco de coco do Simpatia. Ele era um cara boa pinta. Como disse Millôr, "numa época do Brasil em que os al­tos eram poucos e os louros, importados."

Outro lance que não esqueci. Tinha um caixa do BB que não primava pelo bom humor, muito pelo contrário. Tinha maus bofes e tratava todo mundo da fila com a mai­or ranhetice. Naquela época, os caixas ficavam dentro de uma espécie de gaiola metálica e Sérgio fez todo mundo se engasgar de rir — menos o tal caixa, é claro — quando pendurou numa barra da gaiola da fera um papelzinho escrito "é proibido alimentar os animais".

Por muito tempo foi um gozador de tudo e todo mundo. Tem o lance com o comentarista esportivo José Inácio Werneck, num hotel de Liverpool, durante a Copa da Inglaterra. Os jornalistas estavam no saguão do hotel quando Werneck, num blazer impecável, cachimbo de matar de inveja Sherlock Holmes, ar mais British que David Niven, veio descendo as escadas. Sérgio não perdoou: "Eu já vi esse filme". E emendou de primeira: "Você mor­re no fim".

Eu mesmo, quando bobeava, caía feito um patinho. Estava jantando com minha mulher no La Molle, no Leblon, quando ele adentrou o recinto com uma das "certinhas", que era a sua paixão na época.

— O que vocês estão comendo? — quis saber.

— Truta com alcaparra — e acrescentei, piscando o olho — dizem que é afrodisíaco. Pra quê? Tive que ouvir a seguinte pérola:

— Agora é tarde. Já trepamos.

Apesar dessas tiradas entre amigos, ele não era um frasista full time, em qualquer ocasião, como Otto Lara Rezende ou Paulinho Garcez. Porque Sérgio era um tími­do. Para quem o conhecia através do Febeapá e das histó­rias do Primo Altamirando, o nefando, deve ser difícil de acreditar. Mas era. A tal ponto que, quando começou na televisão, pedia para ser focalizado de costas. Até que se familiarizou com o que chamava de "a máquina de fazer doido". Depois que perdeu o medo das câmeras, fazia imitações, pintava o sete. Mas continuou, a vida toda, um tímido. Muitos confundiam a timidez com arro­gância.

Lan observou muito bem que Sérgio, como João Sal­danha, escrevia exatamente como falava. Parece que Bossuet deu uma de profeta quando escreveu que o estilo é o homem. Certas frases suas permanecem superatuais. Pro­va disso é uma seleção que fizemos no Pasquim. Podem anotar: "A prosperidade de certos homens públicos no Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento". "Pelo jeito que a coisa vai, breve o terceiro sexo estará em segundo". "Há sujeitos tão inábeis que sua ausência preenche uma lacu­na". "O sol nasce pra todos e a sombra pra quem é vivo". "Tirante mulher, a gente deve sempre recomendar aquilo que experimentou e gostou."

Ibrahim Sued, incansável bajulador do poder, era um dos seus alvos prediletos. Uma vez Stanislaw agradeceu sua abundante contribuição ao Febeapá — "Ibrahim, Ibrahim, se não fosse você, o que seria de mim?" Ainda recentemente, o arguto cronista que descobriu que cava­lo não desce escada soltou uma pérola que certamente iria para o quadro de honra do Febeapá: "o ministro Haddad me disse que está alarmado com o embrião da cólera"...

Stanislaw não teve sua lacuna preenchida por nin­guém. O Febeapá está fazendo mais falta do que nunca. Atingiu proporções inigualáveis, com a inflação, a corrup­ção e a falta de compostura chegando a um nível que nem Sérgio Porto e Stan, juntos, jamais teriam desconfiado.

Já se vão 25 anos que ele foi embora, enquanto os ibrahins da vida continuam besteirando impunemente. Se o Barão de Itararé foi o avô do Pasquim, Stanislaw foi o pai. Verdade: sem ele o Pasquim não teria existido. Du­rante algum tempo foi o editor d’A Carapuça, um tablóide de humor. Quando morreu, em 68, o jornalzinho po­deria ter continuado tranqüilamente a sair, uma vez que os textos eram escritos pelo jornalista e ex-aeronauta Alberto Eça que fazia um pastiche perfeito do estilo de Stanislaw, que se limitava a dar uma penteada final. Mas ia ser chato convencer os leitores que não fossem espíritas de que o jornal passaria a ser psicografado. Os donos cha­maram Tarso de Castro para ser o editor e ele me pergun­tou o que eu achava. Sugeri que se fechasse A Carapuça para lançar outro jornal. Surgiu o Pasquim.

O responsável pela sua sólida formação literária e musical foi seu tio Lúcio Rangel, não fosse ele Sérgio Ran­gel Porto. Tio e sobrinho foram responsáveis por um acon­tecimento importantíssimo na música popular brasileira: a redescoberta do talento de Cartola. Segundo Otelo Ca­çador, foi assim: os dois estavam tomando uma cervejinha num bar na Leopoldo Miguez, em Copacabana, quan­do acharam familiar um crioulo que estava lavando carros na esquina. Aquele nariz em forma de couve flor era in­confundível. Sérgio foi até lá e assoviou para o flanelinha um samba de Cartola.

— Conhece esse samba? — perguntou. E assoviou um trecho de outro. Cartola, meio ressabiado, diante daque­le sujeito rosado, de paletó e gravata — seria um delega­do? — disse que sim, que conhecia.

— E quem é o autor? Não é o Cartola?

— É, sim senhor.

— E por acaso você não é o Cartola?.

O lavador de carros fez uma cara de "pronto, me apa­nharam" e confirmou.

Sérgio arrumou um emprego para ele na Última Hora e sempre deu a maior força para o grande compositor da Mangueira.

Se não fosse Sérgio, anos mais tarde eu não teria tido — Albino Pinheiro está aí pra não me deixar mentir—como jurado num festival de música num subúrbio, o privilégio de ouvir a primeira audição de As Rosas não Falam. Ele também estava no júri e foi chamado ao palco enquanto somavam os pontos dos jurados. Era um profundo conhe­cedor de jazz e samba, via Lúcio, que era seu guru e do seu irmão Fifuca.

Conta Otelo Caçador que foi ele quem inventou a expressão bossa nova. Quando estava engraxando os sa­patos, o moleque batucou na caixa, com as escovas, num ritmo esquisito. Sérgio quis saber que diabo de batida era aquela.

— É bossa nova, doutor.

Sua profunda paixão pelo samba tradicional e pelo dixieland o levou a cometer algumas injustiças. Desde que os Beatles apareceram, por exemplo, só se referia a eles como "as bicharocas britânicas".

Apesar do tamanho, com seus quase l,90m, forte e esportivo (jogava vôlei e era goleiro no futebol de praia) Sérgio não era de briga. E nem precisava, como disse Millôr; Fifuca, seu irmão, faixa preta de judô, sócio atleta do famoso Clube dos Cafajestes, presidido por Carlinhos Niemeyer, brigava pelos dois. Uma vez pegou em São Paulo um avião na ponte aérea porque o tio Lúcio, pequeno mas abusado, principalmente quando tomava umas e ou­tras, ou seja, sempre, tinha se metido numa pancadaria na boate Vogue e apanhado que nem boi ladrão. Fifuca en­trou pela boate que nem um Rambo e, depois de surrar todo mundo, inclusive os leões de chácara, quebrou tudo.

Stan foi o autor do que poderíamos chamar de o maior samba-caricatura de todos os tempos: o Samba do Criou­lo Doido.

Quando a bossa nova vinda das coberturas de Ipane­ma ameaçava passar feito um trator por cima do samba dos morros, ele foi um intransigente defensor dos carto­las, nelsons cavaquinhos e silas de oliveira da vida. O que não lhe impedia de manter afiado seu espírito de crítica.

O Samba do Crioulo Doido é uma devastadora gozação dos sambas exaltação feitos cm cima da história do Brasil. Está atualíssimo, agora que tanto se falou na volta da mo­narquia.

Quando baixou em Sérgio o fero e contundente Stanislaw Ponte Preta — o codinome é uma homenagem a Oswald de Andrade — o escritor abriu alas para o cronista e ficou na sua, deu um tempo.

Se os amigos e fãs não se conformaram com seu de­saparecimento na força dos 44 anos, a literatura brasileira teve uma perda irreparável, palavra usada e abusada, mas que aqui cabe como uma luva. Tudo indicava que Stanislaw, o brincalhão, o homem das certinhas, iria dar espa­ço para o escritor Sérgio Porto, curtido e amadurecido por paixões e desencantos, desenvolver seu enorme ta­lento.

Prova disse foi o livro 64-DC, lançado em primeira edição por José Álvaro e depois pela Codecri, a editora do Pasquim.

Reunia cinco escritores tratando do mesmo tema, a Redentora, que Deus a tenha e o Diabo a carregue: Antô­nio Callado, Marques Rabello, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves e Sérgio eram os autores. O abaixo assinado fez as ilustrações.

Segundo a insuspeita opinião de Antônio Callado, a novela de Sérgio, Um Elefante Chamado Brasil é a me­lhor do livro, com o que concordo inteiramente. É de um lirismo e de uma intensidade dramática extraordinários, mostrando um escritor no pleno domínio de seu ofício. Só nos resta chorar pelos romances e novelas que não escreveu, pela obra que ficou nos devendo. Sacanagem, Sérgio.

                                                                                                                     Jaguar

 

 

 

 

                                                 O Festival de Besteira

 

É DIFÍCIL ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País. Pouco de­pois da "redentora", cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de aparecer, já que a "re­dentora", entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela do dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo - alguns apontavam dois dedos duros, para ambas as coisas) iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar.

Lembrem-se que notei o alastramento do Festival de Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de um nível inte­lectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de matemática, embora sa­bendo que o filho era um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista. Foi um pega-pra-capar e o professor quase penetra pelo cano. Foi preciso que vários pedago­gos da região — todos de passado ilibado — se movimen­tassem em defesa do caluniado, para que ele se livrasse de um IPM.

Mas tais casos, surgidos ainda no primeiro semestre de 1964, foram arrolados no livro "Garoto linha Dura", que antecede este volume na série que se iniciou em 1961 com "Tia Zulmira e Eu" e aumentou nos anos subseqüen­tes com a publicação de "Primo Altamirando e Elas" e "Rosamundo e os Outros". "Garoto linha Dura" apareceu em fins de 1964 e, no ano passado, nenhum livro da série foi publicado. Portanto, as manifestações do Festival de Bes­teira que Assola o País — FEBEAPÁ, para os íntimos — só aparecem no GLD, quando de suas manifestações iniciais e — no presente volume, que leva seu título como home­nagem — estão casos ocorridos no ano passado e no ano corrente de 1966.

O resumo abaixo foi feito na coluna "Fofocalizando", publicada no vespertino "Última Hora", junto com as crônicas que motivaram a série de livros. São apenas tópicos colhidos pela agência informativa "Pretapress" — a maior do mundo, porque nela colaboram todos os leito­res de Stanislaw — e aqui relembrados sem a menor preo­cupação de exaltar este ou aquele membro do FEBEAPÁ. Vão na base da bagunça, para respeitar a atual conjuntu­ra, e sua ordem é apenas cronológica.

O Ministro da (que Deus nos perdoe) Educação, sr. Suplicy de Lacerda, que viria a se tornar um dos mais emi­nentes membros do Festival, reunia a imprensa para ex­plicar aquilo que o coleguinha Nelson Rodrigues apeli­dou de óbvio ululante. Disse que ia diminuir os cursos superiores de cinco para quatro anos. E acrescentou: "Agora, os cursos que tinham normalmente cinco anos, pas­sam a ser feitos em quatro". Não é bacaninha?

Ibrahim Sued, que já era do Festival antes de sua ofi­cialização, estreava num programa de televisão e avisava ao público: "Estarei aqui diariamente às terças e quintas" No mesmo dia, aliás, o Governo tomava uma resolução interessante: depois da intervenção em todos os sindica­tos, resolvia enviar uma delegação à 16a. Sessão do Con­selho de Administração da OIT, em Genebra. O Brasil fa­ria parte, justamente, da Comissão de Liberdade Sindical.

Um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos no Brasil e o Itamaraty distribuiu uma nota avisando que os alemães só jogariam se a partida não tivesse cunho político. "Cunho político" — explicaria depois o próprio Itamaraty, era tocar o hino nacional dos dois países que iriam jogar. Um dia eu vou contar isto aos meus netinhos e os garotos vão comentar: "Esse vovô inventa cada besteira!"

Em Mariana (MG) um delegado de polícia proibiu casais de sentarem juntos na única praça namorável da cidade e baixou portaria dizendo que moça só poderia ir ao cinema com atestado dos pais. No mesmo Estado, mas em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões da polícia pelas arquibancadas dos estádios porque "da­qui para frente quem disser mais de três palavrões, tor­cendo pelo seu clube, vai preso".

Era o IV Centenário do Rio e, apesar da penúria, o Governo da Guanabara ia oferecer à plebe ignara o maior bolo do mundo. Sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando soube que o bolo ia ter cinco metros de altura, cinco toneladas, 250 quilos de açúcar, quatro mil ovos e 12 litros de rum: "Bota mais rum".

O Secretário de Segurança de Minas Gerais, um cava­lheiro chamado José Monteiro de Castro — grande entusi­asta do Festival de Besteira - proibia (já que fevereiro ia entrar) que mulher se apresentasse com pernas de fora em bailes carnavalescos "para impedir que apareçam fan­tasias que ofendam as Forças Armadas". Como se perna de mulher alguma vez na vida tivesse ofendido as armas de alguém!

 

Já era fevereiro quando o diretor de Suprimento, em Brasília, proibia a venda de vodca "para combater o co­munismo". E Minas continuava fervendo: depois de apa­recer um delegado em Ouro Preto que tentou proibir se­renata; depois de aparecer um delegado em Mariana proi­biu namorar em jardim de praça pública; depois de apare­cer um delegado em Belo Horizonte que proibia o beijo (mesmo em estação de trem na hora do trem partir); de­pois de aparecer, na mesma cidade, uma autoridade que não queria mulher de perna de fora no Carnaval, um juiz de menores proibia as alunas dos colégios de fazer ginás­tica "porque aula de educação física não é desfile de per­nas". Mas impressionante mesmo foi o prefeito de Petrópolis, que baixou uma portaria ditando normas para banhos de mar à fantasia. Eu escrevi prefeito de Petrópolis, cidade serrana do Estado do Rio.

Em Niterói — isto é até pecado, cruzes!!! — numa fei­ra de livros instalada na Praça Martim Afonso, a polícia apreendeu vários exemplares da encíclica papal "Mater et Magistra", sob a alegação de que aquilo era material subversivo. Para representar o mês de março de 65 no Festival, isso é mais do que suficiente.

Abril, mês que marcava o primeiro aniversário da "re­dentora", marcou também uma bruta espinafração do Juiz Whitaker da Cunha no Departamento Nacional de Estra­das de Rodagem, que enviara seis ofícios ao magistrado e, em todos os seis, chamava-o de "meretríssimo". Na sua bronca o juiz dizia que "meretíssimo" vem de mérito e "meretríssimo" vem de uma coisa sem mérito nenhum .

Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação lo­cal depois da passagem do equinócio. Um prefeito en­viou a seguinte resposta, à circular: "Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas."

Ainda na faixa do nordeste: um telegrama informava que, para não morrerem de fome, os retirantes nordesti­nos estavam comendo formiga saúva. Isto bastou para que vários jornais consultassem nutrólogos, tendo eles afir­mado que, de fato, a formiga apresentava qualidades nu­tritivas. Era uma temeridade tal afirmação, pois isto talvez fosse o bastante para que tirassem a formiga da boca do nordestino.

 

Uma das mais belas manifestações do Festival, en­tretanto, estava reservada para o mês de maio. Eis a solu­ção encontrada pelos técnicos do Governo para o para­mento dos novos aluguéis. Simplíssimo: no caso de alu­guéis que não sofreram aumento porque o inquilino já pagava a mais do que a majoração autorizada pela lei, a pessoa deve subtrair do aluguel vigente o aluguel que te­ria de pagar por lei e multiplicar a diferença encontrada por 1,079, que dará "X". Depois multiplica o aluguel que seria o corrigido pela lei, por 1,17235 conforme manda a tabela, obtendo o resultado "Y" da terceira operação. A soma de "X"e "Y" é igual ao novo aluguel a pagar.

As besteiras andando soltas pela aí provocaram — como era justo se esperar — mau exemplo em todo o inte­rior. No nordeste de Minas a cidade de Itaboim, que fica à beira da estrada Rio-Bahia, viria para o noticiário depois que o prefeito local plantou lindas e tenras palmeiras para enfeitar a estrada, e a Oposição — com inveja — soltou 100 cabritos de madrugada, que jantaram as palmeiras.

Em Fortaleza um colunista político, irritado com as bandalheiras dos vereadores em nome da liberdade, es­creveu em sua coluna que metade da Câmara era com­posta de ladrões. No dia seguinte saiu fumacinha e fizeram ameaças ao colunista se ele não desmentisse. Ele, em vez de desmentir, ratificou e ninguém percebeu, pois deu uma segunda notícia, dizendo que havia uma metade na Câmara de Vereadores que não era composta de ladrões.

Chovia muito em maio e os sonegadores do leite es­tavam em plena sonegação sem a menor punição. Houve um cavalheiro, presidente da CCPL e da Cia. Fluminense de Laticínios que veio a público para explicar que, com chuva, as vacas dão menos leite. O interessante é que a Holanda é uma super-produtora de leite, lá chove três quartos do ano, e as vacas não encolhem. Mas isto é um detalhe sem importância, que não iria barrar a trajetória vitoriosa do Festival de Besteira que Assola o País.

Em Recife, quem tocasse buzina na zona considera­da de silêncio, pagava uma multa de Cr$ 200. O deputado estadual Alcides Teixeira sabia disso mas distraiu-se e to­cou. Imediatamente apareceu um guarda e multou-o. Al­cides deu uma nota de Cr$ 1.000 para pagar os 200 e o guarda informou-o de que não tinha troco. O deputado quebrou o galho: deu mais quatro buzinadas na zona de silêncio, ficou quite com a Justiça e foi embora.

Era lançada a peça "Liberdade, Liberdade", de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que teve uma publicidade im­pagável (nos dois sentidos) organizada pela linha dura. Agentes de uma sociedade terrorista tentaram tumultuar o espetáculo e o promoveram de tal maneira que "Liber­dade, Liberdade" está em cartaz há quase dois anos; um recorde nacional, graças ao Festival.

Até o DASP, repartição criada para cuidar dos qua­dros de servidores da Nação, consumindo para isso bi­lhões de cruzeiros anualmente, nomeava para a coletoria de São Bento do Sul dois funcionários que já tinham morri­do há anos. Em compensação, para chefiar seus próprios ser­viços em Santa Catarina, o DASP nomeava um coitado que estava aposentado há três anos, internado num hospício de Florianópolis.

Foi então que estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça clássica "Electra", tendo comparecido ao lo­cal alguns agentes do DOPS para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C. Era junho e o pensador católico Tristão de Ataíde, o mesmo Alceu de Amoroso lima, uma das personalidades mais festejadas da cultura brasileira, chegava à mesma conclusão da flor dos Ponte Preta em relação à burrice reinante, ao declarar, numa conferência: "A maior infla­ção nacional é de estupidez".

A coisa atingia - como já disse - todas as camadas sociais, inclusive a intocável turma dos grã-finos. Por exemplo: num dos clubes mais elegantes de Belo Horizonte, realizou-se a festa para a escolha da "Glamour Girl de 1965". A eleita, sob aplausos gerais, foi devidamente cercada e enfaixada. Na fai­xa, lia-se: "Glamour GIR de 65". Levando-se em conta que Gir é uma raça de gado vacum, foi chato.

Nas prefeituras municipais é que o Festival se espraia­va com maior desembaraço: o prefeito Tassara Moreira, de Friburgo (RJ) inaugurava um bordel na cidade "para incentivar o turismo", enquanto o prefeito de Fortaleza, Murilo Borges, atendia ao apelo do Instituto Histórico ce­arense e suspendia a construção de um mictório público em frente à estátua de José de Alencar, na praça do mes­mo nome. 0 Instituto tinha classificado de "incontinência histórica" a instalação de um sanitário ali, justamente quan­do se comemora o Centenário de Iracema. Agora o mictó­rio está sendo construído atrás da estátua e o Instituto agradeceu à Prefeitura, ressaltando que "as pétreas nari­nas alencarianas não serão mais molestadas". Foi uma so­lução honrosa, sem dúvida, e agora, se alguém ficar aper­reado, como se diz no Ceará, que vá atrás da estátua.

Na Assembléia Legislativa fluminense um deputado chamado José Miguel Simões, sem o menor remorso, pedia moção de solidariedade à novela "O Direito de Nas­cer", por ver naquela cocorocada toda uma "mensagem útil à família brasileira". Noutra Assembléia, mais impor­tante pouquinha coisa, pois é federal, o deputado Eurico de Oliveira apresentava um projeto de anexação das Guianas ao território nacional. E, felizmente, com essas duas bombas, terminava o mês de junho, que é mês de foguetório.

Julho começava com a adesão do Banco Central à burrice vigente, baixando uma circular, relativa ao regis­tro de pessoas físicas, na qual explicava: "Os parentes consangüíneos de um dos cônjuges são parentes por afinida­de do outro; os parentes por afinidade de um dos cônju­ges não são parentes do outro cônjuge; são também pa­rentes por afinidade da pessoa, além dos parentes consangüíneos de seu cônjuge, os cônjuges de seus próprios parentes consangüíneos".

Dois acontecimentos absolutamente espantosos, cuja justificação só pode ser aceita se arrolados como ineren­tes ao Festival de Besteira: o costureiro Denner casou e Ibrahim Sued publicou um livro.

O Secretário de Saúde da Guanabara, dr. Ozir Cunha, proibia os hospitais do Estado de atenderem doentes víti­mas de alcoolismo. Como é que um médico dá uma or­dem dessas ninguém soube. Provavelmente ele estava in­fluenciado pela chatíssima novela do Dr. Valcourt. Aliás, essa novela influenciou muita gente. Tempos depois, quando um grupo de médicos do interior procurou o en­tão candidato exclusivo à Presidência da República — Ma­rechal Costa e Silva — para expor problemas de assistên­cia médica, o candidato disse que sabia do que se passava pois acompanhara a novela. Os médicos se entreolha perceberam que não adiantava ir em frente, fizeram pouquinho de hora e se mandaram.

Eram instituídos mais dois dias: o "Dia do Pobre" e o "Dia da Vovó". O primeiro por projeto do deputado Ge­raldo Ferraz e até hoje o pobre ainda não viu o dia dele; o segundo inventado por uma radialista "porque existem tantos dias e ninguém ainda se lembrou da avozinha". A distinta não reparou que existe o "Dia das Mães" e que — jamais em tempo algum — mulher nenhuma conseguiu ser avó sem ser mãe antes.

A Delegacia de Costumes de Porto Alegre mandava retirar das livrarias, sem dar a menor satisfação aos livrei­ros, todos os livros que fossem considerados pornográfi­cos. Um dos livros apreendidos era "O amante de Lady Chatterley" e, quando o delegado soube que o autor era súdito de Sua Majestade Britânica, mandou devolver to­dos os exemplares, explicando aos seus homens: "Nós não temo nada que ver, tche, com a pornografia inglesa. Só com a nacional, tche!"

O Ministro da Saúde — Dr. Raimundo de Brito — pro­nunciava uma frase lapidar: "Para aliviar a despesa do Te­souro Nacional devem morrer de fome dez por cento dos funcionários públicos, nem que para isso se inclua meu filho". Somente uma outra frase conseguiu rivalizar com esta para gáudio do FEBEAPÁ, foi aquela que pronunciou o Ministro Juraci Magalhães: "O que é bom para os Esta­dos Unidos é bom para o Brasil".

Em João Pessoa, no dia 17 de agosto de 65, era presa quando almoçava num restaurante local, dona Eunice Le­mos Jekiel, paraibana mas que vivera 22 anos nos Estados Unidos e esquecera o português. Para soltá-la houve o empenho do próprio Governador Pedro Gondim. Motivo da prisão: ela estava falando inglês em público e, portan­to, talvez fosse comunista.

Outra vez o deputado Eurico de Oliveira: apresenta­va à Câmara um projeto para a importação de um milhão de portugueses para espalhar pela selva amazônica. Dias depois lascava outro: para tornar obrigatório, em todas as solenidades onde se tocasse o Hino Nacional, o canto do mesmo pelas autoridades presentes.

Policiais do DOPS e elementos do Exército invadiam a casa da escritora Jurema Finamour e carregavam diver­sos objetos, inclusive um liquidificador. Vejam que peri­gosa agente inimiga esta, que tinha um liquidificador es­condido dentro de sua própria casa.

Segundo Tia Zumira "o policial é sempre suspeito" e - por isto mesmo — a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tan­to assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do Rio Sucuriu, retalhada em qua­tro pedaços, com os membros separados do tronco, den­tro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesa­da pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".

Repetia-se em Porto Alegre episódio semelhante ao ocorrido com Sófocles, em São Paulo. O Coronel Bermudes, secretário da insegurança gaúcha, acusava todo o elen­co do Teatro Leopoldina de debochado e exigia a presen­ça dos atores e do autor da peça em seu gabinete. Depois ficou muito decepcionado, porque Georges Feydeau — o autor - desobedeceu sua ordem por motivo de força mai­or, isto é, faleceu em Paris, em 1921.

A revista "Boletim Cambial", no seu número de no­vembro, publicava um artigo chamado "What is meant by Brazilian Revolution" e explicava aos leitores que era "o nosso esforço para tentar explicar em língua inglesa o que é a revolução brasileira".

Em Campos ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolf Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do jul­gamento Hitler foi absolvido.

Em São Paulo, entrevistado num programa de televi­são, o Deputado Arnaldo Cerdeira explicou porque seus coleguinhas aumentam constantemente os próprios sub­sídios: "Quando eu entrei para a política, meus charutos custavam 300 réis, agora estão custando mil e duzentos cruzeiros cada um". Infelizmente quem entrevistava o Sr. Cerdeira era uma mulher e não ficava bem ela mandar que ele enfiasse o charuto noutro lugar.

Janeiro de 66 A Pretapress continuava trabalhando ativamente e colecionando novas notícias para o Festival de Besteira que Assola o País. E este ano começou tão bem que na Paraíba, o Prefeito da cidade de Juarez Távora nomeou para a Prefeitura local, como funcionário público, figurando na folha de pagamento, o cavalo "Motor" de sua propriedade. Dizem que o cavalo do Prefeito João Mendes é muito cumpridor dos seus deveres.

E no Maranhão, o Prefeito de São Luís, Sr. Epitácio Cafeteira, da família dos bules, começa a provar que é um alcaide de excelentes planos administrativos. Logo depois de assumir o cargo, uma de suas primeiras providências foi anunciada: Cafeteira proibiu o uso de máscaras em fes­tas carnavalescas.

E quando isto aconteceu, todo mundo pensou que era brincadeira: a Procuradoria Geral da Justiça Militar en­caminhou ao Juiz Corregedor um IPM instaurado na DOPS para apurar atividades subversivas. Esta nem a linha frou­xa esperava: IPM na DOPS.

O senhor Juraci Magalhães tomava posse no Ministé­rio das Relações Exteriores. A tônica de seu discurso era "continuar a obra de Vasco Leitão da Cunha". Continuar a obra do Vasco Leitão da Cunha era uma boa maneira de dizer que não estava pretendendo fazer nada.

Fiscais da Alfândega do porto do Rio de Janeiro apre­endiam 300 litros de plasma sangüíneo enviados pelo go­verno de Israel à Cruz Vermelha Brasileira, para socorrer flagelados. Só depois de paga a taxa de armazenagem e várias providências do próprio embaixador do país ami­go, foi que os hospitais puderam receber o plasma. Pelo jeito o FEBEAPÁ em 66 seria muito mais animadinho que em 65, coisa que era considerada impossível pelos técni­cos em imbecilidade.

O economista Glycon de Paiva pronunciava a seguinte frase, durante a posse do Sr. Harold Polland no Conselho Nacional de Economia: "O Brasil é um país com proble­mas urgentes, ingentes, mas sem gente." Segundo Tia Zulmira, "essa frase que parece inteligente é justamente de gente indigente metida a dirigente".

O casamento do Padre Vidigal, político mineiro e ma­treiro, servia para ativar debates dos mais cocorocas so­bre o celibato dos sacerdotes. O casamento em si foi mui­to interessante porque o Padre Vidigal era um tremendo cara-de-pau e, quando seu colega que oficiava a cerimônia lhe perguntou se aceitava a noiva como legítima esposa, res­pondeu com postura militar: "Aceito para cumprir um de­ver para com a Pátria". Aventou-se então a hipótese de que, tendo o Padre Vidigal aderido tardiamente ao positivismo, talvez conseguisse ordem e progresso na lua-de-mel.

Em Belo Horizonte assumia a Secretaria de Agricultu­ra o ruralista Evaristo de Paula e saudava o Governador Israel Pinheiro em sua posse, afirmando que "o Sr. Israel tem sangue de boi em suas veias, cheira a capim e traz em si o movimento telúrico dos milharais em espiga". Só faltou o cara dizer que o Sr. Israel Pinheiro era a própria estátua da Reforma Agrária.

O medo de alma do outro mundo acabava com um programa. Foi assim: a TV Globo apresentava o programa "Globo Especial", onde eram debatidas teses religiosas. Era um programa sério e de um alto nível educativo, prin­cipalmente se levarmos em conta a cretinice que é o gros­so (nos dois sentidos) da programação na máquina de fa­zer doido. Pois muito bem: num domingo estiveram pre­sentes aos debates um padre católico e um espírita, ten­do este levado certa vantagem sobre o outro, nas suas explanações. No dia seguinte a TV Globo recebia um ofí­cio do CONTEL, proibindo o programa em todo o territó­rio nacional. Era o medo oficial dos espíritos. Na atual conjuntura, controlar as matérias já atrapalhava autorida­des, imaginem só controlar os espíritos.

E o Secretário de Turismo da Guanabara, Sr. Rio Bran­co, mudava a ornamentação para o Carnaval, na Avenida Rio Branco, por uma outra mais leve, e saía-se com esta: "Deus me livre acontecer um acidente na Avenida do Vovô".

Era dos mais democratizadores o caso criado pelo Coronel Comandante do Batalhão de Carros de Combate, sediado em Valença (RJ), que cercou Barra do Piraí com 800 soldados e exigiu que a Câmara de Vereadores local elegesse os membros da mesa conforme listinha que en­tregou ao presidente da Assembléia. Dizem que foi a e eleição "democrática" mais rápida que já houve. Num ins­tante estavam eleitos os candidatos do Coronel e, se mais rápida não foi essa eleição, é porque alguns vereadores, ao verem tanto soldado embalado, tiveram que ir primei­ro lá dentro, cumprir prementes necessidades fisiológicas.

 

A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o Delegado de Costumes (inclusive cos­tumes femininos), declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furio­so: "A tradição de moral e pudor dos mineiros será pre­servada sempre". Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso na Câmara sobre o tema "Ninguém levantará a saia da mulher mineira".

No nordeste o problema não era saia, era sutiã. Técni­cos da SUDENE consideravam de interesse prioritário para o desenvolvimento econômico da região, a instalação de uma fábrica especializada nesse artigo que os nacionalis­tas preferem chamar de "porta-seios".

O General Olímpio Mourão Filho doava ao Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, a espada e a farda de campanha que usava como comandante das forças que fizeram a "redentora" de 1º de abril. Isso é que foi revolu­ção; com pouco mais de dois anos já estava dando peças para museu.

Na cidade de Mantena (MG) o delegado deu tanto tiro que a cidade deixou de ter população e passou a ter sobrevivente. Em Tenente Portela (RS) um policial cha­mado Neider Madruga prendeu toda a Câmara de Verea­dores porque o candidato da sua curriola não foi eleito na renovação da mesa diretora. Mesmo com o habeas-corpus aos vereadores, dado pelo juiz local, o Madruga levou todos em cana para Porto Alegre, preferindo "fazer de­mocracia com as próprias mãos."

Aliás, o Direito Penal periclitava. Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ra­mos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" — nomea­va um professor para para a cadeira de Direito Penal. O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela que estuda o Direito".

Manchete do jornal "Correio do Ceará": "Todo fu­mante morre de câncer a não ser que outra doença o mate primeiro".

 

Começa o novo martírio de Tiradentes! Um historia­dor mineiro levantou a questão, dizendo que Tiradentes barbudo e cabeludo era besteira, pois o mártir da Inde­pendência era alferes, e portanto, usava cabelo curtinho, como todo militar. O bla-bla-blá comeu firme e obrigou o Marechal Presidente a se manifestar, assinando um decre­to que estabelecia a figura de Tiradentes a ser cultuada, isto é, seria a mesma da estátua do falecido, colocada na frente do Palácio Tiradentes, antiga Câmara Federal, no Rio. Nessa altura já tinha sido distribuído para as escolas um Tiradentes bem mais remoçado, sob protesto de pro­fessoras primárias que diziam ser o outro "mais respeitá­vel". Recolheu-se o Tiradentes mocinho, emitiu-se uma nota de Cr$ 5.000, com a forca aparecendo e o "Diário Oficial" publicou a resolução presidencial de se venerar "a efígie que melhor se ajusta à imagem de Joaquim José da Silva Xavier gravada pela tradição na memória do povo brasileiro". Quando todos esperavam que iam deixar Tira­dentes sossegado, no "Diário Oficial" seguinte ao da pu­blicação do decreto presidencial, constava uma retifica­ção que ninguém entendeu, dizendo: "Onde se lê Joaquim José, leia-se José Joaquim". Ora, todo mundo sabe que o nome do mártir era Joaquim José, até mesmo aquele sam­ba da Escola de Samba Império Serrano, que venceu um carnaval, mas os que estavam salvando o país tinham dú­vidas. Uma plêiade de altas autoridades esteve reunida para confabular e veio a retificação da retificação, O "Diário Oficial" do dia 27-4-66 publicava: "Fica sem efeito a retifi­cação publicada no 'Diário Oficial' de 19-4-66, na página 4.101". Felizmente a coisa parou aí, do contrário iam aca­bar escrevendo Xavier com "CH".

Correu o mês de maio mais ou menos tranqüilo, em­bora o Coronel Costa Cavalcanti, deputado pernambuca­no e líder da tal linha-dura, afirmasse que a candidatura Costa e Silva "cheirava a povo", mostrando um defeito olfativo impressionante. Um outro Coronel, chamado Pitaluga, ainda em maio, ao passar o comando de seu regi­mento, fez um discurso no qual afirmava: "A Revolução de março livrou o mundo da III Guerra Mundial". Lá no Vietnã todo mundo achou que o Coronel Pitaluga tinha razão.

Em Belém do Pará um vereador era o precursor des­sa bobagem de proibir mulher em anúncio publicitário. É verdade que o Prefeito Faria lima, de São Paulo, foi mais bacaninha ainda, porque iria — mais tarde — proibir mu­lher e propor que "figuras da nossa História ilustrassem os anúncios", isto é, Rui Barbosa vendendo sabão em pó, Tiradentes (já definitivamente barbudo) fazendo anúncio de lâmina de barbear, etc. No entanto, quando da propos­ta do precursor, na Câmara de Vereadores de Belém, um outro edil protestou, afirmando: "O mal não reside nas figu­ras femininas, mas no coração de quem vê nelas o lado imo­ral. Eu, por exemplo, seria capaz de olhar a foto de minha mãe nua e não sentiria a menor reação". Nome desse verea­dor que respeita o chamado amor filial: Álvaro de Freitas, ao qual aproveitamos o ensejo para enviar nossos parabéns.

Voltando a Minas: o Instituto Estadual de Florestas determinava que só seria concedida licença para caçar àquele que apresentasse seu título de eleitor. E ainda ti­nha nego derrotista dizendo que o título de eleitor não servia para mais nada. Era mentira. Pelo menos em Minas, o título servia para ir cercar bicho no mato.

Em Bauru (SP) o Delegado de Polícia oficiava ao pre­sidente da liga de futebol de lá que não ia enviar mais policiamento para os jogos porque os campos "não ofere­cem segurança à Polícia". Em Brasília o General Riograndino Kruel declarava-se contrário à passagem do Serviço de Censura para um órgão especializado, a fim "de evitar a propaganda subversiva através das artes".

E o mês de junho começava de lascar. No Estado do Rio, o Governador escalado pela "redentora" distribuía através da Agência Fluminense de Informações, uma nota à Imprensa muito bacaninha: "O Governo do Estado pres­tou homenagem póstuma à antiga mestra do grupo esco­lar de Itapeba, primeiro distrito de Maricá — professora Cacilda Silva — dando seu nome ao estabelecimento de ensino. A conhecida educadora dirige ainda o curso no­turno anexo ao grupo escolar." Coitada da conhecida edu­cadora. Deve ter virado fantasma. Só assim se explicava o fato de ter recebido homenagem póstuma e ter passado a lecionar no curso noturno.

Enquanto isso, o Secretário de Saúde de Brasília, Dr. Pinheiro Rocha, concedia uma entrevista sobre o hospi­tal da L-2 e dizia ao "Correio Brasiliense": "Logo que seja inaugurado será entregue ao público, recebendo até mes­mo doentes que necessitem de cuidados médicos". Não é formidável? Um hospital que atende a doentes até mesmo necessitando de cuidados médicos. Queremos crer que esta inovação revolucionou a medicina.

O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23a Batalhão de Caçado­res, acusado de ter ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga, e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.

O comandante da Base Aérea de Curitiba proibia o Padre Euvaldo de Andrade de rezar missa em ritmo de iê-iê-iê. Recorde-se que foi naquela Base que o piedoso sacerdote rezou pela primeira vez uma missa com música dos Beatles no Evangelho, bolero de Vanderlei Cardoso na Comunhão, e uma versão de "Quero que tudo mais vá pro inferno" ao final do ato religioso. A falta de respeito era tanta que no fim da missa, quando o padre abriu os braços, os fiéis pensaram que ele ia dar uma de Vanderlei Cardoso e berrar: "Abraça-me fo-órteee!" Mas o padre Euvaldo saiu com uma de Roberto Carlos e berrou: "Meu Deus, eu te amo, mora". O Brigadeiro Peralva, Coman­dante da Base, não quis mais saber disso, com medo que aparecessem esses taradinhos de cabelo comprido e co­meçassem a dar festinhas para dançarem ladainha.

E quem estava de parabéns era o Serviço de Trânsito de São Paulo. Nomearam para diretor um ex-delegado da polícia que, ao tomar posse, foi logo declarando: "Não entendo nada de Trânsito". Enfim, era mais um formado pela Faculdade Ademar de Barros.

O Coronel brigou com o Major porque um cachorro de propriedade do primeiro, conjugava o verbo defecar bem no meio da portaria do edifício de onde o segundo era síndico. Por causa do que o cachorro fez, foi aberto um IPM de cachorro. King — este era o nome do cachorro corrupto — cumpriu todas as exigências de um IPM. Seu depoimento na Auditoria foi muito legal. Ele declarou que au-au-au-au.

 

Durante umas manobras da Polícia Militar de Belo Horizonte, os guerrilheiros de mentirinha saíam vencedo­res da guerra simulada, quando 270 elementos que fingi­am ser combatentes contra a guerrilha, sofreram violenta indigestão, do que se aproveitaram os guerrilheiros para ganhar a guerra. Sem dúvida alguma, a Polícia Militar de Minas Gerais descobrira uma arma secreta: o desarranjo intestinal.

E julho começava com uma declaração muito bacaninha da Deputada espiroqueta Conceição da Costa Ne­ves, que afirmava nos bastidores da Assembléia Legislati­va de São Paulo: "A ARENA, se quiser, pode cassar o meu mandato e fazer dele supositório para quem estiver preci­sando".

E no mês de agosto o General Jaime Graça, então chefe de gabinete da Secretaria de Segurança, mandava prender por trinta dias um soldado da Polícia Militar, que estando de guarda em sua residência, durante a ausência da família, tinha tomado um banho de piscina. O engraça­do é que dias antes, o General Jaime Graça tinha caído na piscina com roupa e tudo, ao tentar salvar um marimbon­do que se afogava. O General ficava muito triste quando caía qualquer coisa em sua piscina, e adorava marimbon­dos. Pouco tempo antes, era o contrário: quem jogava mendigo dentro d'água era a Polícia. (Remember "Rio da Guarda"). Depois a Polícia cairia dentro d'água, para sal­var marimbondo.

O Ministro da Saúde — Dr. Raimundo Brito — proibia qualquer funcionário de fazer declarações sobre o con­trole da natalidade naquele Ministério. Doravante, afirmava o ministro, ele mesmo iria controlar o controle da nata­lidade. Como é que ele ia controlar, ninguém sabia. Pro­vavelmente ficaria olhando de binóculo do prédio em fren­te, escondido atrás do muro, agachadinho na moita de capim, ou talvez mesmo dentro do armário. O Dr. Rai­mundo para administrador era fraquinho, mas para obser­var era ótimo. Naquela época a Pretapress dava um alerta aos seus leitores: "Aceite nosso conselho. Antes verifique se o Dr. Raimundo não está espiando".

 

E em Palmeira dos índios, um lavrador alagoano de nome José João, dava à luz uma robusta menina, e os ra­pazes do elenco do show "Les Girls", tomavam pílulas anticoncepcionais. Depois de acurado exame os médicos atestavam que o vaqueiro que virou vaca não era lá tão homem assim. Aliás, o exame não é muito difícil.

Em setembro começava com uma determinação do governador escalado Laudo Natel, criando um novo ór­gão, que tinha a sigla: SIRCFFSTETT. Ou seja, Setor de Investigações e Repressão ao Crime de Furtos de Fios de Serviços de Transmissões Elétricas, Telegráficas ou Tele­fônicas. Deve ser de lascar o cara trabalhar lá, atender o telefone e ter que dizer: "Aqui é da SIRCFFSTETT".

O médico Parga Rodrigues era o primeiro psiquiatra contratado pelo Itamarati para examinar seu pessoal. E revelava estar recebendo inúmeras consultas de membros do Corpo Diplomático, inclusive dos que estavam fora do país, porque — dizia ele — "Lá fora a estrutura social é diferente e o indivíduo tem mais possibilidade de mani­festar o que já possui de anormal". Eu, hein...

A peça "Liberdade, Liberdade" estreava em Belo Ho­rizonte e a Censura cortava apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão "mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Nin­guém mais tá levando vida fácil.

Enquanto estudantes faziam manifestações por todo o país, desembarcava no Galeão, vindo do Recife, o Gene­ral Rafael de Sousa Aguiar, chefe do IV Exército, que ex­plicava aos repórteres: "Em Pernambuco está tudo calmo e a Imprensa aqui do Sul é que fica inventando coisas, querendo encontrar chifre em cabeça de burro". Vinte e quatro horas depois chegava ao Rio a notícia de que 150 estudantes tinham sido presos em Recife. Pelo jeito tinham achado o chifre.

Um grupo de Teatro Amador da Guanabara ia a Sergi­pe para encenar "Joana em Flor", de autoria do coleguinha Reinaldo Jardim, e o General Graciliano não sei das quantas, secretário de segurança, mandou chamar a rapa­ziada, mantendo o elenco preso por várias horas, proibin­do a peça, emitindo opiniões sobre teatro, citando auto­res, entre os quais J. G. de Araújo Jorge, não antes de ser soprado pelo ordenança, e disse que todo mundo era sub­versivo. Depois fez uma declaração digna de um troféu: "Em Sergipe quem entende de Teatro é a Polícia".

Um grupo de senhoras beneméritas de uma agremiação se dirigia à Praia do Pinto e no ambulatório local começava a fazer uso dos remédios anticoncepcionais, numa tentativa de limitar os filhos dos favelados. Muitas mora­doras do local disseram na ocasião que ali na favela nin­guém conhecia os anticoncepcionais, e pelo jeito as se­nhoras beneméritas estavam querendo acabar com a fave­la à noite.

E quando a gente pensava que tinha diminuído o nú­mero de deputados cocorocas, aparecia o parlamentar Tufic Nassif com um projeto instituindo a escritura pública para venda de automóveis. Na ocasião enviamos os nos­sos sinceros parabéns ao esclarecido deputado, com a sugestão de que aproveitasse o embalo e instituísse tam­bém um projeto sugerindo a lei do inquilinato para aluguel de táxis.

O novo chefe do Serviço de Censura, Sr. Romero Lago, enviava telegrama a todas as delegacias do Departa­mento Federal de Segurança Pública ordenando que im­pedissem cineastas estrangeiros de filmarem no Brasil, "a fim de evitar que distorcessem a realidade nacional". Que grande pessimista o Dr. Lago, capaz de acreditar que exis­ta um cineasta tão maquiavélico a ponto de distorcer a realidade nacional.

E assim vem correndo o Festival de Besteira que As­sola o País, sem solução de continuidade, pelo menos até o momento em que enviávamos este livro à editora. A primeira parte tem pretensões de ser mais uma reporta­gem do que uma coletânea de crônicas. Ele tem, aliás, duas partes: a primeira, dedicada ao FEBEAPÁ, com este prólogo e mais alguns casos dignos dele, mas que foram anotados em forma de crônicas, e a segunda onde vai uma coleção de crônicas e casos do cotidiano, sem compro­missos com a verdade nua e crua.

O relato é interrompido aqui, mas o Festival persis­te. Ainda na semana passada, democratas do Governo man­davam a Polícia baixar o cacete em quem fizesse passeatas contra a ditadura, e a Pretapress recebia um comuni­cado do Serviço de Trânsito explicando que os talões de multa para motoristas infratores passaria a ter três vias, para evitar o suborno do guarda. E este é bem um exem­plo do que é o Festival: em todo lugar do mundo, quando o guarda é subornável, muda-se o guarda. Aqui muda-se o talão. É a subversão a serviço da corrupção. Entenderam ?

 

 

                                       O Puxa-saquismo Desvairado

 

PUXAR SACO do Presidente da República é coisa que chaleira nenhum jamais conseguiu ou conseguirá ul­trapassar. O verdadeiro puxa-saco é vidrado em presiden­te da República, seja ele um verdadeiro homem de Esta­do, seja ele um cocoroca total. Esta condição intransponí­vel dos puxas é que levou o falecido Getúlio Vargas à Aca­demia Brasileira de Letras, numa época em que o ilustre homem público ainda não tomava simancol em doses su­ficientes para escapar ao ridículo de uma imortalidade li­terária das mais rebarbativas.

No setor administrativo, então, Deus me livre! Não há um prefeito cretino de cidade do interior que não so­nhe com uma praça para inaugurar com o nome do Presi­dente da República. A Pretapress, inclusive, já contou até a história daquele prefeito bronqueado com essas bestei­ras de estar mudando a toda hora o nome da praça princi­pal da cidade, com as constantes oscilações democráti­cas, ora inaugurando placa nova com o nome de Praça Presidente Café Filho, para logo mudar para Praça Presi­dente Kubitschek, depois Praça Presidente Jânio Quadros, e em seguida Praça Presidente João Goulart, outra vez para Praça Presidente Castelo Branco. O homem, provando ser um bom administrador municipal, acabou com essa fofo­ca, inaugurando a placa definitiva com o nome da praça: "Praça Presidente Atual".

Mas por que foi que eu falei isto tudo? Ah sim. . . no Ceará. Conforme vocês sabem, ninguém puxa mais saco da "redentora" do que os Estados de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul. Pois imaginem só que no time do Ceará Sporting Clube, time que vem sendo um dos me­lhores do norte-nordeste, na disputa da Taça Brasil, tem um beque esquerdo chamado Eraldo, que é parente do Marechal-Presidente.

Ah, rapaziada... pra quê! O rapaz tem recebido as mais variadas demonstrações de puxa-saquismo do momento, a ponto de ser recebido no aeroporto do Recife, quando o time do Ceará Sporting Clube foi jogar contra o Náuti­co, de Pernambuco, por autoridades do IV Exército. Diz que o Eraldo não é militar, mas apenas capitão do time do Ceará, condição a que chegou mais por sua técnica fute­bolística do que por chaleirismo e, se é verdade o que nos manda dizer o correspondente, os jornais do Ceará não fazem por menos quando anunciam a formação do quarteto de beques do time campeão, formado por Pipiu, Bacabau, Caiçara e o dito Eraldo. Volta e meia as folhas esportivas metem lá: "Pipiu, Bacabau, Caiçara e o Capitão Eraldo de Alencar Castelo Branco".

 

 

                                             O Informe Secreto

 

ESSE NEGÓCIO de ser funcionário de Serviço Se­creto só pega bem mesmo é em filme daquele cocoroca; o tal de James Bond. No Brasil então, onde tem mais goza-dor que carestia, o cara que se mete a dizer que é do "Brazilian Intelligence Service", vira perua - fica na roda o tempo todo e a moçada gozando.

O episódio abaixo, para evitar mau olhado, vamos logo explicando, caso tenha semelhança com qualquer pessoa viva ou morta, é mera coincidência. Ainda com o devido cuidado, vamos colocá-lo num certo País da Amé­rica Latina, que eu nem quero saber o nome.

Diz que era um general, Chefe do Serviço Secreto. Isto é, ficava o dia inteiro dentro de uma sala vendo se havia conspiração, manifesto, contrabando, mau olhado e demais crimes contra a Nação. Como sempre, não tinha nada. A coisa era de uma monotonia de fazer inveja ao cotidiano de Brasília.

Até que um dia aconteceu um troço chato. Correu que o general tinha feito uma excelente descoberta. A notícia se esparramou pela aí. Ligações telefônicas na maior código secreto. Secretários e agentes cruzando os corredores na maior agitação. Os que trabalhavam no edi­fício onde se instalava o Serviço Secreto moraram logo que tinha lingüiça por debaixo do pirão.

Foi aí que um curioso resolveu perguntar ao contí­nuo do Gabinete "qual era o pó".

- Mas, seu fulano, que movimentação! Houve algu­ma coisa grave? O general descobriu alguma coisa? Vão prender aqueles comunistas de sempre ?

O contínuo, muitos anos a serviço do Serviço Secre­to, fez o moita. Ficava balançando a cabeça, que nem amante de plantão, quando quer negar que teve um caso com certa senhora, mas ao mesmo tempo quer que a sus­peita fique bem positivada.

Vanja vai, Vanja vem, apareceu no Gabinete um jor­nalista que era um velho amigo do contínuo. Puxou-o pelo braço, levou-o para um cantinho discreto e quis saber:,

- Derrama a verdade, velhinho. Que qui houve? O general descobriu alguma infiltração nas áreas de cúpula, de perigosos agentes vermelhos?

O contínuo arrelagou os olhos e sussurrou:

- Coisa mais pior. O homem fez um serviço belíssi­mo. Descobriu um cargo vago de Fiscal de Renda e no­meou o filho dele. São quinhentos e cinqüenta mil por mês e mais as multas. Tá bem?

 

 

                                               Meio a Meio

 

ONTEM UM grupo de coleguinhas jornalistas es­tava comentando a nota enviada pelos outrossim colegui­nhas jornalistas de Brasília, ao Sr. Ministro das Relações Exteriores. A nota, em síntese, pede a S. Exa. que tenha suas relações exteriores, mas sem prejudicar suas relações interiores; isto é, os notistas ficaram um bocado chatea­dos com as declarações de S. Exa., de que o noticiário dos repórteres que fazem a cobertura do contrabando de mi­nérios por cidadãos norte-americanos, é tudo mentira e os rapazes são todos comunistas, interessados apenas em atrasar nossas relações diplomáticas com a grande nação da América do Norte.

Entre os que discutiam a coisa, um havia que defen­dia a tese de que o melhor é a gente cumprir o dever e não dar bola para fofocas oficiais. Mas os outros protesta­ram contra isso, porque — hoje em dia, — ser chamado de comunista é uma barbada. O Ibrahim, por exemplo, cha­ma de comunista todo aquele que lê o seu livro, "000 contra Moscou" e não gosta. Ora, como todo mundo que lê não gosta, é claro... todo mundo é comunista, não é mesmo? Esta folga precisa acabar.

Precisa, não precisa — a discussão ia nessa base, quan­do um dos presentes afirmou que era muito chato ser comunista por antecipação. E contou o caso do deputado fluminense José Antônio da Silva, cassado pela Assembléia de seu Estado, acusado de comunista e subversivo. O de­putado foi cassado e instaurado um IPM contra ele. Agora o IPM foi arquivado, depois de concluir-se sua completa inocência. O arquivamento deu-se por inexistência de ilí­cito penal na acusação formulada.

Pombas, a cassação da precipatada assembléia flumi­nense não pode voltar atrás, porque aí envereda a tudo pelo perigoso caminho da galhofa (como se já não tivesse enveredado — o parênteses é aqui do Lalau).

— E como é que ficou o deputado então? — pergun­tou um interessado.

- Bem — foi dizendo o que contava o caso — ficou assim, nessa esculhambação. O jeito seria considerar-se metade da conclusão da assembléia acertada e metade da conclusão do IPM também acertada. Assim o Deputado José Antônio da Silva fica sendo um ótimo cidadão às se­gundas, quartas e sextas, e um comunista nojento às ter­ças, quintas e sábados. Aos domingos ele descansa.

 

 

                                       Nas Tuberosidades Isquiáticas

 

RATA-SE DE UMA portaria do Sr. Ministro do Trabalho sobre a propalada reivindicação dos comerciários para trabalharem sentados. Conforme vocês sabem, os co­merciários, gente que trabalha em lojas, atendendo fre­gueses, servindo em balcões, recepcionando visitantes, é tudo gente que trabalha em pé. Claro, trabalha em pé por causa da natureza de suas funções, do contrário, todos sentariam, pois o comerciário não é mais sabido nem mais burro do que ninguém: é uma classe como outra qualquer. Mas é sempre assim: de vez em quando aparece um digno representante da classe inventando besteira para ganhar a simpatia alheia, que capitalizará para um outro troço qualquer, que hoje em dia ninguém1 é bonzinho de graça. Recentemente apareceu um cara reivindicando para os comerciários o direito de trabalharem sentados. É uma imbecilidade essa reivindicação, porque comerciário que pode trabalhar sentado já trabalha assim, mas tem uns que, se sentarem, perdem o emprego (nunca esquecendo que o jogador de futebol, por exemplo, desconta pro IAPC e se sentar no trabalho tá barrado do time).

No entanto, o tal cara apareceu, conseguiu as ade­sões de praxe, fez a onda e o Ministro do Trabalho coni­vente com a demagogia boboca, meteu lá a portaria que foi cair nas mãos de agentes da Pretapress. A portaria reza: "Art. Io — para .evitar a fadiga, será obrigatório, nos locais de trabalho, a colocação de assentos ajustáveis, para utili­zação dos empregados - § único - os assentos devem possuir os seguintes requisitos mínimos de conforto: a) ajustáveis à altura do empregado e à natureza de sua fun­ção; b) permitir que o empregado mantenha os pés apoia­dos, as pernas fazendo ângulo reto com eles e com as co­xas; c) apresentar bordas arredondadas e escavações para as tuberosidades isquiáticas; d) possuir encostos".

De toda essa besteirada, que patrão nenhum levou a sério, mesmo com a assinatura do Ministro, o que me dei­xou mais cabreiro foi a exigência de escavações para as tuberosidades isquiáticas. Que diabo seria isso? Tuberosidade é o nome vernacular que se dá às excrescências carnudas, e isquiática, com o perdão da palavra, é aquilo que tem relação com o ísquio, ou seja, a parte inferior do osso ilíaco, aquele que forma os quadris dos esqueletos. Mes­mo assim fiquei boiando em matéria de "escavações para as tuberosidades isquiáticas" e, quando estou em dúvida, faço o que todos deviam fazer: consulto Tia Zulmira. A velha é batata e num instante matou a charada:

— Meu filho, tá na cara, embora eu esteja dizendo isto em sentido figurado. Não tá na cara não, mas "es­cavações para tuberosidades isquiáticas" só pode ser Porta-nádegas.

 

 

                                                     A Conspiração

 

DENÚNCIA dizia que era na residência do Coro­nel. Nestes casos a casa do envolvido nunca é casa, é sem­pre residência ou então domicílio. Outro detalhe que dá autenticidade à coisa é o fato de o carro que vai verificar a denúncia nunca ser carro propriamente dito: é sempre viatura.

Mas deixa isso pra lá. O importante é que veio a de­núncia de que havia conspiração no domicílio do Coro­nel. Logo uma viatura partiu para colocar os conspiradores a par de que o regime é de liberdade.

Quem me conta o caso burila a descrição com aspec­tos de mistério. Tramava-se diariamente na residência do Coronel e o interessante seria apanhar os conspiradores em flagrante, isto é, durante a conspiração, que — segun­do ainda a denúncia — começava aí por volta das 10 da noite e terminava de madrugada. Várias pessoas de apa­rência suspeita entravam no edifício e lá ficavam, fazendo o silêncio mais constrangedor que se podia imaginar. As luzes permaneciam acesas, quem estava de fora pressen­tia que o apartamento enchia-se de gente, mas os sons discretos que vinham de dentro não coincidiam com es­ses detalhes. Eram palavras quase que murmuradas.

A viatura chegou de mansinho, encostou na outra esquina, para não ser identificada, e os componentes da patrulha desceram para cercar o domicílio. Foi tudo muito fácil, pois os conspiradores nem sequer tinham toma­do providências contra um possível flagrante. O militar que chefiava a turma subiu ao andar onde o Coronel tem domicílio e - protegido pela sua metralhadora - bateu na porta devagarinho, para que não desconfiassem. Abriram a porta e lá dentro estavam vários casais jogando biriba.

 

 

                                           Desrespeito à Região Glútea

 

O CONTINGENTE da DOPS que atua no Aeropor­to Internacional do Galeão — não é pra me gambá — é dos que mais têm contribuído para o Festival de Besteira que Assola o País. Ainda recentemente tentou prender um di­plomata russo que estava no Brasil há dois anos, basean­do-se numa informação de Ibrahim Sued de que o cara tinha sido expulso dos Estados Unidos há seis meses, como espião soviético. O elemento da DOPS que comandou a operação foi Murilo Néri, coleguinha de Ibrahim na TV-Rio e que, animado pelo fogo patriótico, esqueceu um detalhe importante: um cara que está no Brasil há dois anos não pode ter sido expulso dos Estados Unidos há seis meses. Essa mancada, aliás, foi merecedora de cober­tura completa da Pretapress.

Agora esta brilhante folha informativa, em sua edi­ção de anteontem, descobre mais uma proverbial manca­da da DOPS do Galeão, digna de medalha. Vou transcre­ver porque tenho uma reivindicação a fazer:

"A DOPS da Guanabara tentou revistar, no Aeropor­to do Galeão, um grupo de turistas russos, inclusive duas crianças, que transitavam pelo Rio a caminho de Montevi­déu. A intervenção da DOPS foi solicitada pelas autorida­des da Alfândega (também muito bem representada no Festival de Besteira - o parênteses é nosso) que segregaram o grupo e o entregaram aos policiais, por suspeita de

que uma russa levava "algo esquisito" sob o vestido. Os turistas chegaram a telefonar para a Embaixada da URSS no Rio, mas a intervenção dos diplomatas não foi necessá­ria, porque a Alfândega e DOPS, depois do vexame que deram, chegaram à conclusão de que qualquer providên­cia no caso cabia às autoridades de Montevidéu (de resto, desde o início da fofoca). Na verdade, a turista russa não trazia contrabando, como supunham os argutos e inteli­gentes rapazes da Alfândega e da DOPS: ela tem um defei­to físico na região glútea que se acentua como o andar".

Vejam vocês: não contentes em se darem a vexames periódicos, os tiras ainda arrastam pessoas respeitáveis a vexames piores. Onde já se viu revistar região glútea de mulher, tenha ela o rebolado que tiver? A região glútea de cada um (principalmente das mulheres) só deve ser fran­queada a médicos e enfermeiros para o caso de aplicação de injeções. Nenhuma outra desculpa justifica qualquer devassa.

Portanto, aqui fica o nosso apelo às autoridades afoi­tas: respeitem ao menos a região glútea.

 

 

                                     Garotinho Corrupto

 

AQUI NO BRASIL pegou a moda de subversão. Tudo que se faz e que desagrade a alguém é considerado subversivo. Outro dia eu vinha andando na rua e um cara, dirigindo uma Mercedes espetacular, entrou lascado num cruzamento e quase atropelou um pedestre. Foi o bastan­te para o andante dar o maior grito: "Subversivo, comu­nista!". Depois eles dizem que é marcação da gente, mas a notícia que veio de Curitiba é de lascar. Eles fecharam um jardim de infância, chamado "Pequeno Príncipe", e o general-comandante da Região Militar de lá disse que este título era subversivo. O general — o nome dele é Caudal -disse que o colégio deveria se chamar "Pequeno Lenine". Já entrou fácil no Festival.

Acontece que a maior das criancinhas que ali estuda tem cinco anos de idade e a menorzinha ainda está mo­lhando a sala de aula e o resto. É o Festival de Besteira que segue em caudal. O general e os encarregados de um IPM contra o jardim de infância dizem que as professoras estavam ensinando marxismo e leninismo. Esta então foi pior. Coitado do garotinho, que mal sabendo o a, e, i, o, u, terá que soletrar "Kruschev", "Stalin", "Gromyko" e outras bos­sas. O aviador católico Saint-Exupéry, cujo livro serve de nome para a escola, jamais pensou, depois de tantas proe­zas aéreas, que ia entrar pelo caudal, digo cano. E em ter­ra firme.

Quem conhece a vida de aventuras do coleguinha escritor Saint-Exupéry sabe que ele mais de uma vez este­ve perdido no deserto do Saara, quando servia ao Correio Aéreo da França. Duas vezes ele caiu e ficou perdido nas areias candentes do terrível deserto. Duas vezes se sal­vou. Mesmo que Saint-Exupéry estivesse vivo, jamais ima­ginaria que iria cair neste deserto de idéias, no qual acaba de aterrisar sem a menor esperança de salvamento;

Não, irmãos, esta também é demais. Criancinhas sub­versivas também já é dose pra elefante. Ainda se fosse por corrupção, vá lá. Vamos que o Juquinha, vítima de pertinaz idéia diurética, levantasse de sua carteira e fosse fazer pipi na saia da professora. Crime de corrupção, sem dúvi­da. Mas subversão? Aqui, ó...

 

 

                                             Por Trás do Biombo

 

O HOMEM é atropelado na rua ou cai fulminado por um ataque cardíaco. Pode morrer de indigestão ou pode morrer de fome, não importa. Depois da morte to­dos são iguais e lá fica aquele corpo estirado no asfalto, logo cercado por duas velas acesas, que mãos piedosas e incógnitas providenciam com impressionante presteza.

O homem está morto e os curiosos o rodeiam, divi­dindo-se entre retardatários curiosos e prestativos infor­mantes.

— "Como é que foi, hem"?

— "Ele sentiu-se mal, coitado. Nós sentamos ele no meio-fio, mas ele acabou morrendo".

— "Pobrezinho!"

A nossa imperturbável e deficiente Polícia se incum­be de amainar o espírito do próximo; o seu sentimento de solidariedade. O falecido pode morrer à hora que for

que ficará estirado na calçada, exposto à curiosidade pú­blica, porque as autoridades policiais só vão aparecer de­pois que o caso já caminhou para o perigoso terreno da galhofa e o falecido já goza da intimidade dos que pas­sam. Já não há mais aquele amontoado de gente à sua vol­ta; apenas um ou outro curioso se detém por um instan­te, espia e parte. Já queimaram as velas que iluminaram sua alma na subida aos céus; enfim, o defunto virou vaca. Um cara que tinha ido pra lá, pouco depois do momento fatal, e que estava voltando pra cá algumas horas mais tarde, vê o corpo espichado no chão e berra:

— "Puxa... Ainda não fizeram o carreto desse bone­co!"

Os que ouvem acham graça. A presença da morte já é da intimidade de todos e todos aceitam o desrespeito com o sorriso desanuviador. No dia seguinte os jornais comentam o fato, e terminam a notícia com as palavras de sempre: "O corpo do extinto ficou durante horas ex­posto à curiosidade pública, porque a perícia demorou a chegar".

Agora aparece o projeto do Deputado Fioravante Fra­ga. Vejam que beleza! O projeto obriga as delegacias dis­tritais a contarem permanentemente com um biombo, para esconder os que morrem nas vias públicas. Como se isso adiantasse. Se a Polícia é que chega atrasada, tá na cara que se ela trouxer o biombo, este também chega atra­sado, pombas! De qualquer maneira, o noticiário policial vai variar o final da notícia: "O corpo do extinto ficou durante horas exposto à curiosidade pública, porque a Polícia demorou a chegar com o biombo".

 

 

                                                      Depósito bancário

 

COISAS ÓTIMAS têm ocorrido no Estado do Para­ná, prenhes de belas demonstrações da ala paranaense do Festival de Besteira que Assola o País. Principalmente de­pois que o Coronel Pitombo resolveu ser crítico cinema­tográfico de araque e vive de viatura a rodar de um cine­ma para o outro, apreendendo filme que tem beijo.

Tem cada cara dodói, que eu vou te contar!

Mas o episódio para o qual peço espaço foge um pouco ao comum e tem provocado os mais variados co­mentários em Curitiba, onde o pessoal inscrito no Sindi­cato de Gozação se diverte a valer. Deu-se que Curitiba tem agora um banco bacanérrimo, todo de vidro, que parece até um aquário com os peixinhos (funcionários) lá . dentro. Claro que é um banco da turma do Nei Braga, conhecido pela plebe ignara e pelos depositantes em ge­ral, pela sigla Banímpar.

Tão alinhado é o banco que passou a ser até visitado por turistas mixurucas, isto é, curiosos que ficam do lado de fora, olhando pelo vidro o pessoal lá dentro. E eis se­não quando — movido por vingança ou simples maluquice (até agora não foi apurado) — um cidadão entrou no banco com vontade de ir ao banheiro mas, ao invés de se encaminhar para o dito, usou o tapete da entrada princi­pal, onde deixou um montículo constrangedor e provo­cou o maior pânico. Na hora em que produzia o montícu­lo o movimento era intenso, houve correria de senhoras, protesto de senhores, o gerente ficou indeciso e quase dá o alarma de assalto, mas depois recuou porque o que o cara estava fazendo no tapete não era assalto não. Enfim, foi uma confusão dos diabos.

O cara que fez o estranho depósito no banco dá tur­ma do Nei Braga está preso, mas chovem os comentários jocosos. Dizem que, no ato do depósito, telefonaram para o governador contando o fato e usando o verbo vulgar para definir o que o cara fizera "pra o banco". E o gover­nador gritou:

— Mas isto é um problema da SUMOC! — provavel­mente achando que o verbo fora usado no sentido figurado.

Outros gozadores afirmam que o Coronel Pitombo está investigando para ver se não é agente comunista o autor da façanha, já que o apelido de Pitombo agora é "007 de Curitiba". E há quem afirme que o guarda que foi colocado na porta do Banímpar é para impedir que o caso se repita. Há quem afirme que o guarda foi posto ali para fornecer papel aos próximos depositantes.

De qualquer forma, foi um escândalo danado. Tendo - inclusive — o banco fechado, logo após o acontecimen­to. Uns dizem que fechou para balanço. Outros dizem que fechou para descarga.

 

 

                                        "O General Taí"

 

GENÉSIO, QUANDO houve aquela marcha de se­nhoras ricas com Deus pela família e etc., ficou a favor, principalmente do etc. Mesmo tendo recebido algumas benesses do Governo que entrava pelo cano, Genésio ade­riu à "redentora", mais por vocação do que por convic­ção (ele tinha — e ainda tem — um caráter muito adesivo). Porém, com tanto cocoroca aderindo, Genésio percebeu que estavam querendo salvar o Brasil depressa demais. Mesmo assim foi na onda.

Adaptou-se à nova ordem com impressionante facili­dade e chegou a ser um dos mais positivos dedos-duros no Ministério. Tudo que era colega de que ele não gosta­va, ele apontou aos superiores como suspeitos. Naquele tempo - não sei se vocês se lembram — não era preciso nem dizer "de quê". Bastava apontar o cara como suspei­to e pronto... tava feita a caveira do infeliz.

Com isso, Genésio conseguiu certo prestígio junto à administração e pegou umas estias, ganhando um dinheirinho extra. Quando veio a tal política financeira do Dr. Campos, foi dos primeiros a aplaudir a medida. Num des­ses coquetéis de gente bem, onde foi representando o diretor do departamento, aproveitou um hiato na conver­sa, para falar bem alto, a fim de ser ouvido pelo maior número possível de testemunhas:

- A política de contenção do Dr. Roberto é simples­mente gloriosa! Breve até as classes menos favorecidas estarão aplaudindo a medida.

Todos ouviram e, como tava todo mundo com o tra­seiro encostado na cerca, naqueles dias (e muitos estão até hoje), ninguém contestou. Houve até um certo ambi­ente de admiração pelo Genésio, que nenhum dos grã-finos presentes sabia quem era, mas que, nem por isso, foi esnobado, pois podia ser algum coronel, enfim, essas bossas!

O que eu sei é que o Genésio deu o grande durante uns quatro ou cinco meses. Depois, como era um filho de jacaré com cobra-d'água, caiu de novo no seu chatíssimo cotidiano e só ficou elogiando a "redentora" por vício ou talvez por causa de uma leve esperança de se arrumar ainda.

Mas teso é teso, é ou não é? O tempo foi passando e o boi sumiu; o leite é isso que se vê aí; o feijão anda tão caro que, noutro dia, num clube da ZN, promoveram um jogo de víspora marcando as pedras com caroço de feijão e foi aquela vergonha... alguém roubou os caroços todos para garantir o almoço do dia seguinte. Genésio começou a desconfiar que tinha entrado numa fria. Aquilo não era revolução pra quem vive de ordenado. Em casa, a mulher dava broncas ciclópicas, porque o ordenado mensal dele estava acabando mais depressa do que a semana.

Houve um dia em que botou sua bronca:

— Você é que não sabe fazer economia — disse para a mulher. — Pode deixar que eu vou fazer a feira.

Ah, rapaziada, pra quê! Genésio foi à feira e só via gente balançando a cabeça; todo mundo resmungando, dizendo coisas tais como "assim não é possível", "desse jeito é fogo", "como está não pode ser". Em menos de cinco minutos do tempo regulamentar, ele também esta­va praguejando mais que trocador de ônibus.

Voltou pra casa, arrasado. Daí por diante entrou pro time dos descontentes de souza. Só abria a boca para di­zer que é um absurdo, onde é que nós vamos parar, o Brasil está à beira do abismo, etc. Mesmo na repartição, onde era visto com suspeita pelos colegas, rasgou o jogo. No dia em que leu aquela entrevista do Borgoff, dizendo que o povo devia comer galinha, porque boi é luxo, fez um verdadeiro comício, na porta do mictório do Ministério, onde a cambada se reúne sempre para matar o trabalho.

Foi aí que aconteceu! Estava em casa, deitado, lendo um "X 9", quando a empregada chegou na porta. A em­pregada era dessas burríssimas, mas falou claro:

— Seu Genésio, tem um general aí querendo falar com o senhor!

Ficou mais branco que bunda de escandinavo! Meu Deus, iria em cana. Não pensou duas vezes. Arrumou uma valise, meteu dentro alguns objetos, uma calça velha e — felizmente morava no térreo — pulou pela janela e está até agora escondido no sítio do sogro, em Jacarepaguá.

O vendedor é que não entendeu nada. Tinha ido ali fazer uma demonstração do novo aspirador General Elec­tric, falou com a empregada, ficou esperando na sala e — quando viu — o dono da casa estava pulando a janela, apa­vorado.

 

 

                                                       O Antológico Lalau

 

LAVINHA eu ladeira abaixo, comendo minhas goiabinhas, quando cruzei com a figurinha entusiástica de Bonifácio Ponte Preta (o Patriota). Mesmo subindo a la­deira ele conseguia marchar, enquanto assoviava baixinho o Hino dos Dragões da Independência.

— Olá! — exclamei eu, com as goiabinhas na mão. Ele parou, reconheceu-me e após uma reverência, um tanto ou quanto germânica, lascou:

— Como vai o caro patrício?

Respondi que ia mais ou menos, enganando pela meia cancha, me defendendo como podia e atacando quando oportuno. Enfim, nem lá nem cá. Vivendo sem maiores sucessos.

— O caro patrício engana-se — interrompeu-me ele. — Saiba que está de parabéns. É um orgulho para a nossa família ter escritor antológico em seu seio — abraçou-me em postura militar e, vendo as goiabinhas na minha mão, regozijou-se: — Oh... goiabas! Fruta brasileira. Adoro-as — apanhou um punhado delas e seguiu ladeira acima, co­mendo tudo, o miserável.

Voltei para casa intrigado. Que história era essa de antológico? Será que o Bonifácio estava me gozando? A resposta obtive logo depois, quando a fogosa mucama veio trazer a correspondência do dia. Entre os avisos de banco e outras cobranças envelopadas, um volume se destaca­va. Rasguei o papel e dei com um livro: "Rio de Toda Gente" - "Antologia para o Ensino Médio de Português" -Helena Godói Britto, M. Cavalcanti Proença, Maria da Gló­ria Sousa Pinto. Abro o volume e lá está a dedicatória do ilustre polígrafo: "Ao Stanislaw, que honra esta coletânea nas págs. 23 e 100, muito cordialmente o seu admirador — Cavalcanti Proença".

Puxa! Então era isto? Aqui o filho de Dona Dulce ti­nha se tornado antológico, num livro pedagógico? O que é a natureza, hem? Sinceramente, eu não merecia tantas lantejoulas.

Começo a folhear a obra e dou com escritos meus: uma "História do Rio de Janeiro" que escrevi há algum tempo. Lá está o primeiro parágrafo: "A Coisa começou no século XVI, pouco depois que Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confu­são, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de Janeiro".

Abaixo, o questionário para os estudantes: "COISA apresenta significado "preciso", "pejorativo" ou "irônico"?

E segue o texto: "Depois de 1512, rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da barra, descobriram uma baía muito bonita e, distraídos que estavam, não percebe­ram que era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis portanto, que o Rio já começou errado".

Procuro o questionário: "Esquiando fora da barra" é um anacronismo. Por quê? Que quer dizer anacronismo? E sincronismo?"

Nessa altura começou a minha aflição. Que qui é mesmo anacronismo? Se eu cometi um anacronismo, ti­nha obrigação de saber na ponta da língua que diabo é anacronismo. Será o ponto de semelhança entre coisas diferentes? Não, não... isto é analogia. Ah... deixa pra lá. Sobre o parágrafo transcrito há outra pergunta: "Como fosse janeiro é uma construção sintática de uso clássico. Qual seria a forma mais corrente na atualidade?"

E assim segue o texto, acompanhado do questioná­rio. Num certo trecho eu explico que os portugueses, de saída, não deram muita bola para o Rio de Janeiro e logo o questionário cobra a multa, querendo saber: "Não deram muita bola. A expressão metafórica provém do jogo de futebol e significa não dar atenção. Explique como se com­preende a translação do sentido".

Coitados dos menininhos que estiverem estudando meu texto. Eu, que escrevi, estou aqui meio sobre o em­basbacado com essa tal de translação do sentido, imagi­nem as crianças do ensino médio!

De repente, a minha aflição aumenta assustadoramen­te. Lembro-me que, no tempo de estudante, eu e toda a minha turma odiávamos Camões por causa das análises dos "Lusíadas" a que nos obrigava o professor de Portu­guês. Puxa vida... com a minha promoção a antológico, breve vai ter garoto aí me achando o maior chato do ano letivo.

Preciso abrir os olhos. Camões não o fez porque só tinha um olho, mas eu estou com os dois em dia. É neces­sário abri-los.

 

 

                                                       O Paquera

 

CONHECI O BATALHA quando ele ainda era garo­to. Aliás, todos os que foram meninos aqui no bairro co­nheceram o Batalha. Naquele tempo o bairro era calmo, os garotos unidos, havia espaço, era ótimo. O Batalha era um garoto legal, e só depois que foi crescendo é que foi ficando feio. Ao atingir a puberdade, o Batalha já era tão feio que — francamente - eu estava vendo a hora que ele ia acabar Presidente da República.

Talvez tenha sido a feiúra dele que o levou ao vício de espiar mulher de longe. Namorava à distância, sem que a moça soubesse de nada, para não estragar o namoro. Uma de suas primeiras experiências amorosas ensinou-lhe esse truque. Laurinha, que era muito bonitinha e mui­to senhora de sua beleza, que a secura da rapaziada exaltava às pampas, era, por isso mesmo, perversa como só ela. O Batalha namorou-a durante dois anos e, quando ela soube, desfez. Foi até tragicômico: alguém foi dizer pra ela que o Batalha falava pra todo mundo que namorava ela. Laurinha não conversou: telefonou pro Batalha e, no que ele disse "alô", ela lascou:

— Escuta aqui, seu nojento, se eu te pegar de novo me olhando com esse teu olhar de garoupa congelada, eu cuspo, tá bem? — e desligou o telefone e as esperanças do rapaz.

Talvez tenha sido desde aí que o Batalha aprendeu a apreciar mulher de longe. Depois de homem feito e feio - definitivamente feio - já o bairro estava todo edificado na base de altos edifícios. Batalha especializou-se em espi­ar mulher da janela.

Foi quando se deu a história triste que ele me contou como, de resto, me contou esta última, pois sabe que eu não vou sair pela aí esparramando, como fizeram quando ele era paquera oficial da Laurinha. Deu-se, eu dizia, que o Batalha ficou tempos de olho numa mocinha que mora­va no prédio em frente. Um dia ele pegou e contou pra mim que ela não só notara o interesse dele como também aderira. Ficava do lado de lá, muitas vezes, debruçada na janela, de olhar na sua direção. Ele achou, inclusive, que a mãe dela não fazia gosto porque, em dado momento, che­gava para a mocinha, segurava-a pelo braço e levava lá pra dentro, estragando tudo. A mocinha era muito dócil, e ia.

Eu nem devia ter contado esse episódio, pois é mui­to triste, mas serve para ilustrar muito bem o caipirismo do Batalha. Na verdade, a mocinha não era dócil. Era cega, isto sim. E o Batalha só descobriu muito tempo depois, quando teve oportunidade de vê-la de perto, na rua. Fi­cou sentidíssimo; afinal, a primeira que olhou fixo para ele só o fazia porque não o enxergava. É duro.

Mas não é à toa que ele se chama Batalha. Há coisa de uns meses, mudou-se para o Leme e andava entusias­mado com uma dona do edifício que dava fundos para a sua rua. É que ela tomava banho de sol no terraço com um biquíni um bocado minibiquini.

Isso foi no começo. Com o correr do tempo ele foi me contando mais coisas. Por exemplo: estava certo de que a moça percebera sua paquera, embora a paquera fosse de uma distância considerável. Ela olhava em dire­ção à sua janela e sorria:

—Ontem ela tomou banho de sol só com a parte de baixo do biquíni — me falou certa vez, com a voz embar­gada de emoção. E, num recente encontro, dei com o Batalha sobraçando enorme pacotão. Disse-me que a dona do Leme estava se despindo totalmente para ele.

— De manhã, quando eu vou espiar, ela já tá lá, nuínha no terraço. E fica horas, na mesma posição. Peladinha — garantiu. E ratificou: — Peladinha.

— E esse pacotão aí? — perguntei.

— É uma luneta. Ela merece. Meu binóculo nunca foi grande coisa. Ela merece uma luneta. Gastei uma nota para comprar esta luneta, mas ela merece. Vou estrear ama­nhã, se fizer sol.

E lá se foi o Batalha e seu pacotão. Eu não o vi mais, até esta semana. Vinha cabisbaixo e meditabundo — adje­tivos que sempre se juntam para definir o cara que entra numa fria.

— Como é Batalha? E a dona do Leme?

— Nem me fale — suspirou. —Já sei. Mudou-se.

— Pior. Ela tava me gozando... Você não se lembra que eu falei que ela ficava horas nuínha, na mesma posi­ção?

Fiz que sim com um movimento de cabeça.

— Pois é... Comprei a luneta, e só aí eu reparei. Ela sabia que eu olhava e fez aquilo...

— Mas fez o quê?

— Armou no telhado um manequim velho. Botava a peruca dela no manequim e deixava lá, para me enganar.

— Puxa vida... tem certeza?

— Absoluta... eu vi pela luneta, na coxa dela tava es­crito "Made in USA".

 

 

                                             Eram Parecidíssimas

 

PEIXOTO ENTROU no escurinho do bar e ficou meio sobre o peru de roda, indeciso entre sentar-se na primeira mesa vaga ou caminhar mais para dentro e esco­lher um lugar no fundo. Mas sua indecisão durou pouco. Logo ouviu a voz de Leleco, a chamá-lo:

— Êi, Peixoto, venha para cá!

Estremeceu ao dar com o outro acenando, mas estu­fou o peito e aceitou o convite com ar muito digno, encaminhando-se para a mesa de Leleco.

— Senta aí, rapaz — disse Leleco, ajeitando a cadeira ao lado: — Você por aqui é novidade.

— De fato — concordou Peixoto, evasivo.

Leleco era todo gentilezas: — Que é qui vais tomar? Toma um "Vat", o uísque daqui é ótimo. Você sabe, eu venho a este bar quase todas as tardes. É um hábito bom, este uisquinho antes de ir para casa.

— É. Eu sei que você costuma vir aqui de tarde. Peixoto aceitou o uísque sugerido, o garçom afas­tou-se e Leleco não perdeu o impulso. Continuou falando:

— Engraçado você ter aparecido aqui, Peixoto.

— Engraçado por quê? — a pergunta foi feita num tom ansioso, mas o outro não pareceu notar.

— É que, ultimamente, eu toda hora estou me lem­brando de você.

Peixoto fez-se sério como um ministro de Estado quando vai à televisão embromar o eleitorado. Apanhou o copo que o garçom colocara em sua frente, deu um gole minúsculo e pediu.

— Explique-se, por favor. Leleco sorriu:

— O motivo é fútil e eu espero que me perdoe. Mas é engraçado. De uns tempos para cá eu me meti com uma pequena de São Paulo. Moça rica, com facilidade de apa­recer aqui no Rio de vez em quando. Sabe como é. A gente vai levando. No princípio eu não notei a semelhan­ça. Mais tarde ela mesma é que me chamou a atenção. Num dos nossos encontros ela me perguntou se eu te conhecia.

—A mim?

— Sim, a você. Ela, aliás, não te conhece. Vai escutan­do só... Ela perguntou e eu — é lógico — disse que sim. Ela então quis saber se de fato era parecida com sua mulher.

— Alice?

— Isto, a Alice, sua esposa. Disse que pessoas aqui do Rio, que conhecem vocês (ela não me contou quem foi), haviam afirmado que ela se parecia muito com sua mu­lher. Só então eu notei que, de fato, as duas se parecem bastante, apenas num ou noutro detalhe são diferentes. Por exemplo: a Laís é loura.

— O nome dela é Laís?

— É Laís. Ela é loura e sua esposa, se não me engano, tem os cabelos pretos, não?

— Pretos, não digo. São castanho-escuros.

— Eu não vejo a Alice há algum tempo. Mas que são parecidas, não há dúvida. Lógico, a Laís... eu posso dizer porque é uma simples aventura, entende?... a Laís é meio boboquinha, grã-finóide. Não tem a classe, assim... como direi, a postura da Alice.

Nesta altura Peixoto deu uma gargalhada, deixando Leleco meio sobre o aparvalhado. Ia perguntar o porquê da risada, mas Peixoto ria e fazia-lhe um sinal com a mão de que ia explicar:

— Leleco, esta é ótima. Você não sabe por que qui eu vim aqui.

— Tomar um uísque, não foi?

— Bem, o uísque era pretexto. Eu vim aqui justamen­te porque recebi um telefonema anônimo, de alguém que jura que viu minha mulher entrando no seu apartamento.

— O quê??? — Leleco ficou meio embaraçado: — Pelo amor de Deus, você não contou isto à sua esposa, não cometeu esta injustiça por minha causa.

— Claro que não — mentiu Peixoto, que ficou sem graça por um instante, mas o bastante para que qualquer um percebesse que tivera a maior bronca com a mulher e saíra da discussão sem estar convencido de sua inocên­cia.

Mas repetiu:

— Claro que não. Eu vim encontrar você aqui para conversar sobre o assunto. Eu não dei maior importância ao telefonema, mas queria que você tomasse conhecimen­to dele. Alguém que não gosta de você está querendo lhe meter numa fria.

— Pelo visto não é bem assim.

— Claro — apressou-se Peixoto em dizer: — Quem te­lefonou tinha uma certa razão — e virando-se para o gar­çom: — Mais dois aqui — ajeitou-se e com visível satisfa­ção: —Vamos tomar mais um que eu tenho que sair.

Meia hora depois Peixoto saía do bar, rumo ao lar. Ia lépido, fagueiro, como alguém que se livra de um proble­ma chato. Ia pensando em como é bom o sujeito ser cal­mo e precavido antes de tomar uma atitude.

Quanto a Leleco, assim que Peixoto saiu, foi para o telefone do bar, ligou para Alice e quando ela atendeu, falou:

 

— Neguinha? Quebrei o galho. A história colou - e, com certa apreensão na voz: — Mas, por favor, joga fora essa peruca loura antes que ele chegue aí.

 

 

                                          O Sabiá do Almirante

 

ALMIRANTE gostava muito de ir ao cinema na sessão de oito às dez. Era um Almirante reformado e mui­to respeitado na redondeza por ser bravo que só bode no escuro. Naquela noite, quando se preparava para ir pro ci­nema, a empregada veio correndo lá de dentro, apavorada:

— Patrão, tem um homem no quintal.

Era ladrão. Pobre ladrãozinho. O Almirante pegou o 45, que tinha guardado na mesinha de cabeceira e saiu bufando para o quintal. Lá estava o mulato magricela, en­colhido contra o muro, muito mais apavorado que a do­méstica acima referida. O Almirante encurralou-o e deu o comando com sua voz retumbante:

— Se mexer leva bala, seu safado.

O ladrão tratou de respirar mais menos, sempre na encolha. E o Almirante mandou brasa: — Isto que está apon­tado para você é um 45. Seu eu atirar te faço um furo no

peito, seu ordinário. Agora mexe aí para ver só se eu não te mando pro inferno.

O ladrão estava com uma das mãos para trás e o Al­mirante desconfiou:

- Não tente puxar sua arma, que sua cabeça vai pe­los ares.

- Não é arma não — respondeu o ladrão com voz

tímida: — É o sabiá.

- Ah... um ladrão de passarinho, hem? — vociferou o

Almirante.

E, de fato, o Almirante tinha um sabiá que era o seu orgulho. Passarinho cantador estava ali. Elogiadíssimo pelos amigos e vizinhos. Era um gozo ouvir o bichinho quando dava seus recitais diários.

Vendo que o outro era um covarde o Almirante re­solveu humilhá-lo:

- Pois tu vais botar o sabiá na gaiola outra vez, vaga­bundo. Vai botar o sabiá lá, vai me pedir desculpas por tentar roubá-lo e depois vai me jurar por Deus que nunca mais passa pela porta da minha casa. Aliás, vai jurar que nunca mais passa por esta rua. Tá ouvindo?

O ladrão tava. Sempre de cabeça baixa e meio enco­lhido, recolocou o sabiá na gaiola. Jurou por Deus que nunca mais passava pela rua e até pelo bairro. O Almiran­te enfiou-lhe o 45 nas costelas e obrigou-o a pedir descul­pas a ele e à empregada. Depois ameaçou mais uma vez:

- Agora suma-se, mas lembre-se sempre que esta arma é 45. Eu explodo essa sua cabeça se o vir passando perto da minha casa outra vez. Cai fora.

O ladrão não esperou segunda ordem. Pulou o muro como um raio e sumiu.

O Almirante, satisfeito consigo mesmo, guardou a arma e foi pro cinema. Quando voltou, o sabiá tinha desa­parecido.

 

 

                                             Aos tímidos o que é dos tímidos

 

TÍMIDO QUE ELE ERA. Um desses sujeitos assim cujo complexo de inferioridade é tamanho que, ao se olhar no espelho, sente-se mal ao deparar sua própria imagem, por considerá-la superior ao original. Tem uns caras que, francamente: eu — por exemplo — conheci um que o pes­soal chegou a apelidar de Zé Complexo. Um dia ele me confessou que, muitas vezes, quando saía de casa, tinha ímpetos de deixar o elevador pra lá e descer pela «lixeira. Acabou morrendo por timidez, numa véspera de Natal.

Foi assim: a família tinha engordado um peru para a ceia natalina, e ele ficou encarregado de matar o peru. Na véspera da coisa, e dia do peru, levou-o lá prós fundos e começou a dar cachaça para o condenado, e foi lhe dan­do aquela tristeza e, então, pra ver se levantava o moral, começou a beber junto com o peru, e foi bebendo e foi piorando, baixou nele uma neura bárbara, até que consi­derou as circunstâncias, olhou para o peru mais uma vez, o peru olhou para ele com aquele olhar de peru encachaçado, que é pior que olhar de deputado nordestino. En­fim, para encurtar o caso: acabou considerando que o peru merecia mais que ele e se suicidou, deixando o peru sozi­nho lá no quintal, no maior pileque.

Mas não era desse cara que eu queria falar não. Esse morreu, deixa pra lá. O tímido desta história tinha as suas mumunhas, tanto assim que chegou a arrumar uma na­morada. Não era nenhum estouro de mulher, mas também não era como aquela que o gato cheirou e cobriu de areia. Na verdade a namorada deste tímido que eu estava falando, e depois passei pro outro que morreu, levava um certo jeito. Pernudinha, nem baixa nem alta, nem magra nem gorda. Engraçadinha, sabe como é?

Pois não é que apareceu um desses bacanos de cabelão, pele tostada no moderno estilo "Castelinho", folgado às pampas, e cismou com a pequena do tímido?

Como, minha senhora? A pequena do tímido é que deu bola pro bonitão?

Nada disso, madama, nada disso. Embora eu não po­nha a mão no fogo por mulher, porque eu não quero ficar com o apelido de maneta, posso garantir à senhora, que a pequena do tímido tinha fama de batata. Tanto isto é ver­dade que foi ela quem inventou o plano.

Quando o namorado descobriu que havia cabrito na sua horta, ficou numa fossa tártara. Dava até pena ver: perto da dele a fossa de qualquer um parecia apartamen­to de cobertura. Ainda bem não tinha morado no assunto, ficou logo achando que perderia a parada, porque o ou­tro era mais forte, mais freqüentador do "Le Bateau", sa­bia dançar o surf muito bem, e mais diversas outras papa­gaiadas que hoje em dia as mulheres consideram predica­dos masculinos.

Aí a pequena dele ficou tão chateada que lhe deu uma bronca:

- Toma uma atitude, Lelé! (O nome dele era Leovigildo, mas ela chamava de Lelé.) Contrata aí um desses latagões a serviço da bolacha e manda dar uma surra nes­se atrevido!

Tá certo, a pequena era um pouco chave-de-cadeia, mas essa atitude dela provava que, entre o bacanão e o Lelé, ela era mais o Lelé. Foi, aliás, o que o Lelé deduziu, dedução esta que o levou a procurar Primo Altamirando.

Ora, o Mirinho vocês conhecem e, se não conhecem, per­guntem na Polícia, que lá eles sabem. Procurou Mirinho e propôs o negócio: dez "cabrais" ou dois "tiradentes" — a escolher — para dar um corretivo no cara.

Mirinho achou o negócio legal e saiu em campo. Não demorou muito, encontrou o perseguido badalando num balcão de sorveteria, fazendo presepada no meio das menininhas. Chamou-o num canto, como quem vai pro ba­nheiro, e, agarrando o braço dele, colocou-o a par da con­juntura. O cara foi ficando branco que nem parecia fre­guês de sol do "Castelinho", começou a gaguejar, e o Pri­mo viu logo que aquela transação podia render mais. Sol­tou o braço do cara e meteu a proposta:

— Faz o seguinte. Manda 20 mil aí que eu transfiro o negócio pra outra firma.

O bonitão nem quis ouvir mais nada. Filho de pai rico e coisa e tal, meteu a mão no bolso e pagou à vista. Com 30 mil em caixa, o abominável parente resolveu ti­rar licença-prêmio e foi gastar o lucro.

Deu-se que, ontem, estava ele parado numa esquina, paquerando o ambiente, quando o tímido apareceu de braço com a pequena. Ao passar por ele, fez um gesto largo, sorriu, piscou um olho e berrou:

— Olha! Aquele nosso negócio; perfeito, velhinho! A firma concorrente entrou pelo cano.

Mirinho olhou pra ele, lembrou-se dos 20 mil que o outro lhe confiara e suspendeu a licença. Caminhou em sua direção e tacou-lhe um bofetão em si bemol que o coita­do saiu catando cavaco e foi cair sentado no meio-fio.

Tá certo! O fim desta história é meio chato. Mas, é como me explicou Mirinho: onde já se viu tímido bancar o expansivo só porque tá com mulher?

 

 

                                       O Filho do Camelô

 

ASSAVA GENTE pra lá e passava gente pra cá como, de resto, acontece em qualquer calçada. Mas quan­do o camelô chegou e armou ali a sua quitanda, muitos que iam pra lá e muitos que vinham pra cá pararam para ouvir o distinto. Camelô, no Rio de Janeiro, onde há um monte de gente que acorda mais cedo para ficar mais tem­po sem fazer nada, tem sempre uma audiência de deixar muito conferencista com complexo de inferioridade.

Mas — eu dizia — o camelô, olhou prós lados, obser­vando o movimento e, certo de que não havia guarda ne­nhum para atrasar seu lado, foi armando a sua mesinha tosca, uma tábua de caixote com quatro pés mambem­bes, onde colocou a sua muamba. Eram uns potes peque­nos, misteriosos, que foi ajeitando em fila indiana. Aqui o filho de Dona Dulce, que estava tomando o pior café do mundo (que é o café que se vende em balcão de boteco do Rio), continuou bicando a xicrinha, pra ver o bicho que ia dar.

Era bem em frente ao boteco o "escritório" do camelô. Armada a traquitanda ele olhou outra vez para a direita, para a subversiva, para a frente, para trás e, ratificada a ausência da lei, apanhou um dos potes e abriu.

Até aquele momento, seu único espectador, (afora eu, um admirador à distância) era um menino magrela, meio esmolambado que, pelo jeito, devia ser o seu auxili­ar. Ou seria seu filho? Sinceramente, naquele momento eu não podia dizer. Era um menino plantado ao lado do camelô — eis a verdade.

O camelô abriu o jogo:

— Senhoras, senhores... ao me verem aqui pensarão que sou um mágico arruinado, que a crise nos circos jo­gou na rua. Não é nada disso, meus senhores.

Parou um gordo, com uma pasta preta debaixo do braço, que vinha de lá. Quase que ao mesmo tempo, pa­rou também uma mulatinha feiosa, de carapinha assanha­da, que vinha em companhia de uma branquela sem den­tes na frente.

— Eu represento uma firma que não visa lucros — pros­seguiu o camelô —, visa apenas o bem da humanidade. Então vendo esta pomada?

O camelô exibiu a pomada, e pararam mais uns três ou quatro, entre os quais uma mocinha bem jeitozinha, a ponto de o gordo com a pasta abrir caminho para ela ficar na sua frente. Mas ela não quis. Olhou pro gordo, notou que ele estava com idéia de jerico e nem agradeceu a gentileza. Ficou parada onde estava, olhando a pomada dentro do pote que o vendedor apregoava.

— Esta pomada, meus amigos, é verdadeiramente mi­raculosa e fará com que todos sorriam com confiança.

"Que diabo de pomada era aquela?" — pensei eu. E comigo pensaram outras pessoas, que se aproximaram também curiosas. Uma velha abriu caminho e ficou bem do lado da mesinha, entre o camelô e o menino.

- É isto mesmo, senhores... ela representa um sorri­so de confiança, porque é o maior fixador de dentaduras que a ciência já produziu. Experimentem e verão. A cremilda ficará presa o dia inteiro, se a senhora passar um pouco desta pomada no céu da boca — e apontou para a velhinha ao lado. Todos riram, inclusive a branquela desdentada.

- Uma pomada que livrará qualquer um de um pos­sível vexame, numa churrascaria, num banquete de ceri­mônia. Mesmo que sua dentadura seja uma incorrigível bailarina, a pomada dará a fixação desejada, como já ficou provado nas bocas mais desanimadoras.

Um cara de óculos venceu a inibição e perguntou quanto era:

- Um pote apenas o senhor levará por 100 cruzei­ros. Dois potes 170 e mais um pente inquebrável, oferta da firma que represento. Um para o senhor, dois ali para o cavalheiro. Madame vai querer quantos?

E a venda tinha começado animada, quando parou a viatura policial sem que ninguém percebesse sua aproxi­mação. Os guardas pularam na calçada com aquela delica­deza peculiar ao policial. O guarda que vinha na frente deu um chute no tabuleiro da pomada miraculosa que foi pote pra todo lado. Dois outros agarraram o camelô, e o da direita lascou-lhe um cascudo.

Aí o povo começou a vaiar. Um senhor, cujos cabe­los grisalhos impunham o devido respeito, gritou:

- Apreendam a mercadoria mas não batam no rapaz, que é um trabalhador!

- Isto mesmo — berrou uma senhora possante como o próprio Brucutu.

O vozerio foi aumentando e os guardas começaram a medrar.

— Além disso o coitado tem um filho — disse a velha.

E, ao lembrar-se do filho, o camelô abraçou-se ao ga­roto, que ficou encolhido entre seus braços. Leva não leva. Um sujeito folgadão deu um murro na viatura que, em sendo policial, era velha como a necessidade, e quase desmontou. Os guardas se entreolharam. Eram quatro só, contra a turba ignara, sedenta de justiça.

— Deixa o homem, que ele tem filho! — era a velha de novo.

Os guardas limitaram-se a botar a muamba toda na viatura e deram no pé, sob uma bonita salva de vaia. O camelô, de cabeça baixa, foi andando com o garoto a ca­minhar ao seu lado, e o bolo se desfez. Era outra vez uma calçada comum, onde passava gente pra lá e passava gen­te pra cá.

Eu fui andando pra lá e dobrei na esquina. Não tinha dado nem três passos e vi o camelô de novo, conversan­do com o garoto.

— Que onda é essa de dizer que eu sou seu filho, meu chapa? Eu nem te conheço! — perguntava o menino, para o camelô.

— Cala a boca, rapaz. Toma 200 pratas, tá bem?

Eu parei junto a um carro, fingindo que ia abri-lo, só para ouvir o final da conversa.

— Eu tenho mais potes naquele café lá embaixo -disse o homem: — Queres ficar de meu filho na Cinelândia, eu vou pra lá vender. Quer?

— Vou por 300, tá?

O camelô pensou um pouco e topou. E lá foram "pai" e "filho" para a Cinelândia, vender a pomada "que dá con­fiança ao sorriso".

 

 

                                             O Diário de Muzema

 

LUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdi­ção da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto... não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sos­sego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais amassada que pára-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão.

O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:

— Chamem a Polícia!!! — mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e perguntou que diabo era aqui­lo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tem­po, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, or­denando:

— Um de cada vez, pombas!

Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem "aquele rato" no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:

— Nós somos moradores do bairro de Muzema, dou­tor Delegado.

— Sim. E esse pequenino aí?

— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse creti­no aí também é. Imagine o senhor que ele tem um cader­no grosso, que ele chama de "Meu Diário", onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.

— Como é que é? — estranhou o delegado.

Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquan­to um guarda dava um copo de água para o diarista arre­bentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:

— Calem-se! Um só de cada vez!

Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:

— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser impor­tunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daque­le ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um ou­tro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).

Esta informação bastou para que o assinalado mari­do partisse pra cima do encolhido e o tumulto se genera­lizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quan­do conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.

— Prossiga! — disse pro pequenino.

O pequenino pigarreou e prosseguiu:

— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.

— Como é o seu nome? Onde você mora?

— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote "A", casa 18.

O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele. "Dona Jurema, do lote "B", casa 75, estava saindo de ma­drugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho com ela há muito tempo". Ou então: "Lilico continua fingindo que é noivo da filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela".

O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham desco­berto o que estava escrito ali. O pequenino foi sincero:

— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o miserável do garoto lendo em voz alta:"... o seu Osooo... Osório. Não: Osório. O seu Osório quando sai pra o trai... tralba... para o trabalho, devia levar a muuu... a mu­lher dele. Ela é muito assada... assada não... muito assanhada".

— Eu achei o diário dele — falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório.

Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro paca­to estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson So­ares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o Delegado Levi perguntou ao dono do diário:

— O senhor também é poeta?

— Mais ou menos, né?

— Eu pergunto — esclareceu o delegado — porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário: "Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na certa ele fura a bola".

Pimba... mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote "J", casa 77. O pau roncou solto e só quan­do chegou reforço é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando: — Vocês ve­jam se não dão margem ao artista de se expandir tanto, em seu futuro diário, tá?

O pessoal prometeu.

 

 

                                              Um Cara Legal

 

O CARLÃO era um cara meio trapalhão, desses que cruzam cabra com periscópio pra ver se arrumam um bode expiatório. Vivia confortavelmente instalado num aparta­mento pequeno, porém indecente, e tinha dinheiro para gastar com o chamado supérfluo. De vez em quando dava umas festinhas em casa e convidava um monte da vida-torta e umas garotinhas dessas que mastigam chiclete de bola com a alegria de retirante quando pega um punhado de farinha. Dessas mocinhas assim no estilo "noiva de Drácula", isto é, que usam batom branco e estão sempre com uma alegre coloração de defunto.

Aquele dia, era um dia especial, pois o Carlão fazia anos e ia ter festinha de arromba. As armas do crime já estavam todas na geladeira: coca-cola, guaraná, rum, vodca, cervejinha — tudo para tomar com bolinhas fabricadas pelos mais categorizados laboratórios bromatológicos do Brasil. Tinha ate uns cigarrinhos diferentes, com cheiro de pano queimado.

Os distintos convidados era o fino. Pelos apelidos a gente via que a turma era pinta brava: "Bomba D'água". "Puxa Firme", "Sutileza", "Julinha Toda Hora","Dedão"? "Mariazinha Vapor", "Odete Prise", "Creuza Deixa Pra Mais Tarde" etc., etc. O grupo foi chegando e já estava a vitrolinha esquentando, a tocar "Gasparzinho", "Olha o Brucutu", "Help" e outras partituras do mesmo valor musical Na salinha apertada os pares escorregavam o maior surf em trejeitos que só ultimamente são usados na vertical.

A festa já ia pelo meio, quando tocaram a campai­nha. Era a primeira coisa que se tocava ali que cantor ne­nhum da jovem-guarda tinha gravado. Carlão abriu a por­ta, saiu aquele bafo de fumaça que mais parecia aviso de índio, e quando a fumaça se esvaiu, surgiu por trás dela um velhinho que morava no mesmo andar e que vinha reclamar o barulho. O Carlão mandou o velhinho entrar e a turma envolveu o recém-chegado, que foi logo cumpri­mentando todos e engrenou um papo-furado muito inte­ressante. Meia hora depois o velhinho estava tão à vonta­de que rebolava frente a frente com Creuza Deixa Pra Mais Tarde um surf legalérrimo, aos gritos incentivadores de "boa, velhinho", "dá-lhe, coroa", "sacode, vovô" e outros que tais.

Nisso a campainha tocou outra vez.

"Diabo de campainha que tá tocando mais que disco de Roberto Carlos" pensou o Carlão. E foi abrir. Agora não era um velhinho. Era uma velhinha. Uma velhinha que também morava no mesmo andar, por sinal que no apartamento do velhinho, em suma, pra que fazer suspense, não é mesmo? A velhinha era casada com o velhi­nho desde o tempo em que Papai Noel tinha barba preta. Foi o Carlão abrir a porta e ela espiar lá pra dentro e ver o folgado ancião badalando firme com a pistoleira acima citada.

Meus irmãos, o pau comeu! A velha até parecia porta-estandarte do Bloco Unidos do Cassetete, conhecida agremiação carnavalesca que, todo ano, desfila junto com as escolas de samba, usando uniforme da polícia e baixan­do o cacete em jornalista. Entre uma pernada e outra a velhinha abusava do baixo calão com vibrante personali­dade. A falecida mãe do velhinho nunca foi tão premiada com xingação.

Foi quando apareceu o síndico do edifício. A coisa já tinha entrado na faixa do escândalo. Gente no corredor, vizinhos nas janelas em frente. Com a sua autoridade no prédio, o síndico agarrou a velha pela saia e separou a briga. Ela protestou:

— Ele é meu marido. Vive dizendo que essas dancinhas modernas deviam ser proibidas e olha só o sem-ver­gonha. Me larga que eu ensino a ele.

Um dos presentes tratou de esclarecer tudo:

— Espera aí, vovó. A senhora está estragando a festa. Afinal de contas foi aí o velho que nos convidou.

E a velha engoliu em seco, virou-se para o Carlão e quis saber:

— Verdade, Cadinhos?

Era. Mesmo com o olhar súplice do velho, Carlão dedurou o vizinho. Quem tinha planejado tudo fora o ve­lhinho. Carlão dava a festa, ele chegava mais tarde, fingin­do que ia reclamar e ficava no pagode. Só não contaram foi com a insônia da velha que, geralmente, dormia como uma pedra.

O Carlão ainda mora no local do crime. Os velhinhos, eu ouvi dizer que se mudaram.

 

 

                                                 Desastre de Automóvel

 

DIZ QUE aconteceu mesmo. O cara que me con­tou falou que o caso era verídico e ficou até de me apresentar ao Cravino, personagem central desta lamen­tável historinha de cunho conjugai.

É que esse tal de Cravino tem uma mulher que eu vou te contar: se ele fosse casado com um tamanduá esta­va mais bem servido. Há uns 50 quilos atrás ela ainda era mais ou menos, isto é, tinha um rebolado não de todo desprezível e um rostinho bem razoável. Mas depois que casou, a distinta só fez engordar e embuchar. Hoje em dia — se o Cravino pudesse — dava ela de entrada em qual­quer crediário.

E, como se não bastasse, a mulher do Cravino é mais ciumenta que um pierrô. Por qualquer coisinha, parte pra ignorância. A coisa foi num crescendo de amargar. No começo, o Cravino olhava pro lado e levava uma catucada nas costelas, porque a mulher achava que ele estava dando bola para alguma desajustada social. Depois, pas­sou da catucada ao beliscão, que é muito mais doloroso e, ultimamente, diante da complacência do marido (com­placência essa ditada por total incapacidade física diante da mulher), iniciou, com bastante êxito, o chamado festival de bolacha. O pobre do Cravino, por qualquer bestei­ra, apanha mais em casa que o time da Portuguesa no campeonato.

O pobre coitado é um conformado de sousa. Até já esqueceu como é mulher e a impressão que se tem é a de que - se alguém mandar ele desenhar uma mulher — o Cravino não vai saber desenhar de cor. Para falar franca­mente, a única coisa que ainda interessa um pouco o Cra­vino é automóvel. O rapaz é tarado por um carro bacana, um modelo esporte, um carro de corrida.

E foi mais ou menos por causa de um desastre de automóvel que foi parar num hospital. Não que o Cravino estivesse dentro de um carro acidentado; nada disso. O desastre de automóvel dele foi diferente.

O negócio foi o seguinte: o Cravino tem um amigo que comprou a maior Mercedes-Benz. Um carro alinhadíssimo, o fino da máquina e, sabendo que o seu cupincha ama carro assim, telefonou para ele e perguntou se não queria dar uma voltinha no Mercedes.

Ora, tá na cara que o Cravino ficou assanhado e to­pou logo. Seu entusiasmo foi tal que esqueceu a mulher que tinha. O amigo chegou com o carro na porta da loja onde o Cravino é gerente e entregou-lhe a chave:

- Pode rodar pela aí quanto quiser — falou.

O Cravino, encantado, pegou o carro e saiu rodando pelo asfalto, feliz como um passarinho. Tão entusiasma­do estava que esqueceu a hora de voltar. Quer dizer, ele esqueceu, mas a mulher não. Bastou passar cinco minu­tos da hora normal do marido chegar, que ela começou a pensar o pior:

- Deve estar metido em algum canto, com mulhe­res! - falou a monstra para si mesma.

Quando já fazia uma hora da hora do Cravino che­gar, a mulher já estava queimando óleo 40. Sua indignação era tanta que começou a babar numa bela coloração arroxeada. E o Cravino, nem nada, passeando no Merce­des do amigo.

Só deu as caras em casa duas horas depois. Vinha alegre, de alma lavada, amando o carro do outro. Nem se lembrou do perigo que corria e, ao abrir a porta e dar com a megera indomada à sua frente, ficou estupefato.

Com que mulherzinha você estava, cretino? — ber­rou a mulher.

Eu estava com a Mercedes... — mas nem chegou a dizer Benz. Levou uma traulitada firme por debaixo das fuças e não viu mais nada. Só soube o quanto apanhou no dia seguinte, no hospital, lendo sua ficha médica.

Foi ou não foi um desastre de automóvel?

 

 

                                         Barba, Cabelo e Bigode

 

A BARBEARIA era na esquina da pracinha, ali na­quele bairro pacato. Um recanto onde nunca havia bron­ca e o panorama era mais monótono que itinerário de ele­vador. Criancinhas brincando, babás namorando garbosos soldados do fogo em dia que o fogo dava folga, um sorveteiro que, de tão conhecido na zona, vendia pelo credi-picolé, e o português que viera do seu longínquo Alentejo para ser gigolô de bode: alugava dois caminhos puxados por bodes magros, para as criancinhas darem a volta na pracinha.

Quem estava na barbearia esperando a vez para a barba, o cabelo ou o bigode, só tinha mesmo aquela pai­sagem para ver. E ficava vendo, porque Seu Luís, o barbeiro, tinha uma freguesia grande e gostava muito de con­versar com cada freguês que servia. O cara sentava e Seu Luís, enquanto botava o babador no distinto e ia lhe ensa­boando a cara, metia o assunto:

— E o nosso Botafogo, hem? Vendeu o Bianquini.

O freguês só gemia, porque o freguês de barbeiro não é besta de mexer a boca enquanto o outro fica com a maior navalha esfregando seu rosto. Assim, o diálogo de Seu Luís era um estranho diálogo. Trocava o freguês e lá ia ele:

— Como é? Ainda acompanhando aquela novela?

— Hum-hum!

— É uma boa novela. Movimentada, não é?

— Hum-hum!

— Aliás, a história eu já conheço. Fizeram até um fil­me parecido.

— Hum-hum!

Mesmo conversando muito (mais consigo mesmo do que com os outros), mesmo demorando mais do que o normal para atender a freguesia, Seu Luís tinha sempre a barbearia cheia.

Todos esperavam a vez, com paciência e resignação, menos o Armandinho, um vida-mansa que eu vou te con­tar! Até para fazer a barba tinha preguiça e saía de casa à tardinha, na hora em que a barbearia estava mais cheia, para se barbear. Mas não gostava de esperar — o Armandi­nho. Vinha, parava na porta e perguntava:

— Quantos tem?

Seu Luís dava uma conferida com o olhar e res­pondia:

— Tem oito!

Armandinho fazia uma cara contrariada e ia em fren­te. Se tinha gente esperando, ele não entrava. Voltava mais tarde. Isto era o que pensava Seu Luís, até o dia em que o folgado parou na porta e perguntou, como sempre:

— Quantos tem?

Chovia um pouco naquela tarde e a barbearia estava com um movimento fracote. Seu Luís nem precisou con­ferir, para responder:

— Só tem um!

O Armandinho fez a mesma cara de contrariedade, aliás, fez uma cara mais contrariada do que o normal e, ao invés de ir em frente, como fazia sempre, deu uma mar­cha à ré que deixou o barbeiro intrigado. Passou o resto do dia pensando naquilo e grande parte da noite também. A mulher dele, que era uma redondinha de olhos verdes, até perguntou:

— Que é que tu tens, Lulu? — mas Seu Luís não res­pondeu.

No dia seguinte, lá estava a pracinha pacata, as crian­cinhas, babás, sorveteiro, português cafiola de caprino. Tudo igualzinho. A barbearia com seu movimento nor­mal quando passou o Armandinho:

— Quantos tem? — perguntou.

Seu Luís respondeu que tinha doze e o Armandinho foi em frente. O barbeiro terminou a barba do freguês que estava na cadeira e explicou para os que esperavam:

— Vocês vão me dar licença um instantinho. Eu vou até em casa.

Todos sabiam que Seu Luís morava logo ali, dobran­do a esquina a terceira casa e ninguém disse nada. Seu Luís saiu, entrou em casa devagarinho e puxa vida... que flagra! Felizmente ele não tinha levado a navalha, senão o Armadinho, nos trajes em que se encontrava, tinha perdi­do até o umbigo. Ou mais. Saiu pela janela como um raio, tropeçando pelas galinhas, no quintal. A mulher de Seu Luís berrou e apanhou que não foi vida. Até hoje não se pode dizer de sã consciência o que foi que ela fez mais: se foi apanhar ou gritar.

O que eu sei é que foi um escândalo desgraçado. Acorreram os vizinhos, veio radiopatrulha e até um padre apareceu no local, porque ouviu dizer que alguém preci­sava de extrema-unção quando, na verdade, o que disse­ram ao padre foi que Seu Luís dera um estremeção na mulher. O padre era meio surdo.

Agora - passado um tempo - o Armandinho mudou-se, Seu Luís continua barbeiro, mas a mulher dele é manicura no mesmo salão, que é pra não haver repeteco.

 

 

                                           Liberdade! Liberdade!

 

ANDANDO NU pelo apartamento já gozava a sen­sação de liberdade tantas vezes sonhada. Entrou no ba­nheiro e meteu a mão dentro da banheira, sentindo a tem­peratura da água. Estava tépida, acariciante como espuma de sabonete em anúncio de televisão. Fechou as torneiras e foi se enfiando na banheira devagarinho, prolongando o prazer. A água, por causa daquela lei de Arquimedes que muitos pensam chamar-se "Eureka", começou a transbor­dar e a molhar o chão. Dane-se! Que tudo se molhasse à vontade; estava sozinho em sua casa, podia fazer o que quisesse.

Puxa vida! Solteiro outra vez!

Sorriu satisfeito e ficou olhando o próprio umbigo.

Onde estaria aquela chata agora? Bem... não teve tem­po de ir muito longe. Provavelmente na casa da mãe, aquela velha cretina. Laurinha, nas brigas que tiveram ao lon­go daqueles seis anos de casamento, sempre ia para a casa da mãe.

Pouco importava para onde tinha ido. Ah... esta ti­nha sido a briga definitiva. Enfim, só! O homem, quando casa, tem duas alegrias: na primeira noite, em companhia da mulher, quando murmura carinhoso "enfim, sós!", e na primeira noite depois que a mulher se mandou, quan­do murmura aliviado "enfim, só!".

Achou o pensamento um bocado filosófico e voltou a se interessar pelo umbigo, testemunha muda, constante e próxima de sua vida conjugai:

Quanta chateação, hem, compadre? — perguntou ele ao umbigo, falando alto, assustando-se com o som da própria voz. Epa, assim, não! Falando sozinho iam pensar para que era maluco. Ora, mas não havia mais ninguém ali para achar qualquer coisa a seu respeito. Se houvesse alguém já tinha dado o teco. E lembrou-se que nunca de­morava assim no banho como estava demorando agora, porque a voz esganiçada de Laurinha viria lá do corredor, pra chatear:

Vai ficar morando no banheiro, vai?

De repente começou a fazer planos. Laurinha tinha se mandado de vez — isto era ponto pacífico. Arrumaria o apartamento a seu modo. Contrataria um mordomo; sem­pre achou o detalhe bacanérrimo. Um cara que cuidasse de suas roupas, seus compromissos sociais, que nem na­quele filme do Jack Lemmon, que o mordomo se interes­sa até pela comida que o patrão comia.

O umbigo estava estufado, olha só... andava comen­do demais. Também, com aquela vida chata que estava levando, emagrecer pra quê? Mas contrataria um cara pri­meiro time, desses que se orgulham de servir um patrão alinhado, como ele. Em primeiro lugar, mandaria fazer uns ternos novos, organizaria um barzinho na varanda, cheio de bossinhas, para receber os amigos. Os amigos e as amigas. Garotas bem desinibidas, indo à cozinha pre­parar canapés. Ia ser o máximo.

Saiu do banho e imaginou-se sendo enrolado, pela solicitude do mordomo, numa tremenda toalha felpuda de cores berrantes. Atravessou o corredor molhando o tapete. Azar o dele... e entrou no quarto. A cama poderia ser a mesma, com outro espaldar de cabeceira, madeira trabalhada, antigão... móvel antigão. O armário de Lauri­nha saindo dali, ia ficar espaço para uma escrivaninha legalzinha, com muitos objetos masculinos espalhados: ca­chimbo, binóculo, essas bossas.

Acabou de se enxugar e atirou a toalha em cima da cama. Num reflexo condicionado, já ia apanhar a toalha e pendurar, como fazia sempre, mas conteve-se. Precisava ir se acostumando a ser servido. Breve teria empregados para fazer as coisas chatas que Laurinha o obrigava a fa­zer.

Essa noite jantaria fora: num desses restaurantes so­fisticados. Talvez depois desse uma esticada pelos bares, flertar com uma grã-fina qualquer. Quem sabe, trazê-la até ali para... claro, era preciso começar vida nova. A vida que ele merecia.

Caminhou sorrindo para a sala e estava servindo um drinque, assobiando "These foolish things", quando a cam­painha tocou. Outra coisa que iria mudar: aquela campai­nha estridente, antipática, por uma dessas que fazem "bim bom".

Acabou de servir a bebida e fechou a garrafa de cris­tal. A campainha tocou outra vez. Caminhou tranqüilo para ver quem era. Laurinha, com voz choramingosa, de olhar baixo e toda encolhidinha, perguntou:

- Posso entrar, Neném?

É... quem nasce pra cavalo vai morrer pastando. Que entrasse logo. E pensou: - Pelo menos, durante as próxi­mas 24 horas, ela não será tão chata.

 

 

                                               O Padre e o Busto

 

FOI NA ESQUINA das Ruas Leopoldo Miguez e Ba­rão de Ipanema. A flor dos Ponte Preta mora pertinho e sua janela dá para o lado da Igreja de São Paulo Apóstolo, que fica justamente num dos quatro cantos da menciona­da esquina. Explicado o cenário, vamos à cena.

Passa muita mulher jeitosinha pelo local, vindo ou indo para a praia, banhar-se nas águas azuis do Atlântico Sul. Claro, passa também muito xaveco, muita gorda, muita magricela, mas quem for membro do SNP (Serviço Nacional de Paquera) e tiver um pouco de paciência vê passar cada certinha de fazer deputado largar Brasília.

Era assim a mocinha que vinha vindo. Ela caminhava pela Barão de Ipanema, no sentido contrário às outrora alvas areias de Copacabana. Tinha dado o seu mergulhinho, sem dúvida, e vinha com seus curtos cabelos pin­gando e a pele toda molhada e brilhante do óleo que pu­sera para se proteger do sol.

Eu disse que ela vinha caminhando? Besteira. Ela vi­nha era flutuando rente ao chão, balançando legal os seus pedaços mais encantadores. Uma sandalinha sumária, um pano colorido a que chamam "pareô" envolvendo-lhe a cintura, mas numa parte remota, a ponto de deixar-lhe o umbigo de fora e, daí pra cima, de atrapalhar a visão havia somente a parte superior do biquíni, um sutiã tão mixuruca que mais parecia uma gravatinha borboleta pregada ao busto. Trazia na mão direita uma cesta de palha com seus teréns de maquiagem e sob o braço esquerdo uma esteirinha enrolada.

E lá ia ela indiferente ao ronco dos homens que cru­zavam o seu caminho, até que chegou na esquina e parou no meio-fio, observando o trânsito. Foi aí que apareceu o padre. Para falar a verdade eu não vi de que lado veio o padre e vocês vão me perdoar o detalhe, mas é que, com aquilo tudo de mulher atravessando a rua, como é que eu ia observar padre, não é mesmo?

O que eu sei é que, de repente, ficaram os dois lado a lado. O Padre e a Moça. Eu até que me lembrei do poe­ma de Carlos Drummond de Andrade, sobre esse tema; poema que vem de ser transformado num belo filme com a Helena Inês. Só que, no poema, o padre fica encantado pela moça e, ali na esquina, o padre era velhusco e gordo e estava era indignado com a exposição dos encantos da moça. Seu olhar de censura envolveu a bonitinha de alto a baixo, parando nos olhos, no pescoço, nos ombros, no busto, no umbigo, enfim, parando por ali tudo. E não se limitou à inspeção o piedoso sacerdote. Da minha janela eu ouvi quando ele chamou a certinha de sem-vergonha:

Isto é uma falta de pudor. Suas carnes serão quei­madas pelas chamas eternas do Inferno — ele gritou.

Ela reagiu. Encolheu-se um pouco, mas reagiu:

O senhor não tem nada com isso.

Engana-se — retrucou o padre. — Tenho sim. Todos nós temos — e olhou em volta, buscando parceirada, mas — pelo jeito — estava todo mundo contra. O padre resolveu dar-se ao trabalho da catequese. Já tinha gente às pam­pas. Ele pigarreou e lascou: — São moças sem pudor, rapa­zes sem os freios da educação, que estão botando o mun­do a perder.

E tome de blablablá. A moça, irritada com o ataque, titubeou um pouco no meio-fio e procurou abrir cami­nho para se mandar dali. Uma mulher mulata e barriguda tentou impedir, mas a mocinha tinha as suas mumunhas. Deu um empurrão na mulata e foi saindo. E o padre lá:

É por isso que a mocidade de hoje conhece me­lhor o busto de Gina Lolobrigida ou Sofia Loren (o padre era um bocado cinematográfico) do que os bons princípi­os. Deve ter achado a imagem boa, porque repetiu:

A mocidade conhece melhor o busto das atrizes do que os bons princípios.

A mocinha já ia lá longe, mas ainda assim tinha um advogado de defesa que, virando-se para o padre, ponde­rou:

Seu padre, os bons princípios não têm decote e o busto das atrizes tem. Vai ver que é por isso.

Risada da turba ignara. O padre queimou-se. Saiu pi­sando duro, a turba foi se diluindo, em pouco tempo na esquina estavam a carrocinha de sorvete, a banca de jornaleiro, um ou outro passante.

De dentro da igreja vinha o som do órgão, suave, suave!

 

 

                                           Diálogo de Reveillon

 

MADAME TAMBÉM estava com a moringa cheia, mas — em comparação com o sujeito que a cumprimen­tou, podia até ser classificada de dama sóbria em festa de pileque. Quando ela passou, o cara levantou a cabeça e falou assim:

-Olá.

A dona não devia ser mulher de olá, porque olhou-o com certo desprezo e não respondeu. Já ia seguindo para atender ao chamado de um outro pilantra que lhe fez si­nal, mas o que dissera olá continuou falando e ela escu­tou:

- Feliz 66 pra você, tá?

A dona aceitou: - Para você também.

O cara deu um risinho de quem não está acreditando muito em 66. Depois pegou uma taça, botou champanhe dentro e ofereceu:

Vira esta aí, em homenagem ao cabrito que mor­reu.

Você já não bebeu demais? — ela quis saber.

Que pergunta besta, minha senhora. Isso é per­gunta de mulher casada.

Mas eu sou casada.

Não me diga! Eu também sou. Eu sou casado às pampas — deu um soluço de bêbado e ficou balançando a cabeça, a considerar o quanto ele era casado. Em seguida esclareceu:

Eu sou casado desde 1950, tá bem?

Eu também — a dona disse.

Que coincidência desgraçada, né? Ambos somos casados desde 1950. Você também casou naquele igrejão enorme que tem lá na cidade e que eles já tão achando pequena e estão construindo outra?

A que estão construindo agora é a nova Catedral, a que eu me casei chama-se Candelária.

Isto mesmo: Candelária. Foi lá que eu me casei.

Eu também.

Também??? Puxa. Casada como eu, em 1950 como eu, na Candelária como eu. Não vai me dizer que a sua lua-de-mel foi na Europa também.

Muita gente passa lua-de-mel na Europa — a dona ponderou.

É isso mesmo — o cara concordou: — Lua-de-mel na Europa. Até parece que isso adianta alguma coisa.

A lua-de-mel não depende do lugar para ser me­lhor ou pior. Depende do casal.

O cara deu uma risadinha e explicou: — Minha mu­lher sempre diz isso que você está dizendo — e tratou de encher novamente a taça. Mas aí a dona mudou o tom da conversa:

Escuta, Eduardo, você já bebeu demais. Vamos embora.

E agarrando o marido cambaleante, levou-o para casa.

 

 

                                                                 Um Predestinado

 

OS DOIS ESTAVAM na esquina, paquerando as mu­lheres que passavam. Era uma esquina de Copacabana e passava mulher às pampas. E os dois ali, numa abstenção dolorosa. Em se tratando de mulher, estavam mais atrasa­dos que o interior de Mato Grosso. Quando passava uma mais bonitinha pouquinha coisa, um catucava o outro com o cotovelo e dizia, quase babando: — Olha que coisinha!

O catucado concordava e iam ambos virando a cabe­ça devagarinho, à medida que a boa ia passando. Daquele jeito não iam apanhar ninguém: no máximo, um torcicolo. Também, eu vou te contar, eram ambos tesos de fazer pena. Duros que só nádega de estátua.

Fizeram-se amigos casualmente. Os dois tinham vin­do do interior para "fazer" o Rio. Um de um Estado do Sul, outro de um Estado do Norte. Copacabana era uma fascinação; por isso moravam em vaga de apartamento.

Uma dessas velhotas, que lutam com as maiores difi­culdades e alugam quarto para rapaz respeitador e de boa família, alugou a cama da esquerda para um deles, o que veio do Norte e trabalhava num banco, agência de Copacabana, é lógico. Um mês depois chegou o do Sul, leu o anúncio no jornal: "...para rapaz de respeito. Alugo quar­to com café da manhã".

— Ao menos o café da manhã eu garanto - pensou, e ficou com a vaga, cama da direita. A solidariedade da po­breza os fez amigos.

Um tinha 27 anos e o outro eu não sei, mas era mais ou menos da mesma idade. A necessidade do amor, da ternura feminina, de um carinho enternecedor, fazia do quarto um ambiente irrespirável. Por isso, de noite saíam, comiam uma besteirinha ali mesmo, debaixo do prédio, num restaurante anônimo, mas que poderia perfeitamen­te chamar-se "As Mil e Uma Moscas", e depois ficavam numa esquina de movimento, vendo passar mulher.

A intenção não era apenas ver passar. Havia sempre a esperança de que uma olhasse e desse bola. Neste caso o contemplado saía atrás e atropelava a caça, metia uma conversa. Mas bola mesmo só recebiam das profissionais. No começo chegaram a confundir, e um deles entrou na maior gelada. Pensou que estivesse agradando, foi em fren­te, e depois, na hora de pagar, teve que deixar o relógio na cabeceira da piranha.

Isto não acontecia mais. Estavam com muita prática; só que não conseguiam atropelar bulhufas. Era desesperador; há meses que estavam invictos e um deles estava pensando justamente nesse recorde, quando passou um carro conversível com uma loura bacanérrima. A loura sorriu para o cara gordinho que dirigia, passou o braço pelo seu pescoço e sapecou-lhe um beijo na bochecha.

Os dois se entreolharam, enquanto o carro sumia: — Viste que covardia? — perguntou um.

- Vi — gemeu o outro.

- E viste o cara que estava com ela?

- Parecia uma foca. E nós dois aqui. Dois boas-pintas.

...boas-pintas mas tesos — lembrou o que achara covardia um sujeito tão feio com uma mulher tão legal.

Voltaram para o quarto numa fossa de fazer inveja a Franz Kafka. No dia seguinte, o que trabalhava num ban­co (o outro era comerciário e descontava para o IAPC, coitadinho) estava em sua cama, fazendo hora para o jac­tar no "As Mil e Uma Moscas", quando o companheiro chegou. Entrou no quarto, deu um boa noite alegre e co­meçou a cantarolar, enquanto desembrulhava umas com­pras. Mostrou:

Olha só. Comprei uma calça que é o fino, uma cami­sa italiana bárbara e este mocassim aqui que só falta falar.

Quem te deu a dica? — perguntou o amigo, des­lumbrado.

Que dica?

De que o mundo vai acabar?

Não é nada disso, velhinho. Hoje, no trabalho, eu estive pensando. Só quem apanha mulher é dinheiro. As minhas economias que vão para o diabo. Você não viu ontem? Mulher, quando vê homem gastando, a gente nem precisa atropelar. Elas é que atropelam a gente, morou? O papai aqui vai mudar de tática. Vou mandar brasa. O Frank Sinatra, por exemplo...

Que qui tem o Sinatra?

As mulheres vivem atropelando ele. É claro: elas sabem que o homem ganha os tubos.

Mas você não ganha.

Mas vou fingir, ora essa! — meteu as roupas novas, penteou-se no caprichado e se mandou. Antes de sair, ain­da disse pro outro: — To com um palpite, meu camarada. Hoje elas é que vão me atropelar.

O que trabalhava no banco não teve ânimo de acom­panhar o amigo. Ficou onde estava, deitado na cama da esquerda. Foi aí que ouviu a freada. Correu para a janela.

O outro estava estatelado no asfalto. Um carro se afastava rápido do local, com uma loura na direção. Como era do Norte, pensou assim:

— Virge! Num é que os pensamento dele deu certo, esse menino?

 

 

                                       Mitu no Menu

 

SE O DISTINTO aí tivesse ido a Liverpool, durante a lamentada Copa do Mundo, ficaria espantado com o gran­de número de patrícios desembarcados no movimentado porto inglês. Dizem até que lá chegou um navio da Cos­teira, cheio de torcedor apaixonado, dois dias depois de a seleção brasileira ter ido pra cucuia. Dizem também que o navio voltou de marcha à ré - mas isto eu não afirmo, apenas comento de ouvir dizer.

O que eu vi mesmo foi muito brasileiro se virando pra poder dormir. Lembro-me de uma tarde, em que saía­mos do Press Center" - eu e o coleguinha Achilles Chirol, que não me deixa mentir. A gente ia saindo e conver­sando em português, porque era muito pedante ficar ali gastando inglês entre si, quando se aproximaram três su­jeitos meio ressabiados. Um deles virou-se para o colegui­nha e perguntou:

— Os senhores são brasileiros?

Nós éramos (e ainda somos). O cara então quis saber se naquele prédio de onde saíamos tinha poltronas no corredor. O Achilles disse que tinha e os três ficaram muito contentes. Entreolharam-se e um deles propôs:

— Vamos entrar aí, turma. Assim a gente dorme um pouquinho nas poltronas.

To contando o caso, para vocês sentirem o drama de quem faz do futebol uma paixão capaz de levar um coita­do a atravessar um oceano para ir dormir em banco de jardim, numa cidade onde chove de duas em duas horas, e onde o verão é tão extenso que — no ano passado — caiu num domingo.

A sorte desses dignos representantes da plebe ignara que foram parar em Liverpool era a quantidade de brasi­leiros presentes. No idioma pátrio eles conseguiam pedir uma ajudazinha e iam maneirando. Mas, depois que o Bra­sil foi eliminado e os jornalistas tiveram que partir para outras cidades, onde prosseguiria o campeonato mundi­al, eles ficaram na maior bananosa, e quem não conse­guiu passagem de volta nos primeiros aviões passou até fome.

Foi o caso do homem que comia mitu!

Deu-se que, uma tarde, descia um grupo de jornalis­tas a principal avenida de Liverpool (cujo nome eu esque­ci, porque de Liverpool não estou querendo me lembrar de nada), quando apareceu o homem que comia mitu. Eu estava no grupo e vi quando ele se aproximou. Disse que era brasileiro, que não falava nem "yes" de inglês, e per­guntou se não podia almoçar com a gente. Vimos logo que ele estava pedindo benção a mendigo e chamando cachorro de dindinho. Quem lhe pagaria o almoço seria mesmo o grupo, mas como éramos vários nesse grupo, concordamos em levá-lo. Saía barato e era menos um nor­destino com fome (o nossa-amizade era pernambucano).

No restaurante, cada um pediu seu prato. O penúlti­mo a escolher pediu costeletas de carneiro com legumes, e o último, como quisesse a mesma coisa, disse, em in­glês, para o garçom:

Me too!

Quando vieram os pratos o fominha olhou para as costeletas, depois olhou pro garçom e — como ouvira a pedida — apontou para o prato e disse:

-Mitu!

Ora, "mitu" pode ser "me too", e o garçom trouxe o mesmo prato para ele também.

Depois soubemos que o distinto dava o golpe em tudo que era brasileiro que entrava em restaurante. Pedia para almoçar junto e era o último a pedir: — Mitu! — e o garçom trazia.

Mas aí o Brasil entrou bem, os brasileiros se manda­ram e ele ficou lá. Consta que, depois de muita luta, arran­jou uns "shillings" e entrou num restaurante. Quando o garçom se aproximou, fez a pedida:

- Mitu!

O garçom não entendeu nada. Parece que, depois que os brasileiros foram embora... o mitu acabou.

 

 

                                         "Não Sou uma Qualquer"

 

ELA NOTOU que ele estava meio bronqueado por causa das respostas monossilábicas que dava às suas per­guntas. Conhecia-o muito bem. Quando ele ficava emburrado para falar é porque estava com minhoca na cuca.

Que é que há, meu bem? Você está meio chateado! Ele não respondeu logo. Meteu um suspensezinho

legal, puxando uma tragada forte do cigarro. Depois ca­minhou até o armário da sala, tirou uma garrafa de uísque e deu aquele gole prolongado no mais belo e ultrapassa­do estilo Humphrey Bogart. Depois sentou-se na poltro­na, cruzou as pernas e disse:

... É andaram me buzinando aí umas coisas.

A meu respeito? — e ela espalmou a mão sobre o cobiçado busto.

Novo silêncio, e a distinta, muito preocupada, levan­tou-se de onde estava e foi se aninhar no colo dele. Fez vozinha de criança:

Meu queridinho, conta pra ela, vá! Deve ser mais uma fofoca dessa gente, mas é melhor você contar logo pra ela, sabe? Assim a gente tira logo as dúvidas. Não gos­to de ver o meu querido zangado não - e começou a enfi­ar os dedos esguios e bem tratados pelos cabelos dele.

O cara suspirou, todo despenteado, e foi soltando o que tinham contado pra ele. Tinha sido na noite de apre­sentação do Charles Aznavour, no Copacabana Palace, a mais recente badalação de grã-fino com renda para ex­cepcionais. Agora a moda é esta: tudo o que é festa de grã-fino é para dar renda para excepcionais, pois ninguém é mais excepcional do que um grã-fino.

Ela tinha ido à tal apresentação do cantor francês e fizera muito sucesso. A Léa Maria deu até uma nota no Caderno B, dizendo que ela estava um show. De fato (en­quanto ele falava ela ia se recordando), o seu vestido opart, com mini-saia, foi um sucesso. Era daquela saia que, quando a mulher senta, a saia some e aparece o que a saia tinha obrigação de fazer sumir. Um fenômeno da eleva­ção dos costumes — como diz a veneranda Tia Zulmira.

— Me disseram que você flertou a noite toda — o cara falou.

Ela esticou-se, ainda sentada em suas pernas. Outra vez a mão espalmada sobre o cobiçado busto:

- Eu ???

Ele ratificou. Ela mesma. Tinham contado pra ele que ela dançara de rosto colado com um tal de Collatini.

— Cola aonde? — perguntou ela.

— Collatini.

Ela ficou indignada. De fato, os Collatini, de São Pau­lo, estavam na mesa dela, mas isto era uma infâmia. Imagi­nem, logo quem? O Collatini, aquele velhote. De maneira nenhuma. De mais a mais, a Bequinha, mulher do Collati­ni, era sua amiga de infância. Essa gente é assim mesmo. Quando não tem nada para comentar sobre uma mulher... inventa. Dela eles não podiam dizer nada, tá bem? Absolutamente nada. Nunca deu margem para falatório nenhum. Pelo contrário: procurava se portar em público — aliás, procurava se portar em qualquer lugar, ora esta! - com a máxima dignidade, justamente por isso. Porque sabia que essa gente de sociedade é fogo; não pode ver uma mulher bonita fora da panelinha desses cretinos, que começa logo a tentar descobrir coisas, para fazer dos outros gente igual a eles. É isto mesmo: falam só para justificar a vida que levam, esses amorais. Mas com ela não.

— Comigo não — repetia indignada: — Eu não sou uma qualquer!

Ele, impressionado com a reação dela, puxou-a para o seu regaço. Deu-lhe mais um beijo e falou baixinho que sabia disso, sabia que ela não era uma qualquer.

Pouco depois ela se levantava do colo dele, ia até o banheiro: ajeitou-se, pintou-se e de lá mesmo perguntou:

— Meu be-em! Que horas são?

— Quase seis! — respondeu o cara.

Ela veio espavorida lá de dentro, deu-lhe um beiji­nho rápido, apanhou uns embrulhinhos de compras que deixara sobre a mesa, quando chegara, e despediu-se:

— Tchau, querido! Deixa eu correr se não meu mari­do me mata!

E foi embora.

 

 

                                         O Analfabeto e a Professora

 

FOI QUANDO abriram a escolinha para alfabetização de adultos, ali no Catumbi, que a Ioná resolveu cola­borar. Essas coisas funcionam muito na base da boa von­tade, porque alfabetizar adultos, nunca preocupou muito o Governo. No Brasil, geralmente, quando o camarada che­ga a um posto governamental, acha logo que todos os problemas estão resolvidos, sem perceber que — ao ocu­par o posto - os problemas que ele resolveu foram os dele e não os do País. Mas isto deixa pra lá.

Eu falava no caso da Ioná. Quando inauguraram o curso de alfabetização de adultos no Catumbi, os bene­méritos fundadores andaram catando gente para ensinar, e entre os catados estava um padre, que era muito bonzinho e muito amigo da família da Ioná. O piedoso sacerdo­te sabia que ela tinha um curso de professora tirado na PUC, e só não professorava porque tinha ficado noiva. Mas depois — isto eu estou contando pra vocês porque todo mundo sabe, portanto não é fofoca não — a Ioná desmanchou o noivado. Ela era uma moça moderna e viu que o casamento não ia dar certo; o noivo era muito qua­drado, embora para certas coisas fosse redondíssimo.

Enfim, a Ioná tinha o curso mas não usava pra nada, e aí o padre perguntou se ela não queria ser também pro­fessora no Curso de Alfabetização de Adultos do Catum­bi. Ela topou a coisa, e as aulas começaram.

No início eram poucos alunos, mas depois houve muito analfabeto interessado, e o curso se tornou bem mais animado. Uns dizem que esse aumento de interesse foi por causa da administração bem feita, outros - mais realistas, talvez - acharam que o aumento de interesse foi por causa da Ioná, que também era muito bem feita.

Professora certinha tava ali. Tamanho universal, sem­pre risonha, corpinho firme, muito afável, e um palmo de rosto que a gente olhando de repente lembrava muito a Cláudia Cardinale. Além disso, ela ensinava mesmo. Seus alunos, para impressioná-la, caprichavam nos estudos, e sua turma tornou-se em pouco tempo a mais adiantada de todas.

Só um aluno era o fim da picada. Sujeito burro e duro de cabeça. Era um rapaz até muito bem apessoado, alto, louro, que trabalhava numa fábrica de tecidos. Chamava-se Rogério, era esforçado, educado, mas não conseguia ler a letra "o" escrita num papel. A turma se adiantando e ele ficando para trás. Ioná tinha pena dele, mas não sabia mais o que fazer, até que uma noite (os cursos eram no­turnos) ela fez ver ao Rogério que assim não podia ser, e ele ficou tão triste que a Ioná sentiu pena e perguntou se ele não queria que ela lhe desse umas aulas particulares.

— Seria bom sim - ele falou. E, então, sempre que terminavam as aulas, aluno e professora seguiam para a casa dela para repassarem os estudos da noite. Era um caso curioso o desse aluno, que se mostrava tão esperto, tão comunicativo, mas que não conseguia vencer as li­ções da cartilha. O livro aberto na frente dele e ele sem saber se foi Eva que viu a uva ou se foi vovô que viu o ovo.

Mas, justiça se faça, com as aulas particulares Rogé­rio melhorou um pouquinho. Não o suficiente para acom­panhar o adiantamento da turma, mas — pelo menos — já soletrava mais ou menos.

Nesta altura o CAAC — Curso de Alfabetização de Adultos do Catumbi — já progredira a ponto de se tornar uma escola oficializada, e a Ioná estava tão interessada no Rogério que tinha noite até que ele ficava pra dormir.

Quando chegou o dia das provas e iam lá o inspetor de ensino e outras autoridades pedagógicas, Ioná foi in­formada do evento e ficou nervosíssima. Disse para o seu aluno favorito que era preciso dar um jeito, que ele ia ser a vergonha da turma, etc. Ele pegou e falou pra ela que pra decorar era bonzinho e, se ela fosse lendo para ele, decoraria tudo.

Claro que a Ioná não levou muita fé no arranjo, mas como era o único, aceitou. Na noite das provas o Rogério esteve brilhante e parecia mesmo que decorara aquilo tudo. Ela ficou orgulhosíssima e, mais tarde, já em casa, enquanto desabotoava o vestido, perguntou:

— Puxa, como é que você conseguiu decorar aquilo tudo, querido, tendo trabalhado na fábrica o dia inteiro?

— Eu não trabalhei não. Eu telefonei para o meu pai e disse que não ia.

— O quê ??? Seu pai é o presidente da fábrica?

— E eu sou o vice.

Ela ficou besta: - Quer dizer que você já sabia ler... escrever...

— Desde os cinco anos, neguinha!

 

 

                                                   Adúlteros em Cana

 

FOI NOUTRO dia, num prédio da Rua Barata Ri­beiro. Quando chegou a Polícia, naquela viatura da Po­lícia Secreta Portuguesa, que quando encosta no meio-fio todo mundo manja, os vagabundos que circulavam pela redondeza pararam logo para ver o bicho que ia dar. Que qui foi, que qui não foi - ficou-se sabendo que era um marido cretino, interessado em dar flagrante de adultério na mulher. Ora, uma bossa dessas dá mais renda que Fla-Flu. Enquanto as autoridades subiam em companhia do cocoroca enganado, juntou mais gente em baixo que mosca em banheiro de botequim. E foi aí que a nossa re­portagem descobriu um fato interessante na psicologia das multidões: tava todo mundo torcendo pela adúltera. Quando ela apareceu no asfalto, nervosa e pálida, foi aque­la salva de palmas, consagradora. Ao passo que o marido apontado por um dos circunstantes com o grito esclare­cedor de "o corno é aquele ali", foi saudado com uma vaia firme e de certa forma surpreendente.

Mas isto deixa pra lá. Eu só contei porque o episódio me pareceu deveras interessante, e dele me lembrei por causa da notícia que acabo de ler aqui no jornal. É sobre o novo código penal na Argélia. Aqui no Brasil, entre as muitas reformas que a "redentora" prometeu e que não fez ainda, estava incluída a do Código Penal. Daí, eu me interessei pelo que o jornal dizia; principalmente por este trecho. "O adultério tornou-se ontem um crime sob a lei argelina; e a mulher será punida duas vezes mais forte­mente que o homem. O novo Código Penal dispõe que a mulher que cometer o adultério é passível de dois anos de prisão. Já para o homem a pena máxima é de um ano. O novo código pune ainda o homossexualismo com uma pena de três anos de prisão".

Está aí um troço que aquela turma daquela tarde, na Rua Barata Ribeiro ia vaiar na certa. Por que metade da pena para o homem, se para o pecado do adultério são precisos um homem e uma mulher? Ora, numa disputa dessas é muito difícil dizer qual dos dois está pecando mais.

Desconfio que o código argelino está injusto. E sa­bem por quê? Primo Altamirando, quando leu a notícia, elogiou muito e ainda me chamou a atenção para o deta­lhe dos três anos, que pega o bicharoca na Argélia. E com aquela desfaçatez peculiar ao seu deformado caráter, co­mentou:

— "Coitada da adúltera que se meter com uma bicha lá na Argélia. Vai pegar cinco anos de cana. Dois de adul­tério e três de frescura".

 

 

                                               Urubus e outros Bichos

 

O PRIMEIRO urubu de exportação negociado pelo Brasil foi para a Holanda. Não sei para que é que os súdi­tos da Rainha Juliana queriam um urubu, se o país lá deles é de uma impressionante limpeza. Em todo o caso, como o urubu foi exportado para Amsterdã, limitei-me a dar a notícia. Depois, outros urubus foram exportados para outras tantas capitais européias. Isto sem contar certos urubus do Itamarati que — verdade seja dita — não foram exportados propriamente. Atravessaram a fronteira "a ser­viço ", para ser recambiados mais tarde.

Mas deixa isso pra lá. Se volto ao assunto é porque leio aqui um telegrama vindo de São Paulo no qual se con­ta que há representantes de jardins zoológicos da Alema­nha, da Holanda e da Itália, nas cidades de Santos, São Paulo e Manaus preparando a compra de diversos urubus.

O fato de haver um representante da Holanda entre os compradores de urubu deixou Bonifácio Ponte Preta (o Patriota) regurgitando de alegria cívica, uma vez que — como ficou dito acima — a Holanda foi a primeira nação a adotar urubu brasileiro. O detalhe deixou o Boni tão exci­tado que chegou a recitar de orelhada um poema de Fa­gundes Varela que começa assim: "Pátria querida, pátria gloriosa, Continua fitando os horizontes..." E depois, olhos marejados de patriotismo, acrescentou:

— Se a Holanda quer mais urubu é porque o nosso urubu está agradando na Europa.

Só não disse que a Europa curvou-se mais uma vez ante o Brasil, porque Bonifácio não é acaciano. É patriota.

Entretanto, se esse detalhe do telegrama impressio­nou o Boni, a mim o detalhe do mesmo telegrama que mais impressionou foi o final, onde se lê: "Os europeus querem também comprar animais embalsamados".

Acho que este negócio também é interessante para nós, mas os europeus vão desculpar: terão que esperar um pouco para adquirir animais embalsamados. Por um dever democrático é preciso que antes eles cumpram os seus respectivos mandatos no Senado.

 

 

                                                 Futebol com Maconha

 

__EM CARA que é tricolor, tem cara que é vascaíno; uns torcem pelo Flamengo, outros pelo Botafogo. Mas, Primo Altamirando tinha que ser diferente: o miserável me confessou noutro dia que é torcedor do "Puxa Firme F.C.", Sociedade Recreativa do Morro do Queimado. Ali­ás, essa história foi ele que me contou.

Diz que 22 jogadores, mais técnico, massagista, en­fermeiro do "Puxa Firme", não tem um que não seja apre­ciador da erva maldita. O preparo físico do time se resu­me numa rápida concentração, para puxar maconha. Em véspera de jogo a janela da sede, que fica no sobrado de um botequim, parece até incêndio: como sai fumaça! No sábado passado, o técnico do time — um tremendo criou­lo que atende pelo vulgo de Macarrão, deu o grito: "Olha cambada, amanhã nós tem que jogar comportado. Nós vai enfrentar o time do Padre Evaldo e é em benefício da Igreja."

Como Macarrão é muito respeitado ninguém chiou e no dia seguinte, no telheiro do campo, que a turma apelidou de vestuário, o time uniformizado contava com: Dentinho; Macaxeira, Bom Cabelo, Pau Preto e Lampari­na; Melodia e Fubecada; Chaminé, Praga de Mãe, Porém e Parecido (tudo apelido, inclusive Parecido, porque fazia um sorriso igual ao do Sr. Juraci Magalhães sempre que acertava um). Macarrão deu as instruções e perguntou: "Argum poblema?" Lamparina levantou o dedo e perguntou:

— "Que tipo de marcação que a gente vai usar?"

Macarrão pegou um papel de embrulho e deu uma de técnico formado. Traçou uns riscos e disse: "Marque-mo por zona. É mais melhor".

O time saiu pro campo e com cinco minutos a turma do padre já tava dando de goleada. Macarrão berrava as instruções cheio de ódio. "Não intrapaia os beque, criou­lo nojento". "Óia a marcação, desinfeliz". "Pára de fumar, Dentinho". E o time do Padre fazendo gol.

Quando já tava uns cinco a zero, Porém fingiu que mancava, chegou perto do telheiro e quis saber de Macar­rão se podia apelar.

"Apela pra sua mãe, semvergonho. Tá levando come aí prá todo lado. Arrespeita o time do Padre, que é tudo gente dereita".

Diz Primo Altamirando que o "Puxa Firme F.C." quan­do joga respeitando o adversário perde metade de sua estrutura técnica. O jogo acabou 8 x 0 e o piedoso sacer­dote estava todo satisfeito, tendo mesmo se dado ao tra­balho de ir cumprimentar o crioulo Macarrão, pela lisura com que seus atletas se comportaram durante a refrega.

"Parabéns, senhor Macarrão" — disse o Padre — "Certas derrotas têm o gosto da vitória. Seu time jogou com muita esportividade. Só não entendi porque jogaram com dez".

"Com dez???" - estranhou Macarrão - "Como é que eu não arreparei?"

Foi aí que Melodia, que era o capitão do time, escla­receu: "Pois é, o Lamparina não jogou. O senhor foi falar aí em marcação por zona. Sabe como é o Lampa. Não pode ouvir falar em zona que ele vai prá lá".

 

 

                                                       Vacina Controladora

 

CONFORME VOCÊS sabem, o problema da natali­dade se está tornando crucial e como a humanidade ado­ra entortar os caminhos, descobriram a pílula que resol­veria o problema mas criaram o problema do uso da pílu­la. E, enquanto os políticos e religiosos discutem se po­dem ou não podem tomar a pílula, os americanos, sem­pre apressadinhos, inventaram a vacina.

Agora passemos a palavra a Mr. Frank Norestein, pre­sidente do Conselho de População de Nova Iorque, ór­gão que nenhum de vocês imaginava que existia, mas que existe. Mr. Frank anunciou ao mundo que o controle da natividade, muito mais breve do que se pensa, poderá ser obtido através de vacinas que terão garantia de seis meses a um ano de imunização.

Diz o distinto que o atual ritmo de natividade vem num crescendo tal, que, mais cedo ou mais tarde, até mesmo as entidades religiosas serão levadas a aceitar uma solução médica para tão sério problema.

Aqui o guia espiritual de vocês, que não acredita em nada sem antes consultar a sábia Tia Zulmira, esteve no casarão da Boca do Mato, contando para a velha e experi­ente ermitã o que se propala sobre a vacina, e indagando em seguida o que titia acha disso.

Ela retirou o pince-nez, cocou o nariz, e explicou que os anticonceptivos já existem às pampas e muitos deles são batata. Apenas, razões de ordem religiosa obri­gam a medicina a não caprichar demasiado na fórmula, restringindo com isto a ação dos laboratórios, razão pela qual, de vez em quando, uma consumidora de anticonceptivo penetra pela tubulação.

De qualquer maneira — acrescentou a veneranda senhora — a melhor vacina para controle de natividade era a que eu adotava, no meu tempo.

Qual era?

Cada um dormia num quarto.

 

 

                                               Adesão

 

DIZ QUE era um camarada que ia viajando num trem, no interior de São Paulo. Ia para a sua cidade, para visitar os parentes. No vagão, em que viajava, iam tam­bém os componentes de uma chatíssima embaixada fute­bolística. Iam aos berros, alegres, comunicativos e, pelo que o homem pôde ouvir, vinham de uma cidade, próxi­ma, onde venceram um jogo pelo escore de 3 x 2, ga­nhando com isso uma taça de péssimo gosto, a qual — de vez em quando — enchiam de cerveja e bebiam fartamen­te, como faziam os nababos de outros tempos, só que não era cerveja, era champanhe, e também não era na taça, era nos sapatos daquelas "vidas tortas" da belle époque. O homem vinha imaginando essas coisas, quando um dos jogadores, ao passar rumo ao banheiro, derramou cerveja em sua calça. O homem ficou muito do furioso e levantou-se, para ver se dava um jeito de enxugar. Passou à frente do jogador, entrou no banheiro e trancou a por­ta. Depois tirou a calça, esfregou um lenço e pendurou na janela, para acabar de secar. Foi aí que deu galho, isto é, numa árvore à beira da estrada de ferro, ficou presa a cal­ça a balançar, como a lhe dar adeus.

O homem ficou no banheiro, abilolado. A próxima cidade era a sua cidade, mas como desembarcar nela, sem calça? E estava sentado naquele negócio, chateadíssimo, quando percebeu que o trem ia parar. Abriu a janelinha, desconsolado, no justo momento em que o comboio pa­rava. E foi então que percebeu: o time de futebol ia desembarcar também ali, na sua cidade. O homem não con­versou. Num instantinho tirou o paletó e a gravata, vestiu a camisa ao contrário, dando a impressão àqueles que o vissem de frente que era a camisa de um goleiro, e desem­barcou no meio dos jogadores, a berrar: — 3 a 2!!! 3 a 2!! — depois correu e entrou num táxi.

 

 

                                       O Cafezinho do Canibal

 

DEIXA EU ver se dá pra resumir. Foi o seguinte: o avião ia indo fagueiro por sobre a densa selva africana. Dentro dele vários passageiros, inclusive, e muito princi­palmente, uma lourinha dessas carnudinhas, mas nem por isso menos enxuta, uma dessas assim que puxa vida... Foi aí que o avião deu um estalo, começou a sair aquela fuma­ça preta e pronto: num instante estava o avião todo arre­bentado no chão, com os passageiros todos mortos.

Aliás, minto... todos não; a lourinha era a única so­brevivente do desastre. Tanto assim que os canibais, quan­do chegaram ao local do acidente, só encontraram ela, que foi logo aprisionada para o menu do chefe da tribo. Canibal é canibal, mas a loura era tão espetacular que a turma viu logo que ela era coisa muito fina e digna apenas do paladar do maioral.

Levaram a loura para a maloca dele e a entregaram na cozinha, onde um ajudante de cozinheiro já ia prepará-la para o jantar, quando chegou o cozinheiro-chefe e exa­minou a loura. Ela era muito da bonitinha, tudo certinho, tudo tamanho universal, aquelas pernas muito bem feitinhas, aquilo tudo assim do melhor.

Então o experimentado cozinheiro disse para o aju­dante:

- Não sirva isto no jantar do chefe não. Deixa pro café da manhã porque o chefe gosta de tomar café na cama.

 

 

                                           Arinete — A Mulata

 

COMEÇOU NUM ônibus de São Gonçalo (RJ). Lá vinha ele sacudindo a carcaça pelos buracos niteroienses, naquele calor da tarde. Os passageiros suados e sonolentos, jogados uns contra os outros, no desagradável conta­to da promiscuidade dos coletivos. O soldado da Polícia Militar, Aroldo, era o único passageiro cujo coração pul­sava além do indispensável para continuar vivendo até as palpitações de novas esperanças. É que no coração do guarda Aroldo já vivia essa esperança, na figura de Arine­te, mulata boa que Deus a conserve no esplendor de tanta saúde. Nome todo: Arinete da Conceição, como convém as mulatas. E lá ia o velho ônibus de São Gonçalo (RJ), castigado pelos buracos niteroienses.

De vez em quando o braço nu de Arinete encostan­do na farda do Aroldo. Foi quando ela abriu a bolsa para retocar a maquiagem. Ao abri-la o espelhinho preso por dentro revelou lá no fundo a maior 45. Aroldo viu a pisto­la. Meteu o olho no espelhinho de novo e lá estava o refle­xo: a maior 45.

Tinha que cumprir o seu dever e deter a mulata. Ia ser triste, prender aquilo para fins outros que não os que trazia em mente. Mas vem cá: e se prendesse a mulata e depois ficasse amiguinho dela e coisa e tal? Hem? Estava precisando de um pretexto, não estava? Não pensou duas vezes. Deu a voz de prisão e aí foi aquele delírio no Mara­canã. Arinete era boa de tudo, inclusive de bronca. Falou que a arma era dela e daí? Que não era bandida não, mas tinha pistola para se defender dos vagabundos.

A plebe ignara em volta, cansada de tanto assalto, que assalto naquela zona é que nem quadro ruim no Mu­seu de Belas-Artes — tem às pampas — a plebe ignara, eu repito, ficou logo a favor do guarda. Arinete da Concei­ção berrou mais alto: que em carro de radiopatrulha ela fazia um escândalo mas não entrava; que estava quieta no seu canto e ninguém, ouviu?, ninguém podia acusá-la de nada.

Aroldo Soares (o guarda) então propôs: "E se formos de braço dado até a delegacia, como um casal qualquer?" (Palavra de honra, tá aqui no jornal e não me deixa men­tir). Arinete topou e assim foi: braço dado e a maior 45 na bolsa. Ao subdelegado Joel Machado, do l2 Distrito de Niterói, explicou que achara a pistola na rua: "E fiquei com ela pra mim pra proteger minha beleza. Graças a Deus nunca precisei usá-la, mas se for preciso eu uso".

O subdelegado explicou que não podia; a arma tinha que ser confiscada e — depois de sindicar — soube que Arinete tem mesmo ficha limpa. É doméstica correta e seus patrões não têm queixa dela. Foi liberada e saiu bamboleando aquilo tudo de mulata, para o seu domicílio.

Ao guarda Aroldo resta a esperança de muito breve­mente andar de novo de braço dado com Arinete. Já en­tão ela irá desarmada e o casal não estará caminhando rumo ao distrito. De jeito nenhum. Seu destino é outro, seu destino é outro.

 

 

                                                 Deu Mãozinha no Milagre

 

É O MILAGRE que ajuda o padre ou é o padre que ajuda o milagre? Pelo menos em tese, o milagre deveria ajudar o padre. Entretanto, o piedoso Padre Poclat, do bairro de Senador Canedo, em Goiânia, resolveu que — na prática - pode ser contrário. O telegrama vindo de lá diz assim: "Por ter umedecido uma imagem de Jesus Cristo, fabricada em gesso, para fazê-la chorar, o Padre Poclat foi advertido pelo Arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Go­mes que lhe determinou a cessação imediata de explora­ções sobre a imagem, sob pena de ser castigado pela Igreja".

Diz que o vivíssimo sacerdote, diante da vazante em seu templo, resolveu ser mais realista do que o rei (ou mais divino do que Deus, se preferem) e anunciou, du­rante a missa, que a imagem de Nosso Senhor Jesus Cris­to, ali entronizada, começara a chorar de desgosto. Foi o quanto bastou para que a plebe ignara ficasse mais assa­nhada que um galo velho no galinheiro das frangas. Uma grande romaria mandou-se para o local.

Mas parece que o Arcebispo — embora não sendo Alziro Zarur, que fala com Jesus em vários programas de rádio, todos patrocinados — desconfiou do milagre e man­dou sindicar. O resultado foi o já descrito: uma bronca do Arcebispo para a qual o Padre Poclat teve uma resposta realmente desconcertante: mandou dizer ao superior que o "milagre" se transformara numa situação de fato "que nem Dom Fernando pode mais deter".

É a coragem de afirmar de que fala Eça de Queiroz em "A Relíquia". O negócio é ter peito para afirmar; o resto pode deixar que a crendice popular funciona me­lhor do que o melhor dos public relations. O exemplo desse milagreiro de araque serve para ilustrar a teoria do escritor português e serve também para ilustrar o dito que Tia Zulmira costuma repetir, precisamente para casos como esse do Padre Poclat: "Certos padres, quando pe­dem para Deus, estão pedindo para dois".

 

 

                                                 A Bolsa ou o Elefante

 

COMEÇOU A HISTÓRIA com a senhora prometen­do ao filhinho que o levava para ver o elefante. Prometi­do é devido, a senhora foi para o Jardim Zoológico da Quinta da Boa Vista e parou diante do elefante. O garotinho achou o máximo e não resta dúvida que, pelo menos dessa vez, o explorado adjetivo estava bem empregado. Mas sabem como é criança, nem com o máximo se conforma:

— Mãe, eu quero ver o elefante de cima.

Taí um troço difícil: ver o elefante de cima. Mas se criança é criança, mãe é mãe. A senhora levantou o filho nos braços, na esperança de que ele se contentasse. Foi quando se deu o fato principal da história. A bolsa da se­nhora caiu perto da grade e o elefante, com a calma paquidérmica que deu cartaz ao Feola, botou a tromba pra fora da jaula, apanhou a bolsa e comeu.

E agora? Tava tudo dentro da bolsa: chave do carro, dinheiro, carteira de identidade, maquiagem, enfim, es­sas coisas que as senhoras levam na bolsa. A senhora fi­cou muito chateada, principalmente porque não podia ficar ali assim... como direi?... ficar esperando que o ele­fante devolvesse por outras vias a bolsa que engolira. Era uma senhora ponderada, do contrário, na sua raiva teria gritado:

- Prendam este elefante!

Pedido, de resto, inútil, porque o elefante já estava preso. Mas, isso tudo ocorreu numa segunda-feira. Dias depois ela telefonou para o diretor do Jardim Zoológico, na esperança de que o elefante já tivesse completado o chamado ciclo alimentar.

Não tinha. Pelo menos em relação à bolsa, não tinha. O diretor é que estava com a bronca armada:

O que é que a senhora tinha na bolsa? O elefante está passando mal, — disse o diretor.

E a senhora começou a imaginar uma dor de barriga de elefante. É fogo... lá deviam estar diversos faxineiros de plantão.

Se o elefante morrer teremos grande prejuízo — garantia o diretor — não só com a morte do animal como também com o féretro. A senhora já imaginou o quanto está custando enterro de elefante?

A senhora imaginou, porque tinha contribuído para o enterramento de uma tia velha, dias antes. E a tia até que era mirradinha.

Deu-se então o inverso. Já não era ela que reclamava a bolsa, era o diretor que reclamava pela temeridade da refeição improvisada. Para que ele ficasse mais calmo, a dona da bolsa falou:

- Olha, na bolsa tinha um tubo de "Librium”, que é um tranqüilizante.

Até agora o diretor não sabe (pois ela desligou) se a senhora falou no tranqüilizante para explicar que não era preciso temer pela saúde do elefante, ou se era para ele tomar, quando a bolsa reaparecesse.

 

 

                                         Suplício Chinês

 

ERA UM hotelzinho pacato e que só recebia hós­pedes durante o verão. Clima de montanha, boa comida e muito sossego. Enfim, essas bossas.

Durante a maior parte do ano os cozinheiros ficavam dando peitada um no outro. Não tinham mesmo nada pra fazer!!! Cidade pequena, sabe como é? Igual a Cachoeirinha, onde nasceu Primo Altamirando. Diz ele que a popu­lação da cidade não aumenta porque sempre que nasce um filho... foge um pai.

Mas voltando ao hotelzinho: o velho escrivão do car­tório local, um cara solteiro e doido por mulher, morava lá e sua constante reclamação era justamente a falta de hospedagem feminina, para que ele pudesse praticar o salutar esporte da paquera.

Por longo tempo foi assim. O escrivão sendo o mora­dor mais antigo e fiel, ocupava o melhor quarto (o quarto nupcial, que hotelzinho mixa também tem dessas bestei­ras) e era tarado como um Pele em Santos. Até que — um dia — um coronel político foi ao hotel e pediu um quarto para a filha. A mocinha — que era o que havia de mais redondinho e cor-de-rosa na região — ia casar e passaria a lua-de-mel ali.

Então foi feita a troca. O dono do hotel conseguiu convencer o escrivão de mudar de quarto e o pilantra to­pou logo, desde que ficasse num quarto ao lado. Lua-de-mel era o que mais incomodava o serventuário da justiça, porque ele ficava olhando o casalzinho na hora do jantar e, de noite, não tinha jeito de dormir: ficava acordado, imaginando coisas.

No dia do casamento o escrivão fechou o cartório mais cedo, mandou a justiça para o inferno e chegou no hotel antes da hora. Não quis conversa com ninguém e, quando não viu o casal na sala de jantar achou que os dois tinham comido no quarto. Alvoroçado que só bode no cercado das cabritas, subiu para seus aposentos provisó­rios e só reapareceu no saguão no dia seguinte, mais páli­do que o Conde Drácula.

— Mas o senhor não dormiu bem no outro quarto? O vizinho fez muito barulho? — perguntou o solícito gerente.

— Pois é... sabe como são essas coisas. Casal em lua-de-mel no quarto ao lado, sempre incomoda, né? A gente fica pensando besteira — insinuou o escrivão.

— Mas... — o gerente estava boquiaberto: — o casal não veio. O quarto estava vazio. Apareceu aqui um chinês com dor de dente. Eu botei o chinês lá — e acrescentou: Coitado do chinês, gemeu a noite toda.

 

 

                                             O Homem das Nádegas Frias

 

A HISTORINHA que vai contada abaixo, naquele estilo literário que fez de Stanislaw Ponte Preta um escri­tor de importância transcendental, é absolutamente ver­dadeira e — a par de ser jocosa — serve para provar que na época hodierna a mulher está tão desacostumada ao cavalheirismo, que engrossa a toda hora, por falta de treino.

A pessoa que foi testemunha do episódio merece todo crédito e garante que aconteceu no interior de um desses ônibus elétricos que a irreverência popular apelidou de chifrado. O ônibus vinha lotado e, como acontece com tanta freqüência, com vários passageiros em pé. Antiga­mente, quando havia passageiro em pé, era tudo homem, porque a delicadeza mandava que os cavalheiros cedessem seus lugares às damas. Hoje, porém, é na base do chega-pra-lá.

Vai daí, havia um senhor que estava sentado distraidamente lendo o seu jornal e nem percebeu que havia em pé, ao seu lado, uma jovem senhora dessas que não são nem de capelão largar batina, nem de mandar dizer que não está. Em suma: uma mulher bastante razoável.

O senhor acabou de ler o seu jornal, dobrou-o e deu aquela espiada em volta, ocasião em que percebeu a dis­tinta viajando em pé, ao seu lado. Devia ser um cavalhei­ro de conservar hábitos d'antanho porque, imediatamen­te, levantou-se e disse pra dona:

Faça o obséquio de sentar-se, minha senhora. Seu ato não parecia esconder segundas intenções, tão espontâneo ele foi. Mas, se o cavalheiro era antigão, a madama era moderninha. Achou logo que o senhor esta­va querendo fazer hora com ela e, desacostumada ao gesto delicado, torceu o nariz e falou:

Muito obrigada, mas eu não sento em lugar quente. Houve risinho esparso pelo ônibus e comentários velados, o que deixaria o senhor com cara de tacho, não fosse ele — conforme ficou provado — pessoa de muita presença de espírito.

Notando que todos o olhavam como se ele fosse um palhaço, o gentil passageiro voltou a sentar-se e disse, no mesmo tom de voz da grosseira passageira, isto é, naque­le tom de voz que desperta a atenção geral:

Sinto muito que o lugar esteja quente, minha se­nhora. Mas não existe nenhum processo que nos permita carregar uma geladeira no rabo.

Alias, ele não disse rabo. Ele disse mesmo foi bunda.

 

 

                                                           O Passeio do Pastor

 

PARA UM pastor, francamente, acabara de ter um comportamento indigno: pulara o muro sorrateiramente e abandonara sua vigília, para farrear. Mal se viu na rua, o pastor olhou para os lados e reparou que não havia nin­guém na rua que, de resto, àquela hora da madrugada costumava estar sempre deserta.

O pastor ficou satisfeito de não ter sido pressentido e seguiu caminhando junto ao muro, até atingir a esqui­na, onde parou indeciso. Não parecia ter um caminho premeditado e, se alguém estivesse a observá-lo, acharia que fugira por fugir, apenas para entregar-se à aventura.

Afinal o pastor resolveu-se pela direita. Dobrou a rua e foi seguindo lampeiro, gozando sua liberdade. Foi aí que pareceu vislumbrar alguém do sexo oposto no jardim de uma bela residência. Parou e ficou observando.

Depois de alguns segundos atravessou a rua e tentou empurrar o portão do jardim. Devia estar trancado, mas isto não era problema para um pastor que, momentos antes, dera uma bela prova de destreza, galgando um muro bem mais alto.

Era um pastor danado aquele. Recuou um pouqui­nho, tomou distância e, pimba... pulou o portão e foi en­trando pelo jardim tranqüilamente, para namorar à vonta­de. O que aconteceu lá dentro eu não vou contar que não estou aqui para dedurar pastor nenhum, mas que ele de­morou lá dentro um tempo comprometedor, isto eu não vou negar.

O que eu sei é que passada quase uma hora (pelo menos uns 45 minutos, ele ficou lá dentro e os dois podi­am ser vistos por um observador mais atento entre as som­bras dos ciprestes que se prestavam muito para cenas ro­mânticas) mas — como eu dizia — passado o tempo com­prometedor, o pastor voltou pelo mesmo caminho, isto é, pulou o portão, como um ladrão vulgar, e saiu para a rua.

Foi então que o pastor parou no poste e tornou a observar em volta, para ver se havia alguém. Não havia, e ele, sem a menor cerimônia, "regou" a base do poste e foi em frente.

Era, realmente, um pastor bacana. Um belo exem­plar de cão pastor alemão.

 

 

                                             O Correr dos Anos

 

QUEM FICOU contente foi Bonifácio Ponte Preta (o Patriota), com a inauguração da tal adutora do Guan­du, que resolve o problema da água no Rio de Janeiro até o ano 2000. Tudo que é noticiário da imprensa sobre o assunto o Boni recorta e cola num álbum confeccionado por ele mesmo e que tem uma bonita fita verde-amarela, badalando na capa.

Por exemplo aquele artigo do David Nasser, que saiu no "O Cruzeiro', sob o título de “As águas da ingratidão", no qual o repórter começa assim: "As águas da ingratidão municipal começaram a rolar" e depois diz que "a obra do século", que quebrou o galho da falta de água até o ano 2000, foi inaugurada e se esquece, deliberada, crimi­nosa e vergonhosamente do nome de Carlos Lacerda, que foi — segundo Nasser — o homem que botou o cano lá no rio, pois esse ai ligo — eu dizia - o Bonifácio achou tão bacana que comprou dez "O Cruzeiro" e colou tudo no álbum.

Estou contando o detalhe para mostrar que o patrió­tico Boni está exagerando às pampas, no seu fervor cívico pela obra. Ele não fala noutra coisa e ficou uma fera com o distraído Rosamundo, quando soube que o coitado nem tinha sabido dessa inauguração:

— Perfile-se! — berrou o Boni, assustando o Rosa: — Fique sabendo que estou lhe prestando uma informação que orgulha qualquer patrício, ouviu? Saiba, o senhor, que inauguraram o Guandu. Teremos água até o ano 2000.

Rosamundo ficou besta com que o outro lhe contou. Que coisa, não é mesmo? Água até o ano 2000!

Mas Rosamundo mora na zona do Centro, pois ainda não percebeu que aquilo não é zona residencial. Ontem ele passou os olhos pelos jornais e — como sempre — nem notou o que estava lendo, passando-lhe despercebida a notícia de que caiu uma ponte de Lajes, o que acarretou total falta de água no lugar onde ele mora.

E quando Rosamundo chegou em casa, ainda impres­sionado com o que lhe contara o patriótico Bonifácio so­bre essa coisa de que não vai faltar água até o ano 2000, e abriu o chuveiro para um banho reparador, só caiu uma gotinha na cabeça dele e olhe lá.

Na sua proverbial vaguidão, ele comentou, apenas: — Puxa! Como os anos passaram depressa!

 

 

                                            O Homem que Mastigou a Sogra

 

FOI EM Niterói! É o caso do Sargento Gilson Cala­do, que não é tão calado assim e, depois de botar a boca no trombone, por causa das imposições da ex-futura so­gra, gorda senhora de sólido físico e sólidos princípios, avançou para a indefesa senhora "prostrando-a com di­versas dentadas na região cervical", isto é, mordeu-lhe o cangote dela com força.

Diz que a vítima (a vítima da agressão, porque no caso em si, Calado era muito mais vítima), Dona Laudenira Santana, era fogo e não deixava a filha ir nem na esqui­na sozinha, muito menos acompanhada. O sargento, no entanto, já tinha estabilidade, não só porque era noivo da filha de Dona Laudenira, como também já estava há cinco anos noivando firme.

— O senhor quer conversar com ela, tem que ser aqui na sala — dizia a gorda e implacável futura sogra. — A Delia só sai de casa comigo.

Delia — eu ia esquecendo de dizer — era a noiva do Calado. E convenhamos: assim era demais. Se ao invés de "pra casar" o sargento estivesse paquerando na base do "pra que é", ainda vá... mas noivo no duro; um tremendo noivo de cinco anos; era chato!

Sempre a mesma coisa. O sargento chegava, batia continência pra Dona Laudenira e ia pra sala, onde ficava a Delia num canto e ele no outro, só de olho, porque a velha dava uma incerta a toda hora. Qualquer silêncio maior, ela botucava o ambiente.

Até que chegou o domingo. A situação, que enche­ria até saco de filo, permanecia a mesma e Calado resol­veu contrariar o nome de família, metendo lá um inde­pendência ou morte, às margens de Dona Laudenira. Che­gou pra ela e vomitou:

Olha, dona, eu e a Delia vamos até à esquina, dar uma voltinha.

É o que você pensa, rapaz1 — teria respondido a vigilante maternal ao vigilante municipal (Calado é sar­gento da Polícia Municipal). - Eu já disse e repito que a Delia só sai de casa comigo.

Aí foi aquela forra: Calado avançou para a futura so­gra e quando esta virou as costas para se mandar, ele deu com aquele suculento cangote a tremer na sua frente, de raiva e medo. Não conversou, tacou-lhe a primeira denta­da, a segunda, a terceira... enfim, deu de goleada.

Tão alucinado ficou que, ao ver a Delia tomando a defesa da mãe, deu-lhe uma dentada de sobra, no nariz. O noivado tá desfeito. O sargento satisfeito.

 

 

                                       As Retretes do Senhor Engenheiro

 

ESTÁ NO LIVRO "Encanamentos e Salubridade das Habitações", já em terceira edição em Lisboa, fazendo par­te da coletânea da Livraria Bertrand: "Biblioteca de Instru­ção Profissional". É obra do engenheiro português João Emílio dos Santos Segurado e, no capítulo V, eu num güentei mais e resolvi transcrever. Lá vai:

"Instalações sanitárias (retretes coletivas) — Na insta­lação de retretes coletivas nos quartéis, escolas e, princi­palmente, nas grandes oficinas, é necessário adotar dis­posições especiais, por assim dizer: disciplinares, para evitar que o pessoal ali permaneça além do tempo indis­pensável. É de todos conhecido que os operários menos cuidadosos com os seus deveres, aproveitam a ida à retrete ameudadamente para abandonarem o trabalho. Recor­re-se por isso a diversos meios que tornam incômoda a permanência nas retretes. As portas dos sanitários devem ser baixas, para que facilmente se veja de fora quem lá está. Usam-se muito as retretes turcas, onde as pessoas se têm de acocorar para delas se servirem, mas tem-se reco­nhecido que não é bastante isso, por não ser a posição incômoda para todas as pessoas. Também se costuma colocar nas retretes desse sistema uns descansos de ferro encastrados nas paredes e que correspondem aos sovacos e onde as pessoas ficam por assim dizer penduradas para fazer as necessidades. Ainda se tem usado o tampo das retretes bastante inclinado^ para que o pessoal fique bem sentado, mas apenas encostado, numa posição bas­tante incômoda, mas todos esses dispositivos são inefica­zes quando se trata de mandriões incorrigíveis. Recorre-se, igualmente, à ação da água ou do vapor. Periodica­mente lança-se nas retretes uma violenta corrente, que as lava, arrastando os dejetos, mas dirigida de um modo que uma parte da água molhará as pessoas que ali estiveram sentadas ou acocoradas; mas exige esta disposição que se disponha de um volume considerável de água, o que nem sempre sucederá. Empregando as retretes do sistema Doulton já descritas, pode usar-se com o mesmo fim a descarga de vapor das máquinas, feita na canalização; a temperatura do vapor é bastante para queima** ou, pelo menos, tornar insuportável a permanência nas retretes. Um meio preconizado por industriais para evitar a perma­nência do seu pessoal nas latrinas, é mantê-las num esta­do de imundície tal que o cheiro afugenta dali os operári­os logo após satisfazer suas necessidades".

Texto extraído — sem comentários — das páginas 148 e 149 do livro do engenheiro acima mencionado.

 

 

                                       Dois Amigos e um Chato

 

OS DOIS estavam tomando um cafezinho no bo­teco da esquina, antes de partirem para as suas respecti­vas repartições. Um tinha um nome fácil: era o Zé. O ou­tro tinha um nome desses de dar cãibra em língua de cri­oulo: era o Flaudemíglio.

Acabado o café o Zé perguntou: — Vais pra cidade?

Vou — respondeu Flaudemíglio, acrescentando: — Mas vou pegar o 434, que vai pela Lapa. Eu tenho que entregar uma urinazinha de minha mulher no laboratório da Associação, que é ali na Mem de Sá.

Zé acendeu um cigarro e olhou para a fila do 474, que ia direto pro centro e, por isso, era a fila mais piruada. Tinha gente às pampas.

Vens comigo? — quis saber Flaudemíglio.

Não — disse o Zé: - Eu estou atrasado e vou pegar um direto ao centro.

Então tá — concordou Flaudemíglio, olhando para a outra esquina e, vendo que já vinha o que passava pela Lapa: — Chi! Lá vem o meu... — e correu para o ponto de parada, fazendo sinal para o ônibus parar.

Foi aí que, segurando o guarda-chuva, um embrulho e mais o vidrinho da urinazinha (como ele carinhosamen­te chamava o material recolhido pela mulher na véspera para o exame de laboratório...), foi aí que o Flaudemíglio se atrapalhou e deixou cair algo no chão.

O motorista, com aquela delicadeza peculiar à clas­se, já ia botando o carro em movimento, não dando tem­po ao passageiro para apanhar o que caíra. Flaudemíglio só teve tempo de berrar para o amigo: — Zé, caiu minha carteira de identidade. Apanha e me entrega logo mais.

O 434 seguiu e Zé atravessou a rua, para apanhar a carteira do outro. Já estava chegando perto quando um cidadão magrela e antipático e, ainda por cima, com sorri­so de Juraci Magalhães, apanhou a carteira de Flaudemí­glio.

Por favor, cavalheiro, esta carteira é de um amigo meu — disse o Zé estendendo a mão.

Mas o que tinha sorriso de Juraci não entregou. Exa­minou a carteira e depois perguntou: — Como é o nome do seu amigo?

Flaudemíglio — respondeu o Zé.

Flaudemíglio de quê? — insistiu o chato.

Mas o Zé deu-lhe um safanão e tomou-lhe a carteira dizendo: — Ora, seu cretino, quem acerta Flaudemíglio não precisa acertar mais nada!

 

 

                                               Mirinho e o Disco

 

FOMOS JUNTANDO os telegramas sobre novos apa­recimentos de discos-voadores. Aqui está um de lima, Peru: "Um disco-voador e seu tripulante, um anão de cor esverdeada, pele enrugada e 90 centímetros de altura fo­ram vistos, ontem à noite, no terraço de uma casa pelo estudante Alberto San Roman Nuñez". Este outro de As­sunção, Paraguai: "Diversas pessoas tiveram oportunida­de de ver nos céus desta capital um estranho objeto voa­dor, que durante 20 minutos evoluiu sobre suas cabeças, desaparecendo depois em grande velocidade". Já de San­tiago, Chile, o telegrama conta diferente: "Novas notícias de aparecimento de objetos voadores não identificados nos céus reacenderam controvérsias desencadeadas com visões nas bases científicas da Antártida, no mês passado. Na Vila de Beluco, pequena localidade chilena, os habi­tantes viram um disco pousar durante cinco minutos e logo levantar vôo para desaparecer no horizonte". Agora noutro continente: "Em Oklahoma City a Polícia informou que, na base de Tinker, perto desta cidade, o radar regis­trou a presença de quatro objetos não identificados, que evoluíam a cerca de 7 mil metros de altura". Na Europa e na Austrália também houve disco-Voador assombrando populações. De Portugal, por exemplo, chegou telegra­ma contando que foi visto objeto estranho "que parecia um esférico de plástico". E no Brasil, ainda no domingo passado, em Paquetá, uma porção de gente viu disco-voador, o que prova que eles andam pela aí de novo.

Mas deixemos os discos-voadores momentaneamen­te de lado e passemos a Primo Altamirando. No prédio onde Mirinho mora tem uma mocinha que eu vou te con­tar. Vai ser engraçadinha assim lá em casa! O primo vinha cantando a vizinha há bem uns seis meses, sem conseguir nem pegar na mão. Anteontem, porém, depois de muita insistência, ela amoleceu e andou dando sopa para o nefando parente: combinou com ele um encontro noturno no terraço do prédio. E, de fato, na hora marcada, apare­ceu assim meio medrosa. Mirinho começou a amaciar a bonitinha, fazendo festinha, dizendo pissilone no ouvido, dando mordidinha na ponta da orelha. E quando já tava quase, ela deu um grito:

Que foi??? — assustou-se Mirinho.

Olha lá no céu. Um disco-voador — apontou ela, nervosa.

Com medo de perder a oportunidade, Mirinho aper­tou-a contra si e lascou: — Deixa pra lá. Finge que não vê. Finge que não vê!

 

 

                                           A Governanta

 

ELA CHEGA amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — quem falava assim era a mulher de Al­cindo. Já tinham discutido às pampas, o Alcindo e a mu­lher, por causa da tal empregada. Dona Minam — mulher do Alcindo — tinha conseguido a empregada com uma parceira de pif-paf, uma tal de Iolanda, com a qual o Al­cindo sempre implicou. Mulherzinha gastadeira, que es­banjava o dinheiro do marido no jogo.

Dona Miriam era vidrada na Iolanda. Achava a Iolan­da o fino da elegância. Imitava a Iolanda, fazia vestidos na costureira da Iolanda, penteava o cabelo no mesmo cabe­leireiro da Iolanda e dera até para gastar como a Iolanda. O Alcindo ia suportando tudo porque os programas de pif-paf da Dona Miriam lhe davam uma frente bárbara. Enquanto a mulher estava fazendo seqüências, trincas, "lo­bas" e outras besteiras, ele ia se espalhando pelas boates, fazendo suas miserinhas pela aí. O Alcindo era muito assa­nhado.

Ultimamente, porém, a Iolanda começara a mandar também em sua casa. Aconselhara Dona Miriam a mudar os móveis da sala (Alcindo teve até que assinar um papa­gaio no Zé Luís para quebrar o galho), fizera Dona Miriam aderir às suas dietas para manter a linha (Alcindo já se sentia um mísero herbívoro de tanto mastigar saladas), e tudo culminara com a dispensa das duas empregadas que não eram lá essas coisas, mas pelo menos respeitavam o patrão.

Dona Miriam — sempre achando que a Iolanda era o máximo - ia seguindo os conselhos. Lá se foram as duas domésticas simplórias e viera a novidade: a Iolanda arran­jara uma espécie de governanta. Uma moça que trabalha­ra para os Martorelli.

Uma governanta perfeita. Fala até um pouco de inglês - informou Dona Miriam, exaltando as qualidades da nova contratada.

E naquela tarde discutiram pra valer, com Alcindo irritado de tanta badalação dentro de casa. Mas, como Dona Miriam ia passar a noite na casa do pai (o velho esta­va quase abotoando o paletó) e ele ia a um pré-carnavalesco legal organizado pelo Pindoba — grande técnico na es­truturação de badernas íntimas —, acabou concordando.

Ela chega amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — foram as últimas palavras de Dona Miriam, antes de sair para a casa do pai moribundozinho.

Alcindo inda ficou zanzando pela casa, tentando se acostumar à idéia de uma governanta em casa; uma mulherzinha provavelmente cheia de chiques, que iria inibir sua comodidade dentro do próprio lar. Grande chatea­ção! Não fosse a perspectiva da farra no tal pré-carnavalesco, e o Alcindo estaria uma fera.

Quando saiu pra festa estava mais calmo. Meteu uma bermuda, uma camisa folgada e mandou brasa. O forró foi numa dessas boates também chamadas de "inferninho", onde o diabo não entra para não se comprometer. No escurinho tava valendo tudo. Com dois minutos do tem­po regulamentar o Alcindo já estava armado. Pegou uma zinha mais ou menos, lourinha, de narizinho fino e um rebolado que não era assim aquele estouro mas que tam­bém não era de se deixar pra lá. A noite inteira agarrado, enquanto uma charanga segundo time tocava uma marchinha chamada "O Cachorrinho do Lalau". Quando a charanga meteu o "Cidade Maravilhosa", que dá por en­cerrados os debates, o Alcindo estava de moringa cheia e doido pela lourinha. Fez tudo para comprar o seu passe, mas na confusão da saída, caindo pelas tabelas de tão bêbedo, a lourinha sumiu e ele nem sabe como chegou em casa.

Mas que chegou, isto chegou. Tanto que, no dia se­guinte de manhã, acordou com Dona Miriam a catucá-lo: — Levanta, Alcindo. A Dolores já está aí.

- Dolores?, Que Dolores?

- A governanta. Já estudamos os horários. Ela acha que não devemos dormir depois das dez. O breakfast pode tirar o apetite para o almoço.

Alcindo levantou-se estremunhado. Entrou debaixo do chuveiro (era dia de adutora consertada) e tomou uma ducha legal. Quando chegou na sala de jantar, foi aquele espanto. Sua mulher ouvia encantada as "ordens" da go­vernanta. E a governanta era igualzinha à lourinha da vés­pera. Seria a mesma? Era muito azar do goleiro. Alcindo cumprimentou-a meio ressabiado. Ela respondeu com um sorriso amável. Não, não era a mesma. Estava era imagi­nando besteira. Mas foi Dona Miriam ir lá pra dentro e a governanta começou a cantarolar baixinho a marcha "O Cachorrinho do Lalau".

Coitado do Alcindo, anda numa rosca soviética! Só ato institucional pra cima dele a governanta já assinou uns três para cercear os seus direitos humanos.

 

 

                                               O Alegre Folião

 

EU JOÃO é um mendigo muito digno, que exerce o seu mandato na Igreja de São Paulo Apóstolo. Daqui de cima eu costumo ver Seu João lá embaixo, na escadaria da igreja, onde fica sentado o dia inteiro. À noite ele con­tinua no mesmo lugar, só que deita na escadaria e dorme. Seu João é meio doido e não costuma conversar muito. Há outros mendigos na escadaria da igreja, mas nenhum é fixo. O ponto parece ser vitalício e de exclusiva explo­ração por parte de Seu João.

Às vezes - numa média de duas ou três vezes por ano - vem uma viatura da Delegacia que finge tomar con­ta dos mendigos e leva Seu João. Nessas ocasiões pára povo em volta pra ver. Salta uma senhora machudona com farda de policial, agarra Seu João pelo braço e empurra-o com o máximo de indelicadeza possível para dentro da viatura. Seu João faz força para não entrar, mas depois de levar uns pescoções, acaba entrando. Houve uma vez que uma rapaziada vinha da praia e parou na horinha em que levavam Seu João. Um dos rapazes protestou e a machona quis distribuir bolacha pra cima da turma. Deu-se mal e quem apanhou foi ela e mais os dois guardas que saltaram da viatura para protegê-la. Acabou tudo dando em nada e lá foi Seu João para o que a machona explicou ser "um centro de recuperação de mendigos".

É verdade que não jogaram Seu João no Rio da Guar­da, como ocorreu com diversos coleguinhas seus, mas fizeram com ele o que fazem com a grande maioria dos mendigos. Dão um banho no coitado, cortam o cabelo e a barba, depois soltam para que ele volte ao seu ponto pro­fissional. Dizem que essa medida é só pra prejudicar men­digo, porque mendigo lavado e barbeado arranja muito menos esmola.

Mas — eu lhes dizia — daqui de cima vejo sempre Seu João. Sou um dos poucos que ele cumprimenta. Só por causa do cobertor. Foi no ano de 63 que houve um inver­no mais rigoroso e Seu João tossia tanto de noite que num güentei. Mandei a babá das meninas comprar um cober­tor e ela levou de presente pra ele. Seu João é doido, com tantos outros que circulam pela aí, inclusive alguns em altos postos, mas é reconhecido. Nas raras vezes em que cruzamos na calçada, ele grunhe o que eu acredito que seja um agradecimento.

Pois descobri que Seu João também é um alegre fo­lião carioca. Durante os dias de carnaval permaneceu onde sempre esteve: na escadaria da igreja, mas era carnaval, e Seu João passou os quatro dias pedindo esmolas com um chapeuzinho de tirolês.

 

 

                                               Movido pelo Ciúme

 

AQUI NO JORNAL diz que Luís Caldas matou Rosa Maria dos Santos movido pelo ciúme; e dá antecedentes do crime. Luís foi passar o carnaval num sítio, lá no interi­or, casa de um amigo. Rosa Maria ficou aqui, nos quatro dias de festas carnavalescas. Diz que os dois eram noivos, mas deviam ser mais do que isso, pois Luís sentiu o ciúme a doer-lhe na carne.

Pobre Luís! Sua inexperiência amorosa levou-o ao mais doloroso dos sentimentos. "Cada um mata aquilo que adora" — dizia o nem sempre ultrapassado Oscar Wilde. E Luís foi nessa. Não soube explicar à amada que há ho­mens cujo amor não suporta o impacto de um carnaval e sentiriam a angústia do ciúme mesmo que enfrentassem as lides carnavalescas de braço com a mulher que que­rem e que sentem sua. Não soube explicar e depois não soube livrar-se das provocações da amada, porque toda mulher é assim mesmo e é nas reações do homem que busca o alimento do seu amor.

Rosa Maria não tomou a ausência de Luís ou não a sentiu — melhor dizendo — em suas verdadeiras propor­ções: Luís sumiu por amor, por nutrir pela amada um mis­to de superconfiança nela e mesquinha insegurança em si mesmo. Vieram as Cinzas, voltaram a se encontrar e ela pôs-se a provocar. Ó Senhor, é preciso todo um mundo de renúncias íntimas para suportar o que diz a amada, após o reencontro. Pobre Luís, não tinha ainda aprendi­do a grande lição! No reencontro a amada mostra-se ale­gre como um passarinho e já aí começa o ciúme a maltra­tar o homem. Ela deixará escapar frases soltas, pequenas provocações que o homem, para proteger o seu amor por ela, deve deixar que batam contra o escudo do estoicismo.

Ela dirá, por exemplo, "há muito tempo que o carna­val não esteve tão animado". Ao homem, nesta circuns­tância, resta balançar a cabeça, concordando, mas nunca perguntando: "Você achou, é?". De maneira nenhuma. Passe incólume, amigo, se ama de fato quem o ama.

Ela virá com novas armas. Haverá um momento de pausa na conversa e ela vai cantarolar baixinho: "Triste­za... por favor vai embora!". Algumas, depois de cantaro­lar, ainda acrescentam: "Chi, esta música não me sai da cabeça". Agüente firme, irmão, e se ânimo sobrar, diga: "Esse samba é lindo, realmente".

Sei que o ciúme está fazendo de você o "palhaço das perdidas ilusões", mas até aí você vai indo bem. Chegará o momento em que ela, a troco de nada, vai dizer: "Lá onde você passou o carnaval tinha televisão?". Responda que não, mesmo que houvesse, pois ela arrematará: "No Baile do Monte Líbano eu fui focalizada diversas vezes". Finja que não vê o olhar que ela estará usando contra você e faça de si a estátua da renúncia, quando ela infor­mar que a fantasia dela fez muito sucesso: "Era aberta de um lado e deixava a perna toda de fora. Recebi elogios totais".

Sei que é hora do bofetão, amigo, mas — por favor — não deixe que o fantasma dó ciúme invada o seu castelo. Para que sua amada continue a ser a sua amada, respire fundo e esqueça, ela poderá insistir com mais umas duas ou três, no estilo "que beleza é ver o sol nascer no carnaval", mas está cada vez amando mais você. E então, quan­do ela telefonar com aquela mesma voz dengosa que ti­nha em janeiro, você estará de parabéns: venceu a bata­lha, irmão!

Mas lembre-se: vencer uma batalha não é vencer a guerra. Aguarde, que outros carnavais virão.

 

 

                                                 Patrimônio

 

BENEDITO AGUARDAVA na fila do cartório para registrar o filho, nascido dias antes. Era o quarto, aliás o quinto, mas é que um morrera ainda pequenino e esse Benedito não contava. Quatro filhos! Pensando bem até que não era muito. Podiam vir outros, é claro, mas Bene­dito achava difícil. Estava ficando velho; a mulher tam­bém. Benedito sorriu ao lembrar a mulher de outros tem­pos. Bem jeitozinha até. Agora Isaura estava um caco, mas foi um pedaço. Se foi! Para um casal pobre, eles tinham poucos filhos, sim: quatro. Pobre costuma ter muito mais filho. Pobre não tem mais nada pra fazer.

Alguém fora atendido lá na frente, a fila andou um pouquinho. Benedito deu um passo à frente. Ali mesmo na fila estava a prova. Quase tudo gente pobre como ele, para registrar filho. Gente que pouco mais do que aquilo poderia fazer pelo recém-nascido. Era registrar; o resto viria como Deus permitisse. Se, com três filhos, sua vida já era fogo, imagine com mais este.

Mas Benedito tinha um plano para dar um patrimô­nio à criança. Rememorava: tivera a idéia quando tomava um troço no botequim, perto da Casa da Mãe Pobre, onde Isaura era atendida. Quando entrou e pediu a cachaça, não pensava em nada. Tinha sido um impulso besta, ir até o botequim, sentar, pedir a bebida. E ali ficou bicando devagarinho, ouvindo a conversa dos outros.

Numa mesa próxima, três sujeitos conversavam, fa­lando de política. Todos eles estavam de acordo num pon­to: nada tinha melhorado, pelo menos para eles. Muda governo, discute-se, persegue-se, mas para eles era sem­pre igual.

— Igual não! Pior. Sempre pior! - protestou o que estava de frente para Benedito.

Os homens ficaram calados por um tempo. Um de­les serviu-se de cerveja. O líquido dourado subiu pelo corpo, fazendo espuma, e transbordou. O homem afas­tou o corpo de junto da mesa, com medo de que pudesse se molhar. Depois riu amargo e falou:

— O galão da cerveja está recordando o cretino que eu fui.

Os outros esperaram para saber que cretino fora o companheiro:

— Meu pai fez tudo para me encaminhar no Exército e eu não quis. Já pensaram? Nesta altura não era galão de cerveja que eu teria não.

— Fala, Coronel — disse um deles, mexendo com o que sonhava.

— Coronel não. General. Tô ficando velho. Já podia ser general.

A fila andou de novo; Benedito deu mais um passo.

Da lembrança daquela noite, no café, enquanto esperava o filho nascer, passou para outras recordações. Sempre ouvira dizer que há pais que dão nomes estranhos aos filhos. Lembrou-se do caso que lhe contaram do menino registrado pelo pai logo depois de um carnaval. A criança foi registrada e batizada com o nome de Lança-Perfume Rodo Metálico. Benedito tinha lido nos jornais que a Polí­cia proibira lança-perfume. Será que proibiram também o tal de Rodo Metálico de circular por aí, por causa do nome? Riu da idéia.

Olhou para a frente. Estava quase na sua vez. Na hora não iria titubear. Já sabia participar daquele ritual de cor e salteado. Quinto filho. A fila ia se deslocando e Benedito ia pensando que todo o pai tem a obrigação de fazer o que puder pelos filhos. Ele pouco pudera fazer, até ali, pelos que já tinha, mas, pelo recém-nascido, faria alguma coisa. Tinha uma boa idéia.

Chegou a sua vez. Encostou no balcão e o auxiliar do escrivão apanhou uma folha limpa. Ficou esperando as perguntas:

— Nome do pai! É o próprio?

— Sou. Benedito. Benedito da Conceição Lopes.

— Lopes?

— Lopes.

Mãe?

— Isaura Lopes.

— Como vai se chamar a criança?

— General Lopes.

— General? Mas General não é nome.

— Eu sei. Mas eu queria que se chamasse General. É um menino. O senhor compreende, eu sou pobre, ele também será. Quem sabe, quando ele crescer, os outros chamando ele de General, talvez, não sei... Talvez ele con­siga ser mais do que eu fui... o senhor compreende?

O funcionário do cartório olhou para Benedito, mas, pelo olhar angustiado do pai, viu que ele não brincava: queria mesmo que o filho se chamasse General.

Um momento - disse, e foi consultar o escrivão. Confabularam um instante, o escrivão olhou para Benedi­to e balançou a cabeça. General não podia.

Então bota João - falou Benedito.

E saiu do cartório mais triste que nunca.

 

 

                                              A Nós o Coração Suplementar

 

QUEM ANUNCIA é um cientista chamado Adrian antrowitz. O homem se propõe a utilizar um tubo de borracha, ligado à corrente sangüínea, através do qual é automaticamente posto a funcionar um aparelho elétrico fora do corpo, que ajudará o funcionamento do coração, quando este começar a ratear, seja por falta de forças, seja por excesso de trabalho. A isto o cientista dá o nome de "coração suplementar".

Bonito nome, hem? Coração suplementar! Claro, o doutor falou que seu experimento poderá ser aperfeiçoa­do a ponto de cada um, um dia, poder adquirir o seu cora­ção suplementar. E então a gente fica imaginando como seria bom se esse coração, além de ajudar o funcionamento do coração principal nas suas funções fisiológicas, aju­dasse também nas suas funções sentimentais.

Ah... como isto seria admirável! Um coração suple­mentar para satisfazer a doce amada, com quem gostaría­mos de deixar o coração durante todas as horas, as ale­gres e as tristes, as decisivas ou as dúbias, as certas ou as indefinidas, qualquer hora enfim, porque a ela pertence o nosso coração que pulsa sentimento.

Mas ele mora num quarto conjugado junto com aque­le que pulsa sangue e que é preciso levar para o ouro e o pão; impossível separá-los na dura lida, que onde vai um vai outro, unidos e tão inúteis um para o outro, em seus destinos tão diversos.

Meu Deus, como eu estou hoje!

Que venha o coração suplementar e que o doutor seja tão genial a ponto de definir as funções dando a um os prosaicos afazeres e ao outro as lidas do sentimento. E que o suplementar fique sendo aquele e o principal fique sendo este.

E aí então, oh, meu amor, você não vai reclamar mais a angústia maior da minha ausência, porque eu chegarei feliz para dizer que tenho de ir ali e volto já, mas acres­centando com toda a sinceridade d'alma:

— Até já, querida! Deixo aqui contigo o meu coração principal!

 

 

                                    "Transporta o Céu para o Chão"

 

ERA UM mendigo seresteiro, um misto de coitado e boêmio, que bebeu um pouco mais e ficou alegre. Ora, a alegria de um mendigo resume-se num canto romântico misturado aos palavrões de revolta, único lenitivo para suas amarguras. Os mendigos, em geral, não dizem pala­vrão, porque vivem da caridade pública. Mas este, de Sal­vador, Cidade de São Salvador, Bahia, tinha bebido umas e outras, talvez com outros humildes como ele, no Cais dos Saveiros, talvez numa tendinha da beira da praia. Isto não ficou esclarecido.

Sabia-se apenas que era um mendigo que — de repen­te — virou seresteiro e saiu cantando pelas ruas de Salva­dor, subindo e descendo suas ladeiras, momentaneamen­te alegre:

— "A Deusa/ da minha rua/ tem uns olhos onde a Lua/costuma se embriagar" — cantava ele.

Depois parava, meditava sobre o que cantara, sorria e dizia o seu sonoro e honesto palavrão: — Quem costu­ma se embriagar sou eu, ora... — e arrematava com o pala­vrão. E lá ia cantando:

— "Nos seus olhos eu suponho/que o sol/ num doirado sonho/ vai claridade buscar".

Cantando, o mendigo chegou a uma praça e parou encantado em frente a uma casa. Era uma casa muito grande, parecia um palácio e todo bêbado é um rei. Ele deve ter imaginado uma seresta para sua rainha e cantou:

— "Na rua/ uma poça á"água/ espelho da minha mágoa/transporta o Céu para o chão".

Outra vez sorriu e outra vez praguejou seus palavrões. Foi então que um homem, vivendo ali seus dias e suas noites, isolado das misérias do mundo, sem mais um res­to de temperança, de compreensão, achou que o mendi­go estava lhe faltando com o respeito e chamou a Polícia.

Pombas! A Polícia. Esta mesmo é que não ia compre­ender nunca o sonho do mendigo-rei. Chegou e tentou agarrá-lo à força.

— Assim não — gritou o intrépido monarca: — Assim não.

Mas o policial insistiu e deu-lhe um tranco. O rei foi magnífico na sua dignidade, esfregando um bofetão cer­teiro e merecido nas fuças do policial. Um companheiro do esbofeteado sacou da arma e fez fogo. Morreu o rei, morreu o seresteiro, morreu o mendigo.

Caiu desfalecido na calçada, veio-lhe uma estranha impressão e ele morreu: "Na rua/ uma poça d'água/ transporta o Céu para o chão" — cantara ele ainda há pouco. Mas desta vez não. A poça era de sangue.

 

                                                                                Stanislaw Ponte Preta  

 

 

                      

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