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Em todas as regiões do mundo, muitas revoltas intrépidas contra despotismos infames tinham recebido um rude golpe. Muitos acidentes atrozes de locomotiva ou de barco a vapor faziam perecer centenas de viajantes intrépidos (tendo um destes acidentes roubado um querido amigo meu). Também a minha própria vida pululava de despotismos, de acidentes e de rudes golpes quando, na madrugada de um dia de Primavera, estando eu demasiado melancólico para poder dormir, saí para dar um passeio pela colina nas minhas pastagens.
O ar estava frio e enevoado, húmido e desagradável, como se a região não estivesse já demasiado lamacenta e não exalasse os seus humores pelas redondezas. Abotoei até cima a minha pobre casaca, para me proteger tanto quanto possível daquele ar que se colava à pele
- as abas do meu sobretudo eram tão compridas que só o usava na minha caleche - e, irritado, cravando a minha bengala na terra saturada de água, curvei o meu vulto azulado e comecei a subir a encosta da colina. Esta penosa postura aproximava consideravelmente a minha cabeça do solo. Dir-se-ia que queria dar uma cabeçada no Mundo. Apercebi-me da circunstância, mas não lhe concedi mais do que um esgar fugidio.
Tinha à minha volta os sinais de um império dividido. A erva tenra disputava-o à do ano passado. Nas covas húmidas, a verdura começava a despontar em cores vivas; do outro lado, nas montanhas, resistiam finas camadas de neve formando um estranho relevo nos flancos castanho-avermelhados; as colinas corcundas pareciam vacas malhadas a tremerem de febre. Os bosques estavam semeados de ramos mortos, secos, cortados rentes ao sopro dos ventos de Março, enquanto as árvores novas da beira dos caminhos mostravam já o primeiro tom amarelado dos rebentos a nascer.
Sentei-me um instante num grande tronco apodrecido perto do topo da colina, de costas para um pequeno bosque de grandes árvores, virado para o vasto e majestoso anfiteatro de montanhas que delimitava uma campina ondulante e variada. Ao pé de uma longa fila de elevações, corria um ribeiro preguiçoso e fonte de paludismo, tendo por cima uma faixa de bruma gotejante que reproduzia exactamente cada meandro. Ao fundo, aqui e ali, farrapos de vapor erravam pelos ares esmorecidos como nações ou navios abandonados e desgovernados - ou como guardanapos encharcados que tivessem posto a secar em cordas da roupa entrecruzadas. Ao longe, numa abertura da planície desenhada pelas montanhas, repousava um grande dossel de nevoeiro, fino como uma mortalha, numa aldeia afastada. Era a condensação do fumo das chaminés juntamente com o bafo dos aldeãos. Era demasiado pesada, demasiado inerte para se afastar sem vento e, portanto, ficava ali, entre a aldeia e o céu, escondendo com certeza mais que um doente com papeira e mais que uma criança com náuseas.
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Percorri com o olhar a ampla campina ondulada, as montanhas, a aldeia e as quintas, aqui e ali, e os bosques, os regatos, as rochas e os cumes e fiquei a pensar que o Homem, afinal de contas, deixa uma marca bem leve nesta
Terra imensa. No entanto, a Terra marca-o. Que catástrofe horrível a do Ohio, onde o meu querido amigo e outros trinta bravos rapazes deram o seu mergulho eterno ao sinal de um mecânico obtuso, incapaz de distinguir uma válvula de um tubo de aquecimento! E o choque no caminho-de-ferro além, mesmo por detrás das montanhas! Quem viu dois comboios loucos colidirem desordenadamente, treparem e rasgarem-se um ao outro, encontrou depois uma das locomotivas aninhada, como um pinto, numa carruagem de passageiros do comboio que vinha no sentido oposto; e cerca de uma centena de boa gente, entre elas um jovem casal com o filhinho inocente, a embarcar no sinistro barco de Caronte que os levou, sem bagagem, para não se sabe que região de fundições imundas. Mas de que servia lamentarem-se? Que juiz de paz iria resolver aquele
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caso? Sim, na verdade, para quê cansar o próprio céu? Não é o céu que destina estas coisas, uma vez que, se assim não fosse, não aconteciam?
Que mundo miserável! Para quê darmo-nos ao trabalho de fazer fortuna, quando não sabemos durante quanto tempo a podemos conservar face aos milhares de burros e de patifes que detêm a gestão dos caminhos-de-ferro, dos barcos a vapor e de tantas outras coisas vitais neste mundo? Fosse eu ditador da América do Norte por um instante: mandava-os prender, enforcar e esquartejar; mandava-os fritar, assar, cozer, fervilhar, grelhar e tostar como pernas de peru! Esses responsáveis infames e cretinos; punha-os a aquecer no Tártaro, isso sim!
Oh, os grandes progressos da nossa época! Quais? Facilitamos o assassínio e a morte e chamamos a isto progresso? Aliás, para quê andar tão depressa? O meu avô passava muito
bem sem as modernices e não tinha nada de
tolo. Escutem! É o velho dragão que regressa, o gigantesco moscardo, o Moloch. Ronca! Sopra! Urra! Eis que avança a direito pelos bosques
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floridos como a cólera asiática que galopa no dorso dos camelos. Espaço! Eis o homicida patenteado, o monopolista da morte, o júri, o juiz e o carrasco num só, cujas vítimas partem sempre sem as mercês do clero! Durante duzentas e cinquenta milhas, este demónio de ferro vai esfalfar-se pela região, berrando: "Mais! Mais! Mais!" Pudessem, em conluio, cinquenta montanhas cair-lhe em cima! E que caíssem também sobre o meu credor, esse pequeno demónio importuno que me assusta ainda mais mortalmente que todas as locomotivas: um patife de faces encovadas que também parece avançar sobre carris e que me atormenta mesmo ao Domingo, a caminho da igreja, e que ainda se vem sentar no mesmo banco que eu e que, a pretexto de ser educado e de me estender o livro de orações aberto na página certa, me enfia a sua letra de câmbio debaixo do nariz, mesmo a meio das minhas devoções, de tal modo que se mete entre mim e a redenção. Enfim, como é possível manter a calma nestas situações?
Não posso pagar àquele indivíduo horrível.
Diz-se, no entanto, que nunca houve tanto dinheiro, essa droga reles e inútil. Mas, maldito seja eu se consigo encontrar a tal droga, embora nunca um doente tenha necessitado tanto
do dito remédio. Estão a mentir. Não há assim
tanto dinheiro. Apalpem-me as algibeiras. Ah! É um pó que ia mandar ao bebé doente naquele casebre ali, onde mora o limpa-fossas irlandês. O bebé tem escarlatina. Dizem que o sarampo também abunda na região, tal como a varíola e a varicela, e que isto não é nada para as crianças que ainda mal têm dentes. E imagino, afinal, que, depois de passarem por tantas maleitas, muitas destas pobres crianças simplesmente quebram; pelo que tiveram sarampo, papeira, escarlatina, varicela, cólera, diarreias estivais e tudo o resto para nada! Ah!
Cá está o meu reumatismo a atacar-me o ombro direito. Apanhei-o uma noite em North River, num barco cheio até mais não, quando cedi a minha cama a uma senhora doente e me
deixei ficar na ponte, à chuva, até de madrugada. É esta a recompensa pela caridade! Então, ataca! Morde, reumatismo! Não atacarias
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com mais força se eu fosse um canalha e tivesse assassinado aquela pobre mulher em vez de a ajudar. Nem a dispepsia. É mais um mal que me atormenta.
Olá! Cá estão os bezerros, os pequeninos de dois anos, acabados de sair do estábulo e deixados nos prados depois de seis meses de ração fria. Bando miserável, na verdade! São certamente a ruína de um rude Inverno: ossos pontiagudos salientes como cotovelos e cobertos por uma substância bizarra que lhes secou nos flancos como a massa de um crepe. O pêlo está muito gasto em certos sítios; e ali, onde não está gasto nem parece um crepe, está o flanco áspero de um velho baú de crina comido pelas traças. Na realidade, não são seis bezerros de dois anos, mas seis abomináveis e velhos baús de crina que vagabundeiam pela pastagem.
Escutem! Em nome de todos os deuses, o
que é isto? Vejam! Os próprios baús de crina
espetam as orelhas, ao escutarem este ruído,
endireitam-se e olham para longe na campina
que ondula mais abaixo! Ouçam outra vez!
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Como é claro, musical, prolongado! Que triunfante acção de graças é o cantar do galo! "Glória a Deus nas Alturas!" É o que o galo diz, tão nitidamente como nunca outro galo o disse. Bem, bem, começo a sentir-me um pouco mais revigorado. Afinal, o nevoeiro não é assim tão denso. O sol começa a mostrar-se além: sinto-me mais quente.
Ouçam! Continua a cantar! Será que alguma
vez retiniu sobre a terra um cocorocó tão feliz?
Claro, estridente, cheio de bravura, cheio de
vigor, cheio de entusiasmo, cheio de alegria. Diz claramente: "Não te resignes nunca!" Meus amigos, é extraordinário, não é verdade?
Apercebi-me de que sem querer me tinha dirigido aos pequenos, aos vitelos, no meu entusiasmo, o que revela como, por vezes, podemos trair a nossa verdadeira natureza da forma
mais inconsciente. Pois a que criança de dois anos e a que vitelo iria fazer má cara e ainda por cima numa colina, quando aquele galo além nas terras baixas, privado de palavra e de razão, sem um cêntimo no bolso e sobre o qual a fome do dono fazia pender a todo o momento
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uma ameaça mortal, soltava um tal grito de poeta laureado a celebrar a gloriosa vitória de Nova Orleães?
Escutem! Recomeça! Meus amigos, tem de ser um galo chinês; nenhum galo dos nossos condados cantaria com um sotaque tão prodigiosamente exultante. Não há dúvida, meus amigos; é um galo chinês e da criação do próprio imperador da China.
No entanto, os meus amigos, os baús de crina que os meus clamores de triunfo tinham assustado ainda há pouco, entraram em debandada, agitando a cauda e dando cabriolas num estilo desajeitado que revelava bem que não tinham desenferrujado as patas nos últimos seis meses.
Ouçam! Novamente! De quem é este galo? Quem na região adquiriu um tão extraordinário galo chinês? Santo Deus! O meu sangue
agita-se, alvoraçado; sinto que estou a ficar louco. Como? Estou quase a saltar para aquele tronco apodrecido, a bater as asas e a soltar cocorocós? E pensar que ainda há pouco me
entregava à melancolia. E tudo isto graças a
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um simples canto do galo. Maravilhoso galo! Lentamente... o folgazão canta com vigor a esta hora. Porém, ainda é manhã. Vejamos como canta ao meio-dia e ao fim do dia. Pensando
bem, os galos cantam sobretudo ao princípio do dia. Afinal, a sua valentia não é eterna. Sim, sim, até mesmo os galos devem sucumbir ao infortúnio universal: rejubilantes no princípio,
mas sumidos no fim.
"Nas bonitas madrugadas, Nós, os belos galos orgulhosos, cantamos com alegria; Mas, quando a noite cai, cantamos mais baixinho, Pois, então, só nos resta loucura e melancolia."
Era naquele galo chinês que o poeta pensava quando escreveu estes versos! Mas, alto lá! Eis o cocorocó que volta a ouvir-se, dez vezes mais vigoroso, mais intenso, mais longo, mais exultante e espalhafatoso do que antes! Francamente, é tão bom como ouvir soar o grande sino da Catedral de São Paulo em dia de coroação! Até se devia arrear esse sino e colocar no 19
seu lugar este galo chinês. É o cocorocó ideal para alegrar Londres inteira, de Mile End (que é o fim de absolutamente nada) a Primrose Hill (onde, afinal, não há prímulas), e para dissipar o nevoeiro.
Pois bem, eis que tenho apetite para o pequeno-almoço desta manhã; é mesmo a primeira vez na última semana. Pensava ficar satisfeito com chá e pão com manteiga; mas vou beber café e comer ovos - não, cerveja stout e um bife. Quero algo que me alimente. Ah, lá está o comboio da cidade: carruagens brancas
rebrilhando entre as árvores como uma vela
de prata. Como fumega alegremente a sua chaminé! Os passageiros estão alegres. Lá está um lenço que se agita - vão à cidade comer ostras, ver os amigos e dar uma volta pelo circo. Vejam o nevoeiro além: como são serenas as suas volutas, as suas espirais que ondulam nas colinas entrecortadas por raios de sol! Vejam o fumo azulado que sobe desta aldeia, qual baldaquim sobre um leito nupcial. Como a campina resplandece, ali onde o ribeiro inundou
os prados! A erva do ano passado dá lugar à
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nova. Pois bem, este passeio revigora-me. Agora, para casa; regressemos para atacar o bife e abrir uma garrafa de cerveja stout, e, depois de bebida a cerveja (um litro de cerveja stout), sentir-me-ei mais ou menos tão forte como
Sansão. No entanto, penso: talvez o meu credor passe por aqui. vou dar uma volta pelo bosque e fazer um varapau. Juro que lhe dou uma paulada se ele hoje me incomodar.
Escutem! É o galo chinês que recomeça. "Bravo!" diz o galo chinês. "Um cacete!", diz o galo chinês.
Oh! Valente galo!
Estive toda amanhã com um humor agradável. O meu credor passou por cá por volta das onze horas. Disse ao meu criado Jack que o mandasse subir. Estava a ler Tristram Shandy e não podia descer em tal circunstância. Quando entrou, o canalha esquelético (ainda por cima, camponês) deu comigo sentado num cadeirão com os pés em cima da mesa, a garrafa de cerveja à mão e o livro aberto à minha frente.
- Sente-se - disse-lhe. - Estou a terminar este capítulo e depois dou-lhe atenção. Está
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uma manhã muito bonita. Ah, ah, uma boa piada a respeito do meu tio Toby e da viúva Wadman! Ah, ah, ah! Permita-me que lhe leia isto.
- Não tenho tempo. Tenho de fazer os meus
trabalhos do meio-dia.
- Para o diabo com os seus trabalhos! -
disse-lhe. - Não entorne o seu tabaco velho
nesta sala, ou ponho-o na rua.
- Senhor!
- Deixe-me ler-lhe esta passagem sobre a viúva Wadman. A viúva Wadman disse então...
- Está aqui a minha letra de câmbio, senhor.
- Maravilhoso. Queira fazer dela uma bola. Está na minha hora de fumar. Passe-me uma brasa, se faz favor. Uma daquelas que estão ali na lareira.
- A minha letra, senhor - disse o patife, empalidecendo de raiva e de estupefacção com os meus ares desacostumados (pois, até então, eu evitara olhar para o seu rosto lívido), mas suficientemente prudente para não revelar uma nesga da sua surpresa. - A minha
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letra, senhor - repetiu, inflexível, agitando-a
sob o meu nariz.
- Meu amigo - disse-lhe eu -, que manhã encantadora! Que bonito está o campo! Fez o obséquio de ouvir esta manhã o extraordinário canto do galo? Sirva-se de um copo da minha cerveja!
- Sua cerveja? Então pague as suas dívidas antes de oferecer às pessoas a sua cerveja!
- Acha então que, na verdade, eu não tenho cerveja - disse eu, levantando-me com fleuma. - Pois desengane-se. vou dar-lhe a provar staut de uma marca superior à Barclay
e Perkins.
Sem mais cerimónias, agarrei o insolente credor pelo cinto do casaco (e como o miserável tinha a barriga chata, não havia nada para agarrar) - agarrei-o, portanto, desse modo. Atei-o com um nó de marinheiro e, depois de lhe ter enfiado a letra entre os dentes, fiz-lhe
as honras do terreno amplo que rodeia o meu domicílio.
- Jake - disse eu -, há um saco cor de malva com batatas no alpendre. Trá-lo até aqui
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e atira-as a este vagabundo; veio mendigar umas moedas e eu sei que ele pode trabalhar, só que é um preguiçoso. Enxota-o, Jake.
Que cocorocó, meus velhos! O galo chinês soltou um canto de vitória tão perfeito, um tal laudamus, um toque de trombeta tão triunfal, que relinchei para comigo em grande estilo. Os
credores! Bah... teria enfrentado um exército
deles! O galo chinês era claramente da opinião que os credores só vinham ao mundo para apanharem pancada, serem enforcados, magoados, maltratados, estrangulados, espancados, zurzidos, afogados e chicoteados!
Depois de regressar a casa, quando a exaltação da minha vitória sobre o credor abrandou um pouco, pus-me a devanear sobre o misterioso galo chinês. Não pensara ouvi-lo tão perto da minha casa. Em que galinheiro de cavalheiro rico cantava ele? E o bicho não tinha encurtado as suas efusões tão facilmente como eu pensara. Este galo chinês cantava pelo
menos até ao meio-dia. Iria ele continuar o dia
todo? Decidi descobrir. Voltei a subir a colina.
Toda a região se banhava agora numa luz de
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júbilo. Uma verdura quente explodia à minha volta. As charruas trabalhavam. Aves vindas há pouco do sul cantavam e esvoaçavam alegremente. Até mesmo os corvos grasnavam com um certo fervor e pareciam uns tons menos negros que habitualmente.
Ouçam! É o galo! Como descrever o cocorocó deste galo chinês ao meio-dia? O canto da aurora era um murmúrio ao lado do seu. Era o cocorocó mais alto, prolongado e estranhamente musical que alguma vez espantou um mortal. Já tinha ouvido antes muitos cantos de galo e alguns muito bons; mas aquele! Tão suave e tão aflautado no seu próprio clamor, tão seguro até mesmo no encantamento da exultação, tão amplo que ascendia, aumentava, fendia os céus como se brotasse de uma goela de ouro e fosse atirado para longe! E também não era o cocorocó parvo e vaidoso de um galo noviço, ignorante do mundo e a estrear-se na vida com a audaciosa alegria que lhe confere a sua lastimável ignorância do futuro. Era o canto de um galo que não cantava irreflectidamente, o canto de um galo que sabia umas coisas; o canto de
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um galo que tinha enfrentado o mundo e vencera e que estava agora resolvido a cantar, mesmo que a terra se abrisse e os céus se abatessem. Era um canto de sabedoria, um canto invencível, um canto filosófico, o canto dos cantos.
Retemperado e impassível, regressei a casa. Voltei a pensar nas minhas dívidas e nos meus restantes problemas, nas infelizes revoltas dos povos oprimidos no estrangeiro, nos acidentes de caminho-de-ferro e de barco a vapor e até mesmo na perda do meu amigo querido, num êxtase de desafio tranquilo e afável que me deixou estupefacto. Parecia-me que, se encontrasse a Morte, a convidava para jantar e fazia na sua companhia um brinde às catacumbas
infernais sem diminuir o meu sentimento de
pura liberdade e segurança universal.
Ao anoitecer, voltei à colina para saber se o galo estaria alegre desde o nascer do sol até ao cair da noite. Falem-me de vésperas e de recolher obrigatório! O canto vespertino deste galo saía da sua formidável goela e estendia-se por
toda a região; ocupava-a qual Xerxes vindo do
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oriente com a sua hoste de fileiras emplumadas. Era um milagre. Santo Deus, que canto! Nessa noite, acreditem, o galo virou-se galhardamente no seu poleiro, vitorioso todo o dia, legando à noite os ecos de milhares de cocorocós.
Depois de um sono invulgarmente tranquilo e revigorante, levantei-me cedo e ergui-me da cama como uma mola de um banco de tipóia - ágil, elipsoidal, leve, álacre como uma piroga de balseiro - e fui até ao topo da colina, tão saltitante como uma bola de futebol. Ouçam! O galo chinês antecipou-se. O mundo pertence à ave que se levanta cedo - à ave que canta como um clarim -, folgazã, sonora, plena de júbilo. Nas quintas dispersas, outros galos cantavam, revezando-se. Mas não passavam de flautins ao pé de um trombone. O galo chinês fazia de repente a sua entrada e esmagava todos os cocorocós com uma única fanfarra imperiosa. Parecia que não se ralava com mais nada. Não respondia a outro canto, só cantava para si próprio, por sua conta, na altiva independência da solidão.
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Oh, valente galo! Oh, nobre galo chinês! Oh, ave tão justamente oferecida em holocausto pelo invencível Sócrates como testemunho da sua vitória final sobre a existência!
Juro pela minha alma que vou neste dia bendito descobrir este galo chinês e que o vou comprar, mesmo que para isso tenha de fazer mais uma hipoteca sobre as minhas terras.
Escutava agora com atenção, esforçando-me por perceber de que lado vinha o canto. Mas este enchia e saturava tão bem todo o ar, impregnava-o de uma tal superabundância que não se podia dizer exactamente de que ponto vinha todo aquele júbilo. Só pude perceber que vinha de Leste e não de Oeste. Avaliei a seguir a que distância se podia ouvir o canto de um galo. Naquela região tranquila e, ainda por cima, rodeada de montanhas, os sons eram audíveis
a grande distância. E, depois, as ondulações
?" do terreno, as saliências que as montanhas
faziam nos vales e nas colinas produzindo estranhos ecos e reverberações, multiplicando e acumulando ressonâncias que se notavam muito distintamente e eram muito confusas
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para o espírito. Onde estava então escondido este valente galo chinês, esta ave do jovial Sócrates, o helénico galo de combate que morreu impávido? Onde estava ele escondido? Ó nobre galo, onde estás tu? Canta mais, meu Bantam! Meu principesco, meu imperial galo chinês! Minha ave do imperador da China! Irmão do sol, primo do grande Júpiter! Canta uma última vez para eu saber onde moras!
O canto deste galo parece uma orquestra inteira de galos de todas as nações. Mas de onde vem? Ele está por perto, mas onde? Não havia forma de descobrir. Eu sabia somente
que vinha de Leste.
Depois do pequeno-almoço, peguei na minha bengala e parti para dar uma volta. Muitos cavalheiros eram donos de propriedades nos arredores e não tinha qualquer dúvida de que um destes prósperos senhores tinha investido uma nota de cem dólares nalgum galo chinês trazido recentemente pelo Vento Alísio, pelo Grão Branco ou pela Rainha dos Mares, pois devia ter sido um digno navio com um nome digno a trazer a fortuna de um tão digno galo! Decidi percorrer
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a região toda para encontrar o nobre estrangeiro; mas pensava que não seria má ideia pedir instruções nas mais humildes habitações, perguntar se, por acaso, não sabiam de um galo chinês recentemente importado, pertencendo a um desses cavalheiros colonos vindos da cidade; pois era evidente que nenhum agricultor pobre, nem um pobre de qualquer espécie, podia ser dono de um tal trofeu do oriente, que era, sem dúvida, um grande sino da Catedral de São Paulo em forma de goela de galo. Encontrei um homem velho que lavrava o seu campo perto de uma cancela.
- Meu amigo, ouviu um extraordinário canto de galo recentemente?
- Na verdade - disse com voz fanhosa -, não sei nada disso. A Sr.a Pattedoie tem um galo, o Sr. Barbon tem um galo e eu também tenho um e todos eles cantam. Mas não conheço nenhum que tenha um canto extraordinário.
- Então, bom dia - disse eu brevemente.
- Vê-se bem que não ouviu cantar o chantre do imperador da China.
Em breve, encontrei outro velhote que reparava um velho tapume em ruínas. Os barrotes estavam podres e, ao menor gesto do velhote, desfaziam-se em ocre amarelo. Faria bem
melhor se deixasse a vedação em paz ou, então, se arranjasse barrotes novos. Devo dizer a este propósito que uma das razões do triste facto de a parvoíce estar mais disseminada entre os lavradores que entre qualquer outra classe se deve a este hábito de querer reparar velhos tapumes apodrecidos em dias quentes e debilitantes de Primavera. É uma tarefa sem
esperança. É uma tarefa laboriosa e vã. É uma tarefa de partir o coração. Esforços enormes desperdiçados numa futilidade. Porque, enfim, haverá modo de manter vedações apodrecidas assentes em postes podres? Que truque permite recuperar e dar vigor a pedaços de madeira que congelaram e cozeram alternadamente durante sessenta Invernos e sessenta Verões?
É esta miserável obstinação em reparar vedações apodrecidas com as próprias traves podres que leva tantos lavradores ao asilo.
Viam-se claramente as primícias da idiotice no rosto do lavrador em questão. Diante dele,
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com sessenta varas, estendia-se um dos tapumes da Virgínia mais pateticamente deprimentes e desamparados que alguma vez vi na minha vida. Ao mesmo tempo, uma manada de novilhos no campo contíguo, como que possuída pelo demónio, dava continuamente cornadas naquela miserável e velha vedação que abria aqui e ali verdadeiras brechas, de tal maneira que o velhote tinha de pousar as ferramentas para os enxotar. Perseguia-os com um toro de madeira grande como a moca de Golias, mas leve como cortiça e que se desfazia em pó mal era brandido.
- Meu amigo - disse eu, dirigindo-me àquele infeliz mortal -, terá ouvido um extraordinário canto de galo recentemente?
Foi o mesmo que perguntar se tinha ouvido o relógio da morte a bater as mandíbulas. Lançou-me um longo olhar assustado, doloroso, indescritível e retomou sem dizer palavra os
seus trabalhos ridículos.
Como sou parvo, pensei, por fazer perguntas sobre um galo tão alegre a uma criatura tão
pouco jovial e difícil de animar!
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Continuei o meu caminho. Tinha agora descido a colina onde ficava a minha casa e, encontrando-me no sopé, já não ouvia o cocorocó do galo chinês que, sem dúvida, era demasiado agudo para que se ouvisse. Por outro lado, talvez o bicho estivesse a almoçar, a comer o seu trigo e a sua aveia, ou a dormir uma sesta, e, por isso, tivesse interrompido por instantes o seu regozijo.
Cruzei-me no caminho com um corpulento cavalheiro a cavalo - melhor, um opulento cavalheiro -, um homem muito rico que acabara de comprar alguns bons talhões de terra e mandara construir um solar, flanqueado por um galinheiro com bom aspecto cuja fama se espalhara por toda a região. Eis então, pensei eu, o proprietário do Xangai.
- Senhor, desculpe-me - disse-lhe eu -, mas sou seu vizinho e queria perguntar-lhe se, por acaso, possui galos chineses?
- Oh sim, tenho dez galos chineses.
- Dez! - exclamei estupefacto - E todos
eles cantam?
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- Todos sem excepção cantam muito bem. Não me interessava um galo que não cantasse.
- Poderia mostrar-me esses galos?
- com todo o gosto. São o meu orgulho;
custaram-me seiscentos dólares.
Caminhando ao lado do cavalo, perguntava-me se seria possível que eu tivesse tomado os cocorocós harmoniosamente combinados de dez galos chineses pelo canto sobrenatural de um único galo chinês solitário.
- Senhor - recomecei eu -, há algum entre os seus galos chineses que ultrapasse de longe todos os outros pelo vigor, pela musicalidade e pelo efeito inspirador do seu canto?
- Eles cantam de modo bastante semelhante,
creio - respondeu-me com cortesia. - Não sei distingui-los.
Começava a pensar que afinal o meu nobre chantre talvez não estivesse na posse daquele cavalheiro rico. Entrámos, todavia, no seu galinheiro e vi os seus galos chineses. Devo confessar que nunca tinha até então pousado os olhos naquela variedade de aves de capoeira
de importação. Ouvira dizer que se gastavam
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quantias enormes para as arranjar e que o seu tamanho também era enorme, de tal modo que me tinha convencido, não sei como, que tinham uma beleza e um brilho proporcionais tanto ao seu tamanho como ao seu preço. Qual não foi portanto a minha surpresa ao ver dez monstros cor de cenoura, sem o mais pequeno vestígio de plumagem esplendorosa! Decidi imediatamente que o meu galo real não estava entre aqueles e que era absolutamente impossível que fosse um galo chinês - se é que aquelas aves gigantescas eram espécimes fiéis do verdadeiro galo chinês.
Caminhei o dia todo; jantei numa quinta onde descansei um pouco, inspeccionei várias capoeiras, interroguei diversos proprietários de criação, apurei o ouvido a diversos cocorocós
- mas sem descobrir o meu misterioso chantre. Tinha mesmo caminhado até tão longe e por tantos desvios, que já não o ouvia cantar. Começava a desconfiar que o galo não passava de um simples turista na região, que se fora embora às onze horas no comboio do sul e que fazia agora ouvir o seu canto de júbilo algures
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nas margens verdejantes do estreito de Long Island.
Mas uma vez mais, na manhã seguinte, ouvi a inspiradora fanfarra; mais uma vez senti o sangue a correr mais depressa nas veias; mais uma vez me senti superior a todos os males da existência; uma vez mais tive vontade de pôr o meu credor na rua. Mas este último, zangado com a recepção na última visita, manteve-se longe; sem dúvida estava ofendido. Que imbecil, levar a peito uma brincadeira inofensiva!
Passaram vários dias durante os quais fiz diversas excursões pelas regiões circundantes; mas foi em vão que procurei o galo. No entanto, ouvia-o da colina e às vezes de casa e ainda, por vezes, no silêncio da noite. Se me acontecia reincidir nos meus humores negros, de imediato, ao som daquele cocorocó exultante e rebelde, também a minha alma se transformava em chantre, batia as asas e lançava um alegre
desafio a todas as dores deste mundo.
Enfim, algumas semanas depois, tive necessidade de fazer outra hipoteca sobre a minha terra para pagar determinadas dívidas, entre
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as quais a que tinha para com o meu perseguidor que acabava de intentar uma acção contra mim. A notificação foi-me entregue da forma mais insultuosa. Acabara de me regalar numa sala privada da taberna da aldeia com uma garrafa de cerveja de Filadélfia com um pedaço de queijo de Herkimer e um pãozinho; e, depois de ter avisado o patrão, que é meu amigo, que pagaria logo que recebesse as próximas cobranças, dirigi-me ao bengaleiro do bar onde tinha pendurado o meu boné para pegar num bom charuto quando subitamente encontrei o charuto embrulhado na notificação. Ao desenrolar o charuto, desenrolei simultaneamente a notificação e o polícia que estava ali ao lado desbobinou estas palavras em voz grossa:
- Queira tomar conhecimento! - disse ele,
antes de acrescentar num murmúrio: - Depois, meta-a no seu cachimbo e fume-a!
Voltei-me bruscamente para os cavalheiros que estavam presentes no bar.
- Senhores - disse-lhes eu -, será esta
uma forma digna, ou até mesmo legal, de entregar uma notificação? Vejam só!
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Todos, sem excepção, foram de opinião de que era altamente deselegante da parte do polícia aproveitar-se assim de um homem que estava a comer cerveja e queijo para ter a incorrecção de lhe enfiar uma notificação no chapéu. Era mesquinho; era cruel, pois o choque repentino de um estoiro daqueles, imediatamente a seguir ao almoço, não podia deixar de comprometer a boa digestão do queijo reconhecidamente mais difícil que a do manjar-branco.
Quando cheguei a casa, li a notificação e senti uma pontada de melancolia. Mundo cruel! Mundo cruel! Aqui estou eu, um bom homem como não há melhor - hospitaleiro, de coração aberto, excessivamente generoso: e o Destino recusa-me a fortuna que me permitiria espalhar as minhas boas acções pela região! Pior, quando tantos sovinas e saqueadores rebolam esterilmente sobre ouro, eu, coração nobre como sou, recebo intimações! Baixei a cabeça e senti-me abandonado, injustiçado, maltratado e incompreendido. Numa palavra, miserável.
Ouçam! O cocorocó cheio de glória e de desafio soou como um clarim, sim, como o repicar de um alegre trovão! Meu Deus, como me levantou o moral! Fiquei muito direito! Sim, na verdade, como que sobre andas!
Oh, o nobre galo!
Tão claramente quanto era possível a um galo, ele dizia: "Que o mundo se desfaça com tudo o que contém. Tu, sê alegre e nunca te resignes. Que vale o mundo ao pé de ti? Não é então nada mais que um torrão de barro? Sê alegre!"
Ah! O nobre galo!
Mas, querido e glorioso galo, disse para comigo, não é assim tão fácil mandar este mundo desfazer-se; não é assim tão fácil estar alegre quando nos enfiam intimações no chapéu ou na mão.
Escutem! Outro cocorocó. Tão claramente
quanto o galo podia, dizia: "Para o Diabo a intimação e para o Diabo o engraçado que a enviou! Se não tens bens nem dinheiro, pois bem, dá uma sova a esse engraçado e diz-lhe que não tens qualquer intenção de lhe pagar. Sê alegre!"
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Foi portanto assim - sob as imperiosas intimações deste galo - que acabei por fazer mais uma hipoteca sobre a minha propriedade e que saldei todas as minhas dívidas, juntando-as a essa única obrigação suplementar. Tendo deste modo encontrado paz, parti de novo em busca do meu nobre galo; mas em vão, apesar de o ouvir todos os dias. Comecei a pensar que devia haver alguma fraude neste misterioso caso: algum ventríloquo prodigioso dado a alegres travessuras que rondasse o celeiro, a cave ou o telhado. Mas não; que ventríloquo teria soltado um cocorocó tão heroicamente celeste?
Por fim, numa bela manhã, recebi a visita de um homem singular que, no mês de Março, me tinha serrado e rachado lenha - ao todo uns trinta molhos - e que vinha agora receber o seu pagamento. Era, repito-o, um homem singular. Era alto e magro, com um rosto comprido e triste, e no entanto, tinha um olhar risonho que contrastava estranhamente com a sua face. Tinha um ar sério, mas nada abatido. Usava um comprido casaco cinzento coçado e um grande chapéu amachucado. Este homem
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tinha-me serrado a lenha a um tanto cada molho. Ficava a serrar o dia todo, em plena tempestade de neve, sem pestanejar. Nunca falava a não ser que lhe dirigissem a palavra. Serrava, era tudo. Serrava, serrava, serrava; nevava,
nevava, nevava. A serra e a neve avançavam juntas, como dois elementos da natureza. No primeiro dia em que este homem veio, trouxe o jantar com ele e começou a comê-lo sentado num banco, sob a tempestade de neve. Vi-o da minha janela onde estava a ler A Anatomia da Melancolia, de Burton. Saí de casa, em correria e de cabeça destapada.
- Deus do Céu! - exclamei. - Que está a fazer? Entre. É isso o seu jantar?
Tinha um naco de pão duro e uma fatia de carne de vaca salgada envolvida num jornal molhado e engolia os bocados com um pouco de neve que deixava derreter na boca. Mandei o imprudente entrar, instalei-o ao canto da lareira e servi-lhe um prato de porco grelhado com favas regado com uma caneca de sidra.
- Ouça lá - disse-lhe -, nunca mais me traga para aqui os seus jantares ensopados.
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Trabalha à tarefa, é sabido, mas ofereço-lhe as refeições.
Expressou os seus agradecimentos de forma calma e digna, mas não sem gratidão, e despachou a refeição para sua satisfação e também para a minha. Gostava de o ver engolir a caneca
de sidra como um homem. Olhava-o com respeito. Quando me aproximava do banco que ele trouxera, para discutir o trabalho com o homem, era com um certo respeito e reserva. Intrigado com o seu aspecto singular, impressionado com a sua extraordinária aplicação a serrar - uma das ocupações mais fastidiosas e odiosas aos olhos da maior parte dos homens -, procurava muitas vezes descobrir quem ele era, que tipo de vida levava, onde tinha nascido e por aí fora. Mas ele não dizia palavra. Vinha serrar a minha lenha e comer os meus jantares - eu oferecia-lhos com todo o gosto -, mas não para tagarelar. Ao princípio, sentia um certo ressentimento, dadas as circunstâncias, por aquele silêncio impertinente. Mas, pensando bem, passei a respeitá-lo ainda mais. Falava-lhe com
um respeito e uma deferência ainda maiores.
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Concluí intimamente que aquele homem tinha passado por momentos difíceis; que tinha recebido neste mundo mais que um duro golpe, que tinha um temperamento solene e era um homem ponderado; que vivia tranquila, decente e frugalmente e que era, apesar de pobre, muito respeitável. Por vezes, até o imaginava como diácono ou ancião de alguma pequena igreja do campo. Pensava que até seria possível vê-lo como candidato à presidência dos Estados Unidos; teria dado um grande defensor dos oprimidos. Chamava-se Merrymusk. Muitas vezes achei este nome demasiado jovial para um ser que o era tão-pouco. Perguntei às pessoas se conheciam Merrymusk. Mas só ao fim de um certo tempo soube alguma coisa a seu respeito. Parecia que tinha nascido em Maryland e que vivera durante muito tempo nas redondezas, sem lar e, até há dez anos, sem economias, apesar de homem inocente. Era um homem que durante um mês trabalhava arduamente, com
uma sobriedade espantosa, e que depois gastava todo o seu salário numa só noite de deboche. Fora marinheiro na juventude e tinha
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desertado do navio em Batávia, antes de contrair uma febre e ter estado quase a morrer. Mas tinha-se curado, voltara a embarcar, regressara à região onde todos os seus amigos tinham morrido e rumara a norte, ao interior das terras, onde desde então vagueava. Tinha-se casado nove anos antes e tinha agora quatro filhos. A mulher ficara completamente inválida; um dos filhos sofria de hidrartrose e os outros eram doentes. Ele e a família moravam numa cabana, num pedaço de terreno estéril e recuado, não longe do caminho-de-ferro, junto às faldas montanhosas. Tinha comprado uma bonita vaca para poder ter bastante leite bom para dar aos filhos; mas a vaca morrera ao parir e não tinha com que comprar outra. No entanto, a família nunca tinha passado fome. Trabalhava arduamente e levava-lhes comida.
Ora, como disse, tendo serrado a minha lenha algum tempo antes, Merrymusk vinha agora reclamar o pagamento.
- Meu amigo - perguntei-lhe -, conhece por aqui um cavalheiro que tenha um galo extraordinário?
Os olhos do serrador brilharam.
- Não conheço nenhum cavalheiro - respondeu ele - que tenha um galo verdadeiramente extraordinário.
Ora, pensei eu, Merrymusk não é homem para me esclarecer. Receio não vir a descobrir este extraordinário galo.
Não tendo trocos suficientes para pagar a Merrymusk, paguei-lhe quase tudo e disse-lhe que passaria por casa dele dentro de um ou dois dias para lhe dar o resto. Saí, então, de
minha casa uma bela manhã com essa intenção. Tive bastante dificuldade em encontrar o melhor caminho até à cabana dele. Parecia que ninguém sabia exactamente onde ficava.
Situava-se numa zona remota, entre uma montanha densamente arborizada (a que chamo monte Outubro devido ao aspecto excessivamente enfeitado que tem nesse mês) e uma charneca cheia de arbustos que o caminho-de-ferro atravessava em linha recta como um i, atormentando várias vezes por dia a infeliz 45
cabana com o espectáculo de tanta beleza, distinção, elegância, saúde, baús de ouro e prata, artigos de retrosaria e de mercearia, jovens casais e esposos felizes, passando a toda a velocidade defronte daquela porta solitária. Sem tempo para parar; num clarão chegam e noutro partem. E o comboio perde-se de vista, como se esta parte do mundo tivesse sido feita apenas para ser cruzada a grande velocidade não para ser habitada. E era mais ou menos tudo o que a cabana via daquilo a que chamamos a vida.
Apesar de um tudo-nada perplexo, eu sabia mais ou menos a direcção da cabana e avancei. À medida que avançava, fiquei surpreendido ao ouvir o misterioso galo a cantar cada vez mais distintamente. Será que, pensei eu, um cavalheiro que possui um galo chinês mora numa região tão solitária e desolada? Sempre mais alto, sempre mais perto, soava o clarim cheio de glória e de desafio. Talvez me tenha enganado no caminho para casa do lenhador, pensei, mas, graças a Deus, parece que estou na pista deste galo extraordinário. Fiquei encantado com este feliz acaso. Segui o meu caminho enquanto o seu canto ressoava, a intervalos, da forma mais sedutora, jovial e esplêndida; e o cocorocó parecia vir de um local cada vez mais próximo. Por fim, emergindo de um grupo de sabugueiros, deparei com a mais resplandecente criatura que alguma vez recompensou o olhar de um homem.
Um galo que parecia uma águia com penas de ouro; um galo que parecia menos um galo que um marechal do exército; um galo que parecia menos um galo que o almirante Nelson equipado com todas as suas armas brilhantes e de pé na ponte do Vanguard antes da batalha; um galo que se parecia menos com um galo que com o imperador Carlos Magno vestido com a púrpura do seu trono em Aix-la-Chapelle.
Que galo!
Tinha uma figura nobre e um porte altivo. Era vermelho, dourado e branco. O vermelho só se encontrava na sua crista poderosa e simétrica, parecida com o elmo de Heitor como se vê desenhado nos escudos antigos. A plumagem
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era de neve com nervuras de ouro. Caminhava
diante da cabana como um par do reino: a crista levantada, o peito espetado, as grandes penas refulgindo ao sol. O seu porte era prodigioso. Dir-se-ia uma nobre personagem vinda de algures. Dir-se-ia um rei do Oriente numa sumptuosa ópera italiana.
Merrymusk saiu pela porta e deu alguns passos.
- Desculpe, mas este não é o Signor Beneventano?
- Senhor?
- É o galo - respondi um pouco envergonhado.
Na verdade, o meu entusiasmo levara-me a cometer uma imprudência bastante tola. Fizera uma alusão um tanto erudita a um homem inculto. Portanto, quando a sua honesta incompreensão me deu a entender o meu lapso, senti-me parvo; mas desembaracei-me dizendo: é o galo.
Tinha estado na cidade no Outono anterior
e quis a sorte que assistisse a uma representação da ópera italiana. Havia nessa ópera uma
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personagem real cujo papel era representado por um certo Signor Beneventano-um homem alto, de figura imponente, vestido com ricos tecidos que lembravam uma plumagem e cujo porte cheio de majestade e desdém era notável. O Signor Beneventano parecia estar prestes a tombar sob o peso excessivo da sua soberba. E o porte orgulhoso deste galo lembrava até ao equívoco o andar altivo com que o Signor Beneventano pisava o palco.
Caluda! O galo deteve-se subitamente, levantou a cabeça mais ainda, eriçou as penas, pareceu inspirado e soltou um vigoroso cocorocó. O monte Outubro repetiu-o, outros montes devolveram-no, outros ainda recuperaram-no; por fim, os seus ecos cobriram toda a região. Percebia agora claramente como ouvira na minha longínqua colina este ruído entusiasmante.
- Santo Deus! É você o dono do galo? O galo é seu?
- É o meu galo - disse Merrymusk com um ar de alegria matreira estampado no seu comprido e solene rosto.
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- Onde é que o arranjou?
- Quebrou a casca aqui. Fui eu que o criei.
- Você?
Ouçam! Mais outro cocorocó. Era de acordar os fantasmas de todos os pinheiros e abetos alguma vez abatidos na região. Que galo maravilhoso! Depois do seu cocorocó, o animal
retomou a sua passada larga rodeado por um
bando de galinhas, suas admiradoras.
- Quanto quer pelo Signor Beneventano?
- Senhor?
- Este galo mágico! Quanto quer por ele?
- Não está à venda.
- Dou-lhe cinquenta dólares por ele.
- Ora!
- Cem!
- Pff!
- Quinhentos!
- Bah!
- Mas você não é pobre?
- Isso não. Não possuo este galo e não recusei imediatamente vendê-lo por quinhentos dólares?
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- Isso é verdade - respondi, muito pensativo. - É um facto. Então não o quer vender?
- Não.
- Quereria dá-lo?
- Não.
- Quer então conservá-lo - gritei furioso.
- Sim.
Por instantes, olhei para o galo com admiração e para o homem com espanto. Por fim, senti redobrar a minha admiração por um e o meu respeito pelo outro.
- Então não entra? - perguntou-me Merrymusk.
- Não podemos convencer o galo a vir connosco? Respondi.
- Sim. Trombeta! Por aqui meu rapaz, por aqui!
O galo virou a cabeça e, com grandes passadas, dirigiu-se a Merrymusk.
- Anda!
O galo seguiu-nos e entrou na cabana.
- Canta!
O telhado vibrou.
Ó nobre galo!
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Voltei-me para o meu hospedeiro, em silêncio. Estava sentado em cima de uma velha mala toda amolgada, vestido com o seu esfarrapado casaco cinzento remendado nos cotovelos e nos
joelhos e com um chapéu lamentavelmente
deformado. Percorri a divisão com o olhar. No
tecto, traves nuas de onde pendiam robustas peças de carne seca. Um chão de terra batida, batatas num canto e, no outro, um saco de farinha de milho. Na outra ponta, estava uma manta estendida ao longo da habitação; mais
atrás ouviam-se as vozes sofredoras de uma
mãe e dos seus filhos. Mas parecia não haver qualquer queixa naquele sofrimento.
- A Sr.a Merrymusk e os seus filhos?
- É verdade.
Olhei para o galo. Mantinha-se majestosamente no meio da divisão. Parecia um Grande de Espanha surpreendido por uma chuvada e que se tivesse refugiado numa barraca de camponês. Emanava de si a estranha impressão de um contraste sobrenatural. Irradiava glória naquela cabana; transfigurava-lhe a miséria.
Transfigurava a velha mala amolgada e o casaco
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cinzento rasgado e o chapéu amolgado. Exaltava até as vozes que se elevavam em tons dolorosos atrás do pano.
- Ó pai! - exclamou uma vozinha doentia.
- mande o Trombeta cantar outra vez.
- Canta - gritou Merrymusk.
com um movimento brusco, o galo fez pose.
O telhado estremeceu.
- Isto não incomoda a Sr.a Merrymusk e as crianças doentes?
- Canta mais, Trombeta.
O telhado estremeceu.
- Então isto não os incomoda?
- Não os ouviu a pedi-lo?
- Como é que o cocorocó agrada à sua família? - interroguei. -O galo é notável e dotado de uma voz igualmente notável; mas poder-se-ia pensar que não é exactamente o género de bicho que convém a um quarto de doente. A situação agrada-lhes verdadeiramente?
- Será que não lhe agrada a si? Será que
isto não lhe faz bem? Não será nada exaltante?
Acha que isto não dá coragem e ânimo perante o desespero?
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- Tudo isso é verdade - disse eu, tirando o
chapéu com profunda humildade, face ao espírito corajoso que aquele casaco sórdido escondia.
- Mas, mesmo assim - retomei ainda tomado por uma certa apreensão -, um cocorocó tão poderoso, tão maravilhosamente tonitruante... talvez não seja bom para uma inválida e talvez atrase a sua convalescença.
- Canta agora o melhor que puderes, Trombeta.
Dei um salto na cadeira. Este galo assustava-me como se fosse um qualquer arcanjo destruidor do Livro do Apocalipse. Parecia exultar com a ruína da perversa Babilónia ou com o triunfo de Josué, o Justo, no vale de Ascalon.
Assim que recuperei a compostura, veio-me ao espírito uma curiosidade que resolvi satisfazer.
- Merrymusk, quer apresentar-me a sua
mulher e os seus filhos?
- Sim. Mulher, o senhor quer entrar.
- É bem-vindo - respondeu uma voz fraca. Depois de atravessar a cortina via-se um rosto humano que repousava, desfeito, mas habitado por uma alegria estranha; o corpo, coberto por uma colcha e por um casaco velho, parecia demasiado diminuído para que se pudesse adivinhar através destes obstáculos. Uma criança pálida estava sentada à sua cabeceira e cuidava dela. Numa outra cama, estavam deitadas lado a lado três crianças, mais três caras pálidas.
- Oh, pai, não temos nada contra o senhor, mas queremos ver o Trombeta também.
Ao ouvir o seu nome, o galo passou por detrás do pano e foi-se empoleirar na cama das crianças. Os seus olhos mortiços fixaram-no com um encantamento selvagem, místico. A sua plumagem radiosa era como um sol que
os tivesse aquecido.
- É mais forte que um boticário, não? disse Merrymusk - Aqui está o Dr. Galo em pessoa.
Retirámo-nos e voltei a sentar-me na cadeira,
perdido nos pensamentos que aquela estranha família me inspirava.
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- Você parece-me um rapaz muito independente! - disse-lhe por fim.
- E você, não creio que seja um tolo e nunca acreditei que fosse. Senhor, você é um homem de ouro.
- Há alguma hipótese de a sua mulher se curar? - perguntei, tentando modestamente desviar a conversa.
- Não.
- E as crianças?
- Também não.
- Então, a vida deve ser dolorosa para cada
um de vós. Esta solidão, esta cabana, trabalhos penosos, uma época difícil...
- Não tenho o Trombeta? É ele que me dá coragem. Ele canta em qualquer altura; canta nas trevas mais profundas: glória a Deus nas alturas! É isto que ele canta, continuamente.
- Era esse exactamente o sentido que eu atribuía ao seu canto, Merrymusk, quando o ouvi da minha colina pela primeira vez. Imaginava um rico nababo, dono de um galo chinês
valioso. Nunca pensei que um pobre homem
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como você possuísse um galo assim tão vigoroso e de raça doméstica.
- Um pobre homem como eu? Porque me chama pobre? Não será o meu galo que espalha glória numa terra que, sem ele, seria ignóbil, mesquinha e ínfima? O meu galo não lhe deu coragem? E eu ofereço-lhe toda esta glória de graça. Sou um grande filantropo. Sou um homem rico, um homem muito rico e feliz. Canta, Trombeta.
O telhado estremeceu.
Regressei a casa, profundamente absorto.
Não estava totalmente convencido da razão do
ponto de vista de Merrymusk, embora tivesse uma profunda admiração por ele. Ainda reflectia quando cheguei à minha porta e voltei a ouvir o galo cantar. Chegava. Merrymusk tinha razão.
Oh nobre galo! Oh, nobre coração!
Não o voltei a ver durante algumas semanas; mas, pelo som deste cocorocó pleno de glória e de alegria, calculava que em casa dele prosseguiam a sua vida quotidiana. Quanto a mim, o meu espírito estava sempre propenso à
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alegria. O galo continuava a animar-me. Vi mais uma hipoteca sobre a minha plantação; mas contentei-me em comprar mais uma dúzia de garrafas de cerveja stout e de cerveja preta de
Filadélfia. Alguns parentes meus faleceram; não fiz luto, mas durante três dias bebi mais cerveja preta do que stout, devido à sua cor mais escura. Ouvi o galo cantar no momento em que recebi estas funestas notícias.
- Bebo esta cerveja à tua saúde, ó nobre galo!
Pensava fazer outra visita a Merryrnusk pois já há algum tempo que não o via nem tinha notícias dele. Quando me aproximei da cabana, parecia estar deserta. Tive um estranho pressentimento. Mas o galo cantou no interior e a minha ansiedade desapareceu.
Bati à porta. Uma voz fraca convidou-me a entrar. A cortina já não estava puxada; toda a casa era agora um hospital. Merryrnusk jazia sobre vários farrapos velhos; a mulher e as crianças estavam de cama. O galo estava empoleirado num velho arco de barrica que balouçava
sobre o espigão, no meio da cabana.
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- Está doente, Merrymusk - disse-lhe num
tom triste.
- Não, estou bem - respondeu fracamente.
- Canta, Trombeta.
Estremeci. Esta alma tão forte neste corpo tão fraco enchia-me de pavor. Mas o galo cantou.
O telhado estremeceu.
- Como está a Sr.a Merrymusk?
- Bem.
- E as crianças?
- Bem. Muito bem!
Disse as últimas palavras numa espécie de êxtase selvagem, como se triunfasse na calamidade. Foi demais. A cabeça descaiu novamente. Dir-se-ia que um guardanapo branco lhe caia sobre o rosto. Merrymusk tinha morrido.
Um medo atroz apoderou-se de mim.
Mas o galo cantou.
O galo sacudiu a plumagem como se cada uma das suas penas fosse um estandarte. O galo estava pendurado no tecto da cabana tal como, outrora, os estandartes na Catedral de
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São Paulo. O galo inspirava-me uma admiração extrema e terrível.
Aproximei-me da cabeceira da mulher e das crianças. Viram o meu aspecto e o meu estranho medo; souberam o que tinha acontecido.
- O meu valente marido morreu agora mesmo - disse a mulher num murmúrio. - Diga-me a verdade.
- Está morto - respondi-lhe. O galo cantou.
Desfaleceu sem soltar um suspiro, morta por simpatia e por um grande amor.
O galo cantou.
O galo sacudiu da sua plumagem de ouro uma nuvem de centelhas. O galo parecia arrebatado por um alegre e benévolo êxtase. Desceu do aro da barrica com um salto, com grandes passadas majestosas aproximou-se do monte de trapos velhos onde jazia o velho lenhador e plantou-se a seu lado como a figura de um brasão. Depois lançou um único cocorocó, longo, musical, triunfante, definitivo, com a goela bem esticada como se quisesse com aquela fanfarra enviar a alma do seu dono direitinha
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para o sétimo céu. Depois caminhou, como um rei, até à cama da mulher. Outro cocorocó brotou para o céu, exultante, e uniu-se ao primeiro.
A palidez das crianças transformou-se em resplendor. Os seus rostos brilhavam com uma luz celeste sob a sujidade e sob a porcaria. Dir-se-iam filhos de reis e de imperadores disfarçados. O galo saltou para a cama deles, sacudiu-se, e voltou a cantar. Parecia decidido a cantar até que as almas abandonassem aqueles corpos destroçados e a reunir a família toda sem demora nas regiões do éter. Parecia que as crianças apoiavam os seus esforços. Um desejo de libertação vindo de muito longe, profundo, intenso, transformou-os em seres espirituais perante os meus olhos. Vi anjos onde eles repousavam.
Estavam mortos.
O galo sacudiu a plumagem por cima deles. O galo cantou. Era naquele momento como que um viva, como um hip-hip-hurra! Saiu da cabana. Segui-o. Voou até ao cume do edifício, estendeu as grandes asas, fez soar uma única nota sobrenatural e caiu a meus pés.
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O galo estava morto.
Se visitarem hoje esta região de colinas, vêem perto do caminho-de-ferro, mesmo em baixo no monte Outubro, do outro lado do pântano, uma pedra tumular onde o buril gravou em vez de caveira e ossos cruzados, um vigoroso galo cantador e estas palavras por baixo:
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
Ó morte, onde está a tua vitória?
O lenhador e a família repousam neste sítio, na companhia do Signor Beneventano; e fui eu que os enterrei e que levantei esta pedra, expressamente talhada por encomenda. Desde então, nunca mais reincidi nos meus
humores negros e canto de manhã e à noite, em todas as circunstâncias, um cocorocó perpétuo.
Cocorocó! Ó! Ó! Ó!
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FELIZ INSUCESSO
Um conto do rio Hudson
Tinha combinado encontrar-me com o meu velho tio de manhã, à beira-rio, às nove horas em ponto. A canoa estaria pronta a partir e seria guiada pelo seu velho criado negro de cabeça grisalha. Até então, a natureza exacta da prodigiosa experiência permanecia para todos um mistério, excepto para aquele que tinha concebido o projecto.
Fui o primeiro a chegar ao local. A aldeia ficava longe, a montante, e o sol de Verão no interior das terras era já opressivo àquela hora. Em breve vi o meu tio a aproximar-se pelo meio das árvores, sem o chapéu, e a limpar a testa, enquanto mais atrás, ao longe, caminhava vacilante o pobre velho Yorpy, trazendo às costas um objecto enigmático.
- Hurra! Vamos, coxeia lá, Yorpy! - gritava
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o meu tio, voltando-se de vez em quando impacientemente .
Quando o negro, coxeando sempre, chegou à canoa, apercebi-me de que o tal objecto enigmático se tinha transformado numa enorme caixa oblonga de aspecto miserável, hermeticamente fechada. Esta caixa inexpressiva como uma esfinge aumentava o mistério no meu espírito.
- É esse o misterioso aparelho? - perguntei eu, estupefacto. - Eh, não passa de um velho baú de tecidos amolgado e pregado! É realmente essa coisa, meu tio, que lhe vai render um milhão de dólares antes do fim do ano? É
apenas uma caixa de cinzas velha e lastimável!
- Põe-na barca! - rugiu o meu tio, dirigindo-se a Yorpy sem dar atenção ao meu juvenil desdém. - Põe-na lá dentro, querubim de cabelo grisalho. Mas com cuidado! Se essa caixa rebenta, é uma fortuna eterna que desaparece.
- Rebenta? Desaparece? - disse eu, muito assustado. - Espero que não esteja cheia de combustível! Mais vale ir depressa para aquele lado do barco!
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- Sossega, grande tolo! - gritou o meu tio outra vez. - Trepa a bordo, Yorpy, e agarra-te à caixa com unhas e dentes enquanto me afasto para o largo. Devagar! Devagar, negro cretino! Presta atenção ao outro lado da caixa! Queres
dar cabo dela?
- A caixa que vá pró diabo que a carregue
- balbuciou o velho Yorpy que era uma espécie de holandês de África - Há dez anos qu'eu faço o melhor que posso.
- Então, partamos. Pega num remo, rapaz; tu Yorpy, agarra a caixa com força. Cá vamos nós. Devagar! Devagar! Tu, Yorpy, pára de sacudir a caixa. Devagarinho! Devagarinho! Está ali a aparecer um grande tronco. Faz força agora. Hurra! Finalmente temos profundidade! Agora com coragem, rapaz, e faz-te à ilha.
- À ilha? - admirei-me eu. - Não há nenhuma ilha nestas paragens.
- Há uma, dez milhas acima da ponte disse o meu tio com determinação.
- Dez milhas! Vamos arrastar este velho baú
de trapos durante dez milhas rio acima com
este sol escaldante?
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- Tudo o que tenho a dizer - respondeu o meu tio com firmeza - é que vamos a caminho da ilha de Quash.
- Misericórdia, meu tio! Se eu tivesse sabido
que era preciso remar durante dez longas milhas sob este sol ardente, o tio não me teria
convencido tão facilmente. O que está dentro do baú? Pedras da calçada? Veja como a barca se afunda com o peso. Não vou ajudá-lo a carregar uma caixa cheia de pedras durante dez milhas. Que interesse tem arrastar pedras da calçada?
- Ouve bem, palerma - disse o meu tio, parando de remar. - Pára de remar, estás a ouvir? bom. Se agora não queres que se reflicta em ti a glória da minha experiência, se a perspectiva de partilhar a fama imortal te deixa absolutamente indiferente, então, digo-te que, se não tens interesse em assistir à primeira grande experiência do meu Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático para dragar pântanos e lameiros, à razão de um talhão por hora, e transformá-los em campos mais fecundos que os de Genessee, se, repito, daqui a muito tempo, quando a
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minha velha pessoa estiver morta e enterrada, meu rapaz, não quiseres ter uma coisa tão bela para contar aos teus filhos e aos teus netos, podes desembarcar agora mesmo.
- Oh, meu tio, eu não queria...
- Nem uma palavra, senhor! Yorpy, pega no remo dele e ajuda-me a levá-lo para a margem.
- Mas, meu querido tio, garanto-lhe que...
- Nem uma palavra, senhor; manifestou abertamente o seu desprezo pelo Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático. Yorpy! Fá-lo desembarcar, Yorpy. O fundo aqui está mais acima. Salta para a água, Yorpy, e acompanha-o até à margem.
- Meu querido, meu amável, meu generoso tio, peço que me perdoes só desta vez e não volto a dizer palavra sobre este aparelho.
- Não voltas a dizer palavra? Quando a minha finalidade, o meu objectivo declarado é torná-lo célebre! Ele que saia do barco, Yorpy.
- Ora esta! Meu tio, recuso-me a largar este remo. Embarquei neste negócio e tenciono ficar. Não vai despojar-me da minha parte da glória.
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- Ah, até que enfim. Aí está uma coisa razoável. Podes ficar, rapaz. Agora, força.
Ficámos um instante em silêncio, dando
remadas vigorosas e regulares. Afinal, corria o risco de passar a vau uma segunda vez.
- Sinto-me feliz, querido tio, por me teres revelado ao menos a natureza e o objectivo da tua grandiosa experiência. Trata-se de drenar efectivamente os pântanos; uma obra, querido tio, em que te bastará ter êxito (e sei que terás) para te garantir a glória que foi recusada a um imperador romano. Ele tentou secar os pântanos Pontinos, mas foi um fracasso.
- O mundo avançou muito desde essa época
- disse orgulhosamente o meu tio. - Se esse imperador romano aqui estivesse, mostrava-lhe o que é possível fazer neste século esclarecido.
Vendo o meu tio mais calmo, arrisquei outra
?? observação:
- É a isso que se chama remar contra a
maré, meu tio.
- Não se chega à glória sem remar contra a maré, meu rapaz. Tal como fazemos neste momento. A tendência natural do homem é seguir a corrente universal e afundar-se no esquecimento.
- Mas para quê remar para tão longe, querido tio, nas actuais circunstâncias? Para quê remar dez milhas em busca da glória? Propõe-se simplesmente, creio, testar a sua admirável invenção. E não a podíamos pôr à prova mais ou menos em qualquer sítio?
- Que ingénuo - disse o meu tio. - Queres que algum espião maldoso me roube o fruto de dez longos anos de um trabalho magnânimo e assíduo? O meu projecto nasceu na solidão e é na solidão que o vou pôr à prova. Se falhar, pois tudo é possível, ninguém para além da família saberá o que quer que seja. Se tiver êxito, fortalecido pelo segredo da minha invenção, poderei pedir audaciosamente qualquer preço pela sua divulgação.
- Peço-lhe perdão, meu querido tio. É mais sábio que eu.
- Tão grande espanto, meu rapaz, quando a idade e os cabelos brancos trazem sabedoria?
- E aqui o Yorpy, meu querido tio, acha
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que o seu colmo grisalho abriga um cérebro muito fortalecido pelos anos?
- Serei eu o Yorpy, garoto? Contenta-te em remar!
Tendo dado por mim a meter assim o pé na
argola uma segunda vez, não voltei a dizer palavra até ao momento em que a barca raspou no fundo, a uma vintena de metros da ilha e do seu denso arvoredo.
- Caluda! - murmurou o meu tio com uma
expressão intensa. - Agora nem mais uma palavra!
Ficou perfeitamente imóvel no banco, percorreu lentamente com os olhos toda a região circundante até às margens do rio cujo leito era muito amplo naquele sítio.
Mesmo assim, cuidado! Desembarca depressa, põe o baú ao ombro e... um momento! -
Ficámos mais uma vez imóveis.
- Não é uma criança que se vê além, sentada como Zacarias na árvore deste pomar, na outra margem? Olha, rapaz, os teus olhos jovens são melhores que os meus. Não vês nada?
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- Vejo muito bem o pomar, meu caro tio, mas não vejo nenhuma criança.
- É um espião, eu sei - disse subitamente o meu tio sem ligar à minha resposta, o olhar fixo e a mão a fazer de pala. Não toques na caixa, Yorpy! Agachem-se, agachem-se todos!
- Mas, meu tio, ali, veja, essa criança não é mais que uma ramada seca e esbranquiçada. Agora vejo-a muito bem.
- Não estás a ver a árvore de que falo respondeu o meu tio com alívio evidente. - Mas não importa; esse rapaz é-me indiferente. Yorpy, desce e traz a caixa. E agora, jovem, tira os sapatos e as peúgas, arregaça as calças e segue-me. Tem cuidado, Yorpy. Tem cuidado. Lembra-te de que esse baú é mais precioso do que se estivesse cheio de ouro.
- E é pesado como o ouro - resmungou Yorpy, vacilando sob o peso, enquanto se movia lentamente na beira do talude.
- Aí. Pára debaixo dos arbustos - ali entre
os lírios. - Assim, devagarinho, devagarinho. Pronto. Pousa-a aí mesmo. Pronto, jovem? Vamos, em bicos de pés, em bicos de pés!
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- Não posso atravessar esta água e esta lama em bicos de pés, meu tio. Além disso, não vejo a utilidade.
- Desembarque, senhor. Imediatamente!
- Mas, meu tio, já desembarquei.
- Calma! Segue-me e nem mais uma palavra.
Agachado na água, escondido entre os arbustos e os altos caules dos lírios, o meu tio tirou furtivamente um martelo e uma chave-inglesa de uma das suas enormes algibeiras e começou a dar pequenas pancadas na caixa.
Mas o ruído alarmou-o.
- Yorpy - murmurou -, vai pela direita, por trás dos arbustos e fica de sentinela. Se vires alguém aproximar-se, assobia baixinho. Tu, jovem, faz o mesmo do lado esquerdo.
Voltámos a obedecer e, em breve, após firmes marteladas, a voz do meu tio soou no silêncio absoluto. Gritava, ordenando que regressássemos.
Voltámos a obedecer e vimos que a tampa
da caixa tinha sido retirada. Olhei avidamente para o interior e avistei uma quantidade
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espantosa de tubos e de seringas metálicas em forma de saca-rolhas, de todas as espécies e
variedades, de todos os tamanhos e calibres,
enredadas de forma labiríntica numa única
meada gigantesca. Parecia um enorme ninho
de anacondas e víboras.
- Agora, Yorpy - disse o meu tio muito animado, corado devido à antecipação da glória -, mantém-te deste lado e prepara-te para a inclinares assim que eu der o sinal. E tu,
jovem, prepara-te para fazer o mesmo do outro lado. Atenção! Não a desloquem nem um centímetro antes do meu sinal. Tudo depende do exacto ajustamento.
- Não tenha receio, meu tio. Serei tão meticuloso como uma pinça de depilação para as senhoras.
- Não levanto esta pesada caixa antes do sinal - grunhiu o velho Yorpy. - Esteja descansado.
- Ó meu rapaz! - disse então o meu tio, levantando a cabeça com um ar de devoção, enquanto um brilho de verdadeira nobreza 75
irradiava dos seus olhos cinzentos, das suas
madeixas grisalhas e do seu rosto enrugado.
- Ó meu rapaz, chegou a hora que me deu alento durante dez longos anos, na minha laboriosa obscuridade! A fama, por muito tarde que chegue, será ainda mais doce; e, sendo eu um velhote e não uma criança como tu, ela será ainda mais pura. Ó Tu que és o meu apoio! Eu Te glorifico.
Inclinou o rosto venerável e, tão verdade
como eu estar vivo, uma lágrima caiu do meu rosto e perdeu-se nas águas do rio.
- Inclinem!
Inclinámos.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Só mais um pouco, um bocadinho. com grande dificuldade, inclinámos só mais um pouco, um pouquinho.
Entretanto, o meu tio inclinava-se subitamente sobre a caixa de anacondas e víboras entrelaçadas, esforçando-se por ver o conteúdo;
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mas, por a máquina estar dali em diante demasiado funda, esforçava-se em vão.
Endireitou-se e, resoluto e ainda confiante,
mas já perturbado e contrariado, contornou
lentamente a caixa.
Era evidente que alguma coisa corria mal. Mas como eu me mantinha na mais completa ignorância dos mistérios daquele engenho, não sabia dizer qual era o transtorno, nem remediar a situação.
Uma vez mais, em passos cada vez mais lentos e ainda mais contrafeito, o meu tio contornou a caixa. O descontentamento crescia nele, mas sempre contido, e, no entanto, ele mantinha uma certa esperança.
Percebia-se a olhos vistos: não se tinham
verificado os efeitos com que ele contara. Tinha também a certeza de que em torno das minhas pernas o nível da água não baixara.
- Inclinem-na mais um bocadinho, só um bocadinho.
- Meu querido tio, já está tão inclinada quanto possível. Não está a ver que está praticamente assente no fundo?
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- Tu, Yorpy, tira a tua pata preta de debaixo
da caixa!
O ataque de fúria que se apoderou do meu
tio dava ao caso um ar mais duvidoso e mais
obscuro ainda. Mau sinal, pensei eu.
- com certeza podem incliná-la só mais um pouco
- Nem sequer um milímetro, meu tio.
- Então, que o fogo e a febre atinjam esta maldita caixa! - rugiu o meu tio com uma voz terrível, brusca como uma rajada de vento. Atirou-se para cima da caixa e deu-lhe um pontapé, descalço, com uma força espantosa que quase lhe rebentou o lado. Depois, agarrando-a decididamente com as mãos, arrancou lá de dentro todas as víboras e anacondas como
se lhe estivesse a tirar as vísceras antes de as
torcer e de as deitar para a água.
- Espere, espere, meu querido, meu muito querido tio! Por amor de Deus, pare, peço-lhe." Não destrua assim, num único momento de exaltação, todos os longos e serenos anos que consagrou a um projecto tão querido. Espere, suplico-lhe!
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Comovido com o meu tom veemente e com
as minhas lágrimas, ele interrompeu a sua obra
destruidora e fixou-me com um olhar resoluto
ou, na verdade, com um olhar inexpressivo de demente.
- Não está ainda completamente desfeita, meu querido tio. Venha montá-la outra vez. Tem o seu martelo e a sua chave-inglesa: repare-a e tentemos mais uma vez. Enquanto há vida, há esperança.
- Enquanto houver vida, passará a haver agora desespero - berrou ele.
- Vamos lá, peço-lhe, meu querido tio. Tome, junte outra vez esses bocados; ou, se não tiver todas as ferramentas necessárias, tente reconstruir uma parte. Também está bem. Tente só uma vez; tente, meu tio.
Por fim a minha paciência e persuasão deram resultado. A esperança, tal tronco tenaz que desafia a serra e o machado, fez brotar um último rebento milagroso e verdejante.
Tendo recolhido calma e minuciosamente
certos fragmentos muito bizarros, enroscou-os misteriosamente uns nos outros; depois,
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desentulhando o interior da caixa, colocou-os
lá dentro com gestos lentos. Quis que eu e o Yorpy ocupássemos a mesma posição que anteriormente e mandou-nos incliná-la mais
uma vez.
Fizemos o que nos era pedido e, como não houve resultado perceptível, esperei a todo o instante que nos fizesse sinal para inclinarmos a caixa mais um pouco, até ao momento em que olhei para o seu rosto e me assustei. Parecia contraído, encarquilhado, com uma palidez de bolor, como um cacho de uvas atingido pelo míldio. Larguei a caixa e corri para ele mesmo a tempo de impedir que caísse.
Deixando a funesta caixa onde a tínhamos
pousado, Yorpy e eu ajudámos o velho homem a subir para a barca antes de nos afastarmos em silêncio da ilha de Quash.
Como a corrente nos levava agora depressa!
Como nos tínhamos cansado ao remar tão
pouco tempo antes! Pensava nas palavras do meu tio que, apenas uma hora antes, tinha descrito a humanidade universalmente arrastada para um esquecimento total.
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- Meu rapaz - disse por fim o meu tio levantando a cabeça.
Olhei-o com emoção e fiquei contente por ver que a terrível perda de viço quase tinha desaparecido do seu rosto.
- Meu rapaz, já não há muita coisa que um pobre velho possa inventar neste velho mundo.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, segue este conselho: não tentes nunca inventar o que quer que seja, excepto a felicidade.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, dá a volta e vamos buscar a caixa.
- Meu querido tio!
- Vai dar boa lenha, meu rapaz. E o fiel velho Yorpy poderá vender a sucata para comprar tabaco.
- Querido senhor! Querido senhor! É a primeira vez que mostra bondade para com o velho Yorpy em seis longos anos. Obrigado, querido senhor; obrigado de todo o coração. Voltou a ser o mesmo, ao fim de dez longos anos.
- É verdade, dez longos anos - suspirou o
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meu tio. - Anos dignos de Esopo. Mas agora tudo acabou. Meu rapaz, estou contente por ter falhado. Sabes, meu rapaz, o insucesso fez de mim um bom velhote. Primeiro foi horrível,
mas estou contente por ter falhado. Deus seja louvado por este insucesso!
Uma seriedade estranha, estática, irradiou do seu rosto. Nunca mais esqueci aquele olhar. Se o incidente fez dele um bom velhote, como dizia, fez de mim um jovem sábio. O exemplo foi para mim uma experiência de vida.
Alguns anos depois, o meu querido e velho tio começou a definhar e quando, após dias agradáveis de contentamento outonal, se foi tranquilamente juntar aos seus antepassados, foi o fiel Yorpy quem lhe fechou os olhos. E no momento em que eu contemplava aquele rosto venerável pela última vez, os seus lábios pálidos pareceram mexer-se. Pareceu-me ouvi-lo exclamar novamente com profundo fervor: "Deus seja louvado por este insucesso!"
Em todas as regiões do mundo, muitas revoltas intrépidas contra despotismos infames tinham recebido um rude golpe. Muitos acidentes atrozes de locomotiva ou de barco a vapor faziam perecer centenas de viajantes intrépidos (tendo um destes acidentes roubado um querido amigo meu). Também a minha própria vida pululava de despotismos, de acidentes e de rudes golpes quando, na madrugada de um dia de Primavera, estando eu demasiado melancólico para poder dormir, saí para dar um passeio pela colina nas minhas pastagens.
O ar estava frio e enevoado, húmido e desagradável, como se a região não estivesse já demasiado lamacenta e não exalasse os seus humores pelas redondezas. Abotoei até cima a minha pobre casaca, para me proteger tanto quanto possível daquele ar que se colava à pele
- as abas do meu sobretudo eram tão compridas que só o usava na minha caleche - e, irritado, cravando a minha bengala na terra saturada de água, curvei o meu vulto azulado e comecei a subir a encosta da colina. Esta penosa postura aproximava consideravelmente a minha cabeça do solo. Dir-se-ia que queria dar uma cabeçada no Mundo. Apercebi-me da circunstância, mas não lhe concedi mais do que um esgar fugidio.
Tinha à minha volta os sinais de um império dividido. A erva tenra disputava-o à do ano passado. Nas covas húmidas, a verdura começava a despontar em cores vivas; do outro lado, nas montanhas, resistiam finas camadas de neve formando um estranho relevo nos flancos castanho-avermelhados; as colinas corcundas pareciam vacas malhadas a tremerem de febre. Os bosques estavam semeados de ramos mortos, secos, cortados rentes ao sopro dos ventos de Março, enquanto as árvores novas da beira dos caminhos mostravam já o primeiro tom amarelado dos rebentos a nascer.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FELIZ_INSUCESSO.jpg
Sentei-me um instante num grande tronco apodrecido perto do topo da colina, de costas para um pequeno bosque de grandes árvores, virado para o vasto e majestoso anfiteatro de montanhas que delimitava uma campina ondulante e variada. Ao pé de uma longa fila de elevações, corria um ribeiro preguiçoso e fonte de paludismo, tendo por cima uma faixa de bruma gotejante que reproduzia exactamente cada meandro. Ao fundo, aqui e ali, farrapos de vapor erravam pelos ares esmorecidos como nações ou navios abandonados e desgovernados - ou como guardanapos encharcados que tivessem posto a secar em cordas da roupa entrecruzadas. Ao longe, numa abertura da planície desenhada pelas montanhas, repousava um grande dossel de nevoeiro, fino como uma mortalha, numa aldeia afastada. Era a condensação do fumo das chaminés juntamente com o bafo dos aldeãos. Era demasiado pesada, demasiado inerte para se afastar sem vento e, portanto, ficava ali, entre a aldeia e o céu, escondendo com certeza mais que um doente com papeira e mais que uma criança com náuseas.
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Percorri com o olhar a ampla campina ondulada, as montanhas, a aldeia e as quintas, aqui e ali, e os bosques, os regatos, as rochas e os cumes e fiquei a pensar que o Homem, afinal de contas, deixa uma marca bem leve nesta
Terra imensa. No entanto, a Terra marca-o. Que catástrofe horrível a do Ohio, onde o meu querido amigo e outros trinta bravos rapazes deram o seu mergulho eterno ao sinal de um mecânico obtuso, incapaz de distinguir uma válvula de um tubo de aquecimento! E o choque no caminho-de-ferro além, mesmo por detrás das montanhas! Quem viu dois comboios loucos colidirem desordenadamente, treparem e rasgarem-se um ao outro, encontrou depois uma das locomotivas aninhada, como um pinto, numa carruagem de passageiros do comboio que vinha no sentido oposto; e cerca de uma centena de boa gente, entre elas um jovem casal com o filhinho inocente, a embarcar no sinistro barco de Caronte que os levou, sem bagagem, para não se sabe que região de fundições imundas. Mas de que servia lamentarem-se? Que juiz de paz iria resolver aquele
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caso? Sim, na verdade, para quê cansar o próprio céu? Não é o céu que destina estas coisas, uma vez que, se assim não fosse, não aconteciam?
Que mundo miserável! Para quê darmo-nos ao trabalho de fazer fortuna, quando não sabemos durante quanto tempo a podemos conservar face aos milhares de burros e de patifes que detêm a gestão dos caminhos-de-ferro, dos barcos a vapor e de tantas outras coisas vitais neste mundo? Fosse eu ditador da América do Norte por um instante: mandava-os prender, enforcar e esquartejar; mandava-os fritar, assar, cozer, fervilhar, grelhar e tostar como pernas de peru! Esses responsáveis infames e cretinos; punha-os a aquecer no Tártaro, isso sim!
Oh, os grandes progressos da nossa época! Quais? Facilitamos o assassínio e a morte e chamamos a isto progresso? Aliás, para quê andar tão depressa? O meu avô passava muito
bem sem as modernices e não tinha nada de
tolo. Escutem! É o velho dragão que regressa, o gigantesco moscardo, o Moloch. Ronca! Sopra! Urra! Eis que avança a direito pelos bosques
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floridos como a cólera asiática que galopa no dorso dos camelos. Espaço! Eis o homicida patenteado, o monopolista da morte, o júri, o juiz e o carrasco num só, cujas vítimas partem sempre sem as mercês do clero! Durante duzentas e cinquenta milhas, este demónio de ferro vai esfalfar-se pela região, berrando: "Mais! Mais! Mais!" Pudessem, em conluio, cinquenta montanhas cair-lhe em cima! E que caíssem também sobre o meu credor, esse pequeno demónio importuno que me assusta ainda mais mortalmente que todas as locomotivas: um patife de faces encovadas que também parece avançar sobre carris e que me atormenta mesmo ao Domingo, a caminho da igreja, e que ainda se vem sentar no mesmo banco que eu e que, a pretexto de ser educado e de me estender o livro de orações aberto na página certa, me enfia a sua letra de câmbio debaixo do nariz, mesmo a meio das minhas devoções, de tal modo que se mete entre mim e a redenção. Enfim, como é possível manter a calma nestas situações?
Não posso pagar àquele indivíduo horrível.
Diz-se, no entanto, que nunca houve tanto dinheiro, essa droga reles e inútil. Mas, maldito seja eu se consigo encontrar a tal droga, embora nunca um doente tenha necessitado tanto
do dito remédio. Estão a mentir. Não há assim
tanto dinheiro. Apalpem-me as algibeiras. Ah! É um pó que ia mandar ao bebé doente naquele casebre ali, onde mora o limpa-fossas irlandês. O bebé tem escarlatina. Dizem que o sarampo também abunda na região, tal como a varíola e a varicela, e que isto não é nada para as crianças que ainda mal têm dentes. E imagino, afinal, que, depois de passarem por tantas maleitas, muitas destas pobres crianças simplesmente quebram; pelo que tiveram sarampo, papeira, escarlatina, varicela, cólera, diarreias estivais e tudo o resto para nada! Ah!
Cá está o meu reumatismo a atacar-me o ombro direito. Apanhei-o uma noite em North River, num barco cheio até mais não, quando cedi a minha cama a uma senhora doente e me
deixei ficar na ponte, à chuva, até de madrugada. É esta a recompensa pela caridade! Então, ataca! Morde, reumatismo! Não atacarias
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com mais força se eu fosse um canalha e tivesse assassinado aquela pobre mulher em vez de a ajudar. Nem a dispepsia. É mais um mal que me atormenta.
Olá! Cá estão os bezerros, os pequeninos de dois anos, acabados de sair do estábulo e deixados nos prados depois de seis meses de ração fria. Bando miserável, na verdade! São certamente a ruína de um rude Inverno: ossos pontiagudos salientes como cotovelos e cobertos por uma substância bizarra que lhes secou nos flancos como a massa de um crepe. O pêlo está muito gasto em certos sítios; e ali, onde não está gasto nem parece um crepe, está o flanco áspero de um velho baú de crina comido pelas traças. Na realidade, não são seis bezerros de dois anos, mas seis abomináveis e velhos baús de crina que vagabundeiam pela pastagem.
Escutem! Em nome de todos os deuses, o
que é isto? Vejam! Os próprios baús de crina
espetam as orelhas, ao escutarem este ruído,
endireitam-se e olham para longe na campina
que ondula mais abaixo! Ouçam outra vez!
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Como é claro, musical, prolongado! Que triunfante acção de graças é o cantar do galo! "Glória a Deus nas Alturas!" É o que o galo diz, tão nitidamente como nunca outro galo o disse. Bem, bem, começo a sentir-me um pouco mais revigorado. Afinal, o nevoeiro não é assim tão denso. O sol começa a mostrar-se além: sinto-me mais quente.
Ouçam! Continua a cantar! Será que alguma
vez retiniu sobre a terra um cocorocó tão feliz?
Claro, estridente, cheio de bravura, cheio de
vigor, cheio de entusiasmo, cheio de alegria. Diz claramente: "Não te resignes nunca!" Meus amigos, é extraordinário, não é verdade?
Apercebi-me de que sem querer me tinha dirigido aos pequenos, aos vitelos, no meu entusiasmo, o que revela como, por vezes, podemos trair a nossa verdadeira natureza da forma
mais inconsciente. Pois a que criança de dois anos e a que vitelo iria fazer má cara e ainda por cima numa colina, quando aquele galo além nas terras baixas, privado de palavra e de razão, sem um cêntimo no bolso e sobre o qual a fome do dono fazia pender a todo o momento
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uma ameaça mortal, soltava um tal grito de poeta laureado a celebrar a gloriosa vitória de Nova Orleães?
Escutem! Recomeça! Meus amigos, tem de ser um galo chinês; nenhum galo dos nossos condados cantaria com um sotaque tão prodigiosamente exultante. Não há dúvida, meus amigos; é um galo chinês e da criação do próprio imperador da China.
No entanto, os meus amigos, os baús de crina que os meus clamores de triunfo tinham assustado ainda há pouco, entraram em debandada, agitando a cauda e dando cabriolas num estilo desajeitado que revelava bem que não tinham desenferrujado as patas nos últimos seis meses.
Ouçam! Novamente! De quem é este galo? Quem na região adquiriu um tão extraordinário galo chinês? Santo Deus! O meu sangue
agita-se, alvoraçado; sinto que estou a ficar louco. Como? Estou quase a saltar para aquele tronco apodrecido, a bater as asas e a soltar cocorocós? E pensar que ainda há pouco me
entregava à melancolia. E tudo isto graças a
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um simples canto do galo. Maravilhoso galo! Lentamente... o folgazão canta com vigor a esta hora. Porém, ainda é manhã. Vejamos como canta ao meio-dia e ao fim do dia. Pensando
bem, os galos cantam sobretudo ao princípio do dia. Afinal, a sua valentia não é eterna. Sim, sim, até mesmo os galos devem sucumbir ao infortúnio universal: rejubilantes no princípio,
mas sumidos no fim.
"Nas bonitas madrugadas, Nós, os belos galos orgulhosos, cantamos com alegria; Mas, quando a noite cai, cantamos mais baixinho, Pois, então, só nos resta loucura e melancolia."
Era naquele galo chinês que o poeta pensava quando escreveu estes versos! Mas, alto lá! Eis o cocorocó que volta a ouvir-se, dez vezes mais vigoroso, mais intenso, mais longo, mais exultante e espalhafatoso do que antes! Francamente, é tão bom como ouvir soar o grande sino da Catedral de São Paulo em dia de coroação! Até se devia arrear esse sino e colocar no 19
seu lugar este galo chinês. É o cocorocó ideal para alegrar Londres inteira, de Mile End (que é o fim de absolutamente nada) a Primrose Hill (onde, afinal, não há prímulas), e para dissipar o nevoeiro.
Pois bem, eis que tenho apetite para o pequeno-almoço desta manhã; é mesmo a primeira vez na última semana. Pensava ficar satisfeito com chá e pão com manteiga; mas vou beber café e comer ovos - não, cerveja stout e um bife. Quero algo que me alimente. Ah, lá está o comboio da cidade: carruagens brancas
rebrilhando entre as árvores como uma vela
de prata. Como fumega alegremente a sua chaminé! Os passageiros estão alegres. Lá está um lenço que se agita - vão à cidade comer ostras, ver os amigos e dar uma volta pelo circo. Vejam o nevoeiro além: como são serenas as suas volutas, as suas espirais que ondulam nas colinas entrecortadas por raios de sol! Vejam o fumo azulado que sobe desta aldeia, qual baldaquim sobre um leito nupcial. Como a campina resplandece, ali onde o ribeiro inundou
os prados! A erva do ano passado dá lugar à
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nova. Pois bem, este passeio revigora-me. Agora, para casa; regressemos para atacar o bife e abrir uma garrafa de cerveja stout, e, depois de bebida a cerveja (um litro de cerveja stout), sentir-me-ei mais ou menos tão forte como
Sansão. No entanto, penso: talvez o meu credor passe por aqui. vou dar uma volta pelo bosque e fazer um varapau. Juro que lhe dou uma paulada se ele hoje me incomodar.
Escutem! É o galo chinês que recomeça. "Bravo!" diz o galo chinês. "Um cacete!", diz o galo chinês.
Oh! Valente galo!
Estive toda amanhã com um humor agradável. O meu credor passou por cá por volta das onze horas. Disse ao meu criado Jack que o mandasse subir. Estava a ler Tristram Shandy e não podia descer em tal circunstância. Quando entrou, o canalha esquelético (ainda por cima, camponês) deu comigo sentado num cadeirão com os pés em cima da mesa, a garrafa de cerveja à mão e o livro aberto à minha frente.
- Sente-se - disse-lhe. - Estou a terminar este capítulo e depois dou-lhe atenção. Está
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uma manhã muito bonita. Ah, ah, uma boa piada a respeito do meu tio Toby e da viúva Wadman! Ah, ah, ah! Permita-me que lhe leia isto.
- Não tenho tempo. Tenho de fazer os meus
trabalhos do meio-dia.
- Para o diabo com os seus trabalhos! -
disse-lhe. - Não entorne o seu tabaco velho
nesta sala, ou ponho-o na rua.
- Senhor!
- Deixe-me ler-lhe esta passagem sobre a viúva Wadman. A viúva Wadman disse então...
- Está aqui a minha letra de câmbio, senhor.
- Maravilhoso. Queira fazer dela uma bola. Está na minha hora de fumar. Passe-me uma brasa, se faz favor. Uma daquelas que estão ali na lareira.
- A minha letra, senhor - disse o patife, empalidecendo de raiva e de estupefacção com os meus ares desacostumados (pois, até então, eu evitara olhar para o seu rosto lívido), mas suficientemente prudente para não revelar uma nesga da sua surpresa. - A minha
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letra, senhor - repetiu, inflexível, agitando-a
sob o meu nariz.
- Meu amigo - disse-lhe eu -, que manhã encantadora! Que bonito está o campo! Fez o obséquio de ouvir esta manhã o extraordinário canto do galo? Sirva-se de um copo da minha cerveja!
- Sua cerveja? Então pague as suas dívidas antes de oferecer às pessoas a sua cerveja!
- Acha então que, na verdade, eu não tenho cerveja - disse eu, levantando-me com fleuma. - Pois desengane-se. vou dar-lhe a provar staut de uma marca superior à Barclay
e Perkins.
Sem mais cerimónias, agarrei o insolente credor pelo cinto do casaco (e como o miserável tinha a barriga chata, não havia nada para agarrar) - agarrei-o, portanto, desse modo. Atei-o com um nó de marinheiro e, depois de lhe ter enfiado a letra entre os dentes, fiz-lhe
as honras do terreno amplo que rodeia o meu domicílio.
- Jake - disse eu -, há um saco cor de malva com batatas no alpendre. Trá-lo até aqui
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e atira-as a este vagabundo; veio mendigar umas moedas e eu sei que ele pode trabalhar, só que é um preguiçoso. Enxota-o, Jake.
Que cocorocó, meus velhos! O galo chinês soltou um canto de vitória tão perfeito, um tal laudamus, um toque de trombeta tão triunfal, que relinchei para comigo em grande estilo. Os
credores! Bah... teria enfrentado um exército
deles! O galo chinês era claramente da opinião que os credores só vinham ao mundo para apanharem pancada, serem enforcados, magoados, maltratados, estrangulados, espancados, zurzidos, afogados e chicoteados!
Depois de regressar a casa, quando a exaltação da minha vitória sobre o credor abrandou um pouco, pus-me a devanear sobre o misterioso galo chinês. Não pensara ouvi-lo tão perto da minha casa. Em que galinheiro de cavalheiro rico cantava ele? E o bicho não tinha encurtado as suas efusões tão facilmente como eu pensara. Este galo chinês cantava pelo
menos até ao meio-dia. Iria ele continuar o dia
todo? Decidi descobrir. Voltei a subir a colina.
Toda a região se banhava agora numa luz de
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júbilo. Uma verdura quente explodia à minha volta. As charruas trabalhavam. Aves vindas há pouco do sul cantavam e esvoaçavam alegremente. Até mesmo os corvos grasnavam com um certo fervor e pareciam uns tons menos negros que habitualmente.
Ouçam! É o galo! Como descrever o cocorocó deste galo chinês ao meio-dia? O canto da aurora era um murmúrio ao lado do seu. Era o cocorocó mais alto, prolongado e estranhamente musical que alguma vez espantou um mortal. Já tinha ouvido antes muitos cantos de galo e alguns muito bons; mas aquele! Tão suave e tão aflautado no seu próprio clamor, tão seguro até mesmo no encantamento da exultação, tão amplo que ascendia, aumentava, fendia os céus como se brotasse de uma goela de ouro e fosse atirado para longe! E também não era o cocorocó parvo e vaidoso de um galo noviço, ignorante do mundo e a estrear-se na vida com a audaciosa alegria que lhe confere a sua lastimável ignorância do futuro. Era o canto de um galo que não cantava irreflectidamente, o canto de um galo que sabia umas coisas; o canto de
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um galo que tinha enfrentado o mundo e vencera e que estava agora resolvido a cantar, mesmo que a terra se abrisse e os céus se abatessem. Era um canto de sabedoria, um canto invencível, um canto filosófico, o canto dos cantos.
Retemperado e impassível, regressei a casa. Voltei a pensar nas minhas dívidas e nos meus restantes problemas, nas infelizes revoltas dos povos oprimidos no estrangeiro, nos acidentes de caminho-de-ferro e de barco a vapor e até mesmo na perda do meu amigo querido, num êxtase de desafio tranquilo e afável que me deixou estupefacto. Parecia-me que, se encontrasse a Morte, a convidava para jantar e fazia na sua companhia um brinde às catacumbas
infernais sem diminuir o meu sentimento de
pura liberdade e segurança universal.
Ao anoitecer, voltei à colina para saber se o galo estaria alegre desde o nascer do sol até ao cair da noite. Falem-me de vésperas e de recolher obrigatório! O canto vespertino deste galo saía da sua formidável goela e estendia-se por
toda a região; ocupava-a qual Xerxes vindo do
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oriente com a sua hoste de fileiras emplumadas. Era um milagre. Santo Deus, que canto! Nessa noite, acreditem, o galo virou-se galhardamente no seu poleiro, vitorioso todo o dia, legando à noite os ecos de milhares de cocorocós.
Depois de um sono invulgarmente tranquilo e revigorante, levantei-me cedo e ergui-me da cama como uma mola de um banco de tipóia - ágil, elipsoidal, leve, álacre como uma piroga de balseiro - e fui até ao topo da colina, tão saltitante como uma bola de futebol. Ouçam! O galo chinês antecipou-se. O mundo pertence à ave que se levanta cedo - à ave que canta como um clarim -, folgazã, sonora, plena de júbilo. Nas quintas dispersas, outros galos cantavam, revezando-se. Mas não passavam de flautins ao pé de um trombone. O galo chinês fazia de repente a sua entrada e esmagava todos os cocorocós com uma única fanfarra imperiosa. Parecia que não se ralava com mais nada. Não respondia a outro canto, só cantava para si próprio, por sua conta, na altiva independência da solidão.
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Oh, valente galo! Oh, nobre galo chinês! Oh, ave tão justamente oferecida em holocausto pelo invencível Sócrates como testemunho da sua vitória final sobre a existência!
Juro pela minha alma que vou neste dia bendito descobrir este galo chinês e que o vou comprar, mesmo que para isso tenha de fazer mais uma hipoteca sobre as minhas terras.
Escutava agora com atenção, esforçando-me por perceber de que lado vinha o canto. Mas este enchia e saturava tão bem todo o ar, impregnava-o de uma tal superabundância que não se podia dizer exactamente de que ponto vinha todo aquele júbilo. Só pude perceber que vinha de Leste e não de Oeste. Avaliei a seguir a que distância se podia ouvir o canto de um galo. Naquela região tranquila e, ainda por cima, rodeada de montanhas, os sons eram audíveis
a grande distância. E, depois, as ondulações
?" do terreno, as saliências que as montanhas
faziam nos vales e nas colinas produzindo estranhos ecos e reverberações, multiplicando e acumulando ressonâncias que se notavam muito distintamente e eram muito confusas
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para o espírito. Onde estava então escondido este valente galo chinês, esta ave do jovial Sócrates, o helénico galo de combate que morreu impávido? Onde estava ele escondido? Ó nobre galo, onde estás tu? Canta mais, meu Bantam! Meu principesco, meu imperial galo chinês! Minha ave do imperador da China! Irmão do sol, primo do grande Júpiter! Canta uma última vez para eu saber onde moras!
O canto deste galo parece uma orquestra inteira de galos de todas as nações. Mas de onde vem? Ele está por perto, mas onde? Não havia forma de descobrir. Eu sabia somente
que vinha de Leste.
Depois do pequeno-almoço, peguei na minha bengala e parti para dar uma volta. Muitos cavalheiros eram donos de propriedades nos arredores e não tinha qualquer dúvida de que um destes prósperos senhores tinha investido uma nota de cem dólares nalgum galo chinês trazido recentemente pelo Vento Alísio, pelo Grão Branco ou pela Rainha dos Mares, pois devia ter sido um digno navio com um nome digno a trazer a fortuna de um tão digno galo! Decidi percorrer
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a região toda para encontrar o nobre estrangeiro; mas pensava que não seria má ideia pedir instruções nas mais humildes habitações, perguntar se, por acaso, não sabiam de um galo chinês recentemente importado, pertencendo a um desses cavalheiros colonos vindos da cidade; pois era evidente que nenhum agricultor pobre, nem um pobre de qualquer espécie, podia ser dono de um tal trofeu do oriente, que era, sem dúvida, um grande sino da Catedral de São Paulo em forma de goela de galo. Encontrei um homem velho que lavrava o seu campo perto de uma cancela.
- Meu amigo, ouviu um extraordinário canto de galo recentemente?
- Na verdade - disse com voz fanhosa -, não sei nada disso. A Sr.a Pattedoie tem um galo, o Sr. Barbon tem um galo e eu também tenho um e todos eles cantam. Mas não conheço nenhum que tenha um canto extraordinário.
- Então, bom dia - disse eu brevemente.
- Vê-se bem que não ouviu cantar o chantre do imperador da China.
Em breve, encontrei outro velhote que reparava um velho tapume em ruínas. Os barrotes estavam podres e, ao menor gesto do velhote, desfaziam-se em ocre amarelo. Faria bem
melhor se deixasse a vedação em paz ou, então, se arranjasse barrotes novos. Devo dizer a este propósito que uma das razões do triste facto de a parvoíce estar mais disseminada entre os lavradores que entre qualquer outra classe se deve a este hábito de querer reparar velhos tapumes apodrecidos em dias quentes e debilitantes de Primavera. É uma tarefa sem
esperança. É uma tarefa laboriosa e vã. É uma tarefa de partir o coração. Esforços enormes desperdiçados numa futilidade. Porque, enfim, haverá modo de manter vedações apodrecidas assentes em postes podres? Que truque permite recuperar e dar vigor a pedaços de madeira que congelaram e cozeram alternadamente durante sessenta Invernos e sessenta Verões?
É esta miserável obstinação em reparar vedações apodrecidas com as próprias traves podres que leva tantos lavradores ao asilo.
Viam-se claramente as primícias da idiotice no rosto do lavrador em questão. Diante dele,
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com sessenta varas, estendia-se um dos tapumes da Virgínia mais pateticamente deprimentes e desamparados que alguma vez vi na minha vida. Ao mesmo tempo, uma manada de novilhos no campo contíguo, como que possuída pelo demónio, dava continuamente cornadas naquela miserável e velha vedação que abria aqui e ali verdadeiras brechas, de tal maneira que o velhote tinha de pousar as ferramentas para os enxotar. Perseguia-os com um toro de madeira grande como a moca de Golias, mas leve como cortiça e que se desfazia em pó mal era brandido.
- Meu amigo - disse eu, dirigindo-me àquele infeliz mortal -, terá ouvido um extraordinário canto de galo recentemente?
Foi o mesmo que perguntar se tinha ouvido o relógio da morte a bater as mandíbulas. Lançou-me um longo olhar assustado, doloroso, indescritível e retomou sem dizer palavra os
seus trabalhos ridículos.
Como sou parvo, pensei, por fazer perguntas sobre um galo tão alegre a uma criatura tão
pouco jovial e difícil de animar!
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Continuei o meu caminho. Tinha agora descido a colina onde ficava a minha casa e, encontrando-me no sopé, já não ouvia o cocorocó do galo chinês que, sem dúvida, era demasiado agudo para que se ouvisse. Por outro lado, talvez o bicho estivesse a almoçar, a comer o seu trigo e a sua aveia, ou a dormir uma sesta, e, por isso, tivesse interrompido por instantes o seu regozijo.
Cruzei-me no caminho com um corpulento cavalheiro a cavalo - melhor, um opulento cavalheiro -, um homem muito rico que acabara de comprar alguns bons talhões de terra e mandara construir um solar, flanqueado por um galinheiro com bom aspecto cuja fama se espalhara por toda a região. Eis então, pensei eu, o proprietário do Xangai.
- Senhor, desculpe-me - disse-lhe eu -, mas sou seu vizinho e queria perguntar-lhe se, por acaso, possui galos chineses?
- Oh sim, tenho dez galos chineses.
- Dez! - exclamei estupefacto - E todos
eles cantam?
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- Todos sem excepção cantam muito bem. Não me interessava um galo que não cantasse.
- Poderia mostrar-me esses galos?
- com todo o gosto. São o meu orgulho;
custaram-me seiscentos dólares.
Caminhando ao lado do cavalo, perguntava-me se seria possível que eu tivesse tomado os cocorocós harmoniosamente combinados de dez galos chineses pelo canto sobrenatural de um único galo chinês solitário.
- Senhor - recomecei eu -, há algum entre os seus galos chineses que ultrapasse de longe todos os outros pelo vigor, pela musicalidade e pelo efeito inspirador do seu canto?
- Eles cantam de modo bastante semelhante,
creio - respondeu-me com cortesia. - Não sei distingui-los.
Começava a pensar que afinal o meu nobre chantre talvez não estivesse na posse daquele cavalheiro rico. Entrámos, todavia, no seu galinheiro e vi os seus galos chineses. Devo confessar que nunca tinha até então pousado os olhos naquela variedade de aves de capoeira
de importação. Ouvira dizer que se gastavam
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quantias enormes para as arranjar e que o seu tamanho também era enorme, de tal modo que me tinha convencido, não sei como, que tinham uma beleza e um brilho proporcionais tanto ao seu tamanho como ao seu preço. Qual não foi portanto a minha surpresa ao ver dez monstros cor de cenoura, sem o mais pequeno vestígio de plumagem esplendorosa! Decidi imediatamente que o meu galo real não estava entre aqueles e que era absolutamente impossível que fosse um galo chinês - se é que aquelas aves gigantescas eram espécimes fiéis do verdadeiro galo chinês.
Caminhei o dia todo; jantei numa quinta onde descansei um pouco, inspeccionei várias capoeiras, interroguei diversos proprietários de criação, apurei o ouvido a diversos cocorocós
- mas sem descobrir o meu misterioso chantre. Tinha mesmo caminhado até tão longe e por tantos desvios, que já não o ouvia cantar. Começava a desconfiar que o galo não passava de um simples turista na região, que se fora embora às onze horas no comboio do sul e que fazia agora ouvir o seu canto de júbilo algures
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nas margens verdejantes do estreito de Long Island.
Mas uma vez mais, na manhã seguinte, ouvi a inspiradora fanfarra; mais uma vez senti o sangue a correr mais depressa nas veias; mais uma vez me senti superior a todos os males da existência; uma vez mais tive vontade de pôr o meu credor na rua. Mas este último, zangado com a recepção na última visita, manteve-se longe; sem dúvida estava ofendido. Que imbecil, levar a peito uma brincadeira inofensiva!
Passaram vários dias durante os quais fiz diversas excursões pelas regiões circundantes; mas foi em vão que procurei o galo. No entanto, ouvia-o da colina e às vezes de casa e ainda, por vezes, no silêncio da noite. Se me acontecia reincidir nos meus humores negros, de imediato, ao som daquele cocorocó exultante e rebelde, também a minha alma se transformava em chantre, batia as asas e lançava um alegre
desafio a todas as dores deste mundo.
Enfim, algumas semanas depois, tive necessidade de fazer outra hipoteca sobre a minha terra para pagar determinadas dívidas, entre
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as quais a que tinha para com o meu perseguidor que acabava de intentar uma acção contra mim. A notificação foi-me entregue da forma mais insultuosa. Acabara de me regalar numa sala privada da taberna da aldeia com uma garrafa de cerveja de Filadélfia com um pedaço de queijo de Herkimer e um pãozinho; e, depois de ter avisado o patrão, que é meu amigo, que pagaria logo que recebesse as próximas cobranças, dirigi-me ao bengaleiro do bar onde tinha pendurado o meu boné para pegar num bom charuto quando subitamente encontrei o charuto embrulhado na notificação. Ao desenrolar o charuto, desenrolei simultaneamente a notificação e o polícia que estava ali ao lado desbobinou estas palavras em voz grossa:
- Queira tomar conhecimento! - disse ele,
antes de acrescentar num murmúrio: - Depois, meta-a no seu cachimbo e fume-a!
Voltei-me bruscamente para os cavalheiros que estavam presentes no bar.
- Senhores - disse-lhes eu -, será esta
uma forma digna, ou até mesmo legal, de entregar uma notificação? Vejam só!
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Todos, sem excepção, foram de opinião de que era altamente deselegante da parte do polícia aproveitar-se assim de um homem que estava a comer cerveja e queijo para ter a incorrecção de lhe enfiar uma notificação no chapéu. Era mesquinho; era cruel, pois o choque repentino de um estoiro daqueles, imediatamente a seguir ao almoço, não podia deixar de comprometer a boa digestão do queijo reconhecidamente mais difícil que a do manjar-branco.
Quando cheguei a casa, li a notificação e senti uma pontada de melancolia. Mundo cruel! Mundo cruel! Aqui estou eu, um bom homem como não há melhor - hospitaleiro, de coração aberto, excessivamente generoso: e o Destino recusa-me a fortuna que me permitiria espalhar as minhas boas acções pela região! Pior, quando tantos sovinas e saqueadores rebolam esterilmente sobre ouro, eu, coração nobre como sou, recebo intimações! Baixei a cabeça e senti-me abandonado, injustiçado, maltratado e incompreendido. Numa palavra, miserável.
Ouçam! O cocorocó cheio de glória e de desafio soou como um clarim, sim, como o repicar de um alegre trovão! Meu Deus, como me levantou o moral! Fiquei muito direito! Sim, na verdade, como que sobre andas!
Oh, o nobre galo!
Tão claramente quanto era possível a um galo, ele dizia: "Que o mundo se desfaça com tudo o que contém. Tu, sê alegre e nunca te resignes. Que vale o mundo ao pé de ti? Não é então nada mais que um torrão de barro? Sê alegre!"
Ah! O nobre galo!
Mas, querido e glorioso galo, disse para comigo, não é assim tão fácil mandar este mundo desfazer-se; não é assim tão fácil estar alegre quando nos enfiam intimações no chapéu ou na mão.
Escutem! Outro cocorocó. Tão claramente
quanto o galo podia, dizia: "Para o Diabo a intimação e para o Diabo o engraçado que a enviou! Se não tens bens nem dinheiro, pois bem, dá uma sova a esse engraçado e diz-lhe que não tens qualquer intenção de lhe pagar. Sê alegre!"
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Foi portanto assim - sob as imperiosas intimações deste galo - que acabei por fazer mais uma hipoteca sobre a minha propriedade e que saldei todas as minhas dívidas, juntando-as a essa única obrigação suplementar. Tendo deste modo encontrado paz, parti de novo em busca do meu nobre galo; mas em vão, apesar de o ouvir todos os dias. Comecei a pensar que devia haver alguma fraude neste misterioso caso: algum ventríloquo prodigioso dado a alegres travessuras que rondasse o celeiro, a cave ou o telhado. Mas não; que ventríloquo teria soltado um cocorocó tão heroicamente celeste?
Por fim, numa bela manhã, recebi a visita de um homem singular que, no mês de Março, me tinha serrado e rachado lenha - ao todo uns trinta molhos - e que vinha agora receber o seu pagamento. Era, repito-o, um homem singular. Era alto e magro, com um rosto comprido e triste, e no entanto, tinha um olhar risonho que contrastava estranhamente com a sua face. Tinha um ar sério, mas nada abatido. Usava um comprido casaco cinzento coçado e um grande chapéu amachucado. Este homem
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tinha-me serrado a lenha a um tanto cada molho. Ficava a serrar o dia todo, em plena tempestade de neve, sem pestanejar. Nunca falava a não ser que lhe dirigissem a palavra. Serrava, era tudo. Serrava, serrava, serrava; nevava,
nevava, nevava. A serra e a neve avançavam juntas, como dois elementos da natureza. No primeiro dia em que este homem veio, trouxe o jantar com ele e começou a comê-lo sentado num banco, sob a tempestade de neve. Vi-o da minha janela onde estava a ler A Anatomia da Melancolia, de Burton. Saí de casa, em correria e de cabeça destapada.
- Deus do Céu! - exclamei. - Que está a fazer? Entre. É isso o seu jantar?
Tinha um naco de pão duro e uma fatia de carne de vaca salgada envolvida num jornal molhado e engolia os bocados com um pouco de neve que deixava derreter na boca. Mandei o imprudente entrar, instalei-o ao canto da lareira e servi-lhe um prato de porco grelhado com favas regado com uma caneca de sidra.
- Ouça lá - disse-lhe -, nunca mais me traga para aqui os seus jantares ensopados.
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Trabalha à tarefa, é sabido, mas ofereço-lhe as refeições.
Expressou os seus agradecimentos de forma calma e digna, mas não sem gratidão, e despachou a refeição para sua satisfação e também para a minha. Gostava de o ver engolir a caneca
de sidra como um homem. Olhava-o com respeito. Quando me aproximava do banco que ele trouxera, para discutir o trabalho com o homem, era com um certo respeito e reserva. Intrigado com o seu aspecto singular, impressionado com a sua extraordinária aplicação a serrar - uma das ocupações mais fastidiosas e odiosas aos olhos da maior parte dos homens -, procurava muitas vezes descobrir quem ele era, que tipo de vida levava, onde tinha nascido e por aí fora. Mas ele não dizia palavra. Vinha serrar a minha lenha e comer os meus jantares - eu oferecia-lhos com todo o gosto -, mas não para tagarelar. Ao princípio, sentia um certo ressentimento, dadas as circunstâncias, por aquele silêncio impertinente. Mas, pensando bem, passei a respeitá-lo ainda mais. Falava-lhe com
um respeito e uma deferência ainda maiores.
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Concluí intimamente que aquele homem tinha passado por momentos difíceis; que tinha recebido neste mundo mais que um duro golpe, que tinha um temperamento solene e era um homem ponderado; que vivia tranquila, decente e frugalmente e que era, apesar de pobre, muito respeitável. Por vezes, até o imaginava como diácono ou ancião de alguma pequena igreja do campo. Pensava que até seria possível vê-lo como candidato à presidência dos Estados Unidos; teria dado um grande defensor dos oprimidos. Chamava-se Merrymusk. Muitas vezes achei este nome demasiado jovial para um ser que o era tão-pouco. Perguntei às pessoas se conheciam Merrymusk. Mas só ao fim de um certo tempo soube alguma coisa a seu respeito. Parecia que tinha nascido em Maryland e que vivera durante muito tempo nas redondezas, sem lar e, até há dez anos, sem economias, apesar de homem inocente. Era um homem que durante um mês trabalhava arduamente, com
uma sobriedade espantosa, e que depois gastava todo o seu salário numa só noite de deboche. Fora marinheiro na juventude e tinha
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desertado do navio em Batávia, antes de contrair uma febre e ter estado quase a morrer. Mas tinha-se curado, voltara a embarcar, regressara à região onde todos os seus amigos tinham morrido e rumara a norte, ao interior das terras, onde desde então vagueava. Tinha-se casado nove anos antes e tinha agora quatro filhos. A mulher ficara completamente inválida; um dos filhos sofria de hidrartrose e os outros eram doentes. Ele e a família moravam numa cabana, num pedaço de terreno estéril e recuado, não longe do caminho-de-ferro, junto às faldas montanhosas. Tinha comprado uma bonita vaca para poder ter bastante leite bom para dar aos filhos; mas a vaca morrera ao parir e não tinha com que comprar outra. No entanto, a família nunca tinha passado fome. Trabalhava arduamente e levava-lhes comida.
Ora, como disse, tendo serrado a minha lenha algum tempo antes, Merrymusk vinha agora reclamar o pagamento.
- Meu amigo - perguntei-lhe -, conhece por aqui um cavalheiro que tenha um galo extraordinário?
Os olhos do serrador brilharam.
- Não conheço nenhum cavalheiro - respondeu ele - que tenha um galo verdadeiramente extraordinário.
Ora, pensei eu, Merrymusk não é homem para me esclarecer. Receio não vir a descobrir este extraordinário galo.
Não tendo trocos suficientes para pagar a Merrymusk, paguei-lhe quase tudo e disse-lhe que passaria por casa dele dentro de um ou dois dias para lhe dar o resto. Saí, então, de
minha casa uma bela manhã com essa intenção. Tive bastante dificuldade em encontrar o melhor caminho até à cabana dele. Parecia que ninguém sabia exactamente onde ficava.
Situava-se numa zona remota, entre uma montanha densamente arborizada (a que chamo monte Outubro devido ao aspecto excessivamente enfeitado que tem nesse mês) e uma charneca cheia de arbustos que o caminho-de-ferro atravessava em linha recta como um i, atormentando várias vezes por dia a infeliz 45
cabana com o espectáculo de tanta beleza, distinção, elegância, saúde, baús de ouro e prata, artigos de retrosaria e de mercearia, jovens casais e esposos felizes, passando a toda a velocidade defronte daquela porta solitária. Sem tempo para parar; num clarão chegam e noutro partem. E o comboio perde-se de vista, como se esta parte do mundo tivesse sido feita apenas para ser cruzada a grande velocidade não para ser habitada. E era mais ou menos tudo o que a cabana via daquilo a que chamamos a vida.
Apesar de um tudo-nada perplexo, eu sabia mais ou menos a direcção da cabana e avancei. À medida que avançava, fiquei surpreendido ao ouvir o misterioso galo a cantar cada vez mais distintamente. Será que, pensei eu, um cavalheiro que possui um galo chinês mora numa região tão solitária e desolada? Sempre mais alto, sempre mais perto, soava o clarim cheio de glória e de desafio. Talvez me tenha enganado no caminho para casa do lenhador, pensei, mas, graças a Deus, parece que estou na pista deste galo extraordinário. Fiquei encantado com este feliz acaso. Segui o meu caminho enquanto o seu canto ressoava, a intervalos, da forma mais sedutora, jovial e esplêndida; e o cocorocó parecia vir de um local cada vez mais próximo. Por fim, emergindo de um grupo de sabugueiros, deparei com a mais resplandecente criatura que alguma vez recompensou o olhar de um homem.
Um galo que parecia uma águia com penas de ouro; um galo que parecia menos um galo que um marechal do exército; um galo que parecia menos um galo que o almirante Nelson equipado com todas as suas armas brilhantes e de pé na ponte do Vanguard antes da batalha; um galo que se parecia menos com um galo que com o imperador Carlos Magno vestido com a púrpura do seu trono em Aix-la-Chapelle.
Que galo!
Tinha uma figura nobre e um porte altivo. Era vermelho, dourado e branco. O vermelho só se encontrava na sua crista poderosa e simétrica, parecida com o elmo de Heitor como se vê desenhado nos escudos antigos. A plumagem
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era de neve com nervuras de ouro. Caminhava
diante da cabana como um par do reino: a crista levantada, o peito espetado, as grandes penas refulgindo ao sol. O seu porte era prodigioso. Dir-se-ia uma nobre personagem vinda de algures. Dir-se-ia um rei do Oriente numa sumptuosa ópera italiana.
Merrymusk saiu pela porta e deu alguns passos.
- Desculpe, mas este não é o Signor Beneventano?
- Senhor?
- É o galo - respondi um pouco envergonhado.
Na verdade, o meu entusiasmo levara-me a cometer uma imprudência bastante tola. Fizera uma alusão um tanto erudita a um homem inculto. Portanto, quando a sua honesta incompreensão me deu a entender o meu lapso, senti-me parvo; mas desembaracei-me dizendo: é o galo.
Tinha estado na cidade no Outono anterior
e quis a sorte que assistisse a uma representação da ópera italiana. Havia nessa ópera uma
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personagem real cujo papel era representado por um certo Signor Beneventano-um homem alto, de figura imponente, vestido com ricos tecidos que lembravam uma plumagem e cujo porte cheio de majestade e desdém era notável. O Signor Beneventano parecia estar prestes a tombar sob o peso excessivo da sua soberba. E o porte orgulhoso deste galo lembrava até ao equívoco o andar altivo com que o Signor Beneventano pisava o palco.
Caluda! O galo deteve-se subitamente, levantou a cabeça mais ainda, eriçou as penas, pareceu inspirado e soltou um vigoroso cocorocó. O monte Outubro repetiu-o, outros montes devolveram-no, outros ainda recuperaram-no; por fim, os seus ecos cobriram toda a região. Percebia agora claramente como ouvira na minha longínqua colina este ruído entusiasmante.
- Santo Deus! É você o dono do galo? O galo é seu?
- É o meu galo - disse Merrymusk com um ar de alegria matreira estampado no seu comprido e solene rosto.
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- Onde é que o arranjou?
- Quebrou a casca aqui. Fui eu que o criei.
- Você?
Ouçam! Mais outro cocorocó. Era de acordar os fantasmas de todos os pinheiros e abetos alguma vez abatidos na região. Que galo maravilhoso! Depois do seu cocorocó, o animal
retomou a sua passada larga rodeado por um
bando de galinhas, suas admiradoras.
- Quanto quer pelo Signor Beneventano?
- Senhor?
- Este galo mágico! Quanto quer por ele?
- Não está à venda.
- Dou-lhe cinquenta dólares por ele.
- Ora!
- Cem!
- Pff!
- Quinhentos!
- Bah!
- Mas você não é pobre?
- Isso não. Não possuo este galo e não recusei imediatamente vendê-lo por quinhentos dólares?
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- Isso é verdade - respondi, muito pensativo. - É um facto. Então não o quer vender?
- Não.
- Quereria dá-lo?
- Não.
- Quer então conservá-lo - gritei furioso.
- Sim.
Por instantes, olhei para o galo com admiração e para o homem com espanto. Por fim, senti redobrar a minha admiração por um e o meu respeito pelo outro.
- Então não entra? - perguntou-me Merrymusk.
- Não podemos convencer o galo a vir connosco? Respondi.
- Sim. Trombeta! Por aqui meu rapaz, por aqui!
O galo virou a cabeça e, com grandes passadas, dirigiu-se a Merrymusk.
- Anda!
O galo seguiu-nos e entrou na cabana.
- Canta!
O telhado vibrou.
Ó nobre galo!
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Voltei-me para o meu hospedeiro, em silêncio. Estava sentado em cima de uma velha mala toda amolgada, vestido com o seu esfarrapado casaco cinzento remendado nos cotovelos e nos
joelhos e com um chapéu lamentavelmente
deformado. Percorri a divisão com o olhar. No
tecto, traves nuas de onde pendiam robustas peças de carne seca. Um chão de terra batida, batatas num canto e, no outro, um saco de farinha de milho. Na outra ponta, estava uma manta estendida ao longo da habitação; mais
atrás ouviam-se as vozes sofredoras de uma
mãe e dos seus filhos. Mas parecia não haver qualquer queixa naquele sofrimento.
- A Sr.a Merrymusk e os seus filhos?
- É verdade.
Olhei para o galo. Mantinha-se majestosamente no meio da divisão. Parecia um Grande de Espanha surpreendido por uma chuvada e que se tivesse refugiado numa barraca de camponês. Emanava de si a estranha impressão de um contraste sobrenatural. Irradiava glória naquela cabana; transfigurava-lhe a miséria.
Transfigurava a velha mala amolgada e o casaco
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cinzento rasgado e o chapéu amolgado. Exaltava até as vozes que se elevavam em tons dolorosos atrás do pano.
- Ó pai! - exclamou uma vozinha doentia.
- mande o Trombeta cantar outra vez.
- Canta - gritou Merrymusk.
com um movimento brusco, o galo fez pose.
O telhado estremeceu.
- Isto não incomoda a Sr.a Merrymusk e as crianças doentes?
- Canta mais, Trombeta.
O telhado estremeceu.
- Então isto não os incomoda?
- Não os ouviu a pedi-lo?
- Como é que o cocorocó agrada à sua família? - interroguei. -O galo é notável e dotado de uma voz igualmente notável; mas poder-se-ia pensar que não é exactamente o género de bicho que convém a um quarto de doente. A situação agrada-lhes verdadeiramente?
- Será que não lhe agrada a si? Será que
isto não lhe faz bem? Não será nada exaltante?
Acha que isto não dá coragem e ânimo perante o desespero?
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- Tudo isso é verdade - disse eu, tirando o
chapéu com profunda humildade, face ao espírito corajoso que aquele casaco sórdido escondia.
- Mas, mesmo assim - retomei ainda tomado por uma certa apreensão -, um cocorocó tão poderoso, tão maravilhosamente tonitruante... talvez não seja bom para uma inválida e talvez atrase a sua convalescença.
- Canta agora o melhor que puderes, Trombeta.
Dei um salto na cadeira. Este galo assustava-me como se fosse um qualquer arcanjo destruidor do Livro do Apocalipse. Parecia exultar com a ruína da perversa Babilónia ou com o triunfo de Josué, o Justo, no vale de Ascalon.
Assim que recuperei a compostura, veio-me ao espírito uma curiosidade que resolvi satisfazer.
- Merrymusk, quer apresentar-me a sua
mulher e os seus filhos?
- Sim. Mulher, o senhor quer entrar.
- É bem-vindo - respondeu uma voz fraca. Depois de atravessar a cortina via-se um rosto humano que repousava, desfeito, mas habitado por uma alegria estranha; o corpo, coberto por uma colcha e por um casaco velho, parecia demasiado diminuído para que se pudesse adivinhar através destes obstáculos. Uma criança pálida estava sentada à sua cabeceira e cuidava dela. Numa outra cama, estavam deitadas lado a lado três crianças, mais três caras pálidas.
- Oh, pai, não temos nada contra o senhor, mas queremos ver o Trombeta também.
Ao ouvir o seu nome, o galo passou por detrás do pano e foi-se empoleirar na cama das crianças. Os seus olhos mortiços fixaram-no com um encantamento selvagem, místico. A sua plumagem radiosa era como um sol que
os tivesse aquecido.
- É mais forte que um boticário, não? disse Merrymusk - Aqui está o Dr. Galo em pessoa.
Retirámo-nos e voltei a sentar-me na cadeira,
perdido nos pensamentos que aquela estranha família me inspirava.
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- Você parece-me um rapaz muito independente! - disse-lhe por fim.
- E você, não creio que seja um tolo e nunca acreditei que fosse. Senhor, você é um homem de ouro.
- Há alguma hipótese de a sua mulher se curar? - perguntei, tentando modestamente desviar a conversa.
- Não.
- E as crianças?
- Também não.
- Então, a vida deve ser dolorosa para cada
um de vós. Esta solidão, esta cabana, trabalhos penosos, uma época difícil...
- Não tenho o Trombeta? É ele que me dá coragem. Ele canta em qualquer altura; canta nas trevas mais profundas: glória a Deus nas alturas! É isto que ele canta, continuamente.
- Era esse exactamente o sentido que eu atribuía ao seu canto, Merrymusk, quando o ouvi da minha colina pela primeira vez. Imaginava um rico nababo, dono de um galo chinês
valioso. Nunca pensei que um pobre homem
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como você possuísse um galo assim tão vigoroso e de raça doméstica.
- Um pobre homem como eu? Porque me chama pobre? Não será o meu galo que espalha glória numa terra que, sem ele, seria ignóbil, mesquinha e ínfima? O meu galo não lhe deu coragem? E eu ofereço-lhe toda esta glória de graça. Sou um grande filantropo. Sou um homem rico, um homem muito rico e feliz. Canta, Trombeta.
O telhado estremeceu.
Regressei a casa, profundamente absorto.
Não estava totalmente convencido da razão do
ponto de vista de Merrymusk, embora tivesse uma profunda admiração por ele. Ainda reflectia quando cheguei à minha porta e voltei a ouvir o galo cantar. Chegava. Merrymusk tinha razão.
Oh nobre galo! Oh, nobre coração!
Não o voltei a ver durante algumas semanas; mas, pelo som deste cocorocó pleno de glória e de alegria, calculava que em casa dele prosseguiam a sua vida quotidiana. Quanto a mim, o meu espírito estava sempre propenso à
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alegria. O galo continuava a animar-me. Vi mais uma hipoteca sobre a minha plantação; mas contentei-me em comprar mais uma dúzia de garrafas de cerveja stout e de cerveja preta de
Filadélfia. Alguns parentes meus faleceram; não fiz luto, mas durante três dias bebi mais cerveja preta do que stout, devido à sua cor mais escura. Ouvi o galo cantar no momento em que recebi estas funestas notícias.
- Bebo esta cerveja à tua saúde, ó nobre galo!
Pensava fazer outra visita a Merryrnusk pois já há algum tempo que não o via nem tinha notícias dele. Quando me aproximei da cabana, parecia estar deserta. Tive um estranho pressentimento. Mas o galo cantou no interior e a minha ansiedade desapareceu.
Bati à porta. Uma voz fraca convidou-me a entrar. A cortina já não estava puxada; toda a casa era agora um hospital. Merryrnusk jazia sobre vários farrapos velhos; a mulher e as crianças estavam de cama. O galo estava empoleirado num velho arco de barrica que balouçava
sobre o espigão, no meio da cabana.
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- Está doente, Merrymusk - disse-lhe num
tom triste.
- Não, estou bem - respondeu fracamente.
- Canta, Trombeta.
Estremeci. Esta alma tão forte neste corpo tão fraco enchia-me de pavor. Mas o galo cantou.
O telhado estremeceu.
- Como está a Sr.a Merrymusk?
- Bem.
- E as crianças?
- Bem. Muito bem!
Disse as últimas palavras numa espécie de êxtase selvagem, como se triunfasse na calamidade. Foi demais. A cabeça descaiu novamente. Dir-se-ia que um guardanapo branco lhe caia sobre o rosto. Merrymusk tinha morrido.
Um medo atroz apoderou-se de mim.
Mas o galo cantou.
O galo sacudiu a plumagem como se cada uma das suas penas fosse um estandarte. O galo estava pendurado no tecto da cabana tal como, outrora, os estandartes na Catedral de
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São Paulo. O galo inspirava-me uma admiração extrema e terrível.
Aproximei-me da cabeceira da mulher e das crianças. Viram o meu aspecto e o meu estranho medo; souberam o que tinha acontecido.
- O meu valente marido morreu agora mesmo - disse a mulher num murmúrio. - Diga-me a verdade.
- Está morto - respondi-lhe. O galo cantou.
Desfaleceu sem soltar um suspiro, morta por simpatia e por um grande amor.
O galo cantou.
O galo sacudiu da sua plumagem de ouro uma nuvem de centelhas. O galo parecia arrebatado por um alegre e benévolo êxtase. Desceu do aro da barrica com um salto, com grandes passadas majestosas aproximou-se do monte de trapos velhos onde jazia o velho lenhador e plantou-se a seu lado como a figura de um brasão. Depois lançou um único cocorocó, longo, musical, triunfante, definitivo, com a goela bem esticada como se quisesse com aquela fanfarra enviar a alma do seu dono direitinha
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para o sétimo céu. Depois caminhou, como um rei, até à cama da mulher. Outro cocorocó brotou para o céu, exultante, e uniu-se ao primeiro.
A palidez das crianças transformou-se em resplendor. Os seus rostos brilhavam com uma luz celeste sob a sujidade e sob a porcaria. Dir-se-iam filhos de reis e de imperadores disfarçados. O galo saltou para a cama deles, sacudiu-se, e voltou a cantar. Parecia decidido a cantar até que as almas abandonassem aqueles corpos destroçados e a reunir a família toda sem demora nas regiões do éter. Parecia que as crianças apoiavam os seus esforços. Um desejo de libertação vindo de muito longe, profundo, intenso, transformou-os em seres espirituais perante os meus olhos. Vi anjos onde eles repousavam.
Estavam mortos.
O galo sacudiu a plumagem por cima deles. O galo cantou. Era naquele momento como que um viva, como um hip-hip-hurra! Saiu da cabana. Segui-o. Voou até ao cume do edifício, estendeu as grandes asas, fez soar uma única nota sobrenatural e caiu a meus pés.
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O galo estava morto.
Se visitarem hoje esta região de colinas, vêem perto do caminho-de-ferro, mesmo em baixo no monte Outubro, do outro lado do pântano, uma pedra tumular onde o buril gravou em vez de caveira e ossos cruzados, um vigoroso galo cantador e estas palavras por baixo:
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
Ó morte, onde está a tua vitória?
O lenhador e a família repousam neste sítio, na companhia do Signor Beneventano; e fui eu que os enterrei e que levantei esta pedra, expressamente talhada por encomenda. Desde então, nunca mais reincidi nos meus
humores negros e canto de manhã e à noite, em todas as circunstâncias, um cocorocó perpétuo.
Cocorocó! Ó! Ó! Ó!
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FELIZ INSUCESSO
Um conto do rio Hudson
Tinha combinado encontrar-me com o meu velho tio de manhã, à beira-rio, às nove horas em ponto. A canoa estaria pronta a partir e seria guiada pelo seu velho criado negro de cabeça grisalha. Até então, a natureza exacta da prodigiosa experiência permanecia para todos um mistério, excepto para aquele que tinha concebido o projecto.
Fui o primeiro a chegar ao local. A aldeia ficava longe, a montante, e o sol de Verão no interior das terras era já opressivo àquela hora. Em breve vi o meu tio a aproximar-se pelo meio das árvores, sem o chapéu, e a limpar a testa, enquanto mais atrás, ao longe, caminhava vacilante o pobre velho Yorpy, trazendo às costas um objecto enigmático.
- Hurra! Vamos, coxeia lá, Yorpy! - gritava
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o meu tio, voltando-se de vez em quando impacientemente .
Quando o negro, coxeando sempre, chegou à canoa, apercebi-me de que o tal objecto enigmático se tinha transformado numa enorme caixa oblonga de aspecto miserável, hermeticamente fechada. Esta caixa inexpressiva como uma esfinge aumentava o mistério no meu espírito.
- É esse o misterioso aparelho? - perguntei eu, estupefacto. - Eh, não passa de um velho baú de tecidos amolgado e pregado! É realmente essa coisa, meu tio, que lhe vai render um milhão de dólares antes do fim do ano? É
apenas uma caixa de cinzas velha e lastimável!
- Põe-na barca! - rugiu o meu tio, dirigindo-se a Yorpy sem dar atenção ao meu juvenil desdém. - Põe-na lá dentro, querubim de cabelo grisalho. Mas com cuidado! Se essa caixa rebenta, é uma fortuna eterna que desaparece.
- Rebenta? Desaparece? - disse eu, muito assustado. - Espero que não esteja cheia de combustível! Mais vale ir depressa para aquele lado do barco!
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- Sossega, grande tolo! - gritou o meu tio outra vez. - Trepa a bordo, Yorpy, e agarra-te à caixa com unhas e dentes enquanto me afasto para o largo. Devagar! Devagar, negro cretino! Presta atenção ao outro lado da caixa! Queres
dar cabo dela?
- A caixa que vá pró diabo que a carregue
- balbuciou o velho Yorpy que era uma espécie de holandês de África - Há dez anos qu'eu faço o melhor que posso.
- Então, partamos. Pega num remo, rapaz; tu Yorpy, agarra a caixa com força. Cá vamos nós. Devagar! Devagar! Tu, Yorpy, pára de sacudir a caixa. Devagarinho! Devagarinho! Está ali a aparecer um grande tronco. Faz força agora. Hurra! Finalmente temos profundidade! Agora com coragem, rapaz, e faz-te à ilha.
- À ilha? - admirei-me eu. - Não há nenhuma ilha nestas paragens.
- Há uma, dez milhas acima da ponte disse o meu tio com determinação.
- Dez milhas! Vamos arrastar este velho baú
de trapos durante dez milhas rio acima com
este sol escaldante?
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- Tudo o que tenho a dizer - respondeu o meu tio com firmeza - é que vamos a caminho da ilha de Quash.
- Misericórdia, meu tio! Se eu tivesse sabido
que era preciso remar durante dez longas milhas sob este sol ardente, o tio não me teria
convencido tão facilmente. O que está dentro do baú? Pedras da calçada? Veja como a barca se afunda com o peso. Não vou ajudá-lo a carregar uma caixa cheia de pedras durante dez milhas. Que interesse tem arrastar pedras da calçada?
- Ouve bem, palerma - disse o meu tio, parando de remar. - Pára de remar, estás a ouvir? bom. Se agora não queres que se reflicta em ti a glória da minha experiência, se a perspectiva de partilhar a fama imortal te deixa absolutamente indiferente, então, digo-te que, se não tens interesse em assistir à primeira grande experiência do meu Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático para dragar pântanos e lameiros, à razão de um talhão por hora, e transformá-los em campos mais fecundos que os de Genessee, se, repito, daqui a muito tempo, quando a
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minha velha pessoa estiver morta e enterrada, meu rapaz, não quiseres ter uma coisa tão bela para contar aos teus filhos e aos teus netos, podes desembarcar agora mesmo.
- Oh, meu tio, eu não queria...
- Nem uma palavra, senhor! Yorpy, pega no remo dele e ajuda-me a levá-lo para a margem.
- Mas, meu querido tio, garanto-lhe que...
- Nem uma palavra, senhor; manifestou abertamente o seu desprezo pelo Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático. Yorpy! Fá-lo desembarcar, Yorpy. O fundo aqui está mais acima. Salta para a água, Yorpy, e acompanha-o até à margem.
- Meu querido, meu amável, meu generoso tio, peço que me perdoes só desta vez e não volto a dizer palavra sobre este aparelho.
- Não voltas a dizer palavra? Quando a minha finalidade, o meu objectivo declarado é torná-lo célebre! Ele que saia do barco, Yorpy.
- Ora esta! Meu tio, recuso-me a largar este remo. Embarquei neste negócio e tenciono ficar. Não vai despojar-me da minha parte da glória.
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- Ah, até que enfim. Aí está uma coisa razoável. Podes ficar, rapaz. Agora, força.
Ficámos um instante em silêncio, dando
remadas vigorosas e regulares. Afinal, corria o risco de passar a vau uma segunda vez.
- Sinto-me feliz, querido tio, por me teres revelado ao menos a natureza e o objectivo da tua grandiosa experiência. Trata-se de drenar efectivamente os pântanos; uma obra, querido tio, em que te bastará ter êxito (e sei que terás) para te garantir a glória que foi recusada a um imperador romano. Ele tentou secar os pântanos Pontinos, mas foi um fracasso.
- O mundo avançou muito desde essa época
- disse orgulhosamente o meu tio. - Se esse imperador romano aqui estivesse, mostrava-lhe o que é possível fazer neste século esclarecido.
Vendo o meu tio mais calmo, arrisquei outra
?? observação:
- É a isso que se chama remar contra a
maré, meu tio.
- Não se chega à glória sem remar contra a maré, meu rapaz. Tal como fazemos neste momento. A tendência natural do homem é seguir a corrente universal e afundar-se no esquecimento.
- Mas para quê remar para tão longe, querido tio, nas actuais circunstâncias? Para quê remar dez milhas em busca da glória? Propõe-se simplesmente, creio, testar a sua admirável invenção. E não a podíamos pôr à prova mais ou menos em qualquer sítio?
- Que ingénuo - disse o meu tio. - Queres que algum espião maldoso me roube o fruto de dez longos anos de um trabalho magnânimo e assíduo? O meu projecto nasceu na solidão e é na solidão que o vou pôr à prova. Se falhar, pois tudo é possível, ninguém para além da família saberá o que quer que seja. Se tiver êxito, fortalecido pelo segredo da minha invenção, poderei pedir audaciosamente qualquer preço pela sua divulgação.
- Peço-lhe perdão, meu querido tio. É mais sábio que eu.
- Tão grande espanto, meu rapaz, quando a idade e os cabelos brancos trazem sabedoria?
- E aqui o Yorpy, meu querido tio, acha
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que o seu colmo grisalho abriga um cérebro muito fortalecido pelos anos?
- Serei eu o Yorpy, garoto? Contenta-te em remar!
Tendo dado por mim a meter assim o pé na
argola uma segunda vez, não voltei a dizer palavra até ao momento em que a barca raspou no fundo, a uma vintena de metros da ilha e do seu denso arvoredo.
- Caluda! - murmurou o meu tio com uma
expressão intensa. - Agora nem mais uma palavra!
Ficou perfeitamente imóvel no banco, percorreu lentamente com os olhos toda a região circundante até às margens do rio cujo leito era muito amplo naquele sítio.
Mesmo assim, cuidado! Desembarca depressa, põe o baú ao ombro e... um momento! -
Ficámos mais uma vez imóveis.
- Não é uma criança que se vê além, sentada como Zacarias na árvore deste pomar, na outra margem? Olha, rapaz, os teus olhos jovens são melhores que os meus. Não vês nada?
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- Vejo muito bem o pomar, meu caro tio, mas não vejo nenhuma criança.
- É um espião, eu sei - disse subitamente o meu tio sem ligar à minha resposta, o olhar fixo e a mão a fazer de pala. Não toques na caixa, Yorpy! Agachem-se, agachem-se todos!
- Mas, meu tio, ali, veja, essa criança não é mais que uma ramada seca e esbranquiçada. Agora vejo-a muito bem.
- Não estás a ver a árvore de que falo respondeu o meu tio com alívio evidente. - Mas não importa; esse rapaz é-me indiferente. Yorpy, desce e traz a caixa. E agora, jovem, tira os sapatos e as peúgas, arregaça as calças e segue-me. Tem cuidado, Yorpy. Tem cuidado. Lembra-te de que esse baú é mais precioso do que se estivesse cheio de ouro.
- E é pesado como o ouro - resmungou Yorpy, vacilando sob o peso, enquanto se movia lentamente na beira do talude.
- Aí. Pára debaixo dos arbustos - ali entre
os lírios. - Assim, devagarinho, devagarinho. Pronto. Pousa-a aí mesmo. Pronto, jovem? Vamos, em bicos de pés, em bicos de pés!
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- Não posso atravessar esta água e esta lama em bicos de pés, meu tio. Além disso, não vejo a utilidade.
- Desembarque, senhor. Imediatamente!
- Mas, meu tio, já desembarquei.
- Calma! Segue-me e nem mais uma palavra.
Agachado na água, escondido entre os arbustos e os altos caules dos lírios, o meu tio tirou furtivamente um martelo e uma chave-inglesa de uma das suas enormes algibeiras e começou a dar pequenas pancadas na caixa.
Mas o ruído alarmou-o.
- Yorpy - murmurou -, vai pela direita, por trás dos arbustos e fica de sentinela. Se vires alguém aproximar-se, assobia baixinho. Tu, jovem, faz o mesmo do lado esquerdo.
Voltámos a obedecer e, em breve, após firmes marteladas, a voz do meu tio soou no silêncio absoluto. Gritava, ordenando que regressássemos.
Voltámos a obedecer e vimos que a tampa
da caixa tinha sido retirada. Olhei avidamente para o interior e avistei uma quantidade
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espantosa de tubos e de seringas metálicas em forma de saca-rolhas, de todas as espécies e
variedades, de todos os tamanhos e calibres,
enredadas de forma labiríntica numa única
meada gigantesca. Parecia um enorme ninho
de anacondas e víboras.
- Agora, Yorpy - disse o meu tio muito animado, corado devido à antecipação da glória -, mantém-te deste lado e prepara-te para a inclinares assim que eu der o sinal. E tu,
jovem, prepara-te para fazer o mesmo do outro lado. Atenção! Não a desloquem nem um centímetro antes do meu sinal. Tudo depende do exacto ajustamento.
- Não tenha receio, meu tio. Serei tão meticuloso como uma pinça de depilação para as senhoras.
- Não levanto esta pesada caixa antes do sinal - grunhiu o velho Yorpy. - Esteja descansado.
- Ó meu rapaz! - disse então o meu tio, levantando a cabeça com um ar de devoção, enquanto um brilho de verdadeira nobreza 75
irradiava dos seus olhos cinzentos, das suas
madeixas grisalhas e do seu rosto enrugado.
- Ó meu rapaz, chegou a hora que me deu alento durante dez longos anos, na minha laboriosa obscuridade! A fama, por muito tarde que chegue, será ainda mais doce; e, sendo eu um velhote e não uma criança como tu, ela será ainda mais pura. Ó Tu que és o meu apoio! Eu Te glorifico.
Inclinou o rosto venerável e, tão verdade
como eu estar vivo, uma lágrima caiu do meu rosto e perdeu-se nas águas do rio.
- Inclinem!
Inclinámos.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Só mais um pouco, um bocadinho. com grande dificuldade, inclinámos só mais um pouco, um pouquinho.
Entretanto, o meu tio inclinava-se subitamente sobre a caixa de anacondas e víboras entrelaçadas, esforçando-se por ver o conteúdo;
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mas, por a máquina estar dali em diante demasiado funda, esforçava-se em vão.
Endireitou-se e, resoluto e ainda confiante,
mas já perturbado e contrariado, contornou
lentamente a caixa.
Era evidente que alguma coisa corria mal. Mas como eu me mantinha na mais completa ignorância dos mistérios daquele engenho, não sabia dizer qual era o transtorno, nem remediar a situação.
Uma vez mais, em passos cada vez mais lentos e ainda mais contrafeito, o meu tio contornou a caixa. O descontentamento crescia nele, mas sempre contido, e, no entanto, ele mantinha uma certa esperança.
Percebia-se a olhos vistos: não se tinham
verificado os efeitos com que ele contara. Tinha também a certeza de que em torno das minhas pernas o nível da água não baixara.
- Inclinem-na mais um bocadinho, só um bocadinho.
- Meu querido tio, já está tão inclinada quanto possível. Não está a ver que está praticamente assente no fundo?
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- Tu, Yorpy, tira a tua pata preta de debaixo
da caixa!
O ataque de fúria que se apoderou do meu
tio dava ao caso um ar mais duvidoso e mais
obscuro ainda. Mau sinal, pensei eu.
- com certeza podem incliná-la só mais um pouco
- Nem sequer um milímetro, meu tio.
- Então, que o fogo e a febre atinjam esta maldita caixa! - rugiu o meu tio com uma voz terrível, brusca como uma rajada de vento. Atirou-se para cima da caixa e deu-lhe um pontapé, descalço, com uma força espantosa que quase lhe rebentou o lado. Depois, agarrando-a decididamente com as mãos, arrancou lá de dentro todas as víboras e anacondas como
se lhe estivesse a tirar as vísceras antes de as
torcer e de as deitar para a água.
- Espere, espere, meu querido, meu muito querido tio! Por amor de Deus, pare, peço-lhe." Não destrua assim, num único momento de exaltação, todos os longos e serenos anos que consagrou a um projecto tão querido. Espere, suplico-lhe!
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Comovido com o meu tom veemente e com
as minhas lágrimas, ele interrompeu a sua obra
destruidora e fixou-me com um olhar resoluto
ou, na verdade, com um olhar inexpressivo de demente.
- Não está ainda completamente desfeita, meu querido tio. Venha montá-la outra vez. Tem o seu martelo e a sua chave-inglesa: repare-a e tentemos mais uma vez. Enquanto há vida, há esperança.
- Enquanto houver vida, passará a haver agora desespero - berrou ele.
- Vamos lá, peço-lhe, meu querido tio. Tome, junte outra vez esses bocados; ou, se não tiver todas as ferramentas necessárias, tente reconstruir uma parte. Também está bem. Tente só uma vez; tente, meu tio.
Por fim a minha paciência e persuasão deram resultado. A esperança, tal tronco tenaz que desafia a serra e o machado, fez brotar um último rebento milagroso e verdejante.
Tendo recolhido calma e minuciosamente
certos fragmentos muito bizarros, enroscou-os misteriosamente uns nos outros; depois,
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desentulhando o interior da caixa, colocou-os
lá dentro com gestos lentos. Quis que eu e o Yorpy ocupássemos a mesma posição que anteriormente e mandou-nos incliná-la mais
uma vez.
Fizemos o que nos era pedido e, como não houve resultado perceptível, esperei a todo o instante que nos fizesse sinal para inclinarmos a caixa mais um pouco, até ao momento em que olhei para o seu rosto e me assustei. Parecia contraído, encarquilhado, com uma palidez de bolor, como um cacho de uvas atingido pelo míldio. Larguei a caixa e corri para ele mesmo a tempo de impedir que caísse.
Deixando a funesta caixa onde a tínhamos
pousado, Yorpy e eu ajudámos o velho homem a subir para a barca antes de nos afastarmos em silêncio da ilha de Quash.
Como a corrente nos levava agora depressa!
Como nos tínhamos cansado ao remar tão
pouco tempo antes! Pensava nas palavras do meu tio que, apenas uma hora antes, tinha descrito a humanidade universalmente arrastada para um esquecimento total.
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- Meu rapaz - disse por fim o meu tio levantando a cabeça.
Olhei-o com emoção e fiquei contente por ver que a terrível perda de viço quase tinha desaparecido do seu rosto.
- Meu rapaz, já não há muita coisa que um pobre velho possa inventar neste velho mundo.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, segue este conselho: não tentes nunca inventar o que quer que seja, excepto a felicidade.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, dá a volta e vamos buscar a caixa.
- Meu querido tio!
- Vai dar boa lenha, meu rapaz. E o fiel velho Yorpy poderá vender a sucata para comprar tabaco.
- Querido senhor! Querido senhor! É a primeira vez que mostra bondade para com o velho Yorpy em seis longos anos. Obrigado, querido senhor; obrigado de todo o coração. Voltou a ser o mesmo, ao fim de dez longos anos.
- É verdade, dez longos anos - suspirou o
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meu tio. - Anos dignos de Esopo. Mas agora tudo acabou. Meu rapaz, estou contente por ter falhado. Sabes, meu rapaz, o insucesso fez de mim um bom velhote. Primeiro foi horrível,
mas estou contente por ter falhado. Deus seja louvado por este insucesso!
Uma seriedade estranha, estática, irradiou do seu rosto. Nunca mais esqueci aquele olhar. Se o incidente fez dele um bom velhote, como dizia, fez de mim um jovem sábio. O exemplo foi para mim uma experiência de vida.
Alguns anos depois, o meu querido e velho tio começou a definhar e quando, após dias agradáveis de contentamento outonal, se foi tranquilamente juntar aos seus antepassados, foi o fiel Yorpy quem lhe fechou os olhos. E no momento em que eu contemplava aquele rosto venerável pela última vez, os seus lábios pálidos pareceram mexer-se. Pareceu-me ouvi-lo exclamar novamente com profundo fervor: "Deus seja louvado por este insucesso!"
Em todas as regiões do mundo, muitas revoltas intrépidas contra despotismos infames tinham recebido um rude golpe. Muitos acidentes atrozes de locomotiva ou de barco a vapor faziam perecer centenas de viajantes intrépidos (tendo um destes acidentes roubado um querido amigo meu). Também a minha própria vida pululava de despotismos, de acidentes e de rudes golpes quando, na madrugada de um dia de Primavera, estando eu demasiado melancólico para poder dormir, saí para dar um passeio pela colina nas minhas pastagens.
O ar estava frio e enevoado, húmido e desagradável, como se a região não estivesse já demasiado lamacenta e não exalasse os seus humores pelas redondezas. Abotoei até cima a minha pobre casaca, para me proteger tanto quanto possível daquele ar que se colava à pele
- as abas do meu sobretudo eram tão compridas que só o usava na minha caleche - e, irritado, cravando a minha bengala na terra saturada de água, curvei o meu vulto azulado e comecei a subir a encosta da colina. Esta penosa postura aproximava consideravelmente a minha cabeça do solo. Dir-se-ia que queria dar uma cabeçada no Mundo. Apercebi-me da circunstância, mas não lhe concedi mais do que um esgar fugidio.
Tinha à minha volta os sinais de um império dividido. A erva tenra disputava-o à do ano passado. Nas covas húmidas, a verdura começava a despontar em cores vivas; do outro lado, nas montanhas, resistiam finas camadas de neve formando um estranho relevo nos flancos castanho-avermelhados; as colinas corcundas pareciam vacas malhadas a tremerem de febre. Os bosques estavam semeados de ramos mortos, secos, cortados rentes ao sopro dos ventos de Março, enquanto as árvores novas da beira dos caminhos mostravam já o primeiro tom amarelado dos rebentos a nascer.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/FELIZ_INSUCESSO.jpg
Sentei-me um instante num grande tronco apodrecido perto do topo da colina, de costas para um pequeno bosque de grandes árvores, virado para o vasto e majestoso anfiteatro de montanhas que delimitava uma campina ondulante e variada. Ao pé de uma longa fila de elevações, corria um ribeiro preguiçoso e fonte de paludismo, tendo por cima uma faixa de bruma gotejante que reproduzia exactamente cada meandro. Ao fundo, aqui e ali, farrapos de vapor erravam pelos ares esmorecidos como nações ou navios abandonados e desgovernados - ou como guardanapos encharcados que tivessem posto a secar em cordas da roupa entrecruzadas. Ao longe, numa abertura da planície desenhada pelas montanhas, repousava um grande dossel de nevoeiro, fino como uma mortalha, numa aldeia afastada. Era a condensação do fumo das chaminés juntamente com o bafo dos aldeãos. Era demasiado pesada, demasiado inerte para se afastar sem vento e, portanto, ficava ali, entre a aldeia e o céu, escondendo com certeza mais que um doente com papeira e mais que uma criança com náuseas.
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Percorri com o olhar a ampla campina ondulada, as montanhas, a aldeia e as quintas, aqui e ali, e os bosques, os regatos, as rochas e os cumes e fiquei a pensar que o Homem, afinal de contas, deixa uma marca bem leve nesta
Terra imensa. No entanto, a Terra marca-o. Que catástrofe horrível a do Ohio, onde o meu querido amigo e outros trinta bravos rapazes deram o seu mergulho eterno ao sinal de um mecânico obtuso, incapaz de distinguir uma válvula de um tubo de aquecimento! E o choque no caminho-de-ferro além, mesmo por detrás das montanhas! Quem viu dois comboios loucos colidirem desordenadamente, treparem e rasgarem-se um ao outro, encontrou depois uma das locomotivas aninhada, como um pinto, numa carruagem de passageiros do comboio que vinha no sentido oposto; e cerca de uma centena de boa gente, entre elas um jovem casal com o filhinho inocente, a embarcar no sinistro barco de Caronte que os levou, sem bagagem, para não se sabe que região de fundições imundas. Mas de que servia lamentarem-se? Que juiz de paz iria resolver aquele
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caso? Sim, na verdade, para quê cansar o próprio céu? Não é o céu que destina estas coisas, uma vez que, se assim não fosse, não aconteciam?
Que mundo miserável! Para quê darmo-nos ao trabalho de fazer fortuna, quando não sabemos durante quanto tempo a podemos conservar face aos milhares de burros e de patifes que detêm a gestão dos caminhos-de-ferro, dos barcos a vapor e de tantas outras coisas vitais neste mundo? Fosse eu ditador da América do Norte por um instante: mandava-os prender, enforcar e esquartejar; mandava-os fritar, assar, cozer, fervilhar, grelhar e tostar como pernas de peru! Esses responsáveis infames e cretinos; punha-os a aquecer no Tártaro, isso sim!
Oh, os grandes progressos da nossa época! Quais? Facilitamos o assassínio e a morte e chamamos a isto progresso? Aliás, para quê andar tão depressa? O meu avô passava muito
bem sem as modernices e não tinha nada de
tolo. Escutem! É o velho dragão que regressa, o gigantesco moscardo, o Moloch. Ronca! Sopra! Urra! Eis que avança a direito pelos bosques
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floridos como a cólera asiática que galopa no dorso dos camelos. Espaço! Eis o homicida patenteado, o monopolista da morte, o júri, o juiz e o carrasco num só, cujas vítimas partem sempre sem as mercês do clero! Durante duzentas e cinquenta milhas, este demónio de ferro vai esfalfar-se pela região, berrando: "Mais! Mais! Mais!" Pudessem, em conluio, cinquenta montanhas cair-lhe em cima! E que caíssem também sobre o meu credor, esse pequeno demónio importuno que me assusta ainda mais mortalmente que todas as locomotivas: um patife de faces encovadas que também parece avançar sobre carris e que me atormenta mesmo ao Domingo, a caminho da igreja, e que ainda se vem sentar no mesmo banco que eu e que, a pretexto de ser educado e de me estender o livro de orações aberto na página certa, me enfia a sua letra de câmbio debaixo do nariz, mesmo a meio das minhas devoções, de tal modo que se mete entre mim e a redenção. Enfim, como é possível manter a calma nestas situações?
Não posso pagar àquele indivíduo horrível.
Diz-se, no entanto, que nunca houve tanto dinheiro, essa droga reles e inútil. Mas, maldito seja eu se consigo encontrar a tal droga, embora nunca um doente tenha necessitado tanto
do dito remédio. Estão a mentir. Não há assim
tanto dinheiro. Apalpem-me as algibeiras. Ah! É um pó que ia mandar ao bebé doente naquele casebre ali, onde mora o limpa-fossas irlandês. O bebé tem escarlatina. Dizem que o sarampo também abunda na região, tal como a varíola e a varicela, e que isto não é nada para as crianças que ainda mal têm dentes. E imagino, afinal, que, depois de passarem por tantas maleitas, muitas destas pobres crianças simplesmente quebram; pelo que tiveram sarampo, papeira, escarlatina, varicela, cólera, diarreias estivais e tudo o resto para nada! Ah!
Cá está o meu reumatismo a atacar-me o ombro direito. Apanhei-o uma noite em North River, num barco cheio até mais não, quando cedi a minha cama a uma senhora doente e me
deixei ficar na ponte, à chuva, até de madrugada. É esta a recompensa pela caridade! Então, ataca! Morde, reumatismo! Não atacarias
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com mais força se eu fosse um canalha e tivesse assassinado aquela pobre mulher em vez de a ajudar. Nem a dispepsia. É mais um mal que me atormenta.
Olá! Cá estão os bezerros, os pequeninos de dois anos, acabados de sair do estábulo e deixados nos prados depois de seis meses de ração fria. Bando miserável, na verdade! São certamente a ruína de um rude Inverno: ossos pontiagudos salientes como cotovelos e cobertos por uma substância bizarra que lhes secou nos flancos como a massa de um crepe. O pêlo está muito gasto em certos sítios; e ali, onde não está gasto nem parece um crepe, está o flanco áspero de um velho baú de crina comido pelas traças. Na realidade, não são seis bezerros de dois anos, mas seis abomináveis e velhos baús de crina que vagabundeiam pela pastagem.
Escutem! Em nome de todos os deuses, o
que é isto? Vejam! Os próprios baús de crina
espetam as orelhas, ao escutarem este ruído,
endireitam-se e olham para longe na campina
que ondula mais abaixo! Ouçam outra vez!
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Como é claro, musical, prolongado! Que triunfante acção de graças é o cantar do galo! "Glória a Deus nas Alturas!" É o que o galo diz, tão nitidamente como nunca outro galo o disse. Bem, bem, começo a sentir-me um pouco mais revigorado. Afinal, o nevoeiro não é assim tão denso. O sol começa a mostrar-se além: sinto-me mais quente.
Ouçam! Continua a cantar! Será que alguma
vez retiniu sobre a terra um cocorocó tão feliz?
Claro, estridente, cheio de bravura, cheio de
vigor, cheio de entusiasmo, cheio de alegria. Diz claramente: "Não te resignes nunca!" Meus amigos, é extraordinário, não é verdade?
Apercebi-me de que sem querer me tinha dirigido aos pequenos, aos vitelos, no meu entusiasmo, o que revela como, por vezes, podemos trair a nossa verdadeira natureza da forma
mais inconsciente. Pois a que criança de dois anos e a que vitelo iria fazer má cara e ainda por cima numa colina, quando aquele galo além nas terras baixas, privado de palavra e de razão, sem um cêntimo no bolso e sobre o qual a fome do dono fazia pender a todo o momento
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uma ameaça mortal, soltava um tal grito de poeta laureado a celebrar a gloriosa vitória de Nova Orleães?
Escutem! Recomeça! Meus amigos, tem de ser um galo chinês; nenhum galo dos nossos condados cantaria com um sotaque tão prodigiosamente exultante. Não há dúvida, meus amigos; é um galo chinês e da criação do próprio imperador da China.
No entanto, os meus amigos, os baús de crina que os meus clamores de triunfo tinham assustado ainda há pouco, entraram em debandada, agitando a cauda e dando cabriolas num estilo desajeitado que revelava bem que não tinham desenferrujado as patas nos últimos seis meses.
Ouçam! Novamente! De quem é este galo? Quem na região adquiriu um tão extraordinário galo chinês? Santo Deus! O meu sangue
agita-se, alvoraçado; sinto que estou a ficar louco. Como? Estou quase a saltar para aquele tronco apodrecido, a bater as asas e a soltar cocorocós? E pensar que ainda há pouco me
entregava à melancolia. E tudo isto graças a
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um simples canto do galo. Maravilhoso galo! Lentamente... o folgazão canta com vigor a esta hora. Porém, ainda é manhã. Vejamos como canta ao meio-dia e ao fim do dia. Pensando
bem, os galos cantam sobretudo ao princípio do dia. Afinal, a sua valentia não é eterna. Sim, sim, até mesmo os galos devem sucumbir ao infortúnio universal: rejubilantes no princípio,
mas sumidos no fim.
"Nas bonitas madrugadas, Nós, os belos galos orgulhosos, cantamos com alegria; Mas, quando a noite cai, cantamos mais baixinho, Pois, então, só nos resta loucura e melancolia."
Era naquele galo chinês que o poeta pensava quando escreveu estes versos! Mas, alto lá! Eis o cocorocó que volta a ouvir-se, dez vezes mais vigoroso, mais intenso, mais longo, mais exultante e espalhafatoso do que antes! Francamente, é tão bom como ouvir soar o grande sino da Catedral de São Paulo em dia de coroação! Até se devia arrear esse sino e colocar no 19
seu lugar este galo chinês. É o cocorocó ideal para alegrar Londres inteira, de Mile End (que é o fim de absolutamente nada) a Primrose Hill (onde, afinal, não há prímulas), e para dissipar o nevoeiro.
Pois bem, eis que tenho apetite para o pequeno-almoço desta manhã; é mesmo a primeira vez na última semana. Pensava ficar satisfeito com chá e pão com manteiga; mas vou beber café e comer ovos - não, cerveja stout e um bife. Quero algo que me alimente. Ah, lá está o comboio da cidade: carruagens brancas
rebrilhando entre as árvores como uma vela
de prata. Como fumega alegremente a sua chaminé! Os passageiros estão alegres. Lá está um lenço que se agita - vão à cidade comer ostras, ver os amigos e dar uma volta pelo circo. Vejam o nevoeiro além: como são serenas as suas volutas, as suas espirais que ondulam nas colinas entrecortadas por raios de sol! Vejam o fumo azulado que sobe desta aldeia, qual baldaquim sobre um leito nupcial. Como a campina resplandece, ali onde o ribeiro inundou
os prados! A erva do ano passado dá lugar à
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nova. Pois bem, este passeio revigora-me. Agora, para casa; regressemos para atacar o bife e abrir uma garrafa de cerveja stout, e, depois de bebida a cerveja (um litro de cerveja stout), sentir-me-ei mais ou menos tão forte como
Sansão. No entanto, penso: talvez o meu credor passe por aqui. vou dar uma volta pelo bosque e fazer um varapau. Juro que lhe dou uma paulada se ele hoje me incomodar.
Escutem! É o galo chinês que recomeça. "Bravo!" diz o galo chinês. "Um cacete!", diz o galo chinês.
Oh! Valente galo!
Estive toda amanhã com um humor agradável. O meu credor passou por cá por volta das onze horas. Disse ao meu criado Jack que o mandasse subir. Estava a ler Tristram Shandy e não podia descer em tal circunstância. Quando entrou, o canalha esquelético (ainda por cima, camponês) deu comigo sentado num cadeirão com os pés em cima da mesa, a garrafa de cerveja à mão e o livro aberto à minha frente.
- Sente-se - disse-lhe. - Estou a terminar este capítulo e depois dou-lhe atenção. Está
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uma manhã muito bonita. Ah, ah, uma boa piada a respeito do meu tio Toby e da viúva Wadman! Ah, ah, ah! Permita-me que lhe leia isto.
- Não tenho tempo. Tenho de fazer os meus
trabalhos do meio-dia.
- Para o diabo com os seus trabalhos! -
disse-lhe. - Não entorne o seu tabaco velho
nesta sala, ou ponho-o na rua.
- Senhor!
- Deixe-me ler-lhe esta passagem sobre a viúva Wadman. A viúva Wadman disse então...
- Está aqui a minha letra de câmbio, senhor.
- Maravilhoso. Queira fazer dela uma bola. Está na minha hora de fumar. Passe-me uma brasa, se faz favor. Uma daquelas que estão ali na lareira.
- A minha letra, senhor - disse o patife, empalidecendo de raiva e de estupefacção com os meus ares desacostumados (pois, até então, eu evitara olhar para o seu rosto lívido), mas suficientemente prudente para não revelar uma nesga da sua surpresa. - A minha
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letra, senhor - repetiu, inflexível, agitando-a
sob o meu nariz.
- Meu amigo - disse-lhe eu -, que manhã encantadora! Que bonito está o campo! Fez o obséquio de ouvir esta manhã o extraordinário canto do galo? Sirva-se de um copo da minha cerveja!
- Sua cerveja? Então pague as suas dívidas antes de oferecer às pessoas a sua cerveja!
- Acha então que, na verdade, eu não tenho cerveja - disse eu, levantando-me com fleuma. - Pois desengane-se. vou dar-lhe a provar staut de uma marca superior à Barclay
e Perkins.
Sem mais cerimónias, agarrei o insolente credor pelo cinto do casaco (e como o miserável tinha a barriga chata, não havia nada para agarrar) - agarrei-o, portanto, desse modo. Atei-o com um nó de marinheiro e, depois de lhe ter enfiado a letra entre os dentes, fiz-lhe
as honras do terreno amplo que rodeia o meu domicílio.
- Jake - disse eu -, há um saco cor de malva com batatas no alpendre. Trá-lo até aqui
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e atira-as a este vagabundo; veio mendigar umas moedas e eu sei que ele pode trabalhar, só que é um preguiçoso. Enxota-o, Jake.
Que cocorocó, meus velhos! O galo chinês soltou um canto de vitória tão perfeito, um tal laudamus, um toque de trombeta tão triunfal, que relinchei para comigo em grande estilo. Os
credores! Bah... teria enfrentado um exército
deles! O galo chinês era claramente da opinião que os credores só vinham ao mundo para apanharem pancada, serem enforcados, magoados, maltratados, estrangulados, espancados, zurzidos, afogados e chicoteados!
Depois de regressar a casa, quando a exaltação da minha vitória sobre o credor abrandou um pouco, pus-me a devanear sobre o misterioso galo chinês. Não pensara ouvi-lo tão perto da minha casa. Em que galinheiro de cavalheiro rico cantava ele? E o bicho não tinha encurtado as suas efusões tão facilmente como eu pensara. Este galo chinês cantava pelo
menos até ao meio-dia. Iria ele continuar o dia
todo? Decidi descobrir. Voltei a subir a colina.
Toda a região se banhava agora numa luz de
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júbilo. Uma verdura quente explodia à minha volta. As charruas trabalhavam. Aves vindas há pouco do sul cantavam e esvoaçavam alegremente. Até mesmo os corvos grasnavam com um certo fervor e pareciam uns tons menos negros que habitualmente.
Ouçam! É o galo! Como descrever o cocorocó deste galo chinês ao meio-dia? O canto da aurora era um murmúrio ao lado do seu. Era o cocorocó mais alto, prolongado e estranhamente musical que alguma vez espantou um mortal. Já tinha ouvido antes muitos cantos de galo e alguns muito bons; mas aquele! Tão suave e tão aflautado no seu próprio clamor, tão seguro até mesmo no encantamento da exultação, tão amplo que ascendia, aumentava, fendia os céus como se brotasse de uma goela de ouro e fosse atirado para longe! E também não era o cocorocó parvo e vaidoso de um galo noviço, ignorante do mundo e a estrear-se na vida com a audaciosa alegria que lhe confere a sua lastimável ignorância do futuro. Era o canto de um galo que não cantava irreflectidamente, o canto de um galo que sabia umas coisas; o canto de
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um galo que tinha enfrentado o mundo e vencera e que estava agora resolvido a cantar, mesmo que a terra se abrisse e os céus se abatessem. Era um canto de sabedoria, um canto invencível, um canto filosófico, o canto dos cantos.
Retemperado e impassível, regressei a casa. Voltei a pensar nas minhas dívidas e nos meus restantes problemas, nas infelizes revoltas dos povos oprimidos no estrangeiro, nos acidentes de caminho-de-ferro e de barco a vapor e até mesmo na perda do meu amigo querido, num êxtase de desafio tranquilo e afável que me deixou estupefacto. Parecia-me que, se encontrasse a Morte, a convidava para jantar e fazia na sua companhia um brinde às catacumbas
infernais sem diminuir o meu sentimento de
pura liberdade e segurança universal.
Ao anoitecer, voltei à colina para saber se o galo estaria alegre desde o nascer do sol até ao cair da noite. Falem-me de vésperas e de recolher obrigatório! O canto vespertino deste galo saía da sua formidável goela e estendia-se por
toda a região; ocupava-a qual Xerxes vindo do
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oriente com a sua hoste de fileiras emplumadas. Era um milagre. Santo Deus, que canto! Nessa noite, acreditem, o galo virou-se galhardamente no seu poleiro, vitorioso todo o dia, legando à noite os ecos de milhares de cocorocós.
Depois de um sono invulgarmente tranquilo e revigorante, levantei-me cedo e ergui-me da cama como uma mola de um banco de tipóia - ágil, elipsoidal, leve, álacre como uma piroga de balseiro - e fui até ao topo da colina, tão saltitante como uma bola de futebol. Ouçam! O galo chinês antecipou-se. O mundo pertence à ave que se levanta cedo - à ave que canta como um clarim -, folgazã, sonora, plena de júbilo. Nas quintas dispersas, outros galos cantavam, revezando-se. Mas não passavam de flautins ao pé de um trombone. O galo chinês fazia de repente a sua entrada e esmagava todos os cocorocós com uma única fanfarra imperiosa. Parecia que não se ralava com mais nada. Não respondia a outro canto, só cantava para si próprio, por sua conta, na altiva independência da solidão.
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Oh, valente galo! Oh, nobre galo chinês! Oh, ave tão justamente oferecida em holocausto pelo invencível Sócrates como testemunho da sua vitória final sobre a existência!
Juro pela minha alma que vou neste dia bendito descobrir este galo chinês e que o vou comprar, mesmo que para isso tenha de fazer mais uma hipoteca sobre as minhas terras.
Escutava agora com atenção, esforçando-me por perceber de que lado vinha o canto. Mas este enchia e saturava tão bem todo o ar, impregnava-o de uma tal superabundância que não se podia dizer exactamente de que ponto vinha todo aquele júbilo. Só pude perceber que vinha de Leste e não de Oeste. Avaliei a seguir a que distância se podia ouvir o canto de um galo. Naquela região tranquila e, ainda por cima, rodeada de montanhas, os sons eram audíveis
a grande distância. E, depois, as ondulações
?" do terreno, as saliências que as montanhas
faziam nos vales e nas colinas produzindo estranhos ecos e reverberações, multiplicando e acumulando ressonâncias que se notavam muito distintamente e eram muito confusas
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para o espírito. Onde estava então escondido este valente galo chinês, esta ave do jovial Sócrates, o helénico galo de combate que morreu impávido? Onde estava ele escondido? Ó nobre galo, onde estás tu? Canta mais, meu Bantam! Meu principesco, meu imperial galo chinês! Minha ave do imperador da China! Irmão do sol, primo do grande Júpiter! Canta uma última vez para eu saber onde moras!
O canto deste galo parece uma orquestra inteira de galos de todas as nações. Mas de onde vem? Ele está por perto, mas onde? Não havia forma de descobrir. Eu sabia somente
que vinha de Leste.
Depois do pequeno-almoço, peguei na minha bengala e parti para dar uma volta. Muitos cavalheiros eram donos de propriedades nos arredores e não tinha qualquer dúvida de que um destes prósperos senhores tinha investido uma nota de cem dólares nalgum galo chinês trazido recentemente pelo Vento Alísio, pelo Grão Branco ou pela Rainha dos Mares, pois devia ter sido um digno navio com um nome digno a trazer a fortuna de um tão digno galo! Decidi percorrer
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a região toda para encontrar o nobre estrangeiro; mas pensava que não seria má ideia pedir instruções nas mais humildes habitações, perguntar se, por acaso, não sabiam de um galo chinês recentemente importado, pertencendo a um desses cavalheiros colonos vindos da cidade; pois era evidente que nenhum agricultor pobre, nem um pobre de qualquer espécie, podia ser dono de um tal trofeu do oriente, que era, sem dúvida, um grande sino da Catedral de São Paulo em forma de goela de galo. Encontrei um homem velho que lavrava o seu campo perto de uma cancela.
- Meu amigo, ouviu um extraordinário canto de galo recentemente?
- Na verdade - disse com voz fanhosa -, não sei nada disso. A Sr.a Pattedoie tem um galo, o Sr. Barbon tem um galo e eu também tenho um e todos eles cantam. Mas não conheço nenhum que tenha um canto extraordinário.
- Então, bom dia - disse eu brevemente.
- Vê-se bem que não ouviu cantar o chantre do imperador da China.
Em breve, encontrei outro velhote que reparava um velho tapume em ruínas. Os barrotes estavam podres e, ao menor gesto do velhote, desfaziam-se em ocre amarelo. Faria bem
melhor se deixasse a vedação em paz ou, então, se arranjasse barrotes novos. Devo dizer a este propósito que uma das razões do triste facto de a parvoíce estar mais disseminada entre os lavradores que entre qualquer outra classe se deve a este hábito de querer reparar velhos tapumes apodrecidos em dias quentes e debilitantes de Primavera. É uma tarefa sem
esperança. É uma tarefa laboriosa e vã. É uma tarefa de partir o coração. Esforços enormes desperdiçados numa futilidade. Porque, enfim, haverá modo de manter vedações apodrecidas assentes em postes podres? Que truque permite recuperar e dar vigor a pedaços de madeira que congelaram e cozeram alternadamente durante sessenta Invernos e sessenta Verões?
É esta miserável obstinação em reparar vedações apodrecidas com as próprias traves podres que leva tantos lavradores ao asilo.
Viam-se claramente as primícias da idiotice no rosto do lavrador em questão. Diante dele,
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com sessenta varas, estendia-se um dos tapumes da Virgínia mais pateticamente deprimentes e desamparados que alguma vez vi na minha vida. Ao mesmo tempo, uma manada de novilhos no campo contíguo, como que possuída pelo demónio, dava continuamente cornadas naquela miserável e velha vedação que abria aqui e ali verdadeiras brechas, de tal maneira que o velhote tinha de pousar as ferramentas para os enxotar. Perseguia-os com um toro de madeira grande como a moca de Golias, mas leve como cortiça e que se desfazia em pó mal era brandido.
- Meu amigo - disse eu, dirigindo-me àquele infeliz mortal -, terá ouvido um extraordinário canto de galo recentemente?
Foi o mesmo que perguntar se tinha ouvido o relógio da morte a bater as mandíbulas. Lançou-me um longo olhar assustado, doloroso, indescritível e retomou sem dizer palavra os
seus trabalhos ridículos.
Como sou parvo, pensei, por fazer perguntas sobre um galo tão alegre a uma criatura tão
pouco jovial e difícil de animar!
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Continuei o meu caminho. Tinha agora descido a colina onde ficava a minha casa e, encontrando-me no sopé, já não ouvia o cocorocó do galo chinês que, sem dúvida, era demasiado agudo para que se ouvisse. Por outro lado, talvez o bicho estivesse a almoçar, a comer o seu trigo e a sua aveia, ou a dormir uma sesta, e, por isso, tivesse interrompido por instantes o seu regozijo.
Cruzei-me no caminho com um corpulento cavalheiro a cavalo - melhor, um opulento cavalheiro -, um homem muito rico que acabara de comprar alguns bons talhões de terra e mandara construir um solar, flanqueado por um galinheiro com bom aspecto cuja fama se espalhara por toda a região. Eis então, pensei eu, o proprietário do Xangai.
- Senhor, desculpe-me - disse-lhe eu -, mas sou seu vizinho e queria perguntar-lhe se, por acaso, possui galos chineses?
- Oh sim, tenho dez galos chineses.
- Dez! - exclamei estupefacto - E todos
eles cantam?
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- Todos sem excepção cantam muito bem. Não me interessava um galo que não cantasse.
- Poderia mostrar-me esses galos?
- com todo o gosto. São o meu orgulho;
custaram-me seiscentos dólares.
Caminhando ao lado do cavalo, perguntava-me se seria possível que eu tivesse tomado os cocorocós harmoniosamente combinados de dez galos chineses pelo canto sobrenatural de um único galo chinês solitário.
- Senhor - recomecei eu -, há algum entre os seus galos chineses que ultrapasse de longe todos os outros pelo vigor, pela musicalidade e pelo efeito inspirador do seu canto?
- Eles cantam de modo bastante semelhante,
creio - respondeu-me com cortesia. - Não sei distingui-los.
Começava a pensar que afinal o meu nobre chantre talvez não estivesse na posse daquele cavalheiro rico. Entrámos, todavia, no seu galinheiro e vi os seus galos chineses. Devo confessar que nunca tinha até então pousado os olhos naquela variedade de aves de capoeira
de importação. Ouvira dizer que se gastavam
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quantias enormes para as arranjar e que o seu tamanho também era enorme, de tal modo que me tinha convencido, não sei como, que tinham uma beleza e um brilho proporcionais tanto ao seu tamanho como ao seu preço. Qual não foi portanto a minha surpresa ao ver dez monstros cor de cenoura, sem o mais pequeno vestígio de plumagem esplendorosa! Decidi imediatamente que o meu galo real não estava entre aqueles e que era absolutamente impossível que fosse um galo chinês - se é que aquelas aves gigantescas eram espécimes fiéis do verdadeiro galo chinês.
Caminhei o dia todo; jantei numa quinta onde descansei um pouco, inspeccionei várias capoeiras, interroguei diversos proprietários de criação, apurei o ouvido a diversos cocorocós
- mas sem descobrir o meu misterioso chantre. Tinha mesmo caminhado até tão longe e por tantos desvios, que já não o ouvia cantar. Começava a desconfiar que o galo não passava de um simples turista na região, que se fora embora às onze horas no comboio do sul e que fazia agora ouvir o seu canto de júbilo algures
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nas margens verdejantes do estreito de Long Island.
Mas uma vez mais, na manhã seguinte, ouvi a inspiradora fanfarra; mais uma vez senti o sangue a correr mais depressa nas veias; mais uma vez me senti superior a todos os males da existência; uma vez mais tive vontade de pôr o meu credor na rua. Mas este último, zangado com a recepção na última visita, manteve-se longe; sem dúvida estava ofendido. Que imbecil, levar a peito uma brincadeira inofensiva!
Passaram vários dias durante os quais fiz diversas excursões pelas regiões circundantes; mas foi em vão que procurei o galo. No entanto, ouvia-o da colina e às vezes de casa e ainda, por vezes, no silêncio da noite. Se me acontecia reincidir nos meus humores negros, de imediato, ao som daquele cocorocó exultante e rebelde, também a minha alma se transformava em chantre, batia as asas e lançava um alegre
desafio a todas as dores deste mundo.
Enfim, algumas semanas depois, tive necessidade de fazer outra hipoteca sobre a minha terra para pagar determinadas dívidas, entre
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as quais a que tinha para com o meu perseguidor que acabava de intentar uma acção contra mim. A notificação foi-me entregue da forma mais insultuosa. Acabara de me regalar numa sala privada da taberna da aldeia com uma garrafa de cerveja de Filadélfia com um pedaço de queijo de Herkimer e um pãozinho; e, depois de ter avisado o patrão, que é meu amigo, que pagaria logo que recebesse as próximas cobranças, dirigi-me ao bengaleiro do bar onde tinha pendurado o meu boné para pegar num bom charuto quando subitamente encontrei o charuto embrulhado na notificação. Ao desenrolar o charuto, desenrolei simultaneamente a notificação e o polícia que estava ali ao lado desbobinou estas palavras em voz grossa:
- Queira tomar conhecimento! - disse ele,
antes de acrescentar num murmúrio: - Depois, meta-a no seu cachimbo e fume-a!
Voltei-me bruscamente para os cavalheiros que estavam presentes no bar.
- Senhores - disse-lhes eu -, será esta
uma forma digna, ou até mesmo legal, de entregar uma notificação? Vejam só!
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Todos, sem excepção, foram de opinião de que era altamente deselegante da parte do polícia aproveitar-se assim de um homem que estava a comer cerveja e queijo para ter a incorrecção de lhe enfiar uma notificação no chapéu. Era mesquinho; era cruel, pois o choque repentino de um estoiro daqueles, imediatamente a seguir ao almoço, não podia deixar de comprometer a boa digestão do queijo reconhecidamente mais difícil que a do manjar-branco.
Quando cheguei a casa, li a notificação e senti uma pontada de melancolia. Mundo cruel! Mundo cruel! Aqui estou eu, um bom homem como não há melhor - hospitaleiro, de coração aberto, excessivamente generoso: e o Destino recusa-me a fortuna que me permitiria espalhar as minhas boas acções pela região! Pior, quando tantos sovinas e saqueadores rebolam esterilmente sobre ouro, eu, coração nobre como sou, recebo intimações! Baixei a cabeça e senti-me abandonado, injustiçado, maltratado e incompreendido. Numa palavra, miserável.
Ouçam! O cocorocó cheio de glória e de desafio soou como um clarim, sim, como o repicar de um alegre trovão! Meu Deus, como me levantou o moral! Fiquei muito direito! Sim, na verdade, como que sobre andas!
Oh, o nobre galo!
Tão claramente quanto era possível a um galo, ele dizia: "Que o mundo se desfaça com tudo o que contém. Tu, sê alegre e nunca te resignes. Que vale o mundo ao pé de ti? Não é então nada mais que um torrão de barro? Sê alegre!"
Ah! O nobre galo!
Mas, querido e glorioso galo, disse para comigo, não é assim tão fácil mandar este mundo desfazer-se; não é assim tão fácil estar alegre quando nos enfiam intimações no chapéu ou na mão.
Escutem! Outro cocorocó. Tão claramente
quanto o galo podia, dizia: "Para o Diabo a intimação e para o Diabo o engraçado que a enviou! Se não tens bens nem dinheiro, pois bem, dá uma sova a esse engraçado e diz-lhe que não tens qualquer intenção de lhe pagar. Sê alegre!"
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Foi portanto assim - sob as imperiosas intimações deste galo - que acabei por fazer mais uma hipoteca sobre a minha propriedade e que saldei todas as minhas dívidas, juntando-as a essa única obrigação suplementar. Tendo deste modo encontrado paz, parti de novo em busca do meu nobre galo; mas em vão, apesar de o ouvir todos os dias. Comecei a pensar que devia haver alguma fraude neste misterioso caso: algum ventríloquo prodigioso dado a alegres travessuras que rondasse o celeiro, a cave ou o telhado. Mas não; que ventríloquo teria soltado um cocorocó tão heroicamente celeste?
Por fim, numa bela manhã, recebi a visita de um homem singular que, no mês de Março, me tinha serrado e rachado lenha - ao todo uns trinta molhos - e que vinha agora receber o seu pagamento. Era, repito-o, um homem singular. Era alto e magro, com um rosto comprido e triste, e no entanto, tinha um olhar risonho que contrastava estranhamente com a sua face. Tinha um ar sério, mas nada abatido. Usava um comprido casaco cinzento coçado e um grande chapéu amachucado. Este homem
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tinha-me serrado a lenha a um tanto cada molho. Ficava a serrar o dia todo, em plena tempestade de neve, sem pestanejar. Nunca falava a não ser que lhe dirigissem a palavra. Serrava, era tudo. Serrava, serrava, serrava; nevava,
nevava, nevava. A serra e a neve avançavam juntas, como dois elementos da natureza. No primeiro dia em que este homem veio, trouxe o jantar com ele e começou a comê-lo sentado num banco, sob a tempestade de neve. Vi-o da minha janela onde estava a ler A Anatomia da Melancolia, de Burton. Saí de casa, em correria e de cabeça destapada.
- Deus do Céu! - exclamei. - Que está a fazer? Entre. É isso o seu jantar?
Tinha um naco de pão duro e uma fatia de carne de vaca salgada envolvida num jornal molhado e engolia os bocados com um pouco de neve que deixava derreter na boca. Mandei o imprudente entrar, instalei-o ao canto da lareira e servi-lhe um prato de porco grelhado com favas regado com uma caneca de sidra.
- Ouça lá - disse-lhe -, nunca mais me traga para aqui os seus jantares ensopados.
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Trabalha à tarefa, é sabido, mas ofereço-lhe as refeições.
Expressou os seus agradecimentos de forma calma e digna, mas não sem gratidão, e despachou a refeição para sua satisfação e também para a minha. Gostava de o ver engolir a caneca
de sidra como um homem. Olhava-o com respeito. Quando me aproximava do banco que ele trouxera, para discutir o trabalho com o homem, era com um certo respeito e reserva. Intrigado com o seu aspecto singular, impressionado com a sua extraordinária aplicação a serrar - uma das ocupações mais fastidiosas e odiosas aos olhos da maior parte dos homens -, procurava muitas vezes descobrir quem ele era, que tipo de vida levava, onde tinha nascido e por aí fora. Mas ele não dizia palavra. Vinha serrar a minha lenha e comer os meus jantares - eu oferecia-lhos com todo o gosto -, mas não para tagarelar. Ao princípio, sentia um certo ressentimento, dadas as circunstâncias, por aquele silêncio impertinente. Mas, pensando bem, passei a respeitá-lo ainda mais. Falava-lhe com
um respeito e uma deferência ainda maiores.
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Concluí intimamente que aquele homem tinha passado por momentos difíceis; que tinha recebido neste mundo mais que um duro golpe, que tinha um temperamento solene e era um homem ponderado; que vivia tranquila, decente e frugalmente e que era, apesar de pobre, muito respeitável. Por vezes, até o imaginava como diácono ou ancião de alguma pequena igreja do campo. Pensava que até seria possível vê-lo como candidato à presidência dos Estados Unidos; teria dado um grande defensor dos oprimidos. Chamava-se Merrymusk. Muitas vezes achei este nome demasiado jovial para um ser que o era tão-pouco. Perguntei às pessoas se conheciam Merrymusk. Mas só ao fim de um certo tempo soube alguma coisa a seu respeito. Parecia que tinha nascido em Maryland e que vivera durante muito tempo nas redondezas, sem lar e, até há dez anos, sem economias, apesar de homem inocente. Era um homem que durante um mês trabalhava arduamente, com
uma sobriedade espantosa, e que depois gastava todo o seu salário numa só noite de deboche. Fora marinheiro na juventude e tinha
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desertado do navio em Batávia, antes de contrair uma febre e ter estado quase a morrer. Mas tinha-se curado, voltara a embarcar, regressara à região onde todos os seus amigos tinham morrido e rumara a norte, ao interior das terras, onde desde então vagueava. Tinha-se casado nove anos antes e tinha agora quatro filhos. A mulher ficara completamente inválida; um dos filhos sofria de hidrartrose e os outros eram doentes. Ele e a família moravam numa cabana, num pedaço de terreno estéril e recuado, não longe do caminho-de-ferro, junto às faldas montanhosas. Tinha comprado uma bonita vaca para poder ter bastante leite bom para dar aos filhos; mas a vaca morrera ao parir e não tinha com que comprar outra. No entanto, a família nunca tinha passado fome. Trabalhava arduamente e levava-lhes comida.
Ora, como disse, tendo serrado a minha lenha algum tempo antes, Merrymusk vinha agora reclamar o pagamento.
- Meu amigo - perguntei-lhe -, conhece por aqui um cavalheiro que tenha um galo extraordinário?
Os olhos do serrador brilharam.
- Não conheço nenhum cavalheiro - respondeu ele - que tenha um galo verdadeiramente extraordinário.
Ora, pensei eu, Merrymusk não é homem para me esclarecer. Receio não vir a descobrir este extraordinário galo.
Não tendo trocos suficientes para pagar a Merrymusk, paguei-lhe quase tudo e disse-lhe que passaria por casa dele dentro de um ou dois dias para lhe dar o resto. Saí, então, de
minha casa uma bela manhã com essa intenção. Tive bastante dificuldade em encontrar o melhor caminho até à cabana dele. Parecia que ninguém sabia exactamente onde ficava.
Situava-se numa zona remota, entre uma montanha densamente arborizada (a que chamo monte Outubro devido ao aspecto excessivamente enfeitado que tem nesse mês) e uma charneca cheia de arbustos que o caminho-de-ferro atravessava em linha recta como um i, atormentando várias vezes por dia a infeliz 45
cabana com o espectáculo de tanta beleza, distinção, elegância, saúde, baús de ouro e prata, artigos de retrosaria e de mercearia, jovens casais e esposos felizes, passando a toda a velocidade defronte daquela porta solitária. Sem tempo para parar; num clarão chegam e noutro partem. E o comboio perde-se de vista, como se esta parte do mundo tivesse sido feita apenas para ser cruzada a grande velocidade não para ser habitada. E era mais ou menos tudo o que a cabana via daquilo a que chamamos a vida.
Apesar de um tudo-nada perplexo, eu sabia mais ou menos a direcção da cabana e avancei. À medida que avançava, fiquei surpreendido ao ouvir o misterioso galo a cantar cada vez mais distintamente. Será que, pensei eu, um cavalheiro que possui um galo chinês mora numa região tão solitária e desolada? Sempre mais alto, sempre mais perto, soava o clarim cheio de glória e de desafio. Talvez me tenha enganado no caminho para casa do lenhador, pensei, mas, graças a Deus, parece que estou na pista deste galo extraordinário. Fiquei encantado com este feliz acaso. Segui o meu caminho enquanto o seu canto ressoava, a intervalos, da forma mais sedutora, jovial e esplêndida; e o cocorocó parecia vir de um local cada vez mais próximo. Por fim, emergindo de um grupo de sabugueiros, deparei com a mais resplandecente criatura que alguma vez recompensou o olhar de um homem.
Um galo que parecia uma águia com penas de ouro; um galo que parecia menos um galo que um marechal do exército; um galo que parecia menos um galo que o almirante Nelson equipado com todas as suas armas brilhantes e de pé na ponte do Vanguard antes da batalha; um galo que se parecia menos com um galo que com o imperador Carlos Magno vestido com a púrpura do seu trono em Aix-la-Chapelle.
Que galo!
Tinha uma figura nobre e um porte altivo. Era vermelho, dourado e branco. O vermelho só se encontrava na sua crista poderosa e simétrica, parecida com o elmo de Heitor como se vê desenhado nos escudos antigos. A plumagem
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era de neve com nervuras de ouro. Caminhava
diante da cabana como um par do reino: a crista levantada, o peito espetado, as grandes penas refulgindo ao sol. O seu porte era prodigioso. Dir-se-ia uma nobre personagem vinda de algures. Dir-se-ia um rei do Oriente numa sumptuosa ópera italiana.
Merrymusk saiu pela porta e deu alguns passos.
- Desculpe, mas este não é o Signor Beneventano?
- Senhor?
- É o galo - respondi um pouco envergonhado.
Na verdade, o meu entusiasmo levara-me a cometer uma imprudência bastante tola. Fizera uma alusão um tanto erudita a um homem inculto. Portanto, quando a sua honesta incompreensão me deu a entender o meu lapso, senti-me parvo; mas desembaracei-me dizendo: é o galo.
Tinha estado na cidade no Outono anterior
e quis a sorte que assistisse a uma representação da ópera italiana. Havia nessa ópera uma
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personagem real cujo papel era representado por um certo Signor Beneventano-um homem alto, de figura imponente, vestido com ricos tecidos que lembravam uma plumagem e cujo porte cheio de majestade e desdém era notável. O Signor Beneventano parecia estar prestes a tombar sob o peso excessivo da sua soberba. E o porte orgulhoso deste galo lembrava até ao equívoco o andar altivo com que o Signor Beneventano pisava o palco.
Caluda! O galo deteve-se subitamente, levantou a cabeça mais ainda, eriçou as penas, pareceu inspirado e soltou um vigoroso cocorocó. O monte Outubro repetiu-o, outros montes devolveram-no, outros ainda recuperaram-no; por fim, os seus ecos cobriram toda a região. Percebia agora claramente como ouvira na minha longínqua colina este ruído entusiasmante.
- Santo Deus! É você o dono do galo? O galo é seu?
- É o meu galo - disse Merrymusk com um ar de alegria matreira estampado no seu comprido e solene rosto.
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- Onde é que o arranjou?
- Quebrou a casca aqui. Fui eu que o criei.
- Você?
Ouçam! Mais outro cocorocó. Era de acordar os fantasmas de todos os pinheiros e abetos alguma vez abatidos na região. Que galo maravilhoso! Depois do seu cocorocó, o animal
retomou a sua passada larga rodeado por um
bando de galinhas, suas admiradoras.
- Quanto quer pelo Signor Beneventano?
- Senhor?
- Este galo mágico! Quanto quer por ele?
- Não está à venda.
- Dou-lhe cinquenta dólares por ele.
- Ora!
- Cem!
- Pff!
- Quinhentos!
- Bah!
- Mas você não é pobre?
- Isso não. Não possuo este galo e não recusei imediatamente vendê-lo por quinhentos dólares?
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- Isso é verdade - respondi, muito pensativo. - É um facto. Então não o quer vender?
- Não.
- Quereria dá-lo?
- Não.
- Quer então conservá-lo - gritei furioso.
- Sim.
Por instantes, olhei para o galo com admiração e para o homem com espanto. Por fim, senti redobrar a minha admiração por um e o meu respeito pelo outro.
- Então não entra? - perguntou-me Merrymusk.
- Não podemos convencer o galo a vir connosco? Respondi.
- Sim. Trombeta! Por aqui meu rapaz, por aqui!
O galo virou a cabeça e, com grandes passadas, dirigiu-se a Merrymusk.
- Anda!
O galo seguiu-nos e entrou na cabana.
- Canta!
O telhado vibrou.
Ó nobre galo!
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Voltei-me para o meu hospedeiro, em silêncio. Estava sentado em cima de uma velha mala toda amolgada, vestido com o seu esfarrapado casaco cinzento remendado nos cotovelos e nos
joelhos e com um chapéu lamentavelmente
deformado. Percorri a divisão com o olhar. No
tecto, traves nuas de onde pendiam robustas peças de carne seca. Um chão de terra batida, batatas num canto e, no outro, um saco de farinha de milho. Na outra ponta, estava uma manta estendida ao longo da habitação; mais
atrás ouviam-se as vozes sofredoras de uma
mãe e dos seus filhos. Mas parecia não haver qualquer queixa naquele sofrimento.
- A Sr.a Merrymusk e os seus filhos?
- É verdade.
Olhei para o galo. Mantinha-se majestosamente no meio da divisão. Parecia um Grande de Espanha surpreendido por uma chuvada e que se tivesse refugiado numa barraca de camponês. Emanava de si a estranha impressão de um contraste sobrenatural. Irradiava glória naquela cabana; transfigurava-lhe a miséria.
Transfigurava a velha mala amolgada e o casaco
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cinzento rasgado e o chapéu amolgado. Exaltava até as vozes que se elevavam em tons dolorosos atrás do pano.
- Ó pai! - exclamou uma vozinha doentia.
- mande o Trombeta cantar outra vez.
- Canta - gritou Merrymusk.
com um movimento brusco, o galo fez pose.
O telhado estremeceu.
- Isto não incomoda a Sr.a Merrymusk e as crianças doentes?
- Canta mais, Trombeta.
O telhado estremeceu.
- Então isto não os incomoda?
- Não os ouviu a pedi-lo?
- Como é que o cocorocó agrada à sua família? - interroguei. -O galo é notável e dotado de uma voz igualmente notável; mas poder-se-ia pensar que não é exactamente o género de bicho que convém a um quarto de doente. A situação agrada-lhes verdadeiramente?
- Será que não lhe agrada a si? Será que
isto não lhe faz bem? Não será nada exaltante?
Acha que isto não dá coragem e ânimo perante o desespero?
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- Tudo isso é verdade - disse eu, tirando o
chapéu com profunda humildade, face ao espírito corajoso que aquele casaco sórdido escondia.
- Mas, mesmo assim - retomei ainda tomado por uma certa apreensão -, um cocorocó tão poderoso, tão maravilhosamente tonitruante... talvez não seja bom para uma inválida e talvez atrase a sua convalescença.
- Canta agora o melhor que puderes, Trombeta.
Dei um salto na cadeira. Este galo assustava-me como se fosse um qualquer arcanjo destruidor do Livro do Apocalipse. Parecia exultar com a ruína da perversa Babilónia ou com o triunfo de Josué, o Justo, no vale de Ascalon.
Assim que recuperei a compostura, veio-me ao espírito uma curiosidade que resolvi satisfazer.
- Merrymusk, quer apresentar-me a sua
mulher e os seus filhos?
- Sim. Mulher, o senhor quer entrar.
- É bem-vindo - respondeu uma voz fraca. Depois de atravessar a cortina via-se um rosto humano que repousava, desfeito, mas habitado por uma alegria estranha; o corpo, coberto por uma colcha e por um casaco velho, parecia demasiado diminuído para que se pudesse adivinhar através destes obstáculos. Uma criança pálida estava sentada à sua cabeceira e cuidava dela. Numa outra cama, estavam deitadas lado a lado três crianças, mais três caras pálidas.
- Oh, pai, não temos nada contra o senhor, mas queremos ver o Trombeta também.
Ao ouvir o seu nome, o galo passou por detrás do pano e foi-se empoleirar na cama das crianças. Os seus olhos mortiços fixaram-no com um encantamento selvagem, místico. A sua plumagem radiosa era como um sol que
os tivesse aquecido.
- É mais forte que um boticário, não? disse Merrymusk - Aqui está o Dr. Galo em pessoa.
Retirámo-nos e voltei a sentar-me na cadeira,
perdido nos pensamentos que aquela estranha família me inspirava.
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- Você parece-me um rapaz muito independente! - disse-lhe por fim.
- E você, não creio que seja um tolo e nunca acreditei que fosse. Senhor, você é um homem de ouro.
- Há alguma hipótese de a sua mulher se curar? - perguntei, tentando modestamente desviar a conversa.
- Não.
- E as crianças?
- Também não.
- Então, a vida deve ser dolorosa para cada
um de vós. Esta solidão, esta cabana, trabalhos penosos, uma época difícil...
- Não tenho o Trombeta? É ele que me dá coragem. Ele canta em qualquer altura; canta nas trevas mais profundas: glória a Deus nas alturas! É isto que ele canta, continuamente.
- Era esse exactamente o sentido que eu atribuía ao seu canto, Merrymusk, quando o ouvi da minha colina pela primeira vez. Imaginava um rico nababo, dono de um galo chinês
valioso. Nunca pensei que um pobre homem
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como você possuísse um galo assim tão vigoroso e de raça doméstica.
- Um pobre homem como eu? Porque me chama pobre? Não será o meu galo que espalha glória numa terra que, sem ele, seria ignóbil, mesquinha e ínfima? O meu galo não lhe deu coragem? E eu ofereço-lhe toda esta glória de graça. Sou um grande filantropo. Sou um homem rico, um homem muito rico e feliz. Canta, Trombeta.
O telhado estremeceu.
Regressei a casa, profundamente absorto.
Não estava totalmente convencido da razão do
ponto de vista de Merrymusk, embora tivesse uma profunda admiração por ele. Ainda reflectia quando cheguei à minha porta e voltei a ouvir o galo cantar. Chegava. Merrymusk tinha razão.
Oh nobre galo! Oh, nobre coração!
Não o voltei a ver durante algumas semanas; mas, pelo som deste cocorocó pleno de glória e de alegria, calculava que em casa dele prosseguiam a sua vida quotidiana. Quanto a mim, o meu espírito estava sempre propenso à
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alegria. O galo continuava a animar-me. Vi mais uma hipoteca sobre a minha plantação; mas contentei-me em comprar mais uma dúzia de garrafas de cerveja stout e de cerveja preta de
Filadélfia. Alguns parentes meus faleceram; não fiz luto, mas durante três dias bebi mais cerveja preta do que stout, devido à sua cor mais escura. Ouvi o galo cantar no momento em que recebi estas funestas notícias.
- Bebo esta cerveja à tua saúde, ó nobre galo!
Pensava fazer outra visita a Merryrnusk pois já há algum tempo que não o via nem tinha notícias dele. Quando me aproximei da cabana, parecia estar deserta. Tive um estranho pressentimento. Mas o galo cantou no interior e a minha ansiedade desapareceu.
Bati à porta. Uma voz fraca convidou-me a entrar. A cortina já não estava puxada; toda a casa era agora um hospital. Merryrnusk jazia sobre vários farrapos velhos; a mulher e as crianças estavam de cama. O galo estava empoleirado num velho arco de barrica que balouçava
sobre o espigão, no meio da cabana.
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- Está doente, Merrymusk - disse-lhe num
tom triste.
- Não, estou bem - respondeu fracamente.
- Canta, Trombeta.
Estremeci. Esta alma tão forte neste corpo tão fraco enchia-me de pavor. Mas o galo cantou.
O telhado estremeceu.
- Como está a Sr.a Merrymusk?
- Bem.
- E as crianças?
- Bem. Muito bem!
Disse as últimas palavras numa espécie de êxtase selvagem, como se triunfasse na calamidade. Foi demais. A cabeça descaiu novamente. Dir-se-ia que um guardanapo branco lhe caia sobre o rosto. Merrymusk tinha morrido.
Um medo atroz apoderou-se de mim.
Mas o galo cantou.
O galo sacudiu a plumagem como se cada uma das suas penas fosse um estandarte. O galo estava pendurado no tecto da cabana tal como, outrora, os estandartes na Catedral de
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São Paulo. O galo inspirava-me uma admiração extrema e terrível.
Aproximei-me da cabeceira da mulher e das crianças. Viram o meu aspecto e o meu estranho medo; souberam o que tinha acontecido.
- O meu valente marido morreu agora mesmo - disse a mulher num murmúrio. - Diga-me a verdade.
- Está morto - respondi-lhe. O galo cantou.
Desfaleceu sem soltar um suspiro, morta por simpatia e por um grande amor.
O galo cantou.
O galo sacudiu da sua plumagem de ouro uma nuvem de centelhas. O galo parecia arrebatado por um alegre e benévolo êxtase. Desceu do aro da barrica com um salto, com grandes passadas majestosas aproximou-se do monte de trapos velhos onde jazia o velho lenhador e plantou-se a seu lado como a figura de um brasão. Depois lançou um único cocorocó, longo, musical, triunfante, definitivo, com a goela bem esticada como se quisesse com aquela fanfarra enviar a alma do seu dono direitinha
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para o sétimo céu. Depois caminhou, como um rei, até à cama da mulher. Outro cocorocó brotou para o céu, exultante, e uniu-se ao primeiro.
A palidez das crianças transformou-se em resplendor. Os seus rostos brilhavam com uma luz celeste sob a sujidade e sob a porcaria. Dir-se-iam filhos de reis e de imperadores disfarçados. O galo saltou para a cama deles, sacudiu-se, e voltou a cantar. Parecia decidido a cantar até que as almas abandonassem aqueles corpos destroçados e a reunir a família toda sem demora nas regiões do éter. Parecia que as crianças apoiavam os seus esforços. Um desejo de libertação vindo de muito longe, profundo, intenso, transformou-os em seres espirituais perante os meus olhos. Vi anjos onde eles repousavam.
Estavam mortos.
O galo sacudiu a plumagem por cima deles. O galo cantou. Era naquele momento como que um viva, como um hip-hip-hurra! Saiu da cabana. Segui-o. Voou até ao cume do edifício, estendeu as grandes asas, fez soar uma única nota sobrenatural e caiu a meus pés.
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O galo estava morto.
Se visitarem hoje esta região de colinas, vêem perto do caminho-de-ferro, mesmo em baixo no monte Outubro, do outro lado do pântano, uma pedra tumular onde o buril gravou em vez de caveira e ossos cruzados, um vigoroso galo cantador e estas palavras por baixo:
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
Ó morte, onde está a tua vitória?
O lenhador e a família repousam neste sítio, na companhia do Signor Beneventano; e fui eu que os enterrei e que levantei esta pedra, expressamente talhada por encomenda. Desde então, nunca mais reincidi nos meus
humores negros e canto de manhã e à noite, em todas as circunstâncias, um cocorocó perpétuo.
Cocorocó! Ó! Ó! Ó!
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FELIZ INSUCESSO
Um conto do rio Hudson
Tinha combinado encontrar-me com o meu velho tio de manhã, à beira-rio, às nove horas em ponto. A canoa estaria pronta a partir e seria guiada pelo seu velho criado negro de cabeça grisalha. Até então, a natureza exacta da prodigiosa experiência permanecia para todos um mistério, excepto para aquele que tinha concebido o projecto.
Fui o primeiro a chegar ao local. A aldeia ficava longe, a montante, e o sol de Verão no interior das terras era já opressivo àquela hora. Em breve vi o meu tio a aproximar-se pelo meio das árvores, sem o chapéu, e a limpar a testa, enquanto mais atrás, ao longe, caminhava vacilante o pobre velho Yorpy, trazendo às costas um objecto enigmático.
- Hurra! Vamos, coxeia lá, Yorpy! - gritava
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o meu tio, voltando-se de vez em quando impacientemente .
Quando o negro, coxeando sempre, chegou à canoa, apercebi-me de que o tal objecto enigmático se tinha transformado numa enorme caixa oblonga de aspecto miserável, hermeticamente fechada. Esta caixa inexpressiva como uma esfinge aumentava o mistério no meu espírito.
- É esse o misterioso aparelho? - perguntei eu, estupefacto. - Eh, não passa de um velho baú de tecidos amolgado e pregado! É realmente essa coisa, meu tio, que lhe vai render um milhão de dólares antes do fim do ano? É
apenas uma caixa de cinzas velha e lastimável!
- Põe-na barca! - rugiu o meu tio, dirigindo-se a Yorpy sem dar atenção ao meu juvenil desdém. - Põe-na lá dentro, querubim de cabelo grisalho. Mas com cuidado! Se essa caixa rebenta, é uma fortuna eterna que desaparece.
- Rebenta? Desaparece? - disse eu, muito assustado. - Espero que não esteja cheia de combustível! Mais vale ir depressa para aquele lado do barco!
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- Sossega, grande tolo! - gritou o meu tio outra vez. - Trepa a bordo, Yorpy, e agarra-te à caixa com unhas e dentes enquanto me afasto para o largo. Devagar! Devagar, negro cretino! Presta atenção ao outro lado da caixa! Queres
dar cabo dela?
- A caixa que vá pró diabo que a carregue
- balbuciou o velho Yorpy que era uma espécie de holandês de África - Há dez anos qu'eu faço o melhor que posso.
- Então, partamos. Pega num remo, rapaz; tu Yorpy, agarra a caixa com força. Cá vamos nós. Devagar! Devagar! Tu, Yorpy, pára de sacudir a caixa. Devagarinho! Devagarinho! Está ali a aparecer um grande tronco. Faz força agora. Hurra! Finalmente temos profundidade! Agora com coragem, rapaz, e faz-te à ilha.
- À ilha? - admirei-me eu. - Não há nenhuma ilha nestas paragens.
- Há uma, dez milhas acima da ponte disse o meu tio com determinação.
- Dez milhas! Vamos arrastar este velho baú
de trapos durante dez milhas rio acima com
este sol escaldante?
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- Tudo o que tenho a dizer - respondeu o meu tio com firmeza - é que vamos a caminho da ilha de Quash.
- Misericórdia, meu tio! Se eu tivesse sabido
que era preciso remar durante dez longas milhas sob este sol ardente, o tio não me teria
convencido tão facilmente. O que está dentro do baú? Pedras da calçada? Veja como a barca se afunda com o peso. Não vou ajudá-lo a carregar uma caixa cheia de pedras durante dez milhas. Que interesse tem arrastar pedras da calçada?
- Ouve bem, palerma - disse o meu tio, parando de remar. - Pára de remar, estás a ouvir? bom. Se agora não queres que se reflicta em ti a glória da minha experiência, se a perspectiva de partilhar a fama imortal te deixa absolutamente indiferente, então, digo-te que, se não tens interesse em assistir à primeira grande experiência do meu Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático para dragar pântanos e lameiros, à razão de um talhão por hora, e transformá-los em campos mais fecundos que os de Genessee, se, repito, daqui a muito tempo, quando a
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minha velha pessoa estiver morta e enterrada, meu rapaz, não quiseres ter uma coisa tão bela para contar aos teus filhos e aos teus netos, podes desembarcar agora mesmo.
- Oh, meu tio, eu não queria...
- Nem uma palavra, senhor! Yorpy, pega no remo dele e ajuda-me a levá-lo para a margem.
- Mas, meu querido tio, garanto-lhe que...
- Nem uma palavra, senhor; manifestou abertamente o seu desprezo pelo Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático. Yorpy! Fá-lo desembarcar, Yorpy. O fundo aqui está mais acima. Salta para a água, Yorpy, e acompanha-o até à margem.
- Meu querido, meu amável, meu generoso tio, peço que me perdoes só desta vez e não volto a dizer palavra sobre este aparelho.
- Não voltas a dizer palavra? Quando a minha finalidade, o meu objectivo declarado é torná-lo célebre! Ele que saia do barco, Yorpy.
- Ora esta! Meu tio, recuso-me a largar este remo. Embarquei neste negócio e tenciono ficar. Não vai despojar-me da minha parte da glória.
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- Ah, até que enfim. Aí está uma coisa razoável. Podes ficar, rapaz. Agora, força.
Ficámos um instante em silêncio, dando
remadas vigorosas e regulares. Afinal, corria o risco de passar a vau uma segunda vez.
- Sinto-me feliz, querido tio, por me teres revelado ao menos a natureza e o objectivo da tua grandiosa experiência. Trata-se de drenar efectivamente os pântanos; uma obra, querido tio, em que te bastará ter êxito (e sei que terás) para te garantir a glória que foi recusada a um imperador romano. Ele tentou secar os pântanos Pontinos, mas foi um fracasso.
- O mundo avançou muito desde essa época
- disse orgulhosamente o meu tio. - Se esse imperador romano aqui estivesse, mostrava-lhe o que é possível fazer neste século esclarecido.
Vendo o meu tio mais calmo, arrisquei outra
?? observação:
- É a isso que se chama remar contra a
maré, meu tio.
- Não se chega à glória sem remar contra a maré, meu rapaz. Tal como fazemos neste momento. A tendência natural do homem é seguir a corrente universal e afundar-se no esquecimento.
- Mas para quê remar para tão longe, querido tio, nas actuais circunstâncias? Para quê remar dez milhas em busca da glória? Propõe-se simplesmente, creio, testar a sua admirável invenção. E não a podíamos pôr à prova mais ou menos em qualquer sítio?
- Que ingénuo - disse o meu tio. - Queres que algum espião maldoso me roube o fruto de dez longos anos de um trabalho magnânimo e assíduo? O meu projecto nasceu na solidão e é na solidão que o vou pôr à prova. Se falhar, pois tudo é possível, ninguém para além da família saberá o que quer que seja. Se tiver êxito, fortalecido pelo segredo da minha invenção, poderei pedir audaciosamente qualquer preço pela sua divulgação.
- Peço-lhe perdão, meu querido tio. É mais sábio que eu.
- Tão grande espanto, meu rapaz, quando a idade e os cabelos brancos trazem sabedoria?
- E aqui o Yorpy, meu querido tio, acha
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que o seu colmo grisalho abriga um cérebro muito fortalecido pelos anos?
- Serei eu o Yorpy, garoto? Contenta-te em remar!
Tendo dado por mim a meter assim o pé na
argola uma segunda vez, não voltei a dizer palavra até ao momento em que a barca raspou no fundo, a uma vintena de metros da ilha e do seu denso arvoredo.
- Caluda! - murmurou o meu tio com uma
expressão intensa. - Agora nem mais uma palavra!
Ficou perfeitamente imóvel no banco, percorreu lentamente com os olhos toda a região circundante até às margens do rio cujo leito era muito amplo naquele sítio.
Mesmo assim, cuidado! Desembarca depressa, põe o baú ao ombro e... um momento! -
Ficámos mais uma vez imóveis.
- Não é uma criança que se vê além, sentada como Zacarias na árvore deste pomar, na outra margem? Olha, rapaz, os teus olhos jovens são melhores que os meus. Não vês nada?
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- Vejo muito bem o pomar, meu caro tio, mas não vejo nenhuma criança.
- É um espião, eu sei - disse subitamente o meu tio sem ligar à minha resposta, o olhar fixo e a mão a fazer de pala. Não toques na caixa, Yorpy! Agachem-se, agachem-se todos!
- Mas, meu tio, ali, veja, essa criança não é mais que uma ramada seca e esbranquiçada. Agora vejo-a muito bem.
- Não estás a ver a árvore de que falo respondeu o meu tio com alívio evidente. - Mas não importa; esse rapaz é-me indiferente. Yorpy, desce e traz a caixa. E agora, jovem, tira os sapatos e as peúgas, arregaça as calças e segue-me. Tem cuidado, Yorpy. Tem cuidado. Lembra-te de que esse baú é mais precioso do que se estivesse cheio de ouro.
- E é pesado como o ouro - resmungou Yorpy, vacilando sob o peso, enquanto se movia lentamente na beira do talude.
- Aí. Pára debaixo dos arbustos - ali entre
os lírios. - Assim, devagarinho, devagarinho. Pronto. Pousa-a aí mesmo. Pronto, jovem? Vamos, em bicos de pés, em bicos de pés!
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- Não posso atravessar esta água e esta lama em bicos de pés, meu tio. Além disso, não vejo a utilidade.
- Desembarque, senhor. Imediatamente!
- Mas, meu tio, já desembarquei.
- Calma! Segue-me e nem mais uma palavra.
Agachado na água, escondido entre os arbustos e os altos caules dos lírios, o meu tio tirou furtivamente um martelo e uma chave-inglesa de uma das suas enormes algibeiras e começou a dar pequenas pancadas na caixa.
Mas o ruído alarmou-o.
- Yorpy - murmurou -, vai pela direita, por trás dos arbustos e fica de sentinela. Se vires alguém aproximar-se, assobia baixinho. Tu, jovem, faz o mesmo do lado esquerdo.
Voltámos a obedecer e, em breve, após firmes marteladas, a voz do meu tio soou no silêncio absoluto. Gritava, ordenando que regressássemos.
Voltámos a obedecer e vimos que a tampa
da caixa tinha sido retirada. Olhei avidamente para o interior e avistei uma quantidade
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espantosa de tubos e de seringas metálicas em forma de saca-rolhas, de todas as espécies e
variedades, de todos os tamanhos e calibres,
enredadas de forma labiríntica numa única
meada gigantesca. Parecia um enorme ninho
de anacondas e víboras.
- Agora, Yorpy - disse o meu tio muito animado, corado devido à antecipação da glória -, mantém-te deste lado e prepara-te para a inclinares assim que eu der o sinal. E tu,
jovem, prepara-te para fazer o mesmo do outro lado. Atenção! Não a desloquem nem um centímetro antes do meu sinal. Tudo depende do exacto ajustamento.
- Não tenha receio, meu tio. Serei tão meticuloso como uma pinça de depilação para as senhoras.
- Não levanto esta pesada caixa antes do sinal - grunhiu o velho Yorpy. - Esteja descansado.
- Ó meu rapaz! - disse então o meu tio, levantando a cabeça com um ar de devoção, enquanto um brilho de verdadeira nobreza 75
irradiava dos seus olhos cinzentos, das suas
madeixas grisalhas e do seu rosto enrugado.
- Ó meu rapaz, chegou a hora que me deu alento durante dez longos anos, na minha laboriosa obscuridade! A fama, por muito tarde que chegue, será ainda mais doce; e, sendo eu um velhote e não uma criança como tu, ela será ainda mais pura. Ó Tu que és o meu apoio! Eu Te glorifico.
Inclinou o rosto venerável e, tão verdade
como eu estar vivo, uma lágrima caiu do meu rosto e perdeu-se nas águas do rio.
- Inclinem!
Inclinámos.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Só mais um pouco, um bocadinho. com grande dificuldade, inclinámos só mais um pouco, um pouquinho.
Entretanto, o meu tio inclinava-se subitamente sobre a caixa de anacondas e víboras entrelaçadas, esforçando-se por ver o conteúdo;
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mas, por a máquina estar dali em diante demasiado funda, esforçava-se em vão.
Endireitou-se e, resoluto e ainda confiante,
mas já perturbado e contrariado, contornou
lentamente a caixa.
Era evidente que alguma coisa corria mal. Mas como eu me mantinha na mais completa ignorância dos mistérios daquele engenho, não sabia dizer qual era o transtorno, nem remediar a situação.
Uma vez mais, em passos cada vez mais lentos e ainda mais contrafeito, o meu tio contornou a caixa. O descontentamento crescia nele, mas sempre contido, e, no entanto, ele mantinha uma certa esperança.
Percebia-se a olhos vistos: não se tinham
verificado os efeitos com que ele contara. Tinha também a certeza de que em torno das minhas pernas o nível da água não baixara.
- Inclinem-na mais um bocadinho, só um bocadinho.
- Meu querido tio, já está tão inclinada quanto possível. Não está a ver que está praticamente assente no fundo?
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- Tu, Yorpy, tira a tua pata preta de debaixo
da caixa!
O ataque de fúria que se apoderou do meu
tio dava ao caso um ar mais duvidoso e mais
obscuro ainda. Mau sinal, pensei eu.
- com certeza podem incliná-la só mais um pouco
- Nem sequer um milímetro, meu tio.
- Então, que o fogo e a febre atinjam esta maldita caixa! - rugiu o meu tio com uma voz terrível, brusca como uma rajada de vento. Atirou-se para cima da caixa e deu-lhe um pontapé, descalço, com uma força espantosa que quase lhe rebentou o lado. Depois, agarrando-a decididamente com as mãos, arrancou lá de dentro todas as víboras e anacondas como
se lhe estivesse a tirar as vísceras antes de as
torcer e de as deitar para a água.
- Espere, espere, meu querido, meu muito querido tio! Por amor de Deus, pare, peço-lhe." Não destrua assim, num único momento de exaltação, todos os longos e serenos anos que consagrou a um projecto tão querido. Espere, suplico-lhe!
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Comovido com o meu tom veemente e com
as minhas lágrimas, ele interrompeu a sua obra
destruidora e fixou-me com um olhar resoluto
ou, na verdade, com um olhar inexpressivo de demente.
- Não está ainda completamente desfeita, meu querido tio. Venha montá-la outra vez. Tem o seu martelo e a sua chave-inglesa: repare-a e tentemos mais uma vez. Enquanto há vida, há esperança.
- Enquanto houver vida, passará a haver agora desespero - berrou ele.
- Vamos lá, peço-lhe, meu querido tio. Tome, junte outra vez esses bocados; ou, se não tiver todas as ferramentas necessárias, tente reconstruir uma parte. Também está bem. Tente só uma vez; tente, meu tio.
Por fim a minha paciência e persuasão deram resultado. A esperança, tal tronco tenaz que desafia a serra e o machado, fez brotar um último rebento milagroso e verdejante.
Tendo recolhido calma e minuciosamente
certos fragmentos muito bizarros, enroscou-os misteriosamente uns nos outros; depois,
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desentulhando o interior da caixa, colocou-os
lá dentro com gestos lentos. Quis que eu e o Yorpy ocupássemos a mesma posição que anteriormente e mandou-nos incliná-la mais
uma vez.
Fizemos o que nos era pedido e, como não houve resultado perceptível, esperei a todo o instante que nos fizesse sinal para inclinarmos a caixa mais um pouco, até ao momento em que olhei para o seu rosto e me assustei. Parecia contraído, encarquilhado, com uma palidez de bolor, como um cacho de uvas atingido pelo míldio. Larguei a caixa e corri para ele mesmo a tempo de impedir que caísse.
Deixando a funesta caixa onde a tínhamos
pousado, Yorpy e eu ajudámos o velho homem a subir para a barca antes de nos afastarmos em silêncio da ilha de Quash.
Como a corrente nos levava agora depressa!
Como nos tínhamos cansado ao remar tão
pouco tempo antes! Pensava nas palavras do meu tio que, apenas uma hora antes, tinha descrito a humanidade universalmente arrastada para um esquecimento total.
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- Meu rapaz - disse por fim o meu tio levantando a cabeça.
Olhei-o com emoção e fiquei contente por ver que a terrível perda de viço quase tinha desaparecido do seu rosto.
- Meu rapaz, já não há muita coisa que um pobre velho possa inventar neste velho mundo.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, segue este conselho: não tentes nunca inventar o que quer que seja, excepto a felicidade.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, dá a volta e vamos buscar a caixa.
- Meu querido tio!
- Vai dar boa lenha, meu rapaz. E o fiel velho Yorpy poderá vender a sucata para comprar tabaco.
- Querido senhor! Querido senhor! É a primeira vez que mostra bondade para com o velho Yorpy em seis longos anos. Obrigado, querido senhor; obrigado de todo o coração. Voltou a ser o mesmo, ao fim de dez longos anos.
- É verdade, dez longos anos - suspirou o
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meu tio. - Anos dignos de Esopo. Mas agora tudo acabou. Meu rapaz, estou contente por ter falhado. Sabes, meu rapaz, o insucesso fez de mim um bom velhote. Primeiro foi horrível,
mas estou contente por ter falhado. Deus seja louvado por este insucesso!
Uma seriedade estranha, estática, irradiou do seu rosto. Nunca mais esqueci aquele olhar. Se o incidente fez dele um bom velhote, como dizia, fez de mim um jovem sábio. O exemplo foi para mim uma experiência de vida.
Alguns anos depois, o meu querido e velho tio começou a definhar e quando, após dias agradáveis de contentamento outonal, se foi tranquilamente juntar aos seus antepassados, foi o fiel Yorpy quem lhe fechou os olhos. E no momento em que eu contemplava aquele rosto venerável pela última vez, os seus lábios pálidos pareceram mexer-se. Pareceu-me ouvi-lo exclamar novamente com profundo fervor: "Deus seja louvado por este insucesso!"
Em todas as regiões do mundo, muitas revoltas intrépidas contra despotismos infames tinham recebido um rude golpe. Muitos acidentes atrozes de locomotiva ou de barco a vapor faziam perecer centenas de viajantes intrépidos (tendo um destes acidentes roubado um querido amigo meu). Também a minha própria vida pululava de despotismos, de acidentes e de rudes golpes quando, na madrugada de um dia de Primavera, estando eu demasiado melancólico para poder dormir, saí para dar um passeio pela colina nas minhas pastagens.
O ar estava frio e enevoado, húmido e desagradável, como se a região não estivesse já demasiado lamacenta e não exalasse os seus humores pelas redondezas. Abotoei até cima a minha pobre casaca, para me proteger tanto quanto possível daquele ar que se colava à pele
- as abas do meu sobretudo eram tão compridas que só o usava na minha caleche - e, irritado, cravando a minha bengala na terra saturada de água, curvei o meu vulto azulado e comecei a subir a encosta da colina. Esta penosa postura aproximava consideravelmente a minha cabeça do solo. Dir-se-ia que queria dar uma cabeçada no Mundo. Apercebi-me da circunstância, mas não lhe concedi mais do que um esgar fugidio.
Tinha à minha volta os sinais de um império dividido. A erva tenra disputava-o à do ano passado. Nas covas húmidas, a verdura começava a despontar em cores vivas; do outro lado, nas montanhas, resistiam finas camadas de neve formando um estranho relevo nos flancos castanho-avermelhados; as colinas corcundas pareciam vacas malhadas a tremerem de febre. Os bosques estavam semeados de ramos mortos, secos, cortados rentes ao sopro dos ventos de Março, enquanto as árvores novas da beira dos caminhos mostravam já o primeiro tom amarelado dos rebentos a nascer.
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Sentei-me um instante num grande tronco apodrecido perto do topo da colina, de costas para um pequeno bosque de grandes árvores, virado para o vasto e majestoso anfiteatro de montanhas que delimitava uma campina ondulante e variada. Ao pé de uma longa fila de elevações, corria um ribeiro preguiçoso e fonte de paludismo, tendo por cima uma faixa de bruma gotejante que reproduzia exactamente cada meandro. Ao fundo, aqui e ali, farrapos de vapor erravam pelos ares esmorecidos como nações ou navios abandonados e desgovernados - ou como guardanapos encharcados que tivessem posto a secar em cordas da roupa entrecruzadas. Ao longe, numa abertura da planície desenhada pelas montanhas, repousava um grande dossel de nevoeiro, fino como uma mortalha, numa aldeia afastada. Era a condensação do fumo das chaminés juntamente com o bafo dos aldeãos. Era demasiado pesada, demasiado inerte para se afastar sem vento e, portanto, ficava ali, entre a aldeia e o céu, escondendo com certeza mais que um doente com papeira e mais que uma criança com náuseas.
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Percorri com o olhar a ampla campina ondulada, as montanhas, a aldeia e as quintas, aqui e ali, e os bosques, os regatos, as rochas e os cumes e fiquei a pensar que o Homem, afinal de contas, deixa uma marca bem leve nesta
Terra imensa. No entanto, a Terra marca-o. Que catástrofe horrível a do Ohio, onde o meu querido amigo e outros trinta bravos rapazes deram o seu mergulho eterno ao sinal de um mecânico obtuso, incapaz de distinguir uma válvula de um tubo de aquecimento! E o choque no caminho-de-ferro além, mesmo por detrás das montanhas! Quem viu dois comboios loucos colidirem desordenadamente, treparem e rasgarem-se um ao outro, encontrou depois uma das locomotivas aninhada, como um pinto, numa carruagem de passageiros do comboio que vinha no sentido oposto; e cerca de uma centena de boa gente, entre elas um jovem casal com o filhinho inocente, a embarcar no sinistro barco de Caronte que os levou, sem bagagem, para não se sabe que região de fundições imundas. Mas de que servia lamentarem-se? Que juiz de paz iria resolver aquele
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caso? Sim, na verdade, para quê cansar o próprio céu? Não é o céu que destina estas coisas, uma vez que, se assim não fosse, não aconteciam?
Que mundo miserável! Para quê darmo-nos ao trabalho de fazer fortuna, quando não sabemos durante quanto tempo a podemos conservar face aos milhares de burros e de patifes que detêm a gestão dos caminhos-de-ferro, dos barcos a vapor e de tantas outras coisas vitais neste mundo? Fosse eu ditador da América do Norte por um instante: mandava-os prender, enforcar e esquartejar; mandava-os fritar, assar, cozer, fervilhar, grelhar e tostar como pernas de peru! Esses responsáveis infames e cretinos; punha-os a aquecer no Tártaro, isso sim!
Oh, os grandes progressos da nossa época! Quais? Facilitamos o assassínio e a morte e chamamos a isto progresso? Aliás, para quê andar tão depressa? O meu avô passava muito
bem sem as modernices e não tinha nada de
tolo. Escutem! É o velho dragão que regressa, o gigantesco moscardo, o Moloch. Ronca! Sopra! Urra! Eis que avança a direito pelos bosques
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floridos como a cólera asiática que galopa no dorso dos camelos. Espaço! Eis o homicida patenteado, o monopolista da morte, o júri, o juiz e o carrasco num só, cujas vítimas partem sempre sem as mercês do clero! Durante duzentas e cinquenta milhas, este demónio de ferro vai esfalfar-se pela região, berrando: "Mais! Mais! Mais!" Pudessem, em conluio, cinquenta montanhas cair-lhe em cima! E que caíssem também sobre o meu credor, esse pequeno demónio importuno que me assusta ainda mais mortalmente que todas as locomotivas: um patife de faces encovadas que também parece avançar sobre carris e que me atormenta mesmo ao Domingo, a caminho da igreja, e que ainda se vem sentar no mesmo banco que eu e que, a pretexto de ser educado e de me estender o livro de orações aberto na página certa, me enfia a sua letra de câmbio debaixo do nariz, mesmo a meio das minhas devoções, de tal modo que se mete entre mim e a redenção. Enfim, como é possível manter a calma nestas situações?
Não posso pagar àquele indivíduo horrível.
Diz-se, no entanto, que nunca houve tanto dinheiro, essa droga reles e inútil. Mas, maldito seja eu se consigo encontrar a tal droga, embora nunca um doente tenha necessitado tanto
do dito remédio. Estão a mentir. Não há assim
tanto dinheiro. Apalpem-me as algibeiras. Ah! É um pó que ia mandar ao bebé doente naquele casebre ali, onde mora o limpa-fossas irlandês. O bebé tem escarlatina. Dizem que o sarampo também abunda na região, tal como a varíola e a varicela, e que isto não é nada para as crianças que ainda mal têm dentes. E imagino, afinal, que, depois de passarem por tantas maleitas, muitas destas pobres crianças simplesmente quebram; pelo que tiveram sarampo, papeira, escarlatina, varicela, cólera, diarreias estivais e tudo o resto para nada! Ah!
Cá está o meu reumatismo a atacar-me o ombro direito. Apanhei-o uma noite em North River, num barco cheio até mais não, quando cedi a minha cama a uma senhora doente e me
deixei ficar na ponte, à chuva, até de madrugada. É esta a recompensa pela caridade! Então, ataca! Morde, reumatismo! Não atacarias
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com mais força se eu fosse um canalha e tivesse assassinado aquela pobre mulher em vez de a ajudar. Nem a dispepsia. É mais um mal que me atormenta.
Olá! Cá estão os bezerros, os pequeninos de dois anos, acabados de sair do estábulo e deixados nos prados depois de seis meses de ração fria. Bando miserável, na verdade! São certamente a ruína de um rude Inverno: ossos pontiagudos salientes como cotovelos e cobertos por uma substância bizarra que lhes secou nos flancos como a massa de um crepe. O pêlo está muito gasto em certos sítios; e ali, onde não está gasto nem parece um crepe, está o flanco áspero de um velho baú de crina comido pelas traças. Na realidade, não são seis bezerros de dois anos, mas seis abomináveis e velhos baús de crina que vagabundeiam pela pastagem.
Escutem! Em nome de todos os deuses, o
que é isto? Vejam! Os próprios baús de crina
espetam as orelhas, ao escutarem este ruído,
endireitam-se e olham para longe na campina
que ondula mais abaixo! Ouçam outra vez!
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Como é claro, musical, prolongado! Que triunfante acção de graças é o cantar do galo! "Glória a Deus nas Alturas!" É o que o galo diz, tão nitidamente como nunca outro galo o disse. Bem, bem, começo a sentir-me um pouco mais revigorado. Afinal, o nevoeiro não é assim tão denso. O sol começa a mostrar-se além: sinto-me mais quente.
Ouçam! Continua a cantar! Será que alguma
vez retiniu sobre a terra um cocorocó tão feliz?
Claro, estridente, cheio de bravura, cheio de
vigor, cheio de entusiasmo, cheio de alegria. Diz claramente: "Não te resignes nunca!" Meus amigos, é extraordinário, não é verdade?
Apercebi-me de que sem querer me tinha dirigido aos pequenos, aos vitelos, no meu entusiasmo, o que revela como, por vezes, podemos trair a nossa verdadeira natureza da forma
mais inconsciente. Pois a que criança de dois anos e a que vitelo iria fazer má cara e ainda por cima numa colina, quando aquele galo além nas terras baixas, privado de palavra e de razão, sem um cêntimo no bolso e sobre o qual a fome do dono fazia pender a todo o momento
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uma ameaça mortal, soltava um tal grito de poeta laureado a celebrar a gloriosa vitória de Nova Orleães?
Escutem! Recomeça! Meus amigos, tem de ser um galo chinês; nenhum galo dos nossos condados cantaria com um sotaque tão prodigiosamente exultante. Não há dúvida, meus amigos; é um galo chinês e da criação do próprio imperador da China.
No entanto, os meus amigos, os baús de crina que os meus clamores de triunfo tinham assustado ainda há pouco, entraram em debandada, agitando a cauda e dando cabriolas num estilo desajeitado que revelava bem que não tinham desenferrujado as patas nos últimos seis meses.
Ouçam! Novamente! De quem é este galo? Quem na região adquiriu um tão extraordinário galo chinês? Santo Deus! O meu sangue
agita-se, alvoraçado; sinto que estou a ficar louco. Como? Estou quase a saltar para aquele tronco apodrecido, a bater as asas e a soltar cocorocós? E pensar que ainda há pouco me
entregava à melancolia. E tudo isto graças a
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um simples canto do galo. Maravilhoso galo! Lentamente... o folgazão canta com vigor a esta hora. Porém, ainda é manhã. Vejamos como canta ao meio-dia e ao fim do dia. Pensando
bem, os galos cantam sobretudo ao princípio do dia. Afinal, a sua valentia não é eterna. Sim, sim, até mesmo os galos devem sucumbir ao infortúnio universal: rejubilantes no princípio,
mas sumidos no fim.
"Nas bonitas madrugadas, Nós, os belos galos orgulhosos, cantamos com alegria; Mas, quando a noite cai, cantamos mais baixinho, Pois, então, só nos resta loucura e melancolia."
Era naquele galo chinês que o poeta pensava quando escreveu estes versos! Mas, alto lá! Eis o cocorocó que volta a ouvir-se, dez vezes mais vigoroso, mais intenso, mais longo, mais exultante e espalhafatoso do que antes! Francamente, é tão bom como ouvir soar o grande sino da Catedral de São Paulo em dia de coroação! Até se devia arrear esse sino e colocar no 19
seu lugar este galo chinês. É o cocorocó ideal para alegrar Londres inteira, de Mile End (que é o fim de absolutamente nada) a Primrose Hill (onde, afinal, não há prímulas), e para dissipar o nevoeiro.
Pois bem, eis que tenho apetite para o pequeno-almoço desta manhã; é mesmo a primeira vez na última semana. Pensava ficar satisfeito com chá e pão com manteiga; mas vou beber café e comer ovos - não, cerveja stout e um bife. Quero algo que me alimente. Ah, lá está o comboio da cidade: carruagens brancas
rebrilhando entre as árvores como uma vela
de prata. Como fumega alegremente a sua chaminé! Os passageiros estão alegres. Lá está um lenço que se agita - vão à cidade comer ostras, ver os amigos e dar uma volta pelo circo. Vejam o nevoeiro além: como são serenas as suas volutas, as suas espirais que ondulam nas colinas entrecortadas por raios de sol! Vejam o fumo azulado que sobe desta aldeia, qual baldaquim sobre um leito nupcial. Como a campina resplandece, ali onde o ribeiro inundou
os prados! A erva do ano passado dá lugar à
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nova. Pois bem, este passeio revigora-me. Agora, para casa; regressemos para atacar o bife e abrir uma garrafa de cerveja stout, e, depois de bebida a cerveja (um litro de cerveja stout), sentir-me-ei mais ou menos tão forte como
Sansão. No entanto, penso: talvez o meu credor passe por aqui. vou dar uma volta pelo bosque e fazer um varapau. Juro que lhe dou uma paulada se ele hoje me incomodar.
Escutem! É o galo chinês que recomeça. "Bravo!" diz o galo chinês. "Um cacete!", diz o galo chinês.
Oh! Valente galo!
Estive toda amanhã com um humor agradável. O meu credor passou por cá por volta das onze horas. Disse ao meu criado Jack que o mandasse subir. Estava a ler Tristram Shandy e não podia descer em tal circunstância. Quando entrou, o canalha esquelético (ainda por cima, camponês) deu comigo sentado num cadeirão com os pés em cima da mesa, a garrafa de cerveja à mão e o livro aberto à minha frente.
- Sente-se - disse-lhe. - Estou a terminar este capítulo e depois dou-lhe atenção. Está
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uma manhã muito bonita. Ah, ah, uma boa piada a respeito do meu tio Toby e da viúva Wadman! Ah, ah, ah! Permita-me que lhe leia isto.
- Não tenho tempo. Tenho de fazer os meus
trabalhos do meio-dia.
- Para o diabo com os seus trabalhos! -
disse-lhe. - Não entorne o seu tabaco velho
nesta sala, ou ponho-o na rua.
- Senhor!
- Deixe-me ler-lhe esta passagem sobre a viúva Wadman. A viúva Wadman disse então...
- Está aqui a minha letra de câmbio, senhor.
- Maravilhoso. Queira fazer dela uma bola. Está na minha hora de fumar. Passe-me uma brasa, se faz favor. Uma daquelas que estão ali na lareira.
- A minha letra, senhor - disse o patife, empalidecendo de raiva e de estupefacção com os meus ares desacostumados (pois, até então, eu evitara olhar para o seu rosto lívido), mas suficientemente prudente para não revelar uma nesga da sua surpresa. - A minha
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letra, senhor - repetiu, inflexível, agitando-a
sob o meu nariz.
- Meu amigo - disse-lhe eu -, que manhã encantadora! Que bonito está o campo! Fez o obséquio de ouvir esta manhã o extraordinário canto do galo? Sirva-se de um copo da minha cerveja!
- Sua cerveja? Então pague as suas dívidas antes de oferecer às pessoas a sua cerveja!
- Acha então que, na verdade, eu não tenho cerveja - disse eu, levantando-me com fleuma. - Pois desengane-se. vou dar-lhe a provar staut de uma marca superior à Barclay
e Perkins.
Sem mais cerimónias, agarrei o insolente credor pelo cinto do casaco (e como o miserável tinha a barriga chata, não havia nada para agarrar) - agarrei-o, portanto, desse modo. Atei-o com um nó de marinheiro e, depois de lhe ter enfiado a letra entre os dentes, fiz-lhe
as honras do terreno amplo que rodeia o meu domicílio.
- Jake - disse eu -, há um saco cor de malva com batatas no alpendre. Trá-lo até aqui
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e atira-as a este vagabundo; veio mendigar umas moedas e eu sei que ele pode trabalhar, só que é um preguiçoso. Enxota-o, Jake.
Que cocorocó, meus velhos! O galo chinês soltou um canto de vitória tão perfeito, um tal laudamus, um toque de trombeta tão triunfal, que relinchei para comigo em grande estilo. Os
credores! Bah... teria enfrentado um exército
deles! O galo chinês era claramente da opinião que os credores só vinham ao mundo para apanharem pancada, serem enforcados, magoados, maltratados, estrangulados, espancados, zurzidos, afogados e chicoteados!
Depois de regressar a casa, quando a exaltação da minha vitória sobre o credor abrandou um pouco, pus-me a devanear sobre o misterioso galo chinês. Não pensara ouvi-lo tão perto da minha casa. Em que galinheiro de cavalheiro rico cantava ele? E o bicho não tinha encurtado as suas efusões tão facilmente como eu pensara. Este galo chinês cantava pelo
menos até ao meio-dia. Iria ele continuar o dia
todo? Decidi descobrir. Voltei a subir a colina.
Toda a região se banhava agora numa luz de
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júbilo. Uma verdura quente explodia à minha volta. As charruas trabalhavam. Aves vindas há pouco do sul cantavam e esvoaçavam alegremente. Até mesmo os corvos grasnavam com um certo fervor e pareciam uns tons menos negros que habitualmente.
Ouçam! É o galo! Como descrever o cocorocó deste galo chinês ao meio-dia? O canto da aurora era um murmúrio ao lado do seu. Era o cocorocó mais alto, prolongado e estranhamente musical que alguma vez espantou um mortal. Já tinha ouvido antes muitos cantos de galo e alguns muito bons; mas aquele! Tão suave e tão aflautado no seu próprio clamor, tão seguro até mesmo no encantamento da exultação, tão amplo que ascendia, aumentava, fendia os céus como se brotasse de uma goela de ouro e fosse atirado para longe! E também não era o cocorocó parvo e vaidoso de um galo noviço, ignorante do mundo e a estrear-se na vida com a audaciosa alegria que lhe confere a sua lastimável ignorância do futuro. Era o canto de um galo que não cantava irreflectidamente, o canto de um galo que sabia umas coisas; o canto de
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um galo que tinha enfrentado o mundo e vencera e que estava agora resolvido a cantar, mesmo que a terra se abrisse e os céus se abatessem. Era um canto de sabedoria, um canto invencível, um canto filosófico, o canto dos cantos.
Retemperado e impassível, regressei a casa. Voltei a pensar nas minhas dívidas e nos meus restantes problemas, nas infelizes revoltas dos povos oprimidos no estrangeiro, nos acidentes de caminho-de-ferro e de barco a vapor e até mesmo na perda do meu amigo querido, num êxtase de desafio tranquilo e afável que me deixou estupefacto. Parecia-me que, se encontrasse a Morte, a convidava para jantar e fazia na sua companhia um brinde às catacumbas
infernais sem diminuir o meu sentimento de
pura liberdade e segurança universal.
Ao anoitecer, voltei à colina para saber se o galo estaria alegre desde o nascer do sol até ao cair da noite. Falem-me de vésperas e de recolher obrigatório! O canto vespertino deste galo saía da sua formidável goela e estendia-se por
toda a região; ocupava-a qual Xerxes vindo do
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oriente com a sua hoste de fileiras emplumadas. Era um milagre. Santo Deus, que canto! Nessa noite, acreditem, o galo virou-se galhardamente no seu poleiro, vitorioso todo o dia, legando à noite os ecos de milhares de cocorocós.
Depois de um sono invulgarmente tranquilo e revigorante, levantei-me cedo e ergui-me da cama como uma mola de um banco de tipóia - ágil, elipsoidal, leve, álacre como uma piroga de balseiro - e fui até ao topo da colina, tão saltitante como uma bola de futebol. Ouçam! O galo chinês antecipou-se. O mundo pertence à ave que se levanta cedo - à ave que canta como um clarim -, folgazã, sonora, plena de júbilo. Nas quintas dispersas, outros galos cantavam, revezando-se. Mas não passavam de flautins ao pé de um trombone. O galo chinês fazia de repente a sua entrada e esmagava todos os cocorocós com uma única fanfarra imperiosa. Parecia que não se ralava com mais nada. Não respondia a outro canto, só cantava para si próprio, por sua conta, na altiva independência da solidão.
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Oh, valente galo! Oh, nobre galo chinês! Oh, ave tão justamente oferecida em holocausto pelo invencível Sócrates como testemunho da sua vitória final sobre a existência!
Juro pela minha alma que vou neste dia bendito descobrir este galo chinês e que o vou comprar, mesmo que para isso tenha de fazer mais uma hipoteca sobre as minhas terras.
Escutava agora com atenção, esforçando-me por perceber de que lado vinha o canto. Mas este enchia e saturava tão bem todo o ar, impregnava-o de uma tal superabundância que não se podia dizer exactamente de que ponto vinha todo aquele júbilo. Só pude perceber que vinha de Leste e não de Oeste. Avaliei a seguir a que distância se podia ouvir o canto de um galo. Naquela região tranquila e, ainda por cima, rodeada de montanhas, os sons eram audíveis
a grande distância. E, depois, as ondulações
?" do terreno, as saliências que as montanhas
faziam nos vales e nas colinas produzindo estranhos ecos e reverberações, multiplicando e acumulando ressonâncias que se notavam muito distintamente e eram muito confusas
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para o espírito. Onde estava então escondido este valente galo chinês, esta ave do jovial Sócrates, o helénico galo de combate que morreu impávido? Onde estava ele escondido? Ó nobre galo, onde estás tu? Canta mais, meu Bantam! Meu principesco, meu imperial galo chinês! Minha ave do imperador da China! Irmão do sol, primo do grande Júpiter! Canta uma última vez para eu saber onde moras!
O canto deste galo parece uma orquestra inteira de galos de todas as nações. Mas de onde vem? Ele está por perto, mas onde? Não havia forma de descobrir. Eu sabia somente
que vinha de Leste.
Depois do pequeno-almoço, peguei na minha bengala e parti para dar uma volta. Muitos cavalheiros eram donos de propriedades nos arredores e não tinha qualquer dúvida de que um destes prósperos senhores tinha investido uma nota de cem dólares nalgum galo chinês trazido recentemente pelo Vento Alísio, pelo Grão Branco ou pela Rainha dos Mares, pois devia ter sido um digno navio com um nome digno a trazer a fortuna de um tão digno galo! Decidi percorrer
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a região toda para encontrar o nobre estrangeiro; mas pensava que não seria má ideia pedir instruções nas mais humildes habitações, perguntar se, por acaso, não sabiam de um galo chinês recentemente importado, pertencendo a um desses cavalheiros colonos vindos da cidade; pois era evidente que nenhum agricultor pobre, nem um pobre de qualquer espécie, podia ser dono de um tal trofeu do oriente, que era, sem dúvida, um grande sino da Catedral de São Paulo em forma de goela de galo. Encontrei um homem velho que lavrava o seu campo perto de uma cancela.
- Meu amigo, ouviu um extraordinário canto de galo recentemente?
- Na verdade - disse com voz fanhosa -, não sei nada disso. A Sr.a Pattedoie tem um galo, o Sr. Barbon tem um galo e eu também tenho um e todos eles cantam. Mas não conheço nenhum que tenha um canto extraordinário.
- Então, bom dia - disse eu brevemente.
- Vê-se bem que não ouviu cantar o chantre do imperador da China.
Em breve, encontrei outro velhote que reparava um velho tapume em ruínas. Os barrotes estavam podres e, ao menor gesto do velhote, desfaziam-se em ocre amarelo. Faria bem
melhor se deixasse a vedação em paz ou, então, se arranjasse barrotes novos. Devo dizer a este propósito que uma das razões do triste facto de a parvoíce estar mais disseminada entre os lavradores que entre qualquer outra classe se deve a este hábito de querer reparar velhos tapumes apodrecidos em dias quentes e debilitantes de Primavera. É uma tarefa sem
esperança. É uma tarefa laboriosa e vã. É uma tarefa de partir o coração. Esforços enormes desperdiçados numa futilidade. Porque, enfim, haverá modo de manter vedações apodrecidas assentes em postes podres? Que truque permite recuperar e dar vigor a pedaços de madeira que congelaram e cozeram alternadamente durante sessenta Invernos e sessenta Verões?
É esta miserável obstinação em reparar vedações apodrecidas com as próprias traves podres que leva tantos lavradores ao asilo.
Viam-se claramente as primícias da idiotice no rosto do lavrador em questão. Diante dele,
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com sessenta varas, estendia-se um dos tapumes da Virgínia mais pateticamente deprimentes e desamparados que alguma vez vi na minha vida. Ao mesmo tempo, uma manada de novilhos no campo contíguo, como que possuída pelo demónio, dava continuamente cornadas naquela miserável e velha vedação que abria aqui e ali verdadeiras brechas, de tal maneira que o velhote tinha de pousar as ferramentas para os enxotar. Perseguia-os com um toro de madeira grande como a moca de Golias, mas leve como cortiça e que se desfazia em pó mal era brandido.
- Meu amigo - disse eu, dirigindo-me àquele infeliz mortal -, terá ouvido um extraordinário canto de galo recentemente?
Foi o mesmo que perguntar se tinha ouvido o relógio da morte a bater as mandíbulas. Lançou-me um longo olhar assustado, doloroso, indescritível e retomou sem dizer palavra os
seus trabalhos ridículos.
Como sou parvo, pensei, por fazer perguntas sobre um galo tão alegre a uma criatura tão
pouco jovial e difícil de animar!
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Continuei o meu caminho. Tinha agora descido a colina onde ficava a minha casa e, encontrando-me no sopé, já não ouvia o cocorocó do galo chinês que, sem dúvida, era demasiado agudo para que se ouvisse. Por outro lado, talvez o bicho estivesse a almoçar, a comer o seu trigo e a sua aveia, ou a dormir uma sesta, e, por isso, tivesse interrompido por instantes o seu regozijo.
Cruzei-me no caminho com um corpulento cavalheiro a cavalo - melhor, um opulento cavalheiro -, um homem muito rico que acabara de comprar alguns bons talhões de terra e mandara construir um solar, flanqueado por um galinheiro com bom aspecto cuja fama se espalhara por toda a região. Eis então, pensei eu, o proprietário do Xangai.
- Senhor, desculpe-me - disse-lhe eu -, mas sou seu vizinho e queria perguntar-lhe se, por acaso, possui galos chineses?
- Oh sim, tenho dez galos chineses.
- Dez! - exclamei estupefacto - E todos
eles cantam?
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- Todos sem excepção cantam muito bem. Não me interessava um galo que não cantasse.
- Poderia mostrar-me esses galos?
- com todo o gosto. São o meu orgulho;
custaram-me seiscentos dólares.
Caminhando ao lado do cavalo, perguntava-me se seria possível que eu tivesse tomado os cocorocós harmoniosamente combinados de dez galos chineses pelo canto sobrenatural de um único galo chinês solitário.
- Senhor - recomecei eu -, há algum entre os seus galos chineses que ultrapasse de longe todos os outros pelo vigor, pela musicalidade e pelo efeito inspirador do seu canto?
- Eles cantam de modo bastante semelhante,
creio - respondeu-me com cortesia. - Não sei distingui-los.
Começava a pensar que afinal o meu nobre chantre talvez não estivesse na posse daquele cavalheiro rico. Entrámos, todavia, no seu galinheiro e vi os seus galos chineses. Devo confessar que nunca tinha até então pousado os olhos naquela variedade de aves de capoeira
de importação. Ouvira dizer que se gastavam
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quantias enormes para as arranjar e que o seu tamanho também era enorme, de tal modo que me tinha convencido, não sei como, que tinham uma beleza e um brilho proporcionais tanto ao seu tamanho como ao seu preço. Qual não foi portanto a minha surpresa ao ver dez monstros cor de cenoura, sem o mais pequeno vestígio de plumagem esplendorosa! Decidi imediatamente que o meu galo real não estava entre aqueles e que era absolutamente impossível que fosse um galo chinês - se é que aquelas aves gigantescas eram espécimes fiéis do verdadeiro galo chinês.
Caminhei o dia todo; jantei numa quinta onde descansei um pouco, inspeccionei várias capoeiras, interroguei diversos proprietários de criação, apurei o ouvido a diversos cocorocós
- mas sem descobrir o meu misterioso chantre. Tinha mesmo caminhado até tão longe e por tantos desvios, que já não o ouvia cantar. Começava a desconfiar que o galo não passava de um simples turista na região, que se fora embora às onze horas no comboio do sul e que fazia agora ouvir o seu canto de júbilo algures
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nas margens verdejantes do estreito de Long Island.
Mas uma vez mais, na manhã seguinte, ouvi a inspiradora fanfarra; mais uma vez senti o sangue a correr mais depressa nas veias; mais uma vez me senti superior a todos os males da existência; uma vez mais tive vontade de pôr o meu credor na rua. Mas este último, zangado com a recepção na última visita, manteve-se longe; sem dúvida estava ofendido. Que imbecil, levar a peito uma brincadeira inofensiva!
Passaram vários dias durante os quais fiz diversas excursões pelas regiões circundantes; mas foi em vão que procurei o galo. No entanto, ouvia-o da colina e às vezes de casa e ainda, por vezes, no silêncio da noite. Se me acontecia reincidir nos meus humores negros, de imediato, ao som daquele cocorocó exultante e rebelde, também a minha alma se transformava em chantre, batia as asas e lançava um alegre
desafio a todas as dores deste mundo.
Enfim, algumas semanas depois, tive necessidade de fazer outra hipoteca sobre a minha terra para pagar determinadas dívidas, entre
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as quais a que tinha para com o meu perseguidor que acabava de intentar uma acção contra mim. A notificação foi-me entregue da forma mais insultuosa. Acabara de me regalar numa sala privada da taberna da aldeia com uma garrafa de cerveja de Filadélfia com um pedaço de queijo de Herkimer e um pãozinho; e, depois de ter avisado o patrão, que é meu amigo, que pagaria logo que recebesse as próximas cobranças, dirigi-me ao bengaleiro do bar onde tinha pendurado o meu boné para pegar num bom charuto quando subitamente encontrei o charuto embrulhado na notificação. Ao desenrolar o charuto, desenrolei simultaneamente a notificação e o polícia que estava ali ao lado desbobinou estas palavras em voz grossa:
- Queira tomar conhecimento! - disse ele,
antes de acrescentar num murmúrio: - Depois, meta-a no seu cachimbo e fume-a!
Voltei-me bruscamente para os cavalheiros que estavam presentes no bar.
- Senhores - disse-lhes eu -, será esta
uma forma digna, ou até mesmo legal, de entregar uma notificação? Vejam só!
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Todos, sem excepção, foram de opinião de que era altamente deselegante da parte do polícia aproveitar-se assim de um homem que estava a comer cerveja e queijo para ter a incorrecção de lhe enfiar uma notificação no chapéu. Era mesquinho; era cruel, pois o choque repentino de um estoiro daqueles, imediatamente a seguir ao almoço, não podia deixar de comprometer a boa digestão do queijo reconhecidamente mais difícil que a do manjar-branco.
Quando cheguei a casa, li a notificação e senti uma pontada de melancolia. Mundo cruel! Mundo cruel! Aqui estou eu, um bom homem como não há melhor - hospitaleiro, de coração aberto, excessivamente generoso: e o Destino recusa-me a fortuna que me permitiria espalhar as minhas boas acções pela região! Pior, quando tantos sovinas e saqueadores rebolam esterilmente sobre ouro, eu, coração nobre como sou, recebo intimações! Baixei a cabeça e senti-me abandonado, injustiçado, maltratado e incompreendido. Numa palavra, miserável.
Ouçam! O cocorocó cheio de glória e de desafio soou como um clarim, sim, como o repicar de um alegre trovão! Meu Deus, como me levantou o moral! Fiquei muito direito! Sim, na verdade, como que sobre andas!
Oh, o nobre galo!
Tão claramente quanto era possível a um galo, ele dizia: "Que o mundo se desfaça com tudo o que contém. Tu, sê alegre e nunca te resignes. Que vale o mundo ao pé de ti? Não é então nada mais que um torrão de barro? Sê alegre!"
Ah! O nobre galo!
Mas, querido e glorioso galo, disse para comigo, não é assim tão fácil mandar este mundo desfazer-se; não é assim tão fácil estar alegre quando nos enfiam intimações no chapéu ou na mão.
Escutem! Outro cocorocó. Tão claramente
quanto o galo podia, dizia: "Para o Diabo a intimação e para o Diabo o engraçado que a enviou! Se não tens bens nem dinheiro, pois bem, dá uma sova a esse engraçado e diz-lhe que não tens qualquer intenção de lhe pagar. Sê alegre!"
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Foi portanto assim - sob as imperiosas intimações deste galo - que acabei por fazer mais uma hipoteca sobre a minha propriedade e que saldei todas as minhas dívidas, juntando-as a essa única obrigação suplementar. Tendo deste modo encontrado paz, parti de novo em busca do meu nobre galo; mas em vão, apesar de o ouvir todos os dias. Comecei a pensar que devia haver alguma fraude neste misterioso caso: algum ventríloquo prodigioso dado a alegres travessuras que rondasse o celeiro, a cave ou o telhado. Mas não; que ventríloquo teria soltado um cocorocó tão heroicamente celeste?
Por fim, numa bela manhã, recebi a visita de um homem singular que, no mês de Março, me tinha serrado e rachado lenha - ao todo uns trinta molhos - e que vinha agora receber o seu pagamento. Era, repito-o, um homem singular. Era alto e magro, com um rosto comprido e triste, e no entanto, tinha um olhar risonho que contrastava estranhamente com a sua face. Tinha um ar sério, mas nada abatido. Usava um comprido casaco cinzento coçado e um grande chapéu amachucado. Este homem
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tinha-me serrado a lenha a um tanto cada molho. Ficava a serrar o dia todo, em plena tempestade de neve, sem pestanejar. Nunca falava a não ser que lhe dirigissem a palavra. Serrava, era tudo. Serrava, serrava, serrava; nevava,
nevava, nevava. A serra e a neve avançavam juntas, como dois elementos da natureza. No primeiro dia em que este homem veio, trouxe o jantar com ele e começou a comê-lo sentado num banco, sob a tempestade de neve. Vi-o da minha janela onde estava a ler A Anatomia da Melancolia, de Burton. Saí de casa, em correria e de cabeça destapada.
- Deus do Céu! - exclamei. - Que está a fazer? Entre. É isso o seu jantar?
Tinha um naco de pão duro e uma fatia de carne de vaca salgada envolvida num jornal molhado e engolia os bocados com um pouco de neve que deixava derreter na boca. Mandei o imprudente entrar, instalei-o ao canto da lareira e servi-lhe um prato de porco grelhado com favas regado com uma caneca de sidra.
- Ouça lá - disse-lhe -, nunca mais me traga para aqui os seus jantares ensopados.
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Trabalha à tarefa, é sabido, mas ofereço-lhe as refeições.
Expressou os seus agradecimentos de forma calma e digna, mas não sem gratidão, e despachou a refeição para sua satisfação e também para a minha. Gostava de o ver engolir a caneca
de sidra como um homem. Olhava-o com respeito. Quando me aproximava do banco que ele trouxera, para discutir o trabalho com o homem, era com um certo respeito e reserva. Intrigado com o seu aspecto singular, impressionado com a sua extraordinária aplicação a serrar - uma das ocupações mais fastidiosas e odiosas aos olhos da maior parte dos homens -, procurava muitas vezes descobrir quem ele era, que tipo de vida levava, onde tinha nascido e por aí fora. Mas ele não dizia palavra. Vinha serrar a minha lenha e comer os meus jantares - eu oferecia-lhos com todo o gosto -, mas não para tagarelar. Ao princípio, sentia um certo ressentimento, dadas as circunstâncias, por aquele silêncio impertinente. Mas, pensando bem, passei a respeitá-lo ainda mais. Falava-lhe com
um respeito e uma deferência ainda maiores.
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Concluí intimamente que aquele homem tinha passado por momentos difíceis; que tinha recebido neste mundo mais que um duro golpe, que tinha um temperamento solene e era um homem ponderado; que vivia tranquila, decente e frugalmente e que era, apesar de pobre, muito respeitável. Por vezes, até o imaginava como diácono ou ancião de alguma pequena igreja do campo. Pensava que até seria possível vê-lo como candidato à presidência dos Estados Unidos; teria dado um grande defensor dos oprimidos. Chamava-se Merrymusk. Muitas vezes achei este nome demasiado jovial para um ser que o era tão-pouco. Perguntei às pessoas se conheciam Merrymusk. Mas só ao fim de um certo tempo soube alguma coisa a seu respeito. Parecia que tinha nascido em Maryland e que vivera durante muito tempo nas redondezas, sem lar e, até há dez anos, sem economias, apesar de homem inocente. Era um homem que durante um mês trabalhava arduamente, com
uma sobriedade espantosa, e que depois gastava todo o seu salário numa só noite de deboche. Fora marinheiro na juventude e tinha
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desertado do navio em Batávia, antes de contrair uma febre e ter estado quase a morrer. Mas tinha-se curado, voltara a embarcar, regressara à região onde todos os seus amigos tinham morrido e rumara a norte, ao interior das terras, onde desde então vagueava. Tinha-se casado nove anos antes e tinha agora quatro filhos. A mulher ficara completamente inválida; um dos filhos sofria de hidrartrose e os outros eram doentes. Ele e a família moravam numa cabana, num pedaço de terreno estéril e recuado, não longe do caminho-de-ferro, junto às faldas montanhosas. Tinha comprado uma bonita vaca para poder ter bastante leite bom para dar aos filhos; mas a vaca morrera ao parir e não tinha com que comprar outra. No entanto, a família nunca tinha passado fome. Trabalhava arduamente e levava-lhes comida.
Ora, como disse, tendo serrado a minha lenha algum tempo antes, Merrymusk vinha agora reclamar o pagamento.
- Meu amigo - perguntei-lhe -, conhece por aqui um cavalheiro que tenha um galo extraordinário?
Os olhos do serrador brilharam.
- Não conheço nenhum cavalheiro - respondeu ele - que tenha um galo verdadeiramente extraordinário.
Ora, pensei eu, Merrymusk não é homem para me esclarecer. Receio não vir a descobrir este extraordinário galo.
Não tendo trocos suficientes para pagar a Merrymusk, paguei-lhe quase tudo e disse-lhe que passaria por casa dele dentro de um ou dois dias para lhe dar o resto. Saí, então, de
minha casa uma bela manhã com essa intenção. Tive bastante dificuldade em encontrar o melhor caminho até à cabana dele. Parecia que ninguém sabia exactamente onde ficava.
Situava-se numa zona remota, entre uma montanha densamente arborizada (a que chamo monte Outubro devido ao aspecto excessivamente enfeitado que tem nesse mês) e uma charneca cheia de arbustos que o caminho-de-ferro atravessava em linha recta como um i, atormentando várias vezes por dia a infeliz 45
cabana com o espectáculo de tanta beleza, distinção, elegância, saúde, baús de ouro e prata, artigos de retrosaria e de mercearia, jovens casais e esposos felizes, passando a toda a velocidade defronte daquela porta solitária. Sem tempo para parar; num clarão chegam e noutro partem. E o comboio perde-se de vista, como se esta parte do mundo tivesse sido feita apenas para ser cruzada a grande velocidade não para ser habitada. E era mais ou menos tudo o que a cabana via daquilo a que chamamos a vida.
Apesar de um tudo-nada perplexo, eu sabia mais ou menos a direcção da cabana e avancei. À medida que avançava, fiquei surpreendido ao ouvir o misterioso galo a cantar cada vez mais distintamente. Será que, pensei eu, um cavalheiro que possui um galo chinês mora numa região tão solitária e desolada? Sempre mais alto, sempre mais perto, soava o clarim cheio de glória e de desafio. Talvez me tenha enganado no caminho para casa do lenhador, pensei, mas, graças a Deus, parece que estou na pista deste galo extraordinário. Fiquei encantado com este feliz acaso. Segui o meu caminho enquanto o seu canto ressoava, a intervalos, da forma mais sedutora, jovial e esplêndida; e o cocorocó parecia vir de um local cada vez mais próximo. Por fim, emergindo de um grupo de sabugueiros, deparei com a mais resplandecente criatura que alguma vez recompensou o olhar de um homem.
Um galo que parecia uma águia com penas de ouro; um galo que parecia menos um galo que um marechal do exército; um galo que parecia menos um galo que o almirante Nelson equipado com todas as suas armas brilhantes e de pé na ponte do Vanguard antes da batalha; um galo que se parecia menos com um galo que com o imperador Carlos Magno vestido com a púrpura do seu trono em Aix-la-Chapelle.
Que galo!
Tinha uma figura nobre e um porte altivo. Era vermelho, dourado e branco. O vermelho só se encontrava na sua crista poderosa e simétrica, parecida com o elmo de Heitor como se vê desenhado nos escudos antigos. A plumagem
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era de neve com nervuras de ouro. Caminhava
diante da cabana como um par do reino: a crista levantada, o peito espetado, as grandes penas refulgindo ao sol. O seu porte era prodigioso. Dir-se-ia uma nobre personagem vinda de algures. Dir-se-ia um rei do Oriente numa sumptuosa ópera italiana.
Merrymusk saiu pela porta e deu alguns passos.
- Desculpe, mas este não é o Signor Beneventano?
- Senhor?
- É o galo - respondi um pouco envergonhado.
Na verdade, o meu entusiasmo levara-me a cometer uma imprudência bastante tola. Fizera uma alusão um tanto erudita a um homem inculto. Portanto, quando a sua honesta incompreensão me deu a entender o meu lapso, senti-me parvo; mas desembaracei-me dizendo: é o galo.
Tinha estado na cidade no Outono anterior
e quis a sorte que assistisse a uma representação da ópera italiana. Havia nessa ópera uma
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personagem real cujo papel era representado por um certo Signor Beneventano-um homem alto, de figura imponente, vestido com ricos tecidos que lembravam uma plumagem e cujo porte cheio de majestade e desdém era notável. O Signor Beneventano parecia estar prestes a tombar sob o peso excessivo da sua soberba. E o porte orgulhoso deste galo lembrava até ao equívoco o andar altivo com que o Signor Beneventano pisava o palco.
Caluda! O galo deteve-se subitamente, levantou a cabeça mais ainda, eriçou as penas, pareceu inspirado e soltou um vigoroso cocorocó. O monte Outubro repetiu-o, outros montes devolveram-no, outros ainda recuperaram-no; por fim, os seus ecos cobriram toda a região. Percebia agora claramente como ouvira na minha longínqua colina este ruído entusiasmante.
- Santo Deus! É você o dono do galo? O galo é seu?
- É o meu galo - disse Merrymusk com um ar de alegria matreira estampado no seu comprido e solene rosto.
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- Onde é que o arranjou?
- Quebrou a casca aqui. Fui eu que o criei.
- Você?
Ouçam! Mais outro cocorocó. Era de acordar os fantasmas de todos os pinheiros e abetos alguma vez abatidos na região. Que galo maravilhoso! Depois do seu cocorocó, o animal
retomou a sua passada larga rodeado por um
bando de galinhas, suas admiradoras.
- Quanto quer pelo Signor Beneventano?
- Senhor?
- Este galo mágico! Quanto quer por ele?
- Não está à venda.
- Dou-lhe cinquenta dólares por ele.
- Ora!
- Cem!
- Pff!
- Quinhentos!
- Bah!
- Mas você não é pobre?
- Isso não. Não possuo este galo e não recusei imediatamente vendê-lo por quinhentos dólares?
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- Isso é verdade - respondi, muito pensativo. - É um facto. Então não o quer vender?
- Não.
- Quereria dá-lo?
- Não.
- Quer então conservá-lo - gritei furioso.
- Sim.
Por instantes, olhei para o galo com admiração e para o homem com espanto. Por fim, senti redobrar a minha admiração por um e o meu respeito pelo outro.
- Então não entra? - perguntou-me Merrymusk.
- Não podemos convencer o galo a vir connosco? Respondi.
- Sim. Trombeta! Por aqui meu rapaz, por aqui!
O galo virou a cabeça e, com grandes passadas, dirigiu-se a Merrymusk.
- Anda!
O galo seguiu-nos e entrou na cabana.
- Canta!
O telhado vibrou.
Ó nobre galo!
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Voltei-me para o meu hospedeiro, em silêncio. Estava sentado em cima de uma velha mala toda amolgada, vestido com o seu esfarrapado casaco cinzento remendado nos cotovelos e nos
joelhos e com um chapéu lamentavelmente
deformado. Percorri a divisão com o olhar. No
tecto, traves nuas de onde pendiam robustas peças de carne seca. Um chão de terra batida, batatas num canto e, no outro, um saco de farinha de milho. Na outra ponta, estava uma manta estendida ao longo da habitação; mais
atrás ouviam-se as vozes sofredoras de uma
mãe e dos seus filhos. Mas parecia não haver qualquer queixa naquele sofrimento.
- A Sr.a Merrymusk e os seus filhos?
- É verdade.
Olhei para o galo. Mantinha-se majestosamente no meio da divisão. Parecia um Grande de Espanha surpreendido por uma chuvada e que se tivesse refugiado numa barraca de camponês. Emanava de si a estranha impressão de um contraste sobrenatural. Irradiava glória naquela cabana; transfigurava-lhe a miséria.
Transfigurava a velha mala amolgada e o casaco
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cinzento rasgado e o chapéu amolgado. Exaltava até as vozes que se elevavam em tons dolorosos atrás do pano.
- Ó pai! - exclamou uma vozinha doentia.
- mande o Trombeta cantar outra vez.
- Canta - gritou Merrymusk.
com um movimento brusco, o galo fez pose.
O telhado estremeceu.
- Isto não incomoda a Sr.a Merrymusk e as crianças doentes?
- Canta mais, Trombeta.
O telhado estremeceu.
- Então isto não os incomoda?
- Não os ouviu a pedi-lo?
- Como é que o cocorocó agrada à sua família? - interroguei. -O galo é notável e dotado de uma voz igualmente notável; mas poder-se-ia pensar que não é exactamente o género de bicho que convém a um quarto de doente. A situação agrada-lhes verdadeiramente?
- Será que não lhe agrada a si? Será que
isto não lhe faz bem? Não será nada exaltante?
Acha que isto não dá coragem e ânimo perante o desespero?
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- Tudo isso é verdade - disse eu, tirando o
chapéu com profunda humildade, face ao espírito corajoso que aquele casaco sórdido escondia.
- Mas, mesmo assim - retomei ainda tomado por uma certa apreensão -, um cocorocó tão poderoso, tão maravilhosamente tonitruante... talvez não seja bom para uma inválida e talvez atrase a sua convalescença.
- Canta agora o melhor que puderes, Trombeta.
Dei um salto na cadeira. Este galo assustava-me como se fosse um qualquer arcanjo destruidor do Livro do Apocalipse. Parecia exultar com a ruína da perversa Babilónia ou com o triunfo de Josué, o Justo, no vale de Ascalon.
Assim que recuperei a compostura, veio-me ao espírito uma curiosidade que resolvi satisfazer.
- Merrymusk, quer apresentar-me a sua
mulher e os seus filhos?
- Sim. Mulher, o senhor quer entrar.
- É bem-vindo - respondeu uma voz fraca. Depois de atravessar a cortina via-se um rosto humano que repousava, desfeito, mas habitado por uma alegria estranha; o corpo, coberto por uma colcha e por um casaco velho, parecia demasiado diminuído para que se pudesse adivinhar através destes obstáculos. Uma criança pálida estava sentada à sua cabeceira e cuidava dela. Numa outra cama, estavam deitadas lado a lado três crianças, mais três caras pálidas.
- Oh, pai, não temos nada contra o senhor, mas queremos ver o Trombeta também.
Ao ouvir o seu nome, o galo passou por detrás do pano e foi-se empoleirar na cama das crianças. Os seus olhos mortiços fixaram-no com um encantamento selvagem, místico. A sua plumagem radiosa era como um sol que
os tivesse aquecido.
- É mais forte que um boticário, não? disse Merrymusk - Aqui está o Dr. Galo em pessoa.
Retirámo-nos e voltei a sentar-me na cadeira,
perdido nos pensamentos que aquela estranha família me inspirava.
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- Você parece-me um rapaz muito independente! - disse-lhe por fim.
- E você, não creio que seja um tolo e nunca acreditei que fosse. Senhor, você é um homem de ouro.
- Há alguma hipótese de a sua mulher se curar? - perguntei, tentando modestamente desviar a conversa.
- Não.
- E as crianças?
- Também não.
- Então, a vida deve ser dolorosa para cada
um de vós. Esta solidão, esta cabana, trabalhos penosos, uma época difícil...
- Não tenho o Trombeta? É ele que me dá coragem. Ele canta em qualquer altura; canta nas trevas mais profundas: glória a Deus nas alturas! É isto que ele canta, continuamente.
- Era esse exactamente o sentido que eu atribuía ao seu canto, Merrymusk, quando o ouvi da minha colina pela primeira vez. Imaginava um rico nababo, dono de um galo chinês
valioso. Nunca pensei que um pobre homem
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como você possuísse um galo assim tão vigoroso e de raça doméstica.
- Um pobre homem como eu? Porque me chama pobre? Não será o meu galo que espalha glória numa terra que, sem ele, seria ignóbil, mesquinha e ínfima? O meu galo não lhe deu coragem? E eu ofereço-lhe toda esta glória de graça. Sou um grande filantropo. Sou um homem rico, um homem muito rico e feliz. Canta, Trombeta.
O telhado estremeceu.
Regressei a casa, profundamente absorto.
Não estava totalmente convencido da razão do
ponto de vista de Merrymusk, embora tivesse uma profunda admiração por ele. Ainda reflectia quando cheguei à minha porta e voltei a ouvir o galo cantar. Chegava. Merrymusk tinha razão.
Oh nobre galo! Oh, nobre coração!
Não o voltei a ver durante algumas semanas; mas, pelo som deste cocorocó pleno de glória e de alegria, calculava que em casa dele prosseguiam a sua vida quotidiana. Quanto a mim, o meu espírito estava sempre propenso à
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alegria. O galo continuava a animar-me. Vi mais uma hipoteca sobre a minha plantação; mas contentei-me em comprar mais uma dúzia de garrafas de cerveja stout e de cerveja preta de
Filadélfia. Alguns parentes meus faleceram; não fiz luto, mas durante três dias bebi mais cerveja preta do que stout, devido à sua cor mais escura. Ouvi o galo cantar no momento em que recebi estas funestas notícias.
- Bebo esta cerveja à tua saúde, ó nobre galo!
Pensava fazer outra visita a Merryrnusk pois já há algum tempo que não o via nem tinha notícias dele. Quando me aproximei da cabana, parecia estar deserta. Tive um estranho pressentimento. Mas o galo cantou no interior e a minha ansiedade desapareceu.
Bati à porta. Uma voz fraca convidou-me a entrar. A cortina já não estava puxada; toda a casa era agora um hospital. Merryrnusk jazia sobre vários farrapos velhos; a mulher e as crianças estavam de cama. O galo estava empoleirado num velho arco de barrica que balouçava
sobre o espigão, no meio da cabana.
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- Está doente, Merrymusk - disse-lhe num
tom triste.
- Não, estou bem - respondeu fracamente.
- Canta, Trombeta.
Estremeci. Esta alma tão forte neste corpo tão fraco enchia-me de pavor. Mas o galo cantou.
O telhado estremeceu.
- Como está a Sr.a Merrymusk?
- Bem.
- E as crianças?
- Bem. Muito bem!
Disse as últimas palavras numa espécie de êxtase selvagem, como se triunfasse na calamidade. Foi demais. A cabeça descaiu novamente. Dir-se-ia que um guardanapo branco lhe caia sobre o rosto. Merrymusk tinha morrido.
Um medo atroz apoderou-se de mim.
Mas o galo cantou.
O galo sacudiu a plumagem como se cada uma das suas penas fosse um estandarte. O galo estava pendurado no tecto da cabana tal como, outrora, os estandartes na Catedral de
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São Paulo. O galo inspirava-me uma admiração extrema e terrível.
Aproximei-me da cabeceira da mulher e das crianças. Viram o meu aspecto e o meu estranho medo; souberam o que tinha acontecido.
- O meu valente marido morreu agora mesmo - disse a mulher num murmúrio. - Diga-me a verdade.
- Está morto - respondi-lhe. O galo cantou.
Desfaleceu sem soltar um suspiro, morta por simpatia e por um grande amor.
O galo cantou.
O galo sacudiu da sua plumagem de ouro uma nuvem de centelhas. O galo parecia arrebatado por um alegre e benévolo êxtase. Desceu do aro da barrica com um salto, com grandes passadas majestosas aproximou-se do monte de trapos velhos onde jazia o velho lenhador e plantou-se a seu lado como a figura de um brasão. Depois lançou um único cocorocó, longo, musical, triunfante, definitivo, com a goela bem esticada como se quisesse com aquela fanfarra enviar a alma do seu dono direitinha
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para o sétimo céu. Depois caminhou, como um rei, até à cama da mulher. Outro cocorocó brotou para o céu, exultante, e uniu-se ao primeiro.
A palidez das crianças transformou-se em resplendor. Os seus rostos brilhavam com uma luz celeste sob a sujidade e sob a porcaria. Dir-se-iam filhos de reis e de imperadores disfarçados. O galo saltou para a cama deles, sacudiu-se, e voltou a cantar. Parecia decidido a cantar até que as almas abandonassem aqueles corpos destroçados e a reunir a família toda sem demora nas regiões do éter. Parecia que as crianças apoiavam os seus esforços. Um desejo de libertação vindo de muito longe, profundo, intenso, transformou-os em seres espirituais perante os meus olhos. Vi anjos onde eles repousavam.
Estavam mortos.
O galo sacudiu a plumagem por cima deles. O galo cantou. Era naquele momento como que um viva, como um hip-hip-hurra! Saiu da cabana. Segui-o. Voou até ao cume do edifício, estendeu as grandes asas, fez soar uma única nota sobrenatural e caiu a meus pés.
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O galo estava morto.
Se visitarem hoje esta região de colinas, vêem perto do caminho-de-ferro, mesmo em baixo no monte Outubro, do outro lado do pântano, uma pedra tumular onde o buril gravou em vez de caveira e ossos cruzados, um vigoroso galo cantador e estas palavras por baixo:
Ó morte, onde está o teu aguilhão?
Ó morte, onde está a tua vitória?
O lenhador e a família repousam neste sítio, na companhia do Signor Beneventano; e fui eu que os enterrei e que levantei esta pedra, expressamente talhada por encomenda. Desde então, nunca mais reincidi nos meus
humores negros e canto de manhã e à noite, em todas as circunstâncias, um cocorocó perpétuo.
Cocorocó! Ó! Ó! Ó!
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FELIZ INSUCESSO
Um conto do rio Hudson
Tinha combinado encontrar-me com o meu velho tio de manhã, à beira-rio, às nove horas em ponto. A canoa estaria pronta a partir e seria guiada pelo seu velho criado negro de cabeça grisalha. Até então, a natureza exacta da prodigiosa experiência permanecia para todos um mistério, excepto para aquele que tinha concebido o projecto.
Fui o primeiro a chegar ao local. A aldeia ficava longe, a montante, e o sol de Verão no interior das terras era já opressivo àquela hora. Em breve vi o meu tio a aproximar-se pelo meio das árvores, sem o chapéu, e a limpar a testa, enquanto mais atrás, ao longe, caminhava vacilante o pobre velho Yorpy, trazendo às costas um objecto enigmático.
- Hurra! Vamos, coxeia lá, Yorpy! - gritava
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o meu tio, voltando-se de vez em quando impacientemente .
Quando o negro, coxeando sempre, chegou à canoa, apercebi-me de que o tal objecto enigmático se tinha transformado numa enorme caixa oblonga de aspecto miserável, hermeticamente fechada. Esta caixa inexpressiva como uma esfinge aumentava o mistério no meu espírito.
- É esse o misterioso aparelho? - perguntei eu, estupefacto. - Eh, não passa de um velho baú de tecidos amolgado e pregado! É realmente essa coisa, meu tio, que lhe vai render um milhão de dólares antes do fim do ano? É
apenas uma caixa de cinzas velha e lastimável!
- Põe-na barca! - rugiu o meu tio, dirigindo-se a Yorpy sem dar atenção ao meu juvenil desdém. - Põe-na lá dentro, querubim de cabelo grisalho. Mas com cuidado! Se essa caixa rebenta, é uma fortuna eterna que desaparece.
- Rebenta? Desaparece? - disse eu, muito assustado. - Espero que não esteja cheia de combustível! Mais vale ir depressa para aquele lado do barco!
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- Sossega, grande tolo! - gritou o meu tio outra vez. - Trepa a bordo, Yorpy, e agarra-te à caixa com unhas e dentes enquanto me afasto para o largo. Devagar! Devagar, negro cretino! Presta atenção ao outro lado da caixa! Queres
dar cabo dela?
- A caixa que vá pró diabo que a carregue
- balbuciou o velho Yorpy que era uma espécie de holandês de África - Há dez anos qu'eu faço o melhor que posso.
- Então, partamos. Pega num remo, rapaz; tu Yorpy, agarra a caixa com força. Cá vamos nós. Devagar! Devagar! Tu, Yorpy, pára de sacudir a caixa. Devagarinho! Devagarinho! Está ali a aparecer um grande tronco. Faz força agora. Hurra! Finalmente temos profundidade! Agora com coragem, rapaz, e faz-te à ilha.
- À ilha? - admirei-me eu. - Não há nenhuma ilha nestas paragens.
- Há uma, dez milhas acima da ponte disse o meu tio com determinação.
- Dez milhas! Vamos arrastar este velho baú
de trapos durante dez milhas rio acima com
este sol escaldante?
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- Tudo o que tenho a dizer - respondeu o meu tio com firmeza - é que vamos a caminho da ilha de Quash.
- Misericórdia, meu tio! Se eu tivesse sabido
que era preciso remar durante dez longas milhas sob este sol ardente, o tio não me teria
convencido tão facilmente. O que está dentro do baú? Pedras da calçada? Veja como a barca se afunda com o peso. Não vou ajudá-lo a carregar uma caixa cheia de pedras durante dez milhas. Que interesse tem arrastar pedras da calçada?
- Ouve bem, palerma - disse o meu tio, parando de remar. - Pára de remar, estás a ouvir? bom. Se agora não queres que se reflicta em ti a glória da minha experiência, se a perspectiva de partilhar a fama imortal te deixa absolutamente indiferente, então, digo-te que, se não tens interesse em assistir à primeira grande experiência do meu Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático para dragar pântanos e lameiros, à razão de um talhão por hora, e transformá-los em campos mais fecundos que os de Genessee, se, repito, daqui a muito tempo, quando a
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minha velha pessoa estiver morta e enterrada, meu rapaz, não quiseres ter uma coisa tão bela para contar aos teus filhos e aos teus netos, podes desembarcar agora mesmo.
- Oh, meu tio, eu não queria...
- Nem uma palavra, senhor! Yorpy, pega no remo dele e ajuda-me a levá-lo para a margem.
- Mas, meu querido tio, garanto-lhe que...
- Nem uma palavra, senhor; manifestou abertamente o seu desprezo pelo Grande Aparelho Hidráulico e Hidrostático. Yorpy! Fá-lo desembarcar, Yorpy. O fundo aqui está mais acima. Salta para a água, Yorpy, e acompanha-o até à margem.
- Meu querido, meu amável, meu generoso tio, peço que me perdoes só desta vez e não volto a dizer palavra sobre este aparelho.
- Não voltas a dizer palavra? Quando a minha finalidade, o meu objectivo declarado é torná-lo célebre! Ele que saia do barco, Yorpy.
- Ora esta! Meu tio, recuso-me a largar este remo. Embarquei neste negócio e tenciono ficar. Não vai despojar-me da minha parte da glória.
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- Ah, até que enfim. Aí está uma coisa razoável. Podes ficar, rapaz. Agora, força.
Ficámos um instante em silêncio, dando
remadas vigorosas e regulares. Afinal, corria o risco de passar a vau uma segunda vez.
- Sinto-me feliz, querido tio, por me teres revelado ao menos a natureza e o objectivo da tua grandiosa experiência. Trata-se de drenar efectivamente os pântanos; uma obra, querido tio, em que te bastará ter êxito (e sei que terás) para te garantir a glória que foi recusada a um imperador romano. Ele tentou secar os pântanos Pontinos, mas foi um fracasso.
- O mundo avançou muito desde essa época
- disse orgulhosamente o meu tio. - Se esse imperador romano aqui estivesse, mostrava-lhe o que é possível fazer neste século esclarecido.
Vendo o meu tio mais calmo, arrisquei outra
?? observação:
- É a isso que se chama remar contra a
maré, meu tio.
- Não se chega à glória sem remar contra a maré, meu rapaz. Tal como fazemos neste momento. A tendência natural do homem é seguir a corrente universal e afundar-se no esquecimento.
- Mas para quê remar para tão longe, querido tio, nas actuais circunstâncias? Para quê remar dez milhas em busca da glória? Propõe-se simplesmente, creio, testar a sua admirável invenção. E não a podíamos pôr à prova mais ou menos em qualquer sítio?
- Que ingénuo - disse o meu tio. - Queres que algum espião maldoso me roube o fruto de dez longos anos de um trabalho magnânimo e assíduo? O meu projecto nasceu na solidão e é na solidão que o vou pôr à prova. Se falhar, pois tudo é possível, ninguém para além da família saberá o que quer que seja. Se tiver êxito, fortalecido pelo segredo da minha invenção, poderei pedir audaciosamente qualquer preço pela sua divulgação.
- Peço-lhe perdão, meu querido tio. É mais sábio que eu.
- Tão grande espanto, meu rapaz, quando a idade e os cabelos brancos trazem sabedoria?
- E aqui o Yorpy, meu querido tio, acha
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que o seu colmo grisalho abriga um cérebro muito fortalecido pelos anos?
- Serei eu o Yorpy, garoto? Contenta-te em remar!
Tendo dado por mim a meter assim o pé na
argola uma segunda vez, não voltei a dizer palavra até ao momento em que a barca raspou no fundo, a uma vintena de metros da ilha e do seu denso arvoredo.
- Caluda! - murmurou o meu tio com uma
expressão intensa. - Agora nem mais uma palavra!
Ficou perfeitamente imóvel no banco, percorreu lentamente com os olhos toda a região circundante até às margens do rio cujo leito era muito amplo naquele sítio.
Mesmo assim, cuidado! Desembarca depressa, põe o baú ao ombro e... um momento! -
Ficámos mais uma vez imóveis.
- Não é uma criança que se vê além, sentada como Zacarias na árvore deste pomar, na outra margem? Olha, rapaz, os teus olhos jovens são melhores que os meus. Não vês nada?
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- Vejo muito bem o pomar, meu caro tio, mas não vejo nenhuma criança.
- É um espião, eu sei - disse subitamente o meu tio sem ligar à minha resposta, o olhar fixo e a mão a fazer de pala. Não toques na caixa, Yorpy! Agachem-se, agachem-se todos!
- Mas, meu tio, ali, veja, essa criança não é mais que uma ramada seca e esbranquiçada. Agora vejo-a muito bem.
- Não estás a ver a árvore de que falo respondeu o meu tio com alívio evidente. - Mas não importa; esse rapaz é-me indiferente. Yorpy, desce e traz a caixa. E agora, jovem, tira os sapatos e as peúgas, arregaça as calças e segue-me. Tem cuidado, Yorpy. Tem cuidado. Lembra-te de que esse baú é mais precioso do que se estivesse cheio de ouro.
- E é pesado como o ouro - resmungou Yorpy, vacilando sob o peso, enquanto se movia lentamente na beira do talude.
- Aí. Pára debaixo dos arbustos - ali entre
os lírios. - Assim, devagarinho, devagarinho. Pronto. Pousa-a aí mesmo. Pronto, jovem? Vamos, em bicos de pés, em bicos de pés!
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- Não posso atravessar esta água e esta lama em bicos de pés, meu tio. Além disso, não vejo a utilidade.
- Desembarque, senhor. Imediatamente!
- Mas, meu tio, já desembarquei.
- Calma! Segue-me e nem mais uma palavra.
Agachado na água, escondido entre os arbustos e os altos caules dos lírios, o meu tio tirou furtivamente um martelo e uma chave-inglesa de uma das suas enormes algibeiras e começou a dar pequenas pancadas na caixa.
Mas o ruído alarmou-o.
- Yorpy - murmurou -, vai pela direita, por trás dos arbustos e fica de sentinela. Se vires alguém aproximar-se, assobia baixinho. Tu, jovem, faz o mesmo do lado esquerdo.
Voltámos a obedecer e, em breve, após firmes marteladas, a voz do meu tio soou no silêncio absoluto. Gritava, ordenando que regressássemos.
Voltámos a obedecer e vimos que a tampa
da caixa tinha sido retirada. Olhei avidamente para o interior e avistei uma quantidade
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espantosa de tubos e de seringas metálicas em forma de saca-rolhas, de todas as espécies e
variedades, de todos os tamanhos e calibres,
enredadas de forma labiríntica numa única
meada gigantesca. Parecia um enorme ninho
de anacondas e víboras.
- Agora, Yorpy - disse o meu tio muito animado, corado devido à antecipação da glória -, mantém-te deste lado e prepara-te para a inclinares assim que eu der o sinal. E tu,
jovem, prepara-te para fazer o mesmo do outro lado. Atenção! Não a desloquem nem um centímetro antes do meu sinal. Tudo depende do exacto ajustamento.
- Não tenha receio, meu tio. Serei tão meticuloso como uma pinça de depilação para as senhoras.
- Não levanto esta pesada caixa antes do sinal - grunhiu o velho Yorpy. - Esteja descansado.
- Ó meu rapaz! - disse então o meu tio, levantando a cabeça com um ar de devoção, enquanto um brilho de verdadeira nobreza 75
irradiava dos seus olhos cinzentos, das suas
madeixas grisalhas e do seu rosto enrugado.
- Ó meu rapaz, chegou a hora que me deu alento durante dez longos anos, na minha laboriosa obscuridade! A fama, por muito tarde que chegue, será ainda mais doce; e, sendo eu um velhote e não uma criança como tu, ela será ainda mais pura. Ó Tu que és o meu apoio! Eu Te glorifico.
Inclinou o rosto venerável e, tão verdade
como eu estar vivo, uma lágrima caiu do meu rosto e perdeu-se nas águas do rio.
- Inclinem!
Inclinámos.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Um pouco mais! Inclinámos um pouco mais.
- Só mais um pouco, um bocadinho. com grande dificuldade, inclinámos só mais um pouco, um pouquinho.
Entretanto, o meu tio inclinava-se subitamente sobre a caixa de anacondas e víboras entrelaçadas, esforçando-se por ver o conteúdo;
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mas, por a máquina estar dali em diante demasiado funda, esforçava-se em vão.
Endireitou-se e, resoluto e ainda confiante,
mas já perturbado e contrariado, contornou
lentamente a caixa.
Era evidente que alguma coisa corria mal. Mas como eu me mantinha na mais completa ignorância dos mistérios daquele engenho, não sabia dizer qual era o transtorno, nem remediar a situação.
Uma vez mais, em passos cada vez mais lentos e ainda mais contrafeito, o meu tio contornou a caixa. O descontentamento crescia nele, mas sempre contido, e, no entanto, ele mantinha uma certa esperança.
Percebia-se a olhos vistos: não se tinham
verificado os efeitos com que ele contara. Tinha também a certeza de que em torno das minhas pernas o nível da água não baixara.
- Inclinem-na mais um bocadinho, só um bocadinho.
- Meu querido tio, já está tão inclinada quanto possível. Não está a ver que está praticamente assente no fundo?
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- Tu, Yorpy, tira a tua pata preta de debaixo
da caixa!
O ataque de fúria que se apoderou do meu
tio dava ao caso um ar mais duvidoso e mais
obscuro ainda. Mau sinal, pensei eu.
- com certeza podem incliná-la só mais um pouco
- Nem sequer um milímetro, meu tio.
- Então, que o fogo e a febre atinjam esta maldita caixa! - rugiu o meu tio com uma voz terrível, brusca como uma rajada de vento. Atirou-se para cima da caixa e deu-lhe um pontapé, descalço, com uma força espantosa que quase lhe rebentou o lado. Depois, agarrando-a decididamente com as mãos, arrancou lá de dentro todas as víboras e anacondas como
se lhe estivesse a tirar as vísceras antes de as
torcer e de as deitar para a água.
- Espere, espere, meu querido, meu muito querido tio! Por amor de Deus, pare, peço-lhe." Não destrua assim, num único momento de exaltação, todos os longos e serenos anos que consagrou a um projecto tão querido. Espere, suplico-lhe!
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Comovido com o meu tom veemente e com
as minhas lágrimas, ele interrompeu a sua obra
destruidora e fixou-me com um olhar resoluto
ou, na verdade, com um olhar inexpressivo de demente.
- Não está ainda completamente desfeita, meu querido tio. Venha montá-la outra vez. Tem o seu martelo e a sua chave-inglesa: repare-a e tentemos mais uma vez. Enquanto há vida, há esperança.
- Enquanto houver vida, passará a haver agora desespero - berrou ele.
- Vamos lá, peço-lhe, meu querido tio. Tome, junte outra vez esses bocados; ou, se não tiver todas as ferramentas necessárias, tente reconstruir uma parte. Também está bem. Tente só uma vez; tente, meu tio.
Por fim a minha paciência e persuasão deram resultado. A esperança, tal tronco tenaz que desafia a serra e o machado, fez brotar um último rebento milagroso e verdejante.
Tendo recolhido calma e minuciosamente
certos fragmentos muito bizarros, enroscou-os misteriosamente uns nos outros; depois,
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desentulhando o interior da caixa, colocou-os
lá dentro com gestos lentos. Quis que eu e o Yorpy ocupássemos a mesma posição que anteriormente e mandou-nos incliná-la mais
uma vez.
Fizemos o que nos era pedido e, como não houve resultado perceptível, esperei a todo o instante que nos fizesse sinal para inclinarmos a caixa mais um pouco, até ao momento em que olhei para o seu rosto e me assustei. Parecia contraído, encarquilhado, com uma palidez de bolor, como um cacho de uvas atingido pelo míldio. Larguei a caixa e corri para ele mesmo a tempo de impedir que caísse.
Deixando a funesta caixa onde a tínhamos
pousado, Yorpy e eu ajudámos o velho homem a subir para a barca antes de nos afastarmos em silêncio da ilha de Quash.
Como a corrente nos levava agora depressa!
Como nos tínhamos cansado ao remar tão
pouco tempo antes! Pensava nas palavras do meu tio que, apenas uma hora antes, tinha descrito a humanidade universalmente arrastada para um esquecimento total.
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- Meu rapaz - disse por fim o meu tio levantando a cabeça.
Olhei-o com emoção e fiquei contente por ver que a terrível perda de viço quase tinha desaparecido do seu rosto.
- Meu rapaz, já não há muita coisa que um pobre velho possa inventar neste velho mundo.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, segue este conselho: não tentes nunca inventar o que quer que seja, excepto a felicidade.
Fiquei calado.
- Meu rapaz, dá a volta e vamos buscar a caixa.
- Meu querido tio!
- Vai dar boa lenha, meu rapaz. E o fiel velho Yorpy poderá vender a sucata para comprar tabaco.
- Querido senhor! Querido senhor! É a primeira vez que mostra bondade para com o velho Yorpy em seis longos anos. Obrigado, querido senhor; obrigado de todo o coração. Voltou a ser o mesmo, ao fim de dez longos anos.
- É verdade, dez longos anos - suspirou o
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meu tio. - Anos dignos de Esopo. Mas agora tudo acabou. Meu rapaz, estou contente por ter falhado. Sabes, meu rapaz, o insucesso fez de mim um bom velhote. Primeiro foi horrível,
mas estou contente por ter falhado. Deus seja louvado por este insucesso!
Uma seriedade estranha, estática, irradiou do seu rosto. Nunca mais esqueci aquele olhar. Se o incidente fez dele um bom velhote, como dizia, fez de mim um jovem sábio. O exemplo foi para mim uma experiência de vida.
Alguns anos depois, o meu querido e velho tio começou a definhar e quando, após dias agradáveis de contentamento outonal, se foi tranquilamente juntar aos seus antepassados, foi o fiel Yorpy quem lhe fechou os olhos. E no momento em que eu contemplava aquele rosto venerável pela última vez, os seus lábios pálidos pareceram mexer-se. Pareceu-me ouvi-lo exclamar novamente com profundo fervor: "Deus seja louvado por este insucesso!"
Herman Melville
O melhor da literatura para todos os gostos e idades