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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FESTIVAL / Alfred Hitchcock
FESTIVAL / Alfred Hitchcock

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Neste volume, composto de material selecionado pelo genial cineasta inglês Alfred Hitchcock, as histórias são, como sempre, escritas por gente especialista no gênero que tornou famoso o próprio Hitchcock, nomes que vão da contemporânea Dorothy Gilman a Charles Dickens, extraordinário escritor inglês do século passado, cujo conto A História do Tio do Caixeiro Viajante é considerado até hoje um clássico da literatura inglesa. A seguir, umas notas breves sobre alguns dos contos incluídos neste livro cheio de clarividentes, curandeiros, duendes, demonólogos, fantasmas e afins.
A Pata do Macaco, de autoria de W. W. Jacobs, é a história fantástica de um talismã" encantado. Isso, evidentemente, diz pouquíssimo do que é um esplêndido conto.
Assassinato Pelo Sonho. Pergunta: até que ponto uma superstição pode influenciar alguém? A resposta é dada pelo talentoso autor Patrick O'Keeffe.
O poder da mente é uma força que tanto pode ser usada para fins benéficos como maléficos... Esse é o tema de O Curandeiro, de autoria de George C. Chesbro.
A Condessa Clarividente é de Dorothy Gilman, autora mencionada antes, que combina numa trama magnificamente bem urdida elementos de ocultismo, como a magia negra, com elementos de suspense. Uma história que empolga a atenção do leitor da primeira à última página.
A Mulher do Sonho é um conto em que o seu autor, Wilkie Collins, apresenta um personagem cujo sonho funesto que tivera lhe serve de aviso para acontecimentos futuros.
O que disso pode resultar, só mesmo lendo esta envolvente história, do tipo que uma vez pegando o leitor não o larga até o fim.
Aí estão seis dos contistas cujos trabalhos constam de FESTIVAL HITCHCOCK. Clayton Matthews, Donald Olson, Robert Alan Blair e Jacques Futrelle completam a lista dos autores selecionados para este volume da magnífica série de livros de crime, mistério e suspense que a Record vem publicando com excepcional aceitação do público leitor brasileiro.

 

 

 

 

TRANSE MORTAL

Gregory Zeno atendeu o interfone.
- Sim?
- Sr. Zeno? Há uma jovem aqui embaixo, Srta. Anne Thomas. Ela diz que tem um encontro marcado.
- Sim. Por favor mande a Srta. Thomas subir.
Zeno era um homem alto e magro de 35 anos, com os cabelos brancos como ossos, o rosto redondo inocente como o de um querubim e os olhos cinzentos com aparência sonolenta.
Ele saiu do escritório, atravessou a comprida sala de estar e estava na porta, esperando, quando a campainha tocou.
A moça para quem abriu a porta era alta, loura, de olhos verdes e uma boa aparência, com vinte e poucos anos. Sua aparência era a de uma pessoa dinâmica, mas no
momento parecia estar sob tensão, com uma sombra de apreensão nos olhos.
- Srta. Thomas? Por favor, entre.
Ela entrou, e Zeno fechou a porta. Ele viu que ela olhava ao seu redor com interesse, mas estava acostumado com a impressão que seu apartamento, situado na área
de prédios luxuosos de Westwood, causava às pessoas. O apartamento era muito bem mobiliado, ultramoderno, com linhas retas e geométricas e em cores simples e básicas,
exceto por alguns quadros nas paredes, que pareciam vividos borrões de tinta.
Zeno sabia que a maioria das pessoas associava o oculto a algum outro século, esperando escuridão e sombra, mobílias decoradas com sinais cabalísticos, talvez até
portas rangendo e teias de aranha, e assim ficavam desconcertadas ao se confrontar com aposentos tão modernos quanto as instalações funcionais de um foguete espacial.
Terminada a inspeção, Anne Thomas lançou-lhe um único olhar, mas nada disse.
Zeno disse:
- Vamos passar ao meu escritório?
O escritório era mais de acordo. Três paredes eram cobertas de livros sobre o oculto, o psíquico, o misterioso. Havia até uma bola de cristal sobre um pedestal,
num canto, um presente despeitado de um médium que Zeno havia desmascarado.
Zeno fez a moça sentar-se do outro lado de sua escrivaninha e perguntou:
- Aceita um drinque, Srta. Thomas? Talvez um cálice de licor?
-- Não, Sr. Zeno, obrigada. Zeno sentou-se à escrivaninha.
- Em que lhe posso ser útil?
- Bem, eu... - Ela hesitou, umedecendo os lábios com a língua, para então dizer impulsivamente: - Meu padrasto está tentando fazer minha mãe se matar!
Zeno franziu a testa.
- Eu lamento ouvir isso, é claro, mas por que vir a mim? Eu não sou detetive particular, não no sentido comum. Eu só aceito casos ligados ao sobrenatural.
- Mas o senhor não compreende! Isso faz parte do seu campo. Minha mãe acredita em médiuns, espíritos, coisas assim. Meu padrasto se aproveita disso. Trouxe uma médium
que afirma se comunicar com o espírito de meu pai morto, e este espírito quer que mamãe se junte a ele na outra vida. Agora o senhor entende?
- Quem é esta médium?
- Uma mulher chamada Madame Tora. O senhor conhece?
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- Não, mas isso nada significa.
- Bem, ela impressiona! Sr. Zeno, algum desses médiuns é autêntico?
Respondeu cautelosamente:
- Vamos dizer apenas que não foi provado nada neste sentido que me satisfaça. Já descobri muitos que eram
fraudes, entretanto, isso não significa que não haja médiuns autênticos.
- Esta deve ser uma fraude. Deve ser! Há mais uma coisa, sabe? Meu pai morreu há dois anos de uma queda do telhado de nossa casa. A morte foi dada como acidente.
Mas esta voz que supostamente é de meu pai diz que alguém o empurrou, mas ele não sabe quem foi. Mamãe acha que pode ter sido ela. O senhor já ouviu tamanho absurdo?
- Não é absurdo se sua mãe acredita realmente nisso. Ela acredita?
- Está começando a acreditar. Mas ela não seria capaz de matar uma mosca, quanto mais empurrar papai de um telhado. Se alguém fez isso, foi o meu padrasto.
- Você tem alguma razão para suspeitar dele?
- Bem, papai deixou mamãe muito bem financeiramente e Darrin... meu padrasto, Darrin Woods... já andava atrás de mamãe antes de papai... antes de papai morrer.
- É normal os filhos não gostarem dos padrastos.
- Ah, eu não gosto dele. Não gosto mesmo! Mas tenho certeza de que ele se casou com mamãe pelo dinheiro. Se ela se matar, ele fica com tudo. Se ele pode conseguir
isso, não podia ter morto meu pai?
- Eu não estou em posição de dar uma opinião.
- Mas se o senhor aceitar o caso... Vai aceitar o caso? Zeno passou a mão pelo rosto, depois chegou a uma súbita
decisão.
- Sim. Vou ver o que posso fazer.
O rosto de Anne iluminou-se. Depois ela se debruçou e disse com nervosismo:
- Vai haver uma... sessão em casa hoje à noite. O senhor pode ir, e ver o que essa Madame Tora é. Eu estou passando
uns tempos em casa, de férias da faculdade por causa do verão. Vou dizer a eles que o senhor é um... Ah, um professor da faculdade interessado em parapsicologia.
- É uma boa idéia, Anne. A que horas?
- A sessão começa às oito.
- Vou estar lá.
Ele a acompanhou até a porta, depois voltou e olhou sombriamente pela janela do escritório. Sabia por que aceitara o caso dela. É claro que parecia um caso interessante,
o tipo que sempre o intrigava, mas não era só por isso. A semelhança entre a situação da mãe dela e a da mãe de Zeno era incrível, até mesmo um pouco assustadora.
Zeno tinha 10 anos quando o pai foi morto num acidente de caça. Durante três semanas depois disso, a mãe desconsolada passou de um médium a outro procurando entrar
em contato com o marido morto. Finalmente encontrou um que a ajudou a se comunicar. Ou a comunicação, ou o médium era um grande enganador, e a voz que se passava
pela do pai de Zeno implorara à esposa que se juntasse a ele no outro mundo até que finalmente ela se matara.
Daquele dia em diante, o interesse de Zeno pelo ocultismo aumentara, até que, no final, ele se tornou investigador de fenômenos psíquicos, sempre em busca de provas
concretas da existência de espíritos. Até agora, como dissera a Anne, desmascarara uma série de médiuns falsos, mas não resolvera a questão a ponto de se satisfazer.
Enquanto não o fizesse, jamais saberia se o suicídio da mãe fora o resultado de uma fraude ou não.
Foi fácil ver como o pai de Anne podia ter sido morto por uma queda do telhado. A casa ficava nos morros de Hollywood, em cima de um dos velhos canyons, encarapitada
como um castelo medieval cinzento sobre a ponta de um rochedo, uma queda direta de centenas de metros até o chão do canyon.
- Ele caiu daqui - disse Anne em voz baixa - ou foi empurrado.
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O telhado da casa era chato, com um parapeito de um metro em volta do beiral. Havia uma espécie de jardim no telhado, com arbustos e árvores dentro de vasos, cadeiras
e uma mesa com guarda-sol.
Zeno chegara um pouco cedo e Anne, fazendo as honras da casa, o levara para a cobertura.
- Eu acho que é possível cair daqui mas não seria fácil
- disse ele. - Não com aquela parede para aparar a queda.
- Bem, o senhor compreende... - Anne trocou os pés, sem jeito, evitando o olhar dele. Depois falou bruscamente: Papai bebia. Ele sempre se sentava aqui em cima
sozinho à noite, bebendo, como estava àquela noite. A autópsia mostrou que ele tinha bebido bastante. Ficou decidido que ele estava bêbado e caiu.
- Uma coisa me intriga, Anne. Você disse que sua mãe tem medo de poder tê-lo empurrado. Ela não tem certeza se fez isso ou não?
- Ela não está certa, por completo. - Novamente ela desviou o olhar. - Ela também bebia, entende. Naquela época, eu digo. Eles não estavam se dando bem. Andavam
discutindo há algum tempo. Sobre o que, não sei bem. Talvez sobre Darrin dando em cima de mamãe. Ela devia estar no andar de baixo dormindo naquela hora. Mas o problema
é que ela costumava subir e andar por aqui quando bebia, sem se lembrar de nada depois. - Ela olhou para ele desafiadoramente. - Eu imagino que o senhor ache que
nós somos uma família estranha, Sr. Zeno.
- Eu nunca julgo as pessoas, Anne - disse Zeno amavelmente. - Pelo menos enquanto não tenho todas as provas.
O olhar dele desviou-se dela e dirigiu-se a um homem que caminhava com passos largos na direção deles. Tinha mais de 50 anos, era magro, bronzeado e o cabelo preto
com uma mecha grisalha chamativa. Era bastante atraente e estava bem-vestido.
Anne virara-se ao ouvir o som de passos aproximando-se. Seu rosto tornou-se uma máscara inexpressiva.
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- Minha querida, a sessão está para começar - disse o recém-chegado numa voz pomposa que combinava com sua aparência.
- Este é o professor de quem eu lhe falei, Gregory Zeno. Sr. Zeno, este é meu padrasto Darrin Woods.
O aperto de mão do homem foi decidido.
- É sempre um prazer para nós ter alguém que esteja verdadeiramente interessado no oculto.
- Ah, eu me interesso - disse Zeno. - Muito.
- Então vamos descer?
Woods estendeu o braço para Anne. Ela o ignorou e foi caminhando rapidamente na frente.
A sessão teve lugar numa sala no primeiro andar. Aparentemente esta já fora um escritório antes. Agora, tinha poucos móveis exceto por uma mesa de jantar redonda
e meia dúzia de cadeiras ein volta desta.
Havia duas mulheres sentadas à mesa.
Helen Woods, mãe de Anne, beirava os 50 anos, com olhos e cabelos castanhos. Tinha uma aparência etérea, a pele quase translúcida, como se já pairasse na porta do
outro mundo. Ela nada disse quando Anne a apresentou a Zeno, e ele teve a impressão de que ela nem havia reparado na sua presença. Ela o fez lembrar um viciado em
drogas esperando impacientemente por uma injeção. De experiências passadas com tais situações, ele sabia que isto não era tão imaginário quanto parecia.
Madame Tora foi de certa forma uma surpresa. A maior parte dos médiuns que Zeno conhecera era geralmente de pessoas sem atrativos físicos, mas Madame Tora não. Devia
ter uns
30 anos, cabelo cor de ferrugem, rosto provocante e um minivestido verde que combinava com a cor dos olhos. Ela o fitou atentamente, mas aceitou sua presença sem
comentários.
Zeno sentou-se na mesa entre Anne e Madame Tora. Woods apagou as luzes, vedou os olhos de Madame Tora com um lenço de seda, depois sentou-se do lado oposto a Zeno.
Todos se deram as mãos em volta da mesa.
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Madame Tora jogou a cabeça para trás. Num momento sua respiração ficou mais rápida, tornou-se pesada e ofegante na sala. A cabeça girou no pescoço. Ela ficou cada
vez mais agitada. Então disse: - Fredrick? Você está aí, Fredrick?
- Fredrick é o espírito que ela encarna - sussurrou Anne no ouvido de Zeno. - Pelo menos é o que ela diz.
Zeno anuiu com a cabeça sem tirar os olhos da médium. Agora uma voz grave de homem saiu dos lábios da médium.
- Sim, Madame Tora. Aqui fala Fredrick.
- Há alguém com você, Fredrick? Alguém que deseja se comunicar?
- Sim, alguém que...
Enquanto Zeno observava, as cordas vocais de Madame Tora retesaram-se como cabos de aço, e a voz de homem que emanava dela mudou sutilmente:
- Helen, você está aí, querida? Aqui é Keith.
Zeno reparou que Helen Woods estremeceu, e ela disse com
voz rouca:
- Sim, Keith, estou aqui.
Zeno olhou para ela. Estava sentada rigidamente, com os olhos abertos e voltados para a médium. Zeno olhou então para Woods. Ele também olhava fixamente para a médium.
Passou pela mente de Zeno a idéia de que ambos podiam estar num estado beirando um transe hipnótico. Isso podia significar que Woods também estava convencido da
autenticidade de Madame Tora. Ou podia significar...
- Helen, você decidiu?
- Não, Keith. Ainda não. Eu...
- Não resta muito tempo, Helen. Logo eu posso me mudar para outro plano. E se isso acontecer, nós não vamos conseguir... - A voz começou a diminuir.
- Keith! Não vá! Ainda não!
- Adeus, Helen. Adeus, minha querida... - A voz diminuiu e desapareceu.
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- Não! - Helen Woods largou a mão de Darrin e levantou-se bruscamente. - Keith, espere! Por favor espere!
Madame Tora relaxou, com os braços soltos ao lado do corpo, a cabeça deitada no encosto da cadeira. Helen Woods atirouse sobre a cadeira com a cabeça nas mãos, soluçando
desesperadamente. Zeno levantou-se e foi até ela, mas o marido deu um pulo, empurrando Zeno para o lado.
- Não toque nela! Eu tomo conta dela.
A mulher parecia estar apenas semiconsciente quando Woods a ajudou a sair da sala. Zeno seguiu-os com o olhar, uma idéia em mente. Anne tocou-o no braço e ele olhou
à sua volta. Madame Tora se tinha levantado e preparava-se para sair bruscamente, ignorando-os, como se não existissem.
Anne começou a se retirar e Zeno seguiu-a, todos os dois calados a caminho da cobertura. Estava completamente escuro agora, o ar mais fresco.
Anne tirou um cigarro e debruçou-se no parapeito. Ele acendeu um fósforo para ela.
Ela deu uma baforada e disse:
- E então?
- Se você quer saber se ela é uma fraude, não estou preparado para responder. Pode ser ventríloca. Pode ser uma boa imitadora de vozes. Pode ser muitas coisas, até
mesmo uma verdadeira médium. Mas não é isso que importa.
- Então o que é, pelo amor de Deus?
- A culpa de sua mãe, real ou imaginária. Ela já foi hipnotizada alguma vez?
Anne ficou perplexa.
- Mamãe? Hipnotizada? Não que eu saiba. O que isso tem a ver com tudo?
- Não estou certo. - Olhou pensativamente para as luzes do canyon abaixo.
- Eu acho que eles estão tendo um caso, Darrin e aquela Madame Tora - disse Anne com uma maldade inesperada. Acho que ele prometeu casar-se com ela se mamãe morrer.
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- As pessoas se lembram das coisas sob a hipnose, coisas que se esqueceram de jamais ter feito, coisas que as mentes bloquearam por alguma razão - disse Zeno, ignorando
o comentário dela propositalmente. - Você acha que sua mãe consentiria?
- Ele vai ser contra, eu sei, mas eu tenho certeza que posso convencê-la. O senhor acha que vai dar certo?
- Talvez, se ela for um bom paciente hipnótico, e eu acho que é, pelo que observei hoje à noite. Mas há uma coisa que precisamos considerar, Anne.
- O quê?
- Há sempre a possibilidade de que ela seja culpada. Se for, provavelmente vamos ficar sabendo.
- Estou disposta a correr esse risco e tenho certeza de que mamãe também.
A sessão hipnótica também teve lugar no escritório. O hipnotizador era conhecido de Zeno. Zeno era ele próprio um bom hipnotizador amador, mas considerava o caso
muito importante para ser confiado a amadores. Para ser eficiente, um hipnotizador deve praticar uma concentração intensa e Zeno queria ficar com a atenção livre
para algo mais.
Madame Tora foi convidada para assistir. Anne tinha-se oposto a isso, mas convinha ao objetivo de Zeno que a médium estivesse presente.
Zeno dera ao hipnotizador certas instruções. As cadeiras foram arrumadas de forma que Woods e a esposa ficaram lado a lado, os outros um pouco afastados. Quando
todos estavam sentados, o hipnotizador parou em frente a eles. Era um homem vistoso, com cabelos grisalhos e uma voz ressoante.
- Agora eu quero que você relaxe completamente, deixe os músculos todos soltos e se concentre no som de minha voz.
Deixe a niente limpa como uma folha de papel em branco e não pense em nada a não ser no som de minha voz...
Zeno alertara Anne sobre o que deveria acontecer, dissera-lhe para pensar em alguma coisa excitante que lhe acontecera recentemente, para concentrar-se em qualquer
coisa menos na voz
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do hipnotizador. Zeno tinha uma forte desconfiança de que Madame Tora não precisava de aviso.
- Agora você está completamente relaxada - disse o hipnotizador. - Feche os olhos. Está ficando sonolenta, muito sonolenta. Está com a cabeça zonza...
A suposição de Zeno fora correta. Helen Woods era uma boa paciente hipnótica. Estava se entregando. Mas para satisfação ainda maior de Zeno, ele reparou que Woods
também tinha os olhos fechados, com a cabeça e as mãos penduradas.
Depois de algum tempo, o hipnotizador disse num tom mais forte:
- Helen, estique o braço para fora. Bom. Agora ele está firme como uma barra de ferro. Você não consegue abaixá-lo. Não consegue abaixá-lo! Agora... tente abaixá-lo,
Helen.
Suas tentativas para abaixar o braço foram visíveis, mas, embora tentasse, não conseguiu.
- Bom, Helen. Muito bom. Pode abaixá-lo. Agora, Helen, vamos voltar dois anos atrás, até a noite em que seu primeiro marido morreu. Você se lembra daquela noite,
Helen?
Helen Woods proferiu_um gemido baixo:
- Lembro... eu me lembro...
- Você estava com ele na cobertura, na hora em que morreu?
Ela ficou calada.
- Você estava com ele, Helen?
- Não... eu estava na cama. Dormindo. Eu tinha bebido muito.
- Você não estava na cobertura com ele na hora?
- Não, não! Na cama!
- Você não o empurrou do telhado? - A voz do hipnotizador açoitou-a como um chicote.
- Não, não... eu estava... - Helen Woods ofegava, o rosto brilhante de suor. - Eu estava na cama... Dormindo, dormindo.
Anne ficou irrequieta ao lado de Zeno, murmurando um protesto. Zeno segurou-a pelo punho e a fez ficar quieta.
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-- Está bem, Helen. - A voz do hipnotizador tornou-se mais suave. - Você vai relaxar agora. Vai adormecer profundamente, profundamente...
Os traços de tensão desapareceram do rosto dela, e ela relaxou na cadeira, solta como uma boneca de trapos.
O hipnotizador virou-se para Woods, que estava num transe aparentemente tão profundo quanto o da mulher.
- Darrin, você pode me ouvir?
- Sim... eu posso.
O hipnotizador pegou a mão direita do homem.
- Sua mão direita está dormente, Darrin. Você compreende? Está dormente. Você não consegue senti-la.
O hipnotizador tirou uma agulha do bolso e espetou o polegar de Woods. Ele não se retraiu nem gritou. Uma gota de sangue apareceu no dedo. O hipnotizador limpou
o sangue e deixou a mão cair.
- Darrin, olhe para a porta.
Woods virou a cabeça e olhou para a porta fechada.
- Há um homem entrando neste momento. Você o vê?
- Eu... Sim, eu o vejo.
- É um policial, Darrin. Woods ficou visivelmente agitado.
- Um policial?
- É, Darrin, um detetive à paisana. Ele está aqui para interrogá-lo sobre a morte de Keith Thomas. - O hipnotizador falou duramente. - Você deve responder às perguntas
dele com sinceridade.
Madame Tora deu um grito.
- Darrin, não seja bobo! Não tem ninguém ali! Nenhum policial, ninguém! - Ela deu um pulo e correu para Woods.
Zeno estava preparado para isso. Deu um passo na sua frente e segurou o braço dela.
- Ora, Madame, a senhora não vai querer interferir. E por que deveria ficar preocupada se o Sr. Woods acha que há um policial presente? Vocês têm alguma coisa a
esconder? - Ele a observou atentamente.
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Ela empalideceu, esbugalhando os olhos.
- É claro que não! Eu só não quero que ele seja feito de bobo.
- Mas este é o nome do jogo, não é? O paciente hipnótico fazendo e dizendo coisas que não diria no estado normal.
Ela recuou como se ele tivesse sibilado para ela como uma cobra venenosa, e voltou ao lugar sem dizer mais nada.
- Darrin, você estava na cobertura na noite em que Keith Thomas morreu? - perguntou o hipnotizador.
Woods contorceu-se, como se estivesse tendo uma reação retardada à espetadela da agulha, mas não falou.
- Darrin; você o empurrou lá de cima?
- Eu...
Madame Tora deu outro grito. Dessa vez correu para a porta. Novamente Zeno foi mais rápido do que ela. Apanhou-a a três passos da porta.
- Que pressa é essa, Madame?
- Me solta! - Tentou soltar-se.
- A senhora está com medo do que ele possa dizer? Está implicada de alguma
maneira?
- Não estou implicada em nada! Se ele disser que estou, está mentindo! Ele empurrou aquele homem do telhado! Eu só soube muito tempo depois. Ele disse... - As
palavras saíam numa torrente. - Ele disse que tudo o que eu tinha que fazer era... - Ela perdeu o controle completamente, com as mãos sobre o rosto, os ombros
convulsos.
Zeno levou-a calmamente de volta à cadeira.
- Anne, é melhor você chamar a polícia agora.
Quando a polícia começou a levar Madame Tora embora, Anne deteve-os com um gesto.
- Madame Tora, a voz de meu pai... Ela era...
Madame Tora recuperara um pouco da segurança. Disse altaneiramente:
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- Como ousa perguntar isso a mim? Você está insinuando que eu sou uma fraude?
Reunindo os retalhos de sua dignidade à sua volta como um manto esfarrapado, ela saiu da sala, conduzindo os policiais em vez de ser conduzida.
Zeno e Anne ficaram sozinhos. Woods acordara do transe e fora levado mais cedo. Zeno gravara a sessão num pequeno gravador e pusera a fita para os policiais e para
a mãe de Anne, que ficara histérica e fugira para o quarto.
Anne estremeceu e disse violentamente:
- Eu odeio este lugar! Vou tirar mamãe daqui.
Por um acordo mútuo, eles subiram as escadas para a cobertura.
- Sr. Zeno, ele empurrou meu pai do telhado?
- Parece que sim, Anne.
- Eles vão condená-lo?
- As evidências são boas, especialmente porque Madame Tora abriu o bico.
- Mas podem usar o que o senhor gravou?
- Na corte não. Mas, jogando o seu padrasto contra Madame Tora e usando a fita, eu acho que vão conseguir uma confissão.
- Ele teria confessado se o hipnotizador tivesse continuado? Zeno sacudiu a cabeça.
- É pouco provável. Se fosse assim, a polícia usaria a hipnose o tempo todo. Existem muitas controvérsias a respeito da hipnose. É quase impossível forçar alguém
a fazer alguma coisa contra a vontade.
- Mas ele parecia acreditar que tinha um policial na sala.
- Um paciente suscetível, como o seu padrasto, pode ser levado a acreditar em muitas coisas mas não a fazê-las contra os ditames do subconsciente. Por exemplo, existem
registros de casos de pessoas que pulam para a morte num transe hipnótico quando lhes dizem que uma janela é a porta para outro quarto. Entretanto, se lhes dissessem
que a janela era uma janela e as mandassem pular, elas não o fariam.
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- No entanto Madame Tora achou que ele ia confessar. Zeno sorriu.
- Era o que eu queria.
Anne ficou calada por um momento antes de dizer em voz baixa:
- Sr. Zeno, acha?... - Estremeceu novamente. - Nós ainda não sabemos ao certo se Madame Tora era uma fraude, se a voz de meu pai...
Zeno disse pensativamente:
- Não, não sabemos ao certo, sabemos?
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George C. Chesbro
O CURANDEIRO

O homem que esperava por mim em meu escritório no centro da cidade parecia um astro de cinema que não queria ser reconhecido. Depois que tirou o chapéu, os óculos
escuros e o maxicasaco de couro ainda parecia um astro de cinema. Também se parecia com um certo senador famoso do sul.
- Dr. Frederickson - disse, estendendo uma mão grande e vigorosa. - Li tanto sobre o senhor nos últimos dias que tenho a impressão de já conhecê-lo. Devo dizer que
para mim é uma honra. Meu nome é Bill Younger.
- Senador - disse eu, apertando-lhe a rnão e indicando-lhe a cadeira em frente à minha mesa. De repente tive a impressão louca de que o senador talvez estivesse
procurando um novo truque de campanha, como um endosso de um detetive particular e professor de criminologia anão. São essas as impressões súbitas e loucas que se
têm quando se é detetive particular e professor de criminologia anão. Dei a volta à mesa. Younger, com o rosto infantil de 45 anos e cabelos castanhos e cheios,
de corte moderno, tinha uma boa aparência. Se não fosse pelo medo nos olhos, podia estar pronto para pisar num estúdio de televisão. - Por que precisou investigar
meus antecedentes, Senador?
Ele deu um meio sorriso.
- Eu costumava levar minha filha para vê-lo quando o senhor trabalhava no circo.
- Isso foi há muito tempo, Senador. - Foi há seis anos. Parecem 100.
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O sorriso desapareceu.
- O senhor é famoso. Eu queria saber se também era discreto. Minhas fontes dizem que suas credenciais são impecáveis. O senhor parece ter uma queda por casos incomuns.
- Os casos incomuns parecem ter uma queda por mim. O senhor ficaria surpreso de ver como são poucas as pessoas que precisam de um detetive particular anão.
Younger pareceu não escutar.
- O senhor já ouviu falar de Esteban Morales? Eu disse que não. O senador pareceu surpreso.
- Estive fora no verão - acrescentei.
O senador concordou indiferentemente, depois levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro em frente à mesa. A atividade parecia relaxá-lo.
- Esteban é um dos meus eleitores, logo conheço bem o trabalho dele. É um curandeiro.
- Médico?
- Não, médico não. Um curandeiro psíquico. Cura com as mãos. Com a mente. - Deu uma olhada para mim para ver minha reação. Deve ter ficado satisfeito com o que viu
pois continuou: - Existem muito bons curandeiros psíquicos neste país. Os que entendem deste tipo de fenômeno consideram Esteban o melhor, embora seu trabalho não
tenha muita publicidade. Existem ... pressões consideráveis.
- Por que o senhor achou que eu tinha ouvido falar nele?
- Ele passou o verão passado na universidade onde o senhor leciona. Tinha concordado em participar de um projeto de pesquisa.
- Que tipo de pesquisa?
- Não sei bem. Era alguma coisa ligada à microbiologia. Eu acho que uma Dra. Mason era o cabeça do projeto.
Anuí com a cabeça. Janet Mason é amiga minha.
- O projeto nunca terminou - continuou Younger. Esteban agora está na prisão esperando julgamento por assassinato. - Acrescentou quase incidentalmente: - Seu irmão
foi o oficial de justiça que o prendeu.
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Eu estava começando a perceber que não era só o meu charme natural de anão que atraíra o Senador Younger.
- A quem este Esteban Morales é acusado de ter matado?
- Um médico chamado Robert Edmonston.
- Por quê?
O senador de repente parou de andar de um lado para outro e plantou as mãos firmemente no tampo de minha mesa. Parecia muito agitado.
- Os jornais disseram que Edmonston fez uma denúncia contra Esteban. Por praticar a medicina ilegalmente. A polícia acha que Esteban o matou por causa disso.
- Eles iam precisar de provas mais concretas do que de opiniões para prendê-lo.
- Eles... encontraram Esteban no escritório com o coroo. Edmonston estava morto há apenas alguns minutos. A garganta tinha sido cortada com uma faca que eles
encontraram mergulhada num frasco de ácido. - As primeiras palavras tinham saído com dificuldade da boca de Younger. O resto saiu com mais facilidade: - Se fizeram
acusações contra Esteban, não foi pela primeira vez. Isso é uma coisa que Esteban tem de tolerar. Ele sempre enfrentou a inimizade dos médicos em seu caminho. Esteban
não é um assassino... é um curandeiro. Ele não seria capaz de matar ninguém! - De repente ele se empertigou, depois deixou-se cair na cadeira atrás de si. - Desculpe
- disse calmamente. - Eu devo estar parecendo muito excitado.
- Como acha que posso ajudá-lo, Senador?
- O senhor tem de fazer Esteban ser absolvido - disse Younger. Sua voz era firme mas intensa. - Ou provar que ele não fez isso, ou que outra pessoa o fez.
Olhei para ele para ver se por acaso estava brincando. Não estava.
- Este é um pedido difícil, Senador. E pode ser dispendioso. Por outro lado, o senhor tem todo o Departamento de Polícia de Nova York a postos para fazer esse trabalho
de graça.
O senador sacudiu a cabeça.
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- Eu quero que um homem, o senhor, se dedique de corpo e alma a este caso. O senhor trabalha na universidade. Tem contatos. Pode descobrir algo que a polícia não
conseguiu, ou não deu importância. Afinal de contas, a polícia tem outras coisas além do caso de Esteban para ocupar sua atenção.
- Isso é indiscutível.
- Isso é de extrema importância para mim, Dr. Frederickson - disse o senador, sacudindo o dedo no ar para dar ênfase às palavras. - Eu dobro o seu preço de costume.
- Isso não vai ser nec...
•- Pelo menos, eu tenho que ter acesso a Esteban se o senhor falhar. Talvez seu irmão possa conseguir isso. Estou disposto a doar 10 mil dólares a qualquer causa
que seu irmão julgar válida.
- Calma, Senador. Esgotado ou não, eu não posso mencionar esse tipo de arranjo a Garth. Ele pode interpretá-lo como um suborno. É muito embaraçoso.
- Vai ser um suborno!
Pensei sobre isso durante alguns segundos, depois disse:
- O senhor certamente faz muito pelos seus eleitores, Senador. Não sei como não é "Presidente.
Eu devo ter sido ferino. O rosto do senador ficou branco, depois corou. Seus olhos faiscaram. Entretanto, em suas profundezas, o medo permanecia. Suas palavras saíram
num sussurro.
- Se Esteban Morales não for solto, minha filha vai morrer.
Senti um arrepio, e não sei bem se foi porque acreditei nele ou por causa da possibilidade de um senador americano e presidenciável ser louco. Fiquei entre as duas
hipóteses e tentei normalizar a voz.
- Eu não compreendo, Senador.
- Não? Pensei que estava me fazendo entender claramente. A vida de minha filha é totalmente dependente de Esteban Morales. - Respirou fundo. - Minha filha Linda
tem fibrose cística, Dr. Frederickson. Como talvez saiba, os médicos consideram a fibrose cística incurável. Normalmente a pessoa que
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sofre desse mal morre na adolescência, geralmente de complicações pulmonares. Esteban tem tratado de minha filha toda vida, e ela agora está com 24 anos. Mas Linda
está precisando dele novamente. Os pulmões dela se estão enchendo de líquido.
Eu estava começando a compreender por que os médicos deviam ficar um tanto preocupados com as atividades de Esteban Morales, e uma luz psíquica de advertência piscava
em meu cérebro. Senador ou não, isso não me soava como o tipo do caso em que eu gostaria de me envolver. Se Morales era um charlatão - ou um assassino - eu não tinha
nenhuma intenção de ser o transmissor de más notícias para um homem com o investimento emocional do senador.
- Como Morales trata de sua filha? Com drogas? Younger meneou a cabeça.
- Ele apenas... toca nela. Ele move as mãos para cima e para baixo do corpo dela. Às vezes parece que está em transe mas não está. É... muito difícil explicar.
O senhor precisa vê-lo fazer isso.
- Quanto ele cobra por esses tratamentos? O senador ficou surpreso.
- Esteban não cobra nada. A maioria dos curandeiros psíquicos, os verdadeiros, não aceita dinheiro. Eles acham que isso interfere com o que fazem. - Ele riu ligeiramente,
sem humor.
Esíeban prefere viver simplesmente, do Seguro Social, uma
pensão e algumas doações, pequenas, dos amigos. Ele é um funcionário aposentado de uma loja de ferragens.
Esteban Morales não se encaixava exatamente na imagem mental que eu fizera dele, e minha imagem do senador ainda estava pouco nítida.
- Senador - disse eu, batucando com os dedos ligeiramente na mesa -, por que não promove uma conferência com a imprensa e descreve o que acha que Esteban Morales
fez por sua filha? Podia ser melhor do que contratar um detetive particular. Vindo de sua parte, eu garanto que isso vai mobilizar a polícia.
Younger sorriu ligeiramente.
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- Ou me prender em Bellevue. No mínimo eu seria deposto do cargo. O meu Estado pertence ao chamado CEinturão Bíblico, e haveria muitos erros de interpretação.
Estebanm não é um homem religioso no sentido da palavra dos meus elsleitores. Ele não afirma que recebe seus poderes de Deus. Mesnmo que afirmasse, não faria muita
diferença. - O sorriso ficou mais fraco ainda. - Eu descobri que a maioria das pessoas religiosas prefere milagres antigos. O senhor me desculpe se eu pareço
egoísta, mas gostaria de tentar salvar a vida de Linda sem destruir minha carreira. Se todos os recursos falharem, eu vou promover uma conferência com a imprensa.
O senhor aceita o trabalho?
Eu disse a ele que ia ver o que conseguia descobrir.
*
Parecia um grande negativo fotográfico. No centro havia um contorno escuro de uma mão com os dedos esticados. As pontas dos dedos eram cercadas de ondas de cor,
rósea, vermelha e violeta, ondulando para fora até uma distância de três ou cinco centímetros da própria mão.
O- efeito era estranhamente belo e muito misterioso.
- Que diabo é isto?
- É uma fotografia Kirlian - disse a Dra. Janet IMason. Parecia satisfeita com minha reação. - A técnica tem o nome de um russo que a inventou há 30 anos. Os russos,
por falar nisso, estão muito mais adiantados do que nós nesse campo.
Olhei para ela. Janet Mason é uma mulher bonita de seus cinqüenta e poucos anos. O cabelo grisalho brilhante estava puxado para trás num coque, realçando as feições
bonitas do" rosto. Não era preciso uma técnica especial para perceber o sex appeal dela. É uma cientista tenaz que, dizem, tivera uma longa série de assistentes
de laboratório como amantes. Seu trabalho não lhe deixava muito tempo livre para outras coisas. Janet Mason é uma mulher liberada há muito tempo. Eu gosto dela.
- Qual o seu campo de trabalho?
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- Pesquisa psíquica: cura, percepção extra-sensorial, clarividência, esse tipo de coisa. A fotografia Kirlian, por exemplo, tem como objetivo registrar o que
chamamos de a aura humana, parte da energia que todas as coisas vivas irradiam. A técnica em si é bem simples. Coloca-se uma pessoa num circuito com uma chapa fotográfica
virgem e faz-se a pessoa tocar a chapa com alguma parte do corpo. - Ela apontou para a fotografia que estava segurando. - O resultado é isto.
- É de Morales?
- É minha. É uma aura "normal", podemos dizer. - Pôs a mão na gaveta da mesa e tirou outro conjunto de fotografias. Folheou-as, depois me entregou uma. - Esta é
de Esteban.
Olhei para a fotografia. Parecia igual à primeira, e eu disse isso a ela.
- É a aura de Esteban relaxado podemos dizer. Ele não está pensando em cura. - Ela me deu outra fotografia. - Aqui está ele com as baterias carregadas.
A fotografia me surpreendeu. As faixas de cor saíam dos dedos, especialmente do indicador e do médio. O apogeu das ondas ficava em algum lugar fora da fotografia;
elas pareciam tempestades de sol.
- Você não vai encontrar isso nas outras - continuou Janet. - Com a maioria das pessoas, pensar em cura não faz diferença.
- Então o que significa isso? Ela sorriu serenamente.
Mongo, eu sou um cientista. Eu lido com fatos. O fato é que Esteban Morales tem uma fotografia Kirlian estupenda. A implicação é que ele consegue literalmente
irradiar quantidades de energia extras quando quer.
- Você acha que ele consegue realmente curar pessoas? Ela levou muito tempo para responder:
- Eu não tenho a menor dúvida de que consegue - disse ela finalmente. Considerei tal confissão bastante surpreendente.
- E ele não está lidando com desordens psicossomáticas. Esteban já se envolveu em outras pesquisas, em diferentes
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universidades. Em uma, uma faixa de pele foi removida cirurgicamente das costas de macacos. Os macacos foram divididos em dois grupos. Esteban tocou simplesmente
nos macacos
de um grupo. Esses se curaram duas vezes mais rápido do que os outros que ele não tocou. - Ela sorriu languidamente. - As plantas crescem mais rápido quando ele
as molha.
- Em que você o fez trabalhar?
- Enzimas - disse Janet com uma ponta de orgulho. O modelo perfeito de pesquisa; nenhuma personalidade envolvida. Você sabe, as enzimas são os elementos químicos
básicos do corpo. Se Esteban conseguisse curar, ele deveria ser capaz de afetar enzimas puras. E consegue realmente.
- Os resultados foram bons?
Ela riu.
- Espetaculares. As enzimas irradiadas... "doentes"... se decompõem em índices específicos em certas soluções químicas. Quanto menos danificadas forem,
mais baixo o índice de decomposição. O que nós fizemos foi levar tubos de ensaio cheios de enzimas, fornecidas por um laboratório comercial, e irradiálas. Então
demos a Esteban metade das amostras para ele tocar. As amostras em que ele tocou se decompuseram num índice menor estatisticamente significante do que as que ele
não tocou. Fez uma pausa novamente, depois disse: - Noventa e nove por cento da população não consegue afetar as enzimas nem de uma maneira nem de outra. Por outro
lado, muito poucas pessoas conseguem fazer as enzimas se decomporem mais rápido.
- Curandeiros "negativos"?
- Certo. Complexo, hein? Eu ri.
- É incrível. Como é que não sabia disso? Quero dizer, aqui está um homem que pode curar as pessoas com as próprias mãos e ninguém ouviu falar dele. Eu acho que
Morales daria manchetes de jornais em todo o país.
Janet me deu o tipo de sorriso que desconfiei que normalmente reservava para algum aluno particularmente ingênuo.
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- É praticamente impossível conseguir fundos para esse tipo de pesquisa, e o que é mais, publicidade. A cura psíquica é considerada com digamos, ocultismo.
- Você quer dizer como foi a acupuntura? Dessa vez foi Janet que riu.
- Isso mesmo. Você sabe quanto tempo demorou para que os cientistas e médicos ocidentais levassem a acupuntura a sério. A cura psíquica simplesmente não
se amolda ao padrão correntemente aceito de pensamento científico. Quando se faz um estudo, nenhum dos jornais quer publicar.
- Eu soube que o Dr. Edmonston fez uma denúncia contra Morales, É verdade?
- É o que a polícia disse. Não tenho razões para duvidar. Edmonston não foi feliz na sua parte do projeto. Agora estou começando a ter minhas dúvidas quanto ao Dr.
Johnson. Ainda estou esperando os relatórios anedóticos.
- Que projeto? Que relatórios? Que Dr. Johnson?
Janet ficou surpresa.
- Você não sabe nada sobre isso?
- Recebi todas as informações que tenho do meu cliente. Obviamente, ele não sabia. Havia alguma ligação entre Morales e Edmonston?
- Eu diria que sim. - Ela tornou a guardar as fotografias Kirlian na gaveta da mesa. - Nós de fato só precisávamos de Esteban por uma hora diária mais ou menos,
quando ele segurava as amostras. O resto do tempo ficávamos envolvidos em análise de computadores. Achamos que talvez fosse interessante ver o que Esteban podia
fazer com alguns pacientes reais, sob supervisão médica, Queríamos ter a opinião de um médico. Fizemos uma pesquisa de opinião na comunidade médica e todos reagiram
com indiferença, exceto o Dr. Johnson, que, por acaso, era sócio de Robert Edmonston. Eu tenho a impressão de que os dois tiveram uma grande discussão quanto
a usar Esteban, e Rolfe Johnson finalmente ganhou. Fizemos um plano: Esteban iria aos consultórios deles depois de terminar aqui. Eles indicariam a ele certos
pacientes, que seriam voluntários. Esses
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pacientes não corriam perigo de vida, mas acabariam precisando se hospitalizar. Eles contariam como se sentiam a Edmonston e Johnson depois das sessões com Esteban.
Os dois médicos então fariam relatórios. Não era muito científico, mas achamos que podia resultar num pé de página interessante para o estudo principal.
- E você não viu esses relatórios?
- Não. Eu acho que o Dr. Johnson os está guardando propositalmente.
- Por que faria isso depois de concordar em participar do projeto?
- Não sei. Talvez tenha outras intenções depois do assassinato. Ou talvez esteja só com medo de que os colegas o ridicularizem.
Fiquei intrigado. Parecia uma mudança de atitude curiosa. Também me ocorreu que eu gostaria de ver a lista de pacientes que tinham sido apresentados a Morales. Talvez
ela contivesse o nome de alguém com um motivo para matar Edmonston... tentando usar Esteban Morales como bode expiatório.
- Fale-me mais sobre Edmonston e Johnson - disse eu. - Você disse que eles eram sócios.
Janet tirou um cigarro da bolsa e eu lhe ofereci fogo. Ela me analisou através de uma nuvem de fumaça.
- Isso é confidencial?
- Se você quer assim.
- Johnson e Edmonston eram entusiastas do moderno aspecto da medicina como grande empresa. É o que muitos médicos fazem atualmente: laboratórios, centros auxiliares
para pacientes, hospitais particulares visando ao lucro. O Dr. Johnson parecia mais talentoso na área de administração das empresas. De fato, era a última pessoa
que eu esperava estar interessada em cura psíquica. Havia rumores de que iam criar uma corporação dentro de poucos meses.
- Os médicos criam corporações?
- Claro. Constróem uma rede de coisas como eu mencionei, incorporam e depois vendem.
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- Como eles se davam?
- Quem pode saber? Eu acho que se davam bem como quaisquer outros sócios de negócios. Eles eram diferentes, porém.
- Como assim?
- Edmonston era o mais velho dos dois. Eu desconfio que ele se sentiu atraído por Johnson por causa de suas idéias nas áreas que mencionei. Edmonston era tido
como um bom médico, mas era fechadão. Não tinha senso de humor. Johnson tinha um temperamento mais alegre. Obviamente era também o mais aventureiro dos dois.
- Qual foi a base da denúncia de Edmonston?
- O Dr. Edmonston afirmou que Esteban dava drogas aos pacientes.
Refleti sobre isso. Certamente não se encaixava com o que o senador me dissera.
- Janet, não lhe parece estranho que dois médicos como Johnson e Edmonston concordassem em trabalhar com um curandeiro psíquico? Além das diferenças filosóficas,
eles me parecem homens ocupados.
- Ah, sim. Eu realmente não sei explicar o entusiasmo do Dr. Johnson. Como eu lhe disse, o Dr. Edmonston era contra o projeto desde o início. Ele não queria perder
tempo com coisas que considerava supersticiosas. - Fez uma pausa, depois disse: -- Ele deve ter irradiado alguma vibração negativa.
- Por que você diz isso?
- Não sei bem. No final da experiência alguma coisa estava afetando a concentração de Esteban. Ele não conseguia os mesmos resultados de antes. E antes que você
pergunte, eu não sei por que ele andava preocupado. Fiz menção ao problema uma vez e ele deixou claro que não queria falar sobre isso.
- Você acha que ele matou Edmonston? Ela riu ligeiramente, sem humor.
- Ora, Mongo. Esse é seu departamento. Eu lido com enzimas; são bem mais simples do que pessoas.
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- Ora vamos, Janet. Você passou um verão inteiro trabalhando com ele. Ele deve ter-lhe causado alguma impressão. Você acha que Esteban Morales é o tipo
de homem que cortaria a garganta de alguém?
Ela olhou para mim por um longo tempo. Finalmente disse:
- Esteban Morales é talvez a pessoa mais doce, mais simpática que eu já conheci. E é só isso que posso dizer. Exceto que eu lhe desejo sorte.
Agradeci, depois me levantei e me dirigi para a porta.
- Mongo?
Virei-me com a mão na maçaneta. Janet agora estava sentada na ponta da mesa, deixando à mostra uma generosa porção das pernas bem torneadas. Eram as pernas de 50
anos mais bonitas que já vi - e numa mulher bonita.
- Você precisa vir me visitar mais vezes - continuou ela serenamente. - Eu não tenho muitos colegas anões.
Pisquei os olhos para ela.
- Até a vista, garota.
*
- É claro que eu tinha curiosidade - disse o Dr. Rolfe Johnson. - Por isso estava tão ansioso em participar do projeto em primeiro lugar. Eu gosto de ser aberto
e liberal.
Analisei Johnson. Tinha cara de rapaz apesar dos 37 anos, era muito atraente, com olhos bem azuis e fartos cabelos louros. Fiquei impressionado com o entusiasmo
dele, um tanto surpreso quando concordou em me ver 20 minutos depois de meu telefonema. Para um ocupado médico e homem de negócios, ele parecia ter muito tempo livre
-- ou estar muito ansioso por sacramentar Esteban Morales. Estava ansioso demais por me agradar.
- O Dr. Edmonston não estava?
Johnson pigarreou.
- Bem, eu não disse isso. Robert era um... conservador. O senhor vai descobrir que a maioria dos médicos não é assim tão curiosa. Ele achava que trabalhar com
o Sr. Morales era uma perda de tempo desnecessária. Eu achei que valia a pena.
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- Por quê? O que havia de interessante nisso para o senhor? Ele pareceu um tanto melindrado.
- Eu considerava a experiência uma investigação puramente científica. Afinal de contas, nenhum médico cura realmente alguém. Nem nenhum remédio. O corpo é que se
cura, e tudo o que um médico pode fazer é tentar estimular o corpo a fazer o seu trabalho. Pelo que diziam, Esteban Morales era um homem que podia fazer isso sem
a ajuda de drogas nem de bisturis. Eu queria ver se era verdade.
- Era?
Johnson riu com desdém.
- É claro que não. Era tudo tolice. Ah, sem dúvida ele exerce um efeito psicossomático em algumas pessoas que acreditavam nele. Pelo que vi, os efeitos do que ele
fazia eram geralmente efêmeros, e extremamente curtos. Acho que foi por isso que entrou em pânico.
- Entrou em pânico? Johnson levantou as sobrancelhas.
- A polícia não lhe disse?
- Eu estou me adiantando. Não falei com a polícia ainda. Suponho que o senhor esteja falando das drogas que Morales é acusado de ter administrado.
- Ah, não só acusado. Eu o vi, e foi relatado pelo paciente.
- Que paciente? Ele estalou a língua.
- É claro que o senhor precisa compreender que não posso dar os nomes dos pacientes.
- Claro. O senhor contou a Edmonston?
- Era paciente dele. E ele insistiu em fazer a denúncia pessoalmente. - Sacudiu a cabeça. - A Dra. Mason teria feito um favor a todos se não tivesse insistido
em fazer a universidade tirá-lo da prisão sob fiança.
- Ah, sim. Pode me dizer o que aconteceu na noite em que o Dr. Edmonston morreu? O que o senhor sabe?
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Ele refletiu por algum tempo. Pelo menos parecia estar pensando sobre isso.
- O Dr. Edmonston e eu sempre nos encontrávamos nas noites de quintas-feiras. Havia registros a fazer, decisões a tomar e não havia tempo bastante durante a semana.
Naquela noite eu me atrasei alguns minutos. - Sacudiu a cabeça. - Aqueles minutos podem ter custado a vida a Robert.
- Talvez. O que Morales estava fazendo lá?
- Não sei realmente. Na certa estava furioso com Robert. Deve ter descoberto que nos encontrávamos às quintas-feiras enquanto trabalhava conosco, e achou que ia
ser uma boa hora para matar o Dr. Edmonston.
- Mas se ele sabia sobre as reuniões, sabia que o senhor estaria lá.
Johnson olhou impacientemente para o relógio.
- Eu não posso saber o que se passava na mente de Esteban Morales. Afinal de contas, como o senhor deve saber, ele é quase ignorante por completo. Um burro. Talvez
simplesmente não estivesse muito bom da cabeça... se é que algum dia esteve.
- Levantou-se abruptamente. - Eu já dispus de todo o tempo que tenho. Conversei com o senhor com a intenção de obter justiça para o Dr. Edmonston. Esperava que o
senhor visse que estava perdendo seu tempo investigando o assunto.
A entrevista obviamente estava terminada.
A história de Johnson não me cheirava bem. O problema era conseguir mais alguém que a fuçasse. Com um suspeito principal como Morales na rede, a polícia de Nova
York não ia complicar a questão para si mesma antes de ser obrigada a fazêlo, isto é, antes que o senador conseguisse um bom advogado para Morales ou envolvesse
a própria carreira na questão. Meu trabalho era evitar tal necessidade, o que significava, quanto muito, tirar Morales da prisão sob fiança. Para fazer isso eu ia
ter de começar a levantar algumas dúvidas.
Era hora de falar com Morales.
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*
Parei num drive-in para jantar, pedi três hambúrgueres e um milk-shake de chocolate para conquistar o meu irmão gigante. A comida não foi suficiente. Meia hora depois,
após ameaças, gritos e apelos à lealdade familiar, fui transformado de detetive particular anão em advogado anão e levado para visitar Esteban Morales. O guarda
que me encaminhou achou tudo divertidíssimo.
Esteban Morales parecia um remanescente de Viva Zapata. Usava um chapéu de palha de aba larga para cobrir o cabelo grisalho comprido e trançado. Vestia calças de
veludo disformes e um suéter vermelho largo e rasgado. Encolhido sobre a cama suja da cela, de costas para a parede, ele parecia desamparado e solitário. Levantou
a vista quando entrei. Seus olhos eram castanho-escuros. Alguma coisa moveu-se no fundo dos mesmos quando olhou para mim. Seja o que for - curiosidade, talvez passou
rapidamente.
Fui até ele e estendi a mão.
- Olá, Sr. Morales. Meu nome é Bob Frederickson. Meus amigos me chamam de Mongo.
Morales apertou minha mão. Para um homem velho, seu aperto de mão era surpreendentemente firme.
- Prazer em conhecê-lo, Seu Mongo - disse ele com uma voz carregada de sotaque. - O senhor advogado?
- Não. Detetive particular. Gostaria de tentar ajudá-lo.
- Quem o contratou?
- Um amigo seu - Sussurrei a palavra "senador" para que o guarda não me ouvisse. Os olhos de Morales
iluminaram-se. -- Seu amigo sente que a filha dele precisa do senhor. Vou tentar tirá-lo daqui, pelo menos sob fiança.
Morales levantou as mãos grandes lentamente e analisou as palmas. Eu me lembrei das fotografias Kirlian de Janet Mason; perguntei-me que força misteriosa havia naquelas
mãos, e de onde se originava.
- Eu ajudo Linda se conseguir ver ela - disse ele calmamente. - Tenho de tocar. - De repente levantou os olhos. Eu não matar ninguém,
Seu Mongo. Nunca machucar ninguém.
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- O que aconteceu naquela noite? As mãos uniram-se, caindo entre os joelhos.
- O Dr. Edmonston não gostar de mim. Eu sei disso. Ele achar que eu sou falso. Mas me deixar ajudar os pacientes dele, e eu ficar agradecido a ele por isso.
- Você acha que ajudou realmente algum deles? Morales sorriu alegremente, como uma criança que fez alguma coisa de que se orgulha.
- Eu sei que ajudei. E os pacientes, eles sabem. Eles dizer a mim e dizer ao Dr. Edmonston e ao Dr. Johnson.
- Você deu drogas a alguém?
- Não, Seu Mongo. - Levantou as mãos. - Minha força está aqui, nas minhas mãos. Todas drogas serem ruins pró corpo.
- Por que você acha que o Dr. Edmonston disse que você deu?
Ele sacudiu a cabeça, perplexo.
- Um dia a polícia me pega na universidade. Eles dizer que eu estou preso por fingir ser doutor. Eu não compreender. A Dra. Mason me tira da prisão. Então eu receber
uma mensagem no mesmo dia...
- Uma quinta-feira?
- Acho que sim. A mensagem dizer que Dr. Edmonston querer me ver naquela noite às 7:30. Eu querer saber por que ele tão zangado comigo então decidir ir. Eu chegar
e encontrar ele morto. Alguém cortar a garganta dele. Dr. Johnson chegar uns minutos depois. Ele achar que eu ser culpado. Chamar a polícia... - A voz dele interrompeu-se,
pontuada por um gesto que incluía a cela, e o mundo lá fora. Foi um gesto elegante.
- Como você entrou no consultório dele, Esteban?
- As luzes estar acesas e a porta aberta. Quando ninguém respondei batida eu entrar.
Ou Esteban Morales era um monumental talento dramático ou um homem em quem não se podia deixar de acreditar.
- Você tem alguma idéia do que o Dr. Edmonston queria falar com você?
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- Não, Seu Mongo. Achei que ele talvez querer se desculpar por chamar a polícia.
- Como você faz o que faz, Esteban? - A pergunta foi feita com a intenção de surpreendê-lo. Mas não surpreendeu. Ele simplesmente sorriu.
- O senhor achar que eu prego peças, Seu Mongo?
- O que eu acho não importa.
- Então por que perguntar?
- Estou curioso.
- Então eu responder. - Novamente ele levantou as mãos, olhou para elas. - O corpo faz música, Seu Mongo. Um corpo com saúde fazer boa música. Eu poder ouvir através
das minhas mãos. Um corpo doente fazer música ruim. Minhas mãos... Eu poder fazer a música boa, fazer ela ficar como eu sei que deve.
- Fez uma pausa, sacudiu a cabeça - Não ser fácil de explicar, Seu Mongo.
- Por que você estava perturbado no final do projeto, Esteban?
- Quem dizer ao senhor que eu estar perturbado?
- A Dra. Mason. Ela disse que você estava tendo problemas em afetar as enzimas.
Ele demorou muito a responder.
-' Eu não achar direito falar sobre isso.
- Falar sobre o quê, Esteban? Como eu posso ajudá-lo se você não cooperar comigo?
- Eu saber muitas coisas sobre as pessoas, mas não falar sobre elas - ele disse quase para si mesmo. - O que me deixa infeliz não ter nada a ver com meu problema.
- Por que você não me deixa decidir isso? Novamente, ele demorou muito a responder.
- Eu achar que isso não fazer mais diferença.
- O quê não faz mais diferença, Esteban?
Ele olhou para mim. ;:!
- O Dr. Edmonston estava morrendo. De câncer.
- O Dr. Edmonston lhe contou isso?
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- Ah, não. O Dr. Edmonston não contar a ninguém. Não querer que ninguém sabe. Mas eu saber.
- Como, Esteban? Como você soube? Ele apontou para os olhos.
- Eu ver, Seu Mongo. Eu ver a aura. A aura do Dr. Edmonston. ser marrom-escura. Palpitar. Ele morrer de câncer. Eu saber que ele tem cinco, talvez seis meses mais
pra viver. Abaixou os olhos e sacudiu a cabeça. - Eu dizer a ele que sei, eu dizer a ele que quero ajudar. Ele ficar muito zangado comigo. Dizer pra eu me preocupar
com a minha vida. Isso me perturbar. Me perturba ficar perto das pessoas doentes que não querer minha ajuda.
Minha boca de repente ficou muito seca.
- Você diz que viu esta aura? - Lembrei-me das fotografias Kirlian que Janet Mason me mostrara e senti uma pontada na nuca.
- É - disse Morales simplesmente. - Eu ver as auras.
- Você consegue ver a aura de qualquer pessoa? - Minha voz se elevara um pouco para que o guarda pudesse ouvir. Dei uma olhada rápida na direção dele. Ele estava
rindo com ironia, o que significava que a nossa conversa chegava aos ouvidos dele claramente. Isso era bom... talvez.
- Geralmente. Vejo com mais facilidade a aura das pessoas doentes, porque ser isso que eu procuro.
- Você pode ver a minha? - perguntei.
Os olhos dele levantaram-se lentamente e fitaram os meus. Ficaram assim. Foi um momento de intimidade inesperada e embaraçosa, e eu já sabia o que ele ia dizer antes
de fazê-lo.
Esteban Morales não sorriu.
- Eu poder ver a sua, Seu Mongo - disse ele baixinho.
Ele ia dizer mais alguma coisa, mas eu o interrompi. Estava sentindo-me um pouco tonto e queria acabar com aquilo o mais rápido possível. Podia compreender como
se sentira o Dr. Edmonston.
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Pressionei o guarda e ele admitiu com relutância que tinha escutado a última parte da nossa conversa. Então pedi a ele que chamasse Garth.
Garth chegou meio desconfiado. Garth sempre fica desconfiado quando eu mando chamá-lo. Fez um cumprimento ligeiro a Esteban, depois olhou para mim.
- O que é que há, Mongo?
- Eu só quero que você se sente aqui um minuto e ouça uma coisa.
- Mongo, eu tenho relatórios para fazer!
Eu o ignorei e ele encostou nas barras da cela e começou a bater com o pé no chão impacientemente. Virei-me para Esteban Morales.
- Esteban - disse calmamente -, você pode dizer a meu irmão o que é uma aura?
Morales descreveu a aura humana e eu descrevi as fotografias Kirlian que Janet Mason me mostrara: o que eram e o que mostravam. Garth continuou com as batidas monótonas
do pé. Uma vez olhou para o relógio.
- Esteban - disse eu -, como meu irmão está? Quero dizer, a aura dele.
- Ah, ele bem - disse Esteban, intrigado. - Aura com cor boa, cor rosa saudável.
- E quanto a mim?
Morales abaixou os olhos e sacudiu a cabeça silenciosamente.
As batidas de pé no canto terminaram. De repente Garth estava ao meu lado, segurando meu braço.
- Mongo, que diabos está acontecendo?
- Apenas ouça, Garth. Eu preciso de uma testemunha. Respirei fundo, depois recomecei a interrogar Morales.
- Esteban - sussurrei - eu lhe fiz uma pergunta. Você consegue ver a minha aura? Poxa, se consegue, diga! Eu talvez possa ajudá-lo. Se você consegue ver a minha
aura, tem de dizer!
Esteban Morales levantou a cabeça lentamente. Seus olhos estavam muito tristes.
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- Eu não posso ajudá-lo, Sr. Mongo. Garth apertou meu braço com mais força.
- Mongo...
- Eu estou bem, Garth. Esteban, me diz o que você vê. O curandeiro respirou fundo e estremeceu.
- O senhor está morrendo, Seu Mongo. A mente está boa, mas o corpo está... - Acenou para mim. - O corpo está como é. Está a mesma coisa por dentro. Eu não poder
mudar isso. Não poder ajudar. Desculpe.
- Não precisa se desculpar - disse eu. Eu lutava com duas emoções conflitantes, a satisfação de vencer e a amargura pelo que a afirmação de Morales me custava. Decidi
ir em frente. -- Você pode me dizer quantos anos me restam, Esteban?
- Cinco - disse Morales numa voz abafada. - Talvez seis ou sete. Por que me faz dizer essas coisas?
Virei-me para Garth. Esperava que meu sorriso fosse convincente.
- Bem. mano, o que você acha da opinião de Esteban comparada com a das autoridades médicas?
Garth sacudiu a cabeça. Sua voz estava abafada.
- Seus clientes conseguem muito em troca do dinheiro que pagam, Mongo.
- Que tal arranjar um advogado e providenciar uma fiança para Esteban. Para amanhã quem sabe?
- Eu posso trazer um advogado de defesa aqui, Mongo disse Garth no mesmo tom. - Mas você não provou nada.
- Fizeram uma autópsia em Edmonston?
- Fizeram. O relatório já deve estar arquivado a essa altura. Por quê?
- Bem, a autópsia vai demonstrar que Edmonston estava morrendo de câncer, e eu posso provar que Esteban sabia disso. Eu acabei de dar uma demonstração do que ele
é capaz.
- Isso ainda não prova nada - disse Garth, duramente.
- Mongo, eu gostaria que provasse.
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- Tudo o que eu quero é Esteban sob fiança. Tudo o que eu quero mostrar é que Esteban sabia que Edmonston estava morrendo, rapidamente. Não faria sentido para
Esteban matá-lo. E eu acho que posso apresentar uma testemunha-surpresa. De peso. Você vai falar com o juiz?
- Vou, vou falar com o juiz. - Novamente, Garth segurou meu braço. - Tem certeza de que está tudo bem com você? Você está branco como giz.
- Estou bem. Poxa, nós todos vamos morrer um dia, não vamos? - Minha risada tornou-se curta e amarga. - Quando se está morrendo há tanto tempo quanto eu, a gente
se acostuma. Preciso de um telefone.
Não esperei pela resposta. Saí da cela rapidamente e usei o primeiro telefone que encontrei para chamar o senador. Então corri para fora e acendi um cigarro. Pareceu-me
horrível.
*
Dois dias depois Garth espiou pela porta do meu escritório.
- Ele confessou. Achei que você gostaria de saber. Empurrei para o lado a conferência sobre criminologia que
estava preparando.
- Quem confessou?
Garth entrou e fechou a porta.
- Johnson, é claro. Ele entrou no consultório esta manhã e encontrou a polícia revistando os registros dele. Só conseguiu pedir para ver o mandado de busca e depois
se descontrolou. Contou a história duas vezes, uma vez para nós e uma vez para o
Da. Que amador!
Fiquei um pouco surpreso por me sentir completamente desinteressado. Meu trabalho terminara no dia anterior quando o senador e eu entráramos pela porta dos fundos
do tribunal para nos encontrarmos com Garth e o juiz. Quarenta e cinco minutos depois Esteban Morales estava solto sob fiança e a caminho da casa de Linda Younger.
Rolfe Johnson tinha sido meu principal suspeito cinco minutos depois que comecei a falar com ele, e eu
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não tinha dúvidas de que a polícia o pegaria, assim que se decidissem a fazer alguma coisa.
- Qual foi o motivo dele? - perguntei.
- O forte de Johnson eram os negócios. Não há dúvida. Simplesmente não dava para assassino... nem para médico. Tinha pelo menos uma dúzia de processos por negligência
contra ele. Edmonston estava ficando cansado de ter um fracassado como sócio. Johnson estava se tornando um problema e prejudicando o lado médico do investimento.
Afinal de contas, os pacientes são a peça-chave do negócio. Edmonston era o médico competente e tinha interesse em controlar a corporação. Ia acabar com a sociedade
com Johnson, e Johnson descobriu tudo.
"Johnson, com todos os seus problemas, sabia que estava acabado se Edmonston dissolvesse a sociedade. Quando a Dra. Mason lhe contou sobre Morales; Johnson achou
que talvez pudesse usar a situação em proveito próprio. Afinal de contas, nada melhor do que um curandeiro psíquico ignorante para bode expiatório.
- Foi Johnson que mandou o recado para Esteban, não foi?
- Claro. Em primeiro lugar, admitiu ter mentido para Edmonston sobre a história de Esteban dar drogas a um dos pacientes de Edmonston, depois contou como
influenciou Edmonston a fazer uma denúncia. Imaginou que a universidade ia soltar Esteban sob fiança, e assim haveria um motivo. Não era muito, mas Johnson não achou
que ele precisasse de um motivo muito forte. Achava que Esteban era louco e que qualquer júri perceberia que ele era louco. Escolheu o dia, depois deixou um recado
no nome de Edmonston para Esteban ir ao consultório naquela noite. Pediu a Edmonston para chegar 45 minutos mais cedo e o matou, depois esperou que Esteban aparecesse
para incriminá-lo. Um plano bem elementar, mas também Johnson não tem muita imaginação mesmo.
- Os relatórios dos pacientes não fizera com que pensasse um pouco?
Garth riu.
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- Pelo que concluí do que disse, Johnson nunca prestou atenção aos relatórios. Edmonston fez a maioria das entrevistas.
- Parece haver uma ponta de ironia aí - disse eu secamente.
- Parece. Bem, há um táxi esperando por mim aí embaixo. Como eu disse, achei que você ia gostar de saber.
-- Obrigado, Garth.
Ele parou com a mão na maçaneta e olhou para mim demoradamente. Eu sabia que estávamos pensando na mesma coisa, coisas ditas numa cela de prisão, um segredo de família
muito íntimo compartilhado por dois irmãos. Por um momento tive medo de que ele fosse dizer alguma coisa que nos deixasse embaraçados. Não disse.
- Até logo - disse Garth.
- Até logo.
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W. W.Jacobs
A PATA DE MACACO

Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas na pequena sala de visitas da Laburnum Villa os postigos estavam abaixados e o fogo queimava na lareira. Pai e filho jogavam
xadrez; o primeiro tinha idéias sobre o jogo que envolviam mudanças radicais, colocando o rei em perigo tão desnecessário que até provocava comentários da velha
senhora de cabelos brancos, que tricotava serenamente perto do fogo.
- Ouça o vento - disse o Sr. White, que, tendo visto tarde demais um erro fatal, queria evitar que o filho o visse.
- Estou escutando - disse o último, estudando o tabuleiro ao esticar a mão. - Xeque.
- Eu duvido que ele venha hoje à noite - disse o pai, com a mão parada em cima do tabuleiro.
- Mate - replicou o filho.
- Essa é a desvantagem de se viver tão afastado - vociferou o Sr. White, com uma violência súbita e inesperada. De todos os lugares desertos e lamacentos para se
viver, este é o pior. O caminho é um atoleiro, e a estrada uma torrente. Não sei o que as pessoas têm na cabeça. Acho que, como só sobraram duas casas na estrada,
elas acham que não faz mal.
- Não se preocupe, querido - disse a esposa em tom apaziguador. - Talvez você ganhe a próxima partida.
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O Sr. White levantou os olhos bruscamente, a tempo de perceber uma troca de olhares entre mãe e filho. As palavras morreram em seus lábios, e ele escondeu um sorriso
de culpa atrás da barba fina e grisalha.
- Aí vem ele - disse Herbert White, quando o portão bateu ruidosamente e passos pesados se aproximaram da porta.
O velho levantou-se com uma pressa hospitaleira e, ao abrir a porta, foi ouvido cumprimentando o recém-chegado. Este também o cumprimentou, e a Sra. White tossiu
ligeiramente quando o marido entrou na sala, seguido por um homem alto e corpulento, com olhos pequenos e rosto vermelho.
- Sargento Morris - disse ele, apresentando-o.
O sargento apertou as mãos e, sentando-se no lugar que lhe ofereceram perto do fogo, observou satisfeito o anfitrião pegar uísque e copos, e colocar uma pequena
chaleira de cobre no fogo.
Depois do terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes, e ele começou a falar, o pequeno círculo familiar olhando com interesse este visitante de lugares distantes,
quando ele empertigou os ombros largos na cadeira e falou de cenários selvagens e feitos intrépidos; de guerras, pragas e povos estranhos.
- Vinte e um anos nessa vida - disse o Sr. White, olhando para a esposa e o filho. - Quando ele foi embora era um rapazinho no armazém. Agora olhem só pra ele.
- Ele parece não ter sofrido muitos reveses - disse a Sra. White amavelmente.
- Eu gostaria de ir à índia - disse o velho - só para conhecer, compreende?
- Você está bem melhor aqui - disse o sargento, sacudindo a cabeça. Pôs o copo vazio na mesa e, suspirando baixinho, sacudiu a cabeça novamente.
Eu gostaria de ver aqueles velhos templos, os faquires
e os nativos - disse o velho. - O que foi que você começou a me contar outro dia sobre uma pata de macaco ou algo assim, Morris?
Nada - disse o soldado rapidamente. - Não é nada
de importante.
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- Pata de macaco? - perguntou a Sra. White, curiosa.
- Bem, é só um pouco do que se poderia chamar de magia, talvez - disse o sargento com falso ar distraído.
Os três ouvintes debruçaram-se nas cadeiras, interessados. O visitante levou o copo vazio à boca distraidamente e depois recolocou-o onde estava. O dono da casa
tornou a enchê-lo.
- Aparentemente - disse o sargento, mexendo no bolso
- é só uma patinha comum, dissecada.
Tirou uma coisa do bolso e mostrou-a. A Sra. White recuou com uma careta, mas o filho, pegando-a, examinou-a com curiosidade.
- E o que há de especial nela? -- perguntou o Sr. White ao pegá-la da mão do filho e, depois de examiná-la, colocá-la sobre a mesa.
- Foi encantada por um velho faquir - disse o sargento -, um homem muito santo. Ele queria provar que o destino regia a vida das pessoas, e que aqueles que interferissem
nele seriam castigados. Fez um encantamento pelo qual três homens distintos poderiam fazer, cada um, três pedidos a ela.
A maneira dele ao dizer isso foi tão solene que os ouvintes perceberam que suas risadas estavam um pouco fora de propósito.
- Bem, por que não faz os seus três pedidos, senhor? disse Herbert White astutamente.
O soldado olhou para ele como olham as pessoas de meia-idade para um jovem presunçoso.
- Eu fiz - disse ele calmamente, e seu rosto marcado empalideceu.
- E teve mesmo os três desejos satisfeitos? - perguntou a Sra. White.
- Tive - disse o sargento, e o copo bateu nos dentes fortes.
- E alguém mais fez os pedidos? - insistiu a senhora.
- O primeiro homem realizou os três desejos - foi a resposta. - Eu não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi para morrer. Por isso é que consegui
a pata.
Seu tom de voz era tão grave que o grupo ficou em silêncio.
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- Se você já conseguiu realizar os três desejos, ela não serve mais para você, Morris - disse o velho finalmente. Para que você guarda essa pata?
O soldado meneou a cabeça.
- Por capricho, suponho - disse lentamente. - Cheguei a pensar em vendê-la, mas acho que não o farei. Ela já causou muitas desgraças. Além disso, as pessoas não
vão comprar. Acham que é um conto de fadas, algumas delas; e as que acreditam querem tentar primeiro para pagar depois.
- Se você pudesse fazer mais três pedidos - disse o velho, olhando para ele atentamente -, você os faria?
- Eu não sei - disse o outro. - Eu não sei.
Pegou a pata e, balançando-a entre os dedos, de repente jogou-a no fogo. White, com um ligeiro grito, abaixou-se
e tirou-a de lá.
- É melhor deixar que ela se queime - disse o soldado solenemente.
- Se você não quer mais, Morris - disse o outro -, me dá.
- Não - disse o amigo obstinadamente. - Eu a joguei no fogo. Se você ficar com ela, não me culpe pelo que acontecer. Jogue isso no fogo outra vez, como um homem
sensato.
O outro sacudiu a cabeça e examinou sua nova aquisição atentamente.
- Como você faz para pedir? - perguntou.
- Segure a pata na mão direita e faça o pedido em voz alta - disse o sargento --, mas eu o advirto sobre as conseqüências.
- Parece um conto das Mil e Uma Noites - disse a Sra. White, ao se levantar e começar a pôr o jantar na mesa. - Você não acha que devia pedir quatro pares de mãos
para mim?
O marido tirou o talismã do bolso e então todos os três desataram a rir quando o sargento, com um olhar de medo no rosto, o segurou pelo braço.
- Se quer fazer um pedido - disse ele asperamente -, peça algo sensato.
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O Sr. White colocou a pata no bolso novamente e, arrumando as cadeiras, acenou para que o amigo fosse para a mesa. Durante o jantar o talismã foi parcialmente esquecido,
e depois os três ficaram escutando, fascinados, um segundo capítulo das aventuras do soldado na índia.
- Se a história sobre a pata de macaco não for mais verdadeira do que as que nos contou - disse Herbert, quando a porta se fechou atrás do convidado, que partiu
a tempo de pegar o último trem -, nós não devemos dar muito crédito a ela.
- Você deu alguma coisa a ele por ela, papai? - perguntou a Sra. White, olhando para o marido atentamente.
- Pouca coisa - disse ele, corando ligeiramente. - Ele não queria aceitar, mas eu o fiz aceitar. E ele tornou a
insistir em que eu a jogasse fora.
- É claro - disse Herbert, fingindo estar horrorizado. Ora, nós vamos ser ricos, famosos e felizes. Peça para ser um imperador, papai, para começar; então você
não vai ser mais dominado pela mulher.
Ele correu em volta da mesa, perseguido pela Sra. White armada com uma capa de poltrona.
O Sr. White tirou a pata do bolso e olhou para ela dubiamente.
- Eu não sei o que pedir, é um fato - disse ele lentamente. - Eu acho que tenho tudo o que quero.
- Se você acabasse de pagar a casa ficaria bem feliz, não ficaria? - disse Herbert, com a mão no ombro dele. - Bem, peça 200 libras, então; isso dá.
O pai, sorrindo envergonhado pela própria ingenuidade, segurou o talismã, quando o filho, com uma cara solene, um tanto franzida por uma piscadela de olhos para
a mãe, sentou-se no piano e tocou alguns acordes para fazer fundo.
- Eu desejo 200 libras - disse o velho distintamente. Um rangido do piano seguiu-se às palavras, interrompido
por um grito estridente do velho. A mulher e o filho correram até ele.
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- Ela se mexeu - gritou ele, com um olhar de nojo para o objeto caído no chão. - Quando eu fiz o pedido, ela se contorceu na minha mão como uma cobra.
- Bem, eu não vejo o dinheiro - disse o filho, ao pegá-la e colocá-la em cima da mesa - e aposto que nunca vou ver.
- Deve ter sido imaginação sua, papai -- disse a esposa, olhando para ele ansiosamente.
Ele sacudiu a cabeça.
- Não faz mal; não aconteceu nada, mas a coisa me deu um susto assim mesmo.
Eles se sentaram perto do fogo novamente enquanto os dois homens acabavam de fumar os cachimbos. Lá fora, o vento zunia mais do que nunca, e o velho teve um sobressalto
com o barulho de uma porta batendo no andar de cima. Um silêncio estranho e opressivo abateu-se sobre todos os três, e perdurou até o velho casal se levantar e ir
dormir.
- Eu espero que vocês encontrem o dinheiro dentro de um grande saco no meio da cama - disse Herbert, ao lhes desejar boa-noite - e algo terrível agachado em cima
do armário observando vocês guardarem seu dinhero maldito.
Ficou sentado sozinho na escuridão, olhando para o fogo baixo e vendo caras nele. A última cara foi tão feia e tão simiesca que ele olhou para ela assombrado. A
cara ficou tão vívida que, com uma risada inquieta, ele procurou um copo na mesa que tivesse um pouco de água para jogar no fogo. Sua mão pegou na pata de macaco,
e com um ligeiro estremecimento ele limpou a mão no casaco e foi dormir.

II

Na claridade do sol de inverno, na manhã seguinte, quando este banhou a mesa do café, ele riu de seus temores. Havia um ar de naturalidade na sala que não existia
na noite anterior, e a pequena pata suja estava jogada na mesa de canto com um descuido que não atribuía grande crença a suas virtudes.
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- Eu creio que todos os velhos soldados são iguais disse a Sra. White. - Essa idéia de dar ouvidos a tal tolice! Como é que se pode realizar desejos hoje em dia?
E se fosse possível, como é que iam aparecer 200 libras, papai?
- Caindo do céu, talvez - disse Herbert, com ar brincalhão.
- Morris disse que as coisas aconteciam com tanta naturalidade - disse o pai - que a gente podia até achar que era coincidência.
- Bem, não gaste o dinheiro antes de eu voltar - disse Herbert, ao se levantar da mesa. - Estou com medo de que você se torne um homem mesquinho e avarento, e vamos
ter de renegá-lo.
A mãe riu e, acompanhando-o até a porta, viu-o descer a rua. Voltando à mesa do café, divertiu-se à custa da credulidade do marido. O que não a impediu de correr
até a poria com a batida do carteiro, nem de se referir a sargentos da reserva com vício de beber, quando descobriu que o correio trouxera uma conta do alfaiate.
- Herbert vai dizer mais uma das suas gracinhas quando chegar em casa - disse ela, quando se sentaram para jantar.
- Com certeza - disse o Sr. White, servindo-se de cerveja -, mas, apesar de tudo, a coisa se mexeu na minha mão; eu posso jurar.
- Foi impressão - disse a senhora apaziguadoramente.
- Estou dizendo que se mexeu -- replicou o outro. Não há dúvida; eu tinha acabado... O que houve?
A mulher não respondeu. Estava observando os movimentos misteriosos de um homem do lado de fora, que, espiando com indecisão para a casa, parecia estar tentando
tomar a decisão de entrar. Lembrando-se das 200 libras, ela reparou que o estranho estava bem-vestido e usava um chapéu de seda novo. Por três vezes ele parou no
portão, e depois caminhou novamente. Da quarta vez ficou com a mão parada sobre ele, e depois com uma súbita resolução abriu-o e entrou. A Sra. White
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no mesmo momento desamarrou o avental rapidamente, colocando-o debaixo da almofada da cadeira.
Convidou o estranho, que parecia deslocado, a entrar. Ele olhou para ela furtivamente, e ouviu, preocupado, a senhora desculpar-se pela aparência da sala, e pelo
casaco do marido, uma roupa que ele geralmente reservava para o jardim. Então ela esperou, com paciência, que ele falasse do que se tratava, mas, a princípio, ele
ficou estranhamente calado.
- Eu... pediram-me para vir aqui - disse ele finalmente, e abaixando-se tirou um pedaço de algodão das calças. Eu venho representando "Maw & Meggins".
A senhora sobressaltou-se.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela, ofegante. Aconteceu alguma coisa a Herbert? O que é? O que é?
O marido interveio.
- Calma, calma, mamãe - disse ele rapidamente. - Sente-se e não tire conclusões precipitadas. O senhor certamente não trouxe más notícias, não é, senhor - e olhou
para o outro ansiosamente.
- Eu lamento... - começou o visitante.
- Ele está ferido? - perguntou a mãe desesperada. O visitante assentiu com a cabeça.
- Muito ferido - disse. - Mas não está sofrendo.
- Ah, graças a Deus! - disse a senhora, apertando as mãos. - Graças a Deus! Graças...
Parou de falar de repente quando o significado sinistro da afirmativa se abateu sobre ela, e ela viu a terrível confirmação de seus temores no rosto desviado do
outro. Prendeu a respiração e, virando-se para o marido, menos perspicaz, pôs a mão trêmula sobre a dele. Seguiu-se um demorado silêncio.
- Ele foi apanhado pela máquina - disse o visitante finalmente, em voz baixa.
- Apanhado pela máquina - repetiu o Sr. White, estonteado. - Ah! sim.
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Ficou sentado olhando para a janela e, tomando a mão da esposa entre as suas, apertou-a como tinha vontade de fazer nos velhos tempos de namoro há quase 40 anos.
- Ele era o único que nos restava - disse ele, voltando-se amavelmente para o visitante. - É difícil.
O outro tossiu e, levantando-se, caminhou lentamente até a janela.
- A firma me pediu para transmitir os nossos sinceros pêsames a vocês por sua grande perda - disse ele, sem olhar para trás. - Eu peço que compreendam que sou apenas
um empregado da firma e estou apenas obedecendo ordens.
Não houve resposta; o rosto da senhora estava branco, os olhos parados e a respiração inaudível; no rosto do marido havia um olhar que o amigo sargento talvez tivesse
na primeira batalha.
- Devo dizer que Maw & Meggins estão isentos de toda responsabilidade - continuou o outro. - Eles não têm nenhuma dívida com a família, mas, em consideração aos
serviços de seu filho, desejam presenteá-los com uma certa soma como compensação.
O Sr. White largou a mão da esposa e, pondo-se de pé, olhou para o visitante horrorizado. Seus lábios secos pronunciaram as palavras:
- Quanto?
- Duzentas libras - foi a resposta.
Indiferente ao grito lancinante da esposa, o velho sorriu fracamente, estendeu as mãos como um homem cego e caiu, desfalecido, no chão.

III

No enorme cemitério novo, a alguns quilômetros de distância, os velhos enterraram seu morto e voltaram para casa mergulhada em sombras e silêncio. Tudo terminara
tão rápido que a princípio nem se davam conta do que acontecera, e ficaram num estado de expectativa como se fosse acontecer mais
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alguma coisa - algo mais que aliviasse esse fardo, pesado demais para corações velhos.
Mas os dias se passaram, e a expectativa deu lugar à resignação - a resignação desesperançada dos velhos, às vezes chamada erradamente de apatia. Algumas vezes nem
trocavam uma palavra, pois agora não tinham nada do que falar e os dias eram compridos e desanimados.
Foi por volta de uma semana depois que o velho, acordando subitamente de noite, estendeu o braço e viu-se sozinho. O quarto estava no escuro e o ruído de soluços
baixinhos vinha da janela. Ele se levantou na cama e ficou ouvindo.
- Volte para a cama - disse ele ternamente. - Você vai ficar gelada.
- Está mais frio para ele - disse a senhora, e chorou novamente.
O som de seus soluços apagou-se nos ouvidos dele. A cama estava quente, e seus olhos pesados de sono. Ele cochilava a todo instante e acabou pegando no sono, quando
um súbito grito histérico da esposa o despertou com um sobressalto.
- A pata! - gritou histericamente. - A pata de macaco! Ele se levantou, alarmado.
- Onde? Onde está? O que houve? Ela correu agitada até ele.
- Eu quero a pata - disse ela calmamente. - Você não a destruiu?
- Está na sala, em cima da prateleira - replicou ele, atônito. - Por quê?
Ela chorou e riu ao mesmo tempo e, debruçando-se, beijou-o no rosto.
- Só tive essa idéia agora - disse ela histericamente. Por que não pensei nisso antes? Por que você não pensou nisso antes?
- Pensar em quê? - perguntou ele.
- Nos outros dois desejos - replicou ela rapidamente. Nós só fizemos um pedido.
- Não foi suficiente? - perguntou ele, irado.
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- Não - gritou ela, triunfante; - ainda vamos fazer um. Desça, apanhe a pata rapidamente, e deseje que o nosso filhoviva novamente.
O homem sentou-se na cama e arrancou as cobertas de cima do corpo trêmulo.
- Meu bom Deus, você está louca! - gritou ele, horrorizado.
- Pegue aquela coisa - disse ela, ofegante -, pegue depressa, e faça o pedido... Ah, meu filho, meu filho!
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela.
- Volte para a cama - disse ele, incerto. - Você não sabe o que está dizendo.
- Nós conseguimos satisfazer o primeiro pedido - disse a senhora, febrilmente - Por que não o segundo?
- Foi uma coincidência - gaguejou o velho.
- Vá buscar a pata e faça o pedido -- gritou a esposa, tremendo de excitação.
O velho virou-se, olhou para ela, e sua voz tremeu.
- Ele já está morto há 10 dias e, além disso, ele... - eu não queria lhe dizer
isso, mas... só consegui reconhecê-lo pela roupa. Se já estava tão horrível
para você ver, imagine agora?
- Traga-o de volta - gritou a senhora, e o arrastou para a porta. - Você acha que tenho medo do filho que criei?
Ele desceu na escuridão, foi tateando até a sala e depois até a lareira. O talismã estava no lugar, e um medo horrível de que o desejo ainda não expresso pudesse
trazer o filho mutilado apossou-se dele, e ficou sem ar ao perceber que perdera a direção da porta. Com a testa fria de suor, ele deu a volta na mesa, tateando,
e foi-se amparando na parede até se achar no corredor com a coisa nociva na mão.
Até o rosto da esposa parecia mudado quando ele entrou no quarto. Estava branco e ansioso, e para seu temor parecia ter um olhar estranho. Ele sentiu medo dela.
- Peça! - gritou ela, com voz forte.
- Isso é loucura - disse ele, com voz trêmula.
- Peça! - repetiu a esposa.
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Ele levantou a mão.
- Eu desejo que meu filho viva novamente.
O talismã caiu no chão, e ele olhou para a coisa com medo. Então afundou numa cadeira, trêmulo, quando a esposa, com olhos ardentes, foi até a janela e levantou
a persiana.
Ficou sentado até ficar arrepiado de frio, olhando ocasionalmente para a figura da velha senhora espiando pela janela. O cotoco da vela, que queimara até a beirada
do castiçal de porcelana, jogava sombras sobre o teto e as paredes, até que, com um bruxulear maior do que os outros, se apagou. O velho, com uma imensa sensação
de alívio pelo fracasso do talismã, voltou para a cama, e um ou dois minutos depois a senhora veio silenciosamente para o seu lado.
Nenhum dos dois disse nada, mas permaneceram deitados em silêncio, ouvindo o tique-taque do relógio. Um degrau rangeu, e um rato correu guinchando através do muro.
A escuridão era opressiva e, depois de ficar deitado por algum tempo, criando coragem, ele pegou a caixa de fósforos e, acendendo um, foi até embaixo para pegar
uma vela.
Nos pés da escada o fósforo se apagou, e ele parou para riscar outro; no mesmo momento ouviu-se uma batida na porta da frente, tão baixa e furtiva que quase não
se fazia ouvir.
Os fósforos caíram-lhe da mão e espalharam-se no corredor. Ele permaneceu imóvel, com a respiração presa até a batida se repetir. Então virou-se e fugiu rapidamente
para o quarto, fechando a porta atrás de si. Uma terceira batida ressoou pela casa.
- O que é isso? - gritou a senhora, levantando-se.
- Um rato - disse o velho com voz trêmula -, um rato. Ele passou por mim na escada.
A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida alta ressoou pela casa.
- É Herbert! - gritou. - É Herbert!
Ela correu até a porta, mas o marido ficou na frente dela e, pegando-a pelo braço, segurou-a com força.
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- O que você vai fazer? - sussurrou ele com voz rouca.
- É meu filho; é Herbert! - gritou ela, debatendo-se mecanicamente. - Eu esqueci que ele estava há 10 quilômetros daqui. Por que você está me segurando? Me solte.
Eu tenho de abrir a porta.
- Pelo amor de Deus não o deixe entrar - gritou o velho, tremendo.
- Você está com medo do próprio filho - gritou ela, debatendo-se. - Me solte. Eu já vou, Herbert; eu já vou.
Ouviu-se mais uma batida, e mais outra. A senhora com um arrancão súbito soltou-se e saiu correndo do quarto. O marido seguiu-a até a escada e chamou-a enquanto
ela corria para baixo. Ele ouviu a corrente chocalhar e a tranca do chão ser puxada lenta e firmemente do lugar. Então a voz da senhora soou, nervosa e ofegante.
- A tranca - gritou ela alto. - Desça que eu não consigo puxar a tranca.
Mas o marido estava de joelhos no chão, procurando a pata desesperadamente. Se pelo menos conseguisse encontrá-la antes que a coisa entrasse. Uma série de batidas
reverberou pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira quando a esposa a colocou no corredor encostada na porta. Ouviu o ranger da tranca quando esta se destravou
lentamente, e no mesmo momento encontrou a pata de macaco, e desesperadamente fez o terceiro e último pedido.
As batidas pararam subitamente, embora ainda ecoassem na casa. Ele ouviu a cadeira ser arrastada de volta, e a porta se abrir. Um vento frio subiu pela escada, e
um gemido alto e demorado de decepção e tristeza da esposa lhe deu coragem para correr até ela e depois até o portão. O lampião da rua que tremulava do outro lado
brilhava numa estrada silenciosa e deserta.
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Donitfâ WsôU
O BROCHE DE ROWENA

Os convites para o jantar de Clementine Beal tinham uma frase curiosa: Leitura da Mente pelo Sr. Willie Bruneau. Como Clementine nunca oferecera nada menos convencional
do que bridge em seus jantares, isto despertou o interesse dos convidados e, quando se soube que Rowena Telford ia ser uma das convidadas, o interesse aumentou.
Todos na cidade conheciam Rowena Telford. Viúva do finado Chandler Telford (na verdade, o último dos três maridos mortos de Rowena), ela era um mito local. Trinta
anos antes, como Ruby Ditzler, ela deixara a cidade como uma jovem viúva alegre e tornara-se famosa na Broadway. Voltara para a cidade há apenas seis meses e fixara
residência na velha mansão dos Ditzler deixada pelo primeiro marido. Aí vivia isolada, raramente vista nas ruas, e, quando vista, com óculos escuros e chapéu, nas
melhores lojas ou cinemas. Todas as anfitriãs da cidade tinham tentado
trazê-la aos salões da sociedade, mas só agora ela aceitara um convite. Clementine estava
deslumbrada. Rowena Telford e Willie Bruneau! O acontecimento seria um sucesso.
Willie Bruneau era um vidente que estava começando a atingir um grau de celebridade ainda local, embora as histórias de suas leituras da mente para uma certa romancista
de sucesso e uma conhecida personalidade de televisão tivessem começado a tornar seu nome mais famoso. Só há pouco tempo ele começara a aceitar convites para leituras
em grupo nas casas dos ricos,
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onde não se recusava a aceitar recompensas monetárias por suas façanhas sobrenaturais, recompensas que, até então, tinham sido bem mais modestas do que o próprio
Willie.
As histórias sobre ele tornaram-se o mexerico da cidade. Todos logo ouviram falar sobre a velha senhora fabulosamente rica de Nova York que o levara ao Havaí por
seis meses por gratidão, já que ele salvara sua vida; ele "vira" o sobrinho dela passando algo nas escadas de sua mansão para deixá-las escorregadias a ponto de
causarem um acidente fatal. Outro parente tentara envenená-la com chocolates; Willie "vira" isto também. Com tais histórias circulando, histórias que algumas beatas
sugeriam ter sido inventadas pelo próprio Willie, seu mito tendia
a crescer.
Infelizmente, a noite de Clementine teve um mau começo. Quando ela anunciou, durante a sobremesa, que o Sr. Bruneau se juntaria a eles mais tarde, Rowena Telford
foi a única na mesa que expressou descontentamento.
- Eu preferia jogar cartas - disse ela categoricamente. Depois de um momento de pânico, Clementine conseguiu
melhorar as coisas. -
- Você vai adorar Willie, minha querida. Todo mundo o adora. Mais tarde, se você quiser, vamos ter uma partida de bridge, só para distrair um pouco. Falando sério,
eu soube que ele é muito bom.
- Esses videntes... ou cartomantes, para simplificar, nunca são bons - retorquiu Rowena com seus modos teatrais mais assoladores. -- Quando muito são apenas pessoas
inteligentes.
- Ah, eu tenho certeza de que você tem razão quanto à maioria deles, querida.
- Já conheci os melhores. São 99% exibicionistas e 1% videntes.
- Ah, mas esse 1 %!
No entanto, Rowena aceitou a situação com afabilidade. Quando Willie Bruneau entrou, ela observou com o olhar de satisfação mais discreto possível a decepção dos
outros convidados. Willie parecia 100% exibicionista. Era baixo e gordo, a pele
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rosada, óculos de armação dourada, olhos brincalhões, uma peruca preta, lustrosa penteada com franja e cachos; usava um pulôver de veludo cor de ameixa, calças de
seda preta e sapatos de couro de cobra. Era, além disso, desembaraçado e brincalhão como os artistas mais experientes.
Entretanto, uma vez passado o choque inicial, tudo isso teve o efeito curioso de afastar e não despertar ceticismo. Os olhos brincalhões e a aparência jovial só
seriam exibidos, tinha-se certeza, por alguém sincero como uma criança. E foi isso que recultou: uma ingenuidade infantil que logo conquistou todo mundo. Ele possuía
uma queda para contar piadas e não ficava nem um pouco intimidado pela elegância do grupo para o qual fora convidado a fim de ler as mentes. Nem ninguém duvidou
de que ele lera realmente para aquelas celebridades, quando ele conseguia contar fofocas picantes que pareciam autênticas sobre elas, falando com uma compaixão irônica
da obsessão estranha que a colunista tinha por velas lilases e revelando, como se isso já fosse de conhecimento público, detalhes do vício de bebida da romancista.
Rowena Telford não foi rude a ponto de se recusar a escutar, mas escutou com o desdém polido e frio do cético. Nem se recusou a juntar-se ao grupo na sessão séria
que se seguiu ao bate-papo preliminar. Willie instruiu a anfitriã quanto à colocação das cadeiras e dos convidados. Apenas um abajur ficou aceso.
Tomando lugar na mesa redonda, Willie tirou os óculos de armação dourada e colocou no nariz um par de óculos estilo Ben Franklin com lentes transparentes e esfumaçadas.
Além do médium, de Clementine Beal e Rowena Telford, o grupo incluía Dolly e Delia Treff, Fred Zinsel. John Carlyle, Paul Campbell e Steven e Penelope St. James.
Willie continuou falando no mesmo tom de voz brincalhão
e então, abruptamente, no meio de uma frase, sua cabeça caiu para trás, ouviu-se realmente um estalo de vértebra, e a voz se tornou mais aguda.
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Ninguém podia dizer que ele não era bom - ou pelo menos muito inteligente. Em vez das generalidades dos videntes comuns de salão, Willie falava com uma especificidade
e uma imparcialidade que fascinaram a audiência.
- Alguém nesta mesa está tratando de um divórcio. Não continue com isso, querida. Aquele homem está morrendo. Ele está todo congestionado de catarro, não está? Pode-se
dizer até que já está morto. Você sabe o que eu quero dizer, querida. Não me culpe. Não é minha culpa. Eu só digo o que vejo. A jangada está se afastando da margem.
Morte, minha querida, significa morte. Agora, eu não quero que você pense que sou mercenário, mas você ficaria bem melhor de vida se ficasse com ele até o fim. Há
muitos bens em jogo. Além disso, você vai ser um grande conforto para ele nas últimas seis semanas. Ele está louco de ciúmes e sabe sobre P. Mas você não está em
perigo, querida. Agora, alguém nesta mesa gosta muito de cavalos. Mas seja lá o que fizer, não vá cavalgar com um homem chamado Gene...
Ele não parou de falar uma só vez, não gaguejou, não deu a impressão de que estava jrepetindo alguma coisa ensaiada. Era tudo cortês, fluente, confidencial e, assim,
o efeito era mais perturbador. Quando as luzes se acenderam, ninguém teve coragem de olhar para o vizinho nos primeiros momentos.
Foi Rowena Telford que quebrou o silêncio.
- Agora podemos jogar cartas?
Clementine deu um suspiro.
- Esplêndida idéia, querida. Willie, não sei como lhe agradecer. Você foi maravilhoso. Mas também, por que devo agradecer? Estou certa de que alguns dos seus comentários
foram voltados para mim... Não, não me diga! Agora, eu sei que você não cobra nada para fazer uma demonstração do seu talento, mas não vai fazer objeção se nós expressarmos
a nossa satisfação com...
Foi interrompida por um grito de Rowena.
- Meu broche! Ele desapareceu!
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Fez-se um silêncio mortal. Todos olharam para ela. Ela corria as mãos por cima das roupas. Todos tinham reparado no broche, é claro; alguns o tinham elogiado: uma
grinalda de diamantes em volta de um enorme rubi. Fizeram uma busca.
- Quando você o viu pela última vez? - perguntou-lhe Clementine.
- Eu não sei. Estava aqui simplesmente. Não me preocupei com ele.
Delia Treff disse:
- Eu tenho certeza que você estava com ele quando viemos da sala de jantar.
- Então deve estar dentro das roupas, ou perto de sua cadeira. - A voz de Clementine tinha um tom de alarme.
A busca se concentrou naquele lugar, e novamente Rowena procurou em suas roupas e seu corpo. Nenhum sinal do broche.
A essa altura as outras pessoas estavam visivelmente inquietas, especialmente os dois homens que se tinham sentado ao lado de Rowena durante a sessão.
Quando se constatou que não havia sinal do broche, Rowena ficou indiferente.
- Não se preocupem, ele vai aparecer. Tem que estar aqui.
Clementine estava na pior situação possível para uma anfitriã: se esquecesse o assunto, estaria fazendo uma indelicadeza com a convidada de honra, e se insistisse
numa busca mais completa, ofenderia os outros convidados. A pobre mulher ficou arrasada.
- É um broche muito caro - disse Rowena - mas não é motivo para estragar a sua noite. Por favor não se incomode. - Lançou um olhar ambíguo para a anfitriã. - Foi
uma noite agradável, querida. Mas agora eu preciso ir.
Clementine olhou desanimada de Rowena para os outros convidados. Willie Bruneau, parecendo exausto com o esforço da leitura, tomara um copo de licor enquanto os
outros faziam a busca.
Foi o advogado, Carlyle, que disse finalmente o que todos eles sabiam que devia ser dito.
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- Perdoem-me. Nós todos sabemos a situação em que está a nossa anfitriã por causa desse ligeiro contratempo. Eu, por
minha vez, insisto em ser revistado antes de deixar esta casa.
Rowena replicou friamente:
-- Não diga um absurdo desses. Eu não estou sugerindo que alguém roubou o meu broche. Ele está aqui e vai ser encontrado. Vamos esquecer o assunto.
Carlyle meneou a cabeça.
- Eu prefiro não sair da casa sob suspeita. Se algum dos senhores puder vir comigo até a outra sala, eu insisto em ser revistado.
- E eu também. - A voz de Willie Bruneau ainda estava fraca de cansaço, mas cheia de humor, como se tudo não passasse de uma grande piada. - Eu sou o único estranho
entre vocês.
- Bem, eu não peguei o broche - disse Dolly Treff, resplandecente com a própria coleção de jóias. - Eu o achei divino, mas não sou ladra. Eu concordo com esses cavalheiros,
porém. Você não concorda, Delia? O mais sensato é sermos revistados antes de sair.
Agora todos pediam para ser revistados. Rowena parecia muito aborrecida.
- Eu não vou permitir isso. Eu sei que nenhum de vocês é ladrão.
Carlyle falou com deferência mas determinação:
- Por favor, Sra. Telford. Ninguém faz objeção a ser revistado. É a única maneira de esclarecermos tudo. É claro que, dessa maneira, todos nós temos que nos submeter
à revista. Inclusive a senhora.
Rowena lançou-lhe um olhar fulminante.
- Como se eu fosse roubar o meu próprio broche!
- A senhora permite que a revistemos juntamente conosco?
- Não!
A raiva de Rowena se manifestou subitamente, porém com violência. Os outros olharam para ela cada vez mais desconfiados.
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- Mas a senhora deve perceber o que isto implica.
- Implica, meu caro, que eu não tenho a consciência pesada absolutamente - replicou Rowena, furiosa.
- Pelo contrário. Está claro, Sra. Telford, que não acredita no dom do Sr. Bruneau. Muito bem. Eu pessoalmente não sou muito crente. Mas gosto de ter a mente aberta.
E não me oponho absolutamente a tal entretenimento - conforme fui entretido. Mas o que a senhora está obviamente tentando instigar em nós é a idéia de que o Sr.
Bruneau, além de charlatão, é um ladrão também - ou o cúmplice de algum. O Sr. Bruneau concordou em ser revistado, assim como todas as outras pessoas, menos a
senhora. Que outra conclusão podemos tirar senão a de que a senhora forjou um roubo para impugnar o caráter deste homem?
Isto enfureceu Rowena ainda mais.
-- O senhor está falando bobagens e sabe disso. Algum de vocês aqui nesta sala precisa de um bode expiatório. Querem que eu me candidate ao papel. É claro que devem
perceber que se nós todos formos revistados e nenhum de nós tiver o broche, só ia ficar provado que alguém é um ladrão muito esperto. Não percebem que a pessoa que
o roubou ia esperar ser revistada? Estou liberando vocês todos. Nenhum aplauso? - Virou-se para Clementine, que parecia prestes a gritar no caos de sua noite. -
Mil desculpas, querida. Eu nunca devia ter usado aquele broche. Boa noite. - Rowena foi embora.
Todos suspiraram de alívio com a saída dela.
- Que estratagema mais mesquinho! - falou Delia Treff em voz alta. - Só porque ela não acreditava no Sr. Bruneau, não precisava fazê-lo passar por ladrão.
Em essência foram esses os comentários, mas é claro que Rowena Telford era um mito de excentricidade. O que mais se podia esperar dela?
- Ela trabalhou no teatro muitos anos - disse Dolly. Na certa odeia ficar em segundo plano.
Do sofá onde estava recostado, tomando outro copo de licor, Willie Bruneau interveio.
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- Vocês estão sendo excessivamente amáveis comigo e pouco amáveis com a pobre senhora.
Todos eles olharam para ele.
- Se eu estivesse em seu lugar - disse Carlyle - não creio que seria tão compreensivo.
- Os motivos dela são inteiramente verdadeiros. Vocês a interpretaram mal.
Clementine ficou perplexa.
- Está dizendo que ela não roubou o broche?
- Precisamente.
Agora a consternação era geral.
- Então o senhor quer dizer que um de nós deu sumiço realmente nele?
- Absolutamente. Ele está aqui na sala.
- Impossível. A sala já foi revistada.
- Não completamente, Sr. Carlyle. Por favor faça a gentileza de tirar aquelas flores do vaso. Eu creio que vai encontrar o broche no fundo dele. Está bem no fundo.
É melhor enrolar a manga.
Carlyle fez o que o outro disse, enfiou a mão no vaso até o fundo e pescou o broche. A descoberta foi recebida com surpresa.
- Mas como é que o senhor sabia? - gritou Dolly.
- Porque eu o vi tirar o broche do vestido dela e escondê-lo ali.
Novamente, tensão.
- Viu quem?
- O segundo marido dela. - Bruneau sorriu. - O espírito do segundo marido, compreende. Ele sempre odiou aquele broche porque Ditzler, o primeiro marido, o tinha
dado a ela. Ela gostava muito do broche e insistia em usá-lo. Ele sempre o tirava e escondia dela. Eu tenho certeza de que ela sabia o que tinha acontecido com o
broche aqui esta noite, embora nunca fosse capaz de admitir. Ela própria é profundamente mediúnica, embora não admita. Isso a assusta. Ela não consegue enfrentar
nada... sobrenatural.
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Clementine ficou arrasada.
- Pobre Rowena. Ela acha que nós todos acreditamos que fez isso deliberadamente, para desacreditá-lo. O senhor se importa se eu sair imediatamente e o levar para
ela, com sinceras desculpas de todos nós?
- Por favor deixe que eu faça isso - disse Willie. - Eu talvez possa ajudá-la. Isto pode mostrar-lhe o caminho.
Assim Willie Bruneau e Rowena Telford tornaram-se o herói e a heroína da noite. Teriam brindado ao sucesso se Rowena tivesse alguma coisa adequada em casa para oferecer
ao médium, que a encontrou sentada no que fora o pequeno quarto da empregada no terceiro andar da mansão, tomando um refrigerante e comendo um sanduíche de queijo.
- Quanto eles lhe deram, Willie, querido?
- 85 dólares.
Ela estendeu a mão e ele contou a parte dela.
- Vai render mais da próxima vez - ela lhe prometeu.
- Eu posso estar quebrada, benzinho, mas tenho as duas coisas que você mais precisa neste momento: contatos e carisma. E enquanto ninguém souber que estou quebrada,
podemos ganhar dinheiro à custa deles.
Ele sorriu modestamente.
- Você não vai ficar quebrada por muito tempo.
A autoconfiança dele, aquele ar de tranqüilidade mística, afastaram qualquer dúvida que ela ainda pudesse ter quanto ao benefício mútuo da sociedade deles. Ela tinha
reparado naquela aparência dele na primeira vez em que se viram, acidentalmente, no saguão do terminal aéreo em Newark.
Ele tirou o broche do bolso.
- Eu não consigo perceber a diferença.
- Eu consigo. - Ela tirou o broche verdadeiro da bolsa.
- Uma quantidade de jóias e uma casa velha. Três casamentos, e isso é tudo que me resta deles. Onde você o escondeu?
- No vaso de flores.
- Foi a primeira vez na minha vida que realmente senti prazer em representar. E pretendo continuar representando,
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benzinho. Estou cansada de viver nesse quartinho e comer sanduíches. Não é o meu estilo de vida. - Ficou pensativa. - O tal Carlyle é simpático e inteligente, sabia
disso? Feio, mas rico. Willie, antes de você ir...
- Não.
- Por favor.
- De jeito nenhum. Ela suspirou.
- Será que eles engoliram mesmo a história do espírito do meu segundo marido escondendo o broche?
- Se não engoliram, foram suficientemente educados para rir. - Ele olhou para ela como se, apesar de toda a sofisticação, ainda fosse uma criança. - Não importa
realmente se acreditam, ou não. Para um vidente, minha querida, tudo o que conta é um aspecto pequeno mas essencial da natureza humana.
- E qual é?
- Não existe nenhum cético que não queira acreditar. Rowena não tinha certeza se Willie era 90% exibicionista
e 10% psíquico, ou o contrário. Talvez ele próprio não soubesse até que ponto sua capacidade de profetizar era genuína.
Ele se levantou para ir embora. Ela pôs a mão no braço dele.
- Por favor. Você prometeu.
- Querida, agora não. Estou exausto. Você não imagina como isso me desgasta.
- Mas eu tenho que saber, Willie. Não vou pregar o olho esta noite.
Contrariado, ele se deixou cair na cadeira.
- Ah, muito bem, Rowena, se você vai me aporrinhar. Mas eu não prometo nada. Quando estou cansado, não sei nada. Logo, não me culpe.
Ela juntou as mãos como uma garotinha que recebera a promessa de ver Papai Noel.
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- Eu quero saber se vou vê-lo novamente. Se nós vamos nos tornar muito bons amigos. O Sr. John Carlyle e eu.
Willie tentou relaxar, jogou a cabeça para trás até ouvir o pequeno estalo no pescoço. O tom de voz mudou. Começou a falar.
Rowena escutou.
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Rübêrt Atín Bliür

FAT JOW E AS MANIFESTAÇÕES

Um espasmo de terror arrancou-o das profundezas do sono. Durante algumas batidas de coração sufocantes ele não ousou abrir os olhos, temendo que esta sensação de
terra úmida envolvente fosse realidade e não ilusão. Novamente? Esta não era a primeira vez nas últimas semanas.
Veio-lhe à cabeça a história de Ng Chak, dos outros desconhecidos que supostamente dormiam debaixo do chão do porão da mansão Baxter, agora estava convertida em
apartamentos.
À custa de muita força de vontade Fat Jow abriu os olhos, descobrindo com um imenso suspiro de alívio que a noite parecia normal. As paredes espelhadas do antigo
salão de festas refletiam o brilho reconfortante do lampião da rua lá fora. Sem sono, ele se sentou na beira do sofá.
Do escuro quarto de dormir ao fundo veio um chorinho quando o menino Hsiang Yuen se agitou no sono. Fat Jow fizera essa arrumação desde a chegada do sobrinho-neto;
um menino precisa de um quarto.
Caminhou na ponta dos pés até a entrada do quarto para se certificar de que a respiração do menino estava normal. Um sonho, talvez, que tivesse coincidido com o
seu próprio despertar era algo que o intrigava. Será que ele também sonhara? Seu sono fora agitado. Voltou para se sentar no sofá, sorriu ligeiramente. Temores e
incertezas ficam desproporcionais nas horas noturnas
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silenciosas, porém, a sensação inquietante não se dispersara por completo.
Um tilintar dirigiu seus olhos para o teto, onde o lustre de cristal estava tremendo visivelmente, seus pingentes em formato de lágrimas, vivos com raios de luz
refletida. Não era nenhum tremor de terra, tão comum durante o ano em São Francisco, pois apenas o lustre se movia - o quarto não.
O tilintar desapareceu, as luzes dançantes pararam; então um súbito barulho de vidro quebrado na sala o fez levantar-se. Sua cadeira de balanço de couro caíra, ao
lado dela uma mesa e um abajur de louça quebrado. A porta do apartamento, que ele trancara antes de se deitar, escancarou-se como se tivesse levado um pontapé violento,
mas ele não viu ninguém na penumbra do hall lá fora.
Um estrondo correspondente vindo através do hall, uma série de barulhos de vidro quebrado e gritos vindos do apartamento da senhoria despertaram Fat Jow de seu transe.
Rapidamente ele vestiu o roupão, calçou os chinelos e foi até o hall. No corredor escuro ecoaram as vozes de inquilinos alarmados vindas dos andares de cima.
Uma voz de homem sobressaiu-se.
- Quem gritou?
Adah Baxter saiu correndo da escuridão de seu apartamento, como um espectro na camisola branca, os cabelos brancos soltos e esvoaçantes. Sem a costumeira dignidade
real, ela se agarrou muda a Fat Jow, um pouco mais baixo do que ela. De seu apartamento ouviu-se um último despedaçar de vidros - e nada mais.
- Um ligeiro tremor - sugeriu Fat Jow, em explicação às vozes de cima. - Acho que já passou.
Adah Baxter sussurrou para ele:
- Você e eu sabemos que não foi nenhum tremor!
Uma mulher gritou para baixo:
- Precisa de ajuda, Srta. Baxter?
Ela olhou assustada para o seu apartamento.
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- Não... não foi nada - disse com a voz trêmula. -- Eu fiquei... assustada, só isso. - Em voz baixa, ela acrescentou para Fat Jow: - Eu não posso voltar
lá para dentro. Posso entrar com você um pouco?
Desanimadamente ele acenou para a porta de seu apartamento.
- O sono vai custar a fechar estes olhos - disse ele. Entrou atrás dela e acendeu o lustre.
Adah Baxter parou ao ver os móveis revirados.
- Passou... passou por aqui, também?
- Tive a impressão de que começou aqui - disse ele, repondo no lugar a mesa e a cadeira de balanço e afastando os cacos do abajur para um lado. - Depois passou para
o seu apartamento... através de duas portas trancadas.
- Ah, meu Deus! -- Ela se jogou na cadeira de balanço.
- O menino! Você viu como ele está? O pobrezinho deve estar apavorado.
Ele ficou escutando na porta do quarto, depois a fechou sem fazer barulho...
- Nada perturba Hsiang Yuen - disse ele com orgulho indulgente, explorando a imaginação para definir um tipo de virtude. Tirou o cobertor do sofá e colocou-o sobre
os ombros dela.
- Não foi o que eu pensei - disse ela desoladamente.
- O que você pensou?
- Que era aquela gente da imobiliária, tentando me assustar para vender a casa. Eu queria que fosse... prefiro ficar furiosa do que apavorada... mas não foi
isso, foi?
- É difícil - disse Fat Jow.
Ela abraçou os ombros e se balançou.
- Eu acho que estava esperando algo assim.
Fat Jow sentou-se no sofá, franziu a testa, olhando para o chão.
- Você acha que sabe?
- Bem, você não acha?
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- Eu tento acreditar que esse assunto dos seus inquilinos anteriores é um mal-entendido, mas acho difícil. Se eles estão no porão...
- Mas eu lhe disse... - Adah Baxter olhou pela porta aberta para o hall. - Tinha vontade de saber qual deles foi refletiu.
Ele perguntou, inquieto:
- Quantos eram?
- Pelo amor de Deus, quem pode saber? Eles voltam depois de sessenta e tantos anos. A minha memória já não é como antes.
- Eles eram todos... orientais?
- Ah, não. Só os dois últimos... ou foram três? Eu tive tanto azar com os ocidentais que achei que os orientais seriam mais confiáveis, se você entende o que eu
quero dizer. Mas não deu certo.
- Não se pode procurar traços de caráter - comentou Fat Jow - baseando-se na nacionalidade das pessoas. Todas as nações produzem seus poetas... e seus loucos.
Além dos barulhos, Srta. Baxter, sentiu por acaso um grande medo?
- Senti, depois que os barulhos começaram.
- Houve outras manifestações antes dessas?
- Não! - Era uma idéia nova. - Não é estranho que tenham esperado todo esse tempo?
- Talvez a gente escolha a resposta óbvia porque é mais fácil - disse ele com uma esperança remota.
- Mas como podemos saber? - lamentou-se ela. - Quando vai acontecer novamente?
- Seja lá o que for, não parecia malévolo. Não nos causou qualquer mal. - Ele não ia perturbá-la ainda mais, contando-lhe sobre seus outros sonos interrompidos.
- Vamos ver qual foi o prejuízo causado em seu apartamento.
Com hesitação, ela o acompanhou pelo hall, tornando-se mais confiante quando ele acendeu as luzes.
O retrato a óleo do pai dela estava caído de frente sobre o tapete, o samovar de cobre no qual ela preparava seu chá
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estava virado ao lado do retrato entre os atiçadores de fogo espalhados. Perto da porta do quarto um tapete solto se enrolara, uma cadeira pequena estava caída.
No quarto
eles encontraram a janela quebrada para o lado de fora, os fragmentos na jardineira de flores abaixo.
Dar aos inquilinos enterrados uma acomodação mais adequada só ia chamar a atenção do governo e, apesar das tendências mortíferas da senhoria, Fat Jow gostava de
Adah Baxter, logo não queria que se prejudicasse. A Andarilha, passeando altivamente pela cidade com um chapéu à Gainsborough e vestido preto longo, devia ser preservada
cuidadosamente como qualquer marco histórico.
- Eu gostaria de sua permissão - disse Fat Jow - para consultar um especialista nesses assuntos.
- Se for para melhorar as coisas - disse ela fervorosamente - vá em frente.
Ele se dirigiu para a porta.
- Você quer que eu fique?
- Vou ficar bem, obrigada. Fat Jow despediu-se. -
O Templo Budista no Pacífico foi construído com contribuições de dinheiro, de material e de trabalho, não só dos budistas mas também de pessoas de todos os credos
e sem credo nenhum por toda a área da baía. Suas linhas austeramente funcionais demonstram a nova tendência que o transplante da Ásia para a América transmitiu à
tradição budista.
Fat Jow procurou através das salas periféricas do templo o jovem amigo, o noviço, e o encontrou na biblioteca estudando. Chamando sua atenção da porta, acenou para
que viesse ao corredor.
- Se você ainda não almoçou - disse Fat Jow -, almoce comigo.
Kwan Ho esticou os músculos entorpecidos.
- Conhecendo você, eu diria que por trás disso há mais do que hospitalidade.
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- Você é a única pessoa que conheço que estuda parapsícologia com seriedade.
- Finalmente! - riu Kwan Ho. - Meus dois semestres na Universidade Duke têm uma compensação, um almoço grátis.
Durante o almoço no Dragão Errante, na atmosfera serena de um restaurante na Grand Avenue, Fat Jow relatou as ocorrências da noite anterior.
Kwan Ho interrompeu:
- É a segunda vez que você menciona inquilinos enterrados. O simbolismo me escapa.
- Não é nenhum simbolismo. - Fat Jow olhou à sua volta, baixou o tom de voz. - Você pode guardar segredo disso?
- Se você quer assim.
- Existem alguns inquilinos enterrados no porão... eu acho. Nunca tive muita certeza, nem quero ter. No entanto, a gente deve dar crédito à Srta. Baxter
no tocante à seleção. Ela escolhe para tal honra apenas aqueles que demonstram estar atrás de seu tesouro de dinheiro escondido. E ela é relativamente humana;
sua poção tem um suave efeito soporífico.
Esquecendo-se de comer, Kwan Ho olhou para ele.
- Você fala sério?
- Falo. A Andarilha é uma pessoa curiosa.
- Mas a polícia...
- Ela prontamente relata cada desaparecimento à polícia, quando ele ocorre, mas sua reputação nostálgica é tamanha que eles não acreditam nela. Acham que é tudo
coisa da cabeça dela, como talvez seja realmente, já que os oportunistas desaparecidos que tentaram prejudicá-la não são do tipo de ter família nem amigos para
procurá-los,
- Mas você não acha que é coisa só da cabeça dela, acha?
- Não. Ela pode ser uma assassina comum, mas Adah Baxter é tão racional quanto você ou eu.
Kwan Ho resmungou:
- Cada um com o seu hobby.
- Se o que estiver acontecendo for uma infestação de espíritos, você vai ter condições de bani-los?
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Kwan Ho coçou a cabeça.
- Hoje em dia, há uma tendência cada vez menor de procurar o oculto por trás de fenômenos como esse. Geralmente acabam sendo tábuas soltas, canos chocalhando, ou
ratos.
- Eu tenho certeza de que podemos eliminar esses.
- Eu também. Quando você teve uma oportunidade de olhar para as coisas à luz do dia, teve alguma idéia?
Fat Jow anuiu lentamente.
- Duas possibilidades, nenhuma das quais satisfaz: uma, porque nenhum corretor imobiliário inescrupuloso poderia ter produzido esses efeitos do lado de
fora da casa; e a outra, porque eu reluto em aceitar uma explicação sobrenatural.
Kwan Ho fez uma careta.
- Sobrenatural tornou-se uma palavra ruim. Hoje é anormal, e paranormal talvez seja a usada amanhã. Se os fenômenos se ajustam a padrões ou leis próprias, deviam
ocorrer na natureza, não além dela. Francamente, apenas uma parte do que aconteceu, aquela fria sensação de terror, poderia ser atribuída indiretamente a seus amigos
do porão. Mas objetos sólidos móveis é outra coisa, testada experimentalmente no laboratório; telecinesia, usada por um agente que está bem vivo. Antes de haver
estudos formais no campo, isso era chamado de poltergeist. Eu queria examinar o lugar antes de sugerir qualquer teoria, porém.
- Era isso - disse Fat Jow, sorrindo - exatamente isso que eu esperava de você.
De manhã cedo no sábado seguinte, enquanto Adah Baxter estava fora de casa, em sua caminhada diária através de North Beach e Chinatown, Kwan Ho veio. Preferindo
trabalhar sem pessoas ou conversas distraindo-o, ele examinou a casa e o terreno sozinho, não deixando passar nada.
Depois de quase uma hora, voltou para a companhia de Fat Jow em seu apartamento. Entrou com indiferença e ficou em pé perto da porta fechada. Sua maneira e sua voz
estavam admirados.
Contei 16 remendos de cimento no chão daquele porão. Você acha... - Não fez menção de terminar a frase.
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Fat Jow recostou-se na cadeira de balanço e observou o lustre.
- Quanto menos eu souber com certeza, menos fico encrencado. O que você tem a dizer?
- Eu não sou um verdadeiro especialista em percepção extra-sensorial, compreenda, mas posso detectar um sinal aqui e ali, se me decidir fazê-lo. - Kwan Ho hesitou,
esfregou a nuca. Não gosto de lhe causar mais preocupações, mas os sinais mais fortes que encontrei estão bem aqui neste quarto.
Surpreso e pouco à vontade, Fat Jow perguntou:
- E não no porão?
- Nada por lá. Como leigo, você fica condicionado por uma longa herança de superstição a atribuir poderes aos restos dos mortos. Em vez disso, os efeitos são sentidos
na cena da morte em si. O acontecimento deixa sua marca no próprio ambiente, como se se entranhasse na madeira.
Fat Jow olhou em volta inquieto.
- Então a mudança dos restos mortais não adiantaria nada?
- Provavelmente não. A única maneira de se livrar dos sinais é destruir o prédio.
Fat Jow não gostou do que estava ouvindo.
- Então temos de viver com esses sinais?
Kwan Ho caminhou lentamente pela sala, parando vez por outra como se escutasse.
- Existem de fato dois tipos de fenômenos aqui, como um grupo de sinais duplo, um ampliando o outro, combinando forças num excelente show. Os efeitos residuais
de um acontecimento passado são limitados; só conseguem criar um estado de espírito, ou uma vaga ilusão, e aí eles param; mas alguma coisa mais os está influenciando,
expondo-os. - Parou no meio da sala, com as mãos nos bolsos das calças. - O nosso conhecimento das forças envolvidas é superficial, mas a telecinesia geralmente
se relaciona a uma criança perturbada fustigando o mundo ofensivo por meio do subconsciente, enquanto dorme.
Fat Jow empertigou-se na cadeira, fitando o rapaz intensamente.
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- Você sabia sobre a criança?
- Você não disse que havia uma criança.
- Meu sobrinho-neto da China mora comigo. - Fat Jow foi até a janela para olhar para um terreno baldio na esquina, onde as crianças da vizinhança brincavam. - Os
pais dele estão mortos, e os comunistas o entregaram a mim.
Kwan Ho ergueu os braços.
- Está explicado! Por que você não disse isso? Se há uma pessoa que tem uma razão para estar preocupado é
ele.
Fat Jow virou-se.
- Hsiang Yuen é uma criança excelente, obediente e educada.
- Essas são as piores; ele está escondendo alguma coisa. Você tem um poltergeist chinês nas mãos. É melhor descobrir o que está perturbando o garoto, antes que ele
ponha o teto abaixo à sua volta. Ele poderia fazer isso, você sabe.
- Você não pode descobrir isso?
- Você é mais chegado a ele. Eu vim diagnosticar alguns fenômenos, não psicanalisar o menino que os está causando. Se você acha que está além das suas possibilidades,
leve-o a um médico.
Fat Jow disse friamente:
- Ele não tem nenhuma falha mental.
- Eu não disse que tinha. Mas, antes que isso acabe, talvez você precise de ajuda profissional.
- Como é que alguém tão pequeno - perguntou Fat Jow tristemente - pode ter problemas que não sejam pequenos?
- Pequenos? Arrancado da única terra que ele conhece, tentando adaptar-se a uma sociedade radicalmente diferente, foi muita coisa para ele engolir de uma só vez.
- Mas ele se adaptou depressa e muito bem. Ele brinca com os outros, vai ao jardim de infância...
- Arregimentação! - disse Kwan Ho, estalando os dedos.
- O que você esperava? Naturalmente isso o faz lembrar a vida na China Vermelha, e não se amolda ao resto de seu conceito da América.
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- A sua lógica pretende que a juventude tenha profundidade. As feridas da infância podem atingir profundamente, mas se curam com rapidez e logo são esquecidas. Eu
procuraria causas mais simples e imediatas.
Kwan Ho deu de ombros e se virou para sair.
- Boa sorte! Você tem tempo para fazer isso.
Sozinho novamente, Fat Jow voltou para o aconchego de sua cadeira de balanço e se olhou numa parede espelhada.
Hsiang Yuen adaptara-se prontamente e com satisfação, pensou Fat Jow, ao seu novo ambiente. Fat Jow, preocupado com o fato de o menino se sentir restrito pelos hábitos
conservadores de um velho, não seguira o excelente conselho da Sra. Yick, a assistente social do centro comunitário da vizinhança, e o mandara para o jardim de infância?
Ela falou com experiência de grupos homogêneos e níveis mentais paralelos, de brincadeiras criativas e auto-expressão, de terapia de grupo e desenvolvimento psicológico
saudável. Este era um novo mundo tanto para Fat Jow quanto para Hsiang Yuen... e, às vezes, um tanto assustador.
Como ele conseguira chegar à idade adulta sem nenhum conhecimento desses valores? Preparar uma criança para ocupar seu lugar na sociedade moderna parecia uma grande
responsabilidade.
Quando Hsiang Yuen voltou da brincadeira, Fat Jow chamou-o ao seu lado. O menino veio solenemente e em silêncio. Ele quase não sorria, pois seus poucos anos de vida
tinham sido tristes. Seu pai, um capitão do Exército Vermelho, fora morto por antimaoístas nas ruas de Cantão; sua mãe, um membro subalterno do Partido, morrera
de doença em um ano. Só e apreensivo, ele atravessara o Pacífico e fora para a terra do inimigo imperialista yankee, para viver com o tio-avô que nunca havia visto.
Ele ficou diante de Fat Jow, com as mãos cruzadas na cintura, os olhos voltados para cima, para o lustre de cristal.
- Chega aqui mais perto - disse Fat Jow, estendendo a mão.
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Timidamente Hsiang Yuen pegou na mão dele, subiu em seu colo, e se recostou no velho tio. Fat Jow abraçou seus pequenos ombros com delicadeza.
- Você gosta de morar aqui comigo?
- Gosto, tio. - Os olhos do menino permaneciam no lustre. - Ele também brilha de noite, quando as luzes se apagam?
Fat Jow suspirou. Paciência... a atenção das crianças é dispersiva, muitas vezes etérea, mas segue seu próprio raciocínio.
- Um pouco - respondeu ele -, mas à noite só existe a luz da rua para ele refletir. Talvez haja alguma coisa de que você não goste? Alguma coisa que você queira
mudar?
Depois de pensar um pouco, Hsiang Yuen desviou os olhos do lustre para a porta do quarto. - Não, tio.
- Eu tenho certeza de que existe alguma coisa. É o jardim de infância?
O menino refletiu, lentamente formou uma opinião:
- Eu não gosto da Sra. Yick - disse ele tentativamente.
- Bobagem. A Sra. Yick é amável e inteligente, e sabe o que é melhor para as crianças que estão prestes a entrar para o primário. - Não podia confessar que também
ele não gostava muito da Sra. Yick.
Num tom de súplica, o rostinho redondo virou-se para ele ansiosamente:
- Tio, no começo você me levava com você pra loja de ervas. Por que agora você me manda embora?
- Eu não mando você embora... - começou Fat Jow, mas suas palavras morreram. Será que Kwan Ho estava certo?
- Você vai passar muitos anos na escola - argumentou. - É melhor saber como é.
Hsiang Yuen olhou para ele com um ar de censura, pulou de seu colo.
- Eu preferia a loja de ervas - resmungou, caminhando com pés arrastados para o quarto.
Fat Jow deixou o menino acompanhá-lo à loja de ervas na segunda-feira. Deu algumas tarefas pequenas a ele, viu-o reagir
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com dedicação profissional. Hsiang Yuen ouviu as conversas, observou os dedos ágeis de Fat Jow em suas diversas funções. No final do dia, Fat Jow sentiu que estava
certo, que os jovens assimilam interesse e aprendem com os velhos. Não era esta a opção do próprio menino?
Como era de se esperar, a Sra. Yick apareceu no final da tarde de quarta-feira quando estavam prestes a fechar a loja. Da entrada ela observou a cena com desaprovação.
Era tão alta e pesada quanto Fat Jow, seu olhar autoritário fortalecido por óculos de aro escuro.
- O menino não está doente - disse ela. - O senhor o está deixando faltar ao colégio deliberadamente.
- É o desejo dele - disse Fat Jow. - Ele se sente mais feliz aqui. Não posso negar-lhe esse desejo.
- O senhor está negando muito mais, satisfazendo o capricho dele, privando-o do ambiente escolar. Quando ele tiver de começar a estudar, vai ser mais difícil, pode
ter certeza.
Fat Jow sacudiu a cabeça, sabendo que era inútil explicar seu verdadeiro motivo a alguém como a Sra. Yick. Replicou, zangado:
- Eu sei do que ele gosta e do que ele não gosta.
- É melhor para ele passar os dias no meio de pessoas da própria geração - insistiu a Sra. Yick - e não aqui, em meio a um ofício primitivo, obsoleto.
Ele retrucou, irado:
- O que é velho não é para ser descartado simplesmente porque é velho; possui muita importância para o mundo de hoje.
- Ele acenou para a loja. - Se isso fosse um restaurante ou uma lavanderia, sua objeção seria tão forte? Por que tocou no assunto da minha profissão? Muitas crianças
sino-americanas são criadas nos estabelecimensos comerciais dos pais.
- Nós estamos no Século XX. A feitiçaria e o xamanismo estão desaparecendo da sociedade civilizada, mas custam a morrer.
Fat Jow empertigou-se.
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- A medicina chinesa tradicional é uma arte antiga e honorável, que requer longos anos de estudo e técnicas operatórias tão delicadas quanto as de qualquer cirurgião.
A Sra. Yick cruzou os braços gordos à sua maneira obstinada.
- O Ministério da Saúde podia afastá-lo desse negócio poi receitar drogas sem licença.
Ele levantou o dedo.
- Ah, já que a senhora mencionou este Ministério... ele se dirigiu para o telefone de parede - permita que eu ligue para o Centro Médico da Universidade da Califórnia,
onde um famoso membro da Faculdade...
- Espere - disse ela, com um misto de incerteza e curiosidade. - O que o senhor tem a ver com eles? Eu pensei que não tivesse nada a ver com eles.
Ele se virou.
- Eu tive a honra de trabalhar com eles. Quando os tratamentos convencionais não deram resultado, como no caso
de artrite avançada, nas pessoas idosas, meu amigo me consultou.
Ela sussurrou:
- Ele... consultou o senhor?
- Muitos médicos zombam, como a senhora; mas outros, como este homem, que é uma figura de prestígio nacional no campo da cirurgia ortopédica, encaram com interesse
científico a medicina tradicional chinesa. Eles não conseguem fazer menos que os comunistas chineses. Estas pessoas mais pragmáticas admitem e sustentam isso.
- E o senhor conseguiu ajudar?
- Por duas vezes ele aconselhou a acupuntura, e os pacientes reagiram favoravelmente.
Ela estremeceu.
- Enfiar agulhas nas pessoas! Isso me parece uma coisa bárbara!
- A dor é muito pequena. As agulhas são colocadas com um cuidado meticuloso, para evitar áreas sensoriais. É uma
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ciência exata, Sra. Yick. Uma criança pode ter escolhas piores em relação a uma carreira.
- Eu não sei o que dizer - disse a Sra. Yick, ligeiramente intimidada."- Compreendo muito mais agora do que antes. -- Sua voz recuperou o tom decidido. - Mas ainda
acho que Hsiang Yuen precisa de um ambiente escolar.
Fat Jow olhou para Hsiang Yuen, um ouvinte atento.
- É sobre a sua vida que estamos tirando a sorte com tanta indiferença. Você se sentiria melhor indo para a escola da Sra. Yick se passasse parte da semana aqui
comigo?
Hsiang Yuen iluminou-se, e um princípio de sorriso ensaiou-se nos cantos de sua boca.
- Eu acho que ia gostar disso - disse ele.
- É um compromisso? - perguntou Fat Jow à Sra. Yick.
- Um compromisso - disse ela, sorrindo agora.
A Sra. Yick então os levou até a casa de carro através do tráfego noturno, passando por Nob Hill. A quarta-feira se passara, e o menino teve sua meia semana na loja
de ervas; apareceria no jardim de infância de manhã.
Fat Jow experimentou uma sensação relaxante de dever cumprido - e as noites ficaram serenas. Depois de passadas duas semanas sem incidentes, ele começou a achar
que adivinhara o problema de Hsiang Yuen - se, de fato, aquela tinha sido a causa das manifestações. Não precisara de ajuda profissional.
Estavam praticamente na terceira semana quando Fat Jow acordou tremendo, com um frio no peito e nos ombros. Era um frio simplesmente físico, porque ele se descobrira.
Isto em si não era raro, mas quando ele voltou a si, viu que o cobertor e o lençol, com um movimento suave, estavam caindo no chão aos pés do sofá. Ele os puxou
sem sucesso, pois se moviam com uma força além de suas forças e peso. Ele os soltou, e eles caíram num monte sobre o chão.
Ele se sentou no sofá, perplexo, sem saber o que fazer em seguida. Esta decisão logo foi tomada quando o sofá lentamente levantou-se de trás para frente, e ele correu
para um lugar seguro, para evitar que o sofá virasse por sobre si; mas, quando se
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afastou, o móvel voltou para sua posição normal como se estivesse satisfeito por desalojá-lo.
Vacilando entre o medo e a frustração, Fat Jow pôs o roupão e os chinelos. Mais uma noite em claro se avizinhava. Aprcximou-se do sofá e parou quando ele se moveu
novamente.
A porta do apartamento se escancarou, e ele esperou o barulho correspondente da porta do apartamento de Adah Baxter... mas nada. Cautelosamente, apareceu no hall,
espiou nas sombras, depois olhou para cima, onde um pequeno estalo vindo do alto da clarabóia lembrou-lhe as palavras de Kwan Ho: ..."antes que ele ponha o teto
abaixo à sua volta."
O vitral da cúpula, três andares acima, estendia-se por sobre quase o hall todo. A discrição levou Fat Jow a voltar para o abrigo de sua porta. A casa centenária
estava expressando suas enfermidades, mas Fat Jow não era uma pessoa aventureira, especialmente depois da meia-noite.
Com um súbito tilintar que imediatamente foi abafado na vastidão do hall, um único pedaço triangular de vidro colorido caiu e se despedaçou sobre o chão. Se sua
porta estivesse fechada, ele não teria escutado-isso. Esperou, imóvel, 10 minutos, mas nada mais aconteceu, e ninguém apareceu.
Por que um único pedacinho? Parecia que a pilhagem da noite fora abandonada quando acabara de começar.
Taciturnamente, ele se virou e caminhou pelo apartamento até o quarto; era necessário entrar num entendimento com Hsiang Yuen. Sem hesitação ele acendeu a luz do
quarto. Para que a criança acordasse.
A raiva se desvaneceu. A cama estava vazia, e Fat Jow era o único ocupante do quarto. Incrédulo, ele vasculhou as cobertas, ajoelhou-se para olhar embaixo da cama,
examinou o armário, a janela fechada, o banheiro. Correu de volta até a porta aberta do apartamento, pronto para acordar os vizinhos, mas parou, com a mão na maçaneta,
e olhou para o sofá. As cobertas estavam novamente no lugar, puxadas para cobrir o corpo pequeno de Hsiang Yuen, ferrado no sono.
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Fat Jow olhou para o menino, depois foi para o quarto em silêncio. Acordou de manhã, novo em folha e de bom humor, pois a cama era mais confortável que o sofá.
Hsiang Yuen estava em pé ao seu lado, despenteado e descalço, com um sorriso de orelha a orelha.
- Eu estava lá quando acordei - anunciou ele, feliz da vida. - Os cristais fazem arco-íris pequenos quando o sol bate neles.
Fat Jow puxou-o para se sentar ao seu lado.
- E você gosta disso.
- Obrigado, Tio.
- Mas não fui eu... - Fat Jow decidiu deixar passar. Por que você não me disse desde o começo que queria dormir no sofá?
O sorriso de Hsiang Yuen diminuiu um pouco.
- Tive vergonha.
- Vergonha? De expressar uma preferência?
- Não, Tio... de ter medo do escuro.
Fat Jow, reprimindo um sorriso, anuiu gravemente. Compreendia mais do que desejava demonstrar.
- Isso não é motivo para ter vergonha. Na sua idade, eu também tinha medo.
Pequenos problemas requerem soluções simples.

Bitóricki WKMife

ASSASSINATO PELO SONHO

Minha prima Janice me contou sobre seus estranhos sonhos com flores pela primeira vez uma tarde quando voltávamos do colégio juntos. Quando passamos pela florista
ao lado da loja de Sitwell, ela comentou melancolicamente:
- Vou receber a notícia de uma morte na família.
- Por que você diz isso?
- Eu sonhei com flores a noite passada, e toda vez que sonho com elas recebo notícias de uma morte na família pouco depois, de um lado ou de outro.
-- Talvez seja uma ou outra coincidência - sugeri.
- Isso vem acontecendo há alguns anos. Nunca falhou. No dia seguinte um telegrama trouxe uma notícia de São
Francisco dizendo que Vovó Barrow morrera. Seis meses depois meu pai morreu de um ataque cardíaco, e Janice me disse que sonhara com flores na noite anterior.
Sua morte inesperada foi a causa de minha ida para o mar. Mamãe era semi-inválida, e eu não tinha nem competência nem o desejo de assumir o negócio de tintas de
meu pai. Minhas ambições estavam no rádio, e se papai estivesse vivo eu teria ido para a faculdade estudar engenharia de comunicações. Vendi o negócio dele e, aproveitando
meus poucos anos de experiência como radiamador para uso profissional, tirei licença de operador de radiotelegrafia e peguei a primeira vaga que apareceu a bordo
de um
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navio. Com o meu salário consegui manter mamãe em nossa casa e economizar um pouco de dinheiro para futuros gastos da universidade.
Eu costumava ver Janice entre as viagens, já que ela morava há poucos quarteirões de minha casa, e durante aquele período coincidi de estar em casa antes das mortes
de Tio Charlie, Tia Laura e da esposa do primo Joe, que morreu num desastre aéreo. Em cada ocasião Janice me contou que tivera seu sonho de sempre com flores. Eu
estava no mar quando Vovô Barrow morreu, e também quando o primo George se afogou, mas Janice mencionou em suas cartas que sonhara com flores antes das notícias
de cada morte.
Até Janice conhecer Bob, acho que eu era o único com quem ela falava sobre seus sonhos com flores, pois éramos como irmão e irmã, todos os dois filhos únicos. Ela
relutava em contar a outras pessoas da família ou ligadas à mesma, temendo criar ansiedade quando tivesse o sonho, especialmente se algum membro estivesse doente.
A única pessoa com quem falei dos sonhos foi um missionário jesuíta que tivemos uma vez como passageiro em trânsito para o Panamá. Contei a ele sobre os sonhos durante
uma conversa sobre fenômenos e manifestações sobrenaturais.
- O senhor acha que os sonhos de Janice têm algum significado ou objetivo? - perguntei.
Ele era um homem grande e maduro com uma venerável barba castanha que lhe cobriu o peito quando ele sacudiu a cabeça, duvidoso.
- Se eles fossem de origem divina seu significado talvez fosse menos obscuro, de interpretação mais fácil. Eu não vejo nenhum significado nos sonhos de sua prima.
Não podemos esquecer, porém, que os sonhos podem ser de origem maléfica. Satã procura as almas de outras maneiras além do pacto. Enquanto não deixamos que os sonhos
nos influenciem, não fazendo suposições, eles não conseguem nos prejudicar.
Quando repeti as palavras do jesuíta para Janice, ela disse:
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- Eu fico naturalmente perturbada toda vez que tenho o sonho, esperando para ver quem morreu. Não posso deixar de ficar assim.
- Você acredita no sonho, logo isso a leva a fazer uma suposição - disse eu.
- Mas Phil, nunca falhou. Eu não posso deixar de acreditar nele. Eu não vejo como acreditar nos sonhos pode me prejudicar.
- Eu também não - disse eu. No entanto, eu tinha uma sensação desagradável em relação aos sonhos dela. Havia algo de estranho neles. Eu desejava que ela não os tivesse.
Foi cerca de um ano depois que Janice e Bob fizeram o cruzeiro de lua-de-mel. Janice conhecera Bob quando a firma em que ele trabalhava examinou os livros no banco
pouco depois que Janice aceitara um emprego no Departamento de Crédito. Janice o trouxe a casa para jantar naquele mesmo fim de semana, tão rápido se interessaram
um pelo outro, e dentro de um ano se casaram. Concordaram em fazer um cruzeiro de verão como
lua-de-mel, e Janice quis que fosse no meu navio. Eu era então o oficial
de rádio principal do novo-navio Crescent que fazia a linha Bermudas, Ilhas Leeward e Trinidá.
Com destino ao sul, nós tínhamos uma lista de passageiros completa, 150. Janice e Bob não teriam ficado menos felizes se o navio estivesse vazio, pois tudo o que
queriam era a companhia um do outro. Contudo, não agiram como recém-casados inseparáveis, mas dedicaram-se a ajudar os outros a desfrutar do cruzeiro, tomando parte
em todos os jogos e competições. Bob, que era um acrobata e gostava de mostrar seu talento, ganhou o primeiro prêmio numa noite de amadores; Janice tirou o segundo
no torneio de bridge. Para as pessoas a bordo eles eram Janice e Bob ao invés de Sr. e Sra. Blake. Todos ficavam encantados com Janice à primeira vista, com seu
rosto redondo simpático e olhos escuros, ternos; e qualquer um, ao olhar para o rosto liso e animado de Bob e seu cabelo louro jogado para trás, podia perceber claramente
o que ela vira nele.
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Nada aconteceu para estragar a alegria de Janice no cruzeiro até este estar quase no fim e nós estarmos voltando para o norte em meio às ilhas. Janice e Bob costumavam
tomar parte nas festas de sempre à noite, por algum tempo, e depois Janice jogava bridge. Bob era fã de pôquer, não ligando muito para bridge, e no caminho do sul
ele conseguira jogar uma ou duas vezes com maridos cujas esposas ainda não os tinham arrastado para as mesas de bridge. Em Trinidá, contudo, alguns trabalhadores
dos campos petrolíferos da Venezuela tomaram o navio rumo a Nova York. Cheios de dinheiro do salário das férias e habituados
a jogar pôquer como passatempo, eram exatamente o que Bob pedira.
Os jogos de bridge geralmente terminavam no salão por volta de meia-noite, mas as partidas de pôquer no salão de fumar às vezes iam até as primeiras horas da madrugada,
embora Bob geralmente parasse pouco depois de Janice ir para a cabine. Uma vez, eram quase duas horas quando ele apareceu, dizendo que estava ganhando muito e não
gostava de parar sem dar aos outros uma oportunidade de recuperar alguma coisa. Janice lhe disse brincando que da próxima vez que ele chegasse tarde, ela ia dar
uma de esposa enraivecida e trancaria a porta.
Na noite seguinte, já eram quase duas e meia e Bob não voltara ainda, Janice saiu da cama e trancou a porta, e depois deitou-se novamente e ficou lendo um romance
da biblioteca do navio, divertindo-se ao pensar na cara de Bob quando visse que estava trancado do lado de fora.
Bob, contudo, demorou a chegar e Janice pegou no sono com o livro nas mãos e a luz do abajur acesa. Já passava das sete quando ela acordou. Seu primeiro pensamento
foi para Bob. Ficou intrigada com o fato de ele não a ter acordado. Embora tivesse o sono pesado, uma ou duas batidas na porta a teriam despertado. Concluiu que
Bob, encontrando a porta trancada e ela aparentemente adormecida, decidira não perturbá-la e talvez tivesse ido para uma das cabines dos companheiros de pôquer para
dormir num sofá.
Então de repente ela ficou apavorada. Durante a noite sonhara com flores. Ela as vira num vaso numa janela. Levantou-se
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imediatamente e vestiu-se, na esperança de que Bob aparecesse a qualquer minuto e começasse a se lavar e a se barbear para o café. Na hora em que soou o primeiro
gongo, ele ainda não tinha chegado. Janice correu até o convés, na esperança de que Bob ainda estivesse dormindo em uma das cabines dos jogadores de pôquer. Viu
um grupo de trabalhadores dos campos de petróleo conversando na amurada do convés de lazer. Correu até eles e perguntou onde Bob estava. Eles não sabiam, nem ele
dormira em nenhuma de suas cabines.
Janice virou-se para outros passageiros. Nenhum vira Bob naquela manhã. Janice veio correndo até a cabine de rádio em pânico.
- Aconteceu alguma coisa a Bob - reclamou. Acalmei-a, e ela me contou sobre seu sonho e disse que Bob
estava desaparecido.
- Ele deve estar escondido em algum lugar porque você o deixou do lado de fora - disse eu.
Era um pensamento realmente otimista, mas não deixava de ter fundamento. Janice e Bob tinham pregado peças um no outro durante o cruzeiro todo, como guando Bob colocara
areia na cama de Janice e ela se vingara pedindo à camareira que desligasse a água quando Bob estava ensaboado debaixo do chuveiro.
- Ele vai ter de aparecer antes do almoço - disse eu. - Vai ter uma simulação de incêndio às 10 horas.
Bob continuou desaparecido durante a simulação. Janice veio correndo à cabine de rádio novamente, quase histérica.
- Ele deve ter caído no mar - lamentou-se ela.
- Não há como cair num tempo desses - disse eu a ela.
- Ele está escondido em algum lugar. Espere aqui até eu voltar.
Deixei-a com o terceiro oficial de rádio e fui direto à cabine do capitão, na esperança de que estivesse certo quanto a Bob. O velho Blagdon achou que, se isso era
uma brincadeira de Bob, já era hora de acabar com ela. Mandou chamar Bob pelos alto-falantes. Não houve resposta. O capitão pediu ao imediato que fizesse uma busca
no navio. Mandou chamar um dos jogadores de pôquer à sua cabine. O homem nos disse que o jogo de pôquer
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terminara pouco depois das quatro horas, mas que Bob saíra por volta de três e meia e fora para a cabine.
- Ele não dormiu na cabine - disse o capitão. - Está desaparecido.
O homem, natural de Oklahoma, bronzeado, com um short caqui, ficou preocupado. Depois de pensar por um momento, perguntou:
- Você sabe se a mulher dele trancou a cabine ontem à noite?
Eu respondi: - Trancou. Fez isso de brincadeira.
- Então talvez seja isso. Ele nos contou que ela tinha dito que ia fazer isso da próxima vez que ele demorasse a voltar, mas disse que sabia uma maneira de enganá-la.
A idéia dele era descer pelo lado do navio e entrar pela vigia do banheiro. Ele disse que já tinha feito uma experiência quando ela não estava por perto e achava
que era fácil. Pretendia entrar no quarto, deixando-a intrigada, sem saber como conseguira. Achamos que era muito arriscado, mesmo para um sujeito esportivo como
ele. Eu acho que ele deve ter caído no mar, ou coisa assim.
Se o que o homem presumia estivesse correto, então Bob caíra no mar há quase oito horas àquela altura. Entretanto, era um excelente nadador, e, se conservasse as
forças, podia ficar boiando naquele mar quente e calmo durante muitas horas ainda. Por outro lado, havia as possibilidades de que se tivesse machucado no casco ao
escorregar, ou talvez batido nas hélices. Havia tubarões nessas águas também.
O Capitão Blagdon achou que as perspectivas de encontrar Bob ainda boiando eram boas o bastante para fazer o navio voltar ao lugar em que estava na hora. Era um
velho teimoso em certos aspectos, mas tinha sangue de gente boa, correndo nas veias. Creio que ele teria voltado unicamente por consideração a Janice, mesmo se achasse
que não havia esperanças de encontrar Bob. Nem ao menos esperou o relatório do imediato sobre as buscas, que acabou sendo negativo.
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Corri à cabine de rádio, onde Janice esperava por mim com sua blusa colorida de viagem e
short cor-de-rosa mas com os olhos castanhos angustiados. Quando eu lhe
dei as notícias, ela gemeu:
- Meu sonho! - e desmaiou.
Mandei chamar o médico do navio e uma camareira, e, quando Janice voltou a si, fui com ela para sua cabine. Antes de sair, o médico deu-lhe um tranqüilizante. Depois
que ele saiu, Janice chorou amargamente.
- Foi tudo minha culpa. Nunca mais vou ver Bob.
Eu culpava Bob. A fileira de vigias para a Seção "C" de cabines ficava logo abaixo do parapeito. Para entrar numa delas era só pular pelo parapeito, segurar no mais
baixo e abaixar as pernas até a abertura, enfiá-las na mesma e deslizar com os pés em primeiro lugar, abaixando as mãos até a beirada da vigia e soltá-las assim
que os ombros estivessem dentro em segurança. Como o navio não tinha ar condicionado, as vigias ficavam abertas em águas tropicais.
Eu conhecia um ou outro caso de membros da tripulação que entraram nas cabines dessa maneira para algum passageiro que tivesse perdido a chave,
quando não havia outra à mão, mas somente no porto e ancorado quando o único risco era um mergulho acidental, e nunca em alto-mar, na escuridão e com o navio em
movimento. Bob devia
estar louco.
Ainda estava claro quando chegamos ao lugar onde se estimava ser a posição do navio na hora em que Bob caíra no mar. Não faltaram pessoas para procurá-lo. Passageiros
com todo o tipo de roupas coloridas do cruzeiro enfileiraram-se no parapeito em ambos os lados, embora as festas tivessem sido suspensas quando a orquestra pusera
de lado os instrumentos à primeira notícia de que Bob desaparecera. Coloquei-me bem no alto do mastro de radar.
As condições para avistar um homem na água eram favoráveis. O mar estava calmo, como se estivesse espelhado, cinzento àquela hora tardia do dia. Entretanto, embora
a cabeça de um homem fosse visível como um ponto escuro, de perto, a uma certa distância, mesmo curta, seria insignificante como uma bolha.
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Com a posição aproximada do paradeiro provável de Bob como centro, o Capitão Blagdon navegou em amplos círculos até bem depois do cair da noite, com lanternas e
holofotes acenando seus raios de luz da ponte como as antenas de algum monstro marinho perdido. Não se achou nada a não ser algum pedaço de madeira ou lixo do navio.
A tristeza se abateu sobre o navio inteiro e, quando o Capitão Blagdon retornou ao seu curso original, mesmo as pessoas mais maldosas entre os passageiros teriam
admitido que o capitão fizera o máximo. Era como voltar de um túmulo.
O Capitão Blagdon, porém, não perdera as esperanças, e foi comigo à cabine de- Janice para tentar animá-la. Ela não fora para o convés durante as buscas, convencida
de que seu sonho fora motivado pela morte de Bob. Pusera um vestido preto com um cinto da mesma cor.
- Você não deve perder as esperanças ainda - disse o capitão. - Bob pode muito bem ter sido apanhado por algum barco. Se for um barco pequeno sem rádio, você só
vai receber notícias de Bob quando o barco chegar ao primeiro porto, e isso pode ser do outro lado do mundo.
Mas Janice apenas chorava e, quando o capitão saiu, ela soluçou.
- Eu podia ter contado a ele sobre o meu sonho, mas ele não ia entender como você e eu.
- Eu não interpreto o seu sonho da sua maneira, Janice. Pode significar a morte de outra pessoa da família e não a de Bob. Pode estar errado, também, e não significar
morte, morte de ninguém.
- Phil, no seu íntimo você não pensa assim. Você está tentando ser gentil, como os outros, tentando me tranqüilizar com uma esperança falsa.
- Eu penso assim, e não é esperança falsa. Você não consegue enxergar isso porque está transformando os seus sonhos em superstições. Isso a está prejudicando, tirando-lhe
a razão.
- Eu não posso me prejudicar mais.
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Não consegui demovê-la de suas idéias. Janice chorava por Bob como se ele estivesse morto. Permaneceu em sua cabine o dia seguinte todo, sem tocar nas bandejas tentadoras
levadas pelas camareiras, recusando-se a receber passageiros que desejavam mostrar sua solidariedade e expressar seus desejos de que Bob estivesse a salvo. Eu passei
a maior parte do meu tempo livre com ela. Ora tinha acessos de choro, ora ficava imóvel deitada na cama ou sentada numa cadeira com os olhos fixos na fechadura da
porta. De vez em quando, lamentava-se:
- Por que eu fiz isso? Por que não pude perceber o que ia acontecer com ele?
Antes de voltar naquela noite, fui até a cabine de Janice novamente. Havia uma bandeja de comida intacta sobre a penteadeira, o café já frio. Eu nem acabara de fechar
a porta quando Janice gritou:
- Ah, Phil, eu não posso continuar a viver sem Bob.
Eu não tinha nenhum temor de que Janice, como católica praticante, amaldiçoasse sua alma para toda a eternidade, tirando a própria vida.
- Janice -- implorei -, não continue se martirizando desse jeito, sem comer. Você vai acabar tendo um colapso nervoso, e não ia ser um bom estado para Bob encontrá-la.
- Por favor não me torture, Phil. Eu não vou ver Bob nunca mais neste mundo. Phil, eu estou enlouquecendo.
Havia um olhar estranho nos olhos vermelhos e fundos de Janice, e isso me assustou. Talvez ela estivesse realmente ficando louca. Fiquei desesperado, sem saber o
que fazer. A mínima esperança de que Bob ainda estivesse vivo talvez pudesse ajudá-la a manter o equilíbrio até o primeiro choque passar mesmo que a esperança fosse
falsa; mas era impossível fazê-la superar a barreira do sonho. Eu tinha a impressão de que a única coisa capaz de salvar a sanidade de Janice seria a notícia de
que Bob tinha sido apanhado, e esta teria de vir logo.
Antes de sair, eu disse.
- Janice, tenta ter uma boa noite de sono. Você está precisando demais disso. Pode haver boas notícias para você amanhã.
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Ela ficou deitada na cama, olhando para o teto, e parecia não me ouvir, mas respondeu ao meu "boa-noite, Janice", quando fechei a porta.
Por volta das sete horas da manhã seguinte, recebi um radiograma que me deixou felicíssimo. Era de Bob. Fora apanhado por uma escuna mercante auxiliar, sem rádio.
Não pudera nos dar notícias enquanto o barco não aportara em San Juan.
Eu não parei para chamar o boy. Corri até lá embaixo para dar a notícia pessoalmente. Bati na Aporta de Janice. Bati novamente, com mais força. Não houve resposta.
Achando que Janice talvez tivesse finalmente pegado num sono profundo, abri a porta e espiei.
Não havia sinal de Janice. A porta do banheiro estava aberta; chamei-a, mas não tive resposta. Esperançoso de que Janice finalmente estivesse começando a se recuperar
do desespero e tivesse subido até o convés, estava para me retirar quando vi o envelope. Estava preso entre o espelho acima da penteadeira e o anteparo. Ao vê-lo,
a alegria dentro do meu coração se desvaneceu - Janice desaparecida, um bilhete. Entrei na cabine e li o nome no envelope. Era o meu. Fiquei desesperado com o que
li.
"Adeus, querido Phil. Fui me juntar a Bob. Afetuosamente. Janice."
Janice colocara uma cadeira debaixo da vigia do banheiro para subir. Não só decidira se juntar a Bob, mas também escolhera o mesmo ponto de partida. Eu sabia que
seria inútil fazer o navio voltar uma segunda vez. Janice não sabia nadar.
Talvez uma risada satânica tenha acompanhado Janice quando ela saiu para sua última viagem. Seu sonho não tinha prenunciado notícias da morte de Bob mas da sua própria
morte, e de uma maneira diabólica a provocara. Eu orava para que o Anjo piedosamente escrevesse: "De posse de uma mente insana." Para mim, foi assassinato, tanto
quanto se Janice tivesse sido levada a cometer seu último ato por um agente humano.
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Dorothy Günum

A CONDESSA CLARIVIDENTE

- O que é isso? - perguntou o Tenente Pruden, parando na casa de Madame Karitska uma noite a caminho de casa depois de um longo dia na rua. Acabara de descobrir
que Madame Karitska tinha dois convidados, um deles Gavin O'Connell, um aluno da Escola de St. Bonaventure, o outro um homem de meia-idade do tipo conservador num
terno de trabalho elegante.
Madame Karitska pôs um dedo nos lábios e acenou para que ele a seguisse até o meio da sala. O Tenente Pruden não conseguia entender o que via. Nem Gavin nem o estranho
pareciam cientes de sua chegada: em frente a cada um havia um livro, e eles estavam olhando com enorme concentração para os respectivos volumes abertos ao meio.
E de repente, enquanto ele observava, uma coisa estranha aconteceu: uma página do livro de Gavin levantou-se lentamente e se virou. Não havia nenhuma janela aberta:
Não havia nenhuma mão tocando o livro, e no entanto a página se virara.
-- Eu consegui - disse Gavin entusiasmado. - Ei, Jonesy, eu consegui!
- Sr. Faber-Jones, este é o Tenente Pruden - interrompeu Madame Karitska. - É, você conseguiu, Gavin. Isso está claro! Mas o Sr. Faber-Jones também teve sucesso,
eu reparei.
- É uma gentileza de sua parte - disse Faber-Jones, levantando-se. - Eu só levantei a página pela metade, porém, e francamente estou exausto.
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- Eu também - admitiu Gavin. - Alô, Tenente Pruden!
- O que foi que eu interrompi? - perguntou Pruden, curioso.
- Uma sessão de treinamento - disse-lhe Gavin ansiosamente. - É ótimo conhecer o Sr. Faber-Jones, sabe, ele também tem o dom.
- Ah? Mas o que estão treinando?
- Concentração - disse Madame Karitska. - Mover montanhas com o uso da mente. Neste caso, o levantamento de uma página num livro pela simples concentração de energias
psíquicas. As páginas conseguem virar, o senhor viu com seus próprios olhos.
- Incrível - disse Pruden.
- Não é só dizer "mova-se" para as páginas - acrescentou Gavin. - É preciso também levantá-las com o pensamento concentrado e, rapaz, isso é difícil. É divertido,
porém. Você devia tentar.
A risada de Pruden foi curta e duvidosa. - O senhor acha inacreditável? - perguntou Madame Karitska.
- Não sei - disse Pruden, franzindo a testa. - Talvez achasse há seis dias, mas...
- Mas o quê? - perguntou Faber-Jones, afundando-se no sofá, obviamente cansado e disposto a relaxar.
- Não diga uma palavra - disse Madame Karitska - até eu trazer o café turco que preparei, com um copo de leite para Gavin. - Quando ela voltou e distribuiu as bebidas,
sentou-se e pôs um cigarro numa piteira comprida. - Agora nos conte o que abalou o seu radicalismo.
Pruden disse:
- Eu realmente gostaria de saber: a senhora acredita que a mente tem tamanha intensidade, tamanho poder?
- Mas é claro - disse ela, divertida. - Nós usamos apenas uma fração do poder mental, usamos apenas uma pequena parte de nós mesmos.
- Mas, por exemplo - disse Pruden, escolhendo as palavras com cuidado -, a senhora acredita que um homem possa
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simplesmente anunciar que vai morrer, estar em perfeita saúde e... morrer simplesmente?
Madame Karitska sorriu ligeiramente.
- Tantas doenças são psicossomáticas, isso acontece com mais freqüência do que o senhor pensa. Já vi pessoas virarem o rosto para a vida, perderem a vontade de viver.
Pode levar meses ou anos mas elas morrem.
Ele sacudiu a cabeça.
- Eu digo algo mais rápido do que isso, a morte numa questão de dias.
-' Ah! - disse Madame Karitska - isso é muito interessante. O senhor se defrontou com uma situação assim? O senhor deve se ter defrontado com tal situação ou não
estaria falando disso.
Ele disse tristemente:
- Eu ainda não estou acostumado a que leiam minha mente, mas, é verdade, soube de um caso assim. Ouvi falar num, pelo menos. O guarda do quarteirão, Bill Kane, anda
intrigado com isso há dias. Parece que um homem chamado Arturo Mendez morreu há duas semanas. Numa quarta-feira ele disse ao irmão Luis que ia morrer antes de a
semana terminar, e na noite de terça-feira seguinte ele morreu.
- Eles não chamaram um médico?
- Na segunda-feira chamaram uma ambulância e ele foi levado para o hospital. Os médicos não encontraram nada de organicamente errado com ele, mas na noite seguinte
ele estava morto.
- Fizeram uma autópsia? Pruden anuiu.
- Morreu literalmente de uma parada cardíaca mas nada havia de errado com o coração também.
- Então foi um pressentimento - disse Gavin, interessado.
- Ele sabia que ia acontecer alguma coisa antes da hora.
- Não... não, eu não acho - disse Madame Karitska, e olhou para Pruden atentamente. - Há mais alguma coisa?
Ele anuiu.
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- Ontem Bill Kane me disse que o irmão de Arturo, Luis, não sai da cama. Pagou as contas, pagou uma semana de aluguel adiantado à senhoria, e disse a ela que vai
morrer na segunda-feira de manhã.
- E hoje é sexta de noite - refletiu Madame Karitska. Queria saber... onde eles moram, Tenente?
- A três quarteirões daqui em Fifth Street, no bairro portoriquenho.
Ela anuiu.
- Eu vou lá amanhã, quero ver isso. Pruden sacudiu a cabeça.
- Não é um bom lugar para gringos, como eles nos chamam. Muito poucos falam inglês, e Luis só fala alguma coisa. A senhora fala castelhano?
- Não - disse Madame Karitska -, mas pode haver comunicação sem fala. - Ela acrescentou pensativamente: - Isso me parece muito interessante. Existem iogues no Oriente,
é claro, que conseguem parar a respiração voluntariamente, mas nenhum dos seus dois homens é iogue; deve haver forças muito poderosas envolvidas aqui. É o invisível
em ação, e eu sou uma estudiosa do invisível. - Olhou abruptamente para o relógio e disse: Está na hora, Gavin. - A Pruden ela explicou: - O Sr. FaberJones trouxe
uma televisão portátil para que a gente possa ver John Painter fazer a sua estréia no show de Tommy Tompkins.
- Alguém que a senhora conhece? - perguntou Pruden quando Gavin levantou para ligar o aparelho.
- Um protegido do Sr. Faber-Jones. Faber-Jones olhou para ela com censura.
- Nós dois sabemos de quem ele é realmente protegido, Madame Karitska.
- Tolice - disse ela -, o senhor está gostando cada vez mais dele e sabe disso, especialmente desde que ele parou de usar tênis.
- Ele só os trocou por botas peludas e uma roupa psicodélica - disse Faber-Jones secamente. - Uma roupa psicodélica bem cara, devo acrescentar.
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- É, isso parece interessante - interrompeu Gavin. - O senhor acha que posso conhecê-lo algum dia.
- Psiu - disse Madame Karitska, tocando o ombro dele e apontando para a televisão na qual uma figura de pele brilhante, aparecera, de guitarra na mão, para se sentar
num banco em frente às câmeras. Faber-Jones aumentou o volume na hora em que a música começou:
"Uma vez na antiga Atlântida
Amei uma dama pura.
E então as águas subiram"...
- Essa música já está no segundo lugar nas paradas de sucesso - disse Faber-Jones a Pruden. - A minha Companhia Pisces gravou o disco.
- Ah? - disse Pruden, e lançou um olhar surpreso para Faber-Jones.
Na manhã seguinte Madame Karitska tinha um compromisso às nove horas e, quando sua cliente saiu, ela colocou um aviso na porta que dizia "VOLTO ÀS 12." Então dirigiu-se
para Fifth Street, que ela sempre apreciara em seus passeios pela cidade porque grande parte de sua vida era vivida abertamente nas ruas. Hoje era um dia como os
outros: fazia um sol quente de verão e, antes de Madame Karitska chegar a Fifth Street, já podia ouvir sua música. A essa hora o flamengo dominava, e então, ao virar
a esquina, ela ouviu a música de John Painter Uma Vez na Antiga Atlântida tocando no Clube Social dos Caballeros do outro lado
da rua.
Madame Karitska foi caminhando ao longo da calçada cheia. Vendedores de rua cantavam e gritavam, e rapazes armados com chaves-inglesas espiavam dentro de carros
velhos ou jaziam debaixo deles com apenas os pés de fora. Havia alguns velhos reunidos sobre um jogo espalhado em cima de engradados de laranjas vazios, e uma família
de quatro pessoas comia indiferentemente o almoço antecipado numa mesa de papelão sobre
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a calçada. Todas as escadas e alpendres estavam ocupados por pessoas de idades variadas apanhanlo sol com o entusiasmo de qualquer turista em Miami Beach. Era barulhento,
mas possuía muito mais vida do que Walnut Street.
Quando Madame Karitska se aproximou do número 203, um policial uniformizado saiu de uma loja do outro lado da rua, viu-a e acenou. Atravessando a rua, ele disse:
- A senhora deve ser a madame que o Tenente Pruden disse que viria por volta das 10 para ver Luis. Estava esperando pela senhora. Eu sou Bill Kane.
Apertaram as mãos
- Eu disse à senhoria dele que ia levá-la - acrescentou.
- O nome dela é Sra. Malone.
- Malone! - disse Madame Karitska, divertida. - Tenente Pruden tinha certeza de que ninguém falava inglês aqui.
- O tenente não patrulha as ruas, só anda de carro - disse Kane,
indulgentemente. - A Sra. Malone vive aqui há anos, dirige uma pensão muito séria. Esta área - disse
ele apontando - tem 10 quarteirões até o rio. Costumava ser irlandesa, agora é porto-riquenha.
Ele parou em frente a uma casa com fachada de madeira pintada de marrom. Degraus de madeira estreitos conduziam a um alpendre ainda mais estreito devido a duas janelas
com cortinas de renda engomadas e uma pesada porta de madeira com um postigo. O Patrulheiro Kane tocou a campainha, e depois de algum tempo eles ouviram passos lá
dentro. A porta se abriu e uma mulher gorda com bochechas redondas e rosadas e cabelo preto recebeu-os. Seu rosto se abrandou quando ela viu Bill Kane.
- Bem, então é você - disse ela, sorrindo para ambos. Eu nem tive tempo pra tirar meu avental, estava ocupada fazendo massa, compreendem. Entrem, entrem.
- E nós não vamos atrapalhar sua massa mais do que um momento - disse-lhe Madame Karitska com segurança. - Viemos para ver Luis Mendez.
- Bem, é muito gentil de sua parte, estou certa. Uma coisa terrível, esta, eu lhe digo. Ele não quer comer - disse a Sra.
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Malone, fazendo o sinal da cruz. - A namorada dele Maria fica sentada ao lado dele todas as noites, mas o resto das pessoas fica longe. Estão com medo. Eu também
estou,
falando com franqueza.
- Por certo - disse Madame Karitska quando eles começaram a subir os íngremes degraus atapetados. - Ele tem muitos amigos? É benquisto?
- Ah, ele é muito popular no bairro - disse a Sra. Malone.
- Dirige uma caminhonete que vende sorvete, compreende, ou dirigia... e o irmão também, que Deus o tenha... e eram muito trabalhadores e simpáticos. Tinham muito
jeito com as crianças. "Ei! Aqui vai Looie. Viva Looie" - disse ela imitando os gestos dos outros. - Eu sempre os ouvia dizendo isso. As crianças o adoravam. Quanto
a amigos íntimos - acrescentou ela - bem, eles estão aqui nos Estados Unidos há apenas dois anos e nunca vi homens mais trabalhadores. Acordavam de madrugada, dormiam
tarde... mas - disse ela com uma piscadela - não vou dizer que não havia tempo pra algumas cervejas no clube, ou pra uma garota. Homens muito bons, todos os dois.
Trabalhadores e gentis.
- Nenhum inimigo? - enfatizou Madame Karitska.
- Inimigos! - A voz chocada da Sra. Malone já era uma resposta suficiente. - Luis? Por Deus, não! - Ela abriu a porta de um quarto no final do corredor e falou alto:
- Companhia para você, Sr. Mendez. Não que ele me ouça - acrescentou ela num aparte. - Parece coisa de assombração isso.
Entraram num quarto grande, com poucos móveis. As paredes eram forradas de papel florido espalhafatoso que quase obscurecia dois crucifixos pendurados. Havia uma
enorme cadeira estofada em um canto, com um abajur e uma mesa para revistas ao lado. A mesa era pesada e tinha uma imagem da Virgem Maria assim como uma porção de
quinquilharias. Numa cama de casal perto da janela jazia um rapaz de camisa e calças amarrotadas, de olhos abertos, olhando para o teto. Parecia não ter mais de
30 anos, com cabelo bem preto e um sombreado de barba preta no rosto, mas a cor desaparecera de sua pele, deixando-a cinzenta, e com olheiras arroxeadas sob os olhos.
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A senhoria se retirou, fechando a porta atrás de si, e Bill Kane ficou de costas para esta, como um guarda. Madame Karitska foi até a cama, olhou para o rosto do
homem e depois se sentou na ponta da cama, segurando uma das mãos do rapaz nas suas. Não disse nada. O olhar do homem voltou-se para ela e ele se mexeu, inquieto,
com rebeldia.
- Você pode falar? - perguntou ela baixinho. Ele resmungou:
- Si...vá embora. - Arrancou a mão das dela e virou o rosto para a parede.
- Ele tem aparência de morto - disse Kane em voz baixa.
- É estranho.
- É? Bem, vamos ver - disse ela, e foi até a mesa para dar uma olhada nos diversos objetos largados ali. Um em particular chamou sua atenção; uma vela preta com
formato de homem, de 15cm de comprimento em cima de um pires. Alguns fósforos quebrados estavam ao lado deste. Ela apanhou o pires e examinou a vela cuidadosamente,
depois recolocou-o na mesa e olhou para o retrato de uma moça bonita com uma moldura trabalhada. Uma inscrição na ponta dizia: "Com todo o meu amor, Maria."
Ela anuiu.
- Podemos ir agora - disse.
- Já? - Kane ficou surpreso. - Eu pensei... bem, para falar a verdade o tenente deu a entender que a senhora podia curar Luis.
Madame Karitska achou graça.
- Eu só faço o diagnóstico, não posso curar.
- Bem, então - disse Kane, sorrindo - o que acha sobre o estado de Luis?
- Que isso é um caso para o Tenente Pruden e que nós devíamos chamá-lo imediatamente - disse ela secamente. - Esse homem está sendo assassinado, e o tenente cuida
de homicídios, não cuida?
- O que a senhora quer dizer com sendo assassinado? perguntou Pruden, saltando de um carro de patrulha em frente à
101
pensão da Sra. Malone. - Quando um homem decide que quer morrer é suicídio, e não assassinato.
- Quando ficar mais calmo - disse Madame Karitska pacientemente -, eu vou explicar-lhe por que Luis Mendez não está cometendo suicídio. Por enquanto vamos até a
Botânica ali depois da esquina ver o que se pode fazer para salvar a vida dele.
- A senhora poderia chamar um médico primeiro - disse ele nervoso, caminhando ao seu lado.
- Não é caso para médico - disse-lhe ela. - Isso é espiritismo. Aqui estamos - acrescentou, virando a esquina, e encaminhou-se a uma loja em frente à Botânica
das Antilhas de LeCruz.
- Este lugar? - protestou Pruden. Na vitrine havia imagens de Buda, da Virgem Maria, e de figuras que ele nunca vira antes, algumas grotescas, algumas bonitas; medalhas
santas em caixas de veludo, queimadores de ervas feitos de cerâmica, e frascos de plástico anunciados como loções ritualísticas. Madame Karitska abriu a porta,
uma campainha tilintou, e um homem baixo e encarquilhado de cabelos brancos e olhos muito empapuçados olhou para eles
do balcão.
- Ah, Madame Karitska - disse ele, sorrindo. - Que prazer em vê-la novamente.
- O prazer é meu - disse-lhe Madame Karitska afetuosamente, apertando sua mão. - O senhor vai bem? E sua família?
- Estamos todos bem, Madame Karitska. E a senhora?
- Precisando de ajuda, Sr. LeCruz. Eu sei que o senhor tem alguns espíritas em meio à clientela e precisamos com urgência do melhor. Pode me recomendar um?
O Sr. LeCruz olhou para Pruden e mediu-o com os olhos, duvidoso.
- Eu recomendar... não sei se devo.
- Eu respondo pelo Sr. Pruden - disse ela com um sorriso.
- Ele não é crente mas eu o estou catequizando, Sr. LeCruz.
Ele anuiu.
- Está bem então. - Refletiu um momento, depois pegou papel e lápis. - Eu lhe dou dois nomes com os endereços.
102
Acenando com a cabeça para as prateleiras Pruden disse:
- O que é toda essa... hum... mercadoria?
- Eu lhe vou mostrar - disse Madame Karitska, e tomando o braço dele, levou-o ao longo do balcão. - Aqui são velas: vermelhas para atrair uma pessoa querida, azuis
para curar, amarelas e brancas quando se quer entrar em contato com os mortos. E aqui está uma vela preta
Changô - disse ela, apanhando uma. Entregou-a a Pruden e ele olhou indiferente para a imagem de um homem com cerca de 15cm de comprimento. - Esta é queimada quando
se quer a morte de um inimigo - disse ela. E acrescentou
casualmente: - Me disseram que Luis Mendez não tem inimigos, mas há uma vela preta
Changô igual a essa na secretária do quarto dele.
- Ah, pelo amor de Deus - protestou Pruden.
Ela continuou, ignorando suas sobrancelhas arqueadas:
- Aqui estão bonecas de pano pretas com alfinetes dourados... ah, oito dólares já, o preço está subindo. Como o senhor sabe com certeza, os alfinetes são enfiados
nas bonecas para causar dor aos inimigos. E aqui são as ervas, um estoque bem variado, cada uma para objetivos diferentes, e, embora o Sr. LeCruz não aprove a magia
negra, ele é um homem que também gosta de pagar as contas e assim nós encontramos aqui frascos de óleo de cobra, pó de cemitério e sangue de morcego.
Pruden resmungou:
- Por favor. Eu estava na chefatura de polícia fazendo relatórios, e a senhora me chamou até aqui para isso? Eu pensei...
- Ah, o Sr. LeCruz está esperando por nós - disse ela, interrompendo-o, e se dirigiu a ele com um sorriso.
- Eu lhe dei dois nomes - disse o Sr. LeCruz em voz baixa. - Cada um de um culto diferente. Todos os dois são bons, pelo que soube, e dão bons resultados.
- É disso que nós precisamos. Obrigada, Sr. LeCruz disse ela. E para Pruden: - Vamos agora? Eu explico lá fora o que descobri e então o senhor pode voltar para
os seus relatórios na chefatura de polícia.
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- Enquanto a senhora vai para Third Street? - disse ele, olhando para os endereços na folha de papel. - Nunca, eu vou com a senhora. Pessoas como a senhora são assaltadas
em Third Street.
- Se o senhor for comigo vai ter de esquecer que é um policial - ponderou ela com seriedade. - Não está com roupa de policial, logo se não falar como um, nem agir
como um...
- Por quê?
- Porque não vai ter nada de racional nisso, meu caro Tenente, mas existe tanta coisa na vida que não é racional. O importante ... de suma importância... é salvar
a vida de Mendez. Então o senhor deve proceder como o faria num caso de assassinato premeditado, e descobrir quem quer os irmãos Mendez mortos.
- E a arma? - perguntou ele divertido.
- A mente.
- Eu não creio que se possa condenar alguém com base nisso - disse ele secamente.
- Exatamente - disse ela com sua voz clara. - O que torna o caso muito inteligente, o senhor não acha? O crime perfeito.
Ele não havia analisado o caso sob este ângulo.
- A senhora pensa assim realmente? - perguntou, com as sobrancelhas arqueadas - É claro que poderia ser feito, se fosse possível...
- Meu caro Tenente - respondeu-lhe ela com um sorriso
- o vodu é uma religião mais antiga que o cristianismo. O senhor viu muitos filmes de Hollywood, eu creio. Ele é tão antigo quanto a astronomia, e usa a astronomia
em suas crenças e seus deuses, e tem muitas semelhanças com o cristianismo. É uma religião complexa, antiga e muito estruturada, com ritos e cerimônias formais,
uma cultura e uma religião ao mesmo tempo. Não a piche, como diria John Painter.
- É claro que não devo fazer isso - disse ele de modo submisso.
104
Entraram em Third Street, uma rua deserta com janelas quebradas em muitos de seus prédios. Algumas crianças negras que pulavam amarelinha na calçada pararam e olharam
para eles; um velho sentado num degrau ao sol acenou com a cabeça grisalha para eles ao passarem. Mais adiante ouvia-se rock-and-roll de uma confeitaria em volta
da qual perambulava pelo menos uma dúzia de rapazes.
- Aqui é o número 180 - disse Madame Karitska, e eles deram com uma escada alta de degraus estreitos e uma porta aberta, além da qual havia um segundo lance de escadas
até o andar de cima. - Ela se chama Madame Souffrant.
- Madame, hein? - disse Pruden com um riso.
Um cartão na porta tinha o nome, com uma seta vermelha apontando para o segundo andar. Eles subiram as escadas mal conservadas e bateram na porta. Uma mulher imponente
das Antilhas, com a pele cor de café com leite, respondeu ao chamado.
Madame Karitska disse energicamente:
- Tem um homem morrendo em Fifth Street; está possuído e precisa de um espírita. Ele disse que vai morrer na segundafeira de manhã.
- E hoje é sábado - disse a mulher, anuindo. - Que culto?
- Eu não sei, mas ele veio de Porto Rico há dois anos. LeCruz nos deu o seu nome e o de uma Srta. Loaquin. Acha que pode ajudá-lo?
- Entrem - disse Madame Souffrant.
Eles entraram num quarto com flores que cheiravam mal mas o quarto em si era limpíssimo, a ponto de parecer esterilizado; o tapete de linóleo brilhava, o sofá comprido
ao longo da parede era coberto com plástico transparente e rosas de plástico floresciam em toda parte.
- Sentem-se - disse Madame Souffrant. - Eu acho que vocês não precisam olhar mais, mas vou voltar com vocês e ver o homem para ter certeza.
- Pode preparar o ritual para hoje, talvez? - perguntou Madame Karitska.
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- Posso. - A mulher espiou na cozinha, falou com alguém e fechou a porta. - Meu gato - explicou, e, pegando uma valise pequena que lembrava a maleta de um
médito, acenou para que fossem na frente e fechou a porta.
Pruden, com a sensação de que nada daquilo podia ser real, escoltou-as de volta a Fifth Street.
- O senhor vai entrar? - perguntou Madame Karitska nos degraus da pensão da Sra. Malone.
Pruden sacudiu a cabeça.
- A senhora disse que é impossível interrogar Luis Mendez, então vou interrogar a namorada dele. Mas apenas - acrescentou
- se a senhora insistir em que isto é um assassinato.
Ela olhou para ele com simpatia, mas com uma certa impaciência também.
- Eu insisto.
Pruden encontrou a namorada de Luis no Salão de Beleza Grecian em Seventh Street. Maria Ardizzone era seu nome, com um rosto de italiana muito bonito, cabelos encaracolados
até os ombros e olhos negros. Era cheia de corpo e em poucos anos ficaria gorda, mas havia segurança e ambição nela, pensou ele, ao vê-la assumir a entrevista com
o desembaraço de uma moça que sabia o que queria. O que ela queria, aparentemente, era Luis Mendez e alguns Mendezinhos, e o que mais admirava em Luis era sua ambição
e sua tenacidade.
- Mas a doença dele eu não compreendo - disse ela, insegura pela primeira vez. - Não compreendo mesmo. Os homens na minha família apanham resfriados, quebram braços
e continuam a trabalhar. Luis, ele só fica deitado. Não parece o mesmo Luis; ele trabalha duro, construiu um bom negócio.
- Fazendo o quê? - perguntou Pruden.
- Eles têm... tinham... duas caminhonetes de sorvete Jack Frost.
- Caminhonetes de sorvete - repetiu Pruden, franzindo a testa.
106
Maria anuiu, o cabelo preto comprido e ondulado balançando com a cabeça.
- Eles guardaram, economizaram e compraram uma caminhonete. Foi quando eu conheci Luis. A caminhonete eles compraram do Sr. Materas, o distribuidor, e Luis dirigia
enquanto Arturo trabalhava em qualquer emprego que arranjasse para economizar e comprar a segunda. Luis tirava 300 dólares por dia e o senhor pensa que gastava um
níquel com ele? Não, todos os centavos iam para comprar a segunda caminhonete. A gente tem de admirar um homem assim, Tenente - disse ela francamente.
- É, de fato - murmurou Pruden.
- Eu os ajudo com a contabilidade - disse ela com orgulho. - De abril a outubro eles vendiam o sorvete, e no ano passado Arturo conseguiu 15 mil dólares e
Louis... o meu Luis, 18 mil dólares.
- É um bom ganho em Fifth Street - disse Pruden. Ela concordou.
- É, muito bom. Luis estava feliz, se sentia bem, e então Arturo morreu e... - Ela sacudiu a cabeça, com os olhos luminosos transformados em fontes de tristeza.
- Desde então tudo ficou péssimo - disse ela simplesmente. - Agora Luis diz que ele também tem de morrer.
- Tem de morrer? - repetiu Pruden.
- É assim que ele diz. É estranho, não é?
- É claro que deve ter acontecido alguma coisa para fazê-lo dizer isso. Algo o desestimulou?
- Nada, eu posso garantir.
- Nenhum inimigo? Os olhos dela faiscaram.
- Luis? Luis só tinha amigos. Pruden tentou uma nova tática.
- Aconteceu alguma coisa estranha então, mesmo que sem importância, naquela época?
Ela titubeou, e ele achou que seus olhos hesitaram antes de sacudir a cabeça.
- Não aconteceu nada.
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-' Bem, então não vou mais interromper seu trabalho, Srta. Ardizzone, mas talvez volte para lhe fazer mais algumas perguntas.
- Pois não, à hora que quiser - disse ela. - Qualquer coisa que ajude Luís. Eu daria minha vida por Luis - disse ela veementemente. - O senhor acha que alguém pode
ajudá-lo?
- Conheço alguém que pensa assim.
- Então vou acender uma vela para ela. Para ela e para Luis também. Vou beijar as mãos e os pés dela.
- Está bem - disse Pruden, espantado com a veemência dela. Tentou imaginar a reação de Madame Karitska ao ter as mãos e os pés beijados, e saiu antes que começasse
a rir. Não voltou a Fifth Street, contudo; voltou para a chefatura para ver Donnely, que tinha a memória de um computador.
- Don, eu quero que você me fale sobre caminhonetes de sorvete.
- Elas vendem sorvete - disse Donnelly com sarcasmo. Pruden ignorou o comentário.
- Estou com um caso que envolve um homem morto e um à beira da morte que não têm inimigos mas por acaso possuem caminhonetes de sorvete. JÉ a única pista que tenho
no momento. Olhe, há alguns anos houve um problema, não houve? Uma briga séria, não foi?
Donnelly concordou.
-' Isso mesmo. Foi na seção Dell há dois anos. Houve mercadoria roubada, um motorista seqüestrado, e 10 caminhonetes
incendiadas. Uma verdadeira guerra no território.
- Quem ganhou?
- Eles, eu acho. De repente a confusão acabou e ninguém quis falar sobre o assunto.
- E quem são "eles"?
Donnelly olhou para ele laconicamente.
- "Eles" não são a gente, Tenente. Pruden anuiu.
- Como eu posso descobrir todas as ramificações da cidade, e quem domina qual território?
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- Cavando - disse Donnelly, dando-lhe um sorriso simpático - e se você der com as mesmas pessoas que provocaram o tumulto há dois anos é melhor carregar a arma.
Isso não era muito confortador e, por outro lado, parecia infinitamente remoto como uma possibilidade. Pruden voltou ao escritório e começou a cavar os fatos, o
trabalho tendo ficado mais fácil com a menção do nome Materas feita por Maria Ardizzone. Encontrou-o nas páginas amarelas: Joseph e Alice Materas, distribuidores
de Sorvete Jack Frost, armazém em First Street 100, escritórios em First Street 105. Estava prestes a telefonar para lá quando o telefone tocou em sua mesa: era
Madame Karitska.
- Que bom encontrá-lo - disse ela. - Madame Souffrant acaba de começar a cerimônia de vodu e eu tive permissão para assistir, o senhor também. É uma experiência
muito incomum. Se o senhor se tornar Comissário de Polícia algum dia...
Ele riu.
- Se? Eu pensei que a senhora tivesse certeza.
- ... então é muito bom que assista a algo assim - concluiu ela. - Levamos Luis Mendez de táxi até Third Street 110, para um prédio bem atrás do apartamento de
Madame Souffrant no número 108.
Pruden pensou nos Materas e pensou na cerimônia vodu, e se deu conta de que Madame Karitska estava começando a influenciá-lo: estava realmente curioso.
- Chego aí em 10 minutos - disse ele e desligou.
- Aonde eu digo ao Chefe que você foi? - perguntou Benson no painel de comunicações quando Pruden passou correndo por ele.
Pruden sorriu.
- Diz a ele que estou a caminho de uma cerimônia vodu -- disse ele, e ficou satisfeito com o olhar de Benson.
Madame Karitska encontrou-o na passagem ao lado do número 108 de Third Street.
- Começou - disse ela -, logo devemos ir e falar bem
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baixo. Madame Souffrant examinou Luís e confirmou que três espíritos foram mandados atrás dele e que a alma dele já foi dada ao senhor do cemitério.
- Meu bom Deus, e a senhora acredita nisso? - disse ele, com as sobrancelhas arqueadas incredulamente.
Ela rebateu tal pergunta com impaciência.
- O que interessa no que eu ou o senhor acreditamos? É Luis que acredita. - Olhou para ele com nervosismo. - Foi muito cansativo tentar encontrar uma bananeira e
tivemos de substituí-la por um salgueiro. O senhor acha que é fácil achar uma bananeira em Trafton? Além disso são sete horas e estou com fome. Madame Souffrant
está confiante, contudo, porque o culto dela é muito parecido com o de Luis.
- Isso é bom. Onde estamos afinal?
- No own'phor, ou templo se prefere assim. Vamos entrar agora?
Ele a seguiu pela passagem até os fundos, onde um alto tapume de madeira fora erigido em volta de uma garagem velha
e destruída. O pátio do lado de dentro do tapume não era gramado e tinha coisas abandonadas: pedras, jarros, lâmpadas e inúmeros desenhos feitos em giz ou cal no
chão de terra batida. Madame Karitska levou-o por
um portão pequeno lateral e eles entraram na garagem sem fazer barulho.
Ali Luis Mendez fora colocado no chão de terra ao lado de um pau vertical decorado com símbolos, vestindo apenas um short branco. Todo o tipo de desenho branco estava
desenhado na terra em volta dele. Sua cabeça estava enfaixada numa bandagem que ia do alto da cabeça até o queixo, e uma segunda bandagem prendia os dois dedões
do pé juntos. Seus olhos estavam abertos, mas apáticos. A garagem estava escura exceto por velas queimando em vários pontos ao lado do corpo de Luis e algumas lanternas
penduradas na parede. O ar estava pesado de incenso. Meia dúzia de pessoas cercava Madame Souffrant, que recitava:
- Em nome de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo, em nome de Maria, em nome de Jesus, em nome de todos os santos, todos os mortos...
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Um estranho arrepio subiu pela nuca de Pruden e passou pela sua cabeça. Aquela voz solene elevava-se e se abatia como um pássaro na garagem silenciosa e escura,
como um falcão ou uma águia, pensou ele, batendo as asas contra as paredes até estas
parecerem cair, desaparecendo em conjunto, e ele permaneceu atônito, a séculos
de distância de Trafton, ouvindo uma sacerdotisa falar aos deuses.
Quando a recitação terminou abruptamente, ele se sentiu desorientado e confuso; percebeu que suava profusamente por motivos que não conseguia entender e que sua
mente racional não conseguia explicar. Lançou um olhar furtivo para Madame Karitska e viu que os olhos dela estavam fechados e o rosto sereno. À medida que os rituais
continuaram ele voltou a atenção para Madame Souffrant, mas se o que se seguiu lhe pareceu bizarro e gratuito, ele não sorriu; não conseguira esquecer o que sentira
durante as recitações, não conseguira esquecer uma sensação de Presenças, de forças evocadas e convergentes...
Luis Mendez jazia como um corpo morto exceto por uma contorção ocasional ou gritos do que pareciam obscenidade. Enquanto Pruden observava, pequenos montes de milho,
amendoim e pedaços de pão foram distribuídos em certos pontos do corpo dele, e no momento em que ele se perguntava por que os restos do café de alguém estavam sendo
jogados sobre Luis, duas galinhas e um galo foram trazidos para o ourríphor e dados a Madame Souffrant. Ela pegou as galinhas, uma debaixo de cada braço, e abaixou-as
sobre Luis para que pudessem bicar a comida em cima do corpo dele enquanto, ao mesmo tempo, começou a cruzar e descruzar os braços de Luis, cantando: "Ente, te,
te, tete, te"... Quando os montes de milho diminuíram, as galinhas foram trocadas pelo galo, e Pruden ficou alarmado. O galo zangado deixou pequenas feridas ensangüentadas
ao subir pelo corpo de Luis, dirigindo-se para o seu rosto por pouco não dando tempo de alguém dar um passo à frente para cobrir os olhos do homem. Depois disso,
o galo foi tirado dali e solto no terreiro lá fora, e velas acesas começaram a ser passadas por cima de Luis da cabeça aos
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pés, novamente tecendo aquele mesmo desenho estranho enquanto as recitações de Ente, te, te, tete soavam mais alto.
De repente Madame Souffrant calou-se, foi até uma bacia, juntou água com as mãos em forma de cuia e bateu com força no rosto de Luís. Outros se aproximaram e começaram
a jogar água em Luís; ajudaram-no a se sentar e o açoitaram com pequenos sacos molhados até as bandagens caírem de seu corpo molhado. Dentes de alho foram jogados
dentro de sua boca, enquanto Madame Souffrant continuou a mandar os espíritos dos mortos partirem, sua voz aumentando num crescendo.
De repente Luís estremeceu violentamente da cabeça aos pés e caiu para trás quase inconsciente.
Madame Souffrant acabou suas recitações e debruçou-se sobre ele.
- Luis - chamou. - Luis Mendez. Luís, é você?
- Sou - disse ele numa voz calma e normal.
- Eu acho que os espíritos estão partindo agora - sussurrou Madame Karitska, com os olhos brilhantes e atentos.
Uma jarra cheia de uma bebida alcoólica foi derramada sobre uma pedra posta num prato, e as chamas se alastraram. O prato em chamas foi carregado até Luis e passado
por cima de seu corpo, novamente descrevendo o mesmo padrão complicado de movimento, depois do quê Madame Souffrant o pôs no chão, apanhou uma garrafa de fluido,
levou até os lábios, bebeu algumas vezes, e de cada vez cuspiu-o por entre os dentes sobre Luis.
- Vamos para o pátio agora - disse Madame Karitska em voz baixa, chamando Pruden, e ele a seguiu e aos outros lá fora até um canto do tapume onde um buraco fundo
fora cavado. Para surpresa de Pruden escurecera enquanto estavam lá dentro, e as lâmpadas que cercavam o buraco formavam estranhas sombras na cerca. Ele se virou
para ver Luis sair da garagem nos braços de dois rapazes e, quando Luis se aproximou do círculo iluminado, Pruden viu que ele parecia mais forte, com os olhos bem
abertos e não mais enevoados. Ajudaram-no cuidadosamente a entrar no buraco e uma árvore de igual tamanho foi colocada no buraco ao lado dele. O galo, protestando,
foi passado novamente
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por cima do corpo de Luis e as recitações recomeçaram, terminando finalmente com Madame Souffrant dizendo numa voz ressonante:
- Eu exijo que vocês devolvam a vida deste homem... Eu, Souffrant, exijo a vida deste homem. Eu compro em dinheiro... eu pago... não devo nada!
Com isso ela apanhou um jarro, derramou o conteúdo sobre a cabeça de Luis, quebrou-o com um soco e deixou os pedaços caírem dentro do buraco. Ela ainda recitava,
quando Luis foi puxado do buraco. O galo foi colocado dentro do mesmo no lugar dele e enterrado vivo ao pé da árvore.
O ritual ainda não terminara mas o olhar de Pruden estava fixo em Luis agora, que foi vestido com uma longa túnica branca. Ficou em pé sem precisar de ajuda; a pele
recuperou a cor e os olhos o brilho, sem a sombra que os enevoava. Era inacreditável, quando Pruden se lembrava do homem prostrado, cinzento e quase morto que ele
vira deitado no chão há algum tempo.
- Ele vai ficar aqui agora perto do peristilo sagrado por alguns dias - disse Madame Karitska. - Se a árvore morrer, Luis vive. Se a árvore viver, Luis morre. Só
quando se souber isso ele vai sair, morto ou vivo.
- Sim - disse Pruden, ainda bestificado.
- O senhor está bem? - perguntou ela repentinamente. Ele se recompôs com esforço.
- É claro que estou bem. Podemos ir agora?
Ela anuiu, e eles caminharam de volta ao carro dele. Ao se afastarem dali, ele disse:
- Muito bem, explique.
- Madame Souffrant seria a melhor pessoa a quem perguntar - disse ela. - Eu só lhe posso dizer o que ela descobriu quando visitou Luis em seu quarto. Ela é, o senhor
sabe, uma detetive à sua maneira.
- Ah, é? - A voz dele foi sardônica.
- Ela encontrou o que chamou de "lâmpada de desastre" enterrada na área dos fundos da Sra. Malone - continuou Madame Karitska. - Nós saímos, todos, e num canto
da área debaixo
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de uma árvore era óbvio que alguém tinha cavado na semana passada. - Madame Karitska acrescentou com asco: Devo dizer que a lâmpada em si foi um desastre quando
nós a desenterramos. Cheirava muito mal. Madame Souffrant disse que ela continha a vesícula de um boi, fuligem, visco e óleo de rícino.
- Tudo bem, mas como Luis ia saber que isto estava lá? perguntou Pruden.
- Exatamente - disse Madame Karitska. - Alguém obviamente deve ter dito a ele que estava lá, ou associado a coisa a algum outro tipo de símbolo que estava atemorizando
Luis. Madame Souffrant acha que ele recebeu pelo correio poeira de cemitério, ou encontrou na porta. Tinha de ser alguém que soubesse que ele era crente. De qualquer
maneira Luis achou que estava amaldiçoado e que os deuses do cemitério o tinham possuído.
- Bem, eu não posso mais dizer que tudo isso é tolice admitiu Pruden. - Eu vi como ele estava mal, e vi a sua ressurreição.
Madame Karitska disse calmamente:
- Quando se acredita em alguma coisa... o que é isso, afinal de contas senão o lado demoníaco da fé?
A lembrança do owriphor já começava a se apagar, libertando-o de seu encantamento, de forma que Pruden disse quase zangado:
- Vai contra tudo em que se costuma acreditar, um homem condenando-se à morte.
Madame Karitska disse secamente:
- Entretanto o senhor está testemunhando precisamente isso. O senhor esquece que tudo o que torna uma pessoa humana é invisível: seus pensamentos, suas emoções,
sua alma. O senhor esquece que a eletricidade é invisível, também, e mata.
- Está bem... o invisível pode matar. Talvez. - Parou em frente ao apartamento dela e abriu a porta para ela. - É tarde.
Ela anuiu.
- Quase meia-noite - disse com um suspiro. - Deixei um aviso na porta dizendo que estaria de volta às 12 horas e, voilà,
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estou de volta às 12 horas. Mas não às 12 horas que eu pensava
- acrescentou: - e imagino quantos clientes perdi hoje.
- Bem - disse Pruden com um ligeiro sorriso -, se encontrar o armário da cozinha vazio, me dê um telefonema e eu a levo para jantar. Mas um jantar bem rápido - acrescentou
porque talvez eu esteja ficando louco mas o fato é que amanhã pretendo começar a procurar alguém que quer os irmãos Mendez fora do caminho.
- Obrigada - disse ela simplesmente, e ele a observou subir os degraus para o apartamento, majestosa como se estivesse voltando da ópera.
De manhã, ele telefonou cedo para a Sra. Materas, esposa do distribuidor. O marido estava gripado, disse ela, mas eles trabalhavam juntos e ela sabia tudo o que
ele fazia. Teria prazer em encontrá-lo no escritório se ele não se importasse de esperar que ela fosse à missa: a igreja ficava a apenas dois quarteirões do escritório.
Pruden chegou lá ao meio-dia e meia, e sentou-se com a Sra. Materas, passando a tomar conhecimento de muita coisa sobre o negócio de sorvetes, e o Jack Frost em
particular. A matriz, explicou a Sra. Materas, ficava em Rosewood Heights, Nova Jersey, com distribuidores autônomos em 35 Estados. Seu marido fora vendedor durante
anos mas comprara os direitos há 14 anos. Era um bom negócio.
- Agitado mas bom - disse ela. - Nós temos 94 caminhonetes de Jack Frost trabalhando em Trafton. Eles guardam as caminhonetes em nossas garagens rua abaixo, e nós
vendemos a eles todos os ingredientes, assim como guardanapos, casquinhas, copos de papel e colheres de plástico. Também ajudamos a financiar as caminhonetes.
- Algum problema nas rotas? - perguntou Pruden.
- Ah, não - disse ela - nunca tivemos problemas. Sei que umas duas outras companhias tiveram problemas há alguns anos, mas nós nunca tivemos.
- Alguma das suas caminhonetes roda na seção Dell?
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Ela sacudiu a cabeça.
- Aquele é o território do Sr. Freezee. As nossas caminhonetes operam apenas na cidade propriamente dita.
- Quem decide isso tudo? - perguntou ele com interesse. Ela riu.
- Quem chega lá primeiro, esse é quem decide. Nós por acaso chegamos primeiro à cidade, só isso, e nunca quisemos nos expandir pra seção Dell. Olha, eu lhe mostro.
- Ela foi até a porta aberta, fechou-a e mostrou a ele um mapa pregado na parede. Como o senhor pode ver...
Pruden foi até ela e olhou para o mapa. Os territórios do Jack Frost estavam pintados de rosa, as concorrentes de verde. Ele disse:
- As áreas verdes, que companhias são donas dessas áreas?
- As do Sr. Freezee.
- Pensei que a senhora tivesse dito que o Sr. Freezee tinha apenas a seção Dell.
- Bem, eles começaram ali - explicou a Sra. Materas -, mas nos últimos anos vêm se expandindo. Comprando outros territórios suburbanos aqui e ali.
- Em dinheiro?
A Sra. Materas deu de ombros.
- Eu não sei dizer realmente. Alguns desses pequenos autônomos geralmente ficam endividados no primeiro ano e vendem sua parte barato.
Pruden anuiu, com o rosto pensativo. Tinha vontade de saber se a Sra. Materas reparara que o Jack Frost agora estava completamente cercado pelo Sr. Freezee; quase,
pensou, como um laço.
- Bem, obrigado - disse ele. - Agradeço sua ajuda. Mais uma pergunta: a senhora tem muitos motoristas porto-riquenhos?
Ela refletiu por um momento.
- Alguns, talvez uns 30%. São bons trabalhadores. Ambiciosos. O senhor não pode explicar por que...
- Ainda não - disse ele com um sorriso afável - mas um dia vou poder.
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Em seguida ele foi ver Maria Ardizzone novamente, porque se lembrava de sua hesitação quando ele perguntara se alguma coisa em particular perturbara Luis antes de
ficar doente. Foi uma hesitação muito ligeira mas ele a notara e decidiu que era hora de descobrir se significava alguma coisa. Quando procurou seu endereço residencial,
descobriu que ela morava na pensão da Sra. Malone, o que explicava como ela e Luis se tinham conhecido quando os irmãos Mendez trabalhavam tantas horas a fio.
O quarto dela era menor que o dele, ficava no último andar da casa, e era quente. Era o tipo do quarto que ele imaginaria se tivesse parado primeiro para pensar
no caráter de Maria; ela se apossara dele ambiciosamente, como o faria com Luis se ele vivesse, e o pintara, forrara e decorara até parecer uma daquelas fotografias
de revista intitulada: "Como transformar um sótão em um apartamento." Havia um bocado de pelúcia branca por toda parte e fazenda florida preta e branca, e almofadas
fofas e vermelhas, e mesinhas de tampo de vidro. Pruden, que gostava de ver as partes essenciais de um quarto - chão e mobília sem forração
- achou-o sufocante, mas admitiu que era tão bonito quanto Maria.
Achou-a preocupada.
- Eu não entendo esse negócio de vodu. Luis ia comigo à igreja todos os domingos - reclamou numa voz preocupada. Eu sou católica romana e ele dizia que era também.
Nunca mencionou nenhum... nenhum culto vodu.
Ele concordou que isso pudesse ser um grande choque.
- E então saber... eu nem posso vê-lo - protestou, parecendo de repente muito jovem.
- Ele estava melhor ontem à noite. Eu o vi.
- Mas eu é que queria cuidar dele - disse ela simplesmente. - Estava rezando muito por ele.
- Então eu acho que suas preces devem ter... bem, trazido as pessoas que podiam ajudá-lo. Você ainda quer ajudá-lo?
Os olhos dela abriram-se mais.
- Mas é claro! Ah, o senhor não deve pensar que isso fez
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alguma diferença. Só que eu não entendo por que ele não me contou.
Pruden disse amavelmente:
- Talvez ele se sentisse um pouco embaraçado, compreende, ou pensasse que ia perder você. Você não é porto-riquenha, é?
Ela pensou sobre isso e pareceu entender. - É verdade.
- Então vamos aos fatos - Pruden sentou-se numa cadeira que fez os joelhos quase encostarem no queixo; levantou-se e foi para o sofá, que tinha um assento mais firme.
- Você hesitou quando perguntei se Luis estava preocupado com alguma coisa antes de ficar doente.
- Ah, aquilo - fungou Maria. - Uma coisa tão tola, e no entanto... e no entanto foi a primeira vez que o vi parecer... bem, tão mudado. A morte de Arturo o deixou
triste... ele chorou, compreende, mas isso...
- Conte-me. Ela se decidiu.
- Foi no dia seguinte ao enterro de Arturo e Luis tinha acabado de chegar do-trabalho. Eu fui até lá embaixo, a gente ia sair para dar uma volta, e vi um homem na
escada abaixo de mim. Luis estava em pé na porta do quarto observando o homem sair e tinha um jeito estranho, como se tivesse levado um soco na barriga.
Durante uns 10 minutos depois não parecia o mesmo... muito calado, distraído, e então saímos para ir ao cinema. Depois disso ele ficou bem.
- O homem tinha estado no quarto de Luis?
- Tinha, mas Luis não disse por quê. Eu pensei que fosse um amigo de Arturo para expressar seus pêsames.
- Você não sabe quem era o homem? Maria sacudiu a cabeça.
- Pode descrevê-lo?
- Ah, não - disse ela. - Eu só o vi de costas. Talvez a Sra. Malone o tenha visto. Ela é toda preocupada em manter a porta da frente trancada. Todo mundo tem de
tocar a campainha se não tiver chave.
- Vou descer e perguntar - disse ele e agradeceu.
A Sra. Malone, enterrada na cozinha, enxugou as mãos no avental e pensou na pergunta de Pruden.
- Alguém que veio ver Luis... - repetiu seriamente. Bem, eu não posso imaginar quem fosse, já que Luis não recebia visitas, se o senhor me compreende. - Levantou
a testa subitamente. - Ah sim, eu me lembro. Um rapaz, logo depois do jantar. Me pediu pra dizer a Luis que Carlos queria vê-lo. Sim, era esse o nome, Carlos...
Eu disse a ele que estava ocupada e que ele ia ter de achar Luis sozinho, no segundo andar em frente.
- A senhora se lembra como ele era? A Sra. Malone fechou os olhos.
- Cabelos e bigode pretos. Um rapaz de boa aparência, com seus 25 ou 26 anos. Usava o que eu chamaria de roupas berrantes. Cores vivas. Berrantes.
- Que tipo de bigode?
- Ah, fininho. O senhor sabe, como se usa atualmente. Pruden anuiu e anotou as informações.
- Obrigado, Sra. Malone - disse ele, e saiu para telefonar para Bill Kane, que estava de folga nesse dia mas patrulhara a Fifth durante três anos e talvez reconhecesse
a descrição. Leu-a para Kane no telefone.
- Está parecendo ser Carlos Torres - disse Kane. - Anda muito pelo Clube Social Caballeros.
As coisas estavam saindo melhor do que Pruden esperara.
- Tem algum emprego? Kane suspirou no telefone.
- Eu não sei realmente, Tenente. Pelo menos nunca fez nada de errado, que eu saiba. Conhece um monte de pessoas. Pode ser bookmaker, eu creio, mas francamente nunca
soube de nada suspeito com relação a ele. Badala bastante por aí. Simpático, educado, alegre. Boa aparência e bom papo.
- Hum - murmurou Pruden, e decidiu investigar o Sr. Carlos Torres só para ver o que fazia em suas andanças.
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Vinte e quatro horas depois, na segunda-feira à noite, Pruden tinha uma lista completa do que Carlos Torres fizera na noite de domingo e no primeiro dia da semana.
Era uma lista interessante: Kane estava certo, o rapaz badalava. O detetive começara a segui-lo às quatro e meia de domingo quando ele passeava com uma garota chamada
Esperita. Levara a moça a casa e parara na Lavanderia Alta Categoria, onde havia trabalho extra na parte dos fundos. Jantara no Grand Hotel, um lugar decente de
Seventh Street onde ele morava num quarto alugado no térreo. Enquanto comia, um homem
parara para falar com ele durante 15 minutos, seguido por outro, que tomou
café com ele. Então Carlos apanhara outra garota - uma loura de nome Carol - e a levara ao cinema. Depois disso fora até uma loja em Broad Street 1023, entrara na
passagem ao lado da loja, batera numa porta e entrara. Uma hora depois voltara ao hotel. Apagara as luzes à meia-noite.
De manhã apanhara o metrô até Dell, onde fora a um prédio comercial e entrara no escritório de um Harold Robichaud, Empresa de Entretenimento, Inc. Depois fora ao
escritório de um John Tortorelli, advogado, também em Dell, e ao meio-dia estava de volta a Broad StreeJ 1023, desta vez entrando na loja (O Bazar de Antigüidades,
Tudo de Bizarro) pela porta da frente. Depois de outra visita à Lavanderia Alta Categoria, voltou ao Clube Social Caballeros, desta vez com uma ruiva chamada
Marcia.
Bookmaker? pensou Pruden. Mensageiro? Intermediário? Agitador? O nome Tortorelli lhe era vagamente familiar. Pediu um resumo sobre Harold Robichaud e John Tortorelli
e decidiu fazer uma visita a Broad Street 1023, que era um item da lista que ele podia investigar imediatamente.
Achou o Bazar de Antigüidades, uma lojinha velha mas perfeitamente respeitável; de fato já reparara nela várias vezes, de passagem, por causa das máscaras da vitrine.
Uma vitrine tinha livros de segunda mão de boa qualidade - Pruden imaginou que este fora o objetivo original da loja -, enquanto a vitrine da direita continha máscaras
e figurinos assim como um pequeno sortimento
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de colares e anéis da África e do Oriente. Pequenas letras folheadas a ouro na porta anunciavam que R. Ramon era o proprietário.
Pruden entrou e acenou com a cabeça para o homem que levantou os olhos de um livro de contabilidade no balcão. Não havia mais ninguém na loja.
- Bom-dia - disse Pruden.
- Bom-dia, senhor. - A voz era cortês e agradável aos ouvidos. - Por favor fique à vontade para ver, mas se há alguma coisa em especial que deseje... - Deixou a
frase incompleta.
Ao agradecer ao homem e se virar para as máscaras, Pruden olhou rapidamente para ele e registrou o rosto na memória. Era um rosto comum, pensou, e não era desagradável:
óculos de aro fino de metal com lentes muito grossas, uma boca fina e grande, queixo entrado, calvo. Parecia-se estranhamente com um sapo com olhos protuberantes,
e de certa maneira parecia combinar muito bem com o bizarro e o exótico, como
uma gárgula de porcelana lustrosa colocado entre outras excentricidades. Enquanto Pruden
examinava as máscaras, de costas para o balcão, podia sentir o homem observando-o. Ele se virou e disse vivamente:
- O senhor tem um cartão? Estou completamente perdido em meio a tudo isso, mas tenho um tio que coleciona esse tipo de coisa. Ele ia ficar maluco aqui.
- Ah, eu espero que não - disse o homem amavelmente.
- Sim, eu tenho cartões. - Indicou uma pilha deles ao lado da caixa registradora e Pruden foi até lá e tirou um.
- E o senhor é o Sr. Ramon? - perguntou ele, lendo-o, - Sou.
Pruden guardou o cartão no bolso e se virou para os livros, correndo um dedo casualmente por eles como alguém tentando memorizar títulos para um tio inexistente.
Muitos deles tratavam de ocultismo mas havia também volumes mofados sobre história colonial, ervas, teologia e índios americanos. Com um último aceno de cabeça,
ele saiu da loja. fechou a porta atrás de si e continuou caminhando pela calçada. Chega de investigações,
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pensou, e voltou para a chefatura para ver o que tinham descoberto sobre Robichaud e Tortorelli.
Não precisava ter-se preocupado: havia muita coisa, coisas muito interessantes de fato.
Uma hora depois, após ler os relatórios trazidos, Pruden foi até o gabinete de seu superior com a testa franzida. Disse:
- Olha, tem havido algum indício ultimamente de que o Sindicato esteja se aproximando da seção porto-riquenha em Trafton?
Surpreso, o Chefe disse:
- O que foi que você descobriu?
- Algumas coincidências interessantes. O superior suspirou.
- É assim que começa geralmente: sussurros, ecos, rumores e coincidências. Eu não sei por que iam querer entrar em Fifth Street, porém, já passaram maus pedaços
para entrar na seção negra. Pelo menos cinco deles terminaram esfaqueados nas esquinas e eles acabaram fazendo um trato com Bonés Jackson, não foi?
-' Talvez tenham aprendido alguma coisa - disse Pruden.
- Talvez estejam agindo de maneira diferente agora, ficando de fora e deixando os porto-riquenhos assumir. - Colocou duas folhas de papel na mesa do Chefe. - Pus
um homem seguindo Carlos Torres ontem, por motivos tão ínfimos que seria embaraçoso explicar, mas quero ser mico de circo se ele não estiver me levando até o território
do Sindicato. Eu posso estar errado, mas acho que tem alguma coisa errada aí.
Ele se sentou e observou o rosto do Chefe e não se surpreendeu de vê-lo modificar-se quando ele chegou ao segundo parágrafo.
- Tortorelli! Este é do Sindicato com certeza... o melhor advogado deles. E Robichaud... - Franziu a testa. - Esse nome me lembra algo.
Pruden anuiu.
- O senhor vai encontrá-lo na página seguinte. Lembra-se da guerra do sorvete na seção Dell há dois anos? Os
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distribuidores originais perderam a batalha, pediram falência, e as Empresas de Entretenimento Robichaud gentilmente apareceram, compraram o negócio e assumiram
o negócio do
sorvete. Mr. Freezee lá. O Chefe deu um assovio baixinho.
- E estou vendo que Tortorelli supervisionou a compra. Nós desconfiamos da ligação com o Sindicato mas este envolvimento de Tortorelli ficou em segredo.
Pruden gostou da informação.
- Um desses repórteres novos revelou isso há um ano quando fazia um trabalho sobre Tortorelli.
- Como Carlos Torres entra nisso tudo?
Pruden hesitou.
- Um vendedor de sorvete aqui em Trafton morreu há 10 dias em estranhas circunstâncias. Um vendedor do Jack Frost, porto-riquenho, sem inimigos. Agora o irmão, que
também tem uma caminhonete de sorvete Jack Frost está para morrer ainda
esta semana.
O Chefe levantou as sobrancelhas.
- Mas ele ainda está vivo? O que ele diz? Você falou com ele?
- Ele está... hum... inconsciente - disse Pruden. Contudo, a única pessoa que foi visitá-lo na época foi Carlos. Torres, razão por que eu mandei segui-lo.
O Chefe recostou-se, com os olhos franzidos, refletindo.
- E visitou as Empresas de Tortorelli e Robichaud... E quanto à Lavanderia Alta Categoria?
- Estou investigando.
O Chefe balançou a cabeça.
- Não gosto disso, francamente. É melhor você transferir para Benson todos os outros trabalhos. Dedique-ce a isso por tempo integral e me peça o que precisar.
- Posso usar Slope se ele estiver disponível? - perguntou Pruden.
- É todo seu. Mais alguma coisa?
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Pruden levantou-se, foi até a porta, e depois com uma mão na maçaneta riu subitamente, com uma sensação de tristeza apossando-se dele.
- Bem, eu bem que ia gostar de saber que um certo salgueiro em Third Street... que devia ser uma bananeira... murchou e morreu. - Saiu, fechando a porta atrás
de si com cuidado.
Deixando a chefatura de polícia às cinco horas daquele mesmo dia, Pruden hesitou no degrau e depois, em vez de entrar no carro, virou à esquerda e começou a caminhar
rumo à Eighth Street. Encontrou Madame Karitska em casa, com Gavin enroscado no sofá com o trabalho de casa.
- Meu caro Tenente - disse Madame Karitska -, o senhor parece estar precisando muito de um café. Nada do aguado café americano mas sim algo forte. Vou preparar-lhe
também um sanduíche de pepino em conserva.
- Você não devia estar na Escola St. Bonaventure? - perguntou Pruden, deixando-se cair numa cadeira em frente a Gavin.
O garoto riu. -
- Tudo bem. Eu vim ver Madame Karitska no sábado, mas ela não estava aqui, então a escola disse que eu podia vir hoje à noite. Agora que sou órfão, eles me dão privilégios
especiais.
- Os quais é claro você recusa - disse Pruden com um sorriso.
- Não se depender de mim - riu Gavin. - O senhor já descobriu quem matou Arturo e deixou Luis doente? Madame Karitska estava me explicando por que não se encontrava
aqui no sábado quando eu vim.
- Não, mas já descobri uma porrada de outras... desculpe, um bocado de outras coisas.
- Como por exemplo, posso perguntar? - disse Madame Karitska, voltando da cozinha com uma bandeja.
- Bem, em pirmeiro lugar - confessou Pruden -, eu tenho de engolir o meu orgulho e admitir que este não é um casinho qualquer das redondezas que eu pensei que fosse
na última noite
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de sábado. Minhas desculpas à senhora - acrescentou ele, pegando um sanduíche -, mas eu honestamente achei que não passasse de um ex-namorado de Maria, ou um vizinho
que estivesse com ciúmes do sucesso de Arturo. Agora parece o maior caso que já caiu em minhas mãos.
- O Sindicato! Minha santa! - disse Gavin, com os olhos esbugalhados. - A senhora já ouviu falar no Sindicato, não ouviu, Madame Karitska?
Ela se sentou no sofá ao lado de Gavin e pôs um cigarro na piteira comprida.
- É, eu creio que se trata do crime organizado?
- Bastante organizado - disse Pruden secamente. - E não, eu poderia dizer, um grupo que costuma cultivar o vodu. Estivemos analisando os relatórios dos nossos detetives
hoje e parece que por alguma razão eles estão atrás do negócio de sorvete Jack Frost aqui em Trafton.
Madame Karitska riu.
- Que coisa estranha para se andar atrás! Ele anuiu.
- Tanto Arturo quanto Luis dirigiam caminhonetes de sorvete, lembra-se? Veja, olhe para os fatos - disse ele, e tirou do bolso uma lista resumida das atividades
de Carlos Torres. Entregando-a a Madame Karitska, ele disse: - Há dois anos na seção Dell houve o que passou a ser chamado nos jornais de "guerra do sorvete". Um
dos vendedores foi seqüestrado e depois solto, três caminhonetes de sorvete foram explodidas nas ruas, e as garagens de Mr. Freezee arrombadas com a maquinaria cara
roubada ou destruída. Isso continuou durante seis ou oito semanas e depois subitamente parou.
- O senhor não descobriu por quê? - perguntou Madame Karitska.
- Não, mas é só ver como as coisas se passaram. Neste caso, pouco depois que o tumulto terminou a distribuidora Mr. Freezee passou para Harold Robichaud das Empresas
de Entretenimento. Não sabemos nada sobre ele exceto que comprou o negócio, mas sobre o advogado que tratou da compra sabemos
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bastante. Seu nome é John Tortorelli e ele é um homem do Sindicato. Madame Karitska franziu a testa.
- Mas o senhor está falando do passado, de algo que aconteceu há dois anos.
- É, estamos começando a desconfiar que a situação vai se repetir.
- E este Carlos Torres? - perguntou Madame Karitska, lendo o resumo. - Quem é este Carlos Torres?
- Ele fez uma visita a Luís 12 horas antes dele cair doente. Na verdade foi o único estranho que já visitou Mendez. Ele mora perto da Fifth Street e é porto-riquenho.
- Ah - murmurou Madame Karitska. - Um elo... compreendo ... e ele o levou a esses outros? Mas este Tortorelli e Robichaud... eles lhe parecem o tipo de homens
que entendem de vodu?
Pruden riu.
- Absolutamente, mas vamos chegar lá no final.
- Este Carlos Torres então, talvez seja ele o que mataria por vodu?
- Carlos? - Sacudida cabeça. - É pouco provável. Madame Karitska disse com uma ponta de desespero na voz:
- O senhor não está mais investigando o que aconteceu com os irmãos Mendez, então?
Pruden suspirou.
- Olha, a senhora não entendeu. Esse caso está ligado ao Sindicato. É grande, é maior que os irmãos Mendez. Pode se transformar no maior caso que eu já descobri.
Ela disse amavelmente.
- Pelo contrário, eu acho que o senhor é que não está entendendo, Tenente. O senhor fala de coisas que aconteceram há dois anos, mas não percebe que de repente uma
mente muito original se envolveu. O passado não se está repetindo. O senhor falou de explosões e
seqüestros, mas alguém que faz as coisas sem violência física entrou em cena. Agora há violência contra o espírito. Não se pode deixar de admirar a originalidade,
o senhor não acha? O crime perfeito.
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- A senhora continua dizendo isso - disse ele com irritação, e lançou-lhe um olhar ressentido. Estava cansado e esperara aprovação, até mesmo admiração; em vez disso
ela insistia em trazê-lo de volta a Luis Mendez, que era apenas um elo para algo maior.
- O senhor não percebe - continuou ela vivamente que a mente de um homem capaz de conceber tal assassinato é infinitamente mais sutil, infinitamente mais sofisticada
e perigosa do que os seus criminosos do Sindicato?
- Nós estamos apenas começando - ressaltou ele na defensiva. - Está tudo embaralhado como um carretei de linha. Luis ainda está vivo, não está?
- Está - disse ela -, mas o salgueiro também, e dá a impressão de que vai permanecer assim. Por que o senhor acha que eles querem o negócio do sorvete Jack Frost,
ou qualquer outro deles?
- Ainda não sabemos mas vamos descobrir.
- Este Ramon - disse Madame Karitska, olhando para a lista. - O senhor já o investigou também?
- Ah, sim. Nada. Limpo como um... - disse Pruden, e ficou feliz por mudar de assunto. - Eu visitei a loja dele em primeiro lugar esta manhã.
- E aí?
- A senhora adoraria - disse ele com um sorriso. - Livros sobre histórias sobrenaturais, livros sobre casas assombradas. Umas máscaras estranhas feitas a mão da
África e da América do Sul.
- Ei, eu gostaria de ter uma dessas - disse Gavin, interessado. - Pode me levar lá no sábado, Madame Karitska? Os garotos iam achar o máximo em ter algo estranho
pendurado na parede do nosso dormitório.
Ela sorriu para ele.
- Eu vou levá-lo no sábado, sim, mas acho que posso dar uma chegada lá amanhã para me certificar primeiro se é, como você diz?, legal pra um jovem?
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- Ela é inflexível - disse Gavin para Pruden, anuindo. Não quer que eu saiba de coisas pornográficas e algo assim.
- Ela não é inflexível, é cuidadosa - disse Pruden, terminando seu café e levantando-se. - Ela vai até lá inspecionar o Sr. Ramon para você, admirar o anel que ele
estiver usando, pedir para segurá-lo e nos dizer mais tarde o que ele come todos os dias no café.
Mas não foi um anel que Madame Karitska acabou por segurar quando visitou o Bazar de Antigüidades na terça-feira à tarde; foi uma caneta-tinteiro, e foi apenas com
um considerável tato que conseguiu isso. Quando chegou à loja já havia alguns fregueses lá, e Madame Karitska caminhou em silêncio por entre os livros, vez por outra
olhando sorrateiramente para o homem atrás do balcão. Um homenzinho estranho, pensou. Ele parecia ser amigável, mas ela chegou à conclusão de que de todas as máscaras
expostas na loja, a dele era a mais curiosa. Nesse meio tempo ela esperou, e quando os outros se foram, ela foi até o balcão levando uma cópia
do livro Mágica na Teoria e na Prática de Crowley. Ela se movera silenciosamente e Ramon estava de costas. Apanhou a caneta com que ele estivera escrevendo, e ela
estava em sua mão
quando ele se virou e olhou para ela. Eles se entreolharam, e Madame Karitska sentiu necessidade de se apoiar no balcão.
Ele disse baixinho:
- Faça o favor de soltar minha caneta. Ela recolocou a caneta sobre o balcão.
- Obrigado - disse ele, e com um olhar divertido para o livro que estava na mão dela, acrescentou: - Aleister Crowley, eu compreendo... A senhora se interessa por
magia negra, talvez?
- Talvez.
Mas ele perdera o interesse, e a máscara estava de volta.
- São 57, por favor - disse ele.
Ela pagou, apanhou o livro e saiu, com o coração batendo depressa. Sentiu-se estranhamente fraca, como se recuperando-se
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de um acesso de febre que deixara seus nervos trêmulos e o corpo fraco. Foi imediatamente a uma cabine telefônica e discou o número de Pruden. Quando ele atendeu,
ela disse:
- Tenente, eu acho que o senhor deve... eu acho que o senhor deve... investigar o Sr. Ramon novamente.
- É Madame Karitska? - disse ele. - Sua voz parece mudada. Olha, eu estou no meio de uma conferência mas se a senhora puder explicar...
Uma onda de náusea invadiu-a; ela soltou o fone e cambaleou para fora da cabine, com a voz de Pruden seguindo-a pela porta aberta. Do lado de fora ela permaneceu
respirando fundo, com as mãos trêmulas ao se agarrar à porta para se segurar. Teve necessidade de ficar ali alguns minutos antes de se sentir bem o bastante para
repor o fone no gancho e começar a caminhar de volta a Eighth Street.
Pruden achou o telefonema de Madame Karitska frustrante, vindo como veio no meio de uma sessão de planejamento com o Chefe, Swope, Benson e um homem chamado Callahan.
Ele disse:
- Desculpem um minuto - e telefonou para o apartamento de Madame Karitska, mas, como não houve resposta, ele desligou e voltou-se para os outros. - Muito bem diga-me
o que descobriu sobre a Lavanderia Alta Categoria - perguntou a Swope.
- Algo muito interessante.
- Vamos ouvir.
- Certo. - Swope pegou os óculos e colocou-os. - Em novembro do ano passado houve uma explosão na lavanderia.
- De bomba?
- Não, os investigadores atribuíram a explosão a um boiler, mas o estranho é que os proprietários venderam o negócio depois do que aconteceu, e muito rápido. Não
foi uma bomba, foi a explosão de um boiler e no entanto venderam a loja.
- Sabotagem?
- Cheira a isso - disse Swope. - Um boiler não precisa de uma bomba para explodir. Existem várias coisas que se pode
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fazer para conseguir isso, mas de qualquer maneira os donos venderam. Agora está sob nova administração, uma família chamada Torres, e adivinha quem é o filho mais
novo. Pruden ficou cheio de ansiedade.
- Carlos?
- Assim é que eu gosto. - E acrescentou: - O advogado que tratou da compra foi John Tortorelli.
- Meu Deus - disse Pruden. - O Sindicato está mesmo se alastrando.
- Parece. O mesmo esquema.
- Eu não entendo - disse Callahan, perplexo. - O Sindicato vai aonde vai o dinheiro, e eu nunca imaginaria que houvesse alguma coisa capaz de tentá-los nos arredores
de Fifth Street. É claro que há crime lá, jogo, drogas, prostituição, loteria ilegal, mas isso é ninharia. Nada que valha a pena organizar.
- Parece que está ficando organizado agora - disse Pruden taciturno. - Aposto que a lavanderia é o quartel-general, e Carlos o garoto de recados. Quais são as últimas
notícias sobre ele, por falar nisso?
O Chefe entregou a ele uma folha de papel.
- O mesmo esquema. Ele fica do hotel para a lavanderia, de lá para Robichaud, Tortorelli e o Clube Caballeros.
- Então o que fazemos? - perguntou Benson. Pruden disse:
- Eu queria ver Robichaud e Tortorelli sob vigilância 24 horas por dia, informantes se revezando e fazendo relatórios e uma câmera colocada na Lavanderia Alta Categoria
24 horas por dia.
- Já estamos com Jack Beiçola lá embaixo - disse Benson. - Os rapazes acharam que você ia querer interrogá-lo, embora Jack insista em dizer que não sabe de nada
sobre o Sindicato entrando em Fifth Street.
Pruden levantou-se.
- Eu vou descer e ver o que posso arrancar dele. Eu acho
- disse com desânimo - que a gente não vai conseguir dormir muito nos próximos dias.
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- E o que há de novo nisso? - perguntou o Chefe numa voz amável.
Eram sete horas quando Pruden terminou de entrevistar a quantidade de informantes que tinham sido trazidos, e a única coisa que descobrira foi que um vendedor de
sorvete da seção norte de Trafton caíra doente e estava morrendo. Era um homem do Jack Frost, e seu nome era Raphael Alvarez, e ele estava há seis meses fora de
Porto Rico.
- É de deixar um sujeito com medo - disse o informante com um estremecimento. - Só faz dizer que vai morrer e fica lá deitado.
Como Luís, pensou ele... Isto lembrou Luís a Pruden e então o telefonema cortado de Madame Karitska durante a tarde. Ela dissera que Ramon devia ser investigado
novamente - só ouvira isso, e então a ligação tinha sido cortada antes que ela pudesse explicar por quê. Ele ficou parado nos degraus da chefatura sem saber se comia,
tirava algumas horas para dormir ou visitava o Bazar.
Swope, aparecendo atrás dele, disse:
- Aonde vai agora, Tenente? Pruden tomou uma decisão.
- Eu acho que vou dar uma olhada no Bazar de novo. Só uma olhadela. Quer vir comigo?
- Por que não? - disse Swope afavelmente, caminhando ao seu lado quando ele começou a andar. - Eu disse à minha mulher que ela não ia me ver muito durante alguns
dias. O lugar está fechado, porém, não está?
Pruden concordou.
- Está, mas na noite de domingo estava fechado e Torres deu a volta e entrou pelos fundos. Eu achei...
- Entendo - disse Swope. - Quanto falta pra chegar lá?
- É no próximo quarteirão, à esquerda.
Quando eles se aproximavam da loja uma caminhonete passou por ele e diminuiu a marcha, sinalizando para a esquerda. Suas
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partes laterais estavam pintadas de vermelho vivo: em letras grandes e douradas havia as seguintes palavras impressas: "Bazar de Antigüidades - Tudo de Bizarro (Brod
Street) 1023, R." Ramon, Proprietário. O carro virou na passagem ao lado da loja e desapareceu.
- Não está fechado por completo - observou Swope.
- Não - concordou Pruden.
Atravessando a rua, eles alcançaram a passagem a tempo de ver a caminhonete vermelha estacionar na garagem velha no final da passagem. Dois rapazes saltaram, pegaram
os bonés e as marmitas e começaram a caminhar pela passagem rumo à rua.
- Ei - disse um deles bruscamente, virando-se e apontando, e o companheiro correu até a garagem e fechou as portas; depois eles continuaram na direção de Broad Street,
passando por Pruden e Swope. Subiram a rua e viraram a esquina.
- Eles não trancaram essas portas. Eu não me importaria de dar uma olhada lá dentro - disse Pruden, interessado.
- Parece um presente caído do céu - concordou Swope.
- Vamos.
O arranjo do prédio era surpreendentemente simples: era uma casa velha a que acrescentaram a loja na frente. Nos fundos havia um pátio, uma varanda lateral, uma
garagem e todos os complementos convencionais de uma casa, inclusive uma antiga macieira. Não havia luzes nas janelas; o lugar parecia deserto. Eles abriram uma
porta da garagem destrancada naturalmente e entraram.
Swope, examinando as portas traseiras da caminhonete, disse:
- Trancadas.
Pruden espiou na parte da frente da mesma. Havia um leito atrás do assento do motorista para viagens longas, mas a parede atrás deste não tinha janelas e parecia
ser sólida, sem nenhum ponto de passagem para o lugar de carga atrás. Ele decidiu entrar na caminhonete para se certificar disso, e estava com um pé no chão da garagem
e o outro no estribo do veículo quando perdeu o equilíbrio e caiu de encontro à porta.
Atrás dele, Swope exclamou:
- Com os diabos!
Pruden, olhando para baixo, percebeu, surpreso, que o chão da garagem se estava movendo. Equilibrou-se novamente, olhou para Swope e o viu a alguns centímetros acima:
as portas da garagem de repente ficaram na altura de sua cintura à medida que o chão descia lentamente como um elevador. Swope pulara e estava em pé na entrada.
Ele gritou:
- Pelo amor de Deus, pula, Tenente!
Pruden permaneceu paralisado, querendo correr, querendo se juntar a Swope, mas também querendo ver o que havia abaixo de si. Um momento depois teve de se decidir
uma vez que a soleira da porta da garagem desapareceu de vista. Pruden voltou-se para a porta da caminhonete, entrou na mesma e passou para o leito atrás do banco.
Havia alguns cobertores empilhados num canto: ele se agachou num canto e puxou os cobertores sobre si.
A descida da caminhonete diminuiu, e ele e o carro deram numa sala iluminada embaixo. Ele ouviu um murmúrio de vozes e o tilintar de chaves abrindo a parte traseira
da caminhonete. Dois homens entraram; ele podia ouvir o som de seus pés caminhando a alguns centímetros de si, separados apenas pela divisória na qual estava encostado.
Puxaram uma carreta, começaram a descarregar objetos, e então ouviu-se um novo som: um martelar nos lados da caminhonete.
- Muito bem, Carlos, traz os anúncios do Freezee - gritou um homem, e martelou os lados da caminhonete novamente. Pruden permaneceu escondido e calado ao tirar certas
conclusões: Carlos Torres estava ali, e os anúncios estavam sendo trocados. Um velho truque de contrabando, pensou, mas o que significava isso? Tinham mencionado
anúncios do Freezee. Provavelmente a caminhonete do Bazar ia sair como um carro de entrega do Mr. Freezee, mas por quê, e com o quê?
Um toque alto e irritante interrompeu as batidas.
- Problemas na porta dos fundos - gritou um homem asperamente, e Pruden ouviu passos afastando-se, ecoando como se estivessem num corredor de alguma espécie. Depois
de ficar
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escutando por um minuto, ele concluiu que era a única pessoa na garagem. Foi-se arrastando cuidadosamente do leito, pôs a cabeça na porta e olhou em volta. Estava
numa sala subterrânea muito limpa com paredes de cimento e uma saída que levava a
um corredor comprido, pouco iluminado, com três portas no final. Ele adivinhou
que a rampa dava no porão da casa e da loja de Ramon.
Furtivamente Pruden saiu e olhou para um lado da caminhonete: ainda estava vermelho, com letras douradas que diziam: Bazar de Antigüidades. Ele deu a volta na caminhonete
e no outro lado deu com um cartaz azul e letras brancas que diziam: Mr. Freezee. Bom, pensou, muito bom. Foi até a traseira da caminhonete e debruçou-se para ver
as caixas de papelão que tinham sido tiradas e estavam arrumadas na carreta. Tirando o canivete, ele abriu a tampa de uma e espiou dentro da mesma.
A caixa tinha picolés Mr. Freezee.
Ele achou muito desleixo abandonar a carga ali, uma vez que sorvete derretia tão depressa, e então percebeu que não havia nenhum gelo seco à vista. Olhou dentro
da caminhonete e passou a mão em suas paredes: não era um carro refrigerado, e não havia sinal de gelo aí também. Voltou para a caixa e tirou um picolé, arrancou
o papel azul e branco e examinou-o. Tinha toda a aparência de ser de coco e cereja: era vermelho, e estava salpicado de branco, mas era quente e não frio. Apertou-o
com um dedo; era de plástico.
Um picolé de plástico... Cuidadosamente ele bateu-o contra a carreta e depois puxou o palito de madeira do retângulo de plástico. O interior era um alvéolo de
plástico fino: no centro ele achou um envelope de celofane cheio de pó branco. Tirou-o. Rasgando o celofane, cheirou a substância branca e depois lambeu o dedo e
colocou uns grãos sobre a língua. Era cocaína, não havia dúvida.
Ele pensou que já vira de tudo durante os anos de trabalho na polícia, mas a enormidade disso o deixou estarrecido. Parecia o máximo da insolência vender drogas
na rua em inocentes caminhonetes de sorvete, naqueles carros coloridos e
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festivos do bairro que traziam música, sinos e risadas consigo nos dias quentes, o único toque de inocência que restava às crianças. As pessoas se amontoavam, o
sorvete
verdadeiro era trocado por moedas e então um sujeito com a senha correta, o jeito adequado recebia esta... esta obscenidade.
Isto o encheu de uma fúria louca. Pensou que se Carlos e seus amigos voltassem agora ele sentiria um enorme prazer em alvejá-los um por um. Ao mesmo tempo seu instinto
lhe dizia para sair agora, procurar os botões para levantar a caminhonete, esconder-se dentro dela e voltar para cima, para o mundo exterior novamente. Mas não conseguia
raciocinar direito, sentia-se revoltado e irado. Olhou para as três portas no final da rampa e então começou a subir a rampa correndo em direção a elas, sem se importar
se era visto ou ouvido. Duas das portas tinham visores. Através da porta central, ele viu pés subindo; atrás da porta esquerda havia um depósito e uma oficina com
caixas de máscaras e um banco de carpinteiro. A porta à direita não tinha visor; ele a abriu e entrou.
Entrara num tipo de escritório: o de Ramon, concluiu, porque se parecia com ele. As paredes estavam cheias de mapas mapas de astrologia, imaginou - e máscaras horríveis.
O centro da sala era ocupado por uma enorme mesa coberta por desenhos e diagramas. Um pequeno ruído o intrigou até que ele foi até a mesa e viu que ao lado desta
havia uma máquina de teletipo. Ramon certamente fazia um bom negócio, pensou. Uma segunda máquina no canto chamou sua atenção e ele foi até ela e descobriu que era
um computador enorme com luzes pisca piscando.
Então viu o mapa de Trafton na parede atrás do computador, um mapa com todas as ruas e passagens expostas detalhadamente, e sentiu um ligeiro arrepio. Nesta sala
planos incalculáveis estavam sendo feitos para Trafton; ele fora dar num tipo de posto de comando onde algo estava sendo engendrado e organizado para sua cidade.
Voltou à mesa e examinou os papéis e mapas ali espalhados. Horóscopos, viu ele, olhando para um grosso maço de papéis com casas do zodíaco marcadas. Ao lado destes
havia um baralho de cartas de quiromancia e ali... ele
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olhou mais atentamente. Uma lista de nomes datilografados: Arturo Mendez, Luis Mendez, Raphael Alvarez... Lembrou-se de que Alvarez era o nome que seu informante
mencionara àquela noite. A lista era comprida, e o nome de Arturo no alto fora riscado com caneta vermelha.
Pruden ficou pensando sobre isso. Madame Karitska dissera "uma mente original", e agora ele compreendia finalmente o que ela quisera dizer. Pela primeira vez aceitava
o fato de que Arturo Mendez fora realmente assassinado e que Luis Mendez estava sendo assassinado. Nem um dedo os tocara, mas aqui nesta sala um homem os analisara
profundamente e avaliara seus temores com tamanha precisão, que era capaz de manipular suas mortes sem saber nada sobre sua história e sua cultura, e sem mesmo conhecê-los.
"Astuto", pensou, mas sabia que esta palavra apenas escondia sua inquietação. Era o potencial por trás dela que o perturbava, era a sensação inquietante de que se
isto podia acontecer a dois homens felizes e simples, então na certa futuramente podia acontecer a ele também e a outros.
Estava perdido nesses pensamentos quando uma voz falou atrás de si, uma voz estranhamente calma e quase terna.
- Boa-noite. O senhor percebe é claro que está invadindo propriedade alheia, não é senhor?
Pruden virou-se subitamente e viu Ramon em pé na porta; ele entrara sem um ruído e estava rindo para Pruden.
- Sim - disse Pruden.
- Eu devia obviamente ficar indignado ou alarmado mas nunca gasto energia nem emoções desnecessárias - disse Ramon, a luz baixa refletindo nas lentes de seus óculos
e deixando-as opacas. - E estou certo de que o senhor tem uma explicação plausível. - Havia uma ponta de ironia em sua voz? Enquanto isso estou certo de que podemos
encontrar uma solução prática para este encontro se usarmos de franqueza. Eu já o vi antes, não? O senhor esteve em minha loja ontem.
Pruden concordou.
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- E agora está vendo o que eu chamo de um moderno laboratório de alquimia.
O importante, pensou Pruden, era ganhar tempo. Swope sabia o que fazer, Swope o vira desaparecer, e graças a Deus ele não viera sozinho. O alarme ia ser dado, carros
de patrulha chamados, um plano armado. Não afunde o barco, disse para si mesmo,
mantenha-o bem-humorado, mantenha-o falando.
- O senhor é um pesquisador do oculto, pelo que vejo. Ramon riu.
- Um mestre. O que acha do meu pequeno escritório?
- Um tanto estranho - admitiu Pruden. - Incomum, certamente. - Sentia os olhos de Ramon sobre si e era uma sensação desagradável porque não conseguia ver os
olhos do homem e isso era ainda mais inquietante.
- Posso lhe perguntar o seu nome, senhor? - disse com a voz afável.
- Pruden.
- Ah, sim. De fato, Sr. Pruden, eu sou um estudioso e um inventor. No momento sou consultor de um grupo que está muito interessado em minha pesquisa, que é altamente
especializada, e eles estão dispostos a pagar somas astronômicas por certos estudos que fiz. É absurdo, é claro, mas eu tenho um QI de mais de 200, o que compensa
o fato de eu ser pequeno, quase deformado em aparência, e quase cego. - Ele disse isso baixinho, com os olhos pregados em Pruden, ao esperar por sua resposta.
- É mesmo? - disse Pruden no mesmo tom, e perguntou numa voz neutra. - E o senhor usa suas... ha... pesquisas... para o bem ou para o mal?
Ramon riu.
- Uma pergunta convencional, Sr. Pruden. O poder tantas vezes é usado para o mal, não é? Eu creio que foi Lorde Acton que disse: "O poder tende a corromper, e o
poder absoluto corrompe absolutamente."
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- Que tipo de poder? - perguntou Pruden, e decidiu parar de pensar em Swope porque tinha a estranha sensação de que aqueles olhos opacos podiam ler sua mente.
- Poder para destruir as pessoas. - Ramon riu. - Eu podia destruí-lo, Sr. Pruden, facilmente, em menos de dois dias. Considere isto um cumprimento, por falar nisso,
porque a maioria das pessoas eu seria capaz de reduzir a nada em horas, sem violência.
- Perdoe-me se sou um cético - disse Pruden.
- Ah. eu lhe posso garantir que é possível, e inteiramente isento de violência física de qualquer espécie. Todo ser humano tem seu calcanhar-de-Aquiles psicologicamente,
compreende, sua própria auto-imagem a cultivar. Ia levar algum tempo para descobrir a sua, Sr. Pruden, mas o senhor tem uma. Todo mundo tem. Perturbe essa imagem,
que é como a pele de um balão, e seguindo a explosão o que sobra... ora, nada. Ou loucura admitiu modestamente.
- O senhor usa drogas, é claro - disse Pruden asperamente.
Ramon ficou chocado.
- Meu caro senhor, o senhor não entendeu nada. É claro que não. O senhor é um animal completamente condicionado, Sr. Pruden, composto de hábitos, do julgamento de
outras pessoas, das idéias, opiniões e reações de outras pessoas. O que temos de nosso, intocado por outros? Muito pouco. É mais provável que não se tenha centro
nenhum. Os seres humanos são eternamente fragmentados e altamente suscetíveis a um colapso do ego. Estatisticamente, meu caro senhor, apenas um homem dentre 20 é
um líder, com as aptidões e força de um líder. O resto são ovelhas. Os chineses sabem disso. Os norte-coreanos descobriram isso quando fizeram lavagens cerebrais
em seus prisioneiros nos anos
50. Destrua aquele líder e os outros não serão mais problema. Quase todos os seres humanos são máquinas, Sr. Pruden. Sonâmbulos inconscientes.
- Sonâmbulos - repetiu Pruden, reconhecendo a expressão.
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- Mas acho que estamos perdendo tempo conversando aqui
- confessou Ramon com um sorriso benevolente. - Francamente, uma pequena conferência se faz necessária com os meus empregados enquanto discutimos sobre esta situação
inesperada. Eu nunca - acrescentou com um sorriso cativante - lidei com um intruso antes.
- Suponho que não - disse Pruden.
- Sugiro que o senhor espere na sala ao lado enquanto falo com eles sobre isso. Se fizer a gentileza...
Pruden deu de ombros.
- Tudo bem.
- Bom. A porta fica atrás daquela cortina vermelha ali. O senhor vai encontrar cigarros ali, e um pequeno bar. É a minha sala de visitas... eu posso lhe assegurar
que sou bem civilizado.
- Ramon foi até a cortina e puxou-a, mostrando uma porta de carvalho. Abriu-a e acendeu as luzes. - Não há nenhuma armadilha aqui, como pode ver. Vamos terminar
com isso rápido, Sr. Pruden, com o mínimo de suspense possível para o senhor.
- Sim - disse Pruden polidamente, e se perguntou se, passado por Ramon, conseguiria chegar perto o bastante para alcançá-lo, mas descobriu que a idéia de agarrar
o homem enchia-o de náusea. Sentia-se curiosamente cansado, despido de sua energia de costume. De qualquer maneira tinha de ter dado tempo a Swope, pensou. Certamente'
agora, certamente a qualquer minuto?
Entrou numa sala grande mobiliada com sofás e mesas baixos. Não havia janelas; em vez disso as paredes eram cobertas com antigas tapeçarias enquanto no centro da
sala havia um Buda maciço sentado sorrindo para ele. Nas prateleiras à direita, atrás do vidro, ele viu porcelanas e peças de jade chinesas que pareciam ter saído
de um museu. Era tudo tão fantástico, pensou, um alojamento subterrâneo. O tema da sala era oriental, agradável e incomum, o motivo criado pelo Buda, que era mais
alto do que ele, esculpido em madeira - teca, reparou, aproximando-se dele com curiosidade - e colorido com pinceladas de azul e vermelho.
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De repente parou, pensando no Buda.
Buda azul e vermelho. O aviso de Madame Karitska..... Buda... perigo vindo de trás...
Pruden virou-se na hora em que Ramon atirou com um olhar de ódio e desprezo distorcendo-lhe o rosto. A bala atingiu Pruden do lado, ele sentiu uma pontada de dor
atravessar-lhe o peito, uma dor intensa e insuportável, e então caiu no chão e a escuridão abateu-se sobre ele.
Horas, dias, semanas mais tarde Pruden abriu os olhos, para um teto luminoso e uma sensação de desconforto. Lentamente seus olhos focalizaram um ramalhete de flores
amarelas e ele pensou: Devo ter morrido. Além das flores ele viu um rosto que lhe pareceu cômico mas também vagamente familiar: um rosto bem bronzeado com um bigode
branco e olhos azuis vívidos. O rosto levantou-se e se aproximou.
- Você está acordado - disse ele. - Vou chamar a enfermeira.
- Quem - começou _a dizer Pruden.
- Faber-Jones - disse a voz. - Estamos nos revezando aqui ao seu lado, Madame Karitska e eu.
- Karitska - repetiu Pruden. E então quando tudo lhe veio novamente à consciência ele disse: - Havia um Buda. Diz a ela que havia um Buda.
- Certo - disse a voz, e desapareceu.
-' Um Buda - disse Pruden à enfermeira quando ela apareceu com o chapéu engomado branco. - Havia um Buda.
- Sim, Tenente, mas tome essas pílulas agora... O senhor esteve muito doente, muito doente mesmo, nós quase o perdemos.
Quando ele voltou a si novamente, o teto estava escuro e o quarto em sombras, exceto por um abajur aceso numa mesa. Ao lado desta estava Swope, usando um chapéu
branco.
- É, sou eu, Tenente - disse Swope, levantando os olhos de uma revista.
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- Que diabo é isso - disse Pruden, olhando para ele Um chapéu?
- Chapéu! Não é chapéu, é uma bandagem - resmungou Swope. - Eu só saí do hospital há cinco dias e tenho de usar essa droga até sexta-feira, quando caírem os últimos
pontos. Nós dois ficamos feridos, Tenente, mas o senhor nos deixou preocupados. Está aqui há duas semanas.
Isto reanimou Pruden.
- Quanto tempo?
- Cirurgia - disse Swope. - Uma bala perto do coração. O papa da cirurgia aqui no país abriu-o ao meio e depois juntou-o de novo. Meio centímetro mais perto e ia
ser fatal.
Pruden franziu a testa.
- A coisa estava nos picolés - disse ele abruptamente. Swope anuiu.
- Se o senhor é capaz de se lembrar como tudo começou eu lhe conto como acabou. Depois que o senhor desapareceu naquele elevador eu telefonei de uma cabine pra chefatura
e corri pra encontrá-lo, só que eles estavam esperando por mim. Quase me mataram, também. Eu estava inconsciente quando o Chefe chegou lá, então eles demoraram um
pouco a perceber que o senhor também estava em apuros, e então tinham de ter um mandado de busca. Foi isso que atrasou as coisas. O senhor não precisa se preocupar
com os picolés, porém, eles fizeram uma limpa. As drogas vinham da América do Sul dentro das máscaras que Ramon vendia. Vinham por caminhão, saíam nos picolés.
Uma enfermeira entrou e fez Swope parar de falar.
- Não queremos cansá-lo agora, queremos?
Pruden detestou a voz animadora da enfermeira mas, no entanto, ficou grato e imediatamente pegou no sono. Quando despertou novamente, estava com a cabeça clara pela
primeira vez e sentiu-se quase o mesmo novamente. A manhã já ia alta, e na cadeira ao lado de sua cama estava Madame Karitska.
- Bem - disse ele, olhando para ela.
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- Bem - retrucou ela, com os olhos cintilantes. - O senhor é um herói, Tenente, eu cheguei a sair e comprar jornais para ler sobre o senhor.
- Conheci o seu Buda, também, sabe.
- Foi o que o Sr. Faber-Jones me contou ontem - disse ela. - Não fico surpresa. Aquele Sr. Ramon... - Ela sacudiu a cabeça. - Algum dia quando estiver melhor
vou contar-lhe o que vi nele. Nunca - disse ela simplesmente - senti tanto mal num homem, nem me defrontei com tamanho poder, tamanha inteligência nem tamanha alma
distorcida.
- Ele era como a senhora - disse Pruden numa voz duvidosa. - Quero dizer, falava das mesmas coisas que a senhora, mas torcia tudo, virava de cabeça para baixo.
Ele sabia.
- Sabia? Pruden estremeceu.
- Os motivos. As fraquezas. As pessoas. A maioria das pessoas, eu acho. Como curvá-las e destruí-las.
- Satânico - disse Madame Karitska, anuindo -, mas não vamos falar dele hoje, pois o sol está brilhando e o senhor está vivo e eu tenho boas notícias para lhe dar.
- Boas. O que é?
- O salgueiro morreu - disse ela. - Morreu subitamente na manhã seguinte ao dia em que o senhor foi alvejado, e Luís está de volta ao trabalho, dirigindo sua caminhonete
de sorvete. De fato ele planeja vir aqui um dia pessoalmente para lhe agradecer, e para isso está decorando um discurso em inglês.
- Bem - disse ele, satisfeito. - Fico feliz em ouvir isso. Na verdade se a senhora... - Mas os olhos de Pruden se tinham dirigido para a janela e ele ficou subitamente
calado. Alguém levara as flores amarelas para o parapeito da janela, onde elas apanhavam o sol brilhante da manhã em suas pétalas
dando-lhes um brilho de ouro. Ele achou que nunca tinha visto tal colorido em sua vida, nem olhado para uma flor antes, e sentiu lágrimas virem-lhe aos olhos com
o impacto de sua beleza. Um simples
ramalhete de narcisos num vaso de cerâmica branco... Sempre achara que o branco era incolor mas no vaso branco cor
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de neve pôde perceber reflexos de amarelo, e um suave sombreado azul que combinava exatamente com o azul do céu além das. flores. - Meu Deus - disse ele, admirado
-, eu estou vivo. Eu creio que nunca me dei conta antes do que isso significa.
- Ah - disse apenas Madame Karitska.
- Aquelas flores. A senhora reparou nelas, está vendo o sol nelas?
- Diga-me - disse ela, observando-o atentamente.
- Elas estão vivas, também, da maneira mais incrível...
- Ele parou de falar, com a voz incerta. - Eu pareço um louco.
Ela meneou a cabeça. Bem baixinho disse:
- Eu acho que os desenhos do caleidoscópio mudaram um pouco para o senhor, meu caro Tenente. Já ouviu o ditado que diz que quase perder a vida é encontrá-la? O senhor
vai se modificar, talvez. Preste atenção.
- É isso que é a vida?
- É o que pode ser - disse ela. - Ver, ver realmente e então finalmente... finalmente a compreensão. - Ela se levantou, apanhou a bolsa e sorriu para ele. - Como
dizem os franceses: "É preciso recuar para saltar melhor." O meu francês está muito enferrujado, como eles dizem?
"Il fauí reculer pour mieux sauter." Descanse bastante,
meu amigo, venho visitá-lo amanhã novamente. -
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Wilkie Collins

A MULHER DO SONHO

Eu ainda não completara mais de seis semanas medicando no interior, quando fui chamado a uma cidade vizinha, para conferenciar com o médico residente sobre um caso
de doença muito perigoso.
Meu cavalo caíra comigo ao fim de uma longa cavalgada na noite anterior e se machucara, muito mais do que machucara o dono, felizmente. Sem os serviços do animal,
eu saí rumo ao meu destino de carruagem (não havia estradas de ferro naquela época), e esperava voltar novamente, ao entardecer, da mesma maneira. Depois de falar
com o médico, fui à principal hospedaria da cidade esperar a carruagem. Quando esta chegou, estava cheia por dentro e por fora. Não me restava outro recurso senão
chegar a casa da maneira mais barata, alugando uma charrete. O preço pedido me pareceu tão alto que decidi procurar uma hospedaria de menores pretensões, e tentar
ver se conseguia fazer uma barganha melhor com um estabelecimento menos próspero.
Logo encontrei uma casa do tipo que desejava, velha e sossegada, com um letreiro antigo, evidentemente não era pintado há muitos anos. O senhorio, neste caso, não
fez exploração
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e, logo que combinamos tudo, ele tocou a campainha do pátio para mandar trazer a charrete.
- Robert ainda não voltou? - perguntou o senhorio, dirigindo-se ao garçom que respondeu à campainha.
- Não, senhor.
- Bem, então você tem de acordar Isaac.
- Acordar Isaac! - repeti. - Isso parece estranho. Os seus empregados de estrebaria dormem de dia?
- Este dorme - disse o senhorio, sorrindo para si mesmo de uma maneira estranha.
- E sonha também - acrescentou o garçom. - Nunca vou esquecer o susto que ele me deu a primeira vez que o ouvi falar.
- Não se preocupe com isso - retorquiu o proprietário.
- Vá acordar Isaac. O cavalheiro está esperando a charrete.
A maneira do proprietário e a maneira do garçom expressaram muito mais do que os dois disseram. Comecei a desconfiar de que podia estar diante de algo profissionalmente
interessante para mim como médico, e achei que gostaria de dar uma olhada no homem antes de o garçom acordá-lo.
- Pare um minuto - interpus. - Eu quero ver este homem antes de você acordá-lo. Eu sou médico: e se esse hábito estranho de dormir e sonhar for resultado de algo
errado no cérebro dele, eu talvez possa dizer o que fazer com ele.
- Eu não creio que o senhor consiga resolver o problema dele com a medicina - disse o proprietário -, mas se deseja vê-lo, é bem-vindo.
Ele me conduziu através de um pátio e sob uma passagem até os estábulos, abriu uma das portas e, esperando do lado de fora, me disse para entrar.
Eu me encontrei num estábulo com duas baias. Em uma delas, um cavalo ruminava o milho; na outra, um velho estava adormecido no feno.
Abaixei-me e olhei para ele atentamente. Era um rosto murcho e acabrunhado. As sobrancelhas estavam contraídas; a boca fechada e caída nos cantos. As bochechas cavadas
e enrugadas,
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e os cabelos grisalhos e escassos eram mostras de alguma tristeza ou sofrimento passados. Respirava com dificuldade quando olhei para ele pela primeira vez, e num
momento depois ele começou
a falar no sono.
- Acordem! - Eu o ouvi dizer, num sussurro rápido, através dos dentes cerrados. - Acordem aí! É um assassinato!
Ele mexeu um braço magro lentamente até levá-lo à garganta, estremeceu um pouco e se virou na palha. Então o braço saiu da garganta, a mão se esticou e agarrou-se
no lado para o qual se virara, como se ele se imaginasse segurando na ponta de alguma coisa. Eu vi seus lábios moverem-se e me abaixei mais um pouco sobre ele. Ele
ainda falava no sono.
- Olhos cinza-claros - murmurou - e a pálpebra esquerda caída; cabelos louros, com uma mecha dourada... muito bem, Mamãe... braços brancos e bonitos, com uma penugem
em cima... uma mão delicada, com um tom rosado sob as unhas. A faca... sempre a maldita faca... primeiro num lado, depois no outro. Ah! sua diaba, onde está a faca?
Na última palavra sua voz aumentou, e ele ficou inquieto de repente. Eu o vi estremecer
no sono; o rosto murcho distorcer-se, e ele jogar as mãos para o alto com
um rápido engasgo histérico. Elas bateram na beirada da manjedoura sob a qual ele estava, e o golpe o despertou. Foi o tempo de eu sair pela porta e fechá-la antes
que os olhos dele estivessem completamente abertos e, fosse dono dos sentidos novamente.
- O senhor sabe alguma coisa sobre a vida passada daquele homem? - perguntei ao senhorio.
- Sim, senhor. Sei tudo sobre ela - foi a resposta - e é uma história estranha e incomum. A maioria das pessoas não acredita nela. É verdadeira, porém. Ora, é só
olhar pra ele continuou o homem, abrindo a porta do estábulo novamente. Pobre-diabo! está tão cansado com as noites tumultuadas que já voltou a dormir.
- Não o acorde - disse eu. - Não tenho pressa de pegar a charrete. Espere o outro homem voltar; e, enquanto isso, o que
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acha de comermos alguma coisa e tomarmos uma garrafa de vinho juntos?
O coração do meu anfitrião, como eu esperava, se aqueceu com o vinho. Logo se tornou comunicativo sobre o assunto do homem adormecido no estábulo, e pouco a pouco
eu lhe arranquei a história toda. Extravagantes e incríveis que possam parecer tais acontecimentos, são descritos aqui exatamente como eu os ouvi e exatamente como
aconteceram.

II

Há alguns anos, vivia nos subúrbios de urn grande porto marítimo na costa ocidental da Inglaterra um homem em circunstâncias humildes, de nome ísaac Scatchard. Seus
meios de subsistência provinham de qualquer emprego que ele conseguisse como empregado de estrebaria, e ocasionalmente, quando as coisas davam certo para ele, de
empregos temporários como ajudante de estábulo em casas particulares. Embora fosse um homem fiel e honesto, não se dava bem nos empregos. Sua falta de sorte era
conhecida entre os vizinhos. Sempre perdia boas oportunidades sem ter culpa, e sempre ficava a serviço de pessoas amigáveis mas que não eram pagadores pontuais dos
salários. "Pobre Isaac" era o seu apelido na vizinhança, e ninguém podia dizer que ele não o merecesse realmente.
Com um quinhão de adversidade bem grande a suportar, Isaac tinha apenas um consolo para apoiá-lo, e este era do tipo mais negativo. Não tinha esposa nem filhos para
aumentar suas ansiedades e se acrescentar à amargura dos vários fracassos da vida. Talvez fosse por mera insensibilidade ou talvez por não querer envolver outra
pessoa em seu destino infeliz; mas o fato é que ele chegara à meia-idade sem se casar e, o que é mais notável, sem se expor, dos 18 aos 38 anos, à incrível acusação
de jamais ter tido uma namorada.
Quando não estava trabalhando, vivia sozinho com a mãe viúva. A Sra. Scatchard era uma mulher acima do normal em sua baixa posição social no que diz respeito a capacidade
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e maneiras. Já tivera melhor situação, como se diz, mas nunca se referia a ela na presença de visitantes curiosos; e, embora muito educada com qualquer pessoa que
se
aproximasse dela, nunca cultivava amizades íntimas entre os vizinhos. Lutava para prover, com bastante dificuldade, suas necessidades simples, fazendo serviços pesados
para os alfaiates, e sempre conseguiu manter uma casa decente para abrigar o filho toda vez que sua má sorte o deixasse necessitado.
Num frio outono, quando Isaac estava para fazer 40 anos, e quando estava, como sempre, sem trabalho por motivos alheios à sua responsabilidade, ele saiu da casa
da mãe para uma longa caminhada pelo interior para se apresentar a uma vaga como empregado de estábulo de um cavalheiro.
Faltavam então apenas dois dias para o seu aniversário; e a Sra. Scatchard, com o carinho de sempre, o fez prometer, antes de 'partir, que ele voltaria a tempo de
passar o aniversário com ela, da maneira mais festiva que seus meios permitiam. Era fácil para ele cumprir este pedido, mesmo que dormisse uma noite na ida e outra
na volta, na estrada.
Ia partir na manhã de segunda-feira, e, conseguisse o lugar ou não, devia estar de volta para o jantar de aniversário na quarta-feira às duas horas.
Chegando ao seu destino muito tarde na noite de segundafeira para se apresentar à vaga de empregado de estábulo, ele dormiu na hospedaria do vilarejo, e em boa hora
na terça-feira de manhã se apresentou à casa do cavalheiro para a vaga. Aí, mais uma vez sua má sorte o perseguiu inexoravelmente como sempre. As excelentes referências
por escrito que mostrou de nada lhe adiantaram; sua longa caminhada fora em vão; no dia anterior o emprego fora dado a outro homem.
Isaac aceitou este novo desapontamento resignadamente e com naturalidade. Pouco inteligente por natureza, ele tinha a insensibilidade e a paciência fleumática que
geralmente caracterizam os homens com faculdades de raciocínio lentas. Agradeceu ao capataz do cavalheiro com a civilidade serena de costume
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por conceder-lhe a entrevista, e saiu sem nenhuma aparência de depressão no rosto nem nas maneiras.
Antes de partir para sua caminhada de volta à casa, fez algumas perguntas na hospedaria, e concluiu que poderia cortar caminho, tomando uma nova estrada. Munido
das instruções certas, repetidas algumas vezes, sobre as diversas curvas que deveria fazer, ele saiu em sua jornada de volta ao lar, e caminhou o dia todo com apenas
um farnel de pão e queijo. Quando começava a escurecer, a chuva caiu e o vento começou a soprar, e ele se achou, para piorar as coisas, numa parte do país que lhe
era inteiramente desconhecida, embora soubesse que estava a uns
24 quilômetros de casa. A primeira casa que encontrou foi uma hospedaria de estrada que ficava nos arredores de um bosque cerrado. Apesar da aparência solitária,
o lugar era bem-vindo a um homem perdido que também estava faminto, sedento, cansado e molhado. O dono tinha uma aparência educada e respeitável, e o preço que pediu
por um quarto foi bastante razoável. Isaac, decidiu parar confortavelmente na hospedaria para passar a noite.
Era um homem moderado por constituição. Sua ceia consistiu de duas fatias de bacon, um pedaço de pão feito em casa e uma caneca de cerveja. Não foi dormir imediatamente
depois da refeição frugal, mas ficou conversando com o dono sobre suas más perspectivas e sua má sorte, divergindo desses tópicos para assuntos de cavalos e corridas.
Nada foi dito nem por ele próprio, nem pelo seu anfitrião nem pelos poucos empregados que passaram pelo bar que pudesse, por pouco que fosse, excitar a faculdade
imaginativa muito pequena que Isaac Scatchard possuía.
Pouco depois das 11 horas a casa fechou. Isaac fez a vistoria com o dono e segurou a vela enquanto o outro fechava as portas e as janelas mais baixas. Ele reparou,
com surpresa, nas trancas e barras pesadas e nos postigos recobertos de ferro.
- O senhor compreende, nós ficamos muito isolados aqui
- disse o dono. - Nunca tivemos nenhuma tentativa de assalto, mas é sempre bom estar em segurança dentro de casa.
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Quando não há nenhum hóspede dormindo aqui, eu sou o único homem na casa. Minha mulher e filha são tímidas, a empregada é parecida com as patroas. Outro copo de
cerveja antes de recolher-se? Não? Bem, como um homem sóbrio como o senhor fica desempregado eu não entendo. Aqui está o seu quarto. O senhor é o único hóspede esta
noite, e eu acho que vai dizer que a minha mulher fez o máximo pra deixá-lo confortável. Tem certeza de que não quer outro copo de cerveja? Muito bem.
Boa-noite.
Eram 23:30 no relógio do corredor quando eles subiram as escadas para o quarto, cuja janela dava para o bosque nos fundos da casa.
Isaac trancou a porta, pôs a vela sobre a cômoda e, exausto, foi-se deitar. O vento frio de outono ainda soprava, e o gemido solene e monótono deste no bosque era
assustador e terrível no silêncio da noite. Isaac sentiu-se estranhamente sem sono. Resolveu, ao se deitar na cama, conservar a vela acesa até pegar no sono, pois
havia algo depressivo na simples idéia de ficar acordado na escuridão, ouvindo o lamento triste e interminável do vento no bosque.
O sono chegou antes que ele percebesse. Seus olhos se fecharam, ele pegou no sono sem sentir e sem pensar em apagar a
vela.
A primeira sensação de que teve consciência depois de mergulhar no sono foi um estranho tremor que lhe atravessou o corpo subitamente da cabeça aos pés, e uma horrível
dor no coração, como nunca sentira antes. O tremor apenas perturbou seu sono; a dor despertou-o imediatamente. Num momento ele passou do sono para o estado consciente
- com os olhos bem abertos -, as percepções mentais subitamente abertas, como por
milagre.
A vela queimara quase até o último pedaço de sebo, mas a ponta do pavio acabara de cair, e a luz no pequeno quarto ficou, no momento, clara e forte.
Entre os pés da cama e a porta fechada havia uma mulher com uma faca na mão, olhando para ele.
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Ele ficou mudo de terror, mas não perdeu a consciência e não tirou os olhos da mulher. Ela não disse uma palavra quando eles se entreolharam; começou a se dirigir
lentamente para o lado esquerdo da cama.
Os olhos dele a acompanharam. Era uma mulher clara e bonita, com cabelos louros e olhos cinza-claros, com a pálpebra esquerda caída. Ele reparou nessas coisas e
gravou-as na mente antes de ela dar a volta na cama. Muda, sem nenhuma expressão no rosto, sem fazer barulho, ela se aproximou cada vez mais parou - e lentamente
levantou a faca. Ele pôs a mão direita sobre a garganta para salvá-la; mas, quando viu a faca baixar, jogou a mão para o outro lado da cama e virou o corpo exatamente
na hora em que a faca desceu sobre a cama a três centímetros de seu ombro.
Os olhos dele fixaram-se no braço da mulher quando ela lentamente puxou a faca da cama; um braço branco e bem torneado com uma penugem bonita sobre a pele clara
- uma mão delicada, com um tom rosado bonito sob as unhas redondas.
Ela tirou a faca e passou novamente devagar pelos pés da cama; parou ali por um momento olhando para ele; depois se dirigiu - ainda calada, ainda sem nenhuma expressão
no rosto belo, ainda sem fazer ruído com os passos furtivos - para o lado direito da cama, onde ele estava agora.
Quando ela se aproximou, levantou a faca novamente, e ele se jogou para o lado esquerdo. Ela golpeou, como antes, o leito, com um movimento perpendicular para baixo.
Desta vez ele desviou os olhos dela para a faca. Era como os facões grandes que ele vira várias vezes trabalhadores usarem para cortar pão e bacon. Seus dedos delicados
e pequenos não escondiam mais de dois terços do cabo; ele reparou que este era feito de chifre, limpo e reluzente como a lâmina, e parecendo novo.
Pela segunda vez ela puxou a faca, escondeu-a na manga larga do vestido, depois parou do lado da cama, observando-o. Por um instante ele a viu em pé naquela posição,
depois o pavio da vela gasta caiu dentro da manga do lampião a chama diminuiu, tornando-se um pontinho azul, e o quarto ficou no escuro.
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Um momento, ou menos, se possível, se passou, e então o pavio chamejou, enfumaçado, pela última vez. Os olhos dele ainda olhavam ansiosamente para o lado direito
da cama quando o último lampejo de luz veio, mas não discerniram nada. A mulher loura com a faca desaparecera.
A convicção de que estava sozinho novamente diminuiu a sensação de terror que o emudecera até então. A pungência sobrenatural que a intensidade de seu pânico misteriosamente
conferira às suas faculdades deixou-as subitamente. Seu cérebro ficou confuso, seu coração bateu sem parar, seus ouvidos abriram-se pela primeira vez desde o aparecimento
da mulher ao gemido triste e interminável do vento entre as árvores. Com a terrível convicção da realidade do que ele vira ainda forte dentro de si, ele pulou da
cama, gritando:
- Assassinato! Acordem, aí! acordem! - correu pela escuridão em direção à porta.
Esta estava bem trancada, exatamente como ele a deixara ao ir para a cama.
Seus gritos ao se levantar alarmaram a casa. Ele ouviu as exclamações aterrorizadas e "Confusas de mulheres; viu o dono da casa se aproximar no corredor com a vela
acesa numa mão e a espingarda na outra.
- O que é isso? - perguntou o dono da hospedaria, ofegante.
Isaac só conseguiu responder num sussurro.
- Uma mulher, com uma faca na mão - disse, engasgado. - No meu quarto... uma mulher bonita de cabelos louros; ela me atacou com uma faca duas vezes.
As bochechas pálidas do homem ficaram mais pálidas. Ele olhou para Isaac ansiosamente à luz trêmula da vela, e seu rosto começou a ficar corado de novo, sua voz
modificou-se também, assim como a pele.
- Ela parece ter errado o alvo duas vezes - disse ele.
- Eu me esquivei da faca quando ela ia dar os golpes continuou Isaac, no mesmo tom de voz apavorado. - Ela golpeou a cama duas vezes.
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O dono entrou no quarto com a vela imediatamente. Em menos de um minuto saiu para o corredor novamente, irritado.
- Que o diabo carregue você e a sua mulher com a faca! Não há nenhuma marca nos lençóis em lugar nenhum. O que pretende vindo para a casa de um homem e assustando
a família dele com um sonho?
- Vou embora da sua casa - disse Isaac sem forças. É melhor ficar lá fora na estrada, na chuva e na escuridão, a caminho de casa, do que voltar para esse quarto,
depois do que eu presenciei. Me empresta a vela para eu vestir minhas roupas e me diz quanto tenho de pagar.
- Pagar! - gritou o homem, iluminando o caminho do quarto com a vela, contrariado. - Você vai encontrar a conta sobre a mesa quando descer. Eu não teria aceitado
você como hóspede por todo o dinheiro que tem se soubesse dos seus hábitos de sonhar e fazer escândalo. Olhe para a cama. Onde está o corte? Olhe para a janela...
a tranca está quebrada? Olhe para a porta, que eu mesmo ouvi você abrir, a tranca está quebrada? Uma mulher assassina com uma faca em minha casa! Você devia se envergonhar!
Isaac não disse uma palavra. Juntou as roupas, e depois eles desceram juntos.
- Quase 2:20 da manhã! - disse o dono, quando passaram pelo relógio. - Uma boa hora pra assustar pessoas honestas!
Isaac pagou a conta, e o dono da hospedaria abriu a porta da frente para ele, perguntando, com um riso de desprezo, ao abrir as pesadas trancas, se "a mulher assassina
entrara daquela maneira".
Eles se despediram sem dizer palavra. A chuva terminara, mas a noite estava escura, e o vento mais frio do que nunca. Pouco importaram a Isaac a escuridão, o frio
ou a incerteza quanto ao caminho para casa. Embora tivesse terminado num deserto durante uma tempestade, isso era um alívio depois do que ele
sofrera no quarto da hospedaria.
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Quem era a mulher bonita com a faca? A criatura de um sonho, ou aquela outra criatura do mundo desconhecido chamado entre os homens pelo nome de espírito? Ele não
conseguiu solucionar o mistério - não conseguira solucioná-lo, mesmo quando já estava na metade de quarta-feira, e quando parou, finalmente, depois de errar o caminho
muitas vezes, na porta de casa.

III

Sua mãe apareceu para recebê-lo, ansiosa. O rosto dele lhe disse num momento que alguma coisa estava errada.
- Perdi a vaga; mas é a minha sina. Tive um sonho horrível a noite passada, Mamãe, ou talvez tenha visto um fantasma. De qualquer maneira, me deixou apavorado, e
não me recuperei ainda.
- Isaac, o seu rosto me assusta. Vem até o fogo... vem, e conta para sua mãe tudo sobre o sonho.
Ele estava tão ansioso para contar quanto ela para ouvir; pois ficara esperançoso no caminho de volta de que a mãe, com sua inteligência e conhecimento superior,
pudesse esclarecer um pouco o mistério que ele, por si, não havia conseguido. A lembrança do sonho ainda estava mecanicamente
vívida, embora seus pensamentos estivessem inteiramente confusos por causa dele.
O rosto de sua mãe ficava cada vez mais pálido à proporção que ele continuava. Ela não o interrompeu nenhuma vez com uma palavra que fosse; mas quando ele terminou,
ela puxou a cadeira para perto da dele, pôs o braço em volta de seu pescoço e lhe disse:
- Isaac, você teve este pesadelo nesta quarta-feira de manhã. A que horas você viu a mulher loura com a faca na mão?
Isaac refletiu no que o dono da hospedaria dissera quando eles passaram pelo relógio, na hora em que ele deixou a casa; descontou o tempo que devia ter passado entre
o destravar da porta de seu quarto e o pagamento da conta antes de partir e respondeu:
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- Por volta de duas horas da manhã.
A mãe de repente parou de segurar o pescoço dele, e juntou as mãos num gesto de desespero.
- Esta quarta-feira é seu aniversário, Isaac, e duas horas da manhã foi a hora do seu nascimento.
O raciocínio de Isaac não era rápido o bastante para se contagiar com o horror supersticioso da mãe. Ele ficou admirado, e um pouco assustado também, quando ela
de repente se levantou da cadeira, abriu a velha escrivaninha, apanhou tinta, caneta e papel e então disse a ele:
- A sua memória é fraca, Isaac, e eu agora sou uma mulher velha, a minha não é melhor do que a sua. Eu quero que esse seu sonho fique bem guardado por nós
dois, daqui há anos, como está agora. Me conta novamente tudo o que você me contou há um minuto, quando falou como se parecia a mulher com a faca.
Isaac obedeceu e ficou surpreso ao ver a mãe anotar cuidadosamente no papel as palavras que ele dizia.
- Olhos cinza-claros - escreveu ela, quando chegaram à parte descritiva - com a pálpebra esquerda caída; cabelos louros, com uma mecha dourada; braços alvos, com
uma penugem em cima; mãozinha delicada, com um tom rosado sob as unhas; facão com cabo de chifre, que parecia novo. - A esses detalhes, a Sra. Scatchard acrescentou
o ano, o mês, o dia da semana e a hora em que a mulher do sonho apareceu diante do filho. Então guardou o papel cuidadosamente na escrivaninha.
Nem naquele dia nem em outro qualquer o filho conseguiu induzi-la a voltar ao assunto do sonho. Ela obstinadamente guardou os pensamentos para si mesma e chegou
mesmo a se recusar a falar novamente no papel da escrivaninha. Isaac cansou-se de tentar fazê-la quebrar seu resoluto silêncio; e o tempo, que mais cedo ou mais
tarde apaga todas as coisas, gradativamente dissolveu a impressão que o sonho lhe causara. Ele começou a pensar no mesmo com indiferença, e acabou nem pensando mais.
nele.
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Isto tornou-se ainda mais fácil com o advento de algumas importantes mudanças para melhor em suas perspectivas que começaram pouco depois da terrível experiência
da noite na hospedaria. Ele obteve finalmente a recompensa de seu demorado e paciente sofrimento, conseguindo um excelente lugar, conservando-o por sete anos e deixando-o,
com a morte do patrão, não só com um excelente caráter, mas também com uma razoável pensão anual legada como recompensa por salvar a vida da patroa num acidente
de carruagem. Assim Isaac Scatchard voltou para a casa da velha mãe, sete anos depois do sonho da hospedaria, com uma soma de dinheiro suficiente para mantê-los
com conforto e independência pelo resto da vida.
A mãe, cuja saúde andava ruim nos últimos anos, lucrou tanto com os cuidados prestados e a melhoria de situação que, quando chegou o aniversário de Isaac, ela foi
capaz de se sentar confortavelmente à mesa e jantar com ele.
Naquele dia, quando caía a noite, a Sra. Scatchard descobriu! que um vidro de remédio que ela costumava tomar, e do qual pensara ter ainda uma ou duas doses, acabara.
Isaac imediatamente se prontificou a ir à farmácia e tornar a enchê-lo. Estava uma noite tão chuvosa e fria de outono quanto na memorável ocasião passada em que
ele se perdera e dormira na hospedaria de estrada.
Ao ir até a farmácia, ele cruzou com uma mulher pobremente vestida que saía correndo da loja. O rosto dela chamou sua atenção, e ele olhou para trás para vê-la descer
os degraus.
- Está vendo aquela mulher? - disse o aprendiz de farmacêutico atrás do balcão. - Acho que há alguma coisa errada com ela. Ela pediu láudano para pôr num dente dolorido.
O patrão saiu por meia hora, e eu disse a ela que não tinha permissão para vender veneno a estranhos na ausência dele. Ela riu de uma maneira estranha e disse que
voltava daqui a meia hora. Se ela espera que o patrão a sirva, acho que vai ficar desapontada. É um caso de suicídio, senhor, se quer a minha opinião.
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Estas palavras aliaram-se ao súbito interesse que Isaac sentira pela mulher ao vê-la à primeira vista. Depois que ele pegou o remédio, procurou ansiosamente por
ela assim que saiu à rua. Ela caminhava de um lado para outro, no outro lado da estrada. Para sua própria surpresa, com o coração, batendo depressa, Isaac atravessou
e falou com ela.
Perguntou-lhe se estava com algum problema. Ela apontou para o xale rasgado, o vestido velho, a touca amassada e suja, depois caminhou até o lampião da rua para
que a luz caísse sobre seu rosto pálido e apreensivo mas ainda belo.
- Eu pareço uma mulher feliz e bem disposta? - disse ela, com uma risada amarga.
Ela falou com uma pureza de entonação que Isaac nunca ouvira antes dos lábios de outras damas. Os mínimos movimentos pareciam ter a graça serena e negligente de
uma mulher fina. Sua pele, apesar de toda a palidez conseqüente da miséria, era delicada como se sua vida se tivesse passado no prazer de todo o conforto que a riqueza
pode proporcionar. Até mesmo as mãos pequenas e delicadas, sem luvas como estavam, não haviam perdido a alvura.
Pouco a pouco, em resposta a suas perguntas, a mulher contou sua triste história. Não há necessidade de contá-la aqui: é uma história que aparece continuamente nos
relatórios policiais sobre tentativas de suicídio.
- Meu nome é Rebecca Murdoch - disse a mulher, ao terminar. - Só me restam nove centavos, e tive a idéia de gastá-los na farmácia para garantir a passagem para o
outro mundo. Seja ele como for, não pode ser pior do que este, então por que permanecer aqui?
Além da compaixão e da tristeza naturais que sentiu pelo que ouviu, Isaac sentiu dentro de si uma misteriosa influência todo o tempo em que a mulher falava, o que
confundiu suas, idéias completamente e quase o privou da fala. Tudo o que conseguiu dizer em resposta às últimas palavras dela foi que ele a impediria de atentar
contra a própria vida, mesmo que a seguisse
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a noite toda para fazer isso. A veemência trêmula e rude dele pareceram impressioná-la.
- Eu não vou importuná-lo tanto assim - respondeu ela, quando ele repetiu o que dissera. - O senhor me deu vontade de viver falando com tanta amabilidade comigo.
Não é preciso fingir protestos nem promessas. Pode acreditar em mim. Vá até Fuller's Meadow amanhã às 12:00 e me veja viva, para se certificar. Não! Dinheiro
não. Os meus nove centavos dão para dormir numa pensão como eu quero.
Ela o cumprimentou com a cabeça e o deixou. Ele não fez menção de segui-la - não achava que ela o estivesse enganando.
- É estranho, mas eu não desconfio nem um pouco da palavra dela - disse para si mesmo, perplexo, quando voltava para casa.
Ao entrar em casa com o vidro de remédio, estava tão absorto com seu novo interesse, que nem reparou no que a mãe estava fazendo. Ela abrira a velha escrivaninha
na ausência dele, e agora estava lendo com atenção um papel que havia lá dentro. Em todos os aniversários de Isaac desde que escrevera os detalhes do sonho dele
ditos pelos próprios lábios, ela se acostumara a ler o mesmo papel, e a refletir sobre ele em particular.
No dia seguinte ele foi a Fuller's Meadow.
Agira bem acreditando nela com tanta segurança. Ela estava lá, pontualmente, para responder por si mesma. As últimas defesas do coração de Isaac contra a fascinação
que uma palavra ou olhar dela começassem inescrutavelmente a se exercer sobre ele desapareceram diante dela para sempre naquela memorável manhã.
Quando um homem antes insensível à influência de mulheres se interessa na meia-idade, são raros os exemplos de fato, sejam quais forem as circunstâncias, em que
ele é capaz de se libertar da tirania da nova paixão. O charme de ser tratado familiarmente, afetuosamente e com gratidão por uma mulher cuja linguagem e maneiras
ainda retêm muito do refinamento de uma alta posição social que perdeu, teria sido perigoso para um homem da posição de Isaac aos 20 anos. Mas era muito mais do
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que isso - representava a ruina certa para ele - agora que seu coração tinha sentimentos fortes de todos os tipos que, uma vez implantados, criam raízes mais profundas
na natureza moral de um homem. Mais alguns encontros furtivos depois da primeira manhã em Fuller's Meadow completaram sua louca paixão. Em menos de um mês a partir
da primeira vez que a viu, Isaac Scatchard consentiu em dar a Rebecca Murdoch um novo interesse na vida, e uma oportunidade de recuperar o caráter que ela perdera,
prometendo fazê-la sua esposa.
Ela se apossara, não só das paixões dele, mas de suas faculdades também. Ele dedicava todo o pensamento a ela. Ela regia sua vida em todos os aspectos - chegando
mesmo a instruí-lo sobre como contar as novidades de seu próximo casamento da maneira mais segura para sua mãe.
- Se você disser a ela como me conheceu e quem sou eu, logo no começo - disse a esperta mulher -, ela vai mover céus e terras para impedir o nosso casamento. Diga
que eu sou a irmã de um de seus companheiros de trabalho, peça a ela para me ver antes de entrar em mais detalhes e deixe o resto comigo. Pretendo fazer que ela
goste de mim tanto quanto de você, Isaac, antes que ela saiba qualquer coisa sobre quem sou eu realmente.
O motivo da mentira era suficiente para santificá-la perante Isaac. O estratagema proposto aliviava-o de sua grande ansiedade, e aquietava sua consciência pesada
em relação ao assunto da mãe. Entretanto, faltava algo para tornar sua felicidade perfeita, algo que ele não sabia o que era, algo misteriosamente indiscernível,
e, entretanto, algo que sempre se fazia sentir; não quando ele estava longe de Rebecca Murdoch, mas, por estranho que pareça, quando estava na presença dela! Ela
era toda ternura com ele. Nunca o fazia sentir sua inferioridade de inteligência e de maneiras. Demonstrava o mais doce desejo de agradá-lo nas menores coisas; mas,
apesar de todas essas qualidades, ele nunca se sentia completamente à vontade com ela. No primeiro encontro dos dois, misturara-se à sua admiração quando ele olhava
para o rosto dela, uma involuntária sensação
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de dúvida se aquele rosto lhe era inteiramente estranho. Nenhuma familiaridade posterior teve o mínimo efeito nesta inexplicável incerteza.
Escondendo a verdade como fora orientado, ele anunciou o compromisso de casamento precipitada e confusamente para a mãe no dia em que o marcou. A pobre Sra. Scatchard
demonstrou perfeita confiança no filho, enlaçando-o com os braços e felicitando-o por ter encontrado finalmente, na irmã de um de seus companheiros de trabalho,
uma mulher para confortá-lo e cuidar dele depois que a mãe se fosse. Ficou ansiosa por conhecer a mulher que o filho escolhera, e o dia seguinte ficou marcado para
a apresentação.
Era uma bela manhã de sol, e a pequena sala de visitas da casa estava cheia de luz quando a Sra. Scatchard, feliz e ansiosa, vestida para a ocasião com a roupa de
domingo, sentou-se à espera do filho e da futura nora.
Pontualmente, Isaac, com nervosismo, conduziu a noiva pela sala. A mãe levantou-se para recebê-la - deu alguns passos, sorrindo -, olhou para Rebecca dentro dos
olhos, e de repente parou. O rosto, que estivera corado um momento antes, ficou branco num instante; seus olhos perderam a expressão de suavidade e bondade e assumiram
uma expressão de terror; as mãos estendidas caíram dos lados, e ela cambaleou para trás com um grito abafado para o filho.
- Issac - sussurrou, agarrando-o depressa pelo braço quando ele perguntou alarmado se ela se sentia mal. - Isaac, o rosto dessa mulher não lhe lembra nada?
Antes que ele pudesse responder - antes que ele pudesse olhar para onde Rebecca estava, surpresa e revoltada com a recepção, na extremidade da sala -, a mãe apontou
impacientemente para a escrivaninha, e lhe deu a chave.
- Abra a gaveta - disse ela, num sussurro rápido e ofegante.
- O que significa isso? Por que eu sou tratada como se não tivesse nada a fazer aqui? A sua mãe quer me insultar? perguntou Rebecca, zangada.
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- Abra isso e me dê o papel na gaveta esquerda. Rápido, rápido, pelo amor de Deus! - disse a Sra. Scatchard, encolhendo-se mais para trás de terror.
Isaac lhe deu o papel. Ela o leu ansiosamente por um momento, depois seguiu Rebecca, que agora se virava para sair da sala, e puxou-a pelo ombro. Abruptamente levantou
a manga comprida e larga de seu vestido e olhou para sua mão e braço. Algo semelhante ao medo começou a tomar conta da expressão zangada de Rebecca quando ela se
soltou da velha mulher.
- Louca! - disse ela para si mesma. - E Isaac nunca me disse. - Com essas palavras saiu da sala.
Isaac já ia correr atrás dela quando a mãe se virou e o deteve. Isaac ficou com o coração partido ao ver a tristeza e o terror em seu rosto.
- Olhos cinza-claros - disse ela, num tom baixo, triste e atemorizado, apontando para a porta aberta -, a pálpebra esquerda caída; cabelos louros, com uma mecha
dourada; braços alvos, com uma penugem em cima; mão pequena e delicada, com um tom rosado sob as unhas... A Mulher do Sonho, Isaac, a Mulher do Sonho!
A ligeira dúvida que ele nunca conseguira afastar na presença de Rebecca Murdoch estava fatalmente esclarecida. Ele já vira seu rosto, então, antes - sete anos antes,
no seu aniversário, no quarto da hospedaria solitária.
- Cuidado! ah, meu filho, cuidado! Isaac, deixe-a ir, e fique comigo!
Alguma coisa ensombreou a janela da sala quando aquelas palavras foram ditas. Um súbito arrepio passou-lhe pelo corpo, e ele olhou de soslaio para a sombra. Rebecca
Murdoch voltara. Estava espiando curiosamente sobre o postigo da janela abaixado.
- Eu prometi me casar, Mamãe - disse ele -, e vou me casar.
As lágrimas vieram-lhe aos olhos quando ele falou e enevoaram-lhe a visão, mas ainda assim ele pôde discernir o rosto fatal do lado de fora afastando-se novamente
da janela.
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A cabeça da mãe afundou mais ainda. - A senhora desmaiou? - sussurrou ele.
- Estou arrasada, Isaac.
Ele se abaixou e a beijou. A sombra, quando ele fez isso, voltou à janela, e o rosto fatal espiou com curiosidade mais
uma vez.

IV

Três semanas depois daquele dia Isaac e Rebecca tornaramse marido e mulher. Tudo o que havia de obstinado na natureza moral do homem parecia ter-se envolvido em
sua paixão fatal, e tê-la prendido inexoravelmente ao coração.
Após aquele primeiro encontro na sala de visitas da casa não houve nada que levasse a Sra. Scatchard a ver a esposa do filho novamente, nem mesmo falar sobre ela
quando Isaac tentava defender sua causa depois do casamento.
Esta conduta não era de modo algum ocasionada pela descoberta da degradação em que Rebecca vivera. Não havia nenhum problema desse tipo entre mãe e filho.
Não havia problema nenhum a não ser aquela terrível semelhança entre a mulher viva e o espectro do sonho de Isaac.
Rebecca, por sua vez, não sentia nem exprimia a mínima tristeza com a desavença entre ela e a sogra. Isaac, para não criar problemas, nunca contradissera sua idéia
inicial de que a idade e a doença tinham afetado a mente da Sra. Scatchard. Chegou a deixar que a mulher o censurasse por não ter confessado isto na hora do noivado,
em vez de pôr tudo em risco contando a verdade. O sacrifício de sua integridade diante de seu sonho de amor parecia pouca coisa, e custava pouco à sua consciência
depois dos sacrifícios que já fizera.
O dia de despertar desta ilusão - o dia cruel e triste não estava longe. Depois de alguns meses de vida conjungal tranqüila, quando o verão terminava, e chegava
a época do ano de seu aniversário, Isaac descobriu que a esposa se modificava
em relação a ele. Tornou-se mal-humorada e despeitada; fez
162
amizades da espécie mais perigosa em desafio a suas objeções, súplicas e ordens; e, pior do que isso, acostumou-se a procurar a fuga na bebida, depois de cada discussão
com o marido. Pouco a pouco, depois da terrível descoberta de que a mulher andava em companhia de bêbados, Isaac chegou à chocante convicção de que ela própria se
tornara uma alcoólatra.
Ele já andava num péssimo estado de espírito há algum tempo antes da ocorrência dessas calamidades domésticas. A saúde da mãe, como ele podia perceber claramente
toda vez que ia visitá-la em casa, depauperava-se rapidamente, e ele se culpava em segredo da causa do sofrimento físico e mental que ela suportava. Quanto ao remorso
que sentia com relação à mãe se acrescentaram a vergonha e a infelicidade ocasionadas pela descoberta da degradação da esposa, ele sucumbiu sob a dupla provação
- seu rosto começou a se modificar rapidamente, e ele ficou parecendo o que era, um homem amargurado.
A mãe, ainda lutando bravamente contra a doença que a conduzia para o túmulo, foi a primeira a reparar na triste mudança que se processou nele, e a primeira a saber
dos problemas com a esposa. Ela só pôde chorar amargamente no dia em que ele fez a humilhante confissão, mas, na ocasião seguinte em que ele foi vê-la havia tomado
uma resolução com referência a seus problemas domésticos que o surpreendeu e mesmo alarmou. Ele a encontrou vestida para sair e, ao perguntar a razão, recebeu esta
resposta:
- Eu não vou durar muito neste mundo, Isaac - disse ela - e não vou ficar em paz em meu túmulo enquanto não fizer o máximo que posso para fazer meu filho feliz.
Estou disposta a afastar meus temores e sentimentos e ir com você até sua esposa e tentar o que puder para fazê-la recuperar o senso. Me dê o braço, Isaac, e me
deixe fazer a última coisa que posso neste mundo para ajudar meu filho antes que seja tarde demais.
Ele não podia desobedecê-la, e saíram juntos lentamente em direção ao mísero lar.
163
Era uma hora da tarde quando chegaram à casa em que ele morava e Rebecca estava na cozinha. Assim ele pôde conduzir a mãe calmamente até a sala, e então preparar
a esposa para o encontro. Ela felizmente bebera pouco àquela hora, e estava menos irritada do que o costume.
Isaac voltou para o lado da mãe com a cabeça razoavelmente em paz. A esposa logo o seguiu até a sala, e o encontro entre ela e a Sra. Scatchard se passou melhor
do que ele se atrevera a esperar, embora ele observasse com secreta apreensão que a mãe, resolutamente enquanto se controlava em outros aspectos, não conseguia encarar
a esposa ao se dirigir a ela. Foi um alívio, conseqüentemente, quando Rebecca começou a pôr a toalha na mesa para a refeição.
Ela pôs a toalha, trouxe a bandeja do pão e cortou uma fatia do mesmo para o marido, depois voltou à cozinha. Naquele momento, Isaac, ainda observando a mãe ansiosamente,
ficou admirado ao ver em seu rosto a mesma mudança que ele vira na manhã em que Rebecca e ela se conheceram. Antes que ele pudesse dizer uma palavra, ela murmurou,
com um olhar de horror:
- Me leve de volta... pra casa, pra casa novamente, Isaac. Venha comigo, e não volte nunca mais.
Ele ficou com medo de lhe pedir uma explicação; só pôde fazer sinal para que se calasse e ajudá-la rapidamente a ir até a porta. Quando passaram pela bandeja de
pão em cima da mesa, ela parou e apontou para a mesma.
- Você viu com que sua mulher cortou o pão? - perguntou ela, num sussurro baixo.
- Não, Mamãe... eu não estava olhando... com o que foi?
- Olhe!
Ele olhou. Um facão novo, com cabo de chifre, estava ao lado do pão na bandeja. Ele estendeu a mão tremulamente para apanhá-lo; mas, ao mesmo tempo, ouviu-se um
barulho na cozinha, e a mãe segurou em seu braço.
164
- A faca do sonho! Isaac, vou desmaiar de medo. Me leva daqui antes que ela volte.
Ele quase não conseguiu segurá-la. A realidade visível e tangível da faca assolou-o com um pânico, e destruiu por completo qualquer dúvida que ainda pudesse ter
até então em relação ao misterioso aviso do sonho de quase oito anos atrás. Com um último esforço desesperado, ele reuniu forças para ajudar a mãe a sair da casa
- tão silenciosamente que a "Mulher do Sonho" (ele pensava nela com este nome agora) não os ouviu partir, de onde estava.
- Não volte, Isaac... não volte! - implorou a Sra. Scatchard, quando ele se virou para voltar, depois de deixá-la sentada seguramente em sua própria sala.
- Eu preciso pegar a faca - respondeu ele, ofegante. A mãe tentou detê-lo novamente, mas ele correu sem dizer mais nada.
Ao voltar, descobriu que a mulher notara a saída deles em segredo. Estivera bebendo, e estava furiosa. A comida, na cozinha, estava fora da grelha; a toalha, não
mais na mesa da sala. Onde estava a faca?
Insensatamente, ele perguntou por ela. A mulher ficou feliz com a oportunidade de irritá-lo que a pergunta oferecia. Ele queria a faca, queria? Podia dar-lhe uma
razão para isso? Não! Então ele não a teria - nem se pedisse de joelhos. Posteriores recriminações esclareceram o fato de que ela a comprara numa pechincha, e que
a considerava propriedade sua. Isaac viu a inutilidade de tentar obter a faca por bem, e decidiu-se a procurála, mais tarde, em segredo. A busca foi mal-sucedida.
A noite chegou, e ele saiu de casa para caminhar pelas ruas. Agora estava com medo de dormir no mesmo quarto que ela.
Três semanas se passaram. Ainda enraivecida com ele, ela não dava a faca; e o medo de dormir no mesmo quarto que ela continuava a atormentá-lo. Ele caminhava à noite,
ou cochilava na sala, ou ficava de vigília ao lado da cama da mãe. Antes de terminar a primeira semana do mês seguinte a mãe morreu. Faltavam então 10 dias para
o aniversário do filho. Ela
165
esperara viver até lá. Isaac estava presente na hora de sua morte, e suas últimas palavras neste mundo foram dirigidas a ele:
- Não volte, meu filho, não volte!
Ele era obrigado a voltar, mesmo que fosse só para observar a esposa. Exasperada ao máximo com a desconfiança dele, ela procurava vingativamente aumentar a tristeza
dele, durante os últimos dias de doença da mãe, declarando que ia reinvindicar seu direito de assistir ao funeral. Apesar de tudo que ele pudesse fazer ou dizer,
ela foi obstinada, e no dia marcado para o enterro impôs-se inflamada e ousada com a bebida - na presença do marido e declarou que ia caminhar na procissão do funeral
até o túmulo da mãe.
Esta última afronta, acompanhada das palavras e olhares mais insultantes, enraiveceu-o por um momento. Ele a esbofeteou.
Arrependeu-se no mesmo instante em que deu a bofetada. Ela se agachou, calada, num canto da sala, e olhou fixamente para ele; foi um olhar que gelou seu sangue e
o fez estremecer. Mas não havia tempo para pensar num meio de reparar seu ato. Só podia esperar o pior até o funeral terminar. Só havia uma maneira de se certificar
de que ela não iria. Trancou-a no quarto.
Quando voltou algumas horas mais tarde, encontrou-a sentada, com um olhar e uma aparência completamente diferentes, ao lado da cama, com uma trouxa no colo. Ela
se levantou e o fitou serenamente, falando com uma estranha calma na voz, uma estranha calma nos olhos, uma estranha compostura.
- Nenhum homem jamais me bateu duas vezes - disse - e meu marido não vai ter outra oportunidade. Abra a porta e me deixe ir. Daqui em diante nós não vamos nos
ver nunca mais.
Antes que ele pudesse responder, ela passou por ele e saiu do quarto. Ele a viu sair andando pela rua.
Ela voltaria?
Durante toda a noite ele ficou de vigília e esperou, mas não ouviu nenhum passo se aproximar da casa. Na noite seguinte, subjugado pelo cansaço, ele se deitou de
roupa, com a porta trancada, a chave em cima da mesa, e a vela acesa. Seu sono
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não foi perturbado. A terceira noite, a quarta, a quinta e a sexta se passaram, e nada aconteceu. Ele se deitou na sétima, ainda de roupa, ainda com a porta trancada,
a chave em cima da mesa, e a vela acesa, mas mais calmo.
Mais calmo, e em perfeita saúde quando caiu no sono. Mas seu descanso foi perturbado. Acordou duas vezes sem nenhuma sensação de inquietação. Mas na terceira vez
foi aquele inesquecível tremor da noite na hospedaria solitária, aquela terrível dor no coração, que mais uma vez despertou-o num instante.
Seus olhos se abriram na direção do lado esquerdo da cama, e lá estava...
A Mulher do Sonho novamente? Não! Sua esposa: a realidade viva, com a atitude do espectro do sonho; o braço levantado, a faca na mão branca e delicada.
Ele pulou em cima dela quase no instante de vê-la, porém, não com a rapidez suficiente para impedi-la de esconder a faca. Sem dizer uma palavra - sem um grito dela
-, ele a sentou numa cadeira. Com uma mão levantou a manga dela, e lá, onde a Mulher do Sonho escondera a faca, a esposa a escondera a faca com cabo de chifre, que
parecia nova.
No desespero daquele terrível momento seu cérebro ficou claro, seu coração tranqüilo. Ele a fitou com a faca na mão, e disse estas últimas palavras:
- Você me disse que não íamos nos ver mais, e voltou. É minha vez de ir, e ir para sempre. Eu digo que não vamos nos ver nunca mais, e minha palavra não será quebrada.
Ele a deixou, e saiu pela noite. Havia um vento frio lá fora, e o cheiro de chuva recente no ar. Os sinos distantes da igreja o quarto de hora quando ele caminhou
rapidamente, passando pelas últimas casas do subúrbio. Perguntou ao primeiro guarda que encontrou que horas eram.
O homem olhou sonolentamente para o relógio e disse:
- Duas horas. - Duas da manhã. Que dia do mês era este que acabara de começar? Descobriu, fazendo as contas a partir do funeral da mãe. O paralelo fatal estava completo;
era seu aniversário! •
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Será que escapara do perigo mortal que o sonho pronunciara? Ou apenas recebera um segundo aviso?
Quando esta dúvida cruel se instalou em sua mente, ele parou, refletiu e voltou para a cidade. Ainda estava decidido a manter a palavra, e nunca mais vê-la novamente,
mas agora estava com a idéia de vigiá-la e segui-la. A faca estava em seu poder; o mundo diante de si; mas uma nova desconfiança dela um medo vago e supersticioso
- se apossara de si.
- Tenho de saber aonde ela vai, agora que pensa que eu a deixei - disse para si mesmo, ao voltar furtivamente para as vizinhanças da casa.
Ainda estava escuro. Ele deixara a vela acesa no quarto de dormir; mas quando olhou para a janela de cima, não havia luz. Caminhou cautelosamente até a porta da
casa. Ao sair, lembrava-se de tê-la fechado; ao tentá-la agora, encontrou-a aberta.
Esperou lá fora, sem tirar os olhos da casa, até o amanhecer. Então se aventurou a entrar - escutou e não ouviu nada -, espiou na cozinha, na copa, na sala e não
encontrou nada; subiu finalmente para o quarto - estava vazio. Havia uma chave falsa no chão, mostrando
como ela conseguira entrar à noite, este foi o único traço que restava dela.
Para onde fora? Isto nenhuma língua mortal podia dizerlhe. A escuridão encobrira sua fuga; e quando o dia clareou, ninguém podia dizer onde ela estava.
Antes de deixar a casa e a cidade para sempre, ele deu instruções a um amigo e vizinho para vender sua mobília por qualquer preço, e aplicar a quantia arrecadada
pagando à polícia para localizá-la. As direções foram seguidas com honestidade e o dinheiro foi todo gasto, mas as investigações não conduziram a nada. A chave falsa
do quarto foi o último traço deixado pela Mulher do Sonho.
A esta altura da narrativa, o senhorio fez uma pausa e, virando-se para a janela do aposento onde estávamos sentados, olhou na direção do estábulo.
- Até aqui - disse ele - eu lhe contei o que me contaram. O pouco que resta a ser dito eu mesmo presenciei. Uns
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dois ou três meses depois dos acontecimentos que acabei de contar, Isaac Scatchard me procurou, envelhecido e acabado antes do tempo, como o senhor o viu hoje. Tinha
suas referências consigo e pediu emprego aqui. Sabendo que minha mulher e ele eram parentes distantes, eu dei uma oportunidade a ele em consideração ao parentesco,
e gostei dele apesar dos hábitos estranhos. É um dos homens mais sóbrios, honestos e prestativos da Inglaterra. Quanto a sua inquietação à noite, e seu hábito de
dormir fora de hora, quem pode se surpreender depois de ouvir sua história? Além disso, ele nunca se opõe a ser acordado quando precisamos dele, logo não há muita
inconveniência afinal de contas.
- Eu imagino que ele tem medo de voltar ao sonho horrível, e de fugir dele no escuro? - disse eu.
- Não - respondeu o dono do lugar. - O sonho volta com tanta freqüência que ele é obrigado a suportá-lo resignadamente.
É a mulher que o faz acordar à noite, como ele já me disse.
- O quê! Ninguém descobriu o paradeiro dela até hoje?
- Não. O próprio Isaac não a tira da cabeça, achando que está viva e procurando por ele. Eu acho que ele não seria capaz de pegar no sono por volta de duas da manhã
nem que lhe prometessem um prêmio. Duas horas da manhã, ele diz, é a hora em que ela vai encontrá-lo, um dia desses. Duas da manhã é a hora do ano todo em que ele
gosta de ter certeza de que está com a faca a salvo perto de si. Ele não se importa de ficar sozinho contanto que esteja acordado, exceto na noite que antecede o
seu aniversário, quando acredita firmemente que corre perigo de vida. Desde que ele chegou aqui só se passou um aniversário, e nesse dia ele ficou acordado junto
com o vigia.
- Ela está procurando por mim, é tudo o que ele diz quando alguém fala com ele sobre sua única preocupação na vida. Ela está procurando por mim. Ele talvez esteja
certo. Pode ser que ela esteja procurando por ele. Quem pode saber?
- Quem pode saber? - disse eu.
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Jacques Futretie

O RUBENS ROUBADO

Matthew Kale conseguiu ganhar 50 milhões de dólares com graxa para lubrificação, depois do que passou a comprar obras de arte. Era bem simples: Ele tinha o dinheiro,
e a Europa tinha os velhos mestres. Seu método de compra era simples. Havia 5 mil metros quadrados, mais ou menos, na ampla galeria de sua mansão de mármore que
deviam ser aproveitados, então ele comprou 5 mil metros, mais ou menos, de arte. Alguns eram bons, alguns bonitos, e muitos, ruins. O quadro principal da coleção
era um Rubens, que ele adquirira em Roma por 50 mil dólares.
Pouco depois de adquirir sua coleção, Kale decidiu fazer certas modificações na ampla sala onde ficavam os quadros. Foram todos retirados da parede e guardados no
salão de festas, igualmente amplo, virados para a parede. Enquanto isso Kale e a família se hospedaram num hotel próximo.
Foi neste hotel que Kale conheceu Jules de Lesseps. De Lesseps era o tipo do francês cuja conversa lembra uma ginástica. Era nervoso, rápido e ágil, e contou a Kale
em segredo que, além de pintor, era um profundo conhecedor das artes. Orgulhoso com as obras que possuía, Kale levou algum tempo para mostrar sua coleção particular
à apreciação de Lesseps. Isto se deu no salão de festas, e os olhos do francês demonstraram o prazer do verdadeiro artista, ao ver as peças que eram boas. Algumas
das outras o fizeram sorrir, mas era um tipo de sorriso inofensivo.
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Com as próprias mãos Kale levantou o precioso Rubens e segurou-o diante dos olhos do francês. Era uma Madona com Criança, uma daquelas maravilhosas criações que
sobreviveram ao tempo com toda a beleza de brilho e cor primitivos. Kale pareceu desapontado porque De Lesseps não ficou particularmente entusiasmado com o quadro.
- Ora, é um Rubens! - exclamou. -
- - É, estou vendo - replicou De Lesseps.
- Ele me custou 50 mil dólares.
- Talvez valha mais do que isso - e o francês deu de ombros ao se virar.
Kale olhou para ele, amuado. Será que De Lesseps não compreendia que era um Rubens, e que Rubens era um pintor? Ou não o ouvira dizer que o quadro custara 50 mil
dólares? Kale estava acostumado a ver as pessoas ficarem estupefatas quando ele dizia 50 mil dólares. Ficou chocado.
- Você não gosta dele? - perguntou.
- Muito - replicou Lesseps. - Mas já o vi antes. Eu o vi em Roma uma semana ou mais antes de você o comprar.
Eles deram uma olhada nos quadros, e finalmente apareceu um Whistler. Era um da famosa série do Tâmisa, uma aquarela. O rosto de De Lesseps iluminou-se de satisfação,
e ficou olhando da aquarela para o Rubens como se comparando mentalmente a obra mais nova bem traçada e colorida com a técnica magistral da velha pintura.
Kale não soube interpretar seu silêncio de acordo.
- Eu não tenho este em grande conta - explicou, desculpando-se. - É um Whistler, e me custou 5 mil dólares, e eu precisava ter um, mas não é exatamente o tipo de
coisa de que eu gosto. O que acha dele?
- Acho simplesmente maravilhoso! - replicou o francês entusiasticamente. - É a essência, o superlativo, da obra de Whistler. Será que eu poderia - e virou-se
para encarar Kale
- fazer uma cópia dele? Eu tenho alguma prática de pintura, e tenho certeza de que poderia fazer uma boa cópia dele.
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Kale ficou lisonjeado. Ficava mais impressionado com o quadro a cada momento que se passava.
- Ora, certamente - replicou. - Vou mandá-lo para o hotel, e você pode...
- Não, não, não! - interrompeu De Lesseps rapidamente.
- Eu não quero ficar com a responsabilidade de ter o quadro em meu poder. Há sempre o perigo do fogo. Mas se você me der permissão para vir aqui... esta sala é
grande, arejada e clara... e além disso é sossegada...
- Como quiser - disse Kale magnanimamente. - Eu só achei que a outra maneira seria mais conveniente para você.
De Lesseps pôs uma mão no braço do milionário.
- Meu caro amigo - disse ele gravemente -, se esses quadros fossem meus, eu não faria o menor esforço de facilitar as coisas para ninguém no que dissesse respeito
a eles. Eu aposto que a coleção lhe custou...
- Seiscentos e oitenta e sete mil dólares - disse Kale orgulhosamente.
- E certamente devem ficar bem protegidos aqui em sua casa durante sua ausência, cetto?
- Existem uns 20 empregados na casa, enquanto os operários fazem as reformas - disse Kale - e três deles não fazem outra coisa senão vigiar esta sala. Ninguém pode
entrar ou sair exceto pela porta por onde entramos, as outras estão trancadas e barradas, e só com a minha permissão, ou com uma ordem escrita minha. Não, senhor,
ninguém pode sair com nada desta sala.
- Excelente... excelente! - disse De Lesseps com admiração. Sorriu um pouco. - Eu temo não lhe ter dado crédito por ser o negociante esperto que é. - Virou-se e
olhou para a coleção de quadros pensativamente. - Um ladrão esperto, porém - arriscou-se a dizer - podia cortar uma pintura de valor, por exemplo o Rubens, da moldura,
enrolá-la, escondê-la dentro do casaco e fugir.
Kale riu e sacudiu a cabeça.
Dois dias depois, no hotel, De Lesseps tocou no assunto de copiar o Whistler. Fez agradecimentos em profusão quando Kale
172
se ofereceu a acompanhá-lo até a mansão e testemunhar os estágios preliminares do trabalho. Pararam na porta do salão.
- Jennings - disse Kale ao criado de libré -, este é o Sr. De Lesseps. Ele pode entrar e sair conforme desejar. Ele vai fazer um trabalho aqui no salão. Tome providências
para que não seja perturbado.
De Lesseps reparou no Rubens encostado descuidadamente em outros quadros, com o rosto santo da Madonna virado para eles.
- Realmente, Sr. Kale - protestou -, aquele quadro é valioso demais para ficar largado daquele jeito. Peça aos criados para trazerem um pano, eu vou embrulhá-lo,
e colocá-lo em cima da mesa, fora do chão. Imagine se tiver ratos aqui!
Kale agradeceu-lhe. Deu as ordens necessárias, e finalmente o quadro foi cuidadosamente embrulhado e colocado longe do alcance de um provável dano, depois do quê,
De Lesseps preparou-se, com papel, cavalete, banco e tudo o mais para começar o trabalho. Foi aí que Kale o deixou.
Três dias depois Kale encontrou o artista ainda às voltas com o trabalho.
- Eu só passei por aqui - explicou - para ver como ia indo o trabalho na galeria. Vai terminar daqui a uma semana. Espero não estar incomodando.
- Absolutamente - disse De Lesseps. - Estou quase terminando. Viu como vou indo? -- Virou o cavalete para Kale.
O milionário olhou para este e para o original que estava sobre uma cadeira próxima e demonstrou franca admiração pelo trabalho do artista. - Ora, está ótimo - exclamou.
- É tão bom quanto o outro, e aposto que você não quer pouco dinheiro por ele... hein?
Foi tudo o que se disse na hora. Kale andou pela casa por cerca de uma hora, depois entrou no salão onde De Lesseps estava reunindo sua parafernália, e voltaram
ao hotel. O artista carregava debaixo do braço sua cópia do Whistler, embrulhada ligeiramente.
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Passou-se mais uma semana, e os operários encarregados da redecoração da galeria se foram. De Lesseps ofereceu-se para ajudar no trabalho de pendurar os quadros,
e Kale prazerosamente lhe cedeu a tarefa. Foi na tarde do dia em que começou este trabalho que De Lesseps, conversando amigavelmente com Kale, desamarrou o pano
que cobria o precioso Rubens. Então parou com uma exclamação de susto. O quadro desaparecera; a moldura que o envolvia estava vazia. Uma fina tira de tela por dentro
da moldura demonstrava que fora usado um canivete para retirar a pintura.
Todos esses fatos chegaram ao conhecimento do Professor Augustus S.F.X. Van Dusen - A Máquina Pensante. Fazia um dia ou mais que Kale correra ao escritório do Detetive
Malbory no departamento de polícia dizendo que o seu Rubens fora roubado. Ele bateu com o punho na mesa do detetive e vociferou:
- Ele me custou 50 mil dólares! Por que não fazem alguma coisa? O que estão fazendo sentados aí me olhando?
- Não se exalte, Sr. Kale - aconselhou o detetive. - Vou colocar os meus homens agora mesmo em ação para recuperar o... o... O que é um Rubens, por falar nisso?
- É um quadro! - berrou Kale. - Um pedaço de tela com uma pintura em cima, e me custou 50 mil dlólares... não se esqueça disso!
Assim a máquina policial foi posta em ação para recuperar o quadro. E o assunto chegou aos ouvidos de Hutchinson Hatch, o repórter. Ele soube dos fatos anteriores
ao desaparecimento do quadro e então fez uma visita a De Lesseps. Encontrou o artista num estado de excitação beirando a histeria; quando o repórter mencionou o
objeto de sua visita, De Lesseps desatou a falar:
- Mon Dieu! É terrível! O que posso fazer? Eu fui a única pessoa a ficar na sala durante alguns dias. Eu fui o único que me preocupei em proteger o quadro. E agora
desapareceu! A perda é irreparável. O que posso fazer?
Hatch não tinha qualquer idéia muito definida do que ele podia fazer, então deixou-o continuar:
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- Pelo que entendi, Sr. De Lesseps - interrompeu-o finalmente -, ninguém mais estava na sala, exceto o senhor e o Sr. Kale, durante todo o tempo em que o senhor
esteve lá?
- Ninguém mais.
- E eu acho que o Sr. Kale disse que o senhor estava fazendo uma cópia de uma aquarela famosa, é isso?
- É, uma cena do Tâmisa de Whistler - foi a resposta.
- Lá está ela em cima da lareira.
Hatch olhou para o quadro com admiração. Era uma cópia bem feita, e demonstrava o toque hábil de um artista de grande capacidade.
De Lesseps percebeu a admiração no rosto dele.
- Não está mal - disse modestamente. - Eu estudei com Carolus Duran.
Com tudo o mais que se sabia, e esta pequena informação adicional, que parecia não ter nenhum valor particular para o repórter, o assunto todo foi deixado nas mãos
da Máquina Pensante. Aquele homem notável escutou do começo ao fim sem comentários.
- Quem teve acesso à sala? - perguntou finalmente.
- É isso que a polícia está investigando agora - disse Hutchinson Hatch. - Existem uns 24 empregados na casa, e eu creio que, apesar das severas ordens de Kale,
houve um certo relaxamento das mesmas.
- É claro que isso torna o caso mais difícil - disse a Máquina Pensante na voz eternamente irritada que era uma característica dele. - Talvez fosse melhor irmos
à casa do Sr. Kale e investigar pessoalmente.
Kale recebeu-os com a reserva que os homens ricos geralmente demonstram na presença de representantes da imprensa. Olhou um tanto curiosamente para a figura diminuta
do cientista, que explicou o objeto de sua visita.
- Eu acho que vocês não podem fazer nada - asseguroulhes o milionário. - Eu tenho alguns detetives investigando o caso.
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- O Sr. Mallory está aqui agora? - perguntou a Máquina Pensante secamente.
- Está, está lá em cima nos aposentos dos empregados.
- Podemos ver a sala onde o quadro foi roubado? - perguntou o cientista, com uma suave entonação que Hatch conhecia bem.
Kale deu permissão com um aceno da mão, e conduziu-os ao salão de festas, onde os quadros estavam guardados. Do centro da sala a Máquina Pensante fez um apanhado
do local. As janelas eram altas. Meia dúzia de portas dando para os corredores, os cantos sossegados da mansão, ofereciam inúmeras possibilidades de acesso. Depois
deste demorado exame, a Máquinaa Pensante foi até a mesa e apanhou a moldura de onde o Rubens fora cortado. Examinou-a durante muito tempo. A impaciência de Kale
era evidente. Finalmente o cientista virou-se para ele.
- A quanto tempo o senhor conhecia Monsieur De Lesseps?
- Há um mês apenas. Por quê?
- Ele lhe deu alguma carta de apresentação, ou o senhor o conheceu casualmente?
Kale ornou para ele contrariado.
- Meus assuntos pessoais não têm nada a ver com este caso! O Sr. De Lesseps é um cavalheiro íntegro, e certamente é a última pessoa de quem eu desconfiaria com relação
ao desaparecimento do quadro.
- Geralmente é sempre assim - comentou A Máquina Pensante ironicamente. Virou-se para Hatch. - Como estava a cópia que ele fez do quadro de Whistler?
- Eu nunca vi o original - replicou Hatch - mas o trabalho é soberbo. Talvez o Sr. Kale não se oponha a que nós...
- Ah, é claro que não - disse Kale resignadamente. <- Venham; está na galeria.
Hatch submeteu o quadro a um exame minucioso.
- Eu diria que a cópia é perfeita - foi o veredicto. É claro que, na ausência da mesma, eu não posso dizer exatamente; mas é um trabalho magnífico.
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As cortinas da porta quase em frente a eles foram puxadas para o lado subitamente e o Detetive Mallory entrou. Trazia algo na mão, mas, ao vê-los, escondeu a coisa
atrás de si. Exibia um olhar de triunfo.
- Ah, professor, estamos sempre nos encontrando, não é
- disse ele.
- Este repórter aqui e o amigo parecem estar tentando arrastar De Lesseps para o caso de qualquer maneira - protestou Kale com o detetive. - Eu não quero que isso
aconteça. Ele é capaz de sair vendo coisas em qualquer lugar. É sempre assim.
A Máquina Pensante fitou-o indeciso por um instante, depois esticou a mão na direção de Mallory.
- Onde encontrou isso? - perguntou.
- Lamento desapontá-lo, Professor - disse o detetive sarcasticamente -, mas o senhor chegou tarde demais - e mostrou o objeto que tinha atrás de si. - Aqui está
o seu quadro, Sr. Kale.
Kale suspirou de alívio e surpresa e segurou a tela com as duas mãos para examiná-la.
- Ótimo! - disse para o detetive. - Vou providenciar para que o senhor seja recompensado. Ora, isto aqui me custou
50 mil dólares.
A Máquina Pensante debruçou-se para examinar a ponta superior direita da tela.
- Onde você encontrou isso? - perguntou novamente.
- Bem enrolado, e escondido no fundo de uma mala no quarto de um dos empregados - explicou Mallory. - O nome do empregado é Jennings. Ele está preso.
- Jennings! - exclamou Kale. - Ora, ele está comigo há anos.
- Ele confessou? - perguntou o cientista imperturbavelmente.
- É claro que não - disse Mallory. - Ele diz que algum dos outros empregados deve ter escondido a tela lá.
A Máquina Pensante fez um sinal para Hatch.
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- Eu creio que é tudo - comentou. - Parabéns, Sr. Mallory, por trazer o assunto a tal conclusão rápida e satisfatória.
Dez minutos depois eles saíram da casa e tomaram um táxi para a casa do cientista. Hatch estava um pouco aborrecido com o término inesperado do caso.
- Mallory de vez em quando tem um rasgo de inteligência, não é?
- Nunca reparei nisso - comentou A Máquina Pensante com impertinência.
- Mas ele encontrou o quadro - insistiu Hatch.
- É claro que encontrou. Ele foi posto ali para que ele o encontrasse.
- Posto ali para que ele o encontrasse! - repetiu o repórter - Não foi Jennings que o roubou?
- Se foi, é um bobo.
- Bem, se ele não o roubou, quem o pôs ali?
- De Lesseps.
- De Lesseps! - repetiu Hatch. - Por que diabos iria ele roubar um quadro de 50 mil dólares e colocá-lo na mala de um empregado para ser encontrado?
A Máquina Pensante mexeu-se no lugar e fitou-o friamente por um momento.
- Às vezes, Sr. Hatch, fico admirado com sua burrice. Posso compreender isso num homem como Mallory, mas sempre achei
que você era esperto e inteligente.
Hatch sorriu com a reprimenda. Não era a primeira vez que ouvia uma. Mas nada foi dito sobre o problema em questão até eles chegarem à casa da Máquina Pensante.
- O único problema para mim, Sr. Hatch - disse o cientista então -• é se devo ou não me dar ao trabalho de devolver o quadro ao Sr. Kale. Ele está completamente
satisfeito, e provavelmente nunca vai saber a diferença. Logo...
De repente Hatch compreendeu algo.
- Com os demônios! - exclamou. - O senhor quer dizer que o quadro que Mallory encontrou era...
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- Uma cópia do original - disse o cientista asperamente.
- Pessoalmente eu não entendo nada de arte; logo, não podia saber, só de ver, que era uma cópia, mas sei que é pela lógica da coisa. Quando o original foi cortado
da madeira, o canivete desviou um pouquinho no canto superior direito. O resto de tela que ficou na moldura demonstrou isso. O quadro que o Sr. Mallory encontrou
não corresponde à tela da moldura. A conclusão é óbvia.
- E de Lesseps tem o original?
- De Lesseps tem o original. Como ele conseguiu? De uma das várias maneiras. Pode tê-lo enrolado e guardado debaixo do casaco. Pode ter tido um cúmplice. Mas eu
não creio que nenhum método comum de roubo o teria interessado. Eu o considero inteligente, como devo, se fizermos uma revisão do caso todo.
- Por exemplo, ele pediu permissão para copiar o Whistler, que, como você viu, era do mesmo tamanho do Rubens. Teve permissão. Ele o copiou praticamente sem vigilância,
sempre correndo o risco de que o Sr. Kale aparecesse. Levou três dias para copiá-lo, como diz. Ficou sozinho na sala o tempo todo. Sabia que o Sr. Kale não tinha
o menor conhecimento de arte. Aproveitando-se disso, o que seria mais fácil do que ter copiado o Rubens a óleo? Podia tê-lo tirado da moldura imediatamente depois
de tê-lo embrulhado, e guardado numa posição próxima onde pudesse ser rapidamente escondido se ele fosse interrompido. Lembre-se, o quadro vale 50 mil dólares; logo,
valia o trabalho.
- De Lesseps é um artista - sabemos disso - e, lidando com um homem que não entendia nada de arte, nada temia. Podemos supor que sua idéia todo o tempo era usar
a cópia do Rubens como um tipo de isca depois que fugisse com o original. Você viu que Mallory não percebeu a diferença, e ele estava certo de que o Sr. Kale não
perceberia. Seu único perigo até conseguir fugir calmamente era que algum crítico ou entendido, talvez, visse a cópia. A audácia dele é óbvia, uma vez que se permitiu
descobrir o roubo; que o descobriu depois de se ter
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oferecido para ajudar o Sr. Kale no trabalho de rearrumar os quadros na galeria. Como ele pôs o quadro na mala de Jennings eu não sei. Podemos imaginar muitas maneiras.
- Ele se recostou na cadeira por um minuto sem falar, com os olhos voltados para cima, os dedos unidos ponta com ponta.
- Mas como ele levou o quadro da casa de Kale? - perguntou Hatch.
- Provavelmente debaixo do braço no dia em que deixou a casa com o Sr. Kale - foi a surpreendente resposta.
Hatch o fitava, atônito. Depois de um momento o cientista se levantou e passou para a sala ao lado, e o telefone lá tilintou. Quando voltou para a companhia de Hatch,
apanhou o chapéu e saíram juntos.
De Lesseps estava em casa quando os cartões de apresentação foram entregues e os recebeu. Conversaram sobre o caso de modo geral por 10 minutos, enquanto o cientista
olhava a sua volta inquisitivamente. Finalmente ouviu-se uma batida na porta.
- É o Detetive Mallory, Sr. Hatch - disse A Máquina Pensante. - Abra a porta para ele.
De Lesseps pareceu surpreso por apenas um instante, depois recuperou-se rapidamente. Os olhos de Mallory estavam cheios de perguntas quando entrou.
- Eu gostaria, Sr. Mallory - começou A Máquina Pensante calmamente -, de chamar sua atenção para esta cópia do quadro de Whistler ali em cima da lareira. Não é excelente?
O senhor viu o original?
Mallory resmungou. O rosto de De Lesseps, em vez de expressar satisfação com o cumprimento, empalideceu, e ele apertou as mãos com força. Novamente se recuperou
e sorriu.
- A beleza deste quadro não está apenas na fidelidade ao original - continuou o cientista -, mas também no fato de que foi pintado em circunstâncias extraordinárias.
Por exemplo, eu não sei se o senhor sabe, Sr. Mallory, que é possível combinar cola e massa de vidraceiro e algumas outras coisas comuns e fazer uma pasta que obscurece
uma pintura a óleo, e oferece
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ao mesmo tempo uma excelente superfície para trabalho de aquarela!
Houve uma pausa de um momento, durante o qual os três homens olharam para ele em silêncio - com emoções conflitantes.
- Esta aquarela... esta cópia de Whistler - continuou o cientista - está pintada em cima de uma pasta assim. A pasta por sua vez encobre o quadro original de
Rubens. Pode ser removida com água sem danificar o quadro, que é a óleo, de forma que em vez de uma cópia da pintura de Whistler, nós temos um original de Rubens,
no valor de 50 mil dólares. É verdade, não é, M. De Lesseps?
Não houve resposta para a pergunta - não havia necessidade de nenhuma.
Foi uma hora depois, quando De Lesseps estava em sua cela, que Hatch telefonou para A Máquina Pensante e fez uma pergunta:
- Como você sabia que a aquarela estava pintada em cima do Rubens?
- Porque era a única maneira absolutamente segura pela qual o Rubens podia ficar perdido para sempre para aqueles que o procuravam, e ao mesmo tempo
preservado com perfeição - foi a resposta. - Eu disse a você que De Lesseps era um homem inteligente, e um pouco de lógica fez o resto. Dois e dois são quatro, Sr.
Hatch, não algumas vezes, mas sempre.
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Charles Dickens

A HISTÓRIA DO TIO DO CAIXEIRO-VIAJANTE

- Meu tio, cavalheiros - disse o caixeiro-viajante -, era um dos sujeitos mais alegres, mais simpáticos e inteligentes que já existiram. Eu gostaria de que os senhores
o tivessem conhecido, cavalheiros. Ao mesmo tempo, cavalheiros, eu não desejo que o tivessem conhecido, pois, se tivesse, estariam todos, a esta altura, no curso
natural da vida, se não mortos, de qualquer maneira tão próximos da morte a ponto de ter de ficar em casa e desistir da companhia de amigos: o que ter-me-ia privado
do inestimável prazer de me dirigir aos senhores neste momento. Cavalheiros, eu gostaria de que seus pais e suas mães tivessem conhecido meu tio. Eles teriam gostado
muito dele, especialmente suas respeitáveis mães; eu sei que sim. Se há duas de suas numerosas virtudes que predominavam sobre as muitas que adornavam seu caráter,
eu diria que eram seu ponche misturado e sua canção de após a ceia. Perdoem-me por insistir nessas lembranças melancólicas de entes queridos mortos; mas os senhores
não verão um homem como meu tio todos os dias. Sempre considerei um aspecto importante do caráter de meu tio, cavalheiros, ele ser amigo íntimo e companheiro de
Tom Smart, da importante casa de Bilson e Slum, Cateaton Street. Meu tio era cobrador de Tiggin e Welps, mas durante muito tempo ele fez a mesma viagem que Tom;
e na noite em que se conheceram, meu tio simpatizou com Tom, e Tom simpatizou com meu tio.
Apostaram um chapéu novo, antes de se conhecerem há meia hora, para quem preparasse o melhor caneco de ponche e o bebesse mais rápido. Meu tio foi tido como vencedor
no preparo, mas Tom Smart venceu-o na hora de beber, por cerca de meia colher de sal. Tomaram outro caneco para brindar à saúde um do outro, e se tornaram amigos
depois disso. Há um destino nessas coisas, cavalheiros; não se pode evitar.
"Em aparência pessoal, meu tio era um pouco mais baixo do que a altura mediana; era mais corpulento também do que a maioria das pessoas, e talvez seu rosto fosse
um pouco mais vermelho. Ele possuía o rosto mais alegre que já viram, cavalheiros; parecido com Punch, com um nariz e um queixo mais bonitos; seus olhos estavam
sempre cintilando de bom humor; e um sorriso... não um daqueles sorrisos sem graça e frios, mas um sorriso alegre, afável e bem humorado... estava sempre em
seu rosto. Ele foi jogado de sua charrete uma vez e caiu, de cabeça, contra um marco. Lá ficou, estonteado, e tão coberto com a terra que ele levantara a sua volta,
que, para usar a própria expressão de meu tio, se a mãe pudesse voltar à terra, não o teria reconhecido. De fato, quando o assunto me vem à cabeça, cavalheiros,
eu tenho certeza de que ela não o reconheceria, pois morreu quando meu tio tinha dois anos e sete meses de idade, e eu acho provável que, mesmo sem a terra, as botas
teriam intrigado a boa senhora: para não dizer nada de seu rosto alegre e vermelho. Contudo, lá ficou ele, e ouvi meu tio dizer, muitas vezes, que o homem que o
apanhou disse que ele sorria com tanta satisfação como se tivesse caído de propósito, e que depois que o sangraram, as primeiras manifestações de animação foram,
ele pulando da cama, soltando uma boa gargalhada, beijando a jovem que segurava a bacia e pedindo uma fatia de carneiro e uma noz picante imediatamente. Ele gostava
muito de noz picante, cavalheiros. Ele dizia que sempre achava que, comidas sem vinagre, elas davam sabor à cerveja.
"A grande viagem de meu tio era durante o outono, época em que ele recolhia débitos e levava pedidos do norte: indo de Londres para Edimburgo, de Edimburgo para
Glasgow, de Glasgow
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para Edimburgo e depois para Londres de barco. Os senhores devem compreender que a segunda visita a Edimburgo era por vontade própria. Ele costumava voltar por
uma semana, só para visitar velhos amigos; e, tomando café com um, almoçando com aquele, jantando com um terceiro e ceando com um outro, passava uma semana muito
movimentada. Eu não sei se algum dos cavalheiros já compartilhou de um verdadeiro café da manhã escocês, hospitaleiro e substancial, e depois saiu para um almoço
leve de ostras, uma dúzia ou mais de garrafas de cerveja e uma ou duas canequinhas de uísque para encerrar. Se alguma vez o fizerem, devem concordar comigo que é
necessário ter uma cabeça bem forte para jantar e cear depois.
"Mas, palavra de honra, esse tipo de coisa não era nada para meu tio! Ele era tão bem disposto, que isso era brincadeira de criança. Eu o ouvi dizer que podia ver
o pessoal de Dundee a qualquer dia, e voltar para casa depois sem cambalear; e no entanto o pessoal de Dundee tem a cabeça forte como ponche forte, cavalheiros.
Eu sei da história de um homem de Glasgow e um de Dundee que beberam durante 15 horas. Ambos ficaram sufocados, o quanto se pode esperar, no mesmo momento, mas com
a ligeira exceção, cavalheiros, de que não ficaram nem um pouco piores por causa disso.
"Uma noite, do dia anterior à data marcada para tomar o barco para Londres, meu tio ceou na casa de um velho amigo, um Prefeito Mac qualquer coisa, que vivia na
velha cidade de Edimburgo. Havia a esposa do Prefeito e as três filhas do Prefeito, e o filho do Prefeito, e três ou quatro sujeitos escoceses, corpulentos e de
sobrancelhas cheias, que o Prefeito reunira em honra a meu tio, e para ajudar a animar a ceia. Foi uma ceia gloriosa. Havia salmão defumado, hadoque defumado, cabeça
de carneiro e haggis miúdos de carneiro condimentados, um famoso prato escocês, cavalheiros, que meu tio costumava achar, quando chegava à mesa, parecido com um
estômago de cupido, e muitas outras coisas além disso, das quais não lembro o nome, mas coisas muito boas. As moças eram bonitas e simpáticas; a esposa do prefeito,
uma das melhores criaturas que já
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existiram; e meu tio de muito bom humor: a conseqüência foi qufc as moças davam risinhos, e a senhora ria a fartar e o prefeito e os outros sujeitos riram às gargalhadas
até ficarem com os rostos vermelhos, o tempo todo. Eu não me lembro bem de quantas canecas de uísque fermentado cada homem bebeu depois da ceia; mas o que eu sei
é que por volta de uma hora da manhã, o filho do vereador apagou enquanto tentava o primeiro verso de Willie misturou um bocado de malte e, sendo ele, há meia hora,
o único outro homem visível na mesa de mógano, ocorreu a meu tio que era hora de ir: especialmente porque a bebedeira começara às sete horas, para que chegasse a
casa a uma hora decente. Mas, achando que talvez não fosse educado sair simplesmente, meu tio acomodou-se na cadeira, encheu outro copo, levantou-se para brindar
à própria saúde, falou de si mesmo de uma maneira elogiosa e bebeu o brinde com grande entusiasmo. Ainda assim ninguém acordou; então meu tio tomou mais um pouco
de bebida, pouco desta vez para evitar que a bebida o perturbasse, e, pondo as mãos no chapéu, saiu para a rua.
"Estava ventando quando meu tio fechou a porta do prefeito, e pondo o chapéu com firmeza na cabeça, para evitar que o vento o carregasse, pôs as mãos nos bolsos
e, olhando para cima, observou o estado do tempo. As nuvens encobriam a lua velozmente: uma hora obscurecendo-a por completo; outra hora deixando-a brilhar com esplendor
e banhar de luz todos os objetos em volta, depois, encobrindo-a novamente com enorme rapidez, e envolvendo tudo na escuridão.
"Realmente, assim não dá, disse meu tio, dirigindo-se ao tempo, como se se sentisse pessoalmente ofendido. Não é o tipo de tempo para minha viagem. Assim não vai
dar mesmo, disse meu tio com veemência. Tendo repetido isso várias vezes, ele recobrou o equilíbrio com certa dificuldade, pois já estava tonto de olhar para o céu
tanto tempo, e tornou a caminhar alegremente.
"A casa do prefeito ficava em Canongate, e meu tio ia para a outra extremidade de Leith Walk, bem mais de um e meio quilômetro de viagem. Ladeando-o, havia contra
o céu escuro,
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casas altas, sombrias e dispersas, com fachadas desbotadas, e janelas que pareciam ter tido o mesmo fim que os olhos mortais, e ter-se tornado embaraçadas e murchas
com a idade. Seis, sete, oito andares de altura tinham as casas; andar sobre andar, como as crianças fazem com cartas, lançando suas sombras escuras sobre a rua
mal pavimentada, e tornando a noite escura ainda mais negra. Havia alguns lampiões a querosene espalhados, mas só serviam para marcar a entrada suja de alguma rua
estreita, ou para mostrar onde uma escada comum se comunicava, por caracóis íngremes e intrincados, como os vários andares acima. Olhando para todas essas coisas
com o ar de um homem que as vira muitas vezes antes para considerá-las dignas de nota agora, meu tio caminhou pelo meio da rua, com um polegar em cada bolso do colete,
cantando, de vez em quando, vários trechos de canções, com tanta animação, que as pessoas sossegadas e honestas despertaram de seu primeiro sono, e ficaram tremendo
na cama até o som morrer a distância; quando, certificando-se de que era apenas algum bêbado indo para casa, cobriram-se e voltaram a dormir.
"Tenho o cuidado de descrever com detalhes como meu tio caminhou pelo meio da rua com os polegares nos bolsos do colete, cavalheiros, porque, como ele costumava
dizer (e com grande razão), não há nada de extraordinário nesta história, a menos que compreendam desde o começo que ele não era de forma alguma de um temperamento
romântico.
"Cavalheiros, meu tio caminhou com os polegares nos bolsos do colete, tomando conta do meio da rua, e cantando ora um verso de uma canção de amor, ora um verso de
uma canção de bêbado, e quando se cansava de ambas, assobiando melodiosamente, até chegar à Ponte North, que, neste ponto, liga as cidades velha e nova de Edimburgo.
Aqui ele parou por um minuto, para olhar para os estranhos pontos de luz amontoados um sobre o outro, e cintilando ao longe, tão alto no ar, que pareciam estrelas,
brilhando dos muros do castelo de um lado, e de Calton Hill do outro, como se iluminassem verdadeiros castelos no ar; enquanto a velha cidade pitoresca dormia profundamente,
na pe-
numbra abaixo, seu palácio e capela de Holyrood, guardados dia e noite, como um amigo de meu tio costumava dizer, pelo velho trono de Arthur, erigindo-se, pesado
e escuro, como um gênio carrancudo, sobre a antiga cidade que ele vigia há tanto tempo. Eu digo, cavalheiros, que meu tio parou ali, por um minuto, para olhar à
sua volta; e depois fazendo um cumprimento ao tempo, que clareara um pouco, embora a lua estivesse baixando, tornou a caminhar, com a imponência de antes, mantendo-se
no meio da rua com grande dignidade, e parecendo estar disposto a encontrar alguém que disputasse a posse da rua com ele. Não havia ninguém absolutamente disposto
a contestar o ponto, como sucedeu; e então, ele continuou, com os dedos nos bolsos do colete, como um cordeiro.
"Quando meu tio chegou ao fim de Leith Walk, teve de atravessar um vasto terreno baldio, que o separava de uma rua curta que ele tinha de contornar, para ir direto
à sua pousada. Agora, neste pedaço de terreno baldio, havia, naquela época, um tapume que pertencia a algum construtor de carros, que tinha um contrato com o Correio
para a compra de carros-correio velhos e usados; e meu tio, sendo um apreciador de carros, velhos, novos ou meio termo, imediatamente decidiu sair de seu caminho
com o único propósito de dar uma olhada nos carros por entre as tábuas do tapume: uma dúzia dos quais ele se lembrava de ter visto, reunidos num estado deplorável,
lá dentro. Meu tio era uma'pessoa muito entusiasta e enfática, cavalheiros; assim, percebendo que não conseguiria ver bem entre as tábuas da cerca, pulou por cima
delas e, sentando-se calmamente num velho eixo, começou a contemplar os velhos carros-correio com seriedade.
"Talvez houvesse uma dúzia deles, ou mais... meu tio nunca soube ao certo, e sendo um homem de uma veracidade muito escrupulosa com relação a números, não gostava
de dizer... mas lá estavam eles, todos reunidos nas condições de maior abandono possível. As portas arrancadas das dobradiças e removidas; o forro rasgado: apenas
uma capota aqui e acolá presa por um prego enferrujado; os lampiões desaparecidos, as balizas há
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muito sumidas, as ferragens enferrujadas, a tinta descascada; o vento sibilava através das frestas da madeira; e a chuva que se acumulara nos telhados, caía, gota a
gota, no interior com um som oco e melancólico. Eles eram os esqueletos arruinados de carros-correio abandonados, e naquele lugar solitário, naquela hora da noite,
pareciam frios e sombrios.
"Meu tio recostou a cabeça sobre as mãos e pensou no movimento de pessoas que tinham utilizado, anos antes, as velhas carruagens, que estavam agora caladas e mudadas
também: pensou no número de pessoas a quem um daqueles loucos veículos trouxera, noite após noite, durante muitos anos, e com qualquer tempo, a ansiosamente esperada
notícia, a tão aguardada remessa de dinheiro, a prometida garantia de saúde e salvação, a súbita notícia de doença e morte. O comerciante, o amante, a esposa, a
viúva, a mãe, o estudante, a própria criança que caminhou com passos incertos até a porta com a batida do carteiro... como todas elas esperaram a chegada da velha
carruagem! E onde estavam todos agora?
"Cavalheiros, meu tio costumava dizer que pensou em tudo isso na hora, mas eu desconfio de que ele leu isso em algum livro depois, pois ele afirmou que começou a
cochilar quando se sentou no velho eixo olhando para os carros-correio arruinados, e que foi subitamente acordado por
um sino de igreja dando as "badaladas das duas horas. Agora, meu tio nunca foi de ter pensamento rápido, e, se tivesse pensado em todas essas coisas, estou certo de que teria ficado entretido até duas e
meia da manhã, no mínimo. Sou, portanto, de opinião, cavalheiros, de que meu tio cochilou, sem ter pensado em nada absolutamente.
"Seja como for, um sino tocou as duas badaladas. Meu tio acordou, esfregou os olhos e deu um pulo de surpresa.
"Um instante depois de o relógio dar duas horas, o lugar deserto e sossegado tornara-se um cenário de vida e animação
mais extraordinários. As portas dos carros-correio estavam em seus lugares, o forro recolocado, as ferragens boas e novas, a tinta nova, os lampiões acesos, almofadas e casacos nas boléias, carregadores jogando embrulhos
em todas as cabines, guardas
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guardando bolsas de cartas, trabalhadores jogando baldes de água nas rodas novas; homens correndo de um lado para outro, colocando balizas em todos os carros-correio;
passageiros chegando, valises entregues, cavalos atrelados; e, em resumo, estava perfeitamente claro que todas as carruagens iam partir. Cavalheiros, meu tio esbugalhou
tanto os olhos com tudo isso, que, até o último momento de sua vida, costumava perguntar-se como foi capaz de fechá-los novamente.
"- Vamos então! - disse uma voz, quando meu tio sentiu uma mão sobre seu ombro. - Você está com reserva para um. É melhor entrar.
"- Eu com reserva! - disse meu tio, virando-se.
"- É, você mesmo.
"Meu tio, cavalheiros, não conseguiu dizer nada; estava muito surpreso. O mais estranho de tudo era que, embora houvesse tal multidão de pessoas, e embora novas
caras aparecessem a cada momento, não se sabia de onde vinham; pareciam surgir, de uma maneira estranha, do chão ou do ar, e desaparecer da mesma maneira. Quando
um carregador colocava a bagagem no carro e recebia a gorjeta, virava-se e desaparecia; e antes que meu tio começasse a se perguntar o que acontecera com ele, meia
dúzia de caras novas aparecia, e cambaleavam sob o peso de embrulhos que pareciam grandes o bastante para esmagá-los. Os passageiros estavam todos vestidos de maneira
tão estranha também ... paletós de abas largas e rendadas com grandes punhos,, e sem colarinhos; e perucas, cavalheiros... grandes perucas formais e um laço atrás.
Meu tio não compreendeu nada.
"- Bem, você vai entrar ou não? - disse a pessoa que se dirigira a meu tio antes. Estava vestido de guarda, com uma peruca na cabeça e enormes punhos no casaco,
e tinha uma lanterna numa mão e um enorme bacamarte na outra, que ele ia guardar em seu pequeno baú de mão. - Você vai entrar, Jack Martin? - disse o guarda, segurando
a lanterna no rosto de meu tio.
"- Alô! - disse meu tio, dando um ou dois passos para trás. - Isso é
familiar!
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"- É assim que está na lista de passageiros - replicou o guarda.
"- Não tem um "Senhor" na frente? - disse meu tio pois achava, cavalheiros, que para um guarda que ele não conhecia chamá-lo de Jack Martin era uma liberdade que
o Correio não teria sancionado se soubessem disso.
"- Não; não há - respondeu o guarda friamente.
"- A passagem está paga? - perguntou meu tio.
"- É claro que está -- retrucou o guarda.
"- Está, está? - disse meu tio. - Então aqui vou eu... que carro?
"- Este - disse o guarda, apontando para uma antiga carruagem do Correio de Edimburgo e Londres, que estava com os degraus abaixados e a porta aberta. - Pare.
aqui estão os outros passageiros. Deixe-os entrar primeiro.
"Quando o guarda falou, imediatamente apareceram, bem em frente a meu tio, um jovem cavalheiro com uma enorme peruca, e um paletó azul-celeste debruado de prata,
cheio e largo nas abas, que eram debruadas de entretela. A calça de algodão e o colete eram da linha Tiggin e Welps, logo meu tio conheceu o material imediatamente.
Ele usava calças no joelho, e um tipo de polainas enroladas sobre as meias de seda, e sapatos com fivelas; tinha rendas nos punhos, um chapéu tricorne na cabeça
e uma comprida espada do lado. As pontas do colete iam até a metade das coxas, e as pontas da gravata até a cintura. Ele caminhou solenemente até a porta do carro,
tirou o chapéu e segurou-o acima da cabeça na altura do braço: empinando o dedo mindinho no ar ao mesmo tempo, como fazem algumas pessoas afetadas ao tomarem uma
xícara de chá. Então juntou os pés, e fez uma profunda reverência, e então estendeu a mão esquerda. Meu tio ia dar um passo à frente e apertá-la calorosamente, quando
percebeu que estas atenções eram dirigidas, não a ele, mas a uma jovem senhora, que acabara de aparecer ao pé dos degraus, com um vestido à moda antiga de veludo
verde, com um peitilho comprido. Não tinha nenhuma touca na cabeça, cavalheiros, a qual estava coberta com um capuz de seda preta, mas
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ela virou o rosto por um instante quando se preparava para entrar na carruagem, e apareceu o rosto mais belo que meu tio já tinha visto - nem num quadro vira algo
assim. Ela entrou na carruagem, segurando o vestido com uma mão; e, como sempre dizia meu tio com uma imprecação, ao contar a história, ele não teria acreditado
que pernas e pés pudessem ser tão perfeitos, a menos que os tivesse visto com os próprios olhos.
"- Mas, com este único relance do rosto bonito, meu tio viu que a jovem senhora lhe lançara um olhar de súplica, e que parecia aterrorizada e infeliz. Ele reparou
também que o rapaz com a enorme peruca, apesar da demonstração de galanteria, que foi excelente e grandiosa, segurou-a firmemente pelo pulso quando ela entrou, e
entrou imediatamente atrás. Um sujeito com uma péssima aparência numa peruca marrom apertada e um paletó cor de vinho, usando uma enorme espada, e botas de cano
longo até os quadris, pertencia ao grupo; e quando se sentou ao lado da jovem dama, que se encolheu para um canto com a aproximação dele, meu tio teve confirmada
sua primeira impressão de que algo misterioso se estava passando, ou, como ele próprio sempre dizia, que "havia um parafuso solto em algum lugar." É surpreendente
como ele logo se decidiu a ajudar a dama em perigo, se ela precisasse de ajuda.
"- Morte e relâmpago! - exclamou o cavalheiro, pondo a mão sobre a espada, quando meu tio entrou na carruagem.
"- Sangue e trovão! - vociferou o outro cavalheiro. Com isso, ele puxou a espada, e arremeteu-a para meu tio sem cerimônia. Meu tio não tinha nenhuma-arma consigo
mas, com grande destreza arrancou o chapéu tricorne do cavalheiro mal-encarado, e recebendo a ponta da espada bem através da coroa, apertou os lados juntos e segurou-a
com força.
"- Acerte-o por trás! - gritou o cavalheiro mal-encarado para o companheiro, ao lutar para recuperar a espada.
"- É melhor não fazer isso - gritou meu tio, mostrando o salto de um dos sapatos de uma maneira ameaçadora. - Eu vou arrancar-lhe o cérebro se tiver um, ou fraturar
o crânio se não tiver. - Usando toda sua força neste momento, meu tio
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arrancou a espada do homem mal-encarado de sua mão e jogou-a pela janela da carruagem; com o quê o cavalheiro mais jovem vociferou: 'Morte e relâmpago!' novamente,
e pôs a mão no cabo da espada de uma maneira cruel, mas não a desembainhou. Talvez, cavalheiros, como meu tio costumava dizer, com um sorriso, talvez ele estivesse
com medo de alarmar a dama.
"- Agora, cavalheiros - disse meu tio, tomando seu lugar deliberadamente. -- Eu não quero ter nenhuma morte, com ou sem relâmpagos, na presença de uma dama, e já
tivemos sangue e trovões suficientes para uma viagem; assim, se fizerem o obséquio, vamos sentar-nos em nossos lugares como passageiros tranqüilos. Aqui, guarda,
pegue aquela espada do cavalheiro.
"Tão rápido quanto meu tio pronunciou as palavras, o guarda apareceu na janela da carruagem, com a espada do cavalheiro na mão. Levantou a lanterna e olhou para
o rosto de meu tio com ansiedade, ao entregá-la: quando, à luz da lanterna, meu tio viu, para sua surpresa, que uma imensa multidão de guardas de carros-correio
se reuniu em volta da janela, todos com os olhos fitos em meu tio também. Ele nunca vira tamanho mar de rostos brancos, e corpos vermelhos, e olhos curiosos, em
todos os seus dias.
"- Esta é a situação mais estranha em que já me envolvi
- pensou meu tio.
"- Permita-me devolver-lhe o chapéu, senhor.
"O cavalheiro mal-encarado apanhou o chapéu tricorne em silêncio; olhou para o furo no meio com um ar interrogativo; e finalmente colocou-o em cima da peruca, com
um ar tão solene cujo efeito não foi nada comparado ao seu violento espirro do momento, que o arrancou da cabeça novamente.
"- Muito bem! - gritou o guarda com a lanterna, subindo para o seu lugarzinho atrás. Seguiram viagem. Meu tio espiou pela janela da carruagem quando eles saíram
do pátio e observou que os outros carros, com cocheiros, guardas, cavalos e passageiros, completos, andavam em círculos, num trote lento de cerca de oito quilômetros
por hora. Meu tio ficou indignado, cavalheiros. Como comerciante, ele achou que as malas postais
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não eram para ser subestimadas, e resolveu informar o Correio sobre o assunto, no instante em que chegasse a Londres.
"No momento, contudo, seus pensamentos estavam ocupados com a jovem dama sentada no canto do carro, com o rosto encoberto pelo capuz; o cavalheiro com o paletó azul-celeste
em frente a ela; e o outro homem com o paletó vinho ao seu lado; e ambos olhando para ela intensamente. Se ela simplesmente roçase as dobras do capuz, ele ouvia
o homem mal-encarado pôr a mão na espada, e podia, dizer pela respiração do outro (estava tão escuro que eu não conseguia enxergar direito seu rosto) que ele olhava
como se fosse devorá-la de uma só vez. Isto impressionou meu tio ainda mais, e ele decidiu, acontecesse o que acontecesse, ver o fim daquilo. Ele tinha uma grande
admiração por olhos brilhantes, rostos delicados e pernas bonitas; em resumo, gostava do sexo frágil todo. É algo comum em nossa família, cavalheiros - eu também
gosto.
"Meu tio se utilizou de vários artifícios para atrair a atenção da dama, ou, de qualquer maneira, entabular conversa com o misterioso cavalheiro. Foram em vão; o
cavalheiro não falava, e a dama não ousava. Ele punha a cabeça para fora da janela de vez em quando, e perguntava por que não iam mais depressa. Mas falou até ficar
rouco - ninguém lhe deu a mínima atenção. Ele se recostou no carro e pensou no rosto bonito, nos pés e pernas. Isso surtiu efeito; ocupava seu tempo, e o distraía
de pensar para onde estaria indo, e como se encontrara em tal situação estranha. Não que isso o preocupasse muito, de qualquer maneira - ele era o tipo de pessoa
aventureira, o meu tio, cavalheiros.
"De repente o carro-correio parou.
"- Alô! - disse meu tio. - O que foi agora?
"- Desça aqui - disse o guarda, abaixando os degraus.
"- Aqui? - gritou meu tio.
"- Aqui - respondeu o guarda.
"- Eu não vou fazer nada disso - disse meu tio.
"- Muito bem, então fique onde está - disse o guarda.
"- Ficarei - disse meu tio.
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"- Faça isso - disse o guarda.
"Os outros passageiros tinham ouvido este diálogo com grande atenção; e, achando que meu tio estava decidido a não saltar, o rapaz passou por ele, para tirar a dama.
Neste momento, o malencarado examinava o furo na coroa do chapéu tricorne. Quando a dama passou, deixou cair uma das luvas na mão de meu tio, e sussurrou uma palavra
baixinho com os lábios tão próximos de seu rosto, que ele sentiu o hálito quente
no nariz:
<- Socorro! - Cavalheiros, meu tio pulou da carruagem imediatamente, com tanta violência que ela balançou novamente.
"- Ah! Pensou melhor, não foi? - disse o guarda, quando viu meu tio em pé no chão.
"Meu tio olhou para o guarda por alguns segundos,, em dúvida se não seria melhor arrancar o bacamarte dele, atirá-lo na cara do homem com a espada grande, golpear
o resto na cabeça com a coronha da arma, apanhar a moça e fugir na fumaça. Refletindo, porém, abandonou este plano, por ser um tanto melodramático, e seguiu os dois
homens misteriosos, que, mantendo a moça entre si, agora entravam numa velha casa, em frente à qual o carro
parara. Eles entraram na passagem, e meu tio seguiu-os.
"De todos os lugares arruinados e desolados que meu tio já vira, este era o pior. Parecia ter sido algum dia uma grande casa de divertimento; mas o telhado despencara
em vários lugares, e os degraus eram íngremes, irregulares e quebrados. Havia uma enorme lareira na sala em que entraram, e a chaminé estava preta de fumaça; mas
nenhum fogo a iluminava agora. A poeira branca da lenha queimada ainda estava espalhada no chão da mesma, mas o fogo estava apagado, e tudo estava escuro e sombrio.
"- Bem - disse meu tio, ao olhar em volta. - Um carro-correio viajando a uma velocidade de 10 quilômetros por hora, e parando por um tempo indefinido num buraco
como este, é de fato um procedimento irregular, eu creio. Isso vai ser ventilado; vou escrever para os jornais.
"Meu tio disse isto numa voz bem alta e de uma maneira desembaraçada, com a intenção de entabular conversa com os
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dois estranhos, se pudesse. Mas nenhum deles fez mais do que murmurar alguma coisa um para o outro e franzir a testa para ele ao fazê-lo. A dama estava no canto
mais distante da sala, e uma vez se aventurou a acenar a mão, como se rogando a ajuda de meu tio.
"Finalmente os dois estranhos se adiantaram um pouco, e a conversa começou.
"- Você não sabe que isto é um lugar particular, homem?
- disse o cavalheiro de azul.
"- Não, não sei, homem - replicou meu tio. - Só que, se esse é um lugar particular especialmente reservado para a ocasião, eu acho que o lugar público deve ser bem
confortável. Com isto meu tio sentou-se numa cadeira de espaldar alto e mediu os cavalheiros com os olhos de tal maneira que Tiggin e Welps poderiam ter-lhe fornecido
algodão para um paletó, e nem um centímetro a mais ou a menos, só por aquele olhar.
"- Saia desta sala - disseram os dois homens juntos, segurando as espadas.
"- Hein? - disse meu tio, parecendo não compreender o significado da ordem.
"- Saia desta sala ou será um homem morto - disse o sujeito mal-encarado com a espada grande, puxando-a ao mesmo tempo e brandindo-a no ar.
"- Acabe com ele! - gritou o cavalheiro de azul, puxando a espada também, e pulando para trás. - Acabe com ele! A dama deu um grito.
"Meu tio sempre foi conhecido por sua grande coragem e grande presença de espírito. Todo o tempo que parecera indiferente ao que se passava, estivera procurando
de esguelha alguma arma para se defender, e, naquele mesmo instante em que as espadas foram puxadas, ele viu, em cima do canto da chaminé, uma velha espada numa
bainha enferrujada. De um pulo, meu tio pegou-a na mão, puxou-a, brandiu-a galantemente acima da cabeça, gritou para que a dama saísse do caminho, atirou a cadeira
no homem de azul e a bainha no homem de vinho, e aproveitando-se da confusão, caiu sobre eles, impetuosamente.
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"Cavalheiros, há uma velha história - tão verdadeira quanto esta - que trata de um rapaz irlandês, que, ao lhe perguntarem se sabia tocar violino, replicou que sem
dúvida podia, mas não sabia dizer ao certo, porque nunca tentara. Isto se aplica a meu tio e sua espada. Nunca tivera uma espada na mão antes, exceto quando representara
Ricardo III num teatro amador: em cuja ocasião foi arranjado com Richmond que ele devia ser atingido por trás, sem lutar; mas aí estava ele, lutando espadas com
dois experientes espadachins, arremetendo, defendendo-se, espetando e cortando, e portando-se a maneira mais hábil possível, embora até então nunca tivesse tido
consciência de que possuía a mínima noção de tal prática. Isso apenas demonstra como é verdadeiro o velho ditado que diz que um homem nunca sabe o que pode fazer
até tentar, cavalheiros.
"O barulho do combate foi terrível; cada um dos três combatentes praguejando como soldados de cavalaria, e as espadas chocando-se com tanto barulho quanto se todas
as facas e espadas do Mercado Newport estivessem chocando-se ao mesmo tempo. Quando a luta estava no auge, a dama, para encorajar meu tio provavelmente, tirou o
capuz completamente do rosto e revelou uma beleza tão estonteante que ele teria lutado contra 50 homens, para ganhar um sorriso de tal rosto e morrer. Fizera maravilhas
antes, mas agora começou a lutar como um gigante enfurecido.
"Neste exato momento, o cavalheiro de azul virando-se, e vendo a jovem com o rosto descoberto, soltou uma exclamação de raiva e ciúme, e virando a arma contra seu
belo colo, apontou-a para seu coração, o que levou meu tio a dar um grito de apreensão que fez o prédio estremecer. A dama deu um passo para o lado e, arrancando
a espada do rapaz antes que ele recuperasse o equilíbrio, levou-o para a parede e atravessou-lhe o corpo e a parede até o cabo, prendendo-o ali. Foi um exemplo esplêndido.
Meu tio, com grito alto de triunfo, e uma força que era irresistível, fez o adversário recuar na mesma direção, e arremessando a velha espada no centro de uma grande
flor vermelha do estampado de seu colete, espetou-o ao lado do
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amigo. Lá ficaram eles, cavalheiros: sacudindo os braços e pernas em agonia, como marionetes movidas por um pedaço de linha. Meu tio sempre disse,
depois disso, que esta era uma das maneiras mais certas que ele conhecia de se livrar de um inimigo; mas era passível de uma objeção quanto ao problema de despesa,
pois envolvia a perda de uma espada para cada homem posto fora de combate.
"- A carruagem, a carruagem! - gritou a dama, correndo para meu tio e jogando os belos braços em volta de seu pescoço. - Ainda podemos escapar.
"- Podemos! - gritou meu tio. - Ora, minha cara, não há mais ninguém para matar, há? - Meu tio estava desapontado, cavalheiros, pois achou que um pouco de amor seria
agradável depois da matança, mesmo que fosse para mudar de assunto.
"- Não temos um instante a perder aqui - disse a jovem.
- Ele - apontando para o jovem cavalheiro de azul - é o único filho do poderoso Marquês de Filletoville.
"- Bem, então, minha cara, eu temo que ele nunca assuma o título - disse meu tio, olhando friamente para o jovem cavalheiro espetado contra a parede, como um besouro,
conforme descrevi. - Você acabou com o legado, meu amor.
"- Eu fui raptada de minha casa por esses vilões - disse a jovem, com o rosto afogueado de indignação. - Aquele miserável se teria casado comigo à força daqui a
uma hora.
"- Que descaramento! - disse meu tio, lançando um olhar de desprezo para o herdeiro de Filletoville moribundo.
"- Como você talvez tenha adivinhado pelo que viu disse a jovem -, eles estavam preparados para me matar se eu pedisse ajuda a alguém. Se os cúmplices deles nos
encontrarem aqui, estamos perdidos. Mais dois minutos e pode ser tarde demais. A carruagem! - Com essas palavras, vencida pelos sentimentos, e pelo esforço de matar
o jovem Marquês de Filletoville, ela desmaiou nos braços de meu tio. Meu tio segurou-a e levou-a até a porta da casa. Lá estava a carruagem com quatro cavalos pretos
de rabo comprido e crinas esvoaçantes arreados;
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mas sem cocheiro, sem guarda e sem empregado de estrebaria para conduzi-los.
"Cavalheiros, eu espero não ser injusto à memória de meu tio, quando expresso minha opinião de que, embora ele fosse solteiro, já segurara algumas damas nos braços
antes; eu creio, de fato, que ele tinha o hábito de beijar garçonetes; e sei que, uma ou duas vezes, fora visto por testemunhas confiáveis abraçando uma senhorita
de maneira bem perceptível. Eu menciono a circunstância para mostrar que tipo de pessoa incomum deve ter sido esta bela jovem, para ter afetado meu tio como o fez;
ele costumava dizer que quando seu cabelo comprido e castanho lhe caiu sobre o braço e os olhos belos e castanhos o fitaram, quando ela recobrou os sentidos, ele
se sentiu tão estranho e nervoso que as pernas tremeram. Mas, quem consegue olhar para um par de olhos castanhos e ternos sem se sentir estranho? Eu não consigo,
cavalheiros. Tenho medo de olhar para alguns olhos que conheço, e esta é a verdade.
"- Você nunca vai me deixar - murmurou a jovem.
"- Nunca - disse meu tio. E era o que pretendia mesmo.
"- Meu querido salvador! - exclamou a jovem. - Meu querido, gentil e bravo salvador!
"- Não diga nada - disse meu tio, interrompendo-a.
"- Por quê? - perguntou a jovem.
"- Porque sua boca fica tão bonita quando você fala replicou meu tio - que eu tenho medo de ser rude e beijá-la.
"A jovem levantou a mão como se para prevenir meu tio a não fazê-lo, e disse - não, não disse nada -, sorriu. Quando se está olhando para o par de lábios mais deliciosos
do mundo, e eles se abrem delicadamente num sorriso malicioso - se estivermos muito próximos deles, sem ninguém por perto - não podemos demonstrar melhor nossa admiração
por sua forma e cor senão beijando-os imediatamente. Meu tio fez isso, e eu o respeito por isso.
"- Ouça! - gritou a jovem, sobressaltando-se. - Barulho de rodas e cavalos!
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"- É - disse meu tio, escutando. Ele possuía um bom ouvido para rodas e cascos de cavalos; mas, parecia haver tantos cavalos e carruagens vindo na direção deles,
que era impossível adivinhar o número. O som era como o de 50 gramadeiras, com seis bois em cada.
- Estão nos perseguindo. Minha única esperança é você!
"Havia uma tal expressão de terror no belo rosto que meu tio se decidiu imediatamente. Levantou-a para dentro do carro, disse-lhe para não ficar assustada, beijou-a
mais uma vez nos lábios e depois, aconselhando-a a levantar a janela para se proteger do ar frio, subiu para a boléia.
"- Fique, meu amor - gritou a jovem.
"- O que houve? - disse meu tio, da boléia.
"- Eu quero falar com você - disse a jovem - só uma palavrinha, uma palavrinha, meu querido.
"- Devo descer? - disse meu tio. A dama não respondeu, mas sorriu novamente. Um tal sorriso, cavalheiros, que não dava a entender nada. Meu tio desceu de onde estava
num piscar de olhos.
"- O que é, minha querida? - perguntou meu tio, olhando pela janela da carruagem. A
jovem debruçou-se ao mesmo tempo, e meu tio achou que ela parecia mais bela
do que nunca. Ele estava muito próximo dela então, cavalheiros, logo devia saber realmente. - O que é, minha querida? - repetiu meu tio.
"- Você nunca vai amar ninguém além de mim... nunca vai se casar com ninguém além de mim? - disse a jovem.
"Meu tio fez um juramento de que nunca se casaria com mais ninguém, e a jovem pôs a cabeça para dentro e fechou a janela. Ele pulou para a boléia, empertigou os
ombros, ajeitou as correias e apanhou o chicote que estava sobre a capota, dec uma chicotada no cavalo da frente, e os quatro cavalos negros de rabo comprido e crinas
esvoaçantes partiram, a 25 quilômetros por hora, puxando o carro-correio atrás de si. Como corriam!
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"O barulho atrás deles aumentou. Quanto mais rápido ia a velha carruagem, mais rápido iam os perseguidores - homens, cavalos, cachorros unidos na perseguição. O
barulho era terrível, mas, acima de tudo, ouvia-se a voz da jovem, incentivando meu tio e gritando:
"- Mais rápido! Mais rápido!
"Eles passaram pelas árvores escuras, como folhas varridas por um furacão. Casas, portões, igrejas, montes de feno, objetos de todas as espécies ficaram para trás,
com uma velocidade e um barulho como o de águas tempestuosas subitamente soltas. Ainda assim o barulho da perseguição aumentou e meu tio podia ouvir a jovem gritando
desesperadamente:
"- Mais rápido! mais rápido!
"Meu tio brandiu o chicote e a rédea; e os cavalos voaram até ficarem brancos de espuma; e, no entanto, o barulho atrás aumentava; e a jovem gritava:
"- Mais rápido! mais rápido!
"Meu tio bateu com o pé fortemente no chão na energia do momento e descobriu que era de manhã, e ele estava sentado no pátio do construtor de carruagens, em cima
da boléia de um velho carro-correio de Edimburgo, tremendo de frio e umidade, e batendo com os pés para aquecê-los! Ele desceu e olhou ansiosamente dentro do carro
à procura da bela jovem. Infelizmente não havia nem porta nem assento no carro - era só carcaça.
"É claro que meu tio sabia muito bem que havia algum mistério no assunto, e que tudo se passou exatamente como ele costumava contar. Permaneceu fiel ao juramento
que fizera à bela jovem: recusando várias damas por causa dela, e morrendo solteiro finalmente. Sempre dizia que curioso era ele ter descoberto, pelo mero acaso de
ter pulado a cerca, que os fantasmas de carros-correios e cavalos, guardas, cocheiros e passageiros tinham o hábito de fazer viagens regularmente todas as noites;
costumava dizer que acreditava ser a única pessoa viva a jamais ter sido levada como passageiro numa daquelas viagens; e eu
acho que ele estava certo, cavalheiros - pelo menos eu nunca
soube de outra.
- Eu gostaria de saber o que esses fantasmas de carroscorreios levam em suas bolsas - disse o senhorio, que ouvira toda a história com muita atenção.
- As cartas dos mortos, é claro - disse o caixeiro-viajante.
- Oh, ah... com certeza - replicou o senhorio. - Não tinha pensado nisso.

 

 

                                                                  Alfred Hitchcock

 

 

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