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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FELIZES NO ATAÚDE / Lou Carrigan
FELIZES NO ATAÚDE / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Depois do desgosto que Brigitte teve com o final de sua aventura com Antenor1, Número Um a tinha levado para Malta, onde passaram dias maravilhosos de paz e de felicidade.

Mas durou pouco aquela paz. Número Um levou Brigitte “Baby” Montfort para a França. Motivo: a CIA requisitara com urgência a presença da agente “Baby” em Cannes. E quando a CIA se atrevia a incomodar “Baby”, sabendo que ela estava com Número Um, não havia dúvida: o caso era realmente de grande importância.

Enquanto voava para o aeroporto de Nice, onde alugaria um carro para seguir até Cannes, Brigitte lembrava-se dos dias de amor vividos com Número Um e o observava, no comando do avião. Como sempre Número Um estava enfezado com a CIA, por privá-lo da companhia de Brigitte. Ele, porém, preferia recordados momentos passados em Villa Tartaruga e afastar o temor de que pudesse acontecer algo de grave na próxima missão da divina espiã.

Em que está pensando? — perguntou Brigitte de repente.

Número Um parou de olhar o céu e o mar que se estendiam diante dele e voltou-se para Brigitte. Fixou-se nos olhos dela, azuis, grandes, limpes, de um azul mais belo que o mar e que o céu e perguntou por sua vez:

Digo?

Por que não? — exclamou ela, surpresa.

Ver aventura anterior a esta: “Destruidores de Mundo”

Porque você é meio esquisita. Não tem limites na hora do amar, mas não gosta de fazer comentários depois sobre esses momentos.

Oh, bom — balbuciou a agente “Baby”, corando ligeiramente. — Certos momentos são para serem vividos e não para serem comentados. Então, por isso você me acha meio esquisita, hem?

Maravilhosamente esquisita. Quer saber, mesmo, o que eu estava pensando?

Acho melhor não dizer... e repetirmos os momentos de amor na primeira ocasião.

De acordo. Se houver outra ocasião, é claro.

Oh, por favor, querido. Não recomece com isso, sim? Eu sempre volto para seu lado. Sou indestrutível, não é?

Se a CIA mandou aviso para a Villa Tartaruga o caso deve ser de muita importância. Geralmente eles não gostam de aborrecê-la.

É verdade — admitiu Brigitte. — Não sei como você conseguiu fazer para que o tratem com tanto respeito. Às vezes, chego a pensar que lhe têm medo.

É possível. Se eu não fosse o homem a quem você ama, certamente já teriam resolvido acabar comigo.

 

 

 

 

Nenhum agente da CIA, nenhum Johnny, aceitaria o encargo de matar o homem amado por “Baby” — murmurou ela. — De qualquer modo, pensariam muito, antes de incomodarem Número Um. Você não é precisamente uma pessoa indefesa e inofensiva, meu amor.

Nem você, eu sei, mas... gostaria de acompanhá-la, desta vez.

Para proteger-me?

Sim. Não tenho o direito de proteger a minha vida?

Sua vida? Estávamos falando da minha.

Dá no mesmo: sua vida é a minha vida.

Brigitte Montfort tornou a ficar corada. Desta vez, de satisfação. Pousou a mão na dele e, durante alguns segundos, entreolharam-se fixamente.

Está certo — disse ela. — Se for possível, você irá comigo para defender... sua vida.

A viagem prosseguiu sem novidade. Número Um era um piloto experiente. Seu aviãozinho estava sempre preparado e a possibilidade de um acidente era quase inadmissível. Quando chegaram a Nice não precisaram alugar um carro porque um homem os esperava no aeroporto. Mal os viu surgir no vestíbulo, encaminhou-se para eles. Não se surpreendeu do olhar de ambos se cravar em sua figura, especulativamente. Em seguida, sorrindo, a belíssima mulher de olhos azuis balançou a cabeça. O homem compreendeu que havia sido identificado e apresentou-se formalmente:

Sejam bem vindos. Sou Johnny.

Como vai, Johnny? — murmurou Brigitte.

Não preciso apresentar meu companheiro, não é mesmo?

Não... Não é necessário — disse o agente da CIA, observando, impressionado, Número Um. — Como está, senhor?

Bem.

Estimo, senhor. Tenho um carro esperando? Somos aguardados em Cannes, com impaciência e não temos muito tempo.

O que aconteceu? — perguntou Brigitte.

Não sei.

Brigitte não insistiu. A ideia de um agente da CIA negar informações era absurda. Se Johnny dizia que não sabia, é porque não sabia mesmo.

Minutos mais tarde viajavam para Cannes, num automóvel. Falaram pouco durante o trajeto. A distância entre o aeroporto de Nice e Cannes era tão curta, que parecia mais um passeio. Às quatro da tarde o carro parou diante de um chalé situado nos arredores de Cannes, perto das montanhas, na parte de Le Cannet. Johnny saiu do carro e abriu a porta para Brigitte. Número Um saiu pelo outro lado.

A porta do chalé abriu-se antes deles chegarem a ela. Um homem parecido com Johnny encarou Brigitte fixamente, tentando, sem muito êxito, esboçar um sorriso. No mesmo instante Brigitte “Baby” Montfort soube o que havia acontecido. Ou, ao menos, parte do caso: haviam assassinado um agente da CIA. Um Johnny.

Esperam-na na sala — murmurou ele. Olhou Número Um e acrescentou: — O senhor também, é claro.

Os três entraram na sala. Mais três homens lá se encontravam. Todos da CIA, naturalmente.

Havia também uma mulher. Uma bela mulher loura, de trinta anos, olhos azuis, boca vermelha e sensual, vestida com elegância um tanto excessiva para o gosto de Brigitte. Uma mulher que, imediatamente, dirigiu um olhar a Número Um, ficando pasmada. Brigitte enrugou a testa. Olhou disfarçadamente para ele e quase sorriu ao ver-lhe o rosto impassível. Hermético como uma pedra.

O homem mais idoso adiantou-se para eles e limitou-se a fazer um cumprimento de cabeça. Em seguida apontou a loura que continuava olhando para Número Um, fascinada.

É a senhora Arnold Griffin, em solteira, Jennifer Porter, de nacionalidade britânica.

Não apresentou Brigitte e Número Um. O espião limitou- se a fazer uma leve inclinação de cabeça, enquanto Brigitte perguntou cortesmente:

Como vai, senhora Griffin?

Bem, obrigada. Agora, porém, sou a viúva de Arnold Griffin.

Sinto muito — murmurou Brigitte.

Jennifer Porter deu de ombros, deixando patente que a viuvez não era coisa capaz de amargar sua vida.

A senhora Griffin ia dar um passeio, neste momento

informou o Johnny-Cannes. — Até logo, senhora Griffin.

Até logo — respondeu Jennifer, sorrindo. — Espero vê-los na volta.

Falou olhando especialmente para Número Um. Teria conseguido melhor resposta, se tivesse balado com WT. lotem indígena. Brigitte teria sorrido, caso não soubesse que haviam assassinado um de seus Johnnies. Apesar disso, quando Jennifer saiu, a espiã perguntou:

Mataram um Johnny?

Dois — respondeu Johnny-Cannes, passando a língua pelos lábios. E acrescentou rapidamente: — Não eram propriamente agentes a quem você costuma chamar de Johnny. Quero dizer: não pertenciam ao Grupo de Ação. Faziam trabalho nos meios diplomáticos.

É um pequeno consolo — admitiu Brigitte, sentando- se. — Mas não deixam de ser companheiros, embora não sejam de capa e espada. Como morreram?

Num acidente de automóvel.

Provocado?

Pensamos que sim porque, posteriormente, o carro incendiou-se. Mas não em virtude do acidente. Foi regado com gasolina.

Então além da gasolina do próprio carro, acrescentaram mais combustível?

Exato. Felizmente um caminhoneiro que circulava pela estrada viu o incêndio, correu para lá com o extintor do caminhão e controlou um pouco o fogo. Se não fosse isso, teríamos encontrados os corpos já transformados em cinzas. E não seria fácil identificá-los, porque tiraram tudo quê eles carregavam e que pudesse servir: anéis, relógios, carteiras... Tudo.

Não é tão fácil evitar a identificação de dois cadáveres

disse Brigitte. — Principalmente, contando com o carro. Era de chapa diplomática?

Sim.

Então essa tentativa me parece ridícula. Contando com o carro e com mais algum detalhe que sempre resta, nós os teríamos identificado. Logo, não compreendo porque tanto trabalho. O que me diz do carro? Fora avariado?

Aparentemente, não. Ainda estão estudando essa parte.

Compreendo. Não deve ser fácil trabalhar com um veículo incendiado e acidentado. Os cadáveres apresentavam algum ferimento de bala ou de faca?

Não. Se não fosse pelo acréscimo de gasolina, o acidente pareceria autêntico. Alguém, sem dúvida, seguiu o carro no qual viajavam os dois diplomatas. Quando chegaram à estrada, fizeram alguma coisa, além de queimarem o automóvel. Pelo menos é o que nós imaginamos.

Talvez quisessem obter passaportes ou algum outro tipo de documento, hem? Os dois levavam os passaportes... ou algum documento especial?

Não. Nada. Segundo todas as informações iam passar o fim de semana num agradável hotelzinho, perto de Dover.

Sozinhos? Dois homens sozinhos?

Estavam sozinhos no carro.

Sim. Bem, então eram espiões-diplomatas. Qual era a categoria deles? Que resultados apresentavam no trabalho?

Vulgares. Não eram gênios na diplomacia. Gente comum. Chamavam-se Wilbur Ketchman e Arnold Griffin.

Ah, Griffin... Então, a senhora Griffin é uma viúva recente?

Recentíssima. Estava separada do marido há tempos e mora na Costa Azul. Ela de nada sabe, é claro. Fomos os primeiros a lhe dar a notícia e ela concordou em colaborar conosco. Principalmente depois de garantirmos que ela não correrá risco algum. Que tudo se resume em aceitar a nossa hospitalidade, durante alguns dias.

Vamos retirá-la de circulação?

Sim. Mas achamos conveniente a senhora Griffin fazer ato de presença.

Oh, não... Vou ser a senhora Griffin?

Achamos que seria interessante. De qualquer modo, pensamos que você não se importaria de fazer uma viagem por mar: Londres-Nova York.

Já fiz a travessia do Atlântico por mar, há muito tempo

murmurou Brigitte.

Gostaríamos de descobrir porque quiseram transformar os dois cadáveres em cinzas. Pensamos que talvez insistam, se lhes dermos certas facilidades. Por isso, em lugar de enviarmos os corpos de avião para os Estados Unidos, decidimos fazê-lo por mar. Não espantaria ninguém o fato da viúva de um dos mortos acompanhar os restos do marido de volta à pátria. Mesmo que apenas por interesse. Testamento e coisas assim.

Mas... não estavam separados?

Separados fisicamente. De comum acordo. Não estavam divorciados. Não se suportavam há algum tempo. Bem, são coisas que acontecem. De qualquer modo, para efeitos legais, a senhora Griffin é a herdeira de Arnold Griffin.

Sim, entendo. Ninguém se espantará, é lógico, dela querer ir aos Estados Unidos ver que parte abocanha. Não é um papel muito lúcido o que serei obrigada a fazer. Além disso, é uma mulher bastante vulgar, mesmo querendo vestir- se bem. E sou mais bonita que ela... tenho um tipo melhor.

É verdade — admitiu, sorrindo, o Johnny-Cannes — Recebi instruções no sentido de lhe fazer esta proposta. Se aceitar, começaremos os preparativos para se apresentar, o quanto antes, em Londres, como a senhora Jennifer Griffin. Será difícil para você parecer vulgar, bem sei. Mas já fez coisas muito mais complicados. Devo estar algumas, das que chegaram a meus ouvidos?

Não é necessário — disse Brigitte, esboçando um sorriso. — Bem, enfim, temos dois diplomatas que trabalhavam subterraneamente para a CIA e que, segundo acreditamos, foram assassinados com o velho truque de uma avaria no carro. E segundo tudo indica, quiseram transformá- los em cinzas... Oh, uma coisa: fizeram autópsia em Griffin e em Ketchman?

Não. Nós os transformamos em intocáveis. Agimos de modo a todo o mundo ficar sabendo que a autópsia será feita nos Estados Unidos.

Por que isso?

Porque não queremos tocar nos corpos. Tememos que se o fizermos, quem acrescentou gasolina ao incêndio perderia o interesse de aproximar-se dos mortos.

Talvez, se abríssemos a barriga dos dois, encontrássemos uma cápsula contendo algo, não é mesmo?

Talvez — balbuciou o Johnny-Cannes, sorrindo. — Precisamente por isso, não fiemos a autópsia. A ideia de subornar o médico legista inglês para dizer que nada encontrou nos pareceu pouco ético. Além de ser inconveniente.

Essa ideia devia ter ocorrido a mim — disse Brigitte, tornando a sorrir. — Bem, se engoliram qualquer coisa, queremos que seja encontrada quando eles chegarem em casa, não é assim?

Claro.

Bem... E quanto à viúva alegre... a loura Jennifer, ela sabe quem eu sou?

De modo algum. Possivelmente, em determinado momento ela a identifique, ao ver sua fotografia como jornalista. Mas não sabe o que vamos tentar. Por outro lado, Sé ela se lembrar de você é, poderá pensar que a CIA lhe pediu um favor... e você recusou-se a fazê-lo.

Muito bem pensado. Então, ela sabe que deverá ficar fora de circulação durante alguns dias, hem?

Sim. Achamos também conveniente você a ver para estudar gestos e tudo o mais. Ora, mas você não precisa de lições sobre disfarces.

Não. Ela é quase tão alta como eu, é bonita... e quanto a tingir os cabelos e depois tingi-los de novo, já o faço como quem lava a cabaça. Mas há uma coisa que me agrada nisso. Ela tem os olhos azuis. Logo, não precisarei usar lentes de contato. Esse uso constante acabará por fazer mal a meus olhos. Bem, não será tão difícil passar pela senhora Griffin. Mas precisarei de muitos dados a respeito dela e do marido, naturalmente.

Quanto às informações referentes a ela, já conversamos bastante e podemos assessorá-la. Antes das dez da noite chegarão detalhes completos sobre Arnold Griffin e sobre Wilbur Ketchman, procedente de Londres e de Washington. Você terá a noite toda para estudar. Também é possível que nos cheguem mais informes sobre o que aconteceu perto de Dover. De qualquer medo amanhã de manhã você deve estar preparada para pegar o avião em Nice, com destino a Londres.

De acordo. Mas... e ele? — disse Brigitte, olhando para Número Um. — Combinamos que ele me acompanharia neste trabalho.

Bem sabe que suas decisões são ordens para nós — murmurou Johnny-Cannes, após uma ligeira hesitação. — Neste caso, porém, pareceria frívolo demais numa viúva recente, apresentar-se acompanhada por um homem, quando vai cuidar do traslado dos restos mortais de seu esposo.

Sim, não seria bem visto... Vulgar demais. Tem razão. E, se a senhora Griffin espera receber uma herança nos Estados Unidos, não seria louca de atrair a má vontade dos outros. De qualquer jeito, Número Um me acompanhará. Quem de vocês diz que não pode ser assim?

Os homens da CIA voltaram o olhar para Número Um. Ele, por sua vez, os olhou com ironia, esforçando-se para disfarçá-la em amabilidade.

Não digam que não têm um passaporte para mim — murmurou o espião de cabelos cor de cobre.

Temos, é claro, senhor — respondeu Johnny-Cannes.

Mas seja qual for o passaporte que lhe arranjemos, acho que continuará sendo inconveniente viajar ao lado de “Baby”.

Consigam-me o documento e eu darei um jeito dela nunca ficar muito longe de mim.

Sim, senhor. Que tipo de passaporte lhe agradaria?

De milionário — disse Número Um, com um brilho mais intenso no olhar. — Gosto de viajar com conforto. A senhora Griffin, sem dúvida viajará na classe de luxo.

Sim, senhor... de milionário. Procuraremos uma personalidade apropriada ao caso.

E quanto ao meu caso, como senhora Griffin? — balbuciou Brigitte, contendo um sorriso.

Oh, isso será mais fácil ainda. Temos tudo. Amanhã cedo, salvo se aparecer algum imprevisto, deverá partir para Londres. Alguns membros de nossa embaixada estarão à sua espera. Companheiros de Griffin e de Ketchman. Mas não se preocupe. Nenhum deles conhece a verdadeira Jennifer Griffin.

O contrário seria engraçado — disse a divina espiã, enrugando a testa.

 

O transatlântico

A loura e espetacular viúva de Arnold Griffin chegou no dia seguinte ao aeroporto de Heathrow, sozinha, munida de uma bagagem digna de uma vedete de fama internacional. Felizmente, para ela, no aeroporto havia três homens esperando sua chegada. Um deles aproximou-se quando a viu identificar-se junto ao serviço aduaneiro. Jennifer Griffin o viu, quando acabava de guardar o passaporte na bolsa e olhava ao redor, como imaginando o que faria a seguir. O homem lhe fez um sinal e ela enrugou a testa.

Senhora Griffin? — perguntou o desconhecido.

Sim. Quem é o senhor?

Denis Grover, secretário de seu marido na embaixada. Receba meus mais sentidos e sinceros pêsames, senhora Griffin.

Obrigada — murmurou Jennifer, pestanejando. — Não sabia que Arnold tinha secretário. Sempre foi um João- ninguém.

Bem, nos últimos tempos o senhor Griffin progrediu um pouco na escala hierárquica dentro da embaixada — disse Grover, também pestanejando. — Todos nós sentimos muito a perda dele. Era uma excelente pessoa e um grande diplomata.

Está falando a sério? — perguntou Jennifer, sorrindo.

Claro, senhora — balbuciou Grover.

Isso me surpreende. Enfim, todos nós podemos progredir e prosperar, não é mesmo? Foi designado para receber-me, senhor Grover?

Sim. Se me permite, apresentarei meus dois companheiros. Eles cuidarão da sua bagagem, levando-a diretamente para o navio. Exceto o que a senhora possa precisar para um dia. O navio zarpa amanhã.

Está muito bem. São muito atenciosos, senhor Grover.

Achamos que a viúva de Arnold merece, senhora — resmungou o secretário. — Entregue-me os tíquetes, por favor.

Jennifer tornou a abrir a bolsa e pegou os tíquetes da bagagem. Com eles na mão, Grover dirigiu-se aos dois homens que esperavam. Apresentou-os à loura, deu instruções a respeito das malas e os dois homens prepararam-se para retirá-las da faixa rolante.

Deseja tomar qualquer coisa no bar? — perguntou ele, ao se afastar com Jennifer. — Um café, talvez? Ou prefere esperar nó carro?

É melhor esperarmos no carro. Não gosto de jornalistas. Por falar nisso, não vejo nenhum aqui.

Demos um jeito de sua chegada passar desapercebida.

Obrigada. Não tenho a menor vontade de aparecer nos jornais. O que aconteceu, realmente, senhor Grover? Quando me telefonaram da embaixada, eu estava em Cannes. Foram pouco esclarecedores quanto às explicações do acidente.

Se não se importa, senhora, prefiro falar sobre isso quando estivermos no carro.

Não, não me importo.

Saíram do prédio do aeroporto. Pouco depois, estavam sentados no interior de um automóvel e Grover explicou:

Como vê, pensamos inclusive em usar um carro comum, sem placa diplomática.

Pelo jeito, o senhor pensa em tudo, hem? — disse Jennifer, sorrindo. — Muito bem. O que aconteceu, afinal?

O caso é muito simples. Seu marido viajava com outro diplomata, chamado Wilbur Ketchman. Sofreram um acidente de carro e ambos pereceram. O desenlace não teria sido fatal, se o carro não se tivesse incendiado.

Desse detalhe eu já sabia. Minha pergunta é: por que tanto mistério?

Estão analisando os restos do automóvel - respondeu Denis Grover, após uma leve reflexão. — Existe a possibilidade de um atentado. Talvez o carro tenha sido preparado para o acidente. Mas ainda não temos certeza disso.

Eu não me surpreenderia.

Por quê? — perguntou Grover, encarando-a vivamente.

Diga-me, senhor Grover: há quanto tempo era secretário de meu marido?

Seis meses, mais ou menos... Desde a promoção dele.

E em seis meses o senhor não soube conhecê-lo um pouco melhor, hem? Refiro-me ao lado pessoal. Não ao profissional.

O senhor Griffin parecia-me um cavalheiro. Não tive muito relacionamento pessoal com ele, confesso.

Então se explica o senhor dizer que era um cavalheiro. Não o era, de modo algum, senhor Grover. Não, não se espante se Arnold sabia ser encantador quando lhe convinha... graças a isso deve ter conseguido a promoção. Também foi devido a isso que conseguiu convencer-me a casar com ele. Fato do qual logo me arrependi, é claro.

Bem, senhora Griffin... não sei o que dizer. Realmente...

Lamento tê-lo perturbado — murmurou Jennifer, sorrindo. — Mas precisava dizer tudo para o senhor não insistir em apresentar-me meu marido como um modelo de virtudes. Eu não suportaria. Vivi três meses com ele e foi mais que suficiente... Na verdade, nosso casamento durou, apenas, um mês. Os outros dois foram algo assim como... a inútil esperança de minha parte, de que ele pudesse melhorar. Ao compreender que seria impossível, fui para a França. Está claro, senhor Grover?

Sim, sim. Asseguro que minhas intenções...

Suas intenções foram devidamente interpretadas por mim e fico-lhe _muito agradecida. Enfim, sabemos agora como agir. E poderemos conversar com sinceridade. De acordo?

Sim, sim, naturalmente.

Todos nós cometemos erros — murmurou ã loura, suspirando. — O meu foi casar com Arnold. Mas isso são águas passadas. Não que me alegro com a morte dele, compreenda, por favor...

Não fiz semelhante suposição, senhora!

Jennifer encarou o jovem Denis Grover. Não tinha mais de trinta anos, era alto, simpático, vestia-se corretamente. Um rapaz agradável e, ao que tudo indicava, inteligente.

Falemos seriamente, sim? — disse a loura, com suavidade. — Arnold e o outro diplomata iam sozinhos no carro, hem? É verdade?

Absolutamente certo.

E para onde iam?

Passar o fim de semana num hotelzinho, perto de Dover.

Dois homens sozinhos? Oh, não quero, sequer, pensar... Seria demais!

A que se refere?

Ocorreu-me que como mais uma de suas tendências desagradáveis, meu marido se tenha inclinado para a homossexualidade. Isso é, possível?

Bem... Francamente... eu diria que não, senhora Griffin.

Não acha esquisito dois homens irem passar o fim de semana sozinhos? Aonde se dirigiam exatamente? O que há nesse lugar?

O hotelzinho chama-se Black Rock e fica perto de uma estrada secundária nas imediações de uma localidade chamada Durham. Nos arredores de Dover, como já lhe disse. Um lugar tranquilo. Boa comida. E isso é tudo, parece- me.

Não é um lugar ideal para atrair um homem como meu marido. Como souberam que ele se dirigia para lá?

     Porque ele me disse, senhora Griffin.

Oh, bem, é claro... Informou-o para o caso de surgir alguma emergência, sem dúvida. Ou caso o senhor tivesse necessidade de consultar Arnold a respeito de qualquer coisa.

     Exato. Ele costumava fazer isso.

Bem... por que não? — exclamou Jennifer, tornando a sorrir. — Todos nós gostamos de relaxar um pouco, de vez em quando. E não há melhor modo de fazê-lo, senão procurando um lugar sossegado e um bom amigo com quem se possa conversar de coisas diferentes das habituais. Mesmo levando em consideração o fato do senhor Ketchman também ser diplomata.

Não estou entendendo aonde a senhora pretende chegar.

Já lhe direi. Surpreende-me Arnold ter decidido distrair-se de um modo tão discreto, tranquilo, tão honesto.

     Seu marido era um diplomata americano, senhora.

Certo — concordou a loura Jennifer, sem se alterar. — Mas também era homem. E como homem, eu o conhecia melhor que você, Denis. Pode ter certeza disso. Mas mudemos de assunto. Vão levar-me para a embaixada?

     Achamos preferível instalá-la num hotel.

     Também prefiro, obrigada. Devo ir ver o cadáver?

Normalmente deveria fazê-lo, murmurou Grover. — Dadas as circunstâncias e considerando que seu marido foi satisfatoriamente identificado, talvez seja mais conveniente a senhora não ser vista por lá.

     Conveniente? Para quem?

Para a senhora — respondeu Grover, enrugando a testa. — Se o acidente de seu marido foi preparado, como acreditamos, talvez esteja correndo perigo também.

Quer dizer: matar-me? — balbuciou Jennifer, estremecendo. — A mim? Céus! Por que haveriam de querer matar-me? Não vejo Arnold há séculos. Nada sabia da vida dele... É absurdo!

Esperemos que pensem do mesmo modo

Com esta eu não contava!

Podemos arranjar sua viagem de avião.

Ou seja, eu chegaria aos Estados Unidos uma semana antes e ficaria esperando? Não, obrigada. Irei no navio. Ninguém pode ter motivos para incomodar-me, Denis.

Alegro-me por ouvir isso. Dá-me licença um instante?

Saiu do carro e foi falar com os dois homens que haviam

cuidado da bagagem da viúva. Em seguida, os tais homens se afastaram.

Está tudo arrumado — informou Grover, voltando para o automóvel. — Levo-a para o hotel?

Estava pensando no traslado dos restos mortais de meu marido. Também será feito mais ou menos em segredo?

Não, senhora. Não pode ser.

Neste caso, se alguém quiser localizar-me, bastará saber onde está o ataúde, não é mesmo?

Exato. Como disse há pouco, podemos arrumar sua viagem de avião. Podemos, também, e o estamos fazendo, levá-la para um hotel, no qual ninguém a localizará. O que não é possível é... camuflar os ataúdes com os restos dos diplomatas norte-americanos.

Sim, é claro... Enfim, de tudo isso deduzimos que vou viajar com dois mortos e que estarei ao alcance de qualquer pessoa.

Os mortos irão na parte de carga do navio e não com a senhora — resmungou Denis Grover. Ao chegarem a Nova York, serão recolhidos por pessoas adequadas, a princípio. Logo, cada família cuidará do ataúde com seu morto. De qualquer modo, a senhora levará consigo as chaves dos ataúdes. Também isso podemos preparar de outra maneira, se preferir.

Pelo jeito, não simpatizou muito comigo — disse Jennifer, encarando Grover, com um ar irônico.

     Pensei que nossa conversa seria diferente. Nada mais.

Pois está vendo: nem lágrimas, nem comédias, Denis. Dediquei um mês da minha vida a um homem. Por engano. Isso foi tudo. E se daí puder surgir algo bom para mim, bem que mereço. E vou à procura do que me couber. Isto não é crueldade, nem cinismo, nem nada parecido. É realismo. Simples realismo, entendeu?

Oh, também o interpretei desse modo. Claro. Levo-a para o hotel?

     Eu lhe ficaria grata.

     O carro partiu.

Segundos depois, outro carro partiu na mesma direção, deixando o estacionamento. Ao volante estava um sujeito alto, de ombros largos, mãos grandes e bronzeadas. Os cabelos grisalhos. Aparentava ter cinquenta e tantos anos, mas sua energia deixaria em dúvida quem o visse. E mais ainda: se alguém tivesse revistado aquele homem, teria encontrado em seu bolso um passaporte norte-americano, com o nome de Ulysses W. Campbell, no qual havia uma fotografia de um homem muito mais jovem, de cabelos cor de cobre e de feições enérgicas e viris.

No banco, ao lado dele, estava algo parecido com um guarda-chuva dobrável, metido num estojo. Na extremidade viam-se dois orifícios pequenos. Na outra extremidade, um fio o ligava a um gravador. O conjunto era muito simples: um microfone de grande alcance para gravar conversa à distância. Ele não teria tido êxito, porém, se a senhora Griffin não tivesse aberto dois centímetros o vidro da janelinha junto A qual estava sentado. Casualidade afortunada, que deveria ser bem aproveitada.

O barbudo apertou a tecla do gravador e pôs o pequeno aparelho em funcionamento. Após alguns segundos, ouviu uma voz masculina, dizendo:

Como vê, inclusive, pensei em usar um carro comum, sem placa diplomática.

O senhor pensa em tudo, hem? Bem, o que aconteceu, realmente?

O fato é muito simples; seu marido viajava com outro diplomata...

 

Pensei que o embaixador estivesse à minha espera, no hotel — disse Jennifer Griffin.

Seguimos procedimentos fora dos habituais, senhora

respondeu Denis Grover. — O senhor embaixador é uma pessoa muito conhecida. Depois do que se passou, sem dúvida o estão acossando. Se viesse aqui, delataria sua presença.

Claro.

De qualquer modo, ele estará amanhã no cais para cuidar de qualquer formalidade e aproveitará a ocasião para apresentar-lhe suas condolências.

Sim, sim, entendo.

Com sua permissão, vou entregar a mala ao boy.

Não receia que o reconheçam?

A mim? — exclamou Denis Grover, sorrindo. — Gostaria muito! Mas no meu caso, podemos dizer que sou um... joão-ninguém.

Mas é simpático e perfeitamente adequado para a minha idade. Não é como Arnold. Ou não gosta de viúvas, Denis?

A senhora, sim, é simpática... quando quer — murmurou Grover, rindo. — Com licença.

Saiu do carro, abriu o porta bagagens e entregou a mala ao boy, que se aproximara solícito. Grover foi abrir a porta para Jennifer e ela saiu do automóvel, sorrindo, com ar malicioso e insistindo:

     Não respondeu se gosta ou não de viúvas.

No seu caso, senhora, importa muito pouco ser viúva, solteira, casada, divorciada ou qualquer outra coisa. Disso, porém, a senhora já deve saber. Não creio que se tenha aborrecido na Costa Azul, por falta de amigos. Amigos no sentido exato da palavra, naturalmente.

Você é um verdadeiro diplomata — exclamou Jennifer, rindo. — Mas seja sincero, ao menos uma vez. Qual a sua opinião sobre meu marido? Achava-o, realmente, uma pessoa... agradável?

Bem, para ser sincero... nem sempre ele era agradável, senhora. Oh, ia esquecendo de lhe dar meu telefone. Neste cartão está meu número particular. Pode chamar a qualquer momento, se precisar. Assim, não precisará ligar para a embaixada.

     Você é muito gentil. Tornaremos a nos ver, Denis.

Não creio. Não vou ao cais amanhã. Enfim, nunca se sabe, não é mesmo? A vida dá tantas voltas!

Isso é certo — concordou Jennifer, estendendo a mão.

Adeus, Denis. Posso informar ao senhor embaixador que você foi muito amável e prudente?

Sem dúvida. Talvez isso faça com que ele preste atenção em mim.

Então, falarei com ele.

Jennifer entrou no hotel e Denis Grover afastou-se em seu carro. Talvez o embaixador norte-americano não prestasse atenção nela, mas o barbudo que o seguira desde o aeroporto prestava, com toda a certeza. Depois de olhar para o hotel e hesitar ligeiramente, o barbudo partiu atrás do carro de Denis.

 

Quase vinte e sete horas mais tarde, a senhora Griffin, em solteira Jennifer Porter, entrou em seu camarote de luxo no transatlântico Viking, que zarpara minutos antes, rumo à Nova York. Na parte de carga do navio estavam os dois ataúdes forrados internamente de zinco. O embaixador norte- americano fora levar seus pêsames e suas despedidas à senhora Griffin e lhe entregar as chaves dos ataúdes. E agora, Jennifer não sabia o que fazer com elas.

De pé, no meio do camarote, olhou para todos os lados. Finalmente, sentou-se numa das duas poltroninhas. Durante quase dez minutos esteve refletindo. Depois, pousando as chaves provisoriamente na mesinha baixa, ao lado de uma floreira graciosa, preparou-se para desfazer as malas. Seis dias de navegação eram muito para deixar as malas como estavam. Ao colocar as roupas no armário, examinou-as atentamente. Não eram os trajes mais adequados para uma viúva recente. Mesmo sendo uma viúva jovem e bonita. De qualquer modo, assim era Jennifer e assim deveriam aceitá- la. Por outro lado, pedir a uma mulher que vivera apenas um mês com um homem, que chorasse, seria levar o protocolo e as formalidades longe demais.

 

O milionário

Olá! Como vai?

A voz masculina soou diante da senhora Griffin. Tão perto que não se podia duvidar. A saudação era dirigida a ela. Jennifer ergueu a cabeça da revista que estava lendo e olhou atrás dos óculos escuros para o homem parado à sua frente.

Observou-o bem. Devia medir um metro e oitenta e cinco, era atlético, de corpo fino e musculoso e vestia-se como um playboy de filme em tecnicolor. Louro, de olhos escuros, barba granítica, lábios finos... Muito atraente. Muito viril. Parecia um cromo. Ele estava convencido de que era uma maravilha, é claro.

Jennifer Griffin observou-o bem e abaixou a vista, continuando a ler a revista, calmamente sentada numa espreguiçadeira, sob os agradáveis raios solares do outono.

O sujeito recuou uns passos, voltou para junto dela e disse:

Como vai, beleza?

Desta vez Jennifer nem sequer ergueu o olhar. Nada. Como se o sujeito não existisse. Ele enrugou a testa, recuou novamente e tornou a atacar, dizendo:

Bom-dia, senhorita. O tempo está maravilhoso, não é mesmo?

Jennifer tomou a olhar para ele e, por um instante, parecia que ia soltar uma gargalhada.

Em vez disso, porém, ficou imóvel, contemplando-o com a testa enrugada e murmurou:

Está bancando o gostosão, hem?

Não sou? — disse o sujeito, surpreso.

Não o suficiente, para meu gosto.

Qual é seu gosto?

Prefiro os baixinhos.

Não saia daqui. Vou cortar um pedaço das pernas e volto já.

É melhor começar a cortar por cima. Garanto como suas pernas são melhores que a cabeça.

Perto dos dois ecoou uma gargalhada. Ambos voltaram a cabeça. Uma dama de quarenta anos, rechonchuda, de carnes muito brancas, levou a mão à boca, querendo conter o riso. Coisa que seria impossível. Sua indumentária e seu aspecto geral eram de uma pessoa de certa qualidade. Usava joias demais, que brilhavam ao sol matinal.

Ao ver-se observada, a dama perturbou-se visivelmente e apressou-se a desviar o olhar. O sujeito, louro e bonitão, tornou a olhar para Jennifer e disse:

O que faria eu sem a cabeça?

O mesmo que com ela: seria um tolo.

A dama não conseguiu reprimir outra gargalhada. Sufocada, seu rosto adquiriu uma tonalidade vermelha. Jennifer balançou a cabeça e voltou sua atenção, mais uma vez, para a leitura. O sujeito alto e louro, também enrugou a testa, afastou-se uns passos, mas voltou, dizendo num tom cortês:

Bom dia, senhorita. Permita-me sentar a seu lado. Meu nome é Ulysses Campbell, banqueiro. Importa-se se eu ocupar a espreguiçadeira junto da sua?

Não me importo absolutamente, senhor Chalmer — respondeu Jennifer, suspirando.

Campbell — corrigiu o louro, levantando um dedo. — Campbell e não Chalmer. Os nomes nada se parecem, sabe? Espero que a senhorita não seja ligeiramente surda.

Neste momento eu preferia um favor, senhor Campbell: sente-se e deixe-me em paz. De acordo?

De acordo.

O senhor é muito amável.

Então, ame-me.

Jennifer que tornava a olhar a revista, ergueu a cabeça vivamente e exclamou:

O quê?

Eu disse: ame-me.

Escute, senhor Campbell...

Disse que sou amável, não foi? — cortou ele, sentando-se. — Logo, sejamos sensatos. Por exemplo: quando dizemos que uma coisa é comestível, o que fazemos? Nós a comemos, não é? Se afirmamos que algo é admirável, nós o admiramos, não é certo? Pois se então dizemos que algo é amável, devemos amá-lo. As palavras têm um significado e é preciso respeitá-lo. Se uma pessoa é amável, é porque ela é digna de ser amada, não concorda? Logo, se me acha amável, para ser consequente e respeitar o idioma, deve amar-me. Está bem claro, não acha?

Jennifer, que o contemplava apatetada, reagiu e perguntou:

O que disse o senhor que é?

Banqueiro.

Ah... É mesmo?

Confie-me suas economias e eu demonstrarei.

Fugindo com elas?

     Multiplicando-as. Não gostaria de ser rica?

     Já sou rica, senhor Campbell.

Ótimo. Eu não gostaria de ser amado por causa do meu dinheiro.

Jennifer Griffin soltou uma gargalhada, da qual pareceu logo arrepender-se. Parecia a ponto de cortar a conversa, mas acrescentou:

O senhor é muito interessante para ser amado por si mesmo, senhor Campbell. Mas não por mim. De modo que...

     Posso cortar um pedaço das pernas, já disse.

Acontece que, além de preferir os baixinhos, prefiro os morenos e de olhos azuis.

     Também posso tingir o cabelo e usar lentes de contato.

Está bem — exclamou Jennifer. — Vá fazer tudo isso e volte. Com toda a certeza; aí, eu me apaixonarei pelo senhor.

     Não poderia fazê-lo agora?

     Já lhe disse quais são os meus gostos.

     Mas é sábio mudar de opinião, senhorita... senhorita...

     Senhora.

     Que droga! Não acerto uma!

Sabe com quem me parece, o senhor teria êxito, senhor Campbell? Com a dama ligeiramente obesa que estava ao nosso lado ainda há pouco. Aposto como o senhor agrada a ela.

     Mas é gorda e prefiro as mulheres como a senhora.

     Se pudesse, diria isso a meu marido.

     Não pode?

     Não, não posso.

     Viaja sozinha?

     Não, não, ele me acompanha.

     Está armado?

     É completamente inofensivo, garanto.

Então, continuemos. Escute... Não me diga que seu marido é baixinho e de pernas curtas!

     Não, não. Mede um metro e oitenta, mais menos.

     Eu sou mais alto. E mais forte. Ou não?

     Muitíssimo mais forte.

Resposta satisfatória. Não gosta mesmo dos louros, hem?

     De verdade.

     Mas a senhora é loura.

     Precisamente: adoro os contrastes.

Que barbaridade! Não me diga que é dessas pessoas que quando estão resfriadas tomam uma ducha fria!

     Isso é uma barbaridade?

Imagine! Suponhamos que ao acender um cigarro, a senhora queime o nariz. Aplicaria um fósforo aceso para curar a queimadura?

     Claro que não!

Então, por que, resfriando-se, iria meter-se sob a água fria?

Sabe que isso é para evitar o resfriado, senhor Campbell?

     Vê como não sou tolo, senhora... senhora...?

     Griffin — respondeu Jennifer, suspirando.

     Jennifer Griffin.

Como vai, Jenny? Pode chamar-me de Uly, como meus amigos.

     O senhor corre demais, senhor Campbell.

     Sou atleta. Não tinha percebido?

Algumas espreguiçadeiras adiante, perto do bar da zona de recreio onde se encontravam, um homem parecia cochilar ao sol. Abriu os olhos, com ar aborrecido e ficou de pé. Sua estatura nada tinha a invejar a de Ulysses W. Campbell. E era mais forte, mais sólido e menos fanfarrão. Seu rosto era hermético o que lhe tirava um pouco do poder de atração. Os olhos claros dirigiram um olhar de soslaio para Jennifer e Ulysses. Em seguida, sem olhar diretamente para eles, o homem afastou-se.

Dois minutos mais tarde, no corredor das lojas do navio, parou diante da vitrine de uma boutique. Vitrine que a dama gorda e corada estava contemplando distraída. Ela não olhou para o cavalheiro. Mas perguntou:

Ouviu alguma coisa?

Se ouvi alguma coisa? O sujeito fala como se o interlocutor estivesse em Nova York.

É simpático.

É um idiota de marca maior. Jamais ouvi uma conversa tão imbecil.

Achou? — murmurou a dama rechonchuda.

Claro. Vai cuidar dele?

Verei se posso fazer contato. Se conseguir ei de me divertir bastante.

Não passa de um charlatão... mas tome cuidado. Talvez não seja o que aparenta.

Vou comprar aquela combinação — disse a gorda.

Acha que encontrará nas suas medidas? — rosnou o sujeito.

Sem esperar resposta, o homem afastou-se. Cinco minutos depois, batia à porta de um camarote da primeira classe, cuja porta abriu-se em seguida. O sujeito entrou e foi sentar-se na beira do beliche, onde outro homem estava deitado. O que abrira a porta, de pé, encarou interrogativamente o recém-chegado e perguntou:

Alguma novidade, Delmer?

Ainda é muito cedo para isso. Um camarada cretino fez contato com a viúva. Encarreguei Célia de cuidar dele, como puder.

Célia saberá executar a tarefa. O que fazemos nós? Vamos procurar os ataúdes?

De modo algum — grunhiu Delmer Charlton. — Eu direi quando devemos fazer isso. Não quero saber de problemas.

Se deixarmos que cheguem inteiros nos Estados Unidos e fizerem a autópsia, estaremos bem arranjados. Ainda mais, se o que tememos acontecer. Se na autópsia examinarem o estômago, não é mesmo?

Sim. Mas por enquanto, nada vamos fazer. Quero estar bem seguro de que não existe nada preparado... e deve haver. Não acredito nem sonhando, que tenham enviado os ataúdes só com a viúva. Portanto, muito cuidado.

Podíamos dar uma espiada na parte da carga. Talvez farejemos qualquer coisa.

Aguardem minhas ordens, Paul e Troy. Entendido? Não podemos deixar os cadáveres chegarem inteiros aos Estados Unidos, bem sei. Mas seja lá o que precisarmos fazer, devemos esperar até estarmos perto de Nova York. Enquanto isso, muito cuidado com o que fizerem, hem? Não quero complicar a vida nesta ratoeira!

É um navio muito grande — murmurou Paul, sorrindo.

Por muito grande que seja, se transformará numa ratoeira para nós, se dermos um passo em falso. Assim sendo, muito cuidado com o que fizerem e estejam preparados o tempo todo. Entendido?

Paul e Troy concordaram. Delmer Charlton despediu-se deles. Durante mais de meia hora esteve passeando pelo barco. Até chegar ao convés para onde abriam os camarotes da classe turística. Como quem continua passeando, chegou à porta do camarote 166. Olhou com ar aborrecido para a direita e para a esquerda do corredor e bateu, usando, obviamente, um sinal convencionado.

A porta do camarote abriu-se segundos depois. Era um camarote interno, sem vigia para fora. Por isso, a luz elétrica precisava estar constantemente acesa. Mas agora estava apagada. A pessoa que abriu a porta do camarote não pôde ser vista do corredor, porque permaneceu na sombra. Delmer entrou, a porta tornou a fechar-se e o camarote ficou inteiramente às escuras.

Espero que tenha bons motivos para ter vindo, Charlton — disse uma voz masculina, num sussurro.

Sim, senhor — respondeu Delmer. — Refere-se à viúva. Fez contato com um sujeito com aparência de ator de cinema. Aparentemente, um perfeito cretino.

Não há cretino algum envolvido neste caso.

Sim, pensei nisso. Apesar de tudo, o sujeito parece um idiota. Pensei, também, que pede tratar-se de alguém que acompanha a viúva nesta viagem. Se assim é, não havia motivo para fazer contato e deixar-se ver junto a ela. Logo, não sei como agir, confesso.

Durante alguns segundos nada se ouviu. Exceto dois roncos breves, como se a respiração do homem do camarote 166 se truncasse bruscamente. Delmer já conhecia essa dificuldade respiratória do homem e chamava-o, em pensamento, de Snoring, embora soubesse que o durante aquela viagem, era John Wellington. Nome que, é claro, não era o verdadeiro.

Snoring tornou a falar,

Snoring, em inglês, significa roncador. NE

Devemos admitir a possibilidade de que esse homem seja o que parece. Não seriam idiotas, destacando um camarada para se relacionar com a viúva tão abertamente. Mas também pode ser este o caso, sem a menor dúvida. Pode ser uma isca e perigosa, compreende?

Sim, senhor, murmurou Delmer.

Não só uma isca. Pode ser o cabeça visível deles para que, ao fixarmos nossa atenção nele, não reparemos em mais ninguém. Podem estar utilizando esse estratagema. Logo, muito cuidado.

Devemos nos desinteressar dele?

Não. Como se chama?

Grita de tal modo que metade do navio deve ter ouvido o nome: Ulysses W. Campbell. Diz ser banqueiro.

Banqueiro? — murmurou Snoring, respirando com dificuldade.

Foi o que disse.

Vigiem-no bem, mas com toda a discrição. Vejamos o que podem descobrir.

Talvez Célia possa encarregar-se dele. Ela saber ser simpática e o sujeito, ao que parece, gosta de brinca.

De acordo. Mas diga a Célia para ir de mansinho. Não nos importa saber quem é quem no navio. Só nos interessa os dois cadáveres e tudo deve estar voltado para o nosso objetivo. Está bem claro, hem, Delmer?

Sim, senhor.

Pois isso é tudo. Agora vá embora e não torne a aparecer aqui, nem ligue para este camarote. Exceto numa autêntica emergência. Fora disso, quem chamará sou eu. Nada mais tenho a ordenar.

Delmer Charlton balançou a cabeça afirmativamente, deu meia volta, tocou a porta e tateou, à procura da maçaneta.

Abriu a porta e saiu do camarote. No interior do mesmo, Snoring permaneceu imóvel durante mais de um minuto, antes de erguer a mão s tocar com o dedo a pequena cicatriz de uma polegada, que tinha na comissura direita da boca. Balançou a cabeça e murmurou consigo mesmo:

Espero que não seja um desastre usar gente tão tola como Delmer e os outros. Mas não tenho outro remédio. Um banqueiro... Duvido muito que seja uma casualidade!

 

A gordinha

Oh, que casualidade! — exclamou Ulysses W. Campbell. — Também decidi gastar o resto da manhã, fazendo algumas compras! O que comprou?

Célia Marshal olhava sorridente para o elegante personagem com quem esbarrara ao sair da boutique, carregando uma caixa embrulhada num papel florido.

Para um desconhecido, você é muito curioso, hem, rapaz? — disse ela, sem perder o sorriso.

Quem é o desconhecido? — perguntou Ulysses, surpreso. — Eu?

Evidentemente.

Não sou um desconhecido, garanto. Conheço-me perfeitamente. Sou Ulysses W. Campbell.

Talvez você se conheça — balbuciou Célia rindo. — Mas eu não o conheço.

Pois se acabo de dizer. Sou Ulysses W. Campbell. Além disso, não somos desconhecidos.

Sim? De onde nos conhecemos?

Você é a mulher que ri ouvindo a conversa de um homem, não pode dizer que não o conhece, sabe? Ou não é a mesma simpática, deliciosa e encantadora gordinha que riu junto da piscina, quando eu tentava fazer contato com uma loura de maus bofes?

Sou eu mesma — respondeu Célia, tornando a rir. — E obrigada por chamar-me de simpática e encantadora!

Chamei-a, também, de gordinha.

Oh, isso todo o mundo vê. Mas não creio que todos façam de mim uma opinião tão amável. Ao menos, sem ter tido um relacionamento comigo.

Solucionemos isso. Podemos travar relações?

O que deseja, afinal, senhor Campbell? — perguntou Célia, revirando os olhos.

Fazer amigos durante esta viagem. Seja compreensiva. Quando vi a loura, fiquei fascinado. É natural, não acha? Assim, fui direto ao encontro dela. Mas, pensando bem, prefiro você.

Não há o menor ponto de comparação entre aquela jovem e eu.

Fisicamente, talvez não. Mas você sabe rir.

E ela não?

Bem... Riu por cortesia, digamos.

Fracassou com ela?

Jamais fracasso! — exclamou Ulysses, furioso. — Mas comparando seu riso com o dela, pensei: vou ver se encontro a gordinha. E encontrei. De que nos poderíamos rir juntos?

Por exemplo, podemos rir do fato de um homem tão elegante como o senhor, pretender fazer amizade comigo.

Tem algum complexo de inferioridade?

De inferioridade, creio que não. Mas tenho o de ser gorda, sabe? Você, em troca, é um atleta bonitão...

Você é que me interessa — disse Ulysses, sorrindo. — Diga mais coisas bonitas. Em troca eu a convencerei de que ser gorda pode até ser mais estimulante.

De uma coisa não se pode duvidar, senhor Campbell. O senhor é simpático.

Pois espere até me conhecer melhor. Bem, o que comprou?

     Uma combinação.

É mesmo? Não devia ter feito isso sem me consultar antes. Sou um técnico em roupas íntimas de senhora. Bem, na realidade, sou banqueiro, mas isso é a minha profissão, compreende? Vocacionalmente sou especialista em roupas íntimas femininas. Adoro ver as mulheres de roupa íntima. Como é essa combinação?

     Achei-a muito bonita — murmurou Célia.

Consentia que um técnico abalizado desse sua opinião?

Não me aborreceria, de modo algum. Mas não posso abrir a caixa aqui e permitir que, não só o senhor, mas todos os passageiros fiquem olhando para ela.

É um problema, com efeito— murmurou Ulysses, enrugando a testa. — Tem alguma solução?

     E o senhor?

Tenho, mas não sei se merecerá a sua aprovação, senhora... senhora...

     Senhorita — corrigiu Célia.

Hoje não acerto uma. Pensei que a loura fosse solteira e é casada. Agora... Enfim, tudo isso nos facilita as coisas, não acha? Olhe, eu tinha pensado em comprar umas gravatas e um gorro de marinheiro. Que tal se me acompanhasse nas compras? Depois vamos ao seu camarote e trocamos impressões a respeito do que compramos. Eu experimento as gravatas e a senhorita experimenta a combinação. É um acordo razoável, não lhe parece?

Sim — murmurou Célia Marshal. — Parece.

Salvo moralismos de gente das cavernas, é claro. A senhorita é do tempo das cavernas?

Não.

Nem eu — afirmou Ulysses.

Meia hora mais tarde. No camarote de Célia, que ria, ao fechar a porta. Ulysses apontou o banheiro e disse:

Seria bom entrar ali e vestir a combinação. Eu ponho a gravata aqui mesmo.

A gorducha o encarou fixamente, durante alguns segundos. Concordou e entrou no banheiro, levando a caixa. Deixou a porta entreaberta. Ulysses, porém, aproximou-se e murmurou:

Vou fechar a porta para proteger-me da tentação de olhar.

Fechou. Imediatamente o sorriso simpático desapareceu de seu rosto. Foi diretamente ao armário. Abriu-o sem fazer ruído e sem a menor hesitação. Movimentava-se como uma máquina perfeitamente programada, sem titubear, sem falhar. Em três segundos, havia aberto a mala. Estava vazia. Apalpou o fundo, mas nada havia ali. Fechou-a e recolocou- a em seu lugar. Apalpou rapidamente os vestidos, apertando- os com a palma das mãos. Procurando algum volume. Não o encontrou. Abriu as gavetas e fechou-as com uma velocidade incrível. Sempre num silêncio total. Examinou os sapatos e, por último, bolsa de viagem, dentro da qual encontrou o passaporte inglês, com o nome de Célia Marshal, atriz. Atriz, hem? Ergueu o passaporte e examinou os carimbos, contra a luz. Eram autênticos. Recolocou-o no lugar e deu uma última olhadela no armário, fechou-o e foi para o centro do camarote, olhando ao redor, fixando todos os detalhes.

Antes de aproximar-se de Jennifer, observou as pessoas que estavam por perto e notara que a gorducha dirigira diversos olhares à espreguiçadeira da viúva. Enfim, podia estar enganado a respeito de Célia Marshal. Pelo menos, aparentemente, ela não carregava arma alguma.

Com a gravata já posta, aproximou-se da penteadeira e abriu as gavetas. Nada. Peças íntimas, lenços, coisas assim. Nada de armas. O único lugar que restava para ser examinado era o beliche, onde Célia podia ter escondido uma pistola. Mas achou simples e até vulgar demais. Era obrigado, portanto, a imaginar que a gorducha Célia Marshal olhara para Jennifer Griffin apenas por um problema estético. Talvez invejando o corpo da viúva, e ponto final.

A porta do banheiro abriu-se e Célia apareceu de calcinhas e sutiã, segurando a combinação na mão. Parecia consternada ao dizer:

Iludi-me um pouco... comprando esta medida.

Ulysses pôs o gorro de marinheiro que comprara e aproximou-se de Célia. Era gorducha, sim, mas não disforme. A carne muito branca demonstrava que não estava acostuma a apanhar sol.

Pois eu acho que é a sua medida — murmurou Ulysses.

Não. Tentei vestir e não entrou.

Deixe-me experimentar.

Ela o encarava fixamente. Entregou a peça íntima a ele. Ulysses ajeitou-a nos ombros de Célia. Passou os braços por baixo dos de Célia e procurou o fecho do sutiã. Abriu-o. Retirou a peça e recuou um passo. Os seios da gorduchinha mal se moveram. Ulysses balançou a cabeça. Jogou o sutiã no beliche e começou a passar a combinação pela cabeça de Célia que permanecia imóvel. Não conseguiu vestir a peça íntima em sua dona. Puxou-a para baixo, comprimindo os quadris femininos. O resultado foi espetacular.

Sabe de uma coisa? — disse Ulysses. — A partir de agora prestarei mais atenção nas gordinhas.

Gostou? — murmurou ela.

Fica ótima em você. Palavra.

Mas tem um inconveniente.

Qual?

Célia Marshal deu dois passos e ergueu os braços, levantando os cabelos. O tecido fino estalou e arrebentou-se na altura dos quadris e dos seios. Ulysses ficou apatetado. De repente, ambos sorriram. Ulysses soltou uma gargalhada. Célia imitou, com os olhos brilhantes.

Oh! — exclamou ela, levando a mão cheia de anéis à boca. — Podem ouvir-nos dos camarotes vizinhos.

Espero que não achem errado as pessoas rirem. Bem, comprarei outra combinação para você. Esta rasgou por minha causa e não concordarão em trocá-la por uma maior. Ela não serve para mais nada.

Neste caso...

Célia acabou de arrancar a combinação. Em seguida, tirou a calcinha. Aproximou-se de Ulysses e enlaçou-o pelo pescoço, sussurrando:

Na verdade, era isso o que nós queríamos, hem?

Está quase na hora do almoço — lembrou ele.

Não almoçaremos. Posso oferecer algo melhor.

Seria melhor irmos ao salão de refeições, agora, e depois...

Por que tanto empenho em ir ao restaurante? Para ver a loura? Ela estará lá, não é certo? Marcaram algum encontro? Pensavam almoçar juntos?

Não, não... Bem, ela estará lá, mas não marcamos nada...

Então, fique. Sempre há tempo para comer. Para gozar, é preciso aproveitarmos as oportunidades.

Beijou-o na boca. O corpo de Ulysses vibrou. Fez um gesto para afastar a gorducha, mas ela colou-se a ele, fechando-o em seus braços reforçados. Separou-se dele um instante, murmurando:

Vou pôr o cartaz na porta.

Ei, vão vê-la assim e...

Então, ponha-o você.

Ulysses encarou os olhos claros de Célia Marshal. Brilhavam como se um fogo intenso os queimasse por dentro. Concordou e foi até à porta. Pegou o cartaz e pendurou-o na maçaneta, pelo lado de fora.

 

Vendo abrir-se a porta do camarote de Célia, Delmer Charlton apressou-se a fechar a do seu, mas ficou ouvindo. Nada captou nos instantes seguintes e tornou a olhar. Viu o cartaz pendurado na maçaneta, onde se lia: Não perturbem. Sorriu, pensando em Célia.

Tornou a fechar sua porta e tirou do armário uma mala de viagem. A mala tinha um fundo falso. Pegou nele um microfone minúsculo como uma drágea. Meteu-o no bolso e saiu do camarote. Dez minutos mais tarde, viu Jennifer Griffin na sala de refeições da classe de luxo e conteve um sorriso zombeteiro. A viúva ficaria esperando em vão pelo idiota. Ela esperou, realmente, durante cinco ou seis minutos, de pé, recusando os serviços do maitre. No fim desse tempo fez um gesto de desdém, chamou-o e ele levou-a para uma das mesas. Perfeito.

Delmer Charlton saiu do salão de refeições e um minuto depois estava no corredor dos camarotes. Sabia perfeitamente qual era o de Jennifer e o de Ulysses W. Campbell. Sabendo disto, para ele ia ser uma brincadeira de crianças, entrar, primeiro num e em seguida no outro, para colocar dois ou três microfones em cada um, perfeitamente escondidos.

Uma simples brincadeira de criança.

 

Você parece uma menina — resmungou Ulysses. — Uma menina caprichosa que se zanga por qualquer coisa.

Sentada numa das mesinhas do bar, perto do envidraçado que dava para o mar, Jennifer Griffin olhava friamente para Ulysses, de pé diante dela.

Senhor Campbell, está me aborrecendo de novo — disse ela secamente. — Retire-se, por favor.

Escute... já expliquei. Foi impossível vir ao salão de refeições. Já pedi desculpas... O que mais quer?

Que deixe de me aborrecer. Estou muito bem sozinha, tomando tranquilamente meu coquetel de champanhe.

Não sabia que gostava de coquetéis.

Por que deveria saber? Além do mais, o que tem a ver com isso? Olhe, senhor Campbell, não sou uma mulher muito acessível, compreende? Mas quando resolvo ser, desagrada-me terrivelmente ficar plantada, esperando alguém. Assim sendo, compreenda: durante o resto da viagem, não torne a me dirigir a palavra, sim? Eu lhe ficaria muito grata. Boa-tarde.

Não pode ser — murmurou Ulysses. — Devemos manter relações durante a viagem, senhora Griffin.

Sim? Por que motivo?

Ulysses suspirou, olhando disfarçadamente para a direita e para a esquerda. Em seguida inclinou-se um pouco para a loura e sussurrou:

Como uma concessão especial ao corpo diplomático dos Estados Unidos, senhorita Griffin... não poderia fazer a gentileza de escutar-me num lugar mais adequado que este? Seu camarote, por exemplo. Dentro de cinco minutes?

Ela o encarou surpresa, com os olhos azuis muito abertos. Finalmente, pestanejou e disse:

Está bem. Venha dentro de cinco minutos.

Obrigado, senhora Griffin.

Ulysses foi para o bar, onde pediu um uísque. Estavam servindo bebida, quando Jennifer deixou a mesa e encaminhou-se para a saída. Quatro minutos mais tarde, Ulysses terminou seu uísque, deixou uma cédula no balcão e saiu do bar.

Jennifer abriu a porta do camarote, mal ele bateu com a ponta dos dedos. Ulysses entrou rapidamente e fechou a porta.

O que é isso? — perguntou Jennifer, inquieta.

Calma. Vamos com calma. Deveriam tê-la avisado que eu faria contato e que era aconselhável nos tornarmos bons amigos. É conveniente todos acreditarem nisso, para que eu possa estar sempre ao seu lado.

Senhor Campbell... se tem algo a me explicar, faça-o, mas de um modo que eu entenda, sim?

Entenderá perfeitamente. Começarei dizendo que não sou banqueiro. Sou diplomata, como seu marido. Mas eu pertenço a um corpo especial de investigação. Nós nos dedicamos, digamos... a investigar os diplomatas norte- americanos no estrangeiro.

Espião? — exclamou Jennifer.

Não exatamente. Algo parecido. Entenda... Às vezes os diplomatas fazem coisas esquisitas ou se metem em complicações Aí, aparecemos nós para acertar as coisas de modo que o seu prestígio sofra o menor dano possível.

Então, o senhor é um diplomata investigador de diplomatas.

Exatamente. E fui encarregado de investigar os assassinatos de seu marido e de Wilbur Ketchman.

Quer dizer que... o acidente foi, realmente, provocado?

Sim, isso ficou comprovado.

Santo Deus... E o que... o que acontecerá agora?

Não podemos saber com segurança, mas acreditamos que tentaram transformar em cinzas os dois cadáveres. E direi qual é a nossa teoria a respeito. Avariaram o carro onde viajavam seu marido e Ketchman para obrigá-los a entregar alguma coisa. Infelizmente, o acidente foi fatal. Sem dúvida, seguiam o automóvel. Quando ocorreu o desastre, foram para lá. Quando iam pegar o que lhes interessava, apareceu um caminhão que parou. Compreenderam então que o motorista ia aproximar-se e fizeram o que lhes pareceu mais certo: incendiaram o carro. Precisavam transformar em cinzas os cadáveres de Griffin e de Ketchman.

Mas... por quê?

Porque o que procuravam estava no corpo deles. Rabiam disso e como não podiam examinar os cadáveres, decidiram transformá-los em cinzas, para destruírem tudo.

Mas, não entendo. Meu marido ia passar o fim de semana...

Não, não, senhora Griffin — cortou Ulysses. — Seu marido e Ketchman estavam fugindo e possivelmente sabiam de coisas que haviam fotografado em documentos ou que extraíram de confissões. Sabe o que é microfilme?

Claro. Já ouvi falar nisso muitas vezes.

Seu marido e Ketchman recorreram a isso. Microfilmaram algo, meteram em uma ou em duas cápsulas e as ingeriram. Podíamos ter pedido a autópsia em Londres, mas não sabíamos o que iríamos encontrar. Preferimos, portanto, dispor as coisas de modo que as autópsias se realizem nos Estados Unidos, para não complicarmos mais o caso.

E esperam encontrar essas cápsulas no estômago de Arnold ou no do amigo dele?

Temos esta esperança. Acreditamos também que alguém tente impedir isso, que tente adiantar-se a nós.

Adiantar-se? Sugere que possam roubar os cadáveres que estão na zona de carga?

Não acredito que cheguem a tanto. Mas talvez se atrevam a abrir os ataúdes e depois... a examinar os estômagos dos dois cadáveres.

Mas isso... é horrível!

Há gente capaz disso e de muitas outras coisas que a impressionariam, senhor Griffin.

Santo Deus... Mas não podem abrir os ataúdes. As chaves estão comigo.

Não seja ingênua, senhora Griffin. Os ataúdes podem ser abertos de muitas maneiras. E tomara que o tentem!

Então, é uma armadilha... alguns amigos seus estão vigiando os ataúdes?

Nem pense nisso. Por ora, ainda não. Se essa gente arrebentasse os ataúdes, algum empregado do navio ou eu mesmo, perceberia. Aí, teria certeza de que se encontram a bordo e mobilizaria todos os meus companheiros para encontrá-los. Por pouco espertos que sejam, devem saber disso. Logo, não se aproximarão dos ataúdes, até estarmos perto de Nova York. Porque nesse caso, teríamos pouco, tempo para localizá-los. Não, agora nada farão. Segundo meus cálculos, demorarão quatro dias para agir. De qualquer modo, nos manteremos vigilantes. É uma jogada inteligente, senhora Griffin.

E essa gente viaja no navio?

Sim. Quando chegarmos aos Estados Unidos veremos se há algo no estômago de seu marido ou no de Ketchman.

Compreendo. Bem, não sei o que dizer... Devo fazer qualquer coisa?

Não. Apenas relacionar-se comigo. Como se nos tivéssemos tornado bons amigos... ou algo assim. Só as pessoas interessadas sabem que cadáver do seu marido viaja neste navio. Assim se escandalizará se... tivermos um pouco de intimidade...

Isso é muita pretensão da sua parte, mesmo deixando o resto de lado. Sabe? Eu o vi numa loja com a gorduchinha e tenho o pressentimento de que... simpatizaram muito um com o outro.

É verdade — respondeu Ulysses, com um sorriso zombeteiro. — Bem, as coisas aconteceram de um modo tão... precipitado que não tive como controlá-las.

Que coisas? — perguntou Jennifer.

Coisas que me impediram de almoçar com você, como finalmente havia conseguido combinar hoje pela manhã.

Então, esteve com a gorda e...

Foi inevitável. Está com ciúmes?

Isso foi... uma sujeira!

Senhora Griffin, não posso fazer coisas que surpreendam as pessoas, pois chamaria a atenção. Se Célia fosse alguém encarregado de me sondar, ficaria muito espantada de minha posição, estando a sós com ela no camarote.

Foi uma nojeira!

Não creio que uma viúva recente deva reprovar-me em questões desse tipo, senhora Griffin. Exceto se estiver disposta a dar-me o mesmo que Célia me deu. E isso não seria muito decoroso, no seu caso.

Decoroso? Ignora que eu estava separada de meu marido há séculos e que pouco me importava com ele! Nem me lembrava da sua existência até... me avisarem de sua morte. Acha que vou perder a alegria de viver por causa de um sujeito de quem me separei um mês depois de nos termos casado? Tenho o direito de fazer o que quiser e viver como hem entender!

Alegro-me ouvi-la falar assim — murmurou Ulysses, sorrindo. — Por que se casou com Arnold Griffin?

Sei lá! Tolices da juventude! Um diplomata atraente, amável, correto, generoso... O senhor nunca se enganou?

Muitas vezes — disse Ulysses. — São coisas que acontecem. Acidentes tolos, digamos, na vida das pessoas.

O senhor definiu muito bem. Meu casamento com Arnold foi um tolo acidente em minha vida. Mas por Deus, agora sei que foi uma bobagem. Enfim, na minha idade atual, pensa-se melhor que aos vinte anos! Bem, por que estou contando tudo isso?

Talvez esteja querendo arranjar uma desculpa por estar viúva — sugeriu Ulysses, sorrindo.

Não tenho que me desculpar de nada!

De acordo, de acordo.

O senhor é um... presunçoso!

Talvez. Mas não sou o tolo que imaginou esta manhã. Estamos certos quanto a isso?

Sim. Estamos.

Conto, então, com a sua cooperação? Seguirá meu jogo?

Farei o possível para adaptar-me à situação.

Obrigada, Quanto às chaves dos ataúdes, é melhor escondê-las bem.

Talvez fosse conveniente guardá-las no cofre do comandante.

Nada disso. Não confio em ninguém. Onde estão as chaves, agora?

Em minha maleta de viagem.

É a primeira coisa que costumam revistar. Eu revistei a de Célia Marshal. É atriz. Não acha curioso? Mas o passaporte está em ordem. E não esconde armas. Bem, devemos admitir que também viajam pessoas normais como Célia, neste navio, não é? Seria melhor se me entregasse as chaves. Procurarei um esconderijo.

Seu camarote deve ser mais ou menos como este. Onde as esconderá melhor do que aqui?

Dentro de um sapato, enroladas em algodão — disse Ulysses, com um sorriso zombeteiro.

Não pensou nisso?

Não. Para ser sincera, não pesei. Devo entregá-las agora?

Sim, por favor. Se eles conseguirem as chaves, tudo se dificultará, porque abrirão os ataúdes e ninguém perceberá, pois não precisariam forçá-los. Bem, eu guardarei as chaves.

 

Fotografias

Sentado em seu camarote, junto ao receptor dos microfones, Delmer Charlton ouviu, inclusive, o barulho dos sapatos de Jennifer Griffin, quando foi ao armário. Segundos depois, captou o tilintar das chaves.

Obrigado, senhora Griffin — disse Campbell. — Se me acontecer alguma coisa, já sabe onde as encontrará. Ah, outra coisa: creio que devemos nos tratar com mais intimidade. Isso daria a impressão de sermos bons amigos.

     O senhor é mesmo um cara de pau.

Sou um homem que faz seu trabalho. De qualquer modo, se fala assim, por causa de Célia, a solução é simples: açambarque-me. Assim, ela não terá ocasião de se relacionar muito comigo. Embora acredite que Célia abrirá luta.

Está brincando? A gorducha? Está insinuando que ela pode rivalizar comigo?

     Agora a convencida é a senhora. Não acha?

Sim, mas tenho motivos. Não vai querer compará-la comigo?

Para fazer comparações precisaria igualar as... relações. O que, diga-se de passagem, não me desagradaria nem um pouco!

Devo estabelecer uma concorrência sexual com essa gorda?

     Seria o mais indicado para ter certeza de que a supera.

     Tire as mãos de cima de mim!

Como quiser. Mas lembre-se: quando não estivermos sozinhos, deverá ser mais amável comigo. Caso contrário, achariam esquisito eu insistir em estar sempre perto de você. Está claro, hem?

Sim.

Ótimo. Você é uma velhinha encantadora.

Velhinha? — exclamou Jennifer Griffin.

Claro. Todas as viúvas não são velhas?

Idiota.

Calma, beleza. Vamos dar um beijinho de boa vontade e pronto. Nada demais aconteceu aqui. Combinado?

Afaste sua boca do meu rosto... Quarenta e oito horas devem se passar, no mínimo, para que eu o julgue limpo da banha da gorda.

Como dizem nas novelas...? Ah, sim: você fica linda quando se zanga!

Faça o favor de deixar-me em paz!

Feito, feito. Depois nos veremos. E esta noite ficaremos juntos, naturalmente.

A gorda não me agredirá por causa disso?

Talvez. É uma mulher muito temperamental.

Fora daqui!

Até logo, meu amor.

Ouviu-se o bufar furioso de Jennifer Griffin, os passos de Ulysses, a batida da porta. Os microfones que Delmer colocara eram de uma sensibilidade a toda a prova. Mas como nada mais havia para ser ouvido, no momento, Delmer fez menção de desligar o receptor. Foi então que uma frase furiosa da viúva atraiu sua atenção:

Mostrarei a essa gorda como manobrar um homem!

Delmer Charlton sorriu e preocupou-se ao mesmo tempo.

Ficou ouvindo durante mais alguns segundos e compreendeu que estava perdendo tempo. Desligou o receptor. Rebobinou a fita e repassou-a, em volume muito baixo, sem tirar os fones do ouvido. Quando acabou de ouvir o diálogo entre Jennifer e Campbell, guardou o gravador e os fones numa pasta e saiu do camarote. Tinha certeza de que Snoring gostaria de saber daquilo imediatamente. Era uma emergência suficiente para tornar necessário uma visita.

 

A audição terminou e Snoring retirou os fones do ouvido. Procurou às cegas o botão para deter o gravador. Sentado na beira do beliche, Delmer ouviu o ruído do botão. Compreendeu que Snoring já tinha escutado tudo. Durante dois minutos, esperou algum comentário. Ouviu o ronco de Snoring. Finalmente, a sua voz sussurrante:

Um bom trabalho, com efeito, Charlton.

Também achei. Deixaram tudo fácil para nós... Eu diria mesmo, fácil demais.

Sim, cheira mal. Pode ser uma armadilha. Mas isso implicaria no fato da viúva Griffin e Campbell estarem de acordo e terem combinado essa conversa informal. Sem dúvida, sabem que há microfones no camarote. Acha isso possível?

Francamente, não.

Seria tudo vulgarmente artificial... Além do mais, seria como nos chamar de idiotas. Não creio que Campbell nos ache idiotas. Ele é esperto demais para não admitir que também possamos sê-lo. Preparar uma armadilha dessas seria ridículo e até insultante.

Então... acha que é tudo certo?

Inclino-me a acreditar que sim. Mas vou refletir sobre isso. Não temos pressa, por enquanto. Trate de vigiá-los. Peça a Paul e a Troy para ajudá-lo. E Célia, naturalmente. Como são, fisicamente a viúva e Campbell?

Delmer descreveu os dois. Quando terminou, Snoring murmurou:

Um casal notável. Acabarão indo para a cama, sem dúvida. Será aí o melhor momento para fazermos uma tentativa... se eu me decidir. Antes, porém, precisamos conseguir as chaves.

Posso conseguir num piscar de olhos, pois sei onde Campbell vai escondê-las. Posso entrar no camarote dele, como entro e saio do meu.

Já sei. Vamos esperar vinte e quatro horas. A partir de então, se os dois se deitarem, conforme imagino, avise-me. Mas só se o fizerem no camarote dela. Se estiverem no de Campbell, você não poderá entrar para apanhar as chaves. Está entendido?

Sim, senhor. Alguma instrução especial para Célia?

Ela que se comporte conforme seu papel visível. Uma gorda e vistosa mulher, enrabichada por um sujeito bonitão. Isso é tudo.

E eu devo continuar ouvindo as conversas, é claro.

Naturalmente.

Sempre no escuro, Delmer Charlton recolheu a aparelhagem de gravação, meteu tudo na pasta e saiu do pequeno camarote individual. Assim é a vida. Snoring, o cérebro da operação viajava num incômodo camarote da classe turística e ele, um auxiliar, viajava na classe de luxo. Para Delmer havia uma pergunta: como viveria Snoring habitualmente.

No interior do camarote, John Wellington, Snoring, vestiu-se para sair. Estava curioso para conhecer pessoalmente a loura viúva e o atraente Ulysses W. Campbell. A propósito: qual seria o significado daquele “W”?

 

Ora, já sabe que os amigos me chamam apenas de Uly

resmungou Ulysses.

Sei disso — exclamou Célia, rindo. — Mas gostaria de saber o Significado do W. Seja bonzinho, Ulysses!

Está bem. Significa Washington.

Engraçado. — disse Jennifer, com ironia.

Jamais conheci alguém que tivesse o nome de dois presidentes.

O que tem isso de engraçado? — protestou Ulysses.

Oh, não se zangue com Jennifer — pediu Célia, dando uma palmadinha na coxa de Ulysses.

Estamos nos divertindo, Uly. E você deve reconhecer que não é comum um homem ter o nome de Washington e de Ulysses Simpson Grant. Em minha opinião, você merece esses dois nomes.

Obrigado, querida — disse Ulysses, encarando-a afetuosamente. — Você é uma criatura estimulante, sabe?

O que quis dizer com isso? — exclamou Jennifer, erguendo-se de sua cadeira, numa das mesinhas do bar.

Nada de especial. Apenas tentei...

Perdoem — disse um homenzinho com máquina fotográfica. — Não quero aborrecer, mas...

Os três voltaram-se para ele, surpresos. Era um sujeito baixinho, com poucos cabelos louros, rosto branco, olhos miúdos e claros, que pareciam suplicar, por trás dos óculos com armação de aço. Tinha uma pequena cicatriz junto à boca, do lado direito. Vestia-se corretamente e com cuidado de quem tem poucas roupas.

O que deseja? — perguntou Jennifer, ainda irritada.

Desculpem... Bem, sinto muito...

Você é fotógrafo? — perguntou Célia, rindo.

Não, senhora. Sou um passageiro comum. Viajo na classe turística.

É mesmo — exclamou Célia, sem parar de rir.

Pensei que seria uma boa ideia bater umas fotos...

Não me parece que seja proibido — disse Campbell, amavelmente. — Qual é seu problema, amigo?

Gostaria... de aparecer numas fotos nesta sala. Claro, eu mesmo não posso batê-las. Pensei que...

Eu bato suas fotos — rosnou Jennifer, levantando. — É melhor que suportar grosserias, garanto.

Grosserias? — protestou Ulysses. — Escute aqui, Jennifer, o que eu dizia...

Deixe-me em paz! — cortou a senhora Griffin, voltando-se sorridente para o desconhecido.

Ficarei encantada de poder ajudá-lo, cavalheiro. Onde e como quer as fotos.

Gostaria, se possível, que me vissem bem, com todo o salão ao fundo. Mas se estou incomodando...

Pare de pedir desculpas. O senhor me fez um favor, fique sabendo. Se preparar a câmera, baterei quantos fotos quiser. Mas aviso-o do seguinte: como fotógrafo, sou um horror. Só para apertar um botãozinho, tudo bem, não há de ser muito difícil.

Não — murmurou o sujeito, sorrindo. — A senhorita é muito amável, acredite.

Pois então, ame-me.

Como? — gaguejou o estranho homenzinho, de voz rouca.

Nada — exclamou Jennifer, rindo. — Foi uma brincadeira. Quer bater umas fotos no salão de refeições, também? Estão servindo o jantar e a vista é maravilhosa.

Gostar, gostaria, mas... receio que...

Não deve recear coisa alguma. Ficarei encantada por ajudá-lo. Talvez possamos bater algumas no convés onde estão os botes salva-vidas. Com um lindo por do sol ao fundo, hem. Que tal?

O desconhecido sorriu e pareceu estar maravilhado, extasiado.

Vejo que não me enganei, escolhendo os senhores. Estive observando outras pessoas, mas não me pareceram... demasiado sociáveis.

O senhor tem uma vista excelente — exclamou Jennifer, rindo. — Bem, comecemos. Eu iniciaria pelo convés, antes que o sol desapareça no horizonte.

     A senhorita é muito amável, repito.

     O senhor também.

Sentados no salão, Célia e Ulysses viram-na sair com o desconhecido. Voltaram pouco depois e Jennifer bateu mais fotos. Em seguida, foram para o salão de refeições, onde bateram as últimas. Ao devolver a câmara a seu proprietário. Jennifer comentou:

Fiz com a maior boa vontade. Espero que saiam bem, senhor...

Oh, Wellington... John Wellington, para servi-la. Talvez a senhorita também gostasse de ter umas fotos com seus amigos, hem? Ou sozinha.

     Não, obrigada.

Posso revelá-las amanhã de manhã, numa das lojas e mandá-las para seu camarote.

     Agradeço, mas não é necessário.

     Como quiser. Mais uma vez, obrigado, senhorita.

     Adeus — murmurou Jennifer, sorrindo.

John Wellington afastou-se e Jennifer, após uma leve hesitação, voltou-se para junto de Ulysses e de Célia que conversavam animadamente.

Como foi a nova conquista? — perguntou Ulysses, com ar de zombaria.

É um homem muito educado e está um pouco resfriado. Queria fotografar todos nós.

Não, que horror! — exclamou Célia. — Saio muito mal nas fotografias!

Talvez tenha querido dizer que não sai completa nas fotos, a menos que a fotografem em sentido horizontal — disse Jennifer, com maldade.

Oh! — gemeu Célia.

Isso não foi muito amável da sua parte, Jennifer — grunhiu Ulysses.

Vou trocar de roupa para o jantar — disse Jennifer, friamente. — E faça-me um favor, sim? Quando me vir aparecer no salão de refeições, ignore-me. Prefiro jantar com o senhor Wellington a fazê-lo com você. Refiro-me ao tal fotógrafo.

Não quer tomar um aperitivo? — perguntou Ulysses, sorrindo.

Idiota.

Jennifer deu meia volta e afastou-se, deixando Ulysses sorridente e Célia satisfeita.

Olhe, eu não desejo que você me ignore — disse Célia, dando um tapinha na coxa de Ulysses.

Sendo assim, já tem companheiro para o jantar.

E depois do jantar? — murmurou Célia, revirando os olhos.

Hum, depois, vou jogar pôquer até de madrugada. É o mais divertido nessas viagens. Muda-se de roupa para cada atividade. Depois nos veremos, querida.

Oh, também vou para o meu camarote.

Estou esperando um telegrama de negócios. Vou ver se já chegou. Até logo.

Ulysses afastou-se, mas não em busca de um telegrama. Dirigiu-se ao escritório onde ficavam as listas dos passageiros. Nelas, procurou o nome de John Wellington. Constava de uma das listas, realmente. Ocupava o camarote número 166 da classe turística. Um camarote individual. Tudo em ordem. Certamente enganara-se quando lhe pareceu que, antes de aproximar-se deles, o senhor Wellington batera uma fotografia do grupo. Sem dúvida estava fotografando o salão. Isso era tudo.

No entanto, como pode acontecer com qualquer ser humano, por muito inteligente que seja, Ulysses W. Campbell enganou-se. Na manhã seguinte, enquanto ele ainda dormia, após uma noitada de pôquer que se prolongara até tarde, o senhor John Wellington saiu da loja de fotografias do navio, com o rolo de filme revelado e com o envelope contendo as cópias.

Examinou-as ali mesmo. Todas haviam saído muito bem. Incluindo a que batera do grupo formado por Célia, Campbell e a viúva Griffin. Foram as duas últimas fotografias que atraíram por mais tempo a sua atenção. E, nelas, o rosto de Ulysses Campbell e de Jennifer Griffin. Pensou em pedir umas ampliações daqueles rostos. Mas achou comprometedor demais naquele lugar e resolveu adiar para mais tarde.

No corredor das lojas o senhor Wellington deteve-se e tornou a olhar as fotos. Ele usava óculos, mas sua vista era excelente. Seus olhos claros movimentaram-se de um para o outro rosto dos personagens que lhe interessavam. O senhor Campbell sorria e a senhora Griffin parecia um pouco aborrecida... mas havia uma... expressão de fundo em ambos os rostos que causaram um desassossego pouco frequente no senhor Wellington.

Guardou as fotografias e foi tomar o café da manhã. Dirigiu-se, em seguida, a um dos bares da classe turística e de lá telefonou. Obteve resposta quase imediata.

Pronto? — soou a voz de Delmer Charlton.

Estão juntos?

Não. Ela saiu, mas não foi para o camarote dele. Ele está dormindo, parece. Não se falaram esta manhã. Nem se viram.

Muito bem. Ajam na primeira oportunidade. O quanto antes. Entendeu?

Quer que façamos tudo?

Sim. Tudo.

 

Morte na zona de carga

Célia desviou o olhar da revista e dirigiu sua atenção a Delmer que acabava de sentar-se numa das espreguiçadeiras. O sol brilhava, mas havia um ventinho leve e refrescante. Pouca gente se encontrava na zona de recreio.

Ele continua dormindo? — murmurou Célia, tornando a abaixar a vista para a revista.

Sim — respondeu Charlton, olhando tranquilamente para o céu. — Quando sair do camarote, devemos agir. Onde está a viúva?

Fazendo compras. Encontrei-a há pouco e me disse que só apanha sol quando tem vontade.

Perfeito. Se Campbell aparecer por aqui, não o solte, por nada deste mundo. Preciso tirar-lhe as chaves. De repente, Snoring ficou com muita pressa.

Por quê?

Bem, suponho que, como podemos dispor das chaves, ele quer fazer tudo agora, quando ainda não há vigilância. É o melhor. Não deixaremos o menor sinal. Ninguém perceberá que abrimos os ataúdes. Se puserem a vigilância, morrerão de esperar. Quando Campbell aparecer, eu irei em busca das chaves. Não o deixe afastar se de você, ouviu, Célia?

Fique descansado.

Ótimo.

Desinteressaram-se um do outro. Quase meia hora mais tarde, o atraente Ulysses Washington Campbell apareceu na zona de recreio. Perfeito como um quadro. Recém-barbeado, elegantíssimo. Viu Célia e foi direto para ela, dizendo:

Bom-dia, bom-dia, encantadora gordinha. Como vão as coisas?

Não muito bem — respondeu ela, sorrindo. — Estava à sua espera, mas já ia embora. Estou sentindo um pouco de frio.

Bobagem, querida. Talvez sentisse frio até agora. Mas não sentirá mais, já que cheguei. O que me diz disso? E mais ainda: aposto como alega sentir frio, para irmos embora daqui... para seu camarote, hem? Que tal?

Célia ia responder, quando Delmer levantou-se e afastou- se. Ulysses nem sequer aparentou reparar na presença dele.

Não acredito que você queira acompanhar-me — murmurou Célia, rindo. — Logo, não vou correr o risco de ser desprezada. Fiquemos aqui.

     Devo-lhe uma combinação. Vamos comprá-la?

     Não — respondeu Célia. — Estou muito bem aqui.

     Que mudança, hem? Diga a verdade.

A verdade? Muito bem. Ela está fazendo compras e prefiro não vê-la.

     Refere-se à viúva? Ora... Ah, então, está com ciúmes?

Tenho motivos. Você a persegue, como se estivesse louco por ela.

E estou — suspirou Ulysses. — Mas também estou louco por você.

     Cínico! Não acha?

Ora, por que nos enganarmos? Esta é uma viagem de prazer. Devemos aproveitar o que aparece. Olhe, gordinha, daqui a alguns dias, chegaremos a Nova York e nos diremos adeus, não é mesmo? Cada qual irá para um lado e se tornar a vê-la, talvez nem me lembre. Sou como o caçador: não deixo de atirar numa perdiz porque já tenho outra na arapuca. Compreende?

Uly, você é o homem mais descarado que já conheci.

Mas não se importa com isso, hem?

Ora... não muito. De certo modo, você está com a razão. Mas Jennifer se importa. É dessas que levam as coisas a sério. Logo está perdendo tempo com ela.

Quer apostar? Quer apostar como levo-a para a cama? Afinal, conheço bem as mulheres...

Na verdade, Uly, esta conversa é um pouco humilhante para mim.

Não seja boba — cortou Ulysses, dando-lhe um tapinha. — Você é minha queridinha em peso pesado... e ela... como um pastel de vento. Quem não gosta de sobremesa? Principalmente, sendo um bombom como Jennifer?

Você está me saindo frívolo demais.

Está certo. O que prefere? Que eu zombe de você, dizendo que é o amor da minha vida, que jamais amei outra mulher antes e que daqui em diante só amarei você? Prefere isso?

Você é mesmo o sujeito mais descarado do mundo — exclamou Célia, rindo. — Mas não posso dizer que tenha sido hipócrita. Na verdade, prefiro assim. Sincero.

Viu só? Ei, desculpe um momento, sim? O garçom me está fazendo sinais. Volto já.

Realmente, o garçom do bar do convés da piscina fazia sinais a Ulysses, mostrando o fone do balcão. Ulysses aproximou-se, agradeceu com um sorriso amável e pegou o fone.

Pronto? Campbell ao aparelho. Fale.

Um homem entrou em seu camarote. O que ocupa o camarote F. Chama-se Delmer Charlton, se não me engano.

Você o seguiu? Onde está?

Não o segui — respondeu Jennifer. — Estou telefonando do salão. Sabemos aonde ele irá. Talvez agora, talvez mais tarde.

Não. Mais tarde, não. Irá agora. Farão o possível para acabar o quanto antes, a fim de recolocarem a chave em meu camarote, para eu nada perceber. Creio que me enganei com Célia. Deixaram-me como se tivesse uma âncora pendurada no pescoço. Venha daqui a dois minutos, para tomar conta dela.

E você, para onde irá?

Faça o que estou dizendo — grunhiu Ulysses, antes de desligar.

Tornou a sorrir para o garçom e voltou para junto de Célia, que o observava com grande interesse. Sentou-se junto dela novamente com expressão pensativa e não disse nada.

Aconteceu alguma coisa ruim? — perguntou a gorducha.

Ruim, não... inesperado, apenas. Trata-se do telegrama que estava esperando. Leram para mim. Bem, preciso enviar uma resposta urgente. Importa-se se eu escrever aqui?

De modo algum. Não me importo.

Ulysses tirou do bolso uma agenda, na qual começou a escrever, fazendo breves pausas para refletir. Ainda não havia terminado, quando Jennifer aproximou-se deles, como que de má vontade e os cumprimentou:

Olá. Estão com vontade de sentir frio?

Não está mal aqui — protestou Célia. — O que comprou?

Nada — respondeu Jennifer. E voltando-se para Ulysses, acrescentou: — E você? Está escrevendo suas memórias?

Mais ou menos — disse ele, levantando-se.

Desculpem-me as duas, sim? Preciso enviar este telegrama. Depois nos veremos.

Vou com você — exclamou Célia.

De modo algum. Seria um aborrecimento. Por que não acompanha Jenny nas compras? Na certa poderá dar-lhe bons conselhos.

Sem esperar mais, Ulysses afastou-se. Dois minutos depois entrou num dos camarotes da primeira classe, usando uma chave apropriada. O velho truque de dois camarotes para uma só pessoa. Foi direto ao armário, abriu-o, apanhou a mala de viagem e pousou-a na cama. Estava vazia, aparentemente. Quando ergueu o fundo falso, apareceu o pequeno arsenal: duas pistolas, várias cargas, um rádio, um coldre... Colocou o coldre, meteu uma carga na culatra da arma e outra no bolso. Em seguida, enroscou o silenciador no cano da pistola e meteu-a no coldre. Finalmente, recorreu ao radinho, apertando o botão de contato.

Pronto — soou uma voz masculina, imediatamente.

Vou para a zona de carga. Pelo jeito, o caso está em marcha. Cuidem dela. Está com a gorda.

Fique descansado, senhor. Cuidaremos com atenção.

Uly desligou o rádio, guardou tudo e saiu do camarote.

Quatro minutos mais tarde, chegou a uma das entradas da zona de carga, onde um dos tripulantes passava empurrando um carrinho de mão pelos corredores estreitos.

Preciso apanhar uma coisa em minha mala grande — disse Ulysses. — Posso entrar, não é mesmo?

Naturalmente, cavalheiro. Há poucos minutos entraram dois senhores para fazerem o mesmo. Precisa de ajuda?

Não, obrigado.

Ulysses entrou na zona de carga. Era enorme. O que ocupava menos espaço era a bagagem dos passageiros. Havia automóveis, dois caminhões e fardo de todos os tipos. A luz estava acesa, mas havia sombras por todos os lados. O barulho dos motores do gigantesco transatlântico chegava até ali.

A vantagem de Ulysses era saber perfeitamente onde haviam sido colocados os ataúdes. Dirigiu-se para lá, procurando esconder-se nos corredores sombrios. Avistou os dois homens. Um deles devia ser o tal Delmer Charlton, evidentemente. Lembrou-se de tê-lo visto em outras ocasiões, por perto de onde ele e Jennifer estavam. Lembrou- se perfeitamente: um sujeito alto, desses que sabem passar desapercebidos.

Parou ao chegar à zona onde se encontravam os dois ataúdes.

 

Um deles havia sido aberto e Paul estava abrindo o outro. Não tiveram problemas. Ergueu a tampa. Como no anterior, viu dentro o cadáver, metido numa caixa de zinco. Observou um instante o rosto enegrecido e deformado do morto. Não podia saber se era Griffin ou Ketchman. Voltou a olhar para Troy e sussurrou:

Quando abrirmos a caixa de zinco isto aqui vai feder que é um horror.

Sim; mas não importa. Ande depressa.

Paul balançou a cabeça afirmativamente. Tirou da sacola a alavanca e encostou-a à beira da caixa de zinco. Começou a girar como se usasse um saca-rolhas. A alavanca penetrou facilmente na junção soldada de uma das placas. Troy insistiu. Abaixou-se, abriu a bolsa onde estavam os afiadíssimos instrumentos cirúrgicos que deveria usar em seguida. Precisava fazer um trabalho rápido e decidido. Um bom talho, sem contemplação alguma... Ia ser asqueroso, mas aceitara o serviço. E devia realizá-lo. Sentiu o cheiro do cadáver em decomposição e quase caiu sentado. Olhou para Paul, que soltara uma exclamação abafada e apertava os dentes, comprimindo o nariz com a mão, como se quisesse livrar-se do mal cheiro.

Fiquem como estão — ecoou uma voz varonil, à retaguarda dos dois. — Depois direi o que devem fazer.

Troy e Paul imobilizaram-se. Ficaram petrificados mal ouviram aquela voz calma. Em seguida, quando pensaram em se mexer, compreenderam que o homem, ao dar as ordens com tanta tranquilidade, devia estar bem respaldado por uma arma... e continuaram imóveis.

Agora, muito devagar, soltem o que têm nas mãos e levantem-se. Sem movimentos bruscos. E voltem-se para mim. Depois, sempre muito devagar, saquem as armas e deixem-nas em cima do ataúde para que eu as veja bem. E aviso-os de uma coisa: tenho uma pontaria extraordinária. Meus nervos são de aço e não me importo de matar. Já o fiz outras vezes. Se me entenderam, vejam bem o que vão fazer.

Os dois homens continuavam imóveis. Tinham certeza de que quem lhes falava não era um fanfarrão. Era um homem preparado para enfrentar perfeitamente aquela situação. Além do mais, talvez não, estivesse sozinho.

Depois de tantas reflexões, os dois agiram com acerto. Obedeceram. Deixaram o que tinham nas mãos e começaram a erguer-se lentamente, lentamente... Maldito Charlton! Por que não viera com eles? Por que dissera que três era demais? Eles se arriscavam e Charlton esperava calmamente no camarote!

Agora as armas. Em cima do ataúde. Devagar. Se se voltarem, estouro-lhes os miolos.

Troy e Paul começaram a duvidar que aquele homem fosse capaz de cumprir a ameaça. A voz soava tranquila demais. Não era, sequer, ameaçadora. Era uma voz simplesmente informativa. Talvez pudessem...

No instante em que a ideia de enfrentar aquele homem passou pela cabeça de ambos, a luz da zona de carga apagou- se subitamente. A escuridão repentina foi terrível, assustadora. Restou apenas a claridade que entrava pela porta, no fim do corredor.

Troy não teve tempo sequer para reagir. Ouviu atrás dele o estalido abafado do tiro dado com silenciador e a bala o empurrou rudemente pelas costas, derrubando-o de bruços sobre o instrumental cirúrgico. Paul conseguiu pular de lado, ouvindo o tiro seguinte que passou a menos de três palmos de seu corpo, demonstrando a boa pontaria de Ulysses Campbell, a quem o erro podia ser desculpado pela repentina escuridão.

Paul rolou pelo chão, bateu em alguma coisa e ficou de pé, sem ter a mais remota ideia de onde se encontrava. Estremeceu ao ver à sua frente um faiscar. Outra bala passou de raspão por ele, quase lhe tocando a face, antes de cravar- se no fardo à retaguarda. Sacou a pistola, frenético e apontou para onde vira o faiscar... ouviu o roçar de pés, numa velocidade espantosa.

Imobilizou-se com o dedo crispado no gatilho. Rígido. Sabia que Campbell não estava mais no lugar de onde atirara. Mas não sabia onde poderia estar. Campbell sim, conseguiria localizá-lo. Paul permaneceu parado, contendo a respiração. O outro se movimentaria e quando ouvisse o ruído, atiraria.

Mas nada ouviu. Apenas o barulho abafado das máquinas poderosas. Nada mais.

De repente, Paul teve a sensação de que um raio de gelo penetrava em seu corpo. Em seu peito. Foi uma sensação súbita, pavorosa, espantosamente fria. Não conseguiu, sequer, emitir um gemido, porque a ponta do estilete chegou a seu coração, perfurando-o. Por um instante, Paul teve a visão de um grande resplendor diante de seus olhos. Talvez uma visão interna de um mundo desconhecido, no qual se precipitou no ato. Ficou morto, de pé, com a pistola na mão, a boca aberta, os olhos arregalados. Depois, muito devagar, começou a cair para a frente, rígido, duro como um poste. Sem soltar a pistola.

Alguns metros adiante, Ulysses esticou rapidamente o braço armado, ao ouvir o baque do corpo no chão. Seus nervos, porém, eram mais temperados que os de Paul. E seu dedo nem sequer chegou a crispar-se. Mas permaneceu alerta na escuridão.

Não compreendia o que havia acontecido. Mas não gostava daquilo. Talvez se tratasse de algo derrubado pelo adversário para obrigá-lo a atirar. Com uma lentidão espantosa, quase como se não se estivesse mexendo, Ulysses endireitou o corpo, atento a qualquer ruído. Nada captou, além do barulho abafado das máquinas.

De algum ponto e ligeiramente, chegou um som diferente. Como um pigarro. Girou devagar, movimentando- se com o maior silêncio possível. Como uma sombra o faria. Captou outro ruído. Classificou-o como o de um salto de sapato e girou na direção de onde provinha. Não enxergava nada. Sabia, porém, que também não podia ser visto.

Durante um minuto, a situação continuou imutável. A zona de carga estava mergulhada na escuridão, envolta apenas no barulho das máquinas. Não havia outro som. Não havia a menor claridade. Nem movimento algum. Por cima dos enormes fardos, Ulysses julgou ver a claridade que entrava pela porta na extremidade do corredor. Daquele ponto chegou um novo ruído. Ulysses movimentou-se com mais velocidade e a sola de seus sapatos rangeram no chão.

Viu o faiscar ligeiro de um tiro. A sua reação foi tão veloz que seus ouvidos ainda estavam sob a pressão do ar deslocado, quando a bala passou raspando por seu rosto. Captou um ronco estranho, o impacto da bala ao bater num fardo e o toque de três ou quatro passos. Tornou a atirar, movimentando-se para mudar de posição.

Desta vez não atiraram nele. Nada mais aconteceu. Ulysses permaneceu imóvel durante mais de dois minutos. Como se tivesse virado uma estátua de pedra.

Finalmente meteu a pistola no coldre, sentou-se no chão sem fazer barulho e tirou os sapatos com cuidado. Tornou a ficar de pé e a empunhar a pistola.

A luz voltou de repente e Ulysses, sem um estremecimento sequer, pulou para o lado, girando os olhos em todas as direções. Seu olhar passou pelo corpo de Paul. Voltou e prosseguiu na busca. Na entrada do porão ecoou uma voz masculina. Calçou os sapatos rapidamente, guardou a pistola e dirigiu-se ao encontro do homem. Na metade do caminho esbarrou com o tripulante que o olhou assustado, perguntando:

Aconteceu alguma coisa com o senhor? A luz estava apagada.

Sim, apagou-se há pouco — disse Ulysses sem se alterar. — Na certa os dois homens que saíram devem tê-la apagado, pensando não haver mais ninguém aqui dentro. Nos os viu sair?

Não, senhor. Não vi ninguém sair. Que brincadeira... Espero que o senhor não se tenha assustado.

Um pouco — murmurou Ulysses, sorrindo. — Ainda sou meio infantil.

Isso não é ruim — exclamou o marinheiro, rindo. — Precisa de ajuda?

Não, não. Não se afaste, para evitar que alguém repita a brincadeira, sim?

Conte comigo. Encontrou sua mala?

Sim, sim. Vou fechá-la.

Despediram-se com um gesto e Ulysses voltou para onde estavam os ataúdes. Apesar de saber que nada mais precisava temer, permaneceu com os olhos e com os ouvidos atentos. Convenceu-se de que o perigo havia passado, ao ver o estilete enterrado no coração de Paul. No mesmo instante, um nome acudiu à sua mente: Delmer Charlton.

 

Delmer Charlton ouviu a batida na porta de seu camarote. Levantou-se de um salto e foi abrir rapidamente. Esperava ver Paul e Troy. Por isso ficou atordoado ao ver o visitante.

Mas... o que faz aqui? — exclamou apatetado. — Combinamos que depois de... Aconteceu algo inesperado?

Snoring entrou, fechando a porta ao passar. Seu rosto, embora inexpressivo, estava perolado de suor. Sua respiração estava um pouco arquejante e notava-se, mais que nunca, o ronco. Seu olhar dirigiu-se ao beliche. Viu nele o aparelho de escuta que estava sob os cuidados de Charlton.

Vim para levar isto — disse Snoring, respirando com dificuldade.

Vai cuidar da escuta? Bem, por mim, não há problema. Podia ter pedido pelo telefone e eu teria levado com o que Paul e Troy tivessem trazido... se houver algo a trazer.

Depois cuidaremos do resto. Agora, levarei isto.

Perfeitamente.

Delmer Charlton voltou-se, foi até à cama e inclinou-se para recolher o aparelho. Snoring colocou-se à retaguarda dele. Ergueu a mão direita já com a pistola em punho e encostou o cano nas costas de Charlton. Este teve um gesto de espanto e começou a voltar a cabeça. Snoring puxou o gatilho. A bala atravessou o coração de Delmer Charlton, jogando-o em cima do beliche, onde ficou atravessado.

Foi assim que Ulysses W. Campbell o encontrou, três minutos mais tarde.

 

A revelação

Não entendo porque está tão nervosa — disse Jennifer.

Ele foi só enviar um cabograma.

Mas está demorando muito — murmurou Célia, com voz tensa. — Já devia ter voltado!

Ora, querida! Você parece uma colegial apaixonada — exclamou Jennifer, sorrindo com ar de zombaria. — Não creio que um homem como Ulysses mereça tanto. Em minha opinião... Oh, o que quer agora o garçom?

Célia também olhou para o balcão e viu o garçom fazendo sinais, com seu hábito de agitar o fone.

Acho que é para você — balbuciou Célia.

Parece. Vou ver quem é. Espere-me aqui.

Encaminhou-se para o balcão e atendeu ao chamado

telefônico. Célia olhava atentamente. Percebeu que Jennifer quase não falava e que parecia meio irritada. A viúva desligou e voltou para junto de Célia, cujo, interesse ei£ evidente.

Era Ulysses — disse Jennifer, enrugando a testa. — Está no camarote dele. Perguntou se você ainda estava comigo. Gostaria de falar com nós duas. O que estará ele tramando agora? Para dizer a verdade, não me importo. Vá você, se quiser. A mim, não interessa.

Que mais disse ele?

Nada mais. Não me espantaria se tivesse inventado uma diversão... especial. Você vai?

Vou.

Pois então divirta-se.

Célia ficou de pé. Despediu-se com um gesto e afastou-se de Jennifer. O que poderia ter acontecido? Ou tratava-se, simplesmente, de um jogo a três, como Jennifer desconfiara?

Chegou rapidamente ao corredor dos camarotes de luxo. Quando ia bater à porta do camarote de Ulysses, ele apareceu de repente. Mas não saindo do seu e sim, de outro. O susto de Célia foi considerável ao comprovar que era o de Delmer Charlton. Ulysses não deu tempo a gorda de reagir. Aproximou-se dela, tomou-a pelo braço e levou-a para o camarote de Delmer, fechando a porta pelo lado de dentro.

Célia viu Charlton estendido na cama e ficou imóvel, pálida e muda. Permaneceu assim durante um instante. Depois, lentamente, encarou Ulysses W. Campbell. Estremeceu ao deparar com o olhar frio dele. Aliás, não era nada parecido com sua expressão habitual de amabilidade e de despreocupação.

Os outros dois também estão mortos — disse Ulysses.

Que... dois? O que aconteceu?

Uma batida ecoou na porta. Em seguida ouviu-se a voz de Jennifer, dizendo:

Sou eu.

Ulysses abriu e a maravilhosa loura entrou. Fechou a porta, viu o cadáver e aproximou-se dele. Mal o olhou, dedicou sua atenção a Célia Marshal. Balançou a cabeça e murmurou:

Espero que você compreenda o significado disso, Célia.

Célia pestanejou e olhou para Ulysses que tornou a tomá- la pelo braço e levou-a a sentar-se numa cadeira. Em menos de um minuto explicou o que se passara na zona de carga. Com uma precisão e concisão, que deixou atônita a atriz obesa.

Depois, fechei os ataúdes, meti os amiguinhos de vocês num baú que já tínhamos preparado por perto, para o caso de acontecer algo assim. Guardei bem os pertences deles e as armas, recolhi tudo e vim para cá. Sabia que o tal

Charlton lhes dera as chaves dos ataúdes. Elas voltaram para as minhas mãos, é claro. E encontrei-o assim. Agora, Célia, diga-nos: quem dirigiu vocês em tudo isto? Como se chama e em que ponto do navio podemos encontrá-lo?

Não sei de nada... Nada! Para mim tudo isto é...

Não me obrigue a ser desagradável, Célia — cortou Ulysses: — É absurdo. Posso amordaçá-la e amarrá-la. Em poucos minutos, farei você desejar a morte. Vamos, não seja tola. Quem os está dirigindo?

Não sei — respondeu Célia, abaixando a cabeça de repente. — Não sei. Palavra. Só Delmer sabia. Ele dava as ordens a mim, a Paul e a Troy.

Inclino-me a acreditar que ela diz a verdade — murmurou Jennifer. — Mas, sem dúvida, deve fazer uma ideia do caso em que está trabalhando. Não é assim, Célia?

Bem, eu... só sei que se trata de dólares.

Dinheiro? — resmungou Jennifer, demonstrando incredulidade.

Sim... dólares... Contrabando de dólares. Delmer e eu falávamos sobre isso, de vez em quando. Éramos... auxiliares de todo o negócio. Trata-se da passagem de dólares, dos Estados Unidos para a Europa. Em grandes quantidades. Para serem vendidos no mercado negro.

     Isso é ridículo — rosnou Ulysses.

Não acho — acrescentou ela, assustada. — Era muito dinheiro. Muitíssimo. Sempre usávamos os diplomatas. Não só norte-americanos. De toda a Europa. Delmer costumava dizer que era o tráfico de dólares mais importante já organizado. Arnold Griffin e Wilbur Ketchman faziam parte da rede. Ultimamente pediram mais dinheiro por seus serviços. A resposta foi negativa. Eles ameaçaram contar tudo em Washington. Com certeza acharam que isso obrigaria os diretores da rede a lhes pagar mais. Logo, porém, compreenderam que se tinham equivocado. Foi quando temeram por suas vidas e decidiram fugir.

Pretendiam passar da Inglaterra, para o continente europeu?

     Sim... Claro.

Ou seja: não iam para hotel nenhum perto de Dover, passar o fim de semana — disse Jennifer, tornando a interferir. — Estavam na verdade fugindo. E quem os matou?

     Foi tudo preparado por Delmer e pelos outros dois.

Mas dirigidos por outra pessoa que está agindo agora, de um modo desesperado — rosnou Ulysses. — Compreendeu que não vai ter acesso aos ataúdes e eliminou os três homens que podiam comprometê-lo. Isto é, eliminou dois, pois fui eu quem matou o outro. Mas ele estava lá, esperando, vigiando, para o caso de algo sair errado. Quando viu que as coisas se estavam complicando, cravou um estilete no comparsa sobrevivente. No coração. Depois veio aqui, eliminar Delmer Charlton. Sem dúvida, desconfiava de mim. De nós — acrescentou, apontando Jennifer. — Sabe agora que estávamos informados. Por isso colocou microfones para ouvir nossa conversa. Queria preparar uma armadilha para nós dois. Sabe o que vai acontecer, a partir de agora, nesta viagem, Célia?

O que vai acontecer?

Nenhum de nós três estará seguro. A qualquer momento e em qualquer lugar, podemos ser assassinados. Restam quatro dias de viagem. Já imaginou o enorme risco que correremos se não localizarmos esse homem? Você, inclusive, é lógico.

Mas se nem o conheço!

Os outros dois também não o conheciam e ele matou o que eu poderia ter capturado com vida. Compreenda: nenhum de nós estará a salvo enquanto esse homem andar solto no navio. Se sabe quem é e não nos disser, sua vida correrá tanto perigo quanto a nossa.

Não sei quem é — respondeu Célia, quase histérica.

Deve ser um dos chefes da rede de tráfico de dólares, mas não sei quem é. Juro!

Estou me lembrando de uma coisa — murmurou Jennifer. — Algo referente à fuga realizada por meu marido e por Ketchman. Eles fugiam, não é mesmo, Célia? Ou não?

Claro que sim! O que mais poderiam fazer?

Denis Grover, o secretário de meu marido, foi receber- me no aeroporto. Ele me disse que todos acreditavam que Arnold e Wilbur Ketchman iam para um hotelzinho sossegado, perto de um lugar chamado Barham. Esse lugar fica, realmente, a caminho de Dover, para quem sai de Londres. Foi nessa estrada que os dois foram assassinados. E eu pergunto: faz sentido meu marido ter dito a seu secretário que ia com Ketchman para Dover? Não tinha motivo para dar tal informação, caso estivesse fugindo. Se quis despistar, para a possibilidade de alguém perguntar a Grover se sabia o paradeiro de Arnold Griffin, deveria ter dito que ia em outra direção. Não acham?

Não sei... O que está querendo insinuar? — perguntou Célia, com os olhos arregalados.

Eu entendo — murmurou Ulysses. — Griffin não disse nada ao secretário. Mas este recebeu instruções para confirmar que ele deixara a informação. Para dar certa importância à morte de Griffin e de Ketchman, naturalmente. Precisavam tentar tudo. Um dos meios usados foi dizer que eles iam passar um fim de semana fora e não que estavam fugindo. A coisa está bem clara. Denis Grover também faz parte, da rede. Foi o que você quis sugerir, Jennifer?

     Exatamente.

Então, seremos obrigados, mais tarde, a cuidar de Denis Grover. No momento, porém, temos neste navio um assassino que não hesita diante de coisa alguma e a quem não conhecemos. Não acho a menor graça ficar à mercê desse tarado.

Por que o chama de tarado? — exclamou Jennifer, surpresa. — Quer dizer que ele está louco?

Nada disso... Mas é que ele tem algo de peculiar. Enquanto estávamos na zona de carga, ouvi-o emitir algo parecido com um ronco. Duas vezes. Como se tivesse algum mal no nariz ou na garganta. Deve ser um defeito físico. Foi o que me pareceu.

Como se estivesse resfriado? — murmurou Jennifer Griffin.

Sim. Algo parecido a isso.

John Wellington — disse Jennifer, quase gritando. — O homenzinho das fotografias, cujo nome eu lhe disse, pedindo para você investigar o camarote 166. O que estava resfriado!

Não, não estava resfriado — murmurou Ulysses, após uma ligeiríssima hesitação.

Sendo assim, o que esperamos?

Ulysses fulminou a viúva com um olhar irritado. Célia não saíra ainda de seu espanto, ao ver a mudança operada naquele homem. Uma mudança tão grande que parecia outro. Sem dizer uma palavra, ele aproximou-se de Delmer, tirou- lhe a pistola do coldre e jogou-a para a viúva. Para surpresa de Célia, Jennifer pegou a arma com a maior facilidade do mundo.

Você ficará aqui — grunhiu Ulysses. — Para evitar que matem Célia. Já conhece nosso homem. Mas se outro tentar entrar neste camarote, mate-o.

Não tem mais instruções a dar-me? — perguntou Jennifer, algo aborrecida. — Não se esqueça quem sou eu, ouviu bem?

Passei dois dias bancando o palhaço — cortou Ulysses. — Seria muito pedir que me permita fazer com que esse homem compreenda com quem se meteu?

Pelo jeito, parece que eu não existo aqui. E repito: quem dirige tudo, sou eu!

De acordo. Você dirige tudo. Mas quem cuidará desse assassino, serei eu. Peço, como um favor para conservar minha vida.

Quer dizer: minha vida — murmurou Jennifer, sorrindo.

Sabe perfeitamente o que estou dizendo. E ficará aqui.

Célia Marshal continuava apatetada. Não entendia coisa

alguma. Mais espantada ficou, quando a viúva Griffin aproximou-se de Ulysses W. Campbell, enlaçou-o pelo pescoço e beijou-o na boca, devagar, demonstrando que a intimidade existente entre eles não era coisa recente e improvisada.

Está certo — murmurou Jennifer. — Mostre quem é. Mas antes de matá-lo, dê-lhe lembranças minhas. Fará isso?

Sim.

Diga: sim, meu amor.

Sim, meu amor — grunhiu o senhor Campbell. — E tome cuidado.

Separaram-se. Ulysses saiu do camarote. Célia continuava espantada, olhando para a viúva Griffin que lhe dirigiu um sorriso, explicando:

É a única coisa que tira o juízo de Número Um. Alguém querer matar-me. Aí, ele fica insuportável e sou obrigada a deixá-lo fazer o que quiser. A arcar com todos os riscos. Em outras ocasiões, é diferente. Hoje por um, amanhã pelo outro, como se costuma dizer. Número Um é assim.

Quem?

Número Um. Oh, Uly. Ainda estou aborrecida com ele por ter ido para a cama com você. Mas amanhã a zanga terá passado, pois o prazo de quarenta e oito horas se esgotará. Depois, ambos esqueceremos. Enfim ele lamenta mais do que eu, o que se passou entre vocês dois.

Mas fez tudo — disse Célia, sorridente.

Você não entende, gordinha — respondeu a viúva, sem se alterar. — Essas coisinhas não têm a menor importância entre Número Um e eu. São coisas que acontecem... e passam. Prefiro que ele se deite com outra mulher a receber um balaço nas tripas. Você ficará no passado, como se nunca houvesse existido para nós, entendeu? Caso encerrado e esquecido. Tão esquecido que, enquanto meus amigos a detêm, aguardando a chegada aos Estados Unidos, Número Um e eu faremos de conta que esta viagem é de lua de mel. Porque não há a menor dúvida: John Wellington é um homem morto.

 

Quando Ulysses W. Campbell entrou no camarote 166 da classe turística, encontrou-o vazio. Não havia nada, nem ninguém. Ou melhor, havia algumas peças de roupa, objetos de higiene, dois livros comprados no navio e nada mais. Por um instante, o melhor espião de todos os tempos ficou tentado a esperar o aparecimento de John Wellington. Mas compreendeu logo que isso jamais aconteceria. O velho truque de dois camarotes. Ou três. Como ele próprio, Wellington devia viajar com duas personalidades. A partir de agora, usaria a outra, apresentando uma aparência física muito diferente. Daí, o senhor Campbell chegou a uma conclusão: John Wellington era algo mais que um simples contrabandista de dólares. Repassando a atuação do adversário e a facilidade com que matara e escapulira do porão do navio, a conclusão só podia ser uma: John Wellington era um espião de primeiríssima categoria.

E Brigitte não sabia disso.

Ulysses W. Campbell pegou o fone do camarote e pediu ligação com o camarote F da classe de luxo. Obteve resposta imediata.

Pronto — soou a voz de Jennifer Griffin.

Não está aqui. Nem voltará, tenho certeza,

Entendi.

Tome cuidado. Não é o que parece.

Entendi, já disse, meu amor. Encontrou algo?

Trata-se precisamente disso. Não deixou coisa alguma. Vou para aí.

 

No camarote F da classe de luxo, a viúva pousou o fone no gancho e ficou pensativa, como que inteiramente esquecida da presença de Célia Marshal que a observava atentamente. Então, o senhor Wellington era um espião? Lembrou-se de sua conversa com ele, em inglês. Inglês britânico. Não percebera outro sotaque, exceto o britânico. John Wellington portanto, devia ser mesmo inglês. Mais também podia ser alemão, francês, ou russo. Em tal caso, isso significaria que ele era um agente de primeiríssima categoria. Como ela. Como Número Um. Um agente maduro e treinado até as últimas consequências.

Estava tão abstraída que se espantou ao ser atacada por Célia. Quando percebeu, a gorda já havia dado um tapa na mão armada da viúva Griffin. Os dedos da atriz fecharam- se em torno do pulso de Jennifer, desviando a trajetória das balas que pudessem sair daquela arma. Com a outra mão, Célia segurou os cabelos louros da viúva, obrigando-a a virar a cabeça para trás, com o pescoço torcido.

O que me diz agora, beleza? — perguntou Célia, num fio de voz.

Jennifer Griffin não se mexeu um milímetro, sequer. Seus olhos azuis fixaram-se nos de Célia Marshal.

É melhor me soltar — balbuciou a viúva.

Melhor para quem, beleza? Pensou que eu seria tola de ficar esperando para ver o que vocês dois fariam comigo, hem? Quer saber o que pretendo fazer, agora? Vou quebrar seu pescoço, arrancando seus lindos cabelos louros. Quando estiver bem morta, tomarei a pistola da sua mão e esperarei Uly, tranquilamente. Quando ele aparecer naquela porta, meterei uma bala no coração dele. Que tal? Vamos, grite... Grite um pouquinho. Talvez alguém a ouça.

Não costumo gritar — respondeu Jennifer, suavemente.

Não? Corajosa, hem? E bonita... Mesmo morta, continuará bonita, tenho certeza. Ficará linda... Também ele continuará bonitão. É um homem tão interessante. Como pude enganar-me com ele? Não me pareceu perigoso. Mas deve ser, não é mesmo?

Você está complicando sua vida, Célia. Você a está perdendo.

Eu? — exclamou a gorda, rindo. — De modo algum, beleza! Quem está perdendo é você. E ele também. Sabe como chegarão em Nova York? Dentro de um ataúde, como seu marido e como Ketchman. Mas estarão mais bonitos... e não queimados como os outros. Quem os vir, dirá: “Parecem felizes em seus ataúdes”. Snoring e eu já matamos muitos. Nem o tolo do Delmer imaginava com quem estava lidando. Vocês se enganaram muito comigo. Vocês também se enganaram!

Snoring é John Wellington?

É um dos nomes dele — respondeu Célia, tornando a rir. — Gostaria de saber mais alguma coisa? Gostaria de saber o verdadeiro nome dele? Gostaria de saber, realmente, como se chama o melhor agente preparado por Moscou? Tão bem preparado que é mais conhecido como Moscou Center? O agente Central de Moscou, compreendeu? Mas você nem sequer sabe do que estou falando!

Refere-se, sem dúvida a um espião russo. Um dos homens do MVD.

MVD? Mas de onde saiu você, querida? Isso de Ministervo Vunetnk Ogel era antes. Agora, chama-se o Centro.

Ah, sim, refere-se ao KGB, isto é, Comitê para a Segurança do Estado Russo. Está instalado na antiga prisão Lubyanka, na praça Dzerzhinsky, em Moscou e ocupa uma série de gabinetes onde antes eram os calabouços. É desse lugar que saem todos os espiões soviéticos. Chamam-no de O Centro. Para mim, porém, vocês continuarão sendo do MVD.

Basta. Acha que sou idiota? Está tentando distrair-me para dar tempo a Uly de chegar aqui!

Não preciso da ajuda dele, Célia. Preciso saber quem você é, realmente, e quem é Moscou Center. Ou Snoring, ou John Wellington. Qual é o nome dele e onde está?

Imbecil, Quem você pensa que é?

“Baby” da CIA.

Por um instante os cabelos de Célia Marshal se levantaram. Uma palidez repentina tomou conta de seu rosto. Uma expressão de pavor dominou seus olhos. A expressão de quem acaba de compreender que, em lugar de ter nas mãos um passarinho indefeso, tem uma serpente venenosa.

Célia Marshal reagiu com rapidez. Tentou, realmente, quebrar o pescoço da viúva Griffin, puxando-lhe com força os cabelos para trás. A reação da “indefesa” viúva foi simples. E tão perigosa, como havia temido a adversária, mal ouvira o nome de guerra da agente da CIA. Sem perder tempo, “Baby” assestou uma joelhada no baixo ventre da inimiga. Célia recebeu o impacto em pleno sexo. Deu um urro e precipitou-se sobre Jennifer, sem lhe soltar os cabelos.

Mas o erro máximo de Célia Marshal, desde o início, fora ter deixado livre o braço esquerdo de Jennifer. O punho da divina foi ao encontro do rosto de Célia e com um golpe seco, fraturou-lhe a mandíbula, como se fosse um biscoito.

O corpo de Célia desabou sobre Jennifer, esmagando-a. As mãos gordas movimentaram-se, em busca da pistola. Conseguiu arrancá-la com violência das mãos da viúva. Sem sair de cima de sua vítima, Célia ergueu a pistola, dando um grito abafado.

O punho direito de Jennifer Griffin chocou-se com o torso de Célia. Bem sobre o seio esquerdo. No interior do corpanzil, o coração parou de repente. O corpo de Célia Marshal relaxou. Os olhos arregalados ficaram fixos nos de Jennifer Griffin. A mandíbula ficou caída, agitando-se ao sabor do último suspiro. Em seguida, Célia começou a mover-se lentamente para a direita.

A viúva de Arnold Griffin empurrou-a com um dedo, acabando de livrar-se daquele peso. Sentou-se no chão e respirou fundo.

Quando Ulysses W. Campbell entrou no camarote, ainda a encontrou no chão. Seus olhares se entenderam. Ele observou um instante o corpo de Célia caído no chão e tornou a fixar os olhos azuis de Jennifer.

Você não vai acreditar — disse a viúva, sorrindo.

De você, acredito tudo — murmurou ele.

Está bem?

Perfeitamente bem. Sabe que quem nos visse, diria: parecem felizes em seus ataúdes?

 

Moscou Center

Denis Grover pretendia jantar fora, naquela noite. Por isso, vestira-se com elegância. Precisava levar uma vida normal e despreocupada. Como se nada estivesse ocorrendo. Talvez assim fosse. Talvez nada estivesse acontecendo que significasse perigo para ele. De qualquer modo, a última coisa a fazer seria perder o controle dos nervos.

Um último olhar ao espelho convenceu-o de que estava perfeito. Com esta impressão reconfortante, saiu do banheiro, foi até a porta do apartamento, abriu-a... Imediatamente compreendeu que algo havia acontecido. Ficou imóvel, olhando para os dois homens que, sem dúvida, estavam esperando-o no corredor. E que agora o encaravam fixamente. Dois sujeitos altos, fortes, com olhar interrogativo.

Ia sair, senhor Grover? — perguntou um deles.

Denis quis responder, mas não pôde. Sua boca secara. O

outro sujeito empurrou-o suavemente, tornando a levá-lo para dentro do apartamento. O primeiro também entrou e fechou a porta por dentro.

Não se preocupe em responder — disse o que acabara de falar. — Nós o estamos vigiando desde a chegada de um cabograma enviado do transatlântico Viking e temos ordem de retê-lo aqui para receber uma pessoa.

Quem são vocês? — gaguejou Grover, finalmente.

Da CIA.

CIA? Escutem, sou um cidadão americano e...

Quer que lhe quebre a boca? — grunhiu o outro. — Não, é claro. Logo, mantenha-a fechada. Não venha com contos de fada para cima de nós. Falará com a pessoa que voltou para Londres, mal chegou a Nova York no Viking. Tudo muito rápido, senhor Grover. Desembarcou do navio, foi levada de helicóptero para o aeroporto, pegou um avião e estará aqui às onze horas... Logo, tenha calma e não nos aborreça. Isso é tudo.

Denis Grover olhou para os dois homens. Se tentasse qualquer coisa, o mínimo que aconteceria seria os dois lhe quebrarem a cara.

Às onze e dez da noite, soou na sala do apartamento um zumbido que deixou Grover inquieto. Percebeu o que era, quando um dos visitantes sacou do bolso um radinho e atendeu ao chamado, dizendo:

Pronto.

Estou a um minuto daí — respondeu uma voz feminina. — Posso subir?

Sim. Está tudo em ordem.

Cortou o contato. Denis Grover enrugou a testa e lembrou-se, de repente, de quem era aquela voz. O espanto surgiu em seu rosto. Ou se enganara e aquela voz não era a de Jennifer Griffin? Um minuto mais tarde, a campainha da porta ecoou e Denis imaginou que logo sairia de suas dúvidas.

O homem que foi abrir a porta voltou, acompanhado de uma anciã de cabelos brancos. Aquela velha não se parecia em nada com a bela Jennifer.

Muito bem, Denis — disse a velhinha. — Nós nos tornamos a encontrar, hem? Embora isso não vá alegrá-lo muito, imagino...

Mas... o que é isto? — balbuciou Grover. — Você não é Jennifer Griffin! O que significa esta pantomina?

Não é em sua honra, acredite. É em honra a Snoring. Ou seja, em hora a Moscou Center. Como preferir. Ou prefere o nome de John Wellington? Oh, empalideceu, hem? Isso me satisfaz, porque prova que sabe do que estou falando. Também me agrada tê-lo encontrado com vida. Era de calcular, pois Snoring não iria enviar um cabograma do navio, ordenando sua morte. Há de ter calculado e com razão, que todos os cabogramas seriam examinados. Também não se atreveu a incomodar-me e... ao senhor Campbell. Nada disso. Terminou a viagem e, talvez neste momento, esteja viajando novamente para cá. Também pode já ter chegado. Sabe, Denis? Snoring ganhou a minha admiração. Isso não significa que eu esteja disposta a deixar- me matar por ele. Se aparecer por aqui para matá-lo, Número Um o caçará. Ou ele ou meus Johnnies, bem colocados em pontos estratégicos. Já percebeu a situação?

Sim — respondeu Denis Grover, engolindo em seco.

Ótimo — exclamou a anciã sentando-se diante de Grover e o encarando com curiosidade. — Os traidores sempre me causam certa... fascinação. Nunca os compreendi. Enfim, falemos do caso dos dólares. Você está metido nisso?

Sim...

Alegro-me que tenha admitido. Isso demonstra que está disposto a falar claro. Queria ter certeza. Sim, porque eu sabia que você está envolvido nessa história. Não só por minhas deduções Disseram-me, enquanto eu voava de volta para cá. Vou explicar, para você entender direitinho. Quando cheguei a Nova York, peguei um avião para Londres. Os cadáveres de Arnold Griffin e de Wilbur Ketchman foram levados para um lugar adequado a fim de serem submetidos à autópsia, em Nova York. No estômago de Ketchman encontraram uma cápsula contendo um microfilme feito de uma série de páginas escritas à mão, relacionando um total de cento e quatorze nomes de pessoas. Algumas foram logo identificadas. Pertencem a diplomatas norte-americanos servindo na Europa. Enviaram-me um cabograma ao avião, com essas informações e respondendo afirmativamente à minha pergunta sobre seu nome, Grover. Além dos nomes identificados como sendo de norte-americanos, havia muitos outros. Todos diplomatas, Denis?

Sim. Todos.

Todos metidos neste caso absurdo de tráfico de dólares?

Sim.

E que mais, Denis? Vocês eram bem pagos por esse tráfico, não é mesmo?

Sim. Muito bem pagos.

Só para traficar dólares?

O que mais poderia ser?

Diga você. O que mais havia para Arnold Griffin e Wilbur Ketchman, ao descobrirem do que se tratava, terem resolvido fugir? Assustaram-se de tal modo que preferiram escapar sozinhos, sem pedir ajuda, temendo serem localizados e assassinados. Não se preocuparam mais com o dinheiro que iam deixar de receber. Descobriram que havia algo, além do tráfico de dólares, e resolveram fugir secretamente para o continente europeu. De lá, entrariam em contato com a CIA. Para o caso de lhes acontecer qualquer coisa, escreveram os nomes dos diplomatas. Ketchman microfilmou a lista e engoliu a cápsula. Se os matassem, os nomes acabariam chegando às mãos da CIA, de qualquer maneira. Snoring, porém, desconfiou e tentou, por todos os meios, recuperar o microfilme. Mas não conseguiu. Está conosco. E você está vivo. Talvez, neste momento, Snoring esteja rondando este prédio, para matá-lo antes de você dizer o que sabe. Mas não chegará até você. Nós, em troca, estamos aqui. Olhe, Denis, aconselho-o a colaborar conosco. Não me obrigue a deixá-lo nas mãos de meus companheiros. Seria bobagem. Uma dolorosa e terrível bobagem. Entendeu?

Sim.

Muito bem. O que descobriram Griffin e Ketchman, além da história dos dólares?

Não descobriram — murmurou Grover, passando a língua pelos lábios. — Ficaram sabendo quando lhes fizeram a proposta baseada na chantagem.

Fale-nos sobre isso — pediu a anciã.

Primeiro... nos propunham ganhar boas quantias com o tráfico de dólares. Alguns aceitavam, outros não. Ketchman, Griffin e eu aceitamos. Depois, quando... quando já estávamos muito comprometidos, fizeram a verdadeira proposta, pressionando-nos, fazendo-nos entender que, caso não aceitássemos, nossos respectivos governos seriam informados que nos dedicávamos ao contrabando de dólares.

Faziam essa pressão tanto com os diplomatas norte- americanos, como com os da Europa?

Sim. Com todos.

Qual era a verdadeira proposta que faziam, quando sentiram que os tinham bem amarrados?

Espionagem.

Já imaginava. Cento e quatorze diplomatas dos Estados Unidos e da Europa, trabalhando para o MVD. Perdão, querido, eu quis dizer para o Centro, para o KGB. Isso é meio esquisito, hem? Você concordou, é claro.

Sim — balbuciou Grover.

Passou informações aos russos. Conheceu Snoring ou Moscou Center?

Não. Nunca o vi.

Não faz ideia de onde ele possa ficar, em Londres?

Não. Nem sei como ele é. Ouvi falar nele duas vezes. Mas eu tratava só com os outros agentes.

Acredito. Bem, já temos cento e tantos diplomatas de outros países servindo à espionagem soviética. Mas para que, concretamente, Denis? Que planos secretos tinha Snoring? Como pensava usar vocês? Sim, Denis. Snoring recrutava tantos diplomatas, com um projeto formado, é evidente. Algo muito grande, para o qual necessitaria do auxílio desses diplomatas. Qual era?

Não faço a menor ideia, garanto. Para mim tudo se reduzia pura e simplesmente, à espionagem.

Não. Há algo mais. Snoring preparava qualquer coisa importante e há muito tempo. Estava trabalhando nisso há anos. E eu quero saber o que é.

Não sei. Juro. Se soubesse, diria.

Então, para saber, só nos resta um caminho. Esperar por Snoring, quando ele vier matá-lo, Denis. E enquanto espera essa oportunidade, ele me odeia... esperando um momento para acabar comigo.

Não a conhece — disse um dos Johnnies.

Não. Mas tem duas fotos minhas com Número Um. Talvez, com o tempo, consiga identificar Jennifer Griffin e Ulysses Campbell.

O que acontecerá comigo? — perguntou Denis Grover, inquieto.

Não sei. Nem me importa. Eu deveria matá-lo, mas seria uma caça muito pobre para mim. Você e os outros diplomatas se entenderão com seus respectivos governos. Para mim, você já não existe. Bem, prepare-nos um café, enquanto esperamos. E não pense em envenená-lo, ouviu?

 

Era quase uma hora da madrugada quando o telefone do apartamento de Denis Grover tocou. A anciã fez um gesto, mandando-o atender. Ele obedeceu. Voltou-se, porém para a velha de cabelos brancos, apatetado e murmurou:

É um homem... Disse que quer falar com “Baby”.

A anciã pegou o fone e perguntou:

Passou para o Canadá e de lá veio para Londres, Snoring?

Moscou-Center para você, “Baby” — respondeu a voz sussurrante. — Seria tolice supor que a esta altura ainda não saiba da minha existência.

Sim, seria tolice. Bem, o que deseja?

Tenho as fotos onde você aparece com seu amigo. Mais cedo ou mais tarde os identificarei, senhora Griffin. Mais cedo ou mais tarde. Aí-voltaremos a nos encontrar.

Trato feito. Cuide desse resfriado, senhor Wellington. Ou é um mal crônico?

É crônico. Obrigado por seu interesse. E não se preocupe. Saberei cuidar de mim. O suficiente, ao menos, para viver até matá-la. É outro trato.

Espero que não me considere descortês por não lhe desejar sorte nesse caso.

Não se preocupe com isso. Eu devia tê-la eliminado no navio, quando compreendi com quem estava lidando. Soube de tudo ao ver seus olhos nas fotografias. Curioso, não acha? Mal vi seus olhos nas fotos, tive uma revelação. Compreendi que devia apressar-me e quebrar todas as suas previsões... ou quase todas. Felicito-a por seu trabalho.

E eu pelo seu — respondeu a anciã, com um sorriso seco. — Até breve, então? É um trato?

Mais que um trato. É uma promessa. Até à vista, “Baby”. Espero que, daqui em diante, você possa dormir.

Talvez não — respondeu Brigitte “Baby” Montfort. — Mas de uma coisa pode ter certeza, Moscou-Center. Você jamais me encontrará adormecida. Dosvidana, colega.

Dosvidana.

E Moscou-Center desligou o telefone.

ESTE É O FINAL

Felizes no amor

Está dormindo? — sussurrou Brigitte.

Número Um voltou-se na cama do quarto principal de Villa Tartaruga, ficando de frente para Brigitte. O luar refletia-se no terraço que dava para o jardim. Podiam ver-se um ao outro, nitidamente.

Não, não estou dormindo — respondeu ele. — Nem você. Em que pensa?

Não no que você imagina — exclamou Brigitte, rindo.

Estava me lembrando de sua representação de Ulysses W. Campbell. Meu Deus! Nem pude acreditar que aquele paspalhão convencido e cretino, era Número Um! Ao menos, quando estivemos na África, por causa da Caixa Negra, seu

o

papel foi mais razoável . Mas este de Ulysses Campbell...

Ora, os espiões são assim. Ao menos, os bons espiões. O que me incomodou foi ser obrigado a tingir o cabelo. Não sei como você aguenta essa operação de tingir e de voltar à cor normal.

Pelo mesmo motivo: porque os bons espiões são os melhores atores do mundo. Você esteve magnífico no papel de um bonitão idiota, querido. Nem acreditei que era você.

Ver aventura ‘A Caixa Preta’, numero 389 desta coleção.

Em minha opinião, nós dois representamos bem. Menos quanto à parte referente a Moscou-Center. Esse homem tornará a cruzar nosso caminho, Brigitte.

Oh, mas até lá, tratemos de esquecê-lo.

Esquecer? Você se esqueceu, por acaso?

Não me preocupo. Quando ele se atrever, me procurará. Quanto ao mais, pense ele o que pensar, acredite no que acreditar, garanto que não me tirará o sono.

Pois eu pensei que você não conseguia dormir, pensando nele.

Nada disso — sussurrou Brigitte. — Não podia dormir, pensando em você.

Em mim? Estou ao seu lado, não é?

Exatamente por isso. Estamos juntos e na cama. Como pode esperar que eu durma?

Ora... se não estou enganado, já fizemos amor. E mais de uma vez. Quer tornar a fazer?

Cite algo melhor que estarmos nos braços um do outro. No que me diz respeito, acho que estaremos mais felizes na cama, que num ataúde. Não concorda? Mas se você não quer fazer amor...

Não disse mais nada, porque Número Um já a estava abraçando. Quando a beijou na boca, deixou bem claro que sim, que ele também queria tornar a fazer amor. Sempre, sempre.

PERTO DA BABILÓNIA

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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