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Toda a gente nasce com algum talento especial e Eliza Sommers cedo descobriu que tinha dois: bom olfacto e boa memória. O primeiro serviu-lhe para ganhar a vida e o segundo para a recordar se não com precisão, pelo menos com a imprecisão poética do astrólogo. O que se esquece é como se nunca tivesse acontecido, mas as suas lembranças, reais ou ilusórias, eram muitas e foi como viver duas vezes. Costumava dizer ao seu fiel amigo, o sábio Tao Chi'en, que a sua memória era como a barriga do navio onde se conheceram, vasta e sombria, repleta de caixotes, de barris e de sacos onde se acumulavam os acontecimentos de toda a sua existência. Acordada, não era fácil encontrar alguma coisa naquela imensa desordem, mas adormecida, conseguia sempre fazê-lo, tal como Mamã Fresia lhe ensinara nas noites doces da sua infância, quando os contornos da realidade eram apenas um traço fino de tinta pálida. Entrava no local dos sonhos por um caminho muitas vezes percorrido, e regressava com grandes precauções, para que as ténues visões não se despedaçassem contra a luz áspera da consciência. Confiava nesse recurso como outros nos números e, de tal forma apurou a arte de recordar que conseguia ver Miss Rose inclinada sobre o caixote de sabão de Marselha que teria sido o seu primeiro berço.
- É impossível lembrares-te disso, Eliza. Os recém-nascidos são como os gatos, não têm sentimentos nem memória - argumentava Miss Rose, nas poucas ocasiões em que falaram do assunto.
No entanto, essa mulher olhando-a de cima, com o seu vestido cor de topázio e as madeixas soltas do carrapito agitadas pelo vento, estava gravada na memória de Eliza que nunca conseguiu aceitar a outra explicação sobre a sua origem.
- Tens sangue inglês, como nós - garantiu-lhe Miss Rose quando ela teve idade para entender. - Só a alguém da colónia britânica teria ocorrido colocar-te numa cesta, à porta da Companhia Britânica de Importação e Exportação. Conhecia com certeza o bom coração do meu irmão Jeremy e adivinhou que ele te recolheria. Nesse tempo eu andava louca para ter um filho e tu caíste nos meus braços enviada pelo Senhor; para seres educada nos sólidos princípios da fé protestante e do idioma inglês.
- Inglesa, tu? Menina, não tenhas ilusões, tens cabelos de índia, como eu - refutava Mamã Fresia, nas costas da sua patroa.
O nascimento de Eliza era assunto proibido naquela casa e a criança habituou-se ao mistério. Esse, tal como outros assuntos delicados, não o mencionava diante de Rose e de Jeremy Sommers, mas discutia em sussurros na cozinha com Mamã Fresia, que manteve invariável a sua descrição do caixote de sabão, enquanto a versão de Miss Rose se foi embelezando com os anos até se transformar num conto de fadas. Segundo ela, a cesta encontrada no escritório era feita do vime mais fino e forrada a cambraia, a sua camisa era bordada a ponto favo de abelha e os lençóis rematados com renda de Bruxelas, além disso ia coberta com uma mantinha de pele de marta, extravagância nunca vista no Chile. Com o tempo, acrescentou-lhe seis moedas de ouro embrulhadas num lenço de seda e um bilhete em inglês explicando que a menina, embora ilegítima, era de muito boa estirpe, mas Eliza nunca entreviu nada disso. A pele de marta, as moedas e o bilhete desapareceram convenientemente e do seu nascimento não ficou rasto. A explicação de Mamã Fresia, no entanto, parecia-se mais com as suas recordações: ao abrir a porta de casa, numa manhã de finais de Verão, encontraram um recém-nascido do sexo feminino, nu, dentro de um caixote.
- Mantinha de pele de marta e moedas de ouro... Eu estava lá e lembro-me muito bem. Vinhas tiritando num casaco de homem, nem uma fralda te tinham posto, e estavas toda cagada. Eras uma fedelha vermelha como uma lagosta demasiado cozida, com uma penugem de maçaroca no cocuruto. Era assim que tu eras. Não tenhas ilusões, não nasceste para princesa e, se o teu cabelo fosse tão preto como é agora, os patrões teriam atirado o caixote para o lixo - afirmava a mulher.
Pelo menos todos coincidiam no facto de a criança ter entrado nas suas vidas a 15 de Março de 1832, ano e meio depois da chegada dos Sommers ao Chile e, por essa razão, designaram essa data como sendo a do seu aniversário. O resto foi sempre um cúmulo de contradições e Eliza concluiu por fim que não valia a pena gastar energia dando-lhe voltas, porque qualquer que fosse a verdade, de nenhuma maneira podia ser remediada. O importante é o que cada um faz neste mundo e não como a ele se chega, costumava dizer a Tao Chi'en, durante os muitos anos da sua maravilhosa amizade, mas ele não estava de acordo, era-lhe impossível imaginar a sua própria existência separado da longa cadeia dos seus antepassados, que tinham contribuído não só para a atribuição das suas características físicas e mentais, mas que também lhe tinham legado A sua sorte, acreditava, estava predeterminada pelas acções dos parentes que viveram anteriormente, por isso era necessário honrá-los com orações diárias e temê-los quando apareciam, em vestes espectrais, a reclamar os seus direitos. Tao Chi'en podia recitar os nomes de todos os seus antepassados, até aos mais remotos e veneráveis tetravós, mortos há mais de um século. A sua maior preocupação nos tempos do ouro consistia em regressar à sua aldeia na China, para morrer e ser enterrado junto dos seus; caso contrário, a sua alma vaguearia para sempre à deriva em terra estrangeira. Eliza inclinava-se naturalmente para a história da cesta primorosa - ninguém no seu perfeito juízo gosta de aparecer num caixote de sabão ordinário - mas, em abono da verdade, não a conseguia aceitar. O seu olfacto de perdigueiro recordava muito bem o primeiro odor da sua existência, que não foi o de lençóis limpos de cambraia, mas de lã, suor de homem e tabaco. O segundo foi um fedor rude de cabra.
Eliza cresceu olhando para o oceano Pacífico da varanda da residência dos seus pais adoptivos. Empoleirada nas encostas de uma colina do porto de Valparaíso, a casa pretendia imitar o estilo então em voga em Londres, mas as exigências do terreno, o clima e a vida do Chile tinham obrigado a fazer modificações substanciais e o resultado era um despropósito. Ao fundo do pátio foram nascendo, como tumores orgânicos, vários aposentos sem janelas e com portas de masmorra, onde Jeremy Sommers armazenava a carga mais preciosa da companhia, que nos armazéns do porto desaparecia.
- Este é um país de ladrões, em nenhuma parte do mundo o escritório gasta tanto a guardar a mercadoria como aqui. Roubam tudo e, o que se salva dos ladrões, fica inundado no Inverno, queimado no Verão ou esmagado por um terramoto - repetia, cada vez que as mulas transportavam novos fardos para descarregar no pátio da sua casa.
De tanto se sentar diante da janela a ver o mar, para contar os navios e as baleias no horizonte, Eliza convenceu-se de que era filha de um naufrágio e não de uma mãe desnaturada, capaz de a abandonar despida na incerteza de um dia de Março. Escreveu no seu diário que um pescador a encontrara na praia, entre os vestígios de um barco despedaçado, a embrulhara no seu casaco e a deixara diante da casa maior do bairro dos ingleses. Com os anos concluiu que essa história não era de todo má: há uma certa poesia e mistério naquilo que o mar devolve. Se o oceano recuasse, a areia exposta seria um vasto deserto húmido semeado de sereias e de peixes agonizantes, dizia John Sommers, irmão de Jeremy e de Rose, que tinha navegado por todos os mares do mundo e descrevia vividamente como a água recuava, a meio de um silêncio de cemitério, para regressar numa única onda descomunal, levando tudo pela frente. Horrível, afirmava, mas ao menos dava tempo para fugir em direcção às colinas, ao passo que nos tremores de terra os sinos das igrejas repicavam anunciando a catástrofe quando já toda a gente fugia entre os escombros.
Na época em que a menina apareceu, Jeremy Sommers tinha trinta anos e começava a edificar um futuro brilhante na Companhia Britânica de Importação e Exportação. Nos círculos comerciais e bancários tinha fama de honrado: a sua palavra e um aperto de mão equivaliam a um contrato assinado, virtude indispensável em qualquer transacção, porque as cartas de crédito demoravam meses a atravessar os oceanos. Para ele, carente de fortuna, o seu bom nome era mais importante do que a própria vida. Com sacrifício, conseguira uma boa posição no remoto porto de Valparaíso, e a última coisa que desejava na sua metódica existência era uma criatura recém-nascida que viesse perturbar a sua rotina. Mas quando Eliza caiu lá em casa não pôde deixar de a acolher porque, ao ver a sua irmã Rose aferrada à miúda como uma mãe, a vontade lhe fraquejou.
Nessa altura Rose tinha apenas vinte anos, mas era já uma mulher com passado e as possibilidades de fazer um bom casamento podiam considerar-se mínimas. Por outro lado, tinha feito as contas e decidido que o casamento era, mesmo no melhor dos casos, um péssimo negócio para ela; junto do seu irmão Jeremy, gozava de uma independência que jamais teria com um marido. Tinha conseguido ordenar a sua vida e não se deixava amedrontar pelo estigma das solteironas. Pelo contrário, estava decidida a ser a inveja das casadas, apesar da teoria em voga de que, quando as mulheres se desviavam do seu papel de mães e de esposas, lhes nasciam bigodes, como às sufragistas, mas lhes faltavam filhos. E essa era a única angústia que não conseguia transformar em triunfo, mediante o exercício disciplinado da imaginação. Às vezes sonhava com as paredes do seu quarto cobertas de sangue, sangue ensopando o tapete, sangue salpicado até ao tecto, e ela no centro, nua e desgrenhada como uma lunática, dando à luz uma salamandra.
Acordava a gritar e passava o resto do dia enlouquecida, sem conseguir libertar-se do pesadelo. Jeremy observava-a, preocupado com os seus nervos e culpabilizando-se por a ter arrastado para tão longe de Inglaterra, embora não pudesse evitar uma certa satisfação egoísta pelo entendimento que ambos mantinham. Como a ideia de casamento jamais lhe passara pelo coração, a presença de Rose resolvia os problemas domésticos e sociais, dois aspectos importantes da sua carreira. A irmã compensava a sua natureza introvertida e solitária, por isso suportava de boa vontade as suas mudanças de humor e os seus gastos desnecessários. Quando Eliza apareceu, e Rose insistiu em ficar com ela, Jeremy não se atreveu a opor-se ou a expressar hesitações mesquinhas, perdeu galantemente todas as batalhas para manter o bebé à distância, a começar pela primeira quando se tratou de lhe dar um nome.
- Chamar-se-á Eliza, como a nossa mãe, e terá o nosso apelido - decidiu Rose assim que a alimentou, lavou e embrulhou na sua própria mantilha.
- De maneira alguma, Rose! O que julgas que dirão as pessoas?
- Disso me encarrego eu. As pessoas dirão que és um santo por acolher esta pobre órfã, Jeremy. Não há pior sorte do que a de não ter família.
Que seria de mim sem um irmão como tu? - respondeu ela, consciente do espanto do irmão ao mínimo assomo de sentimentalismo.
As bisbilhotices foram inevitáveis. Também a isso teve de resignar-se Jeremy Sommers, tal como aceitou que a menina recebesse o nome da sua mãe, dormisse nos primeiros anos no quarto da sua irmã e impusesse bulício à casa. Rose divulgou a história incrível da luxuosa cesta depositada por mãos anónimas no escritório da Companhia Britânica de Importação e Exportação e ninguém a engoliu, mas como não puderam acusá-la de um deslize, porque a viram todos os domingos da sua vida cantando no ofício anglicano e a sua minúscula cintura era um desafio às leis da anatomia, disseram que o bebé era produto de uma relação dele com alguma vadia e que, por isso, estavam a criá-la como filha da família. Jeremy não se deu ao trabalho de ir contra os rumores maliciosos. A irracionalidade das crianças desconcertava-o, mas Eliza arranjou maneira de o conquistar.
Embora não o admitisse, gostava de a ver a brincar aos seus pés à tarde, quando se sentava na sua poltrona a ler o diário. Não havia demonstrações de afecto entre ambos, ele ficava rígido perante o simples facto de apertar uma mão humana e a ideia de um contacto mais intimo provocava-lhe pânico.
Quando apareceu a recém-nascida em casa dos Sommers, naquele 15 de Março, Mamã Fresia, que fazia as vezes de cozinheira e de governanta, pontificou que deviam desfazer-se dela.
- Se a própria mãe a abandonou, é porque está amaldiçoada e o mais seguro é nem tocar nela - disse, mas nada pôde fazer contra a determinação da sua patroa.
Mal Miss Rose pegou nela ao colo, a recém-nascida começou a chorar a plenos pulmões, estremecendo a casa e martirizando os nervos dos seus habitantes. Incapaz de a fazer calar, Miss Rose improvisou um berço numa gaveta da sua cómoda e cobriu-a com cobertores, saindo disparada à procura de uma ama de leite. Regressou depressa com uma mulher arranjada no mercado, mas não se lembrou de a examinar de perto, bastou-lhe ver os seus seios enormes, explodindo sob a blusa, para a contratar apressadamente. Acabou por ser uma camponesa um pouco atrasada, que entrou em casa com o seu bebé, um pobre menino tão sujo como ela. Tiveram de colocar o bebé de molho muito tempo em água morna, para desfazer a sujidade que tinha colada ao rabo e mergulhar a mulher numa tina de água com lixívia para lhe tirar os piolhos. As duas crianças, Eliza e a da ama, esvaiam-se em cólicas com uma diarreia biliosa face à qual o médico de família e o boticário alemão foram impotentes. Vencida pelo choro das crianças, que não era só de fome mas também de dor ou de tristeza, Miss Rose chorava também. Por fim, no terceiro dia, Mamã Fresia interveio de má vontade.
- Não vê que essa mulher tem os mamilos podres? Compre uma cabra para alimentar a garota e dê-lhe tisana de canela porque, senão, vai-se acabar antes de sexta-feira - resmungou.
Nessa altura Miss Rose mal arranhava o espanhol, mas entendeu a palavra cabra, mandou o cocheiro comprar uma e despediu a ama de leite.
Assim que o animal chegou, a índia colocou Eliza directamente sob as úberes inchadas, perante o horror de Miss Rose, que nunca vira um espectáculo tão vil, mas o leite morno e as infusões de canela aliviaram rapidamente a situação; a menina deixou de chorar; dormiu sete horas seguidas e acordou frenética, chupando o ar. Passados poucos dias, tinha a expressão plácida dos bebés saudáveis e era evidente que o seu peso estava a aumentar. Miss Rose comprou um biberão quando se deu conta de que, mal a cabra balia no pedaço de carne crua sobre o umbigo de Eliza e enfaixava-a fortemente com um pano de lã vermelha, segredo da natureza para prevenir o contágio.
Nos anos seguintes, Miss Rose converteu Eliza no seu brinquedo.
Passava horas entretida ensinando-a a cantar e a dançar; recitando-lhe versos que a miúda memorizava sem esforço, entrançando-lhe o cabelo e vestindo-a com esmero, mas mal surgia outra diversão ou era atacada por dores de cabeça, mandava-a para a cozinha com Mamã Fresia. A criança foi criada entre a salinha da costura e os pátios traseiros, falando inglês numa parte da casa e uma mistura de espanhol e mapuche - o dialecto indígena da sua ama - na outra. Vestida e calçada como uma duquesa nalguns dias e, noutros, brincando com as galinhas e com os cães, descalça e coberta apenas com um bibe de órfã. Miss Rose apresentava-a nos seus serões musicais, levava-a de carruagem a beber chocolate à melhor pastelaria, às compras ou a visitar os barcos no cais, mas também podia passar vários dias distraída, escrevendo nos seus misteriosos cadernos ou lendo um romance, sem sequer se lembrar da sua protegida. Quando se lembrava dela corria à sua procura, arrependida, cobria-a de beijos, enchia-a de guloseimas e voltava a vesti-la com as suas roupas de boneca para a levar a passear.
Tratou de dar-lhe a mais ampla educação possível, sem descuidar os ensinamentos próprios de uma menina. Por causa de uma birra de Eliza, a propósito de exercícios de piano, agarrou-a por um braço e, sem esperar pelo cocheiro, levou-a aos arrastões doze quarteirões colina abaixo até um convento. No muro de tijolo, sobre um grosso portão de carvalho com rebites de ferro, lia-se em letras desbotadas pelo vento salino: Casa de Expostas.
- Agradece por meu irmão e eu nos termos encarregado de ti. Aqui vêm parar os bastardos e as crianças abandonadas. É isto que queres?
Muda, a menina negou com a cabeça.
- Então, mais vale aprenderes a tocar piano como uma menina decente. Entendeste-me?
Eliza aprendeu a tocar sem talento nem excelência, mas à força de disciplina, aos doze anos conseguia acompanhar Miss Rose durante os serões musicais. Não perdeu a destreza, apesar dos longos períodos sem praticar e, vários anos mais tarde, pôde ganhar o seu sustento num bordel transumante, finalidade que jamais passou pela mente de Miss Rose quando se empenhava em ensinar-lhe a arte sublime da música.
Muitos anos depois, numa dessas tardes tranquilas bebendo chá da China e conversando com o seu amigo Tao Chi'en, no delicado jardim que ambos cultivavam, Eliza concluiu que aquela inglesa errática fora muito boa mãe e que lhe estava agradecida pelos grandes espaços de liberdade interior que lhe dera. Mamã Fresia foi o segundo pilar da sua infância. Pendurava-se nas suas largas saias pretas, acompanhava-a nas suas tarefas e aproveitava para a enlouquecer com perguntas. Desta forma aprendeu lendas e mitos indígenas, aprendeu a decifrar os sinais dos animais e do mar; a reconhecer os hábitos dos espíritos e as mensagens dos sonhos e aprendeu também a cozinhar. Com o seu olfacto infatigável era capaz de identificar ingredientes, ervas e especiarias, de olhos fechados e recordava o seu uso, tal como memorizava poesias. Depressa os complicados pratos crioulos de Mamã Fresia e a delicada pastelaria de Miss Rose perderam o seu mistério. Possuía uma rara vocação culinária, aos sete anos conseguia, sem nojo, tirar a pele a uma língua de vaca ou as tripas a uma galinha, amassar vinte empanadas sem o menor cansaço e passar horas perdidas a descascar feijões, enquanto ouvia, boquiaberta, as cruéis lendas indígenas de Mamã Fresia e as suas coloridas versões das vidas dos santos.
Rose e o seu irmão John eram inseparáveis desde crianças. Ela entretinha-se no Inverno tricotando casacos e meias para o capitão e ele esmerava-se em trazer-lhe, de cada viagem, malas repletas de presentes e grandes caixotes com livros, alguns dos quais iam parar, trancados, ao armário de Rose. Jeremy, como dono da casa e chefe da família, tinha autoridade para abrir a correspondência da sua irmã, ler o seu diário pessoal e exigir cópia das chaves dos móveis dela, mas nunca demonstrou inclinação para o fazer. Jeremy e Rose mantinham uma relação doméstica baseada na seriedade e pouco tinham em comum, excepto a dependência mútua que por vezes lhes parecia uma forma secreta de ódio. Jeremy cobria as necessidades de Rose, mas não financiava os seus caprichos nem perguntava de onde saía o dinheiro para as suas fantasias, assumindo que John lho dava. Ela, por outro lado, administrava a casa com eficiência e estilo, sempre clara nas contas, mas sem o incomodar com os pormenores.
Possuía um bom gosto certeiro e uma graça natural, dava cor à existência de ambos e, com a sua presença, contrariava a crença, bastante difundida por esses lados, de que um homem sem família era um desalmado em potência.
- A natureza do varão é selvagem; o destino da mulher é preservar os valores morais e a boa conduta - defendia Jeremy Sommers.
- Ai, irmão! Tu e eu sabemos que a minha natureza é bem mais selvagem que a tua - troçava Rose.
Jacob Todd, um ruivo carismático e com a mais bonita voz de pregador que jamais se ouvira por aqueles lados, desembarcou em Valparaíso em 1843 com um carregamento de trezentos exemplares da Bíblia em espanhol.
Ninguém estranhou vê-lo chegar: era outro missionário, dos muitos que andavam por todo o lado, pregando a fé protestante. No seu caso, no entanto, a viagem foi resultado da sua curiosidade de aventureiro e não do fervor religioso. Numa dessas fanfarronadas de homem vivido, com demasiada cerveja no corpo, apostou, numa mesa de jogo no seu clube em Londres, que conseguia vender bíblias em qualquer ponto do planeta. Os seus amigos vendaram-lhe os olhos, fizeram girar um globo terrestre e o seu dedo caiu numa colónia do Reino de Espanha, perdida na parte inferior do mundo, onde nenhum desses alegres compinchas suspeitava que houvesse vida.
Rapidamente descobriu que o mapa estava desactualizado, a colónia independentizara-se há mais de trinta anos e era agora a orgulhosa República do Chile, um país católico onde as ideias protestantes não tinham lugar, mas a aposta já estava feita e ele não estava disposto a recuar. Era solteiro, sem laços afectivos ou profissionais e a extravagância de semelhante viagem atraiu- o de imediato. Considerando os três meses de ida e outros três de volta navegando por dois oceanos, o projecto era de fôlego. Vitoriado pelos seus amigos, que lhe vaticinaram um fim trágico às mãos dos papistas daquele ignoto e bárbaro país, e com o apoio financeiro da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, que lhe facilitou os livros e lhe conseguiu a passagem, iniciou a longa travessia de barco rumo ao porto de Valparaiso. O desafio consistia em vender as bíblias e regressar, no prazo de um ano, com um recibo assinado por cada uma. Nos arquivos da biblioteca leu cartas de homens ilustres, de marinheiros e de comerciantes, que tinham estado no Chile e descreviam um povo mestiço de pouco mais de um milhão de almas e uma estranha geografia de montanhas impressionantes, costas abruptas, vales férteis, bosques antigos e gelos eternos. Tinha a reputação de ser o país mais intolerante de todo o continente americano em matéria religiosa, conforme garantiam aqueles que o tinham visitado. Apesar disso, virtuosos missionários tinham tentado difundir o protestantismo e, sem falar uma palavra de castelhano ou do idioma dos índios, chegaram ao sul, onde a terra firme se desfiava num rosário de ilhas. Vários morreram de fome, frio ou, suspeitava- se, devorados pelos seus próprios paroquianos. Nas cidades não tiveram melhor sorte.
O sentido da hospitalidade, sagrado para os Chilenos, pôde mais do que a intolerância religiosa e, por cortesia, permitiam-lhes pregar, mas davam-lhes pouca importância. Se assistiam aos sermões dos escassos pastores protestantes, era com a atitude de quem vai a um espectáculo, divertidos com a peculiaridade de serem hereges. Nada disso conseguiu desanimar Jacob Todd, porque não ia como missionário, mas como vendedor de bíblias.
Nos arquivos da Biblioteca descobriu que, desde a sua independência em 1810, o Chile abrira as suas portas aos imigrantes, que chegaram às centenas e se instalaram naquele comprido e estreito território, banhado pelo oceano Pacífico de uma ponta à outra. Os Ingleses fizeram fortuna rapidamente como comerciantes e armadores; muitos levaram as suas famílias e ficaram. Formaram uma pequena nação dentro do país, com os seus costumes, cultos, jornais, clubes, escolas e hospitais, mas fizeram-no com tão boas maneiras que, longe de provocar suspeitas, eram considerados um exemplo de civismo. Acantonaram a sua esquadra em Valparaíso para controlar o tráfego marítimo do Pacífico. Assim, um casario pobre e sem destino no começo da república, converteu-se, em menos de vinte anos, num porto importante, onde atracavam os veleiros provenientes do Atlântico através do cabo Horn e, mais tarde, os vapores que passavam pelo estreito de Magalhães.
Foi uma surpresa para o cansado viajante quando Valparaíso lhe apareceu diante dos olhos. Havia mais de uma centena de embarcações com bandeiras de meio mundo. As montanhas de cumes nevados pareciam tão próximas que davam a impressão de emergir directamente de um mar cor de tinta azul, do qual emanava uma fragrância impossível de sereias. Jacob Todd ignorou sempre que, sob essa aparência de paz profunda, havia uma cidade completa de veleiros espanhóis afundados e esqueletos de patriotas com uma pedra de pedreira amarrada aos tornozelos, afundados pelos soldados do capitão-mor. O barco lançou âncora na baía, entre milhares de gaivotas que alvoroçavam o ar com as suas asas impressionantes e os seus grasnidos de fome. Inúmeros botes iludiam as ondas, alguns carregados com enormes safios e robalos ainda vivos, debatendo-se no desespero do ar.
Valparaíso, disseram-lhe, era o império comercial do Pacifico, nos seus armazéns guardavam-se metais, lã de ovelha e de alpaca, cereais e couros para os mercados do mundo. Vários botes transportaram os passageiros e a carga do veleiro para terra firme. Ao chegar ao cais, entre marinheiros, estivadores, passageiros, burros e carretas, deparou-se-lhe uma cidade encastoada num anfiteatro de colinas íngremes, tão povoada e suja como muitas de bom nome na Europa. Pareceu-lhe um disparate arquitectónico de casas de tijolo e de madeira em ruas estreitas que, em poucas horas, o menor incêndio poderia converter em cinza. Uma carruagem puxada por dois cavalos maltratados conduziu-o juntamente com os baús e caixotes da sua bagagem, ao Hotel Inglês. Passou diante de edifícios de boa aparência em redor de uma praça, de várias igrejas mais toscas e de residências de um só piso, rodeadas de grandes jardins e hortas. Calculou uns cem quarteirões, mas depressa percebeu que a cidade enganava a vista, era um dédalo de ruelas e de passagens. Avistou ao longe um bairro de pescadores, com casinhotos expostos às rajadas do mar e redes penduradas como enormes teias de aranha, mais longe campos férteis de hortaliças e pomares.
Circulavam carruagens tão modernas como em Londres, faetontes, fiacres e caleças, também récuas de mulas escoltadas por crianças andrajosas e carretas puxadas por bois, no próprio centro da cidade. Pelas esquinas, frades e freiras mendigavam esmola para os pobres, entre levas de cães vadios e de galinhas desorientadas. Observou algumas mulheres carregadas de sacos e canastros, arrastando os filhos, descalças mas com mantos pretos na cabeça, e muitos homens com chapéus cónicos sentados nas soleiras ou conversando em grupos, sempre ociosos.
Uma hora depois de desembarcar, Jacob Todd estava sentado no elegante salão do Hotel Inglês fumando cigarrilhas importadas do Cairo e folheando uma revista britânica bastante desactualizada. Suspirou agradecido: pelos vistos não teria problemas de adaptação e, administrando bem os seus rendimentos, poderia viver ali quase tão comodamente como em Londres.
Esperava que alguém viesse servi-lo - ao que parece ninguém tinha pressa por estes lados - quando se aproximou John Sommers, o capitão do veleiro em que viajara. Era um homenzarrão de cabelo escuro e pele tostada como couro de sapato, que fazia alarde da sua condição de grande bebedor; mulherengo e infatigável jogador de cartas e de dados. Tinham feito uma boa amizade e o jogo manteve-os entretidos nas noites eternas de navegação em alto mar e nos dias tumultuosos e gelados da travessia do cabo de Horn, a sul do mundo. John Sommers vinha acompanhado por um homem pálido, com uma barba bem cortada e vestido de preto dos pés à cabeça, que apresentou como sendo o seu irmão Jeremy. Seria difícil encontrar dois tipos humanos tão diferentes. Joliu era a própria imagem da saúde e da força, franco, ruidoso e amável, enquanto o outro tinha um ar de espectro encerrado num Inverno eterno. Era uma dessas pessoas que nunca estão de todo presentes e a quem dificilmente recordamos, porque carecem de contornos precisos, concluiu Jacob Todd. Sem esperar pelo convite, instalaram-se os dois na sua mesa com a familiaridade dos compatriotas em terra alheia. Por fim apareceu uma criada e o capitão John Sommers encomendou uma garrafa de whisky, enquanto o seu irmão pedia chá, no linguajar inventado pelos britânicos para se entenderem com a criadagem.
- Como estão as coisas em casa? - inquiriu Jeremy. Falava em voz baixa, quase num murmúrio, mal mexendo os lábios e com um acento ligeiramente afectado.
- Há trezentos anos que não acontece nada em Inglaterra - disse o capitão.
- Desculpe a minha curiosidade, Mr. Todd, mas vi-o entrar no hotel e não pude deixar de reparar na sua bagagem. Pareceu-me que havia vários caixotes marcados como bíblias... estou enganado? - perguntou Jeremy Sommers.
- Efectivamente, são bíblias.
- Ninguém nos avisou de que nos enviavam outro pastor...
- Navegamos durante três meses juntos e não soube que era pastor, Mr. Todd - exclamou o capitão.
- Na verdade não sou - respondeu Jacob Todd, dissimulando o rubor atrás de uma baforada do fumo do seu charuto.
- Missionário, então. Pensa ir à Terra do Fogo, suponho. Os índios patagónios estão prontos para a evangelização. Dos araucanos esqueça-se, homem, os católicos já os agarraram - comentou Jeremy Sommers.
- Deve restar um punhado de araucanos. Essa gente tem a mania de se deixar massacrar - comentou o irmão.
- Eram os índios mais selvagens da América, Mr. Todd. A maior parte morreu lutando contra os espanhóis. Eram canibais.
- Cortavam pedaços dos prisioneiros vivos: preferiam a sua refeição fresca - acrescentou o capitão - Nós faríamos o mesmo, se alguém nos matasse a família, nos queimasse as aldeias e nos roubasse a terra.
- Excelente, John, agora defendes o canibalismo! - respondeu o irmão, desgostoso. - De qualquer forma, Mr. Todd, devo adverti-lo de que não interfira com os católicos. Não devemos provocar os nativos. Esta gente é bastante supersticiosa.
- As crenças alheias são superstições, Mr. Todd. As nossas chamamos religião. Os índios da Terra do Fogo, os patagónios, são muito diferentes dos araucanos.
- Igualmente selvagens. Vivem nus num clima horrível - disse Jeremy.
- Leve-lhes a sua religião, Mr. Todd, para ver se ao menos aprendem a usar calções - comentou o capitão.
Todd nunca ouvira falar daqueles índios e a última coisa que desejava era pregar algo em que ele próprio não acreditava, mas não se atreveu a confessar-lhes que a sua viagem era o resultado de uma aposta de bêbedos.
Respondeu vagamente que pensava organizar uma expedição missionária, mas que ainda deveria decidir como financiá-la.
- Se tivesse sabido que vinha pregar os desígnios de um deus tirânico entre essa boa gente, tê-lo-ia lançado borda fora a meio do Atlântico, Mr. Todd.
Interrompeu-os a criada com o whisky e com o chá. Era uma adolescente frutai, metida num vestido preto com coifa e avental gomados. Ao inclinar-se com a bandeja, deixou no ar uma fragrância perturbadora de flores esmagadas e de ferro a carvão. Jacob Todd não vira mulher nas últimas semanas e ficou a olhar para ela, retorcido de saudades.
John Sommers esperou que a rapariga se retirasse.
- Tenha cuidado, homem, as chilenas são fatais - disse.
- Não me parecem. São baixas, largas de ancas e têm uma voz desagradável - disse Jeremy Sommers, equilibrando a sua chávena de chá.
- Os marinheiros desertam dos barcos por elas! - exclamou o capitão.
- Admito, não sou uma autoridade em matéria de mulheres. Não tenho tempo para isso. Tenho de cuidar dos meus negócios e da nossa irmã, ou já te esqueceste?
- Nem por um instante, estás sempre a recordá-lo. Está a ver Mr. Todd, eu sou a ovelha negra da família, um doidivanas. Se não fosse o bom do Jeremy...
- Essa rapariga parece espanhola - interrompeu Jacob Todd, seguindo a criada com os olhos, que nesse momento atendia outra mesa. - Vivi dois meses em Madrid e vi muitas como ela.
- Aqui são todos mestiços, mesmo nas classes altas. Não o admitem, evidentemente. O sangue indígena esconde-se como uma praga. Não os condeno, os índios têm fama de sujos, ébrios e preguiçosos. O governo tenta melhorar a raça trazendo imigrantes europeus. No sul oferecem terras aos colonos.
- O desporto favorito deles é matar índios para lhes tirarem as terras.
- Exageras, John.
- Nem sempre é preciso eliminá-los a tiro, basta alcoolizá-los. Mas matá-los é muito mais divertido, claro. De qualquer forma, os britânicos não participam desse passatempo, Mr. Todd. A terra não nos interessa. Para quê plantar batatas, se podemos fazer fortuna sem tirar as luvas?
- Aqui não faltam oportunidades para um homem empreendedor. Está tudo por fazer neste país. Se deseja prosperar vá para o Norte. Há prata, cobre, salitre, guano.
- Guano?
- Merda de pássaro - esclareceu o marinheiro.
- Não entendo nada disso, Mr. Sommers.
- Fazer fortuna não interessa a Mr. Todd, Jeremy. O que lhe interessa é a fé cristã, não é verdade?
- A colónia protestante é numerosa e próspera, ajudá-la-á. Venha amanhã à minha casa. às quartas-feiras a minha irmã Rose organiza uma tertúlia musical e será uma boa ocasião para fazer amigos. Enviarei a minha carruagem buscá-lo às cinco da tarde. Divertir-se-á - disse Jeremy Sommers, despedindo-se.
No dia seguinte, refeito por uma noite sem sonhos e por um longo banho para tirar os vestígios de sal que tinha colado à alma, mas ainda com o andar vacilante pelo costume de navegar, Jacob Todd foi passear pelo porto. Percorreu sem pressa a rua principal, paralela ao mar e a tão curta distância da margem que as ondas o salpicavam, bebeu uns copos num café e comeu numa taberna do mercado. Saíra de Inglaterra num gélido Inverno de Fevereiro e, depois de atravessar um eterno deserto de água e de estrelas, onde se enredou até mais não poder nos seus amores passados, chegou ao hemisfério sul no início de outro Inverno inclemente. Antes de partir não lhe passou pela cabeça averiguar sobre o clima. Imaginou o Chile quente e húmido como a índia, porque julgava serem assim os países dos pobres, mas encontrou-se à mercê de um vento gelado que lhe chegava aos ossos e levantava remoinhos de areia e de lixo. Perdeu-se várias vezes em ruas sinuosas, dava voltas e mais voltas para chegar ao mesmo lugar onde tinha começado. Subia por becos torturados por infinitas escadas e ladeados por casas absurdas suspensas de parte nenhuma, tentando discretamente não olhar pelas janelas para a intimidade alheia. Tropeçou com praças românticas de aspecto europeu coroadas por coretos, onde bandas militares tocavam música para apaixonados, e percorreu tímidos jardins pisados por burros. árvores soberbas cresciam nas bermas das ruas principais, alimentadas por águas que desciam das colinas a céu aberto. Na zona comercial era tão evidente a presença dos britânicos, que se respirava um ar ilusório de outras latitudes. Os letreiros de várias lojas estavam em inglês e os seus compatriotas passavam vestidos como em Londres, com os mesmos guarda-chuvas pretos de coveiros. Assim que se afastou das ruas centrais, a pobreza caiu-lhe em cima com o impacto de um bofetão; viu pessoas que pareciam subnutridas, sonolentas, soldados com uniformes coçados e mendigos nas portas das igrejas. Ao meio dia puseram-se a repicar em uníssono os sinos das igrejas imediatamente cessou o barulho, os transeuntes pararam, os homens tiraram o chapéu, as poucas mulheres à vista ajoelharam-se e todos se benzeram. A visão durou doze badaladas para depois a actividade na rua recomeçar como se nada tivesse acontecido.
Os ingleses
A carruagem enviada por Sommers chegou ao hotel com meia hora de atraso.
O condutor estava bem atestado de álcool, mas Jacob não estava em situação de escolher. O homem conduziu-o em direcção ao sul. Chovera durante algumas horas e as ruas tinham-se tornado intransitáveis nalguns trechos, onde os charcos de água e o lodo dissimulavam as armadilhas fatais de buracos capazes de engolir um cavalo distraído. Aos lados da rua, crianças com parelhas de bois esperavam, preparadas para libertar as carruagens atoladas a troco de uma moeda, mas apesar da sua miopia de ébrio, O condutor conseguiu evitar as covas e depressa começaram a subir uma colina. Ao chegar a Cerro Alegre, onde vivia a maior parte da colónia estrangeira, o aspecto da cidade dava uma volta e desapareciam os casebres e os cortiços da zona mais baixa. A carruagem parou diante de uma quinta de grandes proporções, mas de aspecto atribulado, um aborto de torreões pretensiosos e escadas inúteis, plantada entre os desníveis do terreno e iluminada por tantos archotes, que a noite tinha retrocedido. Veio abrir a porta um criado indígena com um libré que lhe ficava grande, recebeu o seu casaco e o seu chapéu e levou-o até uma sala espaçosa, decorada com móveis caros e com cortinados um pouco teatrais de veludo verde, sobrecarregada de adornos, sem um centímetro em branco para descanso da vista. Calculou que no Chile, tal como na Europa, uma parede nua era considerada sinal de pobreza e apercebeu-se do erro muitos anos depois, quando visitou as casas sóbrias dos chilenos. Os quadros pendiam inclinados para poderem ser apreciados de baixo e a vista perdia-se na penumbra dos tetos altos. A grande lareira acesa com troncos grossos e as várias braseiras a carvão repartiam um calor desigual que deixava os pés gelados e a cabeça febril.
Estavam pouco mais de uma dúzia de pessoas, vestidas à moda europeia, e várias criadas de uniforme fazendo circular as bandejas. Jeremy e John Sommers vieram cumprimentá-lo.
- Apresento-lhe a minha irmã Rose - disse Jeremy, levando-o até ao fundo da sala.
E, então, Jacob Todd viu sentada à direita da lareira a mulher que arruinaria a sua paz de alma. Rose Sommers deslumbrou-o imediatamente, não tanto pela beleza mas pela alegria e segurança em si própria. Nada tinha da grosseira exuberância do capitão ou da enfadonha solenidade do seu irmão Jeremy, era uma mulher de expressão fulgurante, como se estivesse sempre pronta a explodir num riso provocante. Quando o fazia, uma rede de finas rugas aparecia em redor dos seus olhos e, por alguma razão, isso foi o que mais atraiu Jacob Todd. Não soube calcular a idade dela, entre vinte e trinta anos talvez, mas calculou que dentro de dez anos estaria igual, porque tinha bons ossos e porte de rainha. Usava um vestido de tafetá cor de pêssego e não tinha jóias, excepto uns simples brincos de coral nas orelhas.
A cortesia mais elementar aconselhava que se limitasse a sugerir o gesto de lhe beijar a mão, sem a tocar com os lábios, mas turvou-se-lhe o raciocínio e, sem saber como, pespegou-lhe um beijo. Foi tão pouco apropriado aquele cumprimento que, durante uma pausa eterna, ficaram suspensos na incerteza, ele segurando-lhe na mão como quem agarra uma espada e ela olhando para o rasto de saliva, sem se atrever a limpar para não ofender a visita, até que uma rapariga vestida como uma princesa os interrompeu. Nessa altura Todd acordou do soçobro e, ao erguer-se, teve tempo de entrever uma expressão de troça trocada pelos irmãos Sommers. Tentando dissimular, voltou-se para a menina com uma atenção exagerada, disposto a conquistá-la.
- Esta é Eliza, a nossa protegida - disse Jeremy Sommers.
Jacob Tobb cometeu a segunda inconveniência.
- Como é isso, protegida? - perguntou.
- Quer dizer que não sou desta família - explicou Eliza pacientemente, no tom de quem se dirige a um tonto.
- Não?
- Se me portar mal enviam-me para as freiras papistas.
- O que dizes, Eliza! Não lhe faça caso, Mr. Todd. As crianças lembram-se de coisas estranhas. Evidentemente que Eliza é da nossa família interrompeu Miss Rose, levantando-se.
Eliza tinha passado o dia a preparar o jantar com Mamã Fresia. A cozinha ficava no pátio, mas Miss Rose uniu-a à casa através de um telheiro para evitar a vergonha de servir os pratos frios ou salpicados de pomba. Esse quarto, escurecido pela gordura e pela fuligem do fogão, era o reino indiscutível de Mamã Fresia. Gatos, cães, gansos e galinhas passeavam à sua vontade pelo chão de ladrilhos rústicos sem encerar. Ali ruminava, durante todo o Inverno, já muito velhinha, a cabra que amamentara Eliza e que ninguém se atrevera a sacrificar, porque teria sido como assassinar uma mãe. A miúda gostava do cheiro do pão cru nas formas, quando a levedura realizava entre suspiros, o misterioso processo de empolar a massa; do açúcar de caramelo batido para decorar bolos; do chocolate em penhascos desfazendo-se no leite. Nas quarta-feiras de tertúlia, as mucamas – duas adolescentes indígenas, que viviam lá em casa e trabalhavam a troco de comida - areavam as pratas, engomavam as toalhas e puxavam brilho aos cristais. Ao meio dia mandavam o cocheiro à pastelaria comprar doces preparados com receitas zelosamente guardadas desde os tempos da colónia. Mamã Fresia aproveitava para pendurar, num dos arreios dos cavalos, um saco de couro com leite fresco que, no trote de ida e volta, se convertia em manteiga.
Às três da tarde, Miss Rose chamava Eliza ao seu quarto, onde o cocheiro e o valete instalavam uma banheira de bronze com patas de leão, que as mucamas forravam com um lençol e enchiam de água quente, perfumada com folhas de hortelã e de alecrim. Rose e Eliza chapinhavam no banho como crianças até a água arrefecer e as criadas regressarem, com os braços carregados de roupa, para as ajudar a calçar meias e botins, calções até meia perna, camisa de cambraia, seguida de um saiote com enchumaço nas ancas para acentuar a delicadeza da cintura, e de três combinações gomadas e por fim do vestido, que as cobria por inteiro, deixando ao ar apenas a cabeça e as mãos. Miss Rose usava, além disso, um espartilho teso devido aos ossos de baleia e tão apertado que não conseguia respirar fundo nem levantar os braços acima dos ombros; também não conseguia vestir-se sozinha ou curvar-se porque os ossos de baleia se partiam e se espetavam como agulhas no corpo. Esse era o único banho da semana, uma cerimónia só comparável à de lavar o cabelo ao sábado, que qualquer pretexto podia cancelar, porque se considerava perigoso para a saúde.
Durante a semana Miss Rose usava sabão com cautela, preferia friccionar-se com uma esponja embebida em leite e refrescar-se com eau de toilette com perfume de baunilha, como ouvira que estava na moda em França desde os tempos de Madame Pompadour. Eliza conseguia reconhecê-la de olhos fechados a meio de uma multidão devido à sua peculiar fragrância a sobremesa. Passados os trinta anos, mantinha essa pele transparente e frágil de algumas jovens inglesas, antes da luz do mundo e da própria arrogância a transformarem em pergaminho. Cuidava da sua aparência com água de rosas e com limão para aclarar a pele, mel de hamamelis para a suavizar, camomila para dar brilho ao cabelo e uma colecção de bálsamos exóticos e de loções trazidas pelo seu irmão John do Extremo Oriente, onde viviam as mulheres mais bonitas do universo, segundo dizia. Inventava vestidos inspirados nas revistas de Londres e fazia-os ela própria na sua salinha da costura; à força de intuição e de engenho modificava o seu vestuário com as mesmas fitas, flores e plumas que serviam durante anos sem parecerem antigas. Não usava, como as chilenas,,,, um manto preto para se cobrir quando saía, costume que lhe parecia uma aberração, preferia as suas capas curtas e a sua colecção de chapéus, apesar de na rua costumarem olhá-la como se fosse uma cortesã.
Encantada por ver um rosto novo na reunião semanal, Miss Rose perdoou o beijo impertinente de Jacob Todd e, dando-lhe o braço, levou-o até uma mesa redonda, situada num canto da sala. Deu-lhe a escolher entre vários licores, insistindo que provasse a sua mistela, uma estranha beberagem de canela, aguardente e açúcar que ele foi incapaz de tragar e que despejou dissimuladamente num vaso. Depois apresentou-o aos convidados: Mr. Appelgren, fabricante de móveis, acompanhado pela filha, uma jovem deslavada e tímida; Madame Colbert, directora de um colégio inglês para raparigas; Mr. Ebeling, dono da maior loja de chapéus para cavalheiros e a mulher, que se lançou sobre Todd pedindo-lhe notícias da família real inglesa como se de parentes seus se tratasse. Conheceu também os cirurgiões Page e Poett.
- Os doutores operam com clorofórmio - esclareceu admirada Miss Rose.
- Aqui ainda é uma novidade mas, na Europa, revolucionou a prática da medicina - explicou um dos cirurgiões.
- Julgo que em Inglaterra se utiliza regularmente em obstetrícia. Não o utilizou a rainha Vitória? - acrescentou Todd para dizer alguma coisa, uma vez que nada sabia do assunto.
- Aqui há demasiada oposição dos católicos para isso. A maldição bíblica sobre a mulher é parir com dor, Mr. Todd.
- Não lhes parece injusto, senhores? A maldição do homem é trabalhar com o suor do seu rosto, mas neste salão, sem ir mais longe, os cavalheiros ganham a vida com o suor alheio - respondeu Miss Rose, corando violentamente.
Os cirurgiões sorriram desconfortáveis, mas Todd observou-a cativado.
Teria permanecido ao seu lado a noite inteira, apesar de o correcto numa tertúlia de Londres, de acordo com o que se lembrava Jacob Todd, era ir embora passado meia hora. Apercebeu-se de que, nesta reunião, as pessoas pareciam dispostas a ficar e calculou que o círculo social devia ser bastante limitado e talvez a única reunião semanal fosse a dos Sommers. Estava nesta incerteza quando Miss Rose anunciou o entretenimento musical. As criadas trouxeram mais candelabros, iluminando a sala como um dia claro, colocaram cadeiras em redor de um piano, de uma viola e de uma harpa, as mulheres sentaram-se em semicírculo e os homens colocaram-se atrás de pé. Um cavalheiro bochechudo instalou-se ao piano e, das suas mãos de açougueiro, brotou uma melodia encantadora, enquanto a filha do fabricante de móveis interpretava uma antiga balada escocesa com uma voz tão agradável, que Todd esqueceu por completo o seu aspecto de ratinho assustado. A directora da escola para raparigas recitou um poema heróico, desnecessariamente longo; Rose cantou algumas canções pícaras, em dueto com o seu irmão John, apesar da evidente desaprovação de Jeremy Sommers, e depois exigiu que Jacob Todd os recreasse com algo do seu repertório. Isso deu oportunidade ao visitante de mostrar a sua boa voz.
- O senhor é um verdadeiro achado, Mr. Todd! Não o largaremos. Está condenado a vir todas as quartas-feiras! - exclamou ela quando cessaram os aplausos, sem fazer caso da expressão embevecida com que o visitante a observava.
Todd sentia os dentes colados de açúcar e a cabeça andava-lhe às voltas, não sabia se devido apenas à sua admiração por Rose Sommers se devido aos licores ingeridos e ao forte charuto cubano, fumado na companhia do capitão Sommers. Naquela casa não se podia recusar um copo ou um prato sem ofender; depressa descobriria que essa era uma característica nacional no Chile, onde a hospitalidade se manifestava obrigando os convidados a beber e a comer para além de qualquer resistência humana. Às nove anunciaram o jantar e foram em procissão até à sala de jantar, onde os aguardava outra série de pratos contundentes e de novas sobremesas. Perto da meia-noite as mulheres levantaram-se da mesa e continuaram a conversar na sala, enquanto os homens bebiam brandy e fumavam na sala de jantar.
Por fim, quando Todd estava quase a desmaiar, os convidados começaram a pedir os seus casacos e as suas carruagens. Os Ebeling, vivamente interessados na missão evangelizadora na Terra do Fogo, ofereceram-se Para o levar ao hotel e ele aceitou de imediato, assustado com a ideia de regressar, em plena escuridão, por essas ruas de pesadelo com o cheiro ébrio dos Sommers.
A viagem pareceu-lhe eterna, sentia-se incapaz de se concentrar na conversa, ia enjoado e com o estômago embrulhado.
- A minha mulher nasceu em África, é filha de missionários que por lá difundem a verdadeira fé; sabemos quantos sacrifícios isso significa, Mr. Todd. Esperamos que nos conceda o Privilégio de o ajudar na sua nobre tarefa entre os indígenas - disse Mr. Ebeling, solene, ao despedir-se. Nessa noite Jacob Todd não conseguiu dormir. A visão de Rose Sommers aguilhoava-o com crueldade e, antes do amanhecer, tomou a decisão de cortejá-la a sério. Não sabia nada dela,, não se importava, talvez o seu destino fosse perder uma aposta e chegar até ao Chile só para conhecer a sua futura mulher. Tê-lo-ia feito a partir do dia seguinte, mas não conseguiu levantar-se da cadeira, atacado por cólicas violentas. Assim esteve um dia e uma noite, algumas vezes inconsciente e outras agonizando, até que conseguiu reunir forças para chegar à porta e pedir ajuda. A seu pedido o gerente do hotel mandou avisar os Sommers, seus únicos conhecidos na cidade, e chamou um criado para limpar o quarto, que cheirava a esterqueira. Jeremy Sommers chegou ao hotel ao meio-dia, acompanhado pelo sangrador mais conhecido de Valparaíso, o qual possuía alguns conhecimentos de inglês e que, depois de Sangrá-lo nas pernas e nos braços até o deixar exangue, lhe explicou que todos os estrangeiros adoeciam ao chegar ao Chile pela primeira vez.
- Não há motivo para se preocupar; que eu saiba, poucos são aqueles que morrem - tranquilizou-o.
Deu-lhe quinino numas hóstias de papel de arroz, mas ele não conseguiu engoli-las, vergado pelas náuseas. Tinha estado na Índia e conhecia os sintomas da malária e de outras doenças tropicais, curáveis com quinino, mas este mal não se lhes assemelhava nem remotamente. Mal saiu o sangrador, regressou o criado para levar os trapos e lavar novamente o quarto. Jeremy Sommers tinha deixado os dados dos doutores Page e Poett, mas não houve tempo para os chamar porque, duas horas mais tarde, apareceu no hotel uma mulheraça que exigiu ver o doente. Trazia pela mão uma menina vestida de veludo azul, com botins brancos e um barrete bordado às flores, como uma figura das histórias. Eram Mamã Fresia e Eliza, enviadas por Rose Sommers, que tinha muito pouca fé nas sangrias. As duas irromperam no quarto com tanta segurança, que o debilitado Jacob Todd nem se atreveu a protestar. A primeira vinha na qualidade de curandeira e a segunda de tradutora.
- A minha mãezinha diz que lhe vai tirar o pijama. Eu não vou olhar - explicou a criança e voltou-se para a parede, enquanto a índia o despia em dois tempos e começava a friccioná-lo por inteiro com aguardente.
Puseram na sua cama tijolos quentes, embrulharam-no em mantas e deram-lhe de beber às colherzinhas uma infusão de ervas amargas, adoçadas com mel, para apaziguar as dores da indigestão.
- Agora a minha mãezinha vai cortar a doença - disse a criança.
- O que é isso?
- Não se assuste, não dói.
Mamã Fresia fechou os olhos e começou a passar-lhe as mãos pelo tronco e pela barriga enquanto sussurrava encantamentos no idioma mapuche. Jacob Todd sentiu que o invadia uma sonolência insuportável, antes da mulher acabar dormia profundamente e não soube quando desapareceram as suas duas enfermeiras. Dormiu dezoito horas e acordou banhado em suor. Na manhã seguinte, Mamã Fresia e Eliza regressaram para lhe administrar outra fricção vigorosa e uma malga de canja de galinha.
- A minha mãezinha diz para nunca mais beber água. Beba apenas chá bem quente e não coma fruta, porque lhe voltará a vontade de morrer - traduziu a miúda.
Passada uma semana, quando conseguiu levantar, e se olhou ao espelho, compreendeu que não podia apresentar-se com este aspecto diante de Miss Rose: tinha perdido vários quilos, estava enfraquecido e não conseguia dar dois passos sem cair ofegante numa cadeira. Quando ficou em condições de mandar um bilhete agradecendo ter-lhe salvo a vida, e chocolates para Mamã Fresia e Eliza, soube que a jovem partira com uma amiga e com a sua mucama numa viagem arriscada, dadas as más condições do caminho e do clima. Miss Rose fazia o trajecto de trinta e quatro léguas uma Vez por ano, sempre no inicio do Outono ou em plena Primavera, para ver teatro, ouvir boa música e fazer as suas compras anuais no grande Armazém Japonês, perfumado com jasmim e iluminado com candeeiros de gás com globos de vidro rosado, onde adquiria as bagatelas difíceis de encontrar no porto. Desta vez, no entanto, havia uma boa razão para ir no Inverno: posaria para um retrato. Tinha chegado ao país o célebre pintor francês Monvoisin, convidado pelo governo para fazer escola entre os artistas nacionais. O mestre só Pintava a cabeça, o resto era obra dos seus ajudantes e, para poupar tempo, até as rendas eram aplicadas directamente sobre a tela, mas apesar destes recursos enganosos, nada dava tanto prestígio como um retrato assinado por ele. Jeremy Sommers insistiu em ter um da sua irmã para presidir ao salão. O quadro custava seis onças de ouro e mais uma por cada mão, mas não era caso de poupar num assunto destes. A oportunidade de ter uma obra autêntica do grande Monvoisin não surgia duas vezes na vida, como diziam os seus clientes.
- Se as despesas não são problema, quero que me pinte com três mãos. Será o seu quadro mais famoso e acabará pendurado num museu, em vez de ficar sobre a nossa lareira - comentou Rose Sommers.
Aquele foi o ano das inundações, que ficaram registradas nos textos escolares e na memória dos avós. O dilúvio arrasou centenas de habitações e, quando finalmente amainou o temporal e as águas começaram a baixar, uma série de tremores menores, que se sentiram como uma machadada de Deus, acabaram de destruir o que ficara amolecido pelo aguaceiro. Rufiões percorriam os escombros e aproveitavam a confusão para roubar as casas e os soldados receberam instruções para executar, sem considerações, aqueles que fossem surpreendidos em tais tropelias, mas entusiasmados com a crueldade, começaram a repartir golpes de sabre, pelo gosto de ouvir os lamentos, e a ordem teve de ser revogada antes que acabassem também com os inocentes. Jacob Todd, fechado no hotel a curar uma constipação e ainda débil pela semana de cólicas, passava as horas desesperado devido ao incessante ruído dos sinos das igrejas chamando para a penitência, lendo jornais atrasados e procurando companhia para jogar às cartas. Fez uma saída à farmácia, à procura de um tónico para fortalecer o estômago, mas a loja acabou por ser um cubículo caótico, cheio de frascos azuis e verdes poeirentos, onde um empregado alemão lhe ofereceu óleo de lacraus e álcool de minhocas. Pela primeira vez lamentou estar tão longe de Londres.
A noite mal conseguia dormir, devido às pândegas e brigas dos bêbedos e aos enterros, que se realizavam entre a meia-noite e as três horas da madrugada. O novo cemitério ficava no alto de uma colina, espreitando por cima da cidade. Com o temporal abriram-se fendas e rolaram tumbas pelas encostas, numa confusão de ossos que nivelou todos os defuntos na mesma indignidade. Muitos comentavam que os mortos estavam melhor dez anos antes, quando as pessoas abastadas eram enterradas nas igrejas, os pobres nos desfiladeiros e os estrangeiros na praia. Este é um país extravagante, concluiu Todd, com um lenço amarrado à cara, porque o vento transportava o bafo nauseabundo da desgraça, que as autoridades combatiam com grandes fogueiras de eucalipto. Mal se sentiu melhor foi ver as procissões. Em geral não chamavam a atenção, porque todos os anos se repetiam iguais durante os sete dias da Semana Santa e noutras festas religiosas, mas nesta ocasião transformaram-se em cerimónias maciças para clamar ao céu o fim do temporal. Saíam das igrejas longas filas de fiéis, encabeçadas por confrarias de cavalheiros vestidos de preto, carregando em andores as estátuas dos santos com magníficos trajes bordados a ouro e pedras preciosas. Uma coluna carregava um Cristo crucificado, com a sua coroa de espinhos em redor do pescoço. Explicaram-lhe que se tratava do Cristo de Maio, trazido especialmente de Santiago para a ocasião, porque era a imagem mais milagrosa do mundo, a única capaz de modificar o clima. Duzentos anos antes, um terramoto pavoroso deitou por terra a capital, a Igreja de Santo
Agostinho ruiu totalmente, menos o altar onde se encontrava aquele Cristo. A coroa escorregou da cabeça para o pescoço, onde ainda permanecia, porque cada vez que tentavam colocá-la no lugar, a terra voltava a tremer. As procissões reuniam inúmeros frades e freiras, beatas exangues de tanto jejum, povo humilde rezando e cantando numa gritaria, penitentes com vestes grosseiras e flagelantes chicoteando as costas nuas com chicotes de couro terminados em afiadas rosetas metálicas. Alguns caíam desmaiados e eram socorridos por mulheres que lhes limpavam as carnes abertas e lhes davam refrescos, mas assim que recuperavam, empurravam-nos de volta à procissão. Passavam filas de índios martirizando- se com fervor demente e bandas de músicos tocando hinos religiosos. O rumor das orações chorosas parecia uma torrente de água brava e o ar húmido fedia a incenso e a suor. Havia procissões de aristocratas luxuosamente vestidos, mas de escuro e sem jóias, e outras de populaça, descalça e em farrapos, que se cruzavam na mesma praça sem se tocarem ou confundirem. à medida que avançavam aumentava o clamor e as demonstrações de piedade tornavam-se mais intensas; os fiéis uivavam pedindo perdão pelos seus pecados, certos de que o mau tempo era o castigo divino pelas suas faltas. Os arrependidos acudiam em massa, as igrejas não davam vazão e instalaram-se fileiras de sacerdotes sob barracas e guarda-chuvas para atender às confissões. Para o inglês, o espectáculo parecia-lhe fascinante e em nenhuma das suas viagens presenciara algo tão exótico ou tão tétrico. Habituado à sobriedade protestante, parecia-lhe ter retrocedido até à Idade Média; os seus amigos em Londres jamais acreditariam nele. Embora a uma distância prudente, podia sentir o estremecimento de besta primitiva e sofredora, que percorria em vagas a massa humana. Empoleirou-se com esforço na base de um monumento na praceta, defronte da Igreja Matriz, onde podia Obter uma visão panorâmica da multidão. De repente sentiu que lhe puxavam as calças, olhou para baixo e viu uma miúda assustada, com um véu na cabeça e a cara manchada de sangue e lágrimas. Afastou-se bruscamente, mas já era tarde, tinha-lhe sujado as calças. Blasfemou e tentou afastá-la com gestos, uma vez que não conseguiu lembrar-se das palavras adequadas para o fazer em espanhol, mas teve uma surpresa quando ela respondeu num inglês perfeito que estava perdida e se ele podia, por acaso, levá-la a casa. Então olhou-a mais atentamente.
- Sou Eliza Sommers. Lembra-se de mim? - murmurou a menina.
Aproveitando Miss Rose estar em Santiago a posar para o retrato e Jeremy Sommers raramente aparecer em casa nesses dias, porque os armazéns do seu escritório se tinham inundado, tinha pensado ir à procissão e tanto aborreceu Mamã Fresia, que a mulher acabou por ceder. Os seus patrões tinham-na proibido de mencionar ritos católicos ou de índios diante da menina e muito menos expô-la a vê-los, mas ela também morria de vontade de ver o Cristo de Maio, pelo menos uma vez na vida. Os irmãos Sommers nunca ficariam a saber; concluiu. De modo que as duas saíram silenciosamente de casa, desceram a encosta a pé, subiram para uma carreta que as deixou perto da praça e juntaram-se a uma coluna de índios penitentes. Tudo saíra de acordo com o planeado se, no tumulto e no fervor desse dia, Eliza não tivesse largado a mão de Mamã Fresia que, contagiada pela histeria colectiva, não se apercebeu. Começou a gritar, mas a sua voz perdeu-se no clamor das orações e dos tambores tristes das confrarias.
Começou a correr procurando a sua ama, mas todas as mulheres pareciam idênticas sob os véus escuros e os seus pés escorregavam no empedrado coberto de lodo, de cera das velas e de sangue. Rapidamente, as diversas colunas juntaram-se numa só multidão que se arrastava como um animal ferido, enquanto os sinos repicavam enlouquecidos e soavam as sirenas dos barcos no porto. Não soube por quanto tempo ficou paralisada de terror mas pouco a pouco as ideias começaram a clarear no seu espírito. Entretanto a procissão acalmara, toda a gente estava de joelhos e, num estrado em frente à igreja, o bispo em pessoa celebrava uma missa cantada. Eliza pensou encaminhar-se na direcção de Cerro Alegre, mas receou que a escuridão a surpreendesse antes de dar com a casa, nunca saíra sozinha e não sabia orientar-se. Decidiu não se mover até a turba se dispersar, talvez nessa altura Mamã Fresia a encontrasse. Nisto, os seus olhos tropeçaram num ruivo alto, pendurado no monumento da praça, e reconheceu o doente que a sua ama tinha tratado. Sem vacilar, abriu caminho até ele.
- O que fazes aqui? Estás ferida? exclamou o homem.
- Estou perdida, pode levar-me a casa?
Jacob Todd limpou-lhe a cara com o seu lenço e examinou-a rapidamente, comprovando que não tinha feridas visíveis. Concluiu que o sangue devia ser dos flagelantes.
- Levar-te-ei ao escritório de Mr. Sommers.
Mas ela suplicou-lhe que não o fizesse, porque se o seu protector ficasse a saber que tinha estado na procissão, despediria Mamã Fresia. Todd foi à procura de uma carruagem de aluguer; nada fácil de encontrar nessa altura, enquanto a menina caminhava calada e sem soltar-lhe a mão. O inglês sentiu pela primeira vez na sua vida um estremecimento de ternura face a essa mão pequena e quente aferrada à sua. De vez em quando olhava-a dissimuladamente, comovido com aquele rosto infantil de olhos pretos amendoados. Por fim deram com uma carreta puxada por duas mulas e o condutor aceitou levá-los colina acima, pelo dobro da tarifa habitual. Fizeram a viagem em silêncio e, uma hora mais tarde, Todd deixava Eliza diante de casa. Ela despediu-se, agradecendo-lhe, mas sem o convidar a entrar. Viu-a afastar-se, pequena e frágil, coberta até aos pés pelo manto negro. De súbito a miúda deu meia volta, correu na sua direcção, deitou-lhe os braços ao pescoço e pespegou-lhe um beijo na bochecha. Obrigada, disse mais uma vez.
Jacob Todd regressou ao seu hotel na mesma carreta. De vez em quando tocava na face, admirado por esse sentimento doce e triste que a menina lhe inspirava. As procissões serviram para aumentar o arrependimento colectivo e também, conforme pôde comprovar o próprio Jacob Todd, para fazer parar a chuva, justificando uma vez mais a magnífica reputação do Cristo de Maio. Em menos de quarenta e oito horas o céu clareou e espreitou um sol tímido, dando uma nota de optimismo ao concerto de desditas desses dias. Devido aos temporais e às epidemias passaram ao todo nove semanas, antes de recomeçarem as tertúlias das quartas-feiras em casa dos Sommers e várias mais, antes de Jacob Todd se atrever a insinuar os seus sentimentos românticos a Miss Rose. Quando por fim o fez, ela fingiu não ter ouvido, mas perante a sua insistência, saiu-se com uma resposta esmagadora.
- A única coisa boa de casar-se é enviuvar - disse.
- Um marido, por mais tonto que seja, sempre compõe - respondeu ele, sem perder o bom humor.
- Não é o meu caso. Um marido seria um estorvo e não poderia dar-me nada que eu já não tenha.
- Filhos, talvez?
- Mas quantos anos acha que eu tenho, Mr. Todd?
- Não mais de dezassete!
- Não troce. Felizmente tenho Eliza.
- Sou teimoso, Miss Rose, nunca me dou por vencido.
- Agradeço-lhe, Mr. Todd. Não é um marido que compõe, mas muitos pretendentes.
Em todo o caso, Rose foi a razão pela qual Jacob Todd ficou no Chile muito para além dos três meses destinados a vender as suas bíblias. Os Sommers foram o contacto social perfeito e graças a eles abriram-se-lhe de par em par as portas da próspera colónia estrangeira, disposta a ajudá-lo na sua suposta missão religiosa na Terra do Fogo. Dispôs-se a aprender sobre os índios patagónios, mas depois de deitar um olhar sonolento a alguns livrecos na biblioteca, compreendeu que era indiferente saber ou não saber; porque a ignorância a esse respeito era colectiva.
Bastava dizer o que as pessoas desejavam ouvir e para isso ele contava com a sua língua de ouro. Para colocar o carregamento de bíblias entre potenciais clientes chilenos teve de aperfeiçoar o seu precário espanhol. Com os dois meses vividos em Espanha e o seu bom ouvido, conseguiu aprender mais rapidamente e melhor do que muitos britânicos chegados ao país vinte anos antes. No início, dissimulou as suas ideias políticas demasiado liberais, mas reparou que, em cada reunião social, o acossavam com perguntas e era sempre rodeado por um grupo de ouvintes assombrados. Os seus discursos abolicionistas, igualitários e democráticos, sacudiam a apatia daquela boa gente, tornando-se motivo de eternas discussões entre os homens e de exclamações horrorizadas entre as damas maduras, mas atraíam irremediavelmente as mais jovens. A opinião geral catalogava-o de louco e as suas ideias incendiárias pareciam-lhes divertidas, ao contrário dos seus escárnios à família real britânica, que caíram pessimamente entre os membros da colónia inglesa, para quem a rainha Vitória, tal como Deus e o Império, era intocável. A sua renda modesta mas não desprezível, permitia- lhe viver com alguma tranquilidade sem nunca ter trabalhado a sério, o que o colocava na categoria dos cavalheiros. Assim que descobriram que não tinha compromissos, não faltaram raparigas em idade casadoira esmeradas em agarrá-lo, mas depois de conhecer Rose Sommers, ele não tinha olhos para outras. Perguntou milhares de vezes a si próprio por que razão a jovem permanecia solteira e a única resposta que ocorreu àquele agnóstico racionalista foi que o céu lha tinha destinado.
- Até quando me atormentará, Miss Rose? Não receia que eu me aborreça de a perseguir? - brincava com ela.
- Não se aborrecerá, Mr. Todd. Perseguir o gato é muito mais divertido do que apanhá-lo - replicava ela.
A eloquência do falso missionário foi uma novidade naquele ambiente e, assim que se soube que tinha estudado a rigor as Sagradas Escrituras, ofereceram-lhe a palavra. Existia um pequeno templo anglicano, mal visto pelas autoridades católicas, mas a comunidade protestante juntava-se também em casas particulares. "Onde já se viu uma igreja sem virgens e sem diabos? Os gringos são todos hereges, não acreditam no papa, não sabem rezar; passam o tempo a cantar e nem sequer comungam", resmungava Mamã Fresia, escandalizada, cada vez que se realizava o serviço dominical em casa dos Sommers. Todd preparou-se para fazer uma breve leitura sobre a fuga dos judeus do Egipto e, depois, referir-se à situação dos imigrantes que, tal como os judeus bíblicos, tinham de se adaptar em terra estranha, mas Jeremy Sommers apresentou-o aos presentes como missionário e pediu-lhe que falasse dos índios da Terra do Fogo. Jacob Todd não sabia situar a região nem a razão desse nome sugestivo, mas conseguiu comover os ouvintes até às lágrimas com a história de três selvagens capturados por um capitão inglês que os levou para Inglaterra. Em menos de três anos esses infelizes, que viviam nus no frio glaciar e costumavam cometer actos de canibalismo, disse, andavam vestidos apropriadamente, tinham-se transformado em bons cristãos e aprendido os costumes civilizados, tolerando mesmo a comida inglesa. Não esclareceu, no entanto, que mal foram repatriados voltaram imediatamente aos seus antigos hábitos, como se nunca tivessem sido tocados por Inglaterra ou pela palavra de Jesus. Por sugestão de Jeremy Sommers organizou-se ali mesmo uma colecta para a empresa de divulgação da fé, com tão bons resultados que, no dia seguinte, Jacob Todd pode abrir uma conta na sucursal do banco de Londres em Valparaíso. A conta alimentava-se semanalmente com as contribuições dos protestantes e crescia, apesar dos movimentos frequentes de Todd para financiar os seus próprios gastos, quando a sua renda não chegava para os cobrir. Quanto mais dinheiro entrava, mais se multiplicavam os obstáculos e os pretextos para adiar a missão evangelizadora. Assim decorreram dois anos.
Jacob Todd chegou a sentir-se tão à vontade em Valparaíso como se tivesse lá nascido. Chilenos e ingleses tinham em comum várias particularidades de carácter: resolviam tudo com síndicos e advogados; sentiam um apego absurdo pela tradição, pelos símbolos pátrios e pelas rotinas; gabavam-se de ser individualistas e inimigos da ostentação, que desprezavam como um sinal de arrivismo social; pareciam amáveis e controlados, mas eram capazes de uma grande crueldade. No entanto, ao contrário dos ingleses, os chilenos sentiam horror da excentricidade e nada receavam tanto como o ridículo. Se falasse correctamente o castelhano, pensou Jacob Todd, estaria como em minha casa. Instalara-se na pensão de uma viúva inglesa, que albergava gatos e fazia as mais célebres tartes do porto. Dormia com quatro felinos em cima da cama, mais bem acompanhado do que alguma vez estivera, e tomava o pequeno almoço diariamente com as tentadoras tartes da sua anfitriã. Relacionou-se com chilenos de todas as classes, dos mais humildes, que conhecia das suas andanças pelos bairros baixos do porto, aos mais presunçosos. Jeremy Sommers apresentou-o no Club da União, onde foi aceite como membro convidado. Só os estrangeiros de reconhecida importância social se podiam vangloriar de tal privilégio, pois tratava-se de um enclave de latifundiários e de políticos conservadores, onde o valor dos sócios era medido pelo apelido. Abriram-se-lhe as portas graças à sua habilidade às cartas e aos dados; perdia com tanta elegância, que poucos se apercebiam do muito que ganhava. Aí se fez amigo de Agustín del Valle, dono de terras agrícolas nessa zona e de rebanhos de ovelhas no sul, onde nunca pusera os pés, porque para isso contava com capatazes trazidos da Escócia. Essa nova amizade deu-lhe oportunidade de visitar as austeras mansões de famílias aristocráticas chilenas, edifícios quadrados e escuros, de grandes quartos quase vazios, decoradas sem requinte, com móveis pesados, candelabros lúgubres e uma corte de crucifixos sangrentos, virgens de gesso e santos vestidos como antigos nobres espanhóis. Eram casas voltadas para dentro, fechadas à rua, com altos gradeamentos de ferro, incómodas e toscas, mas providas de corredores frescos e de pátios interiores repletos de jasmins, laranjeiras e roseiras.
Ao despontar a Primavera, Agustín dei Valle convidou os Sommers e Jacob Todd para uma das suas herdades. O caminho era um pesadelo; um cavaleiro podia fazê-lo a cavalo em quatro ou cinco horas mas a caravana, com a família e os seus hóspedes, saiu de madrugada e só chegou já a noite ia bem adiantada. Os dei Valle deslocavam-se em carretas puxadas por bois, onde colocavam mesas e divãs de felpa. Seguiam uma parelha de mulas com a bagagem e peões a cavalo, armados de primitivos trabucos para se defenderem dos bandoleiros, que costumavam esperar emboscados nas curvas das encostas. à enervante lentidão dos animais somavam-se as covas do caminho, onde se atolavam as carroças, e as paragens frequentes para descansar, altura em que os criados serviam os alimentos dos cestos no meio de uma nuvem de moscas. Todd não percebia nada de agricultura, mas bastava um olhar para compreender que, nessa terra fértil, tudo se dava em abundância; a fruta caía das árvores e apodrecia no chão, sem que ninguém se desse ao trabalho de a apanhar. Na fazenda, encontrou o mesmo estilo de vida que observara anos atrás em Espanha: uma família numerosa, unida por intrincados laços de sangue e um inflexível código de honra. O seu anfitrião era um patriarca poderoso e feudal que manejava com mão de ferro os destinos da sua descendência e ostentava, arrogante, uma linhagem que ia até aos primeiros conquistadores espanhóis. Os meus tetravós, contava, andaram mais de mil quilómetros, metidos em pesadas armaduras de ferro, atravessaram montanhas, rios e o deserto mais árido do mijudo, para fundar a cidade de Santiago. Era um símbolo de autoridade e decência entre os seus, mas fora da sua classe era conhecido como um estoura-vergas. Tinha uma prole de bastardos e a má fama de ter liquidado mais de um dos seus rendeiros, nos seus lendários acessos de mau humor; mas essas mortes, como tantos outros pecados, nunca eram ventilados. A sua mulher andava pelos quarenta, mas parecia uma velha trémula e cabisbaixa, sempre vestida de luto pelos filhos falecidos na infância e sufocada pelo peso do espartilho, da religião e daquele marido que lhe coube em sorte. Os filhos varões passavam as suas existências ociosas entre missas, passeios, sestas, jogos e pândegas, enquanto as filhas flutuavam como ninfas misteriosas por aposentos e jardins, entre sussurros de combinações, sempre sob o olhar vigilante das suas amas. Tinham-nas preparado desde pequenas para uma existência de virtude, fé e abnegação; os seus destinos eram casamentos de conveniência e a maternidade.
No campo, assistiram a uma corrida de touros que nem remotamente se parecia ao brilhante espectáculo de coragem e morte de Espanha; nada de trajes de luzes, arrogância, paixão e glória, mas uma rixa de bêbedos atrevidos atormentando o animal com lanças e insultos, rebolando à cornada pela terra entre maldições e gargalhadas. O mais perigoso da corrida foi tirar da arena a besta enfurecida e maltratada, mas com vida. Todd ficou agradecido por terem poupado o touro à última indignidade de uma execução pública, pois o seu bom coração de inglês preferia ver morto o toureiro que o animal. A tarde os homens jogavam tresilio e rocambor, servidos como príncipes por um verdadeiro exército de criados escuros e humildes, cujos olhares não se erguiam do chão, nem as suas vozes acima do murmúrio.
Sem serem escravos, pareciam-no. Trabalhavam a troco de protecção, tecto e uma parte das sementeiras; em teoria eram livres, mas ficavam com o patrão, por déspota que este fosse e por duras que fossem as condições, porque não tinham para onde ir. A escravidão fora abolida há mais de dez anos sem grande alvoroço. O tráfego de africanos nunca fora rentável por aqueles lados, onde não existiam grandes plantações, mas ninguém mencionava a sorte dos índios, despojados das suas terras e reduzidos à miséria, nem dos rendeiros nos campos, que se vendiam e se herdavam com as fazendas, como animais. Também não se falava dos carregamentos de escravos chineses e polinésios destinados às guaneiras das ilhas Chinchas. Se não desembarcassem, não havia problema: a lei proibia a escravatura em terra firme, mas nada dizia do mar. Enquanto os homens jogavam às cartas, Miss Rose aborrecia-se discretamente, na companhia da senhora del Valle e das suas numerosas filhas. Eliza, pelo contrário, galopava pelo campo com Paulina, a única filha de Agustín del Valle que fugia ao modelo lânguido das mulheres dessa família. Era alguns anos mais velha do que Eliza mas nesse dia divertiu-se com ela como se fossem da mesma idade, ambas com o cabelo ao vento e a cara ao sol, fustigando os seus cavalos.
Meninas
Eliza Sommers era uma garota pequena e magra, com as feições delicadas de um desenho a aparo. Em 1845, quando fez treze anos e começaram a insinuar-se-lhe peitos e cintura, parecia ainda uma miúda, embora já se entrevisse, em todos os seus gestos, a graciosidade que haveria de ser o seu melhor atributo de beleza. A vigilância implacável de Miss Rose deu ao seu esqueleto a rectidão de uma lança: obrigava-a a manter-se direita, com uma varinha metálica presa às costas, durante as horas intermináveis de exercícios de piano e bordado. Não cresceu muito e manteve o mesmo enganoso aspecto infantil, que lhe salvou a vida mais de uma vez. Tão criança era no fundo, que, na puberdade, continuava a dormir encolhida na mesma caminha da sua infância, rodeada pelas suas bonecas, e chupando o dedo. Imitava a atitude enfadada de Jeremy Sommers, porque pensava que era sinal de força interior. Com os anos começou de fingir aborrecimento, mas o treino serviu-lhe para dominar o seu carácter.
Participava nas tarefas dos criados: um dia para fazer pão, outro para moer o milho, um para arejar os colchões e outro para ferver a roupa branca.
Passava horas acocorada atrás da cortina da sala, devorando uma a uma as obras clássicas da biblioteca de Jeremy Sommers, os livros românticos de Miss Rose, os jornais atrasados e qualquer leitura ao seu alcance, por enfadonha que fosse. Conseguiu que Jacob Todd lhe oferecesse uma das suas bíblias em espanhol e tentava decifrá-la com enorme paciência, porque a sua escolaridade tinha sido em inglês. Mergulhava no Antigo Testamento com um fascínio mórbido pelos vícios e paixões dos reis que seduziam esposas alheias, profetas que castigavam com raios terríveis e pais que geravam descendência nas suas filhas. No quarto dos armários, onde se acumulavam velharias, encontrou mapas, livros de viagens e documentos de navegação do seu tio John, que lhe serviram para precisar os contornos do mundo. Os preceptores contratados por Miss Rose ensinaram-lhe francês, escrita, história, geografia e um pouco de latim, bastante mais do que incutiam às raparigas nos melhores colégios da capital onde, no fim de contas, a única coisa que aprendiam eram orações e boas maneiras. As leituras desordenadas, tal como as histórias do capitão Sommers, puseram a sua imaginação a voar. Esse tio navegador aparecia em casa com o seu carregamento de ofertas, alvoroçando-lhe a fantasia com as suas histórias inauditas de imperadores negros em tronos de ouro maciço, de piratas malaios que coleccionavam olhos humanos em caixinhas de madrepérola, de princesas queimadas nas piras funerárias dos seus idosos maridos. Em cada visita sua tudo se adiava, desde os trabalhos escolares até às aulas de piano.
O ano passava-se na sua espera e na colocação de alfinetes no mapa, imaginando as latitudes de alto mar por onde ia o seu veleiro. Eliza tinha pouco contacto com outras crianças da sua idade, vivia no mundo fechado da casa dos seus benfeitores, na ilusão eterna de não estar ali mas em Inglaterra. Jeremy Sommers encomendava tudo por catálogo, do sabão aos sapatos, e vestia-se com roupa leve no Inverno e com sobretudo no Verão, porque se regia pelo calendário do hemisfério norte. A miúda ouvia e observava com atenção, tinha um temperamento alegre e independente, nunca pedia ajuda e possuía o raro dom de se tornar invisível, perdendo-se entre os móveis, as cortinas e as flores do papel de parede. No dia em que acordou com a camisa de noite manchada por uma substância avermelhada, foi ter com Miss Rose para lhe comunicar que estava perdendo sangue por baixo.
- Não fales disto com ninguém, acabaram-se as garotices. Já é altura de ires para o colégio de raparigas de Madame Colbert - foi a única explicação da sua mãe adoptiva, proferida de uma vez e sem olhar para ela, enquanto tirava do armário uma dúzia de pequenas toalhas debruadas por ela mesma.
- Agora estás lixada, menina, o teu corpo mudará, as ideias baralhar-se-ão e qualquer homem poderá fazer contigo o que lhe der na gana - advertiu-a mais tarde Mamã Fresia, de quem Eliza não conseguiu esconder a novidade.
A índia conhecia plantas capazes de cortar para sempre o fluxo menstrual, mas absteve-se de as dar por receio dos seus patrões. Eliza levou essa advertência a sério e decidiu manter-se vigilante para impedir que se realizasse. Enfaixou apertadamente o tronco com uma tira de seda, certa de que, se esse método funcionara durante séculos para reduzir os pés das chinesas, como dizia o seu tio John, não havia razão para que falhasse na tentativa de esmagar-lhe os seios. Também se propôs escrever; durante anos vira Miss Rose a escrever nos seus cadernos e pensou que o fazia para combater a maldição das ideias baralhadas. Quanto à última parte da profecia - que qualquer homem poderia fazer com ela o que lhe desse na gana - não lhe deu a mesma importância, porque simplesmente foi incapaz de imaginar homens no seu futuro. Eram todos mais velhos pelo menos vinte anos; o mundo estava desprovido de seres do sexo masculino da sua geração. Os únicos que lhe agradavam para maridos, o capitão John Sommers e Jacob Todd, estavam fora do seu alcance, porque o primeiro era seu tio e o segundo estava apaixonado por Miss Rose, como Valparaíso inteiro sabia.
Anos depois, recordando a sua infância e a sua juventude, Eliza pensava que Miss Rose e Mr. Todd teriam feito um bom par; ela teria suavizado as asperezas de Todd e ele tê-la-ia resgatado do tédio, mas as coisas aconteceram de outra forma. Anos depois, tendo já os dois cabelos brancos e feito da solidão um longo hábito, encontrar-se-iam na Califórnia em circunstâncias estranhas; ele voltaria então a cortejá-la com a mesma intensidade e ela voltaria a rejeitá-lo com igual determinação. Mas tudo isso foi muito mais tarde.
Jacob Todd não perdia a oportunidade de se aproximar dos Sommers, não houve visitante mais assíduo e pontual às tertúlias, mais atento quando Miss Rose cantava com os seus trinados impetuosos nem mais disposto a festejar os seus gracejos, mesmo aqueles um pouco cruéis com que costumava atormentá-lo. Ela era uma pessoa cheia de contradições, mas ele não o era também? Não era por acaso um ateu vendendo bíblias e enganando meio mundo com a história de uma suposta missão evangelizadora? Perguntava a si próprio por que, sendo ela tão atraente, não se tinha casado; uma mulher solteira nessa idade não tinha futuro nem lugar na sociedade. Na colónia estrangeira murmurava-se sobre um certo escândalo em Inglaterra, anos atrás, isso explicaria a sua presença no Chile convertida em governanta do seu irmão, mas ele nunca quis averiguar os pormenores, preferindo o mistério à certeza de algo que talvez não conseguisse tolerar. O passado não importava muito, repetia para si próprio.
Bastava um único erro de discrição ou de cálculo para manchar a reputação de uma mulher e impedi-la de realizar um bom casamento. Teria dado anos do seu futuro para ser correspondido, mas ela não dava sinais de ceder ao assédio, embora também não tentasse desanimá-lo; divertia-se com o jogo de dar-lhe rédea para depois o travar de repente.
- Mr. Todd é um passarão de mau agoiro com ideias esquisitas, dentes de cavalo e mãos suadas. Nunca me casaria com ele, mesmo que fosse o último homem solteiro no universo - confessou, rindo, Miss Rose a Eliza.
A rapariga não achou graça ao comentário. Estava em dívida com Jacob Todd, não só por a ter salvo na procissão do Cristo de Maio, mas também porque silenciou o incidente como se nunca tivesse acontecido.
Agradava-lhe aquele estranho aliado: cheirava a cão grande, como o seu tio John. A boa impressão que lhe causava transformou-se em carinho leal quando, escondida atrás da pesada cortina de veludo verde da sala, o ouviu conversar com Jeremy Sommers.
- Tenho de tomar uma decisão a respeito de Eliza, Jacob. Não tem a menor noção do seu lugar na sociedade. As pessoas começam a fazer perguntas e Eliza imagina certamente para si um futuro que não lhe compete.
Não há nada de tão perigoso como o demónio da fantasia entrincheirado na alma feminina.
- Não exagere, meu amigo. Eliza é ainda uma garota, mas é inteligente e certamente encontrará o seu lugar.
- A inteligência é um estorvo para a mulher. Rose quer enviá-la para a escola de raparigas de Madame Colbert, mas eu não sou partidário de educar tanto as raparigas, tornam-se indomáveis. Cada um no seu lugar, é o meu lema.
- O mundo está a mudar, Jeremy. Nos Estados Unidos os homens são livres perante a lei. Aboliram-se as classes sociais.
- Estamos a falar de mulheres, não de homens. Quanto ao resto, os Estados Unidos são um país de comerciantes e de pioneiros, sem tradição nem sentido da história. A igualdade não existe em parte alguma, nem sequer entre os animais e muito menos no Chile.
- Somos estrangeiros, Jeremy, mal arranhamos o castelhano. Que nos importam as classes sociais chilenas? Nunca pertenceremos a este país...
- Devemos dar o exemplo. Se os britânicos são incapazes de manter a sua própria casa em ordem, o que se pode esperar dos Outros?
- Eliza foi criada nesta família. Não creio que Miss Rose aceite inferiorizá-la só porque está a crescer.
Assim foi. Rose desafiou o seu irmão com o reportório completo dos seus males. Primeiro foram cólicas e depois uma enxaqueca alarmante que, de um dia a outro, a deixou cega. Durante vários dias a casa entrou em estado de quietude: fecharam-se as cortinas, andava-se em bicos de pés e falava-se em murmúrios. Não se cozinhou mais, porque o cheiro da comida agravava os sintomas, Jeremy Sommers comia no Clube e regressava a casa com a atitude desconcertada e tímida de quem visita um hospital. A estranha cegueira e múltiplas indisposições de Rose, bem como o silêncio obstinado dos empregados da casa, foram minando rapidamente a sua firmeza. Para cúmulo, Mamã Fresia, misteriosamente inteirada das discussões privadas dos irmãos, transformou-se numa poderosa aliada da sua patroa. Jeremy Sommers considerava-se um homem culto e pragmático, invulnerável à intimidação de uma bruxa supersticiosa como Mamã Fresia, mas quando a índia acendeu velas pretas e fumigou toda a casa com salva, com o pretexto de afugentar os mosquitos, ele fechou-se na biblioteca entre atemorizado e furioso. à noite ouvia-a arrastando os pés descalços do outro lado da sua porta e cantarolando a meia voz salmos e maldições. Na quarta- feira encontrou uma lagartixa morta na sua garrafa de brandy e decidiu agir de uma vez por todas. Bateu pela primeira vez na porta do quarto da sua irmã e foi admitido naquele santuário de mistérios femininos, que ele preferia ignorar, tal como ignorava a salinha da costura, a cozinha, a lavandaria, as celas escuras do sótão onde dormiam as criadas e a casinha de Mamã Fresia no fundo do pátio; o seu mundo eram os salões, a biblioteca com prateleiras de caoba encerada e a sua colecção de gravuras de caça, a sala de bilhar com a ostentosa mesa talhada, o seu quarto mobilado com simplicidade espartana e um pequeno aposento de ladrilhos italianos, para a sua higiene pessoal, onde um dia pensava instalar uma sanita moderna, como as dos catálogos de Nova Iorque, porque tinha lido que o sistema de bacios e de recolectar os excrementos humanos em baldes, para serem usados como fertilizante, era fonte de epidemias. Teve de esperar que os seus olhos se acostumassem à penumbra, enquanto aspirava, perturbado, uma mistura de cheiros a medicamentos e ao persistente perfume de baunilha. Rose se entrevia, consumida e sofredora, de costas na sua cama sem almofada, com os braços cruzados sobre o peito, como se estivesse a praticar a sua própria morte. Ao seu lado Eliza espremia um pano com infusão de chá verde para lho colocar nos olhos.
- Deixa-nos sós, miúda - disse Jeremy Sommers, sentando-se numa cadeira junto à cama.
Eliza fez uma discreta vénia e saiu, mas conhecia as fraquezas da casa como as suas mãos e, com o ouvido colado ao fino tabique divisório, pôde ouvir a conversa que depois repetiu a Mamã Fresia e anotou no seu diário.
- Está bem, Rose. Não podemos continuar assim, Ponham-nos de acordo. O que queres? - perguntou Jeremy, vencido de antemão.
- Nada. Jeremy... - suspirou ela, com uma voz quase imperceptível.
- Nunca aceitarão Eliza no colégio de Madame Colbert, Ali só andam as meninas da classe alta e de lares bem constituídos. Toda a gente sabe que Eliza é adoptada.
- Eu encarregar-me-ei de que a aceitem! - exclamou ele, com uma paixão inesperada numa agonizante.
- Ouve-me, Rose, Eliza não precisa de educar-se mais. Deve aprender uma profissão para ganhar a vida. Que será dela, quando tu e eu não estivermos cá para a proteger?
- Se tiver educação, casar-se-á bem - disse Rose, atirando a compressa de chá verde para o chão e sentando-se na cama - Eliza não é propriamente uma beleza, Rose.
- Não olhaste bem para ela, Jeremy. Está a melhorar de dia para dia, será bonita, garanto-te. Sobrar-lhe-ão pretendentes!
- Órfã e sem dote?
- Terá dote - respondeu Miss Rose, saindo da cama aos tropeções e dando uns passinhos de cega, desgrenhada e descalça.
- Como assim? Nunca tínhamos falado disso...
- Porque não tinha chegado o momento, Jeremy. Uma rapariga casadoira tem de ter jóias, um enxoval com roupa suficiente para vários anos e o indispensável para a sua casa, além de uma boa quantia de dinheiro que permita ao casal iniciar algum negócio.
- E posso saber qual é a contribuição do noivo?
- A casa e, além disso, terá de manter a mulher pelo resto dos seus dias. De qualquer forma, faltam vários anos até Eliza estar em idade de casar e, nessa altura, terá dote. John e eu encarregar-nos-emos de o dar, não te pediremos nem um real, mas não vale a pena perder tempo a falar disso agora. Deves considerar Eliza como se fosse tua filha.
- Mas não é, Rose.
- Então trata-a como se fosse minha filha. Estás de acordo com isso, pelo menos?
- Sim, estou - cedeu Jeremy Sommers.
As infusões de chá foram milagrosas. A doente melhorou por completo e, quarenta e oito horas depois, tinha recuperado a vista e estava radiante. Dedicou-se a atender o irmão com uma solicitude encantadora; nunca tinha sido tão doce e risonha com ele. A casa voltou ao seu ritmo normal e, da cozinha, saíram rumo à sala de jantar os deliciosos pratos crioulos de Mama Fresia, os pães aromáticos amassados por Eliza e os finos pastéis, que tanto tinham contribuído para a fama de bons anfitriões dos Sommers. A partir desse momento, Miss Rose modificou drasticamente o seu comportamento errático com Eliza e esmerou-se, com uma dedicação maternal nunca antes demonstrada, em prepará-la para o colégio, iniciando ao mesmo tempo um irresistível assédio a Madame Colbert. Tinha decidido que Eliza teria estudos, dote e reputação de bela, embora não o fosse, porque a beleza, segundo ela, era uma questão de estilo. Qualquer mulher que se comporte com a segurança soberana de uma beldade, acaba por convencer toda a gente de que o é, argumentava. O primeiro passo para emancipar Eliza seria um bom casamento, tendo em vista que a garota não dispunha de um irmão mais velho para lhe servir de escudo, como no seu próprio caso. Ela própria não via vantagens em casar-se, uma esposa era propriedade do marido, com menos direitos do que um criado ou do que uma criança; mas, por outro lado, uma mulher só e sem fortuna estava à mercê dos piores abusos. Uma casada, se tivesse astúcia, podia ao menos manipular o marido e, com alguma sorte, podia enviuvar cedo...
- Eu daria feliz metade da minha vida para dispor da mesma liberdade que um homem, Eliza. Mas somos mulheres e estamos fritas. A única coisa que podemos fazer é tentar tirar partido do pouco que temos.
Porque não queria colocar ideias subversivas no espírito da garota, não lhe disse que, a única vez que tentara voar sozinha, se esmagara de nariz contra a realidade. Estava decidida a dar-lhe um destino melhor do que o seu, treiná-la-ia nas artes da dissimulação, da manipulação e da artimanha, porque eram mais úteis do que a ingenuidade, disso tinha a certeza. Fechava-se com ela três horas de manhã e outras três à tarde a estudar os textos escolares importados de Inglaterra; intensificou o ensino do francês com um professor, porque nenhuma rapariga bem educada podia ignorar essa língua. O resto do tempo, supervisionava pessoalmente cada ponto de Eliza para o seu enxoval de noiva, lençóis, colchas, jogos de toalhas e roupa interior bordada com primor, que depois guardavam em baús envoltos em panos e perfumados com lavanda. De três em três meses tiravam o conteúdo dos baús e estendiam-no ao sol, evitando assim a devastação da humidade e das traças, durante os anos de espera até ao casamento. Comprou um cofre para as jóias do dote e encarregou o seu irmão John da tarefa de o encher, com ofertas das suas viagens. Juntaram-se safiras da Índia, esmeraldas e ametistas do Brasil, colares e pulseiras de ouro veneziano e até um pequeno alfinete de peito de diamantes. Jeremy Sommers não se inteirou dos pormenores e permaneceu ignorante da forma como os seus irmãos financiavam tais extravagâncias.
As aulas de piano - agora com um professor vindo da Bélgica, que usava uma palmatória para bater nos dedos desajeitados dos seus estudantes converteram-se num martírio diário para Eliza. Frequentava também uma academia de danças de salão e, por sugestão do professor de dança, Miss Rose obrigava-a a andar horas equilibrando um livro sobre a cabeça para a fazer crescer direita. Ela cumpria com as suas tarefas, fazia os seus exercícios de piano e andava recta como uma vela, embora não pusesse o livro sobre a cabeça, mas de noite deslizava descalça para o pátio dos criados e o amanhecer surpreendia-a com frequência dormindo sobre um enxergão, abraçada a Mama Fresia.
Dois anos depois das inundações, a sorte mudou e o país gozava de um bom clima, tranquilidade política e bem-estar económico. Os chilenos andavam em brasas; estavam habituados às desgraças naturais e tanta bonança podia ser a preparação de um cataclismo maior. Além disso, descobriram-se ricas jazidas de ouro e de prata no norte. Durante a Conquista, quando os espanhóis percorriam a América à procura desses metais, levando tudo o que encontravam pelo caminho, o Chile era considerado o cu do mundo porque, comparado com as riquezas do resto do continente, tinha muito pouco para oferecer. Na marcha forçada pelas suas montanhas imensas e pelo deserto lunar a norte esgotava-se a cobiça no coração daqueles conquistadores e se restava alguma coisa, os indomáveis índios encarregavam-se de a transformar em arrependimento. Os capitães, exaustos e pobres, maldiziam aquela terra onde não lhes restava outro remédio senão espetar as suas bandeiras e deixar-se morrer, porque regressar sem glória era pior. Trezentos anos mais tarde essas minas, ocultas aos olhos dos ambiciosos soldados de Espanha e surgidas de repente por obra de encantamento, foram um prémio inesperado para os seus descendentes. Fizeram-se novas fortunas, às que se juntaram outras da indústria e do comércio. A antiga aristocracia da terra, que tivera sempre a faca e o queijo na mão, sentiu os seus privilégios ameaçados e o desprezo pelos novos-ricos passou a ser um sinal de distinção.
Um desses ricaços apaixonou-se por Paulina, a filha mais velha de Agustín del Valle. Tratava-se de Feliciano Rodriguez de Santa Cruz, próspero em poucos anos graças a uma mina de ouro explorada a meias com o irmão.
Pouco se sabia das suas origens, salvo a suspeita de que os seus antepassados eram judeus convertidos e de que o seu sonoro apelido cristão fora adoptado para escapar à Inquisição, razão mais do que suficiente para ser completamente rejeitado pelos arrogantes del Valle. Jacob Todd distinguia Paulina entre as cinco filhas de Agustín, porque o seu carácter atrevido e alegre recordava-lhe Miss Rose. A jovem tinha uma forma sincera de se rir que contrastava com os sorrisos velados atrás dos leques e das mantilhas das suas irmãs. Ao inteirar-se da intenção do pai dela de a fechar num convento de clausura para impedir os seus amores, Jacob Todd decidiu, contra qualquer prudência, ajudá-la. Antes de a levarem, arranjou maneira de trocar algumas frases a sós com ela, num descuido da sua ama. Consciente de que não dispunha de tempo para explicações, Paulina tirou do decote uma carta tão dobrada e redobrada que parecia um calhau e rogou-lhe que a fizesse chegar ao seu apaixonado. No dia seguinte a jovem partiu, sequestrada pelo pai, numa viagem de vários dias por caminhos impossíveis em direcção a Concepción, uma cidade do sul perto das reservas indígenas, onde as freiras cumpririam o dever de devolver-lhe o juízo à força de orações e de jejuns. Para evitar que tivesse a ideia peregrina de se revoltar ou de fugir, o pai ordenou que lhe rapassem a cabeça. A mãe agarrou nas tranças, envolveu-as num pano de cambraia bordada e levou-as de oferta às beatas da Igreja da Matriz, para as perucas dos santos. Entretanto, Todd não só conseguiu entregar a missiva, como averiguou também junto dos irmãos da rapariga o local exacto do convento e passou a informação ao atribulado Feliciano Rodriguez de Santa Cruz. Agradecido, o pretendente tirou o relógio de bolso em ouro maciço e insistiu em dá-lo ao bendito emissário dos seus amores mas este recusou<), ofendido.
- Não tenho como pagar-lhe o que me fez - murmurou Feliciano, perturbado.
- Não tem de o fazer.
Jacob Todd não soube do infeliz casal por um bom tempo mas dois meses mais tarde, a agradável notícia da fuga da rapariga era o prato do dia de qualquer reunião social e o orgulhoso Agustín del Valle não conseguiu impedir que fossem acrescentados mais pormenores pitorescos, cobrindo-o de ridículo. A versão que Paulina relatou a Jacob Todd, meses depois, foi que, numa tarde de Junho, dessas tardes invernosas de chuva fina e escuridão precoce, conseguiu iludir a vigilância e fugiu do convento vestida com hábito de noviça, levando consigo dois candelabros de prata do altar-mor. Graças à informação de Jacob Todd, Feliciano Rodríguez de Santa Cruz mudou-se para o sul e manteve contacto secreto com ela desde o início, esperando pela oportunidade de a reencontrar. Nessa tarde esperava-a, a pouca distância do convento e, ao vê-la, demorou vários segundos a reconhecer essa noviça meio careca que se deixou cair nos seus braços sem largar os candelabros.
- Não me olhes assim, homem, o cabelo cresce - disse ela, beijando-o em cheio nos lábios.
Feliciano levou-a numa carruagem fechada de volta a Valparaíso e instalou-a temporariamente em casa da sua mãe viúva, o esconderijo mais respeitável que conseguiu imaginar, com a intenção de proteger a honra dela até onde lhe fosse possível, embora não houvesse forma de evitar que o escândalo os atingisse. O primeiro impulso de Agustín foi bater-se em duelo com o sedutor da sua filha, mas quando o quis fazer, inteirou-se de que este andava por Santiago em viagem de negócios. Deu-se então ao trabalho de encontrar Paulina, ajudado pelos seus filhos e sobrinhos, armados e decididos a vingar a honra da família, enquanto a mãe e as irmãs rezavam em coro o rosário pela filha descarrilada. O tio bispo, que tinha recomendado o envio de Paulina para as freiras, tentou apaziguar os ânimos, mas aqueles machões não estavam para sermões de bom cristão. A viagem de Feliciano fazia parte da estratégia planeada com o irmão e com Jacob Todd. Partiu sem rebuliço para a capital enquanto os outros dois punham em marcha o plano de acção em Valparaíso, publicando num jornal liberal o desaparecimento da menina Paulina del Valle, notícia que a família evitara a todo o custo divulgar. Isso salvou a vida dos apaixonados.
Por fim, Agustín del Valle aceitou que os tempos para desafiar a lei já tinham passado e, em vez de um duplo assassinato, mais valia lavar a honra com um casamento público. Estabeleceram-se as bases de uma paz forçada e, uma semana depois, quando já tudo estava preparado, Feliciano regressou. Os fugitivos apresentaram-se na residência dos del Valle acompanhados pelo irmão do noivo, por um advogado e pelo bispo. Jacob Todd manteve-se discretamente ausente. Paulina apareceu vestida com uma roupa muito simples, mas ao tirar o manto puderam ver que usava, desafiante, um diadema de rainha. Avançou pelo braço da sua futura sogra, que estava disposta a responder pela sua virtude, mas não lhe deram oportunidade de o fazer. Como a última coisa que a família desejava era outra notícia no jornal, Agustín del Valle não teve outro remédio senão receber a sua filha rebelde e o seu indesejável pretendente. Fê-lo rodeado pelos seus filhos e sobrinhos na sala de jantar, transformado em tribunal para essa ocasião, enquanto as mulheres da família, reclusas na outra extremidade da casa, ficavam a par dos pormenores pelas criadas, que espreitavam atrás das portas e corriam a levar cada palavra. Disseram que a rapariga se apresentou com todos aqueles diamantes a brilhar entre os cabelos espetados da sua cabeça de tinhosa e que enfrentou o pai sem assomo de modéstia ou de temor; anunciando que tinha ainda os candelabros e que, na verdade, só os tirara para aborrecer as freiras. Agustín del Valle levantou um chicote para cavalos, mas o noivo colocou-se à frente dela para receber o castigo, então o bispo, bastante cansado, mas com o peso da sua autoridade intacto, interveio com o argumento irrefutável de que não poderia haver casamento público para calar as bisbilhotices se os noivos estivessem com a cara magoada.
- Pede para nos servirem uma chávena de chocolate, Agustín, e sentemo-nos a conversar como pessoas decentes - propôs o dignitário da Igreja.
Assim o fizeram. Ordenaram à filha e à viúva Rodriguez de Santa Cruz que esperassem fora, porque aquele era um assunto de homens e, depois de consumirem vários jarros de chocolate espumoso, chegaram a um acordo.
Redigiram um documento mediante o qual os termos económicos ficaram claros e a honra de ambas as partes a salvo, assinaram diante do notário e procederam ao planeamento dos pormenores do casamento. Um mês mais tarde Jacob Todd assistiu a um sarau inesquecível, onde a generosa hospitalidade da família del Valle se excedeu; houve baile, canto e comezaina até ao dia seguinte e os convidados partiram comentando a beleza da noiva, a felicidade do noivo e a sorte dos sogros, que casavam a filha com uma sólida, embora recente, fortuna. O casal partiu de imediato para o norte do país.
Má reputação
Jacob Todd lamentou a partida de Feliciano e de Paulina, tinha feito boa amizade com o milionário das minas e com a sua fulgurante esposa. Sentia-se tão à vontade entre os jovens empresários, como incómodo começava a sentir-se entre os membros do Club de la Unión. Tal como ele, os novos industriais estavam imbuídos de ideias europeias, eram modernos e liberais, ao contrário da antiga oligarquia da terra, que permanecia atrasada meio século. Restavam-lhe ainda cento e setenta bíblias arrumadas debaixo da sua cama das quais já nem se lembrava, porque a aposta estava perdida há bastante tempo. Tinha conseguido dominar suficientemente o espanhol para se desembaraçar sem ajuda e, apesar de não ser correspondido, continuava apaixonado por Rose Sommers, duas boas razões para ficar no Chile. As contínuas desfeitas da jovem tinham-no convertido num doce hábito e já não conseguiam humilhá-lo. Aprendeu a recebê-los com ironia e a devolvê-los sem malícia, como um jogo de bola cujas regras misteriosas só eles conheciam. Relacionou-se com alguns intelectuais e passava noites inteiras a discutir os filósofos franceses e alemães, bem como as descobertas científicas que abriam novos horizontes ao conhecimento humano. Dispunha de longas horas para pensar, ler e discutir. Fora decantando ideias que anotava num grosso caderno, deteriorado, pelo uso e gastava uma boa parte do dinheiro da sua pensão em livros encomendados a Londres e em outros, que comprava na Livraria Santos Tornero, no Bairro El Almendral onde também viviam os franceses e onde estava situado o melhor bordel de Valparaíso. A livraria era o ponto de encontro de intelectuais e de aspirantes a escritores. Todd costumava passar dias inteiros a ler; depois entregava os livros aos seus companheiros, que com dificuldade os traduziam e publicavam em modestos panfletos, que circulavam de mão em mão.
Do grupo de intelectuais, o mais jovem era Joaquín Andieta, com dezoito anos apenas, mas que compensava a sua falta de experiência com uma espontânea vocação de liderança. A sua personalidade electrizante era ainda mais notável, dada a sua juventude e pobreza. Não era homem de muitas palavras este Joaquín, mas de acção, um dos poucos com clareza e coragem suficientes para transformar em impulso revolucionário as ideias dos livros, os restantes preferiam discuti-las eternamente, em volta de uma garrafa, no quarto dos fundos da livraria. Todd distinguiu Andieta desde o princípio, esse jovem tinha algo de inquietante e patético que o atraía. Tinha reparado na sua pasta pobre e no tecido coçado do seu fato, transparente e quebradiço como casca de cebola. Para esconder os buracos nas solas das botas, nunca se sentava com as pernas para cima; também nunca tirava o casaco porque, Todd calculava, a sua camisa devia estar coberta de cerzidos e de remendos. Não possuía um agasalho decente mas no Inverno era o primeiro a madrugar, para distribuir panfletos e colar cartazes apelando à revolta dos trabalhadores contra os abusos dos patrões, ou dos marinheiros contra os capitães e as empresas de navegação, trabalho geralmente inútil, porque os destinatários eram, na sua maioria, analfabetos. Os seus apelos à justiça ficavam à mercê do vento e da indiferença humana.
Mediante discretas indagações, Jacob Todd descobriu que o seu amigo estava empregado na Companhia Britânica de Importação e Exportação. A troco de um salário miserável e de um horário esgotante, registava os artigos que passavam pelo escritório do porto. Também se lhe exigia colarinho gomado e sapatos envernizados. A sua existência decorria numa sala sem ventilação e mal iluminada, onde as secretárias se alinhavam umas atrás das outras até ao infinito e se empilhavam maços de papéis e calhamaços empoeirados que, durante anos, ninguém examinava. Todd perguntou por ele a Jeremy Sommers, mas este não o identificou; via-o, certamente, todos os dias, disse, mas não tinha relações pessoais com os seus subordinados e dificilmente os poderia identificar pelo nome. Por outras vias soube que Andieta vivia com a mãe, mas do pai nada conseguiu averiguar; calculou que seria um marinheiro de passagem e a mãe uma daquelas mulheres desgraçadas que não encaixavam em nenhuma categoria social, talvez bastarda ou repudiada pela família. Joaquín Andieta tinha feições andaluzas e a graça viril de um jovem toureiro; tudo nele sugeria firmeza, elasticidade, controlo; os seus movimentos eram precisos, o seu olhar intenso e o seu orgulho comovedor. Aos ideais utópicos de Todd opunha uma rígida noção da realidade. Todd pregava a criação de uma sociedade comunitária, sem sacerdotes nem polícias, governada democraticamente sob uma lei moral única e inapelável.
- O senhor vive na lua, Mr. Todd. Temos muito que fazer, não vale a pena perder tempo a discutir fantasias - interrompia-o Joaquín Andieta.
- Mas se não começamos por imaginar a sociedade perfeita, como iremos criá-la? - replicava o outro, erguendo e agitando o seu caderno, cada vez mais volumoso, a que juntara planos de cidades ideais, onde cada habitante cultivava os seus alimentos e as crianças cresciam saudáveis e felizes, cuidadas pela comunidade porque, se não existia propriedade privada, também não era possível reclamar a posse dos filhos.
- Devemos melhorar o desastre em que vivemos aqui. A primeira coisa a fazer é reunir os trabalhadores, os pobres e os índios, dar terra aos camponeses e tirar poder aos padres. É necessário mudar a Constituição, Mr. Todd. Aqui só os proprietários votam, ou seja, governam os ricos. Os pobres não contam.
No início Jacob Todd idealizava caminhos rebuscados para ajudar o seu amigo, mas depressa teve de desistir porque as suas iniciativas o ofendiam. Encarregava-o de alguns trabalhos para ter algum pretexto de dar- lhe dinheiro, mas Andieta executava-os conscienciosamente e, depois, rejeitava linearmente qualquer pagamento. Se Todd lhe oferecia tabaco, um copo de brandy ou o seu guarda-chuva numa noite de tempestade, Andieta reagia com uma arrogância cortante, deixando o outro desconcertado e, às vezes, ofendido. O jovem nunca mencionava a sua vida privada ou o seu passado, parecia materializar-se brevemente para partilhar algumas horas de conversa revolucionária ou de leituras apaixonadas na livraria, antes de se esfumar no fim desses serões. Não dispunha de algumas moedas para ir com os outros à taberna e não aceitava um convite que não podia retribuir.
Uma noite, Todd não conseguiu suportar a incerteza por mais tempo e seguiu-o pelo labirinto de ruas do porto, onde podia esconder-se nas sombras das portas e nas curvas daquelas ruelas absurdas que, segundo as pessoas, eram tortuosas de propósito, para impedir que o Diabo entrasse. Viu Joaquín Andieta arregaçar as calças, tirar os sapatos, embrulhá-los numa folha de jornal e guardá-los cuidadosamente na sua velha pasta, de onde tirou umas sandálias de camponês para as calçar. A essa hora tardia só circulavam algumas almas perdidas e gatos vadios esgaravatando o lixo. Sentindo-se como um ladrão, Todd avançou na escuridão quase a pisar os calcanhares do seu amigo; conseguia ouvir a sua respiração agitada e o roçar das suas mãos, que esfregava sem parar para combater as aguilhoadas do vento gelado. Os seus passos levaram-no a um cortiço, cujo acesso era uma dessas ruelas estreitas, típicas da cidade. Um pivete a urina e a excrementos bateu-lhe na cara; por esses bairros os funcionários da limpeza, com os seus longos ganchos para desentupir as valas, passavam raras vezes. Compreendeu a precaução de Andieta ao tirar os seus únicos sapatos: não sabia o que estava a pisar; os seus pés afundavam-se num líquido pestilento. Na noite sem lua, a escassa luz filtrava-se entre os postigos desconjuntados das janelas, muitas sem vidros, entaipadas com cartão ou tábuas. Pelas ranhuras podia-se observar o interior de quartos miseráveis, iluminados por velas. A suave neblina conferia ao cenário um ar irreal. Viu Joaquín Andieta acender um fósforo, protegendo-o da brisa com o corpo, tirar uma chave e abrir uma porta à luz trémula da chama. És tu, filho? Ouviu nitidamente uma voz feminina, mais clara e jovem do que esperava. A seguir a porta fechou-se. Todd permaneceu por longo tempo na escuridão observando o casebre com um enorme desejo de bater à porta, desejo que não era apenas curiosidade, mas um afecto opressivo pelo seu amigo. Caraças, estou a tornar-me um idiota, murmurou finalmente. Deu meia volta e foi até ao Club de la Unión tomar uma bebida e ler os jornais, mas antes de lá chegar arrependeu-se, incapaz de enfrentar o contraste entre a pobreza que acabava de deixar atrás e aqueles salões com móveis de couro e lustres de cristal. Regressou ao seu quarto, abrasado por um fogo de compaixão bastante parecido com aquela febre que quase o despachara durante a sua primeira semana no Chile.
Assim estavam as coisas em finais de 1845, quando a frota comercial marítima da Grã-Bretanha designou um capelão para Valparaíso para responder às necessidades espirituais dos protestantes. O homem chegou disposto a desafiar os católicos, a construir um sólido templo anglicano e a dar novos brios à sua congregação. O seu primeiro acto oficial foi examinar as contas do projecto missionário na Terra do Fogo, cujos resultados não se entreviam em parte alguma. Jacob Todd fez-se convidar para o campo por Agustín del Valle, permitindo que o tempo fizesse o novo pastor desanimar mas quando regressou, duas semanas mais tarde, comprovou que o capelão não tinha esquecido o assunto. Durante algum tempo, Todd encontrou novos pretextos para o evitar mas por fim teve de enfrentar um auditor e depois uma comissão da Igreja Anglicana. Enredou-se em explicações que se tornaram cada vez mais fantásticas, à medida que os números provavam o desfalque com claríssima evidência. Devolveu o dinheiro que lhe restava na conta, mas a sua reputação sofreu um revés irremediável. Terminaram para ele as tertúlias de quarta-feira em casa dos Sommers e ninguém na colónia estrangeira voltou a convidá-lo; evitavam-no na rua e aqueles que tinham negócios com ele, deram-nos por concluídos. A notícia da fraude chegou aos seus amigos chilenos, que lhe sugeriram discreta, mas firmemente, que não aparecesse mais pelo Club de la Unión se desejava evitar o vexame de ser expulso. Não voltaram a aceitá-lo nos jogos de cricket nem no bar do Hotel Inglês, rapidamente ficou isolado e até os seus amigos liberais lhe viraram as costas. A família del Valle em peso deixou de o cumprimentar, excepto Paulina, com quem Todd mantinha um esporádico contacto epistolar.
Paulina dera à luz o seu primeiro filho no norte e, nas suas cartas, mostrava-se satisfeita com a sua vida de casada. Feliciano Rodríguez de Santa Cruz, cada vez mais rico pelo que diziam as pessoas, tinha-se revelado um marido pouco usual. Estava convencido de que a audácia demonstrada por Paulina, fugindo do convento e vergando a sua família para se casar com ele, não deveria diluir-se em tarefas domésticas, mas ser aproveitada para beneficio de ambos. A sua mulher, educada como uma menina, mal sabia ler e contar; mas tinha desenvolvido uma verdadeira paixão pelos negócios.
Inicialmente Feliciano estranhou o seu interesse pelos pormenores do processo de escavação e de transporte dos minerais, bem como das oscilações da Bolsa de Comércio, mas depressa aprendeu a respeitar a descomunal intuição da mulher. Como resultado dos seus conselhos, aos sete meses de casados obteve lucros enormes especulando com açúcar.
Agradecido, obsequiou-a com um serviço de chá de prata lavrada no Peru, que pesava dezanove quilos. Paulina, que mal se podia mexer com o denso fardo do seu primeiro filho na barriga, recusou o presente sem levantar os olhos das botinhas que estava a tricotar.
- Prefiro que abras uma conta em meu nome num banco de Londres e que, de agora em diante, me deposites vinte por cento dos lucros que eu te consiga.
- Para quê? Não te dou tudo o que desejas e muito mais? - perguntou Feliciano ofendido.
- A vida é longa e cheia de sobressaltos. Não quero ser nunca uma viúva pobre e muito menos com filhos - explicou ela, batendo no ventre.
Feliciano saiu batendo com a porta mas o seu inato sentido de justiça pôde mais do que o seu mau humor de marido desafiado. Além disso, aqueles vinte por cento seriam um incentivo poderoso para Paulina, decidiu.
Fez o que ela lhe pedia, apesar de nunca ter ouvido falar de uma mulher casada com dinheiro próprio. Se uma esposa não podia viajar sozinha, assinar documentos legais, recorrer à justiça, vender ou comprar nada sem autorização do marido, muito menos podia dispor de uma conta bancária e usá-la à sua vontade. Seria difícil explicá-lo ao banco e aos seus sócios.
- Venha para o norte connosco, o futuro está nas minas e lá pode começar de novo - sugeriu Paulina a Jacob Todd, quando soube, numa das suas breves visitas a Valparaíso, que este tinha caído em desgraça.
- Que faria eu ali, minha amiga? - murmurou o outro.
- Vendia as suas bíblias - troçou Paulina, mas imediatamente se comoveu diante da abismal tristeza do outro e lhe ofereceu a sua casa, a sua amizade e trabalho nas empresas do marido.
Mas Todd estava tão desanimado pela má sorte e pela vergonha pública, que não teve forças para iniciar outra aventura no norte. A curiosidade e a inquietação que o impeliam anteriormente, tinham sido substituídas pela obsessão de recuperar o bom nome perdido.
- Estou derrotado, senhora, será que não vê? Um homem sem honra é um homem morto.
- Os tempos mudaram - consolou-o Paulina. - Antes a honra manchada de uma mulher só se lavava com sangue. Mas já vê, Mr. Todd, no meu caso lavou-se com um jarro de chocolate. A honra dos homens é muito mais resistente do que a nossa. Não desespere.
Feliciano Rodriguez de Santa Cruz, que não esquecera a sua intervenção nos tempos dos seus amores frustrados com Paulina, quis emprestar-lhe dinheiro para que este devolvesse até ao último centavo o dinheiro das missões, mas Todd decidiu que entre dever a um amigo ou dever ao capelão protestante, preferia o último, uma vez que a sua reputação, de qualquer forma, já estava destruída. Pouco depois teve de se despedir dos gatos e das tartes, porque a viúva inglesa da pensão o expulsou com uma interminável cantilena de censuras. A boa mulher tinha redobrado os seus esforços na cozinha para financiar a propagação da fé naquelas regiões de Inverno imutável, onde um vento espectral uivava dia e noite, como dizia Jacob Todd, ébrio de eloquência. Quando se inteirou do destino das suas poupanças nas mãos do falso missionário, enfureceu-se com justiça e expulsou-o da sua casa. Com a ajuda de Joaquín Andieta, que lhe procurou outro alojamento, pôde mudar para um quarto pequeno mas com vista para o mar, num dos bairros modestos do porto. A casa pertencia a uma família chilena e não tinha as pretensões europeias da anterior, era de construção antiga, de tijolo caiado e tecto de telhas vermelhas, composta por um átrio à entrada, um quarto grande quase desprovido de móveis, que servia de sala, sala de jantar e quarto de dormir dos pais, um mais pequeno e sem janela onde dormiam todos os filhos e outro ao fundo, que alugavam. O proprietário trabalhava como mestre-escola e a sua mulher contribuía para o orçamento com uma indústria artesanal de velas fabricadas na cozinha. O cheiro a cera impregnava a casa. Todd sentia esse aroma adocicado nos seus livros, na sua roupa, no seu cabelo e até na sua alma; metera-se-lhe de tal forma sob a pele, que muitos anos mais tarde, no outro lado do mundo, continuaria a cheirar a velas. Frequentava apenas os bairros baixos do porto, onde ninguém se importava com a boa ou má reputação de um gringo de cabelo vermelho. Comia nas tascas dos pobres e passava dias inteiros com os pescadores, atarefado com as redes e com os botes. O exercício físico fazia-lhe bem e, por algumas horas, conseguia esquecer o seu orgulho ferido. Só Joaquín Andieta continuou a visitá-lo. Trancavam-se a discutir política e trocar textos de filósofos franceses, enquanto do outro lado da porta corricavam os filhos do professor e fluía, como um fio de ouro derretido, a cera das velas. Joaquín Andieta nunca se referiu ao dinheiro das missões, embora fosse impossível ignorá-lo, uma vez que o escândalo foi comentado de boca em boca durante semanas. Quando Todd lhe quis explicar que as suas intenções nunca tinham sido vigarizar e que fora tudo resultado da sua má cabeça para os números, da sua proverbial desorganização e da sua pouca sorte, Joaquín Andieta levou um dedo aos lábios no gesto universal de silêncio. Num impulso de vergonha e de afecto, Jacob Todd abraçou-o desajeitadamente e o outro abraçou-o por um instante, mas depressa se afastou com brusquidão, vermelho até às orelhas. Os dois retrocederam simultaneamente, atordoados, sem compreender como tinham violado a regra elementar de conduta que proíbe contacto físico entre os homens, excepto em batalhas ou desportos brutais. Nos meses seguintes o inglês foi perdendo o rumo, descuidou a sua aparência e costumava vaguear com uma barba de vários dias, cheirando a velas e a álcool. Quando se excedia na genebra, disparatava como um louco, quase sem respirar, contra os governos, a família real inglesa, os militares e polícias, o sistema de privilégios de classes, que comparava ao das castas na índia, a religião em geral e o cristianismo em particular.
- Tem de ir embora daqui, Mr. Todd, está a enlouquecer - atreveu-se a dizer-lhe Joaquín Andieta num dia em que o salvou, numa praça, quando estava quase a ser levado pela guarda.
Foi exactamente assim que o encontrou, pregando na rua como um demente, o capitão John Sommers, que desembarcara da sua escuna no porto há já várias semanas. O seu navio tinha sido tão açoitado na travessia do cabo de Horn, que teve de se submeter a longas reparações. John Sommers passara um mês inteiro em casa dos seus irmãos Jeremy e Rose. Isso fê-lo decidir-se a procurar trabalho num dos modernos barcos a vapor mal regressasse a Inglaterra, porque não estava disposto a repetir a experiência do cativeiro na jaula familiar. Amava os seus, mas preferia-os à distância. Resistira aos vapores até essa altura, porque não concebia a aventura do mar sem o desafio das velas e do clima, que punham à prova a boa cepa de um capitão, mas por fim teve de admitir que o futuro estava nas novas embarcações, maiores, mais seguras e mais rápidas. Quando reparou que estava a perder cabelo, culpou naturalmente a vida sedentária. Depressa o tédio passou a pesar-lhe como uma armadura e fugia de casa para passear pelo porto, com a impaciência de uma fera enjaulada. Ao reconhecer o capitão, Jacob Todd desceu a aba do chapéu e fingiu não o ver para evitar a humilhação de outro desaire, mas o marinheiro deteve-o em seco e cumprimentou-o com palmadas afectuosas nos ombros.
- Vamos beber uns copos, meu amigo! - e arrastou-o para um bar próximo.
Acabou por ser um desses sítios do porto conhecido entre os fregueses pela bebida honesta, onde ofereciam também um prato único de merecida fama: safio frito com batatas e salada de cebola crua. Todd, que costumava esquecer-se de comer naqueles dias e andava sempre teso, sentiu o aroma delicioso da comida e julgou que ia desmaiar. Uma vaga de agradecimento e de prazer humedeceu-lhe os olhos. Por cortesia, John Sommers desviou o olhar enquanto o outro devorava o prato até à última migalha.
- Nunca me pareceu boa ideia esse assunto das missões entre os índios - disse, justamente quando Todd começava a perguntar a si próprio se o capitão estaria a par do escândalo financeiro.
- Essa pobre gente não merece a desgraça de ser evangelizada. O que pensa fazer agora?
- Devolvi o que me restava na conta, mas devo ainda uma boa quantia.
- E não tem como pagá-la, não é verdade?
- De momento não, mas...
- Mas nada, homem. Você deu a esses bons cristãos um pretexto para se sentirem virtuosos e agora deu-lhes motivo de escândalo por um tempo. A diversão saiu-lhes barata. Quando lhe Perguntei o que pensa fazer referia-me ao seu futuro, não às dívidas.
- Não tenho planos.
- Regresse comigo a Inglaterra. Aqui não há lugar para si Quantos estrangeiros há no porto? Quatro pindéricos e todos se conhecem. Acredite, não o deixarão em paz. Em Inglaterra, pelo contrário, pode perder-se na multidão.
Jacob Todd ficou a olhar para o fundo do seu copo o com expressão tão desesperada, que o capitão soltou uma das suas gargalhadas suas gargalhadas.
- Não me diga que fica aqui por causa da minha irmã Rose!
Era verdade. O repúdio geral teria sido um pouco mais suportável para Todd, se Miss Rose houvesse demonstrado um mínimo de lealdade ou de compreensão, mas ela recusou-se a recebê-lo e devolveu sem abrir as cartas com que ele tentava limpar o seu nome. Nunca soube que as suas missivas jamais chegaram às mãos da destinatária, porque Jeremy Sommers, violando o acordo de respeito-mútuo com a sua irmã, tinha decidido protegê-la do seu próprio bom coração e impedir que cometesse outra asneira irreparável. o capitão também não o sabia, mas adivinhou as precauções de Jeremy e concluiu que certamente teria feito o mesmo nessas circunstâncias. A ideia de ver o pateco vendedor de bíblias convertido em aspirante à mão da sua irmã Rose parecia-lhe desastrosa: por uma vez, estava plenamente de acordo com Jeremy.
- Tão evidentes foram as minhas intenções para com Miss Rose? - perguntou Jacob Todd, perturbado. Digamos que não são um mistério, meu amigo.
- Receio não ter a menor esperança de que ela algum dia me aceite...
- Receio o mesmo.
- Far-me-ia o enorme favor de interceder por mim, capitão? Se ao menos Miss Rose me recebesse uma vez, eu poderia explicar-lhe...
- Não conte comigo para fazer de alcoviteira, Todd. Se Rose correspondesse aos seus sentimentos, você saberia. A minha irmã não é tímida, garanto-lhe. Repito-lhe, homem, a única coisa que lhe resta é partir deste maldito porto, aqui vai acabar transformado num mendigo. O meu barco parte dentro de três dias rumo a Hong-Kong e daí para Inglaterra. A travessia será longa, mas você não tem pressa. O ar fresco e o trabalho duro são remédios infalíveis contra a estupidez do amor. Digo-lhe eu, que me apaixono em cada porto e me curo assim que regresso ao mar.
- Não tenho dinheiro para a passagem.
- Terá de trabalhar como marinheiro e à tarde de jogar às cartas comigo. Se não se esqueceu dos truques de batoteiro que sabia, quando o trouxe para o Chile há três anos, com certeza que me irá depauperar durante a viagem.
Poucos dias depois Jacob Todd embarcou muito mais pobre do que chegara. A única pessoa que o acompanhou ao cais foi Joaquín Andieta. O jovem sombrio pedira licença no seu trabalho para se ausentar por uma hora.
Despediu-se de Jacob Todd com um firme aperto de mão.
- Voltaremos a ver-nos, amigo - disse o inglês.
- Não creio - respondeu o chileno, que tinha uma intuição mais clara do destino.
Os pretendentes
Eliza Sommers, do insecto anguloso que fora na infância, transformou-se numa rapariga de contornos suaves e rosto delicado. Sob a tutela de Miss Rose passou os anos ingratos da puberdade balançando um livro sobre a cabeça e estudando piano, cultivando ao mesmo tempo as ervas autóctones na horta de Mamã Fresia e aprendendo as antigas receitas para curar males conhecidos e outros por conhecer, incluindo mostarda para a indiferença dos assuntos quotidianos, folha de hortênsia para supurar tumores e devolver o riso, violeta para suportar a solidão e verbena, com que condimentava a sopa de Miss Rose, porque esta planta nobre cura os acessos de mau humor. Miss Rose não conseguiu destruir o interesse da sua protegida pela cozinha e, por fim, resignou-se a vê-la perder horas preciosas entre os tachos enegrecidos de Mamã Fresia. Considerava os conhecimentos culinários um simples adorno na educação de uma jovem, porque a habilitavam para dar ordens aos criados, tal como ela fazia, mas daí a sujar-se com tachos e frigideiras havia uma grande distância. Uma senhora não podia cheirar a alho e a cebola, mas Eliza preferia a prática à teoria e recorria às amizades em busca de receitas que copiava num caderno e depois melhorava na sua cozinha. Podia passar dias inteiros a moer especiarias e nozes para bolos ou milho para empadas crioulas, a limpar rolas para escabeche e frutas para conserva. Aos catorze anos tinha superado Miss Rose na sua tímida pastelaria e aprendido o reportório de Mamã Fresia; aos quinze estava encarregada do festim nas tertúlias das quartas-feiras e, quando os pratos chilenos deixaram de ser um desafio, interessou-se pela refinada cozinha de França, que lhe ensinou Madame Colbert, e pelas exóticas especiarias da Índia, que o seu tio John costumava trazer e que ela identificava pelo cheiro, embora não soubesse os seus nomes. Quando o cocheiro levava uma mensagem aos amigos dos Sommers, apresentava o envelope acompanhado de uma guloseima recém-saída das mãos de Eliza, que tinha elevado o costume local de trocar receitas de guisados ou de sobremesas à categoria de arte. Era tal a sua dedicação, que Jeremy Sommers chegou a imaginá-la dona da sua própria casa de chá, projecto que, tal como to dos os outros do seu irmão respeitantes à rapariga, Miss Rose pôs de parte sem a mais pequena consideração. Uma mulher que ganha a vida desce de classe social, por muito respeitável que seja o seu ofício, argumentava. Ela pretendia, pelo contrário, um bom marido para a sua protegida e dera a si própria um prazo de dois anos para o encontrar no Chile, findo o qual levaria Eliza para Inglaterra, pois não podia correr o risco de esta fazer vinte anos sem noivo, e ficar solteira. O candidato devia ser alguém capaz de ignorar a sua origem obscura e de se entusiasmar com as suas virtudes. Entre os chilenos, nem pensar, a aristocracia casava-se entre primos e a classe média não lhe interessava, não desejava ver Eliza passar penúrias de dinheiro. De vez em quando tinha contactos com empresários do comércio ou das minas, que faziam negócios com o seu irmão Jeremy, mas esses andavam atrás dos apelidos e dos brasões da oligarquia. Era improvável que reparassem em Eliza, pois pouco no seu físico podia acender paixões: era pequena e magra, faltava-lhe a palidez leitosa ou a opulência de busto e de ancas tão na moda.
Só à segunda vista se descobria a sua beleza discreta, a graça dos seus gestos e a expressão intensa dos seus olhos; parecia uma boneca de porcelana como as que o capitão John Sommers trazia da China. Miss Rose procurava um pretendente capaz de apreciar o claro discernimento da sua protegida, bem como a sua firmeza de carácter e a habilidade para dar a volta às situações a seu favor, aquilo a que Mamã Fresia chamava sorte e ela preferia chamar inteligência; um homem com solvência económica e bom feitio, que lhe oferecesse segurança e respeito, mas a quem Eliza pudesse manipular com desembaraço. Pensava ensinar-lhe, em seu devido tempo, a disciplina subtil das atenções quotidianas que alimentam no homem o hábito da vida doméstica; o sistema de carícias atrevidas para o premiar e de silêncio obstinado para o castigar; os segredos para lhe roubar a vontade, que ela própria não tivera oportunidade de praticar, e também a arte milenária do amor físico. Nunca se atrevera a falar disso com ela, mas dispunha de vários livros sepultados a cadeado no seu armário, que lhe emprestaria quando chegasse o momento. Pode dizer-se tudo por escrito, era a sua teoria, e em matéria de teoria ninguém sabia mais do que ela. Miss Rose podia dar aulas sobre todas as formas possíveis e impossíveis de fazer amor.
- Deves adoptar Eliza legalmente para que tenha o nosso apelido - exigiu ao seu irmão Jeremy.
- Usou-o durante anos, que mais queres, Rose.
- Que possa casar-se de cabeça erguida.
- Casar-se com quem?
Miss Rose não lho disse nessa altura, mas já tinha alguém em mente.
Tratava-se de Michael Stewart, de vinte e oito anos, oficial da frota naval inglesa aquartelada no porto de Valparaíso. Tinha averiguado, através do seu irmão John, que o marinheiro pertencia a uma família antiga. Não veriam com bons olhos o filho mais velho e único herdeiro casado com uma desconhecida sem fortuna, proveniente de um país cujo nome nunca tinham ouvido. Era indispensável que Eliza tivesse um dote atraente e que Jeremy a adoptasse, assim pelo menos a questão da sua origem não seria um impedimento.
Michael Stewart tinha um porte atlético, um olhar inocente de pupilas azuis, patilhas e bigode loiros, bons dentes e nariz aristocrático. O queixo fugidio tirava-lhe prestância e Miss Rose esperava adquirir confiança para lhe sugerir que o dissimulasse, deixando crescer a barba. Segundo o capitão Sommers, o jovem era um exemplo de moralidade e a sua impecável folha de serviços garantia-lhe uma carreira brilhante na marinha. Aos olhos de Miss Rose, o facto de passar tanto tempo a navegar constituía uma enorme vantagem para quem se casasse com ele. Quanto mais pensava nisso, mais se convencia de ter descoberto o homem ideal, mas dado o carácter de Eliza, esta não o aceitaria apenas por conveniência, tinha de se apaixonar. Havia esperança: o homem ficava bonito no seu uniforme e ninguém o vira ainda sem ele.
- Stewart não passa de um tonto com bons modos. Eliza morreria de aborrecimento casada com ele - argumentou o capitão John Sommers quando lhe contou os seus planos.
- Todos os maridos são aborrecidos, John. Nenhuma mulher com dois dedos de testa se casa para que a entretenham, mas para que a mantenham.
Eliza parecia ainda uma criança, mas tinha terminado a sua educação e depressa estaria em idade de casar. Restava ainda algum tempo pela frente, concluiu Miss Rose, mas devia agir com determinação para impedir que, entretanto, outra mais esperta lhe arrebatasse o candidato. Uma vez tomada a decisão, empenhou-se na tarefa de atrair o oficial usando todos os pretextos que foi capaz de imaginar. Ajustou as tertúlias musicais para as fazer coincidir com as ocasiões em que Michael Stewart desembarcava, sem consideração para com os restantes participantes, que durante anos tinham reservado as quartas-feiras para essa sagrada actividade. Incomodados, alguns deixaram de ir. Era justamente o que ela pretendia, pois desta forma pôde transformar os aprazíveis serões musicais em alegres saraus e renovar a lista de convidados com jovens solteiros e raparigas casadoiras da colónia estrangeira, em vez dos enfadonhos Ebeling, Scott e Appelgren, que estavam a transformar-se em fósseis. Os recitais de poesia e de canto deram lugar a jogos de salão, bailes informais, concursos de talento e charadas.
Organizava complicados almoços campestres e passeios à praia. Partiam em carruagens, precedidos ao amanhecer por pesadas carroças com chão de couro e toldo de palha, levando os criados encarregados de instalar as numerosas canastras da comida sob tendas e guarda-sóis. Estendiam-se a perder de vista vales férteis com árvores de frutos, vinhas, prados de trigo e de milho, costas abruptas onde o oceano Pacífico rebentava em nuvens de espuma e, ao longe, o perfil magnífico da cordilheira nevada. Miss Rose arranjava maneira de Eliza e Stewart viajarem na mesma carruagem, se sentarem juntos e serem companheiros naturais nos jogos de bola e de pantomima, mas nas cartas e no dominó procurava separá-los, porque Eliza se negava categoricamente a deixar-se ganhar.
- Deves fazer com que o homem se sinta superior, menina - explicou-lhe pacientemente Miss Rose.
- Isso dá muito trabalho - respondeu Eliza irredutível.
Jeremy Sommers não conseguiu impedir a vaga de gastos da sua irmã.
Miss Rose comprava tecidos por atacado e mantinha duas raparigas de serviço cosendo todo o dia novos vestidos copiados das revistas. Endividava-se para além do razoável com os marinheiros do contrabando para que não lhes faltasse perfumes, carmim da Turquia, beladona e khol para o mistério dos olhos e creme de pérolas vivas para aclarar a pele. Pela primeira vez não dispunha de tempo para escrever, atarefada com as atenções ao oficial inglês, incluindo bolachas e conservas para levar para o alto mar, tudo feito em casa e apresentado em frascos lindíssimos.
- Eliza preparou-lhe isto, mas é demasiado tímida para o entregar pessoalmente - dizia-lhe, sem esclarecer que Eliza cozinhava o que lhe pediam sem perguntar a quem se destinava e que, por essa razão, se admirava quando ele lhe agradecia.
Michael Stewart não ficou indiferente à campanha de sedução. Parco de palavra, manifestava o seu agradecimento com cartas breves e formais em papel timbrado da marinha e, quando estava em terra, costumava aparecer com ramos de flores. Tinha estudado a linguagem das flores, mas essa delicadeza caía no vazio, porque nem Miss Rose nem ninguém por aqueles lados, tão longe de Inglaterra, ouvira falar da diferença entre uma rosa e um cravo, e muito menos suspeitava do significado da cor do laço. Os esforços de Stewart para encontrar flores que subissem gradualmente de tom, do rosa pálido, passando por todas as variedades de encarnado, até ao vermelho mais inflamado, como indício da sua crescente paixão, perderam-se por completo. Com o tempo, o oficial conseguiu superar a sua timidez e, do silêncio penoso que o caracterizava ao princípio, passou a uma loquacidade incómoda para os ouvintes. Expunha eufórico as suas opiniões morais sobre insignificâncias e costumava perder-se em explicações inúteis a propósito de correntes marítimas e mapas de navegação. Onde verdadeiramente brilhava era nos desportos bruscos, que revelavam a sua intrepidez e a sua boa musculatura. Miss Rose provocava-o para que fizesse demonstrações acrobáticas pendurado num ramo do jardim e conseguiu mesmo, com alguma insistência, que as deleitasse com os sapateados, flexões e saltos mortais de uma dança ucraniana aprendida com outro marinheiro. Miss Rose tudo aplaudia com um entusiasmo exagerado, enquanto Eliza observava calada e séria sem manifestar a sua opinião. Desta forma decorreram semanas, enquanto Michael Stewart pesava e media as consequências do passo que desejava dar e comunicava por carta com o pai para discutir os seus planos. Os atrasos inevitáveis do correio prolongaram a incerteza por vários meses.
Tratava-se da decisão mais grave da sua existência e necessitava de muito mais coragem para a enfrentar do que para combater os potenciais inimigos do Império Britânico no Pacífico. Por fim, numa das tertúlias musicais, depois de cem ensaios diante do espelho, conseguiu reunir a coragem que se lhe desfazia em fiapos e firmar a voz que se alterava de susto, para agarrar Miss Rose no corredor.
- Necessito falar-lhe em privado - sussurrou-lhe.
Ela levou-a à salinha da costura. Pressentia o que ia ouvir e surpreendeu-se com a sua própria emoção, sentiu as faces ruborizadas e o coração a galope. Ajeitou um caracol que lhe saía do carrapito e secou discretamente a transpiração da testa. Michael Stewart pensou que nunca a vira tão bela.
- Julgo que já terá adivinhado o que venho dizer-lhe, Miss Rose.
- Adivinhar é perigoso, Mr. Stewart. Oiço-o...
- Trata-se dos meus sentimentos. Sabe, sem dúvida, do que estou a falar. Desejo manifestar-lhe que as minhas intenções são da mais irrepreensível seriedade.
- Não espero menos de uma pessoa como o senhor. Julga ser correspondido?
- Só a senhora pode responder a isso - gaguejou o jovem oficial.
Ficaram a olhar um para o outro, ela com as sobrancelhas levantadas num gesto expectante e ele receando que o tecto se desmoronasse sobre a sua cabeça. Decidido a agir antes que a magia do momento se transformasse em cinza, o galã agarrou-a pelos ombros e inclinou-se para a beijar. Gelada pela surpresa, Miss Rose não conseguiu mover-se. Sentiu os lábios húmidos e os bigodes suaves do oficial na sua boca, sem compreender que diabo não resultara e quando por fim conseguiu reagir, afastou-o com violência.
- O que faz?! Não vê que sou muito mais velha do que você! - exclamou, limpando a boca com as costas da mão.
- Que importa a idade? - balbuciou o oficial desconcertado, porque na verdade tinha calculado que Miss Rose não teria mais de uns vinte e sete anos.
- Como se atreve? Perdeu o juízo?
- Mas você... você deu-me a entender... não posso ter-me enganado tanto! - murmurou o pobre homem, aturdido de vergonha.
- Queria-o para Eliza, não para mim! - exclamou Miss Rose espantada e saiu a correr fechando- se no seu quarto, enquanto o infeliz pretendente pedia a sua capa e o seu barrete e partia sem se despedir de ninguém, para nunca mais regressar àquela casa.
A um canto do corredor Eliza ouvira tudo através da porta entreaberta da salinha da costura. Também ela se sentira confundida com as atenções dadas ao oficial. Miss Rose tinha demonstrado sempre tanta indiferença face aos seus pretendentes, que se habituou a considerá-la uma velha. Só nos últimos meses, quando a viu dedicada de corpo e alma aos jogos de sedução, reparara no seu porte magnífico e na sua pele luminosa. Imaginou-a perdida de amor por Michael Stewart e não lhe passou pela cabeça que os bucólicos almoços campestres sob guarda-sóis japoneses e as bolachas de manteiga para aliviar os inconvenientes da navegação, fossem um estratagema da sua protectora para agarrar o oficial e entregar-lho a ela de bandeja. A ideia atordoou-a como um murro no peito e deixou-a sem ar, porque a última coisa que desejava neste mundo era um casamento combinado nas suas costas. Estava apanhada pela ventania recente do primeiro amor e tinha jurado, com irrevogável certeza, que não se casaria com outro.
Eliza Sommers viu Joaquín Andieta pela primeira vez numa sexta-feira de Maio de 1848, quando este foi lá a casa à frente de uma carroça puxada por várias mulas e cheia até ao cimo com fardos da Companhia Britânica de Importação e Exportação. Continham tapetes persas, lustres de lágrimas e uma colecção de figuras de marfim, encomenda de Feliciano Rodríguez de Santa Cruz para decorar a mansão que construíra no norte, uma daquelas cargas preciosas que corriam perigo no porto e que era mais seguro armazenar na casa dos Sommers até à altura de as enviar para o seu destino nalguma escuna chilena que zarpava dentro de uma semana. Andieta vestia o seu único fato, fora de moda, escuro e coçado, ia sem chapéu ou guarda-chuva. A sua palidez fúnebre contrastava com os seus olhos ardentes e o seu cabelo preto brilhava com a humidade de um dos primeiros chuviscos de Outono. Miss Rose saiu para o receber e Mamã Fresia, que trazia sempre as chaves de casa suspensas de uma argola na cintura, conduziu-o até ao último pátio, onde se encontrava o armazém.
O jovem organizou os peões numa fila e foram passando os volumes de mão em mão pelos despenhadeiros do atormentado terreno, pelas escadas sinuosas, pelos terraços sobrepostos e caramanchões inúteis. Enquanto ele contava, marcava e anotava no seu caderno, Eliza aproveitou a sua faculdade de tornar-se invisível e pôde observá-lo à vontade. Há dois meses que completara dezasseis anos e estava pronta para o amor. Quando viu as mãos de longos dedos manchados de tinta de Joaquín Andieta e ouviu a sua voz profunda, mas também clara e fresca como o rumor de um rio, repartindo ordens secas aos peões, sentiu-se emocionada até aos ossos e um desejo enorme de se aproximar dele e de o cheirar, obrigou-a a sair do seu esconderijo atrás das palmas de um grande vaso. Mamã Fresia, resmungando porque as mulas da carroça tinham sujado a entrada e ocupada com as chaves, não se deu conta de nada, mas Miss Rose chegou a ver pelo rabinho do olho o rubor da rapariga. Não lhe deu importância, o empregado do seu irmão pareceu-lhe um pobre diabo insignificante, apenas uma sombra entre as muitas sombras desse dia enevoado. Eliza desapareceu rumo à cozinha e passados poucos minutos regressou com copos e uma jarra de sumo de laranja adoçado com mel. Pela primeira vez na sua vida ela, que tinha passado anos equilibrando um livro sobre a cabeça sem pensar no que fazia, estava consciente dos seus passos, da ondulação das suas ancas, do balancear do corpo, do ângulo dos braços, da distância entre os ombros e o queixo. Quis ser tão bela como Miss Rose quando era a jovem maravilhosa que a resgatou do seu berço improvisado numa caixa de sabão de Marselha; quis cantar com a voz de rouxinol com que a menina Appelgren entoava as suas baladas escocesas; quis dançar com a leveza impossível da sua professora de dança e quis morrer ali mesmo, derrotada por um sentimento cortante e indómito como uma espada, que lhe enchia a boca de sangue quente e que ainda antes de poder formulá-lo, a oprimia com o peso terrível do amor idealizado. Muitos anos mais tarde, diante de uma cabeça humana preservada num frasco de genebra, Eliza recordaria esse primeiro encontro com Joaquín Andieta e voltaria a sentir a mesma insuportável inquietação.
Perguntar-se-ia milhares de vezes ao longo do seu caminho se teria tido oportunidade de fugir dessa paixão opressora que alteraria a sua vida, se acaso naqueles breves instantes poderia ter dado meia volta e salvar-se, mas cada vez que formulou aquela pergunta concluiu que o seu destino estava traçado desde o começo dos tempos. E quando o sábio Tao Chi'en a iniciou na poética possibilidade da reencarnação, convenceu-se de que em cada uma das suas vidas se repetia o mesmo drama: se ela tivesse nascido mil vezes antes e tivesse que nascer mais mil vezes no futuro, viria sempre ao mundo com a missão de amar aquele homem da mesma forma. Não havia escapatória para ela. Tao Chi'en ensinou-lhe então as fórmulas mágicas para desfazer os nós do kanna e evitar que continuasse a repetir a mesma dilacerante incerteza amorosa em cada encarnação.
Nesse dia de Maio, Eliza colocou a bandeja sobre um banco e ofereceu refresco primeiro aos trabalhadores, para ganhar tempo enquanto firmava os joelhos e dominava a rigidez de mula obstinada que lhe paralisava o peito, impedindo a passagem do ar, e depois a Joaquín Andieta, que continuava absorto na sua tarefa e quase não levantou os olhos quando ela lhe estendeu o copo. Ao fazê-lo, Eliza colocou-se o mais perto possível dele, calculando a direcção da brisa para que esta lhe levasse o aroma do homem que, estava decidido, seria seu. Com os olhos semicerrados aspirou o seu odor a roupa húmida, a sabonete ordinário e a suor fresco. Um rio de lava ardente percorreu-a por dentro, amoleceram-se-lhe os ossos e num momento de pânico julgou que, de facto, estava a morrer. Esses segundos foram tão intensos, que Joaquín Andieta deixou cair o caderno das mãos como se uma força irreprimível lho tivesse arrebatado, enquanto o calor de fogueira o atingiu também a ele, queimando-o com o seu reflexo. Olhou para Eliza sem a ver, o rosto da rapariga era um espelho pálido onde julgou entrever a sua própria imagem. Ficou apenas com uma ideia vaga do tamanho do corpo dela e da auréola escura do cabelo, mas só no segundo encontro, uns dias mais tarde, é que pôde por fim mergulhar na perdição dos seus olhos negros e na graça aquática dos seus gestos. Ambos se agacharam ao mesmo tempo para apanhar o caderno, chocaram os seus ombros e o conteúdo do copo derramou-se sobre o vestido dela.
- Olha o que estás a fazer, Eliza! - exclamou Miss Rose alarmada, porque o impacte desse amor súbito também a atingira.
- Vai mudar-te e põe esse vestido de molho em água fria, para ver se a mancha sai - acrescentou secamente.
Mas Eliza não se mexeu, presa dos olhos de Joaquín Andieta, trémula, com as narinas dilatadas, cheirando-o sem dissimulação, até Miss Rose a agarrar por um braço e a levar para casa.
- Eu bem te disse, menina: qualquer homem, por miserável que seja, pode fazer contigo o que quiser - recordou-lhe a índia nessa noite.
- Não sei do que estás a falar, Mamã Fresia - respondeu Eliza.
Ao conhecer Joaquín Andieta naquela manhã de Outono no pátio da sua casa, Eliza julgou ter encontrado o seu destino: seria sua escrava para sempre. Ainda não vivera o suficiente para entender o que tinha acontecido, expressar por palavras o tumulto que a afogava ou traçar um plano, mas não lhe falhou a intuição do inevitável. De uma forma vaga, mas dolorosa, apercebeu-se de que estava presa e teve uma reacção física semelhante à peste. Durante uma semana, até voltar a vê-lo, debateu-se com cólicas espasmódicas sem que as ervas prodigiosas de Mamã Fresia ou os pós de arsénico diluídos em licor de cerejas do boticário alemão servissem para nada. Perdeu peso e ficou com ossos leves como os de uma rola, perante a surpresa de Mamã Fresia, que andava fechando janelas para evitar que um vento marítimo arrebatasse a rapariga e a levasse rumo ao horizonte. A índia administrou-lhe várias poções e esconjuros do seu vasto reportório e, quando compreendeu que nada surtia efeito, recorreu ao santoral católico. Tirou do fundo do seu baú umas miseráveis economias, comprou doze velas e foi negociar com o padre. Depois de as fazer benzer na missa do domingo, acendeu uma diante de cada santo nas capelas laterais da igreja, oito no total, e colocou três diante da imagem de Santo António, patrono das raparigas solteiras sem esperança, das casadas infelizes e de outras causas perdidas. A que sobrou levou-a, juntamente com uma madeixa de cabelo e uma camisa de Eliza à mapuche mais considerada dos arredores. Era uma mapuche velha e cega de nascença, feiticeira de magia branca, famosa pelas suas profecias inapeláveis e pelo seu bom senso para curar males do corpo e inquietações da alma.
Mamã Fresia tinha passado os seus anos de adolescente servindo essa mulher como aprendiz e criada, mas não pôde seguir os seus passos, como tanto desejava, porque não tinha o dom. Não havia nada a fazer: ou se nasce com o dom ou se nasce sem ele. Uma vez quis explicá-lo a Eliza e a única coisa que lhe ocorreu foi que o dom era a faculdade de ver o que existe atrás dos espelhos. Na falta desse misterioso talento, Mamã Fresia teve de renunciar às suas aspirações de curandeira e empregar-se ao serviço dos ingleses.
A mapuche vivia sozinha no fundo de um desfiladeiro entre duas colinas, numa cabana de barro com tecto de palha, que parecia prestes a desmoronar-se. Em redor da casa havia uma desordem de rochas, troncos, plantas em vasos, cães escanzelados e passarões pretos que esgaravatavam o chão inutilmente à procura de alguma coisa para comer. Na vereda que lhe dava acesso erguia-se um pequeno bosque de dádivas e amuletos plantado por clientes satisfeitos para indicar os favores recebidos. A mulher cheirava à soma de todas as cocções que tinha preparado na sua vida, vestia um manto da mesma cor de terra seca da paisagem, estava descalça e imunda, mas profusamente enfeitada com colares de prata de má qualidade. O seu rosto era uma máscara escura de rugas, só com dois dentes na boca e com os olhos mortos. Recebeu a sua antiga discípula sem dar mostras de a ter reconhecido, aceitou as ofertas de comida e a garrafa de licor de anis, fez-lhe um sinal para que se sentasse diante dela e ficou em silêncio, à espera.
Alguns tições vacilantes ardiam no centro da choça e o fumo saía por um buraco no tecto. Das paredes pretas de fuligem pendiam vasilhas de barro e de latão, plantas e uma colecção de animais dissecados. A fragrância densa de ervas secas e cascas medicinais misturava-se com o fedor de animais mortos. Falaram em mapudungo, a língua dos mapuches. Durante muito tempo a maga ouviu a história de Eliza, desde a sua chegada no caixote de sabão de Marselha, até à crise recente, depois pegou na vela, no cabelo e na camisa e despediu a sua visita pedindo-lhe que voltasse quando tivesse completado os seus encantamentos e ritos de adivinhação.
- Sabido é que para isto não há cura - anunciou, assim que Mamã Fresia cruzou a soleira da sua casa, dois dias mais tarde.
- Então a minha menina vai morrer?
- Isso não sei dizer, mas que vai sofrer muito, disso não tenho dúvidas.
- O que é que ela tem?
- Obstinação no amor. É um mal muito forte. Com certeza deixou a janela aberta numa noite clara e meteu-se-lhe no corpo durante o Sono. Não há esconjuro contra isso.
Mamã Fresia voltou para casa resignada: se a arte dessa mapuche tão sábia não era suficiente para mudar a sorte de Eliza, de muito menos serviriam os seus escassos conhecimentos ou as velas dos santos.
Miss Rose
Miss Rose observava Eliza com mais curiosidade do que compaixão, porque conhecia bem os sintomas e, pela sua experiência, o tempo e as contrariedades apagam mesmo os maiores incêndios de amor. Ela tinha apenas dezassete anos quando se apaixonou, com um amor desenfreado, por um tenor vienense. Vivia então em Inglaterra e sonhava ser uma diva, apesar da tenaz oposição da sua mãe e do seu irmão Jeremy, chefe de família desde a morte do pai. Nenhum dos dois considerava o canto lírico como uma ocupação desejável para uma menina, principalmente porque se praticava em teatros, de noite e com vestidos decotados. Também não podia contar com o apoio do seu irmão John, que se incorporara na marinha mercante e aparecia em casa apenas algumas vezes por ano e sempre com pressa. Chegava, exuberante e queimado pelo sol de outras terras, com uma nova tatuagem ou cicatriz, para alterar as rotinas da pequena família.
Distribuía presentes, embaraçava-os com as suas histórias exóticas e desaparecia de imediato rumo aos bairros das rameiras, onde permanecia até à altura de voltar a embarcar. Os Sommers eram fidalgos de província sem grandes ambições. Possuíram terras há várias gerações, mas o pai, farto de ovelhas torpes e de colheitas pobres, preferiu tentar fortuna em Londres.
Amava tanto os livros, que era capaz de tirar o pão à família para comprar primeiras edições autografadas pelos seus autores preferidos, mas faltava-lhe a ambição dos verdadeiros coleccionadores. Depois de tentativas infrutíferas no comércio decidiu dar largas à sua verdadeira vocação e acabou por abrir uma loja de livros usados e de outros editados por ele próprio. Na parte de trás da livraria instalou uma pequena tipografia, onde trabalhava com dois ajudantes, e num desvão do mesmo local prosperava a passo de tartaruga o seu negócio de volumes raros. Dos seus três filhos, só Rose se interessava pelo seu ofício, cresceu com a paixão da música e da leitura e, se não estava sentada ao piano ou nos seus exercícios de vocalização, podiam encontrá-la num canto a ler. O pai lamentava que fosse ela a única a gostar dos livros e não o fossem Jeremy ou John, que teriam herdado o seu negócio. Quando morreu, os filhos varões liquidaram a tipografia e a livraria, John foi para o mar e Jeremy encarregou-se da sua mãe viúva e da sua irmã. Dispunha de um salário modesto como empregado da Companhia Britânica de Importação e Exportação e de uma pequena renda deixada pelo pai, para além das contribuições esporádicas do seu irmão John, que nem sempre eram em dinheiro sonante, mas em contrabando. Jeremy, escandalizado, guardava esses caixotes de perdição no sótão, sem os abrir, até à visita seguinte do seu irmão, que se encarregava de vender o seu conteúdo. A família mudou-se para um apartamento pequeno e caro para o seu orçamento, mas bem situado no coração de Londres, porque o consideravam um investimento.
Tinham de arranjar um bom casamento para Rose.
Aos dezassete anos a beleza da jovem começava a florescer e sobravam-lhe pretendentes com boa situação dispostos a morrer de amor, mas enquanto as suas amigas se afadigavam à procura de marido, ela procurava um professor de canto. Desta forma conheceu Karí Bretzner, um tenor vienense chegado a Londres para actuar em várias obras de Mozart, que culminariam numa noite estelar com As Bodas de Fígaro, à qual assistiria a família real. O seu aspecto não revelava o seu enorme talento: parecia um carniceiro. O seu corpo, largo de barriga e definhado dos joelhos para baixo carecia de elegância e o seu rosto sanguíneo, coroado por uma mata de caracóis descoloridos, era bastante vulgar, mas quando abria a boca para deleitar o mundo com a torrente da sua voz, transformava-se noutra pessoa, crescia em estatura, a pança desaparecia na largura do peito e a cara avermelhada de teutónico enchia-se de uma luz olímpica. Era assim, pelo menos, que o via Rose Sommers, que arranjou maneira de conseguir entradas para todos os espectáculos. Chegava ao teatro muito antes de o abrirem e, desafiando os olhares escandalizados dos transeuntes, pouco habituados a ver sozinha uma rapariga da sua condição, esperava horas na porta dos actores para divisar o mestre a descer da carruagem. Na noite de domingo, o homem reparou na beldade parada na rua e aproximou-se para falar com ela. Trémula, ela respondeu às suas perguntas e confessou a sua admiração por ele e os seus desejos de seguir os seus passos no árduo mas divino caminho do bel-canto, foram estas as suas palavras.
- Venha depois do espectáculo ao meu camarim e veremos o que posso fazer por si - disse ele com a sua voz preciosa e um forte acento austríaco.
Ela assim fez, transportada à glória. Quando finalizou a ovação de pé presenteada pelo público, um contínuo enviado por Karl Bretzner conduziu-a aos bastidores. Ela nunca tinha visto as entranhas de um teatro, mas não perdeu tempo a admirar as engenhosas máquinas de fazer tempestades nem as paisagens pintadas nos cenários, o seu único propósito era conhecer o seu ídolo. Encontrou-o coberto com um roupão de veludo azul debruado a ouro, a cara ainda maquilhada e uma elaborada peruca de caracóis brancos. O contínuo deixou-os a sós e fechou a porta. O quarto, cheio de espelhos, móveis e cortinados, cheirava a tabaco, a cosméticos e a mofo. Num canto havia um biombo pintado com cenas de mulheres rubicundas num harém turco e das paredes pendiam, em cabides, as roupas da ópera. Ao ver o seu ídolo de perto, o entusiasmo de Rose esmoreceu por alguns momentos, mas depressa ele recuperou o terreno perdido. Pegou-lhe em ambas as mãos entre as suas, levou-as aos lábios e beijou-as longamente, depois lançou um dó de peito que estremeceu o biombo das odaliscas. Os últimos melindres de Rose desmoronaram-se, como as muralhas de Jericó, numa nuvem de pó que saiu da peruca quando o artista a tirou com um gesto apaixonado e viril, atirando-a para uma poltrona, onde ficou inerte como um coelho morto. Tinha o cabelo empastado sob uma rede compacta que, juntamente com a maquilhagem, lhe dava um ar de cortesã decrépita.
Na mesma poltrona onde caiu a peruca, oferecer-lhe-ia Rose a sua virgindade alguns dias depois, exactamente às três e um quarto da tarde. O tenor vienense marcou um encontro com ela com o pretexto de lhe mostrar o teatro nessa terça-feira, que não haveria espectáculo. Encontraram-se secretamente numa pastelaria, onde ele saboreou com delicadeza cinco éclaires de chantilly e duas chávenas de chocolate, enquanto ela mexia o seu chá sem conseguir bebê-lo de susto e antecipação. Foram depois para o teatro. A essa hora estavam só duas mulheres a limpar a sala e um homem que preparava candeeiros de azeite, tochas e velas para o dia seguinte. Karl Bretzner, perito em lances de amor, desencantou por obra de ilusionismo uma garrafa de champanhe, serviu a cada um uma taça, que beberam a seco brindando a Mozart e a Rossini. Depois instalou a jovem no camarote de felpa imperial onde só o rei se sentava, enfeitado de cima abaixo com cupidos bochechudos e rosas de gesso, enquanto ele se dirigia para o palco. De pé sobre um pedaço de coluna de cartão pintado, iluminado pelas tochas acabadas de acender, cantou só para ela uma ária de O Barbeiro de Sevilha, fazendo brilhar toda a sua agilidade vocal e o suave delírio da sua voz em intermináveis florituras. Ao morrer a última nota da sua homenagem, ouviu os soluços distantes de Rose Sommers, correu na sua direcção com uma agilidade inesperada, atravessou a sala, trepou para o camarote com dois saltos e caiu de joelhos aos seus pés. Sem alento, colocou a sua cabeçorra sobre a saia da jovem, mergulhando a cara nas pregas da saia de seda cor de musgo. Chorava com ela porque, sem pretender, também se tinha apaixonado; o que começara como mais uma conquista passageira tinha-se transformado, em poucas horas, numa paixão incandescente.
Rose e Kan levantaram-se apoiando-se um ao outro, tropeçando aterrados perante o inevitável, e avançaram sem saber como, por um longo corredor na penumbra, subiram uma pequena escadaria e chegaram à zona dos camarins. O nome do tenor estava escrito em letras cursivas numa das portas. Entraram no quarto atulhado de móveis e trapos de luxo, poeirentos e suados, onde dois dias antes tinham estado a sós pela primeira vez. Não tinha janelas e por um instante mergulharam no refúgio da escuridão, onde conseguiram recuperar o ar perdido nos soluços e suspiros prévios, enquanto ele acendia primeiro um fósforo e depois as cinco velas de um candelabro.
Na trémula luz amarela das chamas olharam-se, confusos e desajeitados, com uma torrente de emoções por expressar e sem conseguirem articular uma palavra. Rose não resistiu aos olhares que a trespassavam e escondeu o rosto nas mãos, mas ele afastou-as com a mesma delicadeza utilizada antes para partir os pastelinhos de natas. Começaram por trocar beijinhos chorosos na cara como bicadas de pombas, que derivaram naturalmente para beijos a sério. Rose já tivera encontros amorosos, mas vacilantes e fugidios, com alguns dos seus pretendentes e alguns deles chegaram a roçá-la na face com os lábios, mas nunca imaginou que fosse possível chegar a este grau de intimidade, que uma língua de outro podia entrançar-se com a sua como uma cobra travessa e a saliva alheia molhá-la por fora e invadi-la por dentro, mas a repugnância inicial foi rapidamente vencida pelo impulso da sua juventude e pelo seu entusiasmo pela lírica. Não só devolveu as carícias com a mesma intensidade, como tomou a iniciativa de livrar-se do chapéu e da capinha de pele de astracã cinzenta que lhe cobria os ombros. Daí a deixar desabotoar o casaquinho e depois a blusa foram só alguns ajustes. A jovem soube seguir passo a passo a dança da copulação guiada pelo instinto e pelas ardentes leituras proibidas, que antes subtraía sigilosamente das prateleiras do seu pai.
Esse foi o dia mais memorável da sua existência e recordá-lo-ia até aos seus mais ínfimos pormenores, embelezados e exagerados, nos anos vindouros.
Essa seria a sua única fonte de experiência e de conhecimento, único motivo de inspiração para alimentar as suas fantasias e criar, anos mais tarde, a arte que a tornaria famosa em certos círculos bastante secretos. Esse dia maravilhoso só podia comparar-se em intensidade àquele dia de Março, dois anos mais tarde em Valparaiso, quando Eliza recém-nascida caiu nos seus braços, como consolo pelos filhos que não teria, pelos homens que não poderia amar e pelo lar que jamais formaria.
O tenor vienense acabou por ser um amante refinado. Amava e conhecia as mulheres a fundo, mas foi capaz de apagar da sua memória os amores desbaratados do passado, a frustração de múltiplas despedidas, os ciúmes, desmandos e enganos de outras relações, para se entregar com uma total inocência à breve paixão por Rose Sommers. A sua experiência não provinha de abraços patéticos com putinhas esquálidas; Bretzner gabava-se de não ter tido de pagar pelo prazer, porque mulheres de diversas condições, desde criadas humildes a condessas orgulhosas, se lhe rendiam sem condições ao ouvi-lo cantar. Aprendeu as artes do amor ao mesmo tempo que aprendia as do canto. Tinha dez anos quando se apaixonou por ele aquela que viria a ser a sua mentora, uma francesa com olhos de tigre e seios de puro alabastro, com idade suficiente para ser sua mãe. Ela, por sua vez, fora iniciada aos treze anos em França por Donatien-Alphonse-François de Sade. Filha de um carcereiro da Bastilha, tinha conhecido o marquês numa cela imunda, onde este escrevia as suas perversas histórias à luz de uma vela. Ela ia observá-lo através das grades, por simples curiosidade infantil, sem saber que o pai a vendera ao prisioneiro a troco de um relógio de ouro para satisfazer uma mulher por formas não previstas pela natureza e pelo costume, mas com Rose Sommers não correu riscos. Nada de atacá-la com fogosidade num deboche de carícias demasiado atrevidas, pois não se tratava de chocá-la com truques de serralho, decidiu, sem suspeitar que em menos de três lições práticas a sua aluna o superaria em imaginação. Era um homem cuidadoso nos pormenores e conhecia o poder alucinante da palavra certa na hora do amor. Com a mão esquerda desabotoou um por um os pequenos botões de madrepérola das costas, enquanto com a direita lhe tirava os ganchos do penteado, sem perder o ritmo dos beijos intercalados com uma litania de lisonjas. Falou-lhe da pequenez da sua cintura, da brancura prístina da sua pele, da curvatura clássica do seu pescoço e ombros, que provocavam nele um incêndio, uma excitação incontrolável.
- Põe-me louco... Não sei o que me acontece, nunca amei nem voltarei a amar ninguém como te amo a ti. Este é um encontro feito pelos deuses, estamos destinados a amar-nos - murmurava sem parar.
Recitou-lhe o seu reportório completo, mas fê-lo sem malícia, profundamente convencido da sua própria honestidade e deslumbrado por Rose. Desatou os laços do espartilho enquanto a despojava das combinações deixando-a só com os calções compridos de cambraia e uma camisinha de nada que revelava os morangos dos mamilos. Não lhe tirou os botins de couro com tacões inclinados nem as meias brancas presas nos joelhos por ligas bordadas. Deteve-se nesse ponto, arquejando, com um estrépito telúrico no peito, convencido de que Rose Sommers era a mais bela mulher do universo, um anjo, e que o coração ia explodir-lhe em petardos se não se acalmasse. Ergueu-a nos braços sem esforço, atravessou o quarto e depositou-a de pé diante de grande espelho de moldura dourada. A luz intermitente das velas e as roupas teatrais pendendo das paredes, numa confusão de brocados, penas, veludos e rendas desbotadas, davam à cena um ar de irrealidade.
Ébria de emoções, Rose olhou-se ao espelho e não reconheceu a mulher em roupa interior, com o cabelo alvoroçado e as faces em chama, a quem um homem também desconhecido beijava no pescoço e acariciava generosamente os peitos. Essa pausa ansiosa deu tempo ao tenor de recuperar o fôlego e um pouco da lucidez perdida nas primeiras investidas.
Começou a tirar a roupa diante do espelho, sem pudor e, é preciso dizê-lo, ficava muito melhor despido do que vestido. Precisa de um bom alfaiate, pensou Rose, que nunca vira um homem nu, nem sequer os seus irmãos na infância, e a sua informação provinha das descrições exageradas dos livros picantes e de uns postais japoneses que descobrira na bagagem de John, onde os órgãos masculinos tinham proporções francamente optimistas. O bilro rosado e teso que surgiu diante dos seus olhos não a assustou, como receava Karl Bretzner, mas provocou-lhe em vez disso uma irreprimível e alegre gargalhada. Isso deu o tom ao que veio depois. Em vez da solene e a bem dizer dolorosa cerimónia que costuma ser a desfloração, eles deleitaram-se em cabriolas brincalhonas, perseguiram-se pelo quarto saltando como garotinhos por cima dos móveis, beberam o resto do champanhe e abriram outra garrafa para a despejarem em cima um do outro em jorros espumantes, disseram grosserias entre risos e juras de amor sussurradas, mordiscaram-se e lamberam-se e agitaram-se desaforados no pântano sem fundo do amor recém-estreado, durante toda a tarde e até bem entrada a noite, sem se lembrarem das horas ou do resto do universo. Só eles existiam. O tenor vienense levou Rose a alturas épicas e ela, aluna aplicada, seguiu-o sem vacilar e, uma vez no cume, pôs-se a voar sozinha com um admirável talento natural, guiando-se por indícios e perguntando o que não conseguia adivinhar, deslumbrando o mestre e por último vencendo-o com a sua destreza improvisada e com a oferta esmagadora do seu amor. Quando conseguiram separar-se e aterrar na realidade, o relógio marcava dez horas da noite. O teatro estava vazio, lá fora reinava a escuridão e para cúmulo instalara-se uma bruma espessa como merengue.
Começou entre os dois amantes um intercâmbio frenético de missivas, flores, bombons, versos copiados e pequenas relíquias sentimentais enquanto durou a temporada lírica em Londres.
Encontravam-se onde podiam, a paixão fê-los perder de vista qualquer prudência. Para ganhar tempo procuravam quartos de hotel perto do teatro, sem se importarem com a possibilidade de serem reconhecidos. Rose saía de casa com desculpas ridículas e a sua mãe, aterrada, nada dizia a Jeremy das suas suspeitas, rezando para que o descomedimento da sua filha fosse passageiro e desaparecesse sem deixar rasto. Karl Bretzner chegava tarde aos ensaios e de tanto se despir a qualquer hora apanhou uma constipação e não conseguiu cantar em dois espectáculos, mas longe de lamentá-lo, aproveitou o tempo para fazer amor, exaltado pelos arrepios da febre.
Chegava ao quarto alugado com flores para Rose, champanhe para brindar e tomar banho, bolos de natas, poemas escritos em cima do joelho para ler na cama, óleos aromáticos para esfregar em lugares até aí selados, livros eróticos que folheavam à procura das cenas mais inspiradas, penas de avestruz para fazerem cócegas um ao outro e uma infinidade de outros ingredientes destinados às suas brincadeiras. A jovem sentiu que se abria como uma flor carnívora, emanava perfumes de perdição para atrair o homem como a um insecto, para o triturar, comer digerir e finalmente cuspir os seus ossinhos convertidos em lascas. Estava dominada por uma energia insuportável, afogava-se, não conseguia estar quieta nem um minuto, devorada pela impaciência. Entretanto Karl Bretzner chapinhava na confusão, às vezes exaltado até ao delírio e outras exausto, tentando cumprir com as suas obrigações musicais, mas deteriorando-se a olhos vistos. Os críticos, implacáveis, disseram que Mozart com certeza dava voltas no sepulcro ao ouvir o tenor vienense executar "literalmente "as suas composições.
Os amantes viam aproximar-se em pânico o momento da separação e entraram na fase do amor contrariado. Falavam em fugir para o Brasil ou em suicidar-se juntos, mas nunca mencionaram a possibilidade de se casarem.
Por fim, o gosto pela vida pôde mais do que a tentação trágica e, depois do último espectáculo, apanharam uma carruagem e foram de férias para o norte de Inglaterra para uma estalagem no campo. Tinham decidido gozar esses dias de anonimato, antes que Karl Bretzner partisse para Itália, onde tinha de cumprir outros contratos. Rose reunir-se-ia com ele em Viena, assim que ele conseguisse uma casa apropriada, se organizasse e lhe enviasse o dinheiro para a viagem.
Estavam a tomar o pequeno almoço sob um toldo na esplanada do pequeno hotel, com as pernas cobertas por uma manta de lã, porque o ar da costa era cortante e frio, quando Jeremy Sommers os interrompeu, indignado e solene como um profeta. Rose deixara um tal rasto de pistas, que foi fácil o seu irmão mais velho localizar o seu paradeiro e segui-la até essas remotas termas. Ao vê-lo ela deu um grito de surpresa, mais do que de susto, porque estava encorajada pelo alvoroço do amor. Nesse instante teve pela primeira vez consciência do cometido e o peso das consequências revelou-se-lhe em toda a sua dimensão. Levantou-se decidida a defender o seu direito a viver como lhe apetecesse, mas o seu irmão não lhe deu tempo de falar e dirigiu-se directamente ao tenor.
- Deve uma explicação à minha irmã. Suponho que não lhe disse que é casado e que tem dois filhos - pespegou ao sedutor.
Essa tinha sido a única coisa que Karl Bretzner tinha omitido a Rose.
Falaram até à saciedade, ele contara-lhe mesmo os pormenores mais íntimos dos seus amores anteriores, sem esquecer as extravagâncias do marquês de Sade que a sua mentora, a francesa com olhos de tigre, lhe contara, porque Rose demonstrava uma curiosidade mórbida para saber quando, com quem e especialmente como tinha feito amor, desde os dez anos até à véspera de a conhecer. E tudo lhe disse sem escrúpulos ao reparar como ela gostava de o ouvir e como o incorporava a sua própria teoria e prática. Mas da mulher e dos filhos nada mencionara por compaixão para com esta virgem bela que se lhe oferecera sem condições. Não desejava destruir a magia deste encontro: Rose Sommers merecia gozar plenamente o seu primeiro amor.
- Deve-me uma reparação - desafiou-o Jeremy Sommers batendo-lhe na cara com uma luva.
Karl Bretzner era um homem do mundo e não ia cometer a barbaridade de bater-se em duelo. Compreendeu que tinha chegado o momento de se retirar e lamentou não ter alguns momentos em privado para tentar explicar as coisas a Rose. Não desejava deixá-la com o coração destroçado e com a ideia de que ele a seduzira com más intenções para depois a abandonar.
Precisava dizer-lhe mais uma vez quanto na verdade a amava e como lamentava não ser livre para realizar o sonho de ambos, mas leu na cara de Jeremy Sommers que este não lho permitiria. Jeremy agarrou por um braço na irmã, que parecia apalermada, e levou-a com firmeza para a carruagem, sem lhe dar oportunidade de se despedir do amante ou de ir buscar a sua pouca bagagem. Conduziu-a para casa de uma tia na Escócia, onde deveria permanecer até o seu estado se revelar. Se acontecesse a pior desgraça, como Jeremy chamou à gravidez, a sua vida e a honra da família estariam arruinadas para sempre.
- Nem uma palavra disto a ninguém, nem sequer à mamã e ao John, entendeste? - foi a única coisa que disse durante a viagem.
Rose passou umas semanas de incerteza, até comprovar que não estava grávida. A notícia trouxe-lhe um sopro de imenso alívio, como se o céu a tivesse absolvido. Passou mais três meses de castigo, tricotando para os pobres, lendo e escrevendo às escondidas, sem derramar uma única lágrima.
Durante esse tempo reflectiu sobre o seu destino e alguma coisa se alterou por dentro porque, quando terminou a sua clausura em casa da tia, era outra pessoa. Só ela se apercebeu da mudança. Reapareceu em Londres tal como tinha ido, risonha, tranquila, interessada pelo canto e pela leitura, sem uma palavra de rancor contra Jeremy por a ter arrebatado dos braços do amante, ou de nostalgia pelo homem que a tinha enganado, olímpica na sua atitude de ignorar a maledicência alheia e as caras de enterro da sua família. À superfície parecia a mesma rapariga de antes, nem a sua mãe conseguiu encontrar uma brecha na sua perfeita compostura que lhe permitisse uma censura ou um conselho. Por outro lado, a viúva não estava em condições de ajudar a sua filha ou de protegê-la; um cancro estava a consumi-la rapidamente. A única modificação na conduta de Rose foi esse capricho de passar horas a escrever fechada no seu quarto. Enchia dúzias de cadernos com uma letra minúscula, que guardava trancados. Como nunca tentou enviar uma carta, Jeremy Sommers, que nada temia tanto como o escárnio, deixou de se preocupar com o vício da escrita e calculou que a sua irmã tivera o bom senso de esquecer o nefasto tenor vienense. Mas ela não só não o tinha esquecido, como recordava com enorme clareza cada pormenor do que acontecera e cada palavra dita ou sussurrada. A única coisa que apagou do seu espírito foi o desencanto de ter sido enganada. A mulher e os filhos de Karl Bretzner simplesmente desapareceram, porque nunca tiveram lugar no fresco imenso das suas memórias de amor.
O retiro em casa da tia na Escócia não conseguiu evitar o escândalo, mas como os rumores não puderam ser confirmados, ninguém se atreveu a fazer uma afronta aberta à família. Um a um retornaram os numerosos pretendentes que antes acossavam Rose, mas esta afastou-os com o pretexto da doença da sua mãe. O que se cala é como se não tivesse acontecido, sustentava Jeremy Sommers, disposto a matar com o silêncio qualquer vestígio deste episódio. A vergonhosa escapadela de Rose ficou suspensa no limbo das coisas por nomear, embora às vezes os irmãos fizessem referências tangenciais que mantinham fresco o rancor mas que também os uniam no segredo partilhado. Anos mais tarde, quando já não importava a ninguém, Rose atreveu-se a contá-la ao seu irmão John, diante de quem assumira sempre o papel de menina mimada e inocente. Pouco depois da morte da mãe, ofereceram a Jeremy Sommers a direcção do escritório da Companhia Britânica de Importação e Exportação no Chile.
Partiu com a sua irmã Rose, levando consigo o segredo intacto até ao outro lado do mundo.
Chegaram nos fins do Inverno de 1830, quando Valparaíso era ainda uma aldeia, mas já existiam companhias e famílias europeias. Rose considerou o Chile como a sua penitência e assumiu-a estóica, resignada a pagar a sua falta com esse desterro irremediável, sem permitir que ninguém, muito menos o seu irmão Jeremy, suspeitasse do seu desespero. A sua disciplina para não se queixar e não falar, nem em sonhos, do amante perdido amparou-a quando os inconvenientes a abatiam.
Instalou-se no hotel o melhor possível, disposta a evitar as rajadas de vento e a humidade, porque se tinha desencadeado uma epidemia de difteria, que os barbeiros locais combatiam com cruéis e inúteis operações cirúrgicas praticadas à navalhada. A Primavera e depois o Verão aliviaram um pouco a sua má impressão do país. Decidiu esquecer-se de Londres e tirar partido da sua nova situação, apesar do ambiente provinciano e do vento marítimo que lhe impregnava OS ossos mesmo nas tardes soalheiras. Convenceu o irmão, e este a empresa, da necessidade de adquirir uma casa decente em nome da firma e de trazer móveis de Inglaterra. Colocou-o como uma questão de autoridade e de prestígio: não era possível que o representante de tão importante escritório ficasse albergado num hotel de má nota. Dezoito meses mais tarde, quando a pequena Eliza entrou nas suas vidas, os irmãos viviam numa grande casa em Cerro Alegre, Miss Rose tinha relegado o antigo amante para um compartimento selado da memória e estava inteiramente dedicada a conquistar um lugar de privilégio na sociedade onde vivia. Nos anos seguintes Valparaiso cresceu e modernizou-se com a mesma rapidez com que ela deixou o passado para trás e se transformou na mulher exuberante e de aparência feliz, que onze anos mais tarde conquistaria Jacob Todd. O falso missionário não foi o primeiro a ser rejeitado, mas ela não tinha interesse em casar-se. Tinha descoberto uma fórmula extraordinária para permanecer num idílico romance com Karl Bretzner, revivendo cada um dos momentos da sua escandalosa paixão e outros delírios inventados no silêncio das suas noites de solteira.
O Amor
Ninguém melhor do que Miss Rose podia saber o que estava a acontecer na alma doente de amor de Eliza. Adivinhou de imediato a identidade do homem, porque só um cego podia deixar de ver a relação entre os desvarios da rapariga e a visita do empregado do seu irmão com os caixotes do tesouro para Feliciano Rodríguez de Santa Cruz. O seu primeiro impulso foi excluir o jovem de uma penada por insignificante e pobretão, mas depressa compreendeu que ela também sentira a sua perigosa atracção e não conseguia tirá-lo da cabeça. Está certo... Reparou primeiro na sua roupa remendada e na sua palidez lúgubre, mas um segundo olhar bastou-lhe para avaliar a sua aura trágica de poeta maldito. Enquanto bordava furiosamente na sua salinha da costura, dava voltas e mais voltas a este revés da sorte que alterava os seus planos de conseguir um marido complacente e endinheirado para Eliza. Os seus pensamentos eram uma trama de astúcias para derrotar esse amor antes que começasse, desde enviar Eliza interna para um colégio de raparigas em Inglaterra ou para a Escócia com a sua velha tia, até atirar a verdade à cara do irmão para que este se desfizesse do empregado. No entanto, no fundo do seu coração germinava, muito a contragosto, o desejo secreto de que Eliza vivesse a sua paixão até a extenuar, para compensar o imenso vazio que o tenor deixara, dezoito anos antes, na sua própria vida.
Entretanto para Eliza as horas decorriam com aterradora lentidão num remoinho de sentimentos confusos. Não sabia se era de dia ou de noite, se era terça ou sexta-feira, se tinham passado algumas horas ou vários anos desde que conhecera este jovem. De repente sentia que o sangue se lhe tornava espumoso e que a pele se lhe enchia de borbulhas, esfumadas tão súbita e inexplicavelmente como tinham aparecido. Via o amado em toda a parte: nas sombras dos cantos, nas formas das nuvens, na chávena do chá e sobretudo nos sonhos. Não sabia como se chamava e não se atrevia a perguntar a Jeremy Sommers porque receava desencadear uma vaga de suspeitas, mas entretinha-se durante horas imaginando um nome apropriado para ele. Necessitava desesperadamente falar com alguém do seu amor, analisar cada pormenor da curta visita do jovem, especular sobre o que calaram, o que deveriam ter dito e o que transmitiram um ao outro com o olhar, com os rubores e com as intenções, mas não havia ninguém em quem confiar. Ansiava por uma visita do capitão John Sommers, esse tio com vocação de flibusteiro que fora a personagem mais fascinante da sua infância, o único capaz de a entender e de a ajudar em semelhante transe. Não tinha dúvidas de que Jeremy Sommers, se chegasse a saber declararia uma guerra sem tréguas contra o modesto empregado da sua firma, e não conseguia prever a reacção de Miss Rose. Decidiu que quanto menos se soubesse em casa, mais liberdade de acção teriam, ela e o seu futuro namorado. Nunca considerou não ser correspondida com a mesma intensidade de sentimentos, pois parecia-lhe completamente impossível que um amor desta dimensão apenas a ela tivesse atordoado. A lógica e a justiça mais elementares indicavam que em algum lugar da cidade, ele estava a sofrer o mesmo delicioso tormento
Eliza escondia-se para tocar o seu corpo em sítios secretos nunca antes explorados. Fechava os olhos e então era a mão dele que a acariciava com delicadeza de pássaro, eram os seus lábios que ela beijava no espelho, a sua cintura que abraçava na almofada, os seus murmúrios de amor que trazia o vento. Nem os seus sonhos escaparam ao poder de Joaquín Andieta.
Via-a aparecer como uma sombra enorme que se lançava sobre ela para a devorar de milhares de maneiras disparatadas e perturbadoras. Apaixonado, demónio, arcanjo, não sabia. Não desejava acordar e praticava com fanática determinação a habilidade aprendida com Mama Fresia para entrar e sair dos sonhos à vontade. Chegou a ter um domínio tão grande desta arte, que o seu amante ilusório aparecia de corpo presente, podia tocá-lo, cheirá-lo e ouvir a sua voz perfeitamente nítida e próxima. Se pudesse estar sempre adormecida, não necessitaria de mais nada: poderia continuar a amá-lo da sua cama e para sempre, pensava. Teria morrido no desvario dessa paixão, se Joaquín Andieta não se tivesse apresentado lá em casa uma semana mais tarde, para buscar os volumes do tesouro e enviá-los ao cliente no norte.
Na noite anterior ela soube que ele viria, não por instinto ou premonição, como insinuaria anos mais tarde a Tao Chi'en, mas porque à hora do jantar ouviu Jeremy Sommers dar as instruções à irmã e a Mama Fresia.
- Virá buscar a carga o mesmo empregado que a trouxe acrescentou ao passar, sem suspeitar o furacão de emoções que as suas palavras, por diferentes razões, desencadearam nas três mulheres.
A rapariga passou a manhã no terraço perscrutando o caminho que subia pela colina até casa. Perto do meio-dia viu chegar a carroça puxada por seis mulas e seguida por peões a cavalo e armados. Sentiu uma paz gelada, como se tivesse morrido, sem se dar conta que Miss Rose e Mama Fresia a observavam de casa.
- Tanto esforço para a educar e apaixona-se pelo primeiro vadio que se cruza no seu caminho! resmungou Miss Rose entre dentes.
Tinha decidido fazer o possível para impedir o desastre, sem demasiada convicção, porque conhecia de sobra o carácter empedernido do primeiro amor.
- Eu entregarei a carga. Diz a Eliza que entre e não a deixes sair por motivo algum - ordenou.
- E como quer que eu faça isso? - perguntou Mama Fresia de mau humor.
- Tranca-a, se for preciso.
- Tranque-a a senhora, se conseguir. Não me meta a mim -, respondeu e saiu arrastando as chinelas.
Foi impossível impedir que a garota se aproximasse de Joaquín
Andieta e lhe entregasse uma carta. Fê-lo sem dissimulação, olhando-o nos olhos e com tão feroz determinação, que Miss Rose não teve coragem para a interceptar nem Mama Fresia para a enfrentar. Então as mulheres compreenderam que o feitiço era muito mais potente do que tinham imaginado e que não existiriam portas fechadas ou velas abençoadas suficientes para o esconjurar. O jovem também passara essa semana obcecado pela lembrança da rapariga, que julgava ser filha do seu patrão, Jeremy Sommers, e portanto absolutamente inalcançável. Não suspeitava da impressão que lhe causara e não lhe passou pela cabeça que ao oferecer-lhe aquele memorável copo de sumo na visita anterior; lhe declarava o seu amor; por isso mesmo apanhou um susto enorme quando ela lhe entregou um envelope fechado. Desconcertado, meteu-o no bolso e continuou a vigiar o trabalho de transporte dos caixotes para a carroça, enquanto lhe ardiam as orelhas, a roupa se lhe molhava de suor e uma febre de arrepios lhe percorria as costas. De pé, imóvel e silenciosa, Eliza observava<> fixamente a poucos passos de distância, fazendo-se desentendida da expressão furiosa de Miss Rose e compungida de Mama Fresia. Quando o último caixote foi amarrado na carroça e as mulas deram meia volta para começar a descida da colina, Joaquín Andieta desculpou-a a Miss Rose pelos incómodos, cumprimentou Eliza com uma levíssima inclinação de cabeça e partiu tão depressa quanto pôde.
O bilhete de Eliza continha só duas linhas para lhe indicar onde e como se encontrarem. O estratagema era de uma tal simplicidade e audácia, que qualquer pessoa poderia confundi-la com uma perita em poucas vergonhas: Joaquín devia aparecer dentro de três dias às nove da noite na ermida da Virgem do Perpétuo Socorro, uma capela erigida em Cerro Alegre como protecção para os caminhantes, a curta distância da casa dos Sommers. Eliza escolheu esse lugar pela proximidade e essa data por ser quarta-feira. Miss Rose, Mama Fresia e os criados estariam pendentes do jantar e ninguém repararia se ela saísse por algum tempo. Desde a partida do despeitado Michael Stewart já não havia razões para bailes nem o Inverno prematuro se prestava a isso, mas Miss Rose manteve o costume para desarmar as bisbilhotices que circulavam à sua custa e do oficial da marinha. Suspender os serões musicais na ausência de Stewart equivalia a confessar que ele fora o único motivo para os levar a cabo.
Às sete já Joaquín Andieta se tinha postado a esperar impaciente. De longe viu o esplendor da casa iluminada, o desfile de carruagens com os convidados e as lanternas acesas dos cocheiros que esperavam no caminho.
Teve de se esconder algumas vezes à passagem dos guardas-nocturnos que verificavam as candeias da ermida, que o vento apagava. Coroada por uma cruz de madeira pintada, apenas um pouco maior do que um confessionário, a ermida era uma pequena construção rectangular de adobe, que albergava uma imagem de gesso da Virgem. Havia uma bandeja com uma fila de velas votivas apagadas e uma ânfora com flores murchas. Estava uma noite de lua cheia, mas o céu estava coberto por nuvens grossas, que de vez em quando escondiam por completo a claridade lunar. às nove em ponto sentiu a presença da rapariga e viu a sua figura envolta da cabeça aos pés num manto escuro.
- Estava à sua espera, menina - foi a única coisa que conseguiu gaguejar, sentindo-se um idiota.
- Eu espero-te desde sempre - respondeu ela sem a menor vacilação.
Tirou o manto e Joaquín viu que estava vestida para a festa, trazia a saia arregaçada e chinelas nos pés. Trazia na mão as suas meias brancas e os seus sapatos de camurça, para não os sujar pelo caminho. O cabelo negro, com risco ao meio, estava preso de ambos os lados da cabeça em tranças enfeitadas com fitas de cetim. Sentaram-se no fundo da ermida, sobre o manto que ela pôs no chão, escondidos atrás da estátua, em silêncio, muito juntos mas sem se tocarem. Por muito tempo não se atreveram a olhar-se na doce penumbra, atordoados pela proximidade mútua, respirando o mesmo ar e ardendo apesar das rajadas de vento que ameaçavam deixá-los às escuras.
- Chamo-me Eliza Sommers- , disse ela por fim.
- E eu Joaquín Andieta- , respondeu ele.
- Imaginei que te chamavas Sebastian...
- Porquê?
- Porque te pareces com São Sebastião, o mártir. Não vou à igreja papista, sou protestante, mas Mama Fresia levou-me algumas vezes a pagar as suas promessas.
Assim terminou a conversa porque não souberam o que dizer mais; lançavam um ao outro olhares de soslaio e ruborizavam-se ambos ao mesmo tempo. Eliza sentia o cheiro dele a sabão e suor; mas não se atrevia a aproximar dele o nariz, como desejava. Os únicos sons na ermida eram o sussurro do vento e da respiração agitada de ambos. Passados poucos minutos ela anunciou que tinha de voltar para casa, antes que se apercebessem da sua ausência, e despediram-se apertando as mãos. Assim se encontrariam nas quartas-feiras seguintes, sempre a horas diferentes e por pequenos intervalos. Em cada um desses alvoroçados encontros avançavam a passos de gigante nos delírios e tormentos do amor. Apressados, contaram um ao outro o indispensável, porque as palavras pareciam uma perda de tempo, e depressa deram as mãos e continuaram a falar, os corpos cada vez mais próximos à medida que as almas se aproximavam, até que na noite da quinta quarta-feira se beijaram nos lábios, primeiro tacteando, depois explorando e finalmente perdendo-se no deleite até soltarem por completo o fervor que os consumia. Nessa altura já tinham trocado abreviados resumos dos dezasseis anos de Eliza e dos vinte e um de Joaquín. Discutiram sobre o improvável cesto com lençóis de cambraia e mantilha de pele de marta, tal como sobre o caixote de sabão de Marselha, e foi um alívio para Andieta ela não ser filha de nenhum dos Sommers e ter uma origem incerta, como a dele, embora de qualquer forma um abismo social e económico os separasse. Eliza inteirou-se que Joaquín era fruto de um amor de passagem, o pai esfumara-se com a mesma rapidez com que plantou a sua semente e o garoto cresceu sem saber o seu nome, com o apelido da mãe e marcado pela sua condição de bastardo, que iria limitar cada passo do seu caminho. A família expulsou do seu seio a filha desonrada e ignorou a criança ilegítima. Os avós e os tios, comerciantes e funcionários de uma classe média afogada em preconceitos, viviam na mesma cidade, a poucos quarteirões de distância, mas nunca se encontravam. Iam aos domingos à mesma igreja, mas a horas diferentes, porque os pobres não iam à missa do meio-dia. Marcado pelo estigma, Joaquín não brincou nos mesmos parques nem se educou nas escolas dos primos, mas usou as roupas deles e os brinquedos rejeitados, que uma tia compassiva fazia chegar por meios tortuosos à irmã repudiada. A mãe de Joaquín Andieta tivera menos sorte do que Miss Rose e pagou muito mais caro a sua debilidade. Ambas as mulheres tinham praticamente a mesma idade, mas enquanto a inglesa parecia jovem, a outra estava desgastada pela miséria, pela exaustão e pelo triste ofício de bordar enxovais de noiva à luz de uma vela. A pouca Sorte não tinha diminuído a sua dignidade e educou o filho nos princípios inflexíveis da honra. Joaquín aprendera desde muito novo a andar de cabeça erguida, desafiando qualquer assomo de escárnio ou de pena.
- Um dia poderei tirar a minha mãe daquele cortiço - prometeu Joaquín nos sussurros da ermida. - Dar-lhe-ei uma vida decente, como a que tinha antes de perder tudo...
- Não perdeu tudo. Tem um filho - respondeu Eliza.
- Eu fui a sua desgraça.
- A desgraça foi apaixonar-se por um homem que não prestava. Tu és a sua redenção - determinou ela.
Os encontros dos jovens eram muito curtos e como nunca se efectuavam à mesma hora, Miss Rose não conseguiu manter a vigilância durante a noite e o dia. Sabia que alguma coisa estava a acontecer nas suas costas, mas não teve a perversidade suficiente para trancar Eliza ou para a mandar para o campo, como o dever lhe aconselhava, e absteve-se de mencionar as suas suspeitas diante do seu irmão Jeremy. Supunha que Eliza e o seu apaixonado trocavam cartas, mas não conseguiu interceptar nenhuma, apesar de ter alertado todos os criados. As cartas existiam e eram de uma tal intensidade que, se as visse, Miss Rose teria ficado aniquilada.
Joaquín não as enviava, entregava-as a Eliza em cada um dos seus encontros. Nelas dizia-lhe, nos termos mais febris, aquilo que frente a frente não se atrevia, por orgulho e por pudor. Ela escondia-as numa caixa, trinta centímetros abaixo da terra na pequena horta de casa, onde diariamente fingia afadigar-se nos maciços de ervas medicinais de Mama Fresia. Essas páginas, relidas vezes sem conta em minutos roubados, constituíam o principal alimento da sua paixão, porque revelavam um aspecto de Joaquín Andieta que não se mostrava quando estavam juntos. Pareciam escritas por outra pessoa. Esse jovem altivo, sempre na defensiva, sombrio e atormentado, que a abraçava enlouquecido e imediatamente a empurrava como se o contacto o queimasse, por escrito abria as comportas da sua alma e descrevia os seus sentimentos como um poeta. Mais tarde, quando Eliza perseguisse durante anos as pistas imprecisas de Joaquín Andieta, essas cartas seriam a sua única ligação à verdade, a prova irrefutável de que aquele amor desenfreado não fora um produto da sua imaginação de adolescente, mas que existira como uma breve bênção e um longo suplício.
Depois da primeira quarta-feira na ermida desapareceram sem deixar rasto os surtos de cólicas de Eliza e nada no seu comportamento ou no seu aspecto revelava o seu segredo, excepto o brilho demente dos seus olhos e o uso um pouco mais frequente do seu talento para se tornar invisível. às vezes dava a impressão de estar em vários sítios ao mesmo tempo, confundindo toda a gente, ou então ninguém se conseguia lembrar onde ou quando a vira e juntamente quando começavam a chamá-la, ela materializava-se com a atitude de quem ignora que a estavam procurando. Noutras ocasiões na salinha da costura com Miss Rose ou preparando um guisado com Mama Fresia, tornara-se tão silenciosa e transparente, que nenhuma das duas mulheres tinha a sensação de a ver. A sua presença era subtil, quase imperceptível, e quando se ausentava ninguém se apercebia até terem passado várias horas.
- Pareces um espírito! Estou farta de procurar-te. Não quero que saias de casa nem que saias da minha vista - ordenava-lhe repetidamente Miss Rose.
- Não me mexi daqui toda a tarde - replicava Eliza impávida, aparecendo suavemente num canto com um livro ou com um bordado na mão.
- Faz barulho, menina, por Deus! Como queres que te veja se és mais calada do que um coelho? - alegava Mama Fresia por sua vez.
Ela dizia que sim e depois fazia o que lhe apetecia, mas arranjava-se de maneira a parecer obediente e a cair em graça. Em poucos dias adquiriu uma espantosa perícia para baralhar a realidade, como se tivesse praticado a vida inteira a arte dos magos. Face à impossibilidade de apanhá-la numa contradição ou numa mentira comprovada, Miss Rose optou por tentar ganhar a sua confiança e recorria ao tema do amor a todo o instante. Os pretextos eram muitos: bisbilhotices sobre as amigas, leituras românticas que partilhavam ou libretos das novas óperas italianas, que elas aprendiam de cor, mas Eliza não deixava cair uma palavra que fosse que traísse os seus sentimentos. Então, Miss Rose procurou em vão pela casa sinais delatores; revolveu a roupa e o quarto da jovem, deu uma volta completa à sua colecção de bonecas e caixinhas de música, de livros e cadernos, mas não conseguiu encontrar o seu diário. Se o tivesse encontrado, teria ficado desapontada, porque nas suas páginas não havia qualquer menção a Joaquín Andieta. Eliza só escrevia para recordar. O seu diário tinha de tudo, desde os sonhos pertinazes até à lista infindável de receitas de cozinha e conselhos domésticos, tais como a forma de engordar uma galinha ou de tirar uma nódoa de gordura. Tinha também especulações sobre o seu nascimento, o cestinho luxuoso e o caixote de sabão de Marselha, mas nem uma palavra sobre Joaquín Andieta. Não precisava de um diário para o recordar. Seria vários anos mais tarde que começaria a contar nessas páginas os seus amores das quartas-feiras.
Por fim, uma noite os jovens não se encontraram na ermida, mas na residência dos Sommers. Para chegar a esse instante Eliza passou pelo tormento de infinitas hesitações, porque compreendia que era um passo definitivo. Só por se encontrarem em segredo sem vigilância perdia a honra, o bem mais precioso de uma rapariga, sem o qual não havia futuro possível.
"Uma mulher sem virtude nada vale, nunca poderá ser uma esposa e uma mãe, era melhor amarrar uma pedra no pescoço e atirar-se ao mar", tinham-lhe repisado. Pensou que não teria atenuante para a falta que ia cometer, fazia-o com premeditação e cálculo. às duas da manhã, quando já não havia uma alma acordada na cidade e só os guardas-nocturnos rondavam, esquadrinhando a escuridão, Joaquín Andieta conseguiu introduzir-se como um ladrão na varanda da biblioteca, onde Eliza o esperava em camisa de noite e descalça, tiritando de frio e de ansiedade.
Agarrou-o pela mão e conduziu-o às escuras através da casa até um quarto das traseiras, onde se guardava em grandes armários a roupa da família e em caixotes diversos os materiais para vestidos e chapéus, usados e voltados a usar por Miss Rose ao longo dos anos. No chão, embrulhadas em panos de linho, as cortinas da sala e da sala de jantar, esticadas à espera da próxima estação. A Eliza este pareceu-lhe ser o sítio mais seguro, longe dos outros quartos. De qualquer forma, como precaução, tinha posto valeriana no cálice de anis, que Miss Rose bebia antes de dormir, e no de brandy, que Jeremy saboreava enquanto fumava o seu charuto cubano depois de jantar. Conhecia cada centímetro da casa, sabia exactamente onde rangia o chão e como abrir as portas para que não chiassem, podia guiar Joaquín na escuridão apenas com a luz da sua própria memória, e ele seguiu-a, dócil e pálido de medo, ignorando a voz da consciência, confundida com a da sua mãe, que lhe recordava implacável o código de honra de um homem decente. Jamais farei a Eliza o que o meu pai fez à minha mãe, dizia para si próprio enquanto avançava hesitante pela mão da rapariga, sabendo que qualquer consideração seria inútil, pois já estava vencido por esse desejo impetuoso que não o deixava em paz desde a primeira vez que a vira. Entretanto Eliza debatia-se entre as vozes de advertência que lhe retumbavam na cabeça e o impulso do instinto, com os seus prodigiosos ardis. Não tinha uma ideia clara do que aconteceria no quarto dos armários, mas já ia rendida de antemão.
A casa dos Sommers, suspensa no ar como uma aranha à mercê do vento, era impossível de manter aquecida, apesar dos braseiros a carvão que as criadas acendiam durante sete meses por ano. Os lençóis estavam sempre húmidos pelo sopro perseverante do mar e dormia-se com botijas de água quente nos pés. O único lugar sempre quente era a cozinha, onde um fogão a lenha, enorme de múltiplas utilizações, nunca era apagado. Durante o Inverno rangiam as madeiras, soltavam-se tábuas e o esqueleto da casa parecia prestes a querer navegar, como uma antiga fragata. Miss Rose nunca se habituou às tempestades do Pacífico, tal como não conseguiu habituar-se aos tremores de terra. Os verdadeiros terramotos, esses que punham o mundo de cabeça para baixo, aconteciam mais ou menos de seis em seis anos e em cada oportunidade ela demonstrou um sangue-frio admirável, mas o trepidar diário que sacudia a vida punha-a de péssimo humor. Nunca quis colocar as porcelanas e os copos em prateleiras rente ao chão, como faziam os chilenos, e quando o móvel da sala de jantar cambaleava e os pratos se partiam em pedaços, amaldiçoava o país aos gritos. No rés-do-chão ficava o quarto de arrumações onde Eliza e Joaquín se amavam sobre o grande embrulho de cortinas de cretone às flores, que no Verão substituíam os pesados cortinados de veludo verde da sala. Faziam amor rodeados de armários solenes, caixas de chapéus e volumes com os vestidos primaveris de Miss Rose. Nem o frio nem o cheiro a naftalina os mortificava porque estavam para lá dos inconvenientes práticos, para lá do medo das consequências e para lá da sua própria e pueril falta de jeito. Não sabiam como fazer, mas foram inventando pelo caminho, atordoados e confusos, em completo silêncio, guiando-se mutuamente sem muita destreza. Aos vinte e um anos ele era tão virgem quanto ela. Aos catorze anos escolhera ser sacerdote para agradar à mãe, mas aos dezasseis iniciou-se nas leituras liberais, declarou-se inimigo dos padres, embora não da religião, e decidiu permanecer casto até atingir o objectivo de tirar a mãe do cortiço. Parecia-lhe ser uma retribuição mínima pelos inumeráveis sacrifícios dela. Apesar da virgindade e do medo de serem surpreendidos, os jovens foram capazes de encontrar, na escuridão, o que procuravam. Desabotoaram botões, soltaram laços, despojaram-se de pudores e descobriram-se nus bebendo o ar e a saliva do outro. Aspiraram fragrâncias desaforadas, puseram febrilmente isto aqui e aquilo ali num afã honesto de decifrar os enigmas, de chegar ao fundo do outro e de se perderem ambos no mesmo abismo. As cortinas de Verão ficaram manchadas de suor quente, sangue virginal e sémen, mas nenhum dos dois se acautelou desses sinais do amor. Na escuridão mal podiam ver o contorno do outro e medir o espaço disponível para não derrubar as pilhas de caixotes e os cabides dos vestidos no estrépito dos seus abraços.
Abençoavam o vento e a chuva sobre os telhados, porque encobria os rangidos do chão, mas era tão ensurdecedor o galope dos seus próprios corações e o arrebatamento dos seus gemidos e suspiros de amor, que não entendiam como não acordava a casa inteira.
De madrugada Joaquín Andieta saiu pela mesma janela da biblioteca e Eliza regressou exausta à cama. Enquanto ela adormecia agasalhada por vários cobertores, ele teve de andar duas horas colina abaixo sob a tempestade. Atravessou a cidade, silencioso, sem chamar a atenção da guarda, para chegar a casa justamente quando começavam a repicar os sinos da igreja, chamando para a primeira missa. Planeava entrar discretamente, lavar-se um pouco, trocar o colarinho da camisa e partir para o trabalho com o fato molhado, pois não tinha outro, mas a mãe esperava-o acordada com água quente para o mate e pão duro torrado, como todas as manhãs.
- Onde estiveste, filho? - perguntou-lhe com tanta tristeza, que ele não conseguiu enganá-la.
- Descobrindo o amor, mamã - respondeu, abraçando-a radiante.
Joaquín Andieta vivia atormentado por um romantismo político sem eco nesse país de gente prática e prudente. Convertera-se num fanático das teorias de Lamennais, que lia em medíocres e confusas traduções do francês, tal como lia os enciclopedistas. Tal como o seu mestre, era favorável ao liberalismo católico em política e à separação entre o Estado e a Igreja.
Declarava-se cristão primitivo, como os apóstolos e os mártires, mas inimigo dos padres, a quem comparava com sanguessugas, alimentadas pela credulidade dos fiéis, mas traidores de Jesus e da sua verdadeira doutrina.
Evitava, no entanto, expor estas ideias diante da mãe, que morreria de desgosto. Também se considerava inimigo da oligarquia, inútil e decadente, e do governo, por não representar os interesses do povo, mas o dos ricos, como poderiam provar com inúmeros exemplos os seus companheiros de tertúlia nas reuniões da Livraria Santos Tornero e como ele explicava pacientemente a Eliza, embora ela mal o ouvisse, mais interessada em cheirá-lo que nos seus discursos. O jovem estava disposto a arriscar a vida pela glória inútil de um relâmpago de heroísmo, mas tinha um medo visceral de olhar Eliza nos olhos e de falar dos seus sentimentos. Estabeleceram a rotina de fazer amor pelo menos uma vez por semana no mesmo quarto dos armários, convertido em ninho. Dispunham de tão escassos e preciosos momentos juntos, que a ela lhe parecia uma insensatez desperdiçá-los a filosofar; se de falar se tratava, preferia saber os seus gostos, o seu passado, ouvi-lo falar da mãe e dos planos para um dia se casar com ela. Teria dado qualquer coisa para ele lhe dizer cara a cara as frases magníficas que lhe escrevia nas suas cartas. Dizer-lhe, por exemplo, que seria mais fácil medir as intenções do vento ou a paciência das ondas na praia, do que a intensidade do seu amor; que não havia noite de Inverno capaz de arrefecer a fogueira inextinguível da sua paixão; que passava o dia a sonhar e as noites acordado, atormentado sem tréguas pela loucura das lembranças e contando, com a angústia de um condenado, as horas que faltavam para a abraçar outra vez; "és o meu anjo e a minha perdição, na tua presença atinjo o êxtase divino e na tua ausência desço ao inferno; em que consiste este domínio que exerces sobre mim, Eliza? Não me fales de amanhã nem de ontem, vivo só para este instante de hoje em que volto a mergulhar na noite infinita dos teus olhos escuros." Alimentada pelos romances de Miss Rose e pelos poetas românticos, cujos versos sabia de cor; a rapariga perdia-se no deleite intoxicante de se sentir adorada como uma deusa e não compreendia a incongruência entre essas declarações inflamadas e a pessoa real de Joaquín Andieta. Nas cartas ele transformava-se no amante perfeito, capaz de descrever a sua paixão com um tal vigor angelical, que a culpa e temor desapareciam para dar lugar à exaltação absoluta dos sentidos. Ninguém amara antes dessa maneira, eles tinham sido escolhidos entre todos os mortais para uma paixão inimitável, dizia Joaquín nas cartas e ela acreditava.
No entanto, fazia amor apressado e famélico, sem o saborear; como quem sucumbe a um vício, atormentado pela culpa. Não se permitia conhecer o corpo dela nem revelar o próprio; vencia-o a urgência do desejo e do segredo. Parecia-lhes que o tempo nunca chegava, apesar de Eliza o tranquilizar explicando-lhe que ninguém ia a esse quarto de noite, que os Sommers dormiam drogados, que Mama Fresia o fazia na sua casinha ao fundo do pátio e que os quartos dos restantes criados ficavam no sótão. O instinto atiçava a audácia da rapariga incitando-a a descobrir as múltiplas possibilidades do prazer, mas depressa aprendeu a reprimir-se. As suas iniciativas no jogo amoroso punham Joaquín na defensiva; sentia-se criticado, ferido ou ameaçado na sua virilidade. Atormentavam-no as piores suspeitas, pois não conseguia imaginar tanta sensualidade natural numa miúda de dezasseis anos cujo único horizonte eram as paredes da sua casa. O receio de uma gravidez piorava a situação, porque nenhum dos dois sabia como evitá-la. Joaquín entendia vagamente a mecânica da fecundação e supunha que se se retirasse a tempo estariam a salvo, mas nem sempre o conseguia.
Apercebia-se da frustração de Eliza, mas não sabia como consolá-la e em vez de o tentar, refugiava-se de imediato no seu papel de mentor intelectual, onde se sentia seguro. Enquanto ela ansiava ser acariciada ou ao menos descansar no ombro do seu amante, ele separava-se, vestia-se a correr e gastava o tempo precioso de que ainda dispunham a esgrimir novos argumentos para as mesmas ideias políticas cem vezes repetidas. Os abraços deixavam Eliza em brasa, mas não se atrevia a admiti-lo nem no mais profundo da sua consciência, porque isso equivaleria a questionar a qualidade do amor. Caía então na armadilha de se apiedar e desculpar o amante, pensando que se tivessem mais tempo e um lugar seguro, se amariam melhor. Muito melhor do que os sobressaltos partilhados, eram as horas posteriores inventando o que não acontecera e as noites sonhando o que talvez acontecesse da próxima vez no quarto dos armários.
Com a mesma seriedade que punha em todos os seus actos, Eliza deu-se ao trabalho de idealizar o seu apaixonado até o transformar numa obsessão. Desejava apenas servi-lo incondicionalmente pelo resto dos seus dias, sacrificar-se e sofrer para provar a sua abnegação, morrer por ele se fosse necessário. Ofuscada pelo feitiço dessa primeira paixão, não percebia que não era correspondida com igual intensidade. O seu galã nunca estava totalmente presente. Mesmo nos mais encabritados abraços sobre o monte de cortinas, o seu espírito andava por outros lados, prestes a partir ou já ausente. Revelava-se só a meias, fugazmente, num jogo exasperante de sombras chinesas, mas ao despedir-se, quando ela ficava quase a chorar por fome de amor, entregava-lhe uma das suas prodigiosas cartas. Para Eliza, então, o universo inteiro transformava-se num espelho cuja única finalidade consistia em reflectir os seus sentimentos. Submetida à árdua tarefa do encantamento absoluto, não duvidava da sua capacidade de entrega sem reservas e por isso mesmo não reconhecia a ambiguidade de Joaquín. Tinha inventado um amante perfeito e alimentava essa quimera com uma teimosia invencível. A sua imaginação compensava os abraços ingratos do seu amante, que a deixavam perdida no limbo obscuro do desejo insatisfeito.
Segunda parte
A Notícia
No dia 21 de Setembro, dia inaugural da Primavera segundo o calendário de Miss Rose, arejaram os quartos, puseram os colchões e os cobertores ao sol, enceraram os móveis de madeira e mudaram as cortinas da sala. Mama Fresia lavou as de cretone florido sem comentários, convencida de que as manchas secas eram urina de rato. Preparou no pátio grandes tinas de barrela quente com casca de quillay, deixou as cortinas de molho durante todo o dia, meteu-as em goma com água de arroz e secou-as ao sol; depois duas mulheres engomaram-nas e quando ficaram como novas, penduraram-nas para receber a nova estação. Enquanto isso, Eliza e Joaquín, indiferentes à turbulência primaveril de Miss Rose, retouçavam sobre as cortinas de veludo verde, mais fofas do que as de cretone. Já não estava frio e as noites eram claras. Já tinham três meses de amores, e as cartas de Joaquín Andieta, salpicadas de artifícios poéticos e declarações ardentes, tinham-se espaçado visivelmente. Eliza sentia o seu apaixonado ausente, às vezes abraçava um fantasma. Apesar da angústia do desejo insatisfeito e do peso debilitante de tantos segredos, a rapariga recuperara uma calma aparente.
Passava as horas do dia nas mesmas ocupações de sempre, entretida com os seus livros e exercícios de piano ou atarefada na cozinha e na salinha da costura, sem demonstrar o menor interesse em sair de casa, mas se Miss Rose o pedia, acompanhava-a com a boa disposição de quem não tem nada melhor para fazer. Deitava-se e levantava-se cedo, como sempre; tinha apetite e parecia saudável, mas esses sintomas de perfeita normalidade levantam suspeitas horríveis em Miss Rose e em Mama Fresia. Não tiravam os olhos de cima dela. Duvidavam que a embriaguez do amor se lhe tivesse evaporado de súbito, mas como decorreram várias semanas e Eliza não dava sinais de perturbação, foram afrouxando pouco a pouco a vigilância. Talvez as velas a Santo António tivessem servido para alguma coisa, especulou a índia; talvez não fosse amor; afinal de contas, pensou Miss Rose sem grande convicção.
A notícia do ouro descoberto na Califórnia chegou ao Chile em Agosto.
Primeiro foi um rumor alucinado na boca de navegantes embriagados nos bordéis de El Almendral, mas alguns dias mais tarde o capitão da escuna Adelida anunciou que metade dos seus marinheiros desertara em São Francisco.
- Há ouro por todo o lado, pode ser apanhado às pazadas, foram vistas pepitas do tamanho de laranjas! Qualquer um com um pouco de astúcia se torna milionário! - contou sufocado de entusiasmo.
Em Janeiro desse ano, nas proximidades do moinho de um agricultor suíço nas margens do rio Americano, um indivíduo de apelido Marshall tinha encontrado na água uma escama de ouro. Aquela partícula amarela, que desencadeou a loucura, foi descoberta nove dias depois de terminar a guerra entre o México e os Estados Unidos, com a assinatura do Tratado de Guadalupe Hidalgo. Quando se espalhou a notícia, a Califórnia já não pertencia ao México. Antes de saberem que esse território estava assente sobre um tesouro incalculável, ninguém se importava muito com ele; para os americanos era terra de índios e os pioneiros preferiam conquistar o Oregon, onde julgavam que a agricultura se dava melhor. O México considerava-o um deserto de ladrões e não se dignou enviar as suas tropas para o defender durante a guerra. Pouco depois Sam Brannan, editor de um jornal e pregador mórmon enviado para propagar a sua fé, percorria as ruas de São Francisco anunciando a novidade. Talvez não tivessem acreditado, pois a sua fama era um pouco turva - dizia-se que usara indevidamente o dinheiro de Deus e que quando a igreja mórmon lhe exigiu a sua devolução, ele respondeu que o faria... contra um recibo assinado por Deus -, mas apoiava as suas palavras com um frasco cheio de pó de ouro, que passou de mão em mão inflamando as gentes. Ao grito de ouro! ouro!, três em cada quatro homens abandonaram tudo e partiram rumo aos aluviões. Tiveram de fechar a única escola, porque nem as crianças ficaram. No Chile, a notícia teve o mesmo impacte. O salário médio era de vinte centavos por dia e os jornais diziam que, finalmente, se descobrira o El Dorado, a cidade sonhada pelos conquistadores, onde as ruas eram pavimentadas com o metal precioso: "A riqueza das minas é como as das histórias de Sinbad ou da Lâmpada de Aladino; estima-se, sem receio de exagerar, que o lucro diário é de uma onça de ouro puro", publicavam os diários e acrescentavam que havia suficiente para enriquecer milhares de homens durante décadas. O incêndio da cobiça ateou-se de imediato entre os chilenos, que tinham alma de mineiros, e a corrida rumo à Califórnia começou no mês seguinte. Além disso ficavam a meio caminho relativamente a qualquer aventureiro que navegasse vindo do Atlântico. A viagem da Europa a Valparaíso demorava três meses e mais dois para chegar à Califórnia. A distância entre Valparaíso e São Francisco não chegava às sete mil milhas, enquanto entre a costa este da América do Norte, passando pelo cabo Horn, era de quase vinte mil. Isso, como calculou Joaquín Andieta, representava uma vantagem considerável para os chilenos, uma vez que os primeiros a chegar reclamariam os melhores filões.
Feliciano Rodriguez de Santa Cruz fez as mesmas contas e decidiu embarcar de imediato com cinco dos seus melhores e mais leais mineiros, prometendo-lhes uma recompensa como incentivo para deixarem as suas famílias e se lançarem nessa empresa cheia de riscos. Demorou três semanas a preparar a bagagem para uma permanência de vários meses naquela terra ao norte do continente, que imaginava desolada e selvagem.
Levava enorme vantagem sobre os incautos que partiam à louca com uma mão à frente e outra atrás assanhados pela tentação de uma fortuna fácil, mas sem fazer ideia dos perigos e esforços de uma empresa como esta. Não estava disposto a partir a espinha trabalhando como um mouro, por isso viajava bem abastecido e levava trabalhadores de confiança, explicou à sua mulher, que esperava o segundo filho, mas que insistia em acompanhá-lo.
Paulina planeava viajar com duas amas, o seu cozinheiro, uma vaca e galinhas vivas para fornecer leite e ovos às crianças durante a travessia, mas por uma vez o seu marido manteve-se firme na sua negativa. A ideia de partir em semelhante odisseia com a família às costas entrava definitivamente no plano da loucura. A sua mulher perdera o siso.
- Como se chamava o capitão amigo de Mr. Todd? - interrompeu-o Paulina a meio da sua arenga, equilibrando uma chávena de chocolate sobre o seu ventre enorme, enquanto mordiscava um pastelinho de massa folhada com doce de leite, receita das freiras Clarissas.
- John Sommers, talvez?
- Refiro-me àquele que estava farto de navegar à vela e falava dos barcos a vapor.
- Esse mesmo.
Paulina ficou um bocado a pensar, levando pastelinhos à boca e sem prestar a menor atenção à lista de perigos invocada pelo seu marido. Tinha engordado e pouco restava da graciosa rapariga fugida de um convento com a cabeça rapada.
- Quanto tenho na minha conta em Londres? - perguntou por fim.
- Cinquenta mil libras. És uma senhora muito rica.
- Não é suficiente. Podes emprestar-me o dobro a um juro de dez por cento, amortizável em três anos?
- As coisas que te passam pela cabeça, mulher de Deus! Para que diabo queres tanto?
- Para um barco a vapor. O grande negócio não é o ouro, Feliciano, que no fundo não passa de caca amarela. O grande negócio são os mineiros.
Precisam de tudo na Califórnia e pagarão com dinheiro à vista. Dizem que os vapores navegam a direito, não têm de submeter-se aos caprichos do vento, são maiores e mais rápidos. Os veleiros são coisas do passado.
Feliciano continuou com os seus planos, mas a experiência ensinara-lhe a não desdenhar das premonições financeiras da sua mulher.
Durante várias noites não conseguiu dormir. Passeava-se com insónias pelos salões ostentosos da sua mansão, entre sacos de provisões, caixas de ferramentas, barris de pólvora e pilhas de armas para a viagem, medindo e pesando as palavras de Paulina. Quanto mais pensava, mais acertada lhe parecia a ideia de investir no transporte, mas antes de tomar uma decisão consultou o irmão, a quem estava associado em todos os negócios. O outro ouviu boquiaberto e quando Feliciano acabou de explicar o assunto, deu uma palmada na testa.
- Caramba, irmão! Como não nos lembrámos antes?
Entretanto Joaquín Andieta sonhava, como milhares de outros chilenos da sua idade e de qualquer condição, com sacos de ouro em pó e pepitas pelo chão. Vários conhecidos seus já tinham partido, até um dos seus companheiros da Livraria Santos Tornero, um jovem liberal que barafustava contra os ricos e que era o primeiro a denunciar a corrupção do dinheiro, mas que não conseguiu resistir à chamada e se foi embora sem se despedir de ninguém. A Califórnia representava para Joaquín a única oportunidade de sair da miséria, de tirar a mãe do cortiço e de procurar a cura para os seus pulmões doentes; de pespegar-se diante de Jeremy Sommers, com a cabeça erguida e os bolsos repletos, a pedir a mão de Eliza. Ouro... ouro ao seu alcance... Podia ver os sacos do metal em pó, as cestas de pepitas enormes, as notas nos bolsos, o palácio que mandaria construir; mais forte e com mais mármore do que o Club de la Unión, para tapar a boca aos familiares que tinham humilhado a mãe.
Via-se também saindo da Igreja da Matriz de braço dado com Eliza Sommers, os noivos mais felizes do planeta. Era apenas uma questão de atrever-se.
Que futuro lhe oferecia o Chile? No melhor dos casos envelheceria contando os produtos que passavam pelo escritório da Companhia Britânica de Importação e Exportação. Não tinha nada a perder; uma vez que de qualquer forma, nada tinha. A febre do ouro transtornou-o, perdeu o apetite e não conseguia dormir; andava em brasas e com olhos de louco esquadrinhando o mar. O seu amigo livreiro emprestou-lhe mapas e livros sobre a Califórnia e um folheto sobre a forma de lavar o metal, que leu avidamente, enquanto fazia contas desesperadas tentando financiar a viagem. As notícias dos jornais não podiam ser mais tentadoras:
"Numa parte das minas chamada drydiens não são necessários outros utensílios para além de uma faca vulgar para soltar o metal das rochas.
Noutras está já separado e usa-se apenas uma maquinaria bastante simples, que consiste numa bateia ordinária de madeira, de fundo redondo e com uns dez pés de comprimento e dois de largura na parte superior. Não sendo necessário capital, a concorrência no trabalho é grande, e homens que mal conseguiam ganhar o indispensável para um mês, têm agora milhares de pesos do metal precioso."
Quando Andieta mencionou a possibilidade de embarcar rumo ao norte, a sua mãe reagiu tão mal como Eliza. Sem nunca se terem visto, as duas mulheres disseram exactamente o mesmo: se fores embora, Joaquín, eu morro. Ambas tentaram fazer-lhe ver os inumeráveis perigos de semelhante empresa e juraram-lhe que preferiam mil vezes a pobreza irremediável ao seu lado, do que uma fortuna ilusória com o risco de o perder para sempre. A mãe garantiu-lhe que não sairia do cortiço mesmo que fosse milionária, porque era ali que tinha as suas amizades e não tinha para onde ir neste mundo. E que, quanto aos seus pulmões, não havia nada a fazer; disse, apenas esperar que acabassem de rebentar. Por outro lado, Eliza propôs que fugissem, no caso de não os deixarem casar; mas ele não as ouvia, perdido nos seus desvarios, certo de que não teria outra oportunidade como essa e que deixá-la escapar era uma cobardia imperdoável. Pôs ao serviço da sua nova mania a mesma intensidade utilizada anteriormente na propagação das ideias liberais, mas faltavam-lhe os meios para realizar os seus planos. Não podia cumprir o seu destino sem uma certa soma para a passagem e para se apetrechar com o indispensável. Apresentou-se no banco a pedir um pequeno empréstimo, mas não tinha garantias e, vendo o seu aspecto de pobre diabo, rejeitaram-no friamente. Pela primeira vez pensou em recorrer aos familiares da sua mãe, com quem até então nunca trocara uma palavra, mas era demasiado orgulhoso para isso. A visão de um futuro deslumbrante não o deixava em paz, a custo conseguia fazer o seu trabalho, as longas horas no escritório converteram-se num castigo. Ficava com a caneta no ar olhando sem ver a página em branco, enquanto repetia de cor os nomes dos navios que o podiam levar ao norte. As noites passavam-se entre sonhos tempestuosos e insónias agitadas, amanhecia com o corpo esgotado e a imaginação a ferver. Cometia erros de principiante, enquanto em seu redor a exaltação atingia níveis de histeria. Todos queriam partir e aqueles que não podiam ir pessoalmente, habilitavam empresas, investiam em companhias formadas à pressa ou enviavam, em seu lugar, um representante de confiança com o qual dividiam os lucros. Os solteiros foram os primeiros a zarpar; rapidamente os casados deixaram os filhos e embarcaram também sem olhar para trás, apesar das histórias truculentas de doenças desconhecidas, acidentes desastrosos e crimes brutais. Os homens mais pacíficos estavam dispostos a enfrentar os riscos de tiros e punhaladas, os mais prudentes abandonavam a segurança conseguida em anos de esforço e lançavam-se à aventura com a sua bagagem de delírios. Alguns gastavam as suas poupanças em passagens, outros custeavam a viagem empregando-se como marinheiros ou empenhando o seu trabalho futuro, mas eram tantos os candidatos, que Joaquín Andieta não encontrou lugar em nenhum barco, apesar de indagar dia após dia no cais.
Em Dezembro não aguentou mais. Ao copiar o conteúdo de uma carga chegada ao porto, como fazia meticulosamente todos os dias, alterou as cifras no livro de registo e destruiu os documentos originais de desembarque.
Assim, por artes de ilusionismo contabilístico, fez desaparecer vários caixotes com revólveres e balas provenientes de Nova Iorque. Durante três noites seguidas conseguiu iludir a vigilância da guarda, forçar as fechaduras e meter-se no armazém da Companhia Britânica de Importação e Exportação para roubar o conteúdo desses caixotes. Teve de o fazer em várias viagens, porque a carga era pesada. Primeiro levou as armas nos bolsos e outras amarradas às pernas e aos braços, sob a roupa; depois levou as balas em sacos. Esteve várias vezes prestes a ser visto pelos guardas-nocturnos que faziam a ronda à noite, mas a sorte acompanhou-o e conseguiu sempre escapulir-se a tempo. Sabia que dispunha de algumas semanas antes de alguém reclamar os caixotes e de o roubo ser descoberto; supunha que seria também bastante fácil seguir o fio dos documentos ausentes e as cifras alteradas até dar com o culpado, mas nessa altura esperava estar já em alto mar. E quando tivesse o seu próprio tesouro, devolveria até ao último centavo com juros, porque a única razão que o levara a cometer tal malfeitoria, repetia para si próprio sem parar; fora o desespero. Tratava-se de um assunto de vida ou de morte: vida, como ele a entendia, estava na Califórnia; ficar preso no Chile equivalia a uma morte lenta. Vendeu uma parte do seu saque a um preço insignificante nos bairros baixos do porto e a outra entre os seus amigos da Livraria Santos Tornero, depois de Os fazer jurar que guardavam segredo. Aqueles fervorosos idealistas nunca tinham tido uma arma na mão, mas há anos que se preparavam teoricamente para uma utópica revolta contra o governo conservador. Teria sido uma traição às suas próprias intenções não comprar os revólveres no mercado negro, sobretudo tendo em conta a bagatela de preço. Joaquín Andieta guardou dois para si, decidido a usá-los para abrir caminho, mas aos seus camaradas nada disse sobre os seus planos de partir. Nessa noite, no quarto das traseiras da livraria, também ele levou a mão direita ao coração para jurar, em nome da pátria, que daria a sua vida pela democracia e pela justiça. Na manhã seguinte, comprou uma passagem de terceira classe na primeira escuna que zarpava por esses dias e alguns sacos de farinha torrada, feijão, arroz, açúcar, carne seca de cavalo e fatias de toucinho, que distribuídas com avareza poderiam sustentá-lo precariamente durante a travessia. Os poucos reais que lhe sobraram amarrou-os à cintura com uma faixa apertada.
Na noite de 22 de Dezembro despediu-se de Eliza e da sua mãe e no dia seguinte partiu rumo à Califórnia.
Mama Fresia descobriu as cartas de amor por casualidade, quando estava a apanhar cebolas na sua pequena horta do pátio e a forquilha bateu na caixa de lata. Não sabia ler; mas bastou-lhe uma vista de olhos para compreender do que se tratava. Esteve tentada a entregá-las a Miss Rose, porque bastava tê-las na mão para sentir a ameaça, poderia jurar que o pacote atado com uma fita latia como um coração vivo, mas o carinho por Eliza pôde mais do que a prudência e, em vez de recorrer à sua patroa, colocou as cartas de volta na caixa de bolachas, escondeu-a sob a sua larga saia preta e foi até ao quarto da rapariga, suspirando. Encontrou Eliza sentada numa cadeira, com as costas direitas e as mãos sobre a saia como se estivesse na missa, olhando o mar da janela, tão abatida que o ar à sua volta parecia espesso e cheio de premonições. Colocou a caixa sobre os joelhos da jovem e ficou em vão à espera de uma explicação.
- Esse homem é um demónio. Só te trará desgraça - disse-lhe finalmente.
- As desgraças já começaram. Partiu há seis semanas para a Califórnia e a mim não me chegaram as regras.
Mama Fresia sentou-se no chão com as pernas cruzadas, como fazia sempre que já não se aguentava nas pernas, e começou a balançar o tronco para a frente e para trás, gemendo suavemente.
- Cala-te, mãezinha, que Miss Rose pode ouvir-nos - suplicou Eliza.
- Um filho da rua! Um bastardo! O que vamos fazer, filhinha? O que vamos fazer? - continuou a mulher a lamentar-se.
- Vou casar-me com ele.
- E como, se o homem foi embora?
- Terei que ir procurá-lo.
- Ai, Menino Jesus bendito! Enlouqueceste? Eu dou-te um remédio e em poucos dias ficas como nova.
A mulher preparou uma infusão à base de borragem e uma unção de excremento de galinha e cerveja preta, que deu a beber a Eliza três vezes ao dia; além disso fê-la tomar banhos de assento com enxofre e colocou-lhe compressas de mostarda no ventre. O resultado foi ela ficar amarela e andar empapada numa transpiração pegajosa que cheirava a gardénias podres, mas uma semana depois ainda não se verificara qualquer sintoma de aborto. Mama Fresia determinou que a criatura era macho e que, sem dúvida, estava amaldiçoada, por isso se aferrava daquela maneira às tripas da mãe. Este descalabro ultrapassava-a, era assunto do Diabo e só a sua mestra, a machi, poderia vencer tão poderoso infortúnio. Nessa mesma tarde pediu licença aos seus patrões para sair e uma vez mais fez, a pé, o penoso caminho até ao desfiladeiro, para aparecer cabisbaixa diante da velha feiticeira cega. Levou-lhe de presente duas formas de doce de marmelo e um pato estufado com estragão.
A machi ouviu os últimos acontecimentos concordando com ar enfadado, como se conhecesse de antemão o sucedido.
- Já disse, a obstinação é um mal muito forte: agarra o cérebro e parte o coração. Obstinações há muitas, mas a pior é a de amor.
- Pode fazer alguma coisa à minha menina para ela deitar fora o bastardo?
- Poder, posso. Mas isso não a cura. Terá de seguir o homem dela, mais nada.
- Foi para muito longe procurar ouro.
- Depois do amor, a obstinação mais grave é a do ouro - sentenciou a machi.
Mama Fresia compreendeu que seria impossível tirar Eliza de casa para a levar ao desfiladeiro da machi, fazer-lhe um aborto e regressar com ela a casa, sem Miss Rose ficar a saber. A feiticeira tinha cem anos e não saía da sua casa miserável há cinquenta, de modo que também não se podia deslocar à residência dos Sommers para tratar da jovem. Não havia outra solução senão fazê-lo ela própria. A machi entregou-lhe um pau fino de colihue e uma pomada escura e fétida, depois explicou-lhe em pormenor como untar a cana nessa poção e introduzi-la em Eliza. A seguir ensinou-lhe as palavras do encantamento que iriam eliminar a criança do Diabo e ao mesmo tempo proteger a vida da mãe. Esta operação devia ser efectuada na noite de sexta-feira, único dia da semana autorizado para isso, advertiu-lhe. Mama Fresia regressou muito tarde e exausta, com o colihue e a pomada debaixo da capa.
- Reza, menina, porque dentro de duas noites te darei um remédio - notificou a Eliza quando lhe levou o chocolate do pequeno almoço à cama.
O capitão John Sommers desembarcou em Valparaíso no dia designado pela machi. Era a segunda sexta-feira de Fevereiro de um Verão abundante. A baía fervilhava de actividade com meia centena de barcos ancorados e outros em alto mar, aguardando vez para se aproximarem de terra. Como sempre, Jeremy, Rose e Eliza foram receber ao cais esse tio admirável, que chegava carregado de novidades e de ofertas. A burguesia, que se encontrava para visitar os barcos e comprar contrabando, misturava-se com homens do mar, viajantes, estivadores e empregados da alfândega, enquanto as prostitutas, situadas a alguma distância, faziam as suas contas.
Nos últimos meses, desde que a notícia do ouro espicaçara a cobiça dos homens em ambos os lados do mundo, os navios entravam e saíam a um ritmo alucinante e os bordéis não davam vazão. As mulheres mais intrépidas, no entanto, não se conformavam com a maré de sorte do negócio em Valparaíso e calculavam quanto poderiam ganhar a mais na Califórnia, onde havia duzentos homens para cada mulher; como se ouvia dizer. No porto as pessoas tropeçavam com carroças, animais e fardos; falava-se várias línguas, soavam as sirenas dos barcos e os apitos dos guardas. Miss Rose, com um lenço perfumado de baunilha no nariz, observava os passageiros dos botes, à procura do seu irmão predilecto, enquanto Eliza aspirava o ar em sorvos rápidos, tentando separar e identificar os cheiros. O fedor do peixe em grandes cestos ao sol misturava-se com o pivete a excremento das bestas de carga e suor humano. Foi a primeira a ver o capitão Sommers e sentiu um alívio tão grande, que por pouco começava a chorar. Esperara-o durante vários meses, certa de que só ele poderia entender a angústia do seu amor contrariado. Não dissera uma palavra sobre Joaquín Andieta a Miss Rose e muito menos a Jeremy Sommers, mas tinha a certeza de que o seu tio navegante, a quem nada podia surpreender ou assustar, iria ajudá-la.
Mal o capitão pôs os pés em terra firme, Eliza e Miss Rose saltaram-lhe para cima alvoroçadas; ele agarrou-as a ambas pela cintura com os seus braços fortes de corsário, levantou-as ao mesmo tempo e começou a girar como um pião por entre os gritos de júbilo de Miss Rose e de protesto de Eliza, que estava quase a vomitar. Jeremy Sommers cumprimentou-o com um aperto de mão, perguntando a si próprio como era possível que o seu irmão não tivesse mudado nada nos últimos vinte anos, continuando a ser o mesmo doidivanas.
- O que se passa, garota? Tens muito má cara - disse o capitão observando Eliza.
- Comi fruta verde, tio - explicou ela apoiando-se nele para não cair de enjoo.
- Sei que não vieram ao porto esperar-me. O que vocês querem é comprar perfumes, não é verdade? Já lhes digo quem tem os melhores, trazidos do coração de Paris.
Nesse momento um forasteiro passou ao seu lado e bateu-lhe acidentalmente com uma mala que levava ao ombro. John Sommers voltou-se indignado, mas ao reconhecê-lo lançou uma das suas características maldições em tom de troça e deteve-o por um braço.
- Anda cá, chinês, para te apresentar a minha família - chamou-o cordialmente.
Eliza observou-o abertamente, porque nunca tinha visto um asiático de perto e porque, finalmente, tinha diante dos seus olhos um habitante da China, esse país fabuloso que figurava em muitas das histórias do seu tio.
Tratava-se de um homem de idade indefinida e para o alto, comparado com os chilenos, embora junto do corpulento capitão inglês parecesse uma criança. Caminhava sem graça, tinha o rosto liso, o corpo magro de um rapaz e uma expressão antiga nos seus olhos rasgados. A sua parcimónia doutoral contrastava com o riso infantil, que lhe brotou do fundo do peito quando Sommers se lhe dirigiu. Vestia umas calças à altura dos tornozelos, uma blusa solta de tecido grosseiro e uma faixa na cintura, onde levava uma grande faca; estava calçado com uns simples sapatos de lona, trazia um velho chapéu de palha e das costas pendia-lhe uma longa trança.
Cumprimentou inclinando a cabeça várias vezes, sem largar a mala e sem olhar para a cara de ninguém. Miss Rose e Jeremy Sommers, desconcertados pela familiaridade com que o irmão tratava uma pessoa de uma classe indubitavelmente inferior, não souberam como agir e responderam com um gesto breve e seco. Perante o horror de Miss Rose, Eliza estendeu-lhe a mão, mas o homem fingiu não a ver.
- Este é Tao Chi'en, o pior cozinheiro que tive, mas que sabe curar quase todas as doenças, por isso não o lancei ainda borda fora - troçou o capitão.
Tao Chi'en repetiu uma nova série de inclinações, riu-se novamente sem razão aparente e a seguir afastou-se retrocedendo. Eliza perguntou a si própria se compreenderia o inglês. Nas costas das duas mulheres, John Sommers sussurrou ao irmão que o chinês poderia vender-lhe ópio da melhor qualidade e pós de corno de rinoceronte para a impotência, no caso de algum dia decidir terminar com o mau costume do celibato. Escondendo-se atrás do leque, Eliza ouviu intrigada.
Em casa nessa tarde, à hora do chá, o capitão distribuiu os presentes que trouxera: creme de barbear inglês, um jogo de tesouras de aço de Toledo e havanos para o irmão, pentes de concha de tartaruga e um xaile de Manila para Rose, e, como sempre, uma jóia para o enxoval de Eliza. Desta vez tratava-se de um colar de pérolas, que a garota agradeceu comovida e guardou no seu guarda-jóias, junto das outras prendas que recebera. Graças à teimosia de Miss Rose e à generosidade desse tio, o baú do casamento ia-se enchendo de tesouros.
- O costume do enxoval parece-me estúpido, sobretudo quando não se tem um noivo à mão - sorriu o capitão. - Ou haverá algum no horizonte?
A rapariga trocou um olhar de terror com Mama Fresia, que entrara nesse momento com a bandeja do chá. O capitão não disse nada, mas perguntou a si próprio como poderia a sua irmã Rose não ter reparado nas mudanças de Eliza. De pouco servia a intuição feminina, pelos vistos.
O resto da tarde passou-se a ouvir os relatos maravilhosos do capitão sobre a Califórnia, apesar de não ter andado por esses lados depois da fantástica descoberta, e de poder dizer apenas que São Francisco era um casario miserável, mas situado na baía mais bonita do mundo. A algazarra do ouro era o único assunto na Europa e nos Estados Unidos, e mesmo às longínquas terras da Ásia tinha chegado a notícia. O seu barco vinha repleto de passageiros rumo à Califórnia, a maioria desconhecedores das noções mais elementares de mineração, muitos deles sem nunca ter visto ouro na vida, nem sequer num dente. Não havia formas cómodas ou rápidas de chegar a São Francisco, a navegação durava meses nas mais precárias condições, explicou o capitão, mas por terra através do continente americano, desafiando a imensidão da paisagem e a agressão dos índios, a viagem demorava mais e havia menos probabilidades de salvar a vida. Aqueles que se aventuravam de barco até ao Panamá, atravessavam o istmo em padiolas por rios infestados de animais, a selva de mula até chegar à costa do Pacífico onde apanhavam outro barco para o norte. Tinham de suportar um calor infernal, répteis imundos, mosquitos, epidemias de cólera e febre amarela, além da incomparável maldade humana. Os viajantes que sobreviviam ilesos às quedas das cavalgaduras nos precipícios e aos perigos dos pântanos, eram por outro lado vítimas de bandidos que os despojavam dos seus pertences, ou de mercenários que lhes cobravam uma fortuna para os levar a São Francisco, amontoados como gado em navios desconjuntados.
- É muito grande a Califórnia? - perguntou Eliza, tentando que a sua voz não traísse a ansiedade do seu coração.
- Traz-me o mapa para te mostrar. É muito maior do que o Chile.
- E como se chega até ao ouro?
- Dizem que o há por toda a parte...
- Mas se alguém quisesse, por exemplo, encontrar uma pessoa na Califórnia...
- Isso seria bem difícil - respondeu o capitão estudando a expressão de Eliza com curiosidade.
- Vais para lá na tua próxima viagem, tio?
- Tenho uma oferta tentadora e acho que a aceitarei. Uns investidores chilenos querem estabelecer um serviço regular de carga e passageiros para a Califórnia. Necessitam de um capitão para o seu barco a vapor.
- Então ver-te-emos mais amiúde, John! - exclamou Rose.
- Tu não tens experiência em vapores - comentou Jeremy.
- Não, mas conheço o mar melhor do que ninguém.
Na noite da sexta-feira indicada, Eliza esperou que a casa estivesse em silêncio para ir até à casinha do último pátio, ao encontro com Mama Fresia. Saiu da cama e desceu descalça, vestida apenas com uma camisa de noite de cambraia. Não fazia ideia do tipo de remédio que iria receber, mas tinha a certeza de que iria passar um mau bocado, pela sua experiência todos os medicamentos eram desagradáveis, mas os da índia eram, além disso, asquerosos. "Não te preocupes, filhinha, vou dar-te tanta aguardente que quando acordares da bebedeira nem te vais lembrar da dor. Isso sim, vamos precisar de muitos panos para estancar o sangue", dissera-lhe a mulher. Eliza fizera amiúde esse mesmo caminho, às escuras através da casa, para esperar o seu amante e não necessitava de tomar precauções, mas nessa noite ia muito devagar, demorando-se, desejando que viesse um daqueles terramotos chilenos capazes de deitar tudo por terra para ter um bom pretexto de faltar ao encontro com Mama Fresia. Sentiu os pés gelados e um tremor percorreu-lhe as costas. Não soube se era frio, medo do que iria acontecer ou a última advertência da sua consciência. Desde a primeira suspeita de gravidez, sentiu a voz chamando-a. Era a voz da criança no fundo do seu ventre, exigindo-lhe o seu direito a viver, tinha a certeza. Tentava não a ouvir e não pensar, estava presa e mal se começasse a notar o seu estado, não haveria esperança ou perdão para ela. Ninguém iria entender a sua falta, não haveria hipótese alguma de recuperar a honra perdida. Nem as rezas nem as velas de Mama Fresia impediriam a desgraça, o seu amante não daria meia volta a meio do caminho para regressar de súbito e casar-se com ela antes da gravidez ser evidente. Já era tarde para isso. Aterrorizava-a a ideia de acabar como a mãe de Joaquín, marcada por um estigma infamante, expulsa da sua família e vivendo na pobreza e na solidão com um filho ilegítimo, não conseguiria resistir ao repúdio, preferia morrer de uma vez por todas. E podia de facto morrer nesta mesma noite, às mãos da boa mulher que a criou e que a amava mais do que ninguém neste mundo.
A família retirou-se cedo, mas o capitão e Miss Rose estiveram fechados na salinha da costura cochichando durante horas. Em cada viagem John Sommers trazia livros para a irmã e, ao partir, levava pacotes misteriosos que, Eliza desconfiava, continham os escritos de Miss Rose. Vira-a embrulhando cuidadosamente os seus cadernos, os mesmos que enchia com a sua apertada caligrafia nas tardes ociosas. Por respeito ou por uma espécie de estranho pudor, ninguém os mencionava, tal como não se comentavam as suas pálidas aguarelas. A escrita e a pintura tratavam-se como desvios menores, nada que envergonhasse realmente, mas também nada de que se fizesse alarde. As artes culinárias de Eliza eram recebidas com a mesma indiferença pelos Sommers, que saboreavam os seus pratos em silêncio e mudavam de assunto se as visitas os comentavam. As suas esforçadas execuções no piano recebiam, no entanto, um aplauso imerecido, embora servissem apenas para acompanhar apressadamente as canções alheias. Toda a sua vida Eliza vira a sua protectora escrever e nunca lhe perguntara o que escrevia, tal como nunca ouvira Jeremy ou John fazê-lo.
Sentia curiosidade em saber por que razão o seu tio levava sigilosamente os cadernos de Miss Rose, mas sem ninguém lhe ter dito, sabia que esse era um dos segredos fundamentais nos quais se apoiava o equilíbrio da família e violá-lo poderia fazer desmoronar, de um sopro, o castelo de cartas onde viviam. Há já bastante tempo que Jeremy e Rose dormiam nos seus quartos e supunha que o seu tio John saíra a cavalo depois do jantar. Conhecendo os hábitos do capitão, a rapariga imaginou-o na pândega com algumas das suas amigas libertinas, as mesmas que o cumprimentavam na rua quando Miss Rose não ia com eles. Sabia que dançavam e bebiam, mas como ouvira falar de prostitutas apenas em sussurros, a ideia de algo mais sórdido não lhe ocorreu. A possibilidade de fazer por dinheiro ou desporto o mesmo que ela fizera com Joaquín Andieta por amor, estava longe do seu espírito. Pelos seus cálculos, o seu tio não voltaria até bem entrada a manhã do dia seguinte, por isso apanhou um susto enorme quando, ao chegar ao rés-do-chão, alguém a agarrou por um braço na escuridão. Sentiu o calor de um corpo grande contra o seu, um hálito a licor e a tabaco na cara e identificou de imediato o seu tio. Tentou libertar-se enquanto inventava a correr alguma explicação para estar ali de camisa de noite a essa hora, mas o capitão levou-a com firmeza para a biblioteca, iluminada apenas por alguns raios de lua que entravam pela janela. Obrigou-a a sentar-se no cadeirão de couro inglês de Jeremy, enquanto procurava fósforos para acender o candeeiro.
- Bom, Eliza, agora vais dizer-me que diabo se passa contigo - ordenou-lhe num tom de voz que nunca utilizara com ela.
Num clarão de lucidez, Eliza adivinhou que o capitão não seria seu aliado, conforme esperara. A tolerância de que fazia alarde não serviria neste caso: se do bom nome da família se tratasse, a sua lealdade estaria com os irmãos. Muda, a jovem susteve o olhar, desafiando-o.
- Rose diz que andas de amores com um mentecapto de sapatos rotos, é verdade?
- Vi-o duas vezes, tio John. E isso há meses. Nem sequer sei o nome dele.
- Mas não o esqueceste, não é verdade? O primeiro amor é como a varíola, deixa marcas indeléveis. Viste-o a sós?
- Não.
- Não acredito. Achas que sou tonto? Qualquer um pode ver como mudaste, Eliza.
- Estou doente, tio. Comi fruta verde e tenho os intestinos embrulhados, é tudo. Ia agora justamente à latrina.
- Tens olhos de cadela no cio!
- Por que me insulta, tio?
- Desculpa-me, filhinha. Não vês que te amo muito e estou preocupado? Não posso permitir que arruines a tua vida. Rose e eu temos um plano excelente... Gostarias de ir a Inglaterra? Posso fazer com que as duas embarquem dentro de um mês, isso dá-lhes tempo para comprar o que necessitam para a viagem.
- Inglaterra?
- Viajarão em primeira classe, como rainhas, e em Londres instalam-se numa pensão encantadora a poucos quarteirões do Palácio de Buckingham.
Eliza compreendeu que os irmãos já tinham decidido a sua sorte. A última coisa que desejava era partir na direcção contrária à de Joaquín, pondo dois oceanos de distância entre eles.
- Obrigada, tio. Adoraria conhecer a Inglaterra - disse com a maior doçura que conseguiu arranjar.
O capitão serviu-se de um brandy atrás do outro, acendeu o seu cachimbo e passou as duas horas seguintes enumerando as vantagens da vida em Londres, onde uma menina como ela podia frequentar a melhor sociedade, ir a bailes, ao teatro e a concertos, comprar os vestidos mais bonitos e realizar um bom casamento. Já estava em idade de o fazer. E não gostaria de ir também a Paris ou a Itália? Ninguém devia morrer sem ter visto Veneza e Florença. Ele encarregar-se-ia de satisfazer os seus caprichos, não o fizera sempre? O mundo estava cheio de homens bonitos, interessantes e de boa posição, poderia verificar por si própria mal saísse do buraco onde estava metida neste porto esquecido. Valparaíso não era lugar para uma jovem tão bonita e bem educada como ela. Não tinha culpa de se apaixonar pelo primeiro que se atravessava pela frente, vivia fechada. E quanto a esse rapaz, como se chamava? Era empregado de Jeremy, não é verdade? Depressa o esqueceria. O amor, garantiu, morre inexoravelmente pela sua própria combustão ou se arranca pela raiz devido à distância.
Ninguém melhor do que ele para a aconselhar, assim como assim, era um perito em distâncias e em amores convertidos em cinzas.
- Não sei do que me está a falar, tio. Miss Rose inventou uma novela romântica a partir de um copo de sumo de laranja. Veio um tipo deixar uns fardos, ofereci-lhe um refresco, ele bebeu-o e depois foi-se embora. É tudo. Não aconteceu nada e não voltei a vê-lo.
- Se é como dizes, tens sorte: não terás de arrancar essa fantasia da cabeça.
John Sommers continuou a beber e a falar até de madrugada, enquanto Eliza, encolhida no cadeirão de couro, se entregava ao sono, pensando que as suas preces tinham sido ouvidas no céu, afinal de contas.
Não foi um terramoto providencial o que a salvou do remédio horrível de Mama Fresia: foi o seu tio. Na casinhota do pátio, a índia esperou toda a noite.
A despedida
No sábado à tarde John Sommers convidou a sua irmã Rose a visitar o navio dos Rodriguez de Santa Cruz. Se tudo corresse bem nas negociações desses dias, caber-lhe-ia capitaneá-lo, cumprindo por fim o seu sonho de navegar a vapor. Mais tarde Paulina recebeu-os no salão do Hotel Inglês, onde estava hospedada. Tinha viajado do norte para pôr a andar o seu projecto, enquanto o seu marido estava na Califórnia há vários meses.
Aproveitava o tráfego contínuo de barcos de ida e volta para comunicar com ele mediante uma correspondência vigorosa, na qual as declarações de afecto conjugal iam tecidas com planos comerciais. Paulina escolheu John Sommers para integrar a sua empresa apenas por intuição. Lembrava-se vagamente de que era irmão de Jeremy e Rose Sommers, uns gringos convidados pelo seu pai para a fazenda nalgumas ocasiões, mas vira-o só uma vez e tinha trocado com ele apenas algumas palavras de cortesia. A sua única referência era a amizade comum com Jacob Todd, mas nas últimas semanas tinha feito indagações e estava bastante satisfeita com o que ouvira.
O capitão gozava de uma reputação sólida entre as gentes do mar e nos escritórios comerciais. Podia-se confiar na sua experiência e na sua palavra, mais do que o habitual nesses dias de demência colectiva, quando qualquer um podia alugar um barco, formar uma companhia de aventureiros e zarpar.
Em geral eram uns peralvilhos e os barcos estavam meio desconjuntados, mas isso não tinha grande importância, porque ao chegar à Califórnia as sociedades feneciam, os barcos eram abandonados e todos disparavam em direcção às jazidas auríferas. Paulina, no entanto, tinha uma visão a longo prazo. Para começar, não era obrigada a acatar exigências de estranhos, pois os seus únicos sócios eram o marido e o cunhado, e depois porque a maior parte do capital lhe pertencia, de modo que podia tomar as suas decisões com total liberdade. O seu vapor, que ela baptizou de Fortuna, embora fosse pequeno e com vários anos de pancada no mar, estava em perfeitas condições. Estava disposta a pagar bem à tripulação para não desertar na patuscada do ouro, mas achava que, sem a mão de ferro de um bom capitão, não haveria salário capaz de manter a disciplina a bordo. A ideia do seu marido e do seu cunhado consistia em exportar ferramentas de mineração, madeira para casas, roupas de trabalho, utensílios domésticos, carne seca, cereais, feijão e outros produtos não perecíveis, mas assim que ela pôs os pés em Valparaíso compreendeu que muitos outros tinham tido a mesma ideia e que a competição seria feroz. Deitou uma vista de olhos à sua volta e viu o escândalo de verduras e de frutas daquele Verão generoso. Havia tanta, que não se conseguia vender. As hortaliças cresciam nos pátios e as árvores partiam-se sob o peso da fruta, poucos estavam dispostos a pagar pelo que conseguiam grátis. Pensou na herdade do seu pai, onde os produtos apodreciam no chão porque ninguém tinha interesse em colhê-los. Se conseguisse levá-los para a Califórnia, seriam mais valiosos do que o próprio ouro, deduziu. Produtos frescos, vinho chileno, medicamentos, ovos, roupa fina, instrumentos musicais e, porque não, espectáculos de teatro, operetas, zarzuelas. São Francisco recebia centenas de imigrantes diariamente. Para já tratava-se de aventureiros e de bandidos, mas sem dúvida chegariam colonos do outro lado dos Estados Unidos, fazendeiros honestos, advogados, médicos, professores e todo o tipo de gente decente disposta a estabelecer-se com as suas famílias. Onde há mulheres, há civilização, e mal esta comece em São Francisco, o meu vapor estará ali com tudo o que for necessário, decidiu.
Paulina recebeu o capitão John Sommers e a sua irmã Rose à hora do chá, quando o calor do meio-dia já tinha amainado um pouco e começava a soprar uma brisa fresca do mar. Estava vestida com um luxo excessivo para a sóbria sociedade do porto, vestida dos pés à cabeça em musselina de renda amarela, com uma coroa de caracóis sobre as orelhas e mais jóias do que as aceitáveis para essa hora do dia. O seu filho de dois anos esperneava ao colo de uma ama fardada e um cãozinho peludo recebia aos seus pés pedaços de bolo que ela lhe dava no focinho. A primeira meia hora passou-se em apresentações, a tomar chá e a recordar Jacob Todd.
- O que aconteceu a esse bom amigo? - quis saber Paulina, que não esqueceria nunca a intervenção do extravagante inglês nos seus amores com Feliciano.
- Não sei dele há um bom tempo - informou-a o capitão.
- Partiu comigo para Inglaterra há uns dois anos. Ia bastante deprimido, mas o ar do mar fez-lhe bem e ao desembarcar tinha recuperado o seu bom humor. A última coisa que soube é que pensava formar uma colónia utópica.
- Uma quê? - exclamaram em uníssono Paulina e Miss Rose.
- Um grupo para viver fora da sociedade, com as suas próprias leis e governo, guiados por princípios de igualdade, amor livre e trabalho comunitário, parece-me. Pelo menos foi o que me explicou milhares de vezes durante a viagem.
- Está mais louco do que pensávamos - concluiu Miss Rose com alguma pena do seu fiel pretendente.
- As pessoas com ideias originais acabam sempre com fama de loucos - comentou Paulina. - Eu, sem ir mais longe, tenho uma ideia que gostaria de discutir consigo, capitão Sommers. Já conhece o Fortuna. Quanto tempo demora a ir a todo o vapor de Valparaíso ao golfo de Penas?
- Ao golfo de Penas? Mas isso fica a sul do sul.
- É verdade. Mais abaixo de Puerto Aisén.
- E o que vou eu fazer ali? Não há nada a não ser ilhas, bosques e chuva, senhora.
- Conhece esses lados?
- Sim, mas pensei que se tratava de ir para São Francisco...
- Prove estes pastelinhos de massa folhada, são uma delícia - ofereceu ela acariciando o cão.
Enquanto John e Rose Sommers conversavam com Paulina no salão do Hotel Inglês, Eliza percorria o bairro El Almendral com Mama Fresia. A essa hora começavam ajuntar-se os alunos e convidados para as reuniões de baile na academia e, excepcionalmente, Miss Rose deixara-a ir por algumas horas com a sua ama como chaperon. Habitualmente não lhe permitia aparecer na academia sem ela, mas o professor de dança não oferecia bebidas alcoólicas até depois do pôr do Sol, isso mantinha afastados os jovens turbulentos durante as primeiras horas da tarde. Eliza, decidida a aproveitar essa oportunidade única de sair sem Miss Rose, convenceu a índia a ajudá-la nos seus planos.
- Dá-me a tua bênção, mãezinha. Tenho de ir à Califórnia procurar Joaquín - pediu-lhe.
- Mas como irás, sozinha e grávida?! - exclamou a mulher com horror.
- Se não me ajudares, fá-lo-ei da mesma forma.
- Vou contar tudo a Miss Rose!
- Se o fizeres, mato-me. E depois virei assombrar-te pelo resto das tuas noites. Juro-te.- respondeu a rapariga com uma feroz determinação.
No dia anterior tinha visto um grupo de mulheres no porto negociando o seu embarque. Pelo seu aspecto, tão diferente daquelas com quem normalmente se cruzavam na rua, cobertas de Inverno e de Verão com mantos pretos, calculou que seriam as mesmas vadias com quem se divertia o seu tio John. "São rameiras, vão para a cama por dinheiro e vão parar com os cascos ao inferno", explicara-lhe Mama Fresia numa ocasião. Tinha captado algumas frases do capitão, que falava com Jeremy Sommers sobre as chilenas e as peruanas que partiam para a Califórnia planeando apoderar-se do ouro dos mineiros, mas não conseguia imaginar como se arranjariam para o fazer. Se aquelas mulheres conseguiam fazer a viagem sozinhas e sobreviver sem ajuda, ela também o podia fazer, decidiu.
Andava depressa, com o coração agitado e meia cara tapada com o leque, suando no calor de Dezembro. Levava as jóias do enxoval num pequeno saco de veludo. Os seus botins novos eram uma verdadeira tortura e o espartilho apertava-lhe a cintura, o fedor das valas abertas por onde corriam as águas usadas da cidade, aumentava as suas náuseas, mas caminhava tão direita como tinha aprendido nos anos em que equilibrava um livro sobre a cabeça e tocava piano com uma varinha metálica amarrada ás costas. Mama Fresia, gemendo e resmungando ladainhas na sua língua, mal conseguia segui-la com as suas varizes e a sua gordura. Onde vamos, filhinha, por Deus, mas Eliza não podia responder-lhe porque não sabia. De uma coisa tinha a certeza: não era apenas uma questão de empenhar as suas jóias e de comprar uma passagem para a Califórnia, porque não havia forma de o fazer sem que o seu tio John ficasse a par. Apesar das dezenas de barcos que chegavam diariamente, Valparaíso era uma cidade pequena e no porto todos conheciam o capitão John Sommers. Também não dispunha de documentos de identidade, muito menos de um passaporte, impossível de obter porque nesses dias a delegação dos Estados Unidos no Chile encerrara, devido a um assunto de amores contrariados entre o diplomata norte-americano e uma dama chilena. Eliza resolveu que a única forma de seguir Joaquín Andieta até à Califórnia seria embarcando como clandestina. O seu tio John contara-lhe que ás vezes, com a cumplicidade de algum tripulante, entravam no barco passageiros clandestinos. Talvez alguns conseguissem permanecer escondidos durante a travessia, outros morressem e os seus corpos fossem parar ao mar sem que ele se inteirasse, mas se os chegava a descobrir, castigava da mesma forma o clandestino e quem o tinha ajudado. Esse era um dos casos, dissera, em que exercia com maior rigor a sua inquestionável autoridade de capitão: no alto mar não havia outra lei ou justiça para além da sua.
A maior parte das transacções ilegais do porto, segundo o seu tio, eram levadas a cabo nas tabernas. Eliza nunca pisara tais lugares, mas viu uma figura feminina dirigir-se a um local próximo e reconheceu-a como uma das mulheres que estavam no cais no dia anterior arranjando forma de embarcar. Era uma jovem rechonchuda com duas tranças pretas caindo-lhe pelas costas, vestida com uma saia de algodão, blusa bordada e um lenço nos ombros. Eliza seguiu-a sem pensar duas vezes, enquanto Mama Fresia permanecia na rua recitando advertências: "Aí só entram as putas, filhinha, é pecado mortal." Empurrou a porta e precisou de alguns segundos para se habituar à escuridão e ao fedor a tabaco e a cerveja rançosa que impregnava o ar. O lugar estava repleto de homens e todos os olhos se voltaram para ver as duas mulheres. Por um instante reinou um silêncio expectante mas depressa começou um coro de assobiadelas e de comentários grosseiros. A outra avançou com passo aguerrido em direcção a uma mesa do fundo, dando palmadas à direita e à esquerda quando alguém tentava tocá-la, mas Eliza retrocedeu ás cegas, horrorizada, sem entender muito bem o que se passava nem a razão pela qual esses homens gritavam com ela. Ao chegar à porta esbarrou contra um cliente que ia a entrar. O indivíduo lançou uma exclamação noutra língua e conseguiu segurá-la antes de ela escorregar para o chão. Ao vê-la ficou desconcertado: Eliza, com o seu vestido virginal e o seu leque estava completamente deslocada. Ela olhou-o por sua vez e reconheceu imediatamente o cozinheiro chinês que o seu tio tinha cumprimentado no dia anterior.
- Tao Chi'en? - perguntou, grata pela sua boa memória.
O homem cumprimentou-a juntando as mãos diante da cara e inchando-se repetidamente, enquanto os assobios continuavam no bar. Dois marinheiros levantaram-se e aproximaram-se cambaleantes. Tao Chi'en indicou a porta a Eliza e saíram os dois.
- Miss Sommers? - inquiriu lá fora.
Eliza respondeu afirmativamente, mas não chegou a dizer mais nada porque foram interrompidos pelos dois marinheiros do bar, que apareceram à porta, visivelmente ébrios e à procura de briga.
- Como te atreves a incomodar esta maravilhosa menina, chinês de merda? - ameaçaram.
Tao Chi'en agachou a cabeça, deu meia volta e fez tenções de ir embora, mas um dos homens interceptou-o agarrando-o pela trança e puxando-a, enquanto o outro mastigava piropos atirando o seu hálito a vinho para a cara de Eliza. O chinês voltou-se com rapidez de felino e enfrentou o agressor. Tinha a sua faca descomunal na mão e a lâmina brilhava como um espelho ao sol de Verão. Mama Fresia deu um grito e sem pensar duas vezes deu um empurrão enorme ao marinheiro que estava mais perto, agarrou Eliza pelo braço e começou a correr pela rua abaixo, com uma agilidade insuspeitada em alguém com o seu peso. Correram vários quarteirões, afastando-se da zona vermelha, sem parar até chegarem à praceta de Santo Agostinho, onde Mama Fresia caiu a tremer no primeiro banco ao seu alcance.
- Ai, filhinha! Se os patrões sabem disto, matam-me! Vamos para casa agora mesmo...
- Ainda não fiz o que vim fazer, mãezinha. Tenho de voltar a essa taberna.
Mama Fresia cruzou os braços, negando-se terminantemente a sair dali, enquanto Eliza passeava com grandes passadas, tentando organizar um plano a meio da sua confusão. Não dispunha de muito tempo. As instruções de Miss Rose tinham sido muito claras: ás seis em ponto a carruagem iria recolhê-las diante da academia de baile para as levar de regresso a casa.
Devia agir rapidamente, decidiu, pois não teria outra oportunidade. Estavam neste pé quando viram o chinês avançar serenamente na sua direcção, com o seu passo vacilante e o seu sorriso imperturbável. Reiterou as vénias usuais em jeito de cumprimento e dirigiu-se imediatamente a Eliza em bom inglês para perguntar-lhe se a honorável filha do capitão John Sommers precisava de ajuda. Ela esclareceu que não era filha, mas sobrinha, e num súbito arrebatamento de confiança ou de desespero confessou-lhe que de facto precisava da sua ajuda, mas que se tratava de um assunto bastante privado.
- De alguma coisa que o capitão não pode saber?
- Que ninguém pode saber.
Tao Chi'en desculpou-se. O capitão era boa pessoa, disse, tinha sequestrado de forma errada para o embarcar no seu barco, é verdade, mas portara-se bem com ele e não pensava traí-lo. Abatida, Eliza deixou-se cair no banco com a cara entre as mãos, enquanto Mama Fresia os observava sem entender uma palavra de inglês, mas adivinhando as intenções. Por fim aproximou-se de Eliza e deu-lhe uns puxões no saco de veludo onde estavam as jóias do enxoval.
- Tu julgas que neste mundo alguém faz algo de graça, filhinha? - disse.
Eliza entendeu imediatamente. Secou as lágrimas e apontou o banco ao seu lado, convidando o homem a sentar-se. Meteu a mão no saco, tirou o colar de pérolas, que o seu tio John lhe oferecera no dia anterior, e colocou-os sobre os joelhos de Tao Chi'en.
- Pode esconder-me num barco? Preciso de ir para a Califórnia - explicou.
- Porquê? Não é lugar para mulheres, só para bandidos.
- Vou procurar uma coisa.
- Ouro?
- Mais valioso do que o ouro.
O homem ficou boquiaberto, pois nunca vira uma mulher capaz de chegar a estes extremos na vida real, só nos romances clássicos onde as heroínas morriam sempre no final.
- Com este colar pode comprar a sua passagem. Não necessita de viajar escondida - aconselhou-lhe Tao Chi'en, que não pensava complicar a sua vida violando a lei.
- Nenhum capitão me levará sem antes avisar a minha família.
A surpresa inicial de Tao Chi'en transformou-se em franco entupor: essa mulher pensava nada menos do que em desonrar a família e esperava que ele a ajudasse! Tinha-se-lhe metido um demónio no corpo, não havia dúvidas. Eliza voltou a meter a mão no saco, tirou um broche de ouro com turquesas e colocou-o sobre a perna do homem junto ao colar.
- O senhor alguma vez amou alguém mais do que à sua própria vida? - disse.
Tao Chi'en olhou-a nos olhos pela primeira vez desde que se conheceram e alguma coisa deve ter visto neles, porque agarrou no colar e escondeu-o debaixo da camisa, depois devolveu-lhe o broche.
Levantou-se, endireitou as calças de algodão e a faca de magarefe na faixa da cintura, e inclinou-se novamente cerimonioso.
- Já não trabalho para o capitão Sommers. Amanhã o bergantim Emilia zarpa para a Califórnia. Apareça esta noite ás dez e metê-la-ei a bordo.
- Como?
- Não sei. Depois vemos.
Tao Chi'en fez outra vénia cortês de despedida e foi embora tão sigilosa e rapidamente que pareceu ter-se esfumado. Eliza e Mama Fresia regressaram à academia de baile mesmo a tempo de encontrar o cocheiro, que as esperava há meia hora bebendo do seu cantil.
O Emilia era uma embarcação de origem francesa, que já fora esbelta e veloz, mas que sulcara muitos mares e perdera há séculos o ímpeto da juventude. Estava coberta de velhas cicatrizes marítimas, levava uma casca de moluscos incrustada nas suas ancas de matrona, as suas fatigadas articulações gemiam açoitadas pelas ondas e o seu velame manchado e milhares de vezes remendado parecia o último vestígio de antigas combinações. Zarpou de Valparaíso na manhã radiosa de 18 de Fevereiro de 1849, levando oitenta e sete passageiros do sexo masculino, cinco mulheres, seis vacas, oito porcos, três gatos, dezoito marinheiros, um capitão holandês, um piloto chileno e um cozinheiro chinês. Ia também Eliza, mas a única pessoa que sabia da sua existência a bordo era Tao Chi'en.
Os passageiros da primeira classe amontoavam-se na ponte da proa sem muita privacidade, mas bastante mais cómodos do que os restantes, distribuídos por cabinas minúsculas com quatro beliches cada uma, ou no chão das cobertas, depois de terem tirado à sorte para ver onde arrumavam os volumes que traziam. Uma cabina sob a linha de flutuação foi designada para as cinco chilenas que iam tentar fortuna na Califórnia. No porto do Callao subiriam duas peruanas, que se juntariam a elas sem melindres de maior, duas por beliche. O capitão Vicent Katz instruiu a marinhagem e os passageiros que não deviam ter o menor contacto social com as damas, pois não estava disposto a tolerar comércio indecente no seu barco e, aos seus olhos, era evidente que aquelas viajantes não eram das mais virtuosas, mas logicamente as suas ordens foram violadas vezes sem conta durante o trajecto. Os homens sentiam falta de companhia feminina e elas, humildes meretrizes atiradas à aventura, não tinham um único peso nos bolsos. As vacas e os porcos, bem amarrados em pequenos currais na segunda ponte, deviam fornecer leite fresco e carne aos navegantes, cuja dieta consistiria basicamente em feijões, biscoitos secos e pretos, carne seca salgada e o que conseguissem pescar. Para compensar tanta escassez, os passageiros de maiores recursos levavam as suas próprias vitualhas, sobretudo vinho e cigarros, mas a maior parte aguentava a fome. Dois dos gatos andavam soltos para manter afastadas as ratazanas, que de outro modo se reproduziriam sem controlo durante os dois meses da travessia. O terceiro viajava com Eliza.
No porão do Emilia amontoava-se a bagagem variada dos passageiros e o carregamento destinado ao comércio na Califórnia, organizados de forma a tirar o máximo partido do espaço limitado. Não se tocava em nada daquilo até ao destino final e ninguém entrava ali excepto o cozinheiro, o único com acesso autorizado aos alimentos secos, severamente racionados. Tao Chi'en guardava as chaves à cintura e respondia pessoalmente perante o capitão pelo conteúdo armazenado. Aí, no mais profundo e escuro do porão, num buraco de dois metros por dois, ia Eliza. As paredes e o tecto do seu tugúrio eram formados por baús e caixotes de mercadoria, a sua cama era um saco e não havia mais luz do que um coto de vela. Dispunha de uma tigela para a comida, de um jarro de água e de um bacio. Podia dar dois passos e esticar-se entre os fardos e podia chorar e gritar à sua vontade, porque o bater das ondas contra o barco abafava a sua voz. O único contacto com o mundo exterior era Tao Chi'en que descia quando podia com vários pretextos para a alimentar e despejar o bacio. Como única companhia contava com um gato, fechado no porão para controlar as ratazanas, mas nas semanas terríveis de navegação o infeliz animal foi enlouquecendo e por fim, penalizado, Tao Chi'en cortou-lhe o pescoço com a sua faca.
Eliza entrou no barco dentro de um saco ao ombro de um estivador, dos muitos que transportaram a carga e a bagagem em Valparaíso. Nunca soube como se arranjou Tao Chi'en para obter a cumplicidade do homem e ludibriar a vigilância do capitão e do piloto, que anotavam num livro tudo o que entrava. Tinha fugido poucas horas antes através de um complicado ardil, que incluía falsificar um convite escrito da família del Valle para visitar a sua fazenda por alguns dias. Não era uma ideia despropositada. Já noutras ocasiões as filhas de Agustín del Valle a tinham convidado para o campo e Miss Rose permitira que fosse, sempre acompanhada por Mama Fresia.
Despediu-se de Jeremy, de Miss Rose e do seu tio John com fingida leviandade, sentindo no peito o peso de um rochedo. Viu-os sentados à mesa do pequeno almoço lendo jornais ingleses, completamente inocentes dos seus planos, e uma dolorosa incerteza esteve quase a fazê-la desistir. Eram a sua única família, representavam segurança e bem-estar, mas ela atravessara a linha da decência e não era possível voltar atrás. Os Sommers tinham-na educado com normas estritas de bom comportamento e uma falta tão grave denegria o prestígio de todos. Com a sua fuga, a reputação da família ficava manchada, mas ao menos existiria a dúvida: sempre podiam dizer que ela tinha morrido. Qualquer que fosse a explicação que dessem ao mundo, não estaria ali para os ver sofrer a vergonha. A odisseia de partir em busca do seu amante parecia-lhe o único caminho possível, mas naquele momento de silenciosa despedida foi assaltada por uma tristeza tão grande, que esteve prestes a começar a chorar e a confessar tudo. Então a última imagem de Joaquín Andieta na noite da partida surgiu-lhe com uma precisão atroz para lhe recordar o seu dever de amor. Ajeitou algumas madeixas soltas do penteado, colocou o chapéu de palha italiana e saiu dizendo adeus com um gesto da mão.
Levava a mala preparada por Miss Rose com os seus melhores vestidos de Verão, alguns reais subtraídos do quarto de Jeremy Sommers e as jóias do seu enxoval. Teve a tentação de se apoderar também das de Miss Rose, mas no último instante derrotou-a o respeito por essa mulher que lhe tinha servido de mãe. No seu quarto, dentro do cofre vazio, deixou um bilhete breve agradecendo o muito que recebera e reiterando quanto os amava.
Agregou uma confissão do que levava consigo, para proteger os criados de qualquer suspeita. Mama Fresia colocara na mala as suas botas mais fortes, bem como os seus cadernos e o maço de cartas de amor de Joaquín Andieta. Levava também uma pesada manta de lã de Castela, oferta do seu tio John. Saíram sem levantar suspeitas. O cocheiro deixou-as na rua da família del Valle e sem esperar que lhes abrissem a porta, perdeu-se de vista. Mama Fresia e Eliza encaminharam-se para o porto para se encontrarem com Tao Chi'en no sitio e à hora combinados.
O homem estava à espera delas. Tirou a mala das mãos de Mama Fresia e disse a Eliza para o seguir. A rapariga e a sua ama abraçaram-se longamente. Tinham a certeza de que não voltariam a ver-se, mas nenhuma das duas derramou lágrimas.
- O que dirás a Miss Rose, mãezinha?
- Nada. Vou agora mesmo ter com a minha gente, ao sul, para onde nunca mais me encontrem.
- Obrigada, mãezinha. Lembrar-me-ei sempre de ti...
- E eu vou rezar para que tudo te corra bem, filhinha - foi a última coisa que Eliza ouviu dos lábios de Mama Fresia, antes de entrar numa casinhota de pescadores seguindo os passos do cozinheiro chinês.
No sombrio aposento de madeira sem janelas, cheirando a redes húmidas, cuja única ventilação provinha da porta, Tao Chi'en entregou a Eliza umas calças largas e uma blusa grande e bastante usada indicando-lhe que as vestisse. Não fez tenções de se retirar ou de se voltar por discrição. Eliza vacilou, nunca se despira diante de um homem, só de Joaquín Andieta, mas Tao Chi'en não se apercebeu da sua confusão, pois carecia do sentido da privacidade, o corpo e as suas funções eram-lhe naturais e considerava o pudor um inconveniente, mais do que uma virtude.
Ela compreendeu que o momento não era propício a escrúpulos, o barco partia nessa mesma manhã e os últimos botes estavam a levar a bagagem atrasada. Tirou o chapeuzinho de palha, desabotoou os botins de couro e o vestido, desapertou as fitas das suas combinações e, morta de vergonha, pediu ao chinês que a ajudasse a desapertar o espartilho. Á medida que as suas roupas de menina inglesa se amontoavam no chão, ia perdendo um a um os contactos com a realidade conhecida e entrando inexoravelmente na estranha ilusão que seria a sua vida nos próximos anos. Teve claramente a sensação de estar a começar outra história onde ela era protagonista e narradora em simultâneo.
O quarto filho
Tao Chi'en nem sempre tivera este nome. Na verdade não teve nome até aos onze anos, os seus pais eram demasiado pobres para se ocuparem de pormenores como esse: chamava-se simplesmente o Quarto Filho. Nascera nove anos antes de Eliza, numa aldeia da província de Kuangtung, a um dia e meio de marcha a pé da cidade de Cantão. Descendia de uma família de curandeiros. Por inúmeras gerações os homens do seu sangue transmitiram de pais para filhos conhecimentos sobre plantas medicinais, a arte de extrair maus humores, magia para espantar demónios e habilidade para regular a energia, qi. No ano em que nasceu o Quarto Filho, a família encontrava-se na maior miséria, fora perdendo a terra às mãos de prestamistas e jogadores profissionais. Os oficiais do Império celebravam impostos, ficavam com o dinheiro e depois aplicavam novos tributos para encobrir os seus roubos, além de cobrarem comissões ilegais e receberem subornos. A família do Quarto Filho, tal como a maioria dos camponeses, não conseguia pagar-lhes.
Se conseguiam salvar dos mandarins algumas moedas dos seus magros proventos, perdiam-nas de imediato ao jogo, uma das poucas diversões ao alcance dos pobres. Podia-se apostar em corridas de sapos e gafanhotos, lutas de baratas ou no fan tan, além de em muitos outros jogos populares. O Quarto Filho era uma criança alegre, que se ria por tudo e por nada, mas também tinha uma imensa capacidade de atenção e curiosidade em aprender.
Aos sete anos sabia que o talento de um bom curandeiro consiste em manter o equilíbrio do yin e do yang, aos nove conhecia as propriedades das plantas da região e podia ajudar o pai e os irmãos mais velhos na difícil preparação dos emplastros, pomadas, tónicos, bálsamos, xaropes, pós e pastilhas da farmacopeia camponesa. O seu pai e o Primeiro Filho viajavam a pé de aldeia em aldeia oferecendo tratamentos e remédios, enquanto os filhos Segundo e Terceiro cultivavam um pedaço de terra miserável, único capital da família. O Quarto Filho tinha a missão de colher plantas e gostava de o fazer, porque lhe permitia vaguear pelos arredores sem vigilância, inventando jogos e imitando as vozes dos pássaros. às vezes, se ainda tinha forças depois de cumprir com as intermináveis tarefas domésticas, a sua mãe acompanhava-o, porque devido à sua condição de mulher não podia trabalhar na terra sem provocar a troça dos vizinhos. Tinham sobrevivido com muitas dificuldades, cada vez mais endividados, até esse ano fatal de 1834, quando os piores demónios se abateram sobre a família. Primeiro uma panela de água a ferver caiu em cima da sua irmã mais nova, de apenas dois anos, escaldando-a dos pés à cabeça. Puseram-lhe clara de ovo sobre as queimaduras e trataram-na com as ervas indicadas para esses casos, mas em menos de três dias a criança cansou-se de sofrer e morreu. A mãe não se recompôs. Tinha perdido outros filhos na infância e cada um deles lhe deixara uma ferida na alma, mas o acidente da garota foi como o último grão de arroz que faz transbordar a taça. Começou a decair a olhos vistos, cada dia mais magra, a pele esverdeada e ossos estaladiços, sem que as beberagens do marido conseguissem deter o avanço inexorável da sua misteriosa doença, até que uma manhã a encontraram rígida, com um sorriso de alívio e os olhos em paz, porque se ia reunir por fim com os seus filhos mortos. Os ritos funerários foram muito simples, por se tratar de uma mulher. Não puderam contratar um monge nem tinham arroz para oferecer aos parentes e vizinhos durante a cerimónia, mas ao menos certificaram-se de que o seu espírito não se refugiava no tecto, no poço ou nos buracos das ratazanas, de onde poderia aparecer mais tarde para os assombrar. Sem a mãe, que com o seu esforço e com a sua paciência a toda a prova mantivera a família unida, foi impossível deter a calamidade. Foi um ano de tufões, más colheitas e muita fome, o vasto território da China povoou-se de mendigos e de bandidos. A menina de sete anos que restava na família, foi vendida a um agente e não voltaram a saber dela. O Primeiro Filho, destinado a substituir o pai no ofício de médico ambulante, foi mordido por um cão doente e morreu pouco depois com o corpo tenso como um arco e deitando espuma pela boca. Os filhos Segundo e Terceiro estavam já em idade de trabalhar e neles recaiu a tarefa de cuidar do pai em vida, de cumprir com os ritos funerários à sua morte e de honrar a sua memória e a dos seus outros antepassados varões por cinco gerações. O Quarto Filho não era particularmente útil e também não tinham como alimentá-lo, de modo que o pai o vendeu como servo por dez anos a uns comerciantes que passaram de caravana nas proximidades da aldeia. O garoto tinha onze anos.
Graças a um desses acontecimentos fortuitos que frequentemente o fariam mudar de rumo, esse tempo de escravatura, que poderia ter sido um inferno para o rapaz, foi na realidade muito melhor do que os anos decorridos sob o tecto paterno. Duas mulas arrastavam uma carroça onde ia a carga mais pesada da caravana. Um enervante queixume acompanhava cada volta das rodas, que não oleavam propositadamente a fim de espantar os demónios. Para evitar que fugisse, porque chorava desconsolado desde que se separara do pai e dos irmãos, amarraram o Quarto Filho com uma corda a um dos animais. Descalço e sedento, com o saco dos seus escassos pertences às costas, viu desaparecer os tectos da sua aldeia e a paisagem familiar. A vida nessa choça era a única coisa que conhecia e não tinha sido má, os pais tratavam-no com meiguice, a mãe contava-lhe histórias e qualquer pretexto lhe servia para rir e festejar, mesmo nos tempos de maior pobreza. Corria atrás da mula convencido de que cada passo o internaria mais e mais no território dos espíritos malignos e receava que o chiar das rodas e dos sininhos pendurados na carroça não fossem suficientes para o proteger. Mal conseguia entender o dialecto dos viajantes, mas as poucas palavras apanhadas no ar foram-lhe metendo nos ossos um medo pavoroso.
Comentavam sobre os muitos génios descontentes que deambulavam pela região, almas perdidas de mortos que não receberam um funeral apropriado.
A grande fome, o tifo e a cólera tinham semeado a região de cadáveres e os vivos não eram suficientes para honrar tantos defuntos. Por sorte, os espectros e os demónios tinham reputação de estúpidos: não sabiam dobrar uma esquina e distraíam-se facilmente com oferendas de comida ou presentes de papel. Por vezes, no entanto, nada conseguia afastá-los e podiam materializar-se dispostos a obter a sua liberdade assassinando os forasteiros ou metendo-se nos seus corpos para os obrigar a fazer malefícios impensáveis. Tinham passado algumas horas de marcha, o calor de Verão e a sede eram intensos, o garoto tropeçava a cada passo e os seus novos amos impacientes chicoteavam-no sem verdadeira maldade com varas nas pernas. Ao pôr do Sol decidiram parar e acampar. Aliviaram os animais de carga, fizeram uma fogueira, prepararam chá e dividiram-se em pequenos grupos para jogar fan tan e mah jong Por fim alguém se lembrou do Quarto Filho e passou-lhe uma tigela de arroz e um copo de chá, que ele atacou com a voracidade acumulada em meses e meses de fome. Nisso surpreendeu-os um clamor de guinchos e viram-se rodeados por uma poeirada. à gritaria dos assaltantes juntou-se a dos viajantes e o garoto aterrorizado arrastou-se para baixo da carroça até onde lhe permitia a corda que o prendia. Não se tratava de uma legião infernal, como se verificou imediatamente, mas de um bando de salteadores dos muitos que, iludindo os ineficazes soldados imperiais, fustigavam os caminhos nesses tempos de tanta desesperança. Assim que os mercadores recuperaram do primeiro impacte, agarraram nas armas e enfrentaram os foragidos num estrépito de gritos, ameaças e disparos que durou apenas alguns minutos. Ao assentar o pó, um dos bandidos fugira e os outros dois jaziam por terra, gravemente feridos. Tiraram-lhes os trapos da cara e verificaram que se tratava de adolescentes cobertos de farrapos e armados de garrotes e lanças primitivas. Trataram então de os decapitar a toda a pressa, para sofrerem a humilhação de deixar este mundo em pedaços e não inteiros como chegaram, e empalaram as cabeças em paus que colocaram em ambos os lados do caminho. Quando se acalmaram os ânimos, viu-se que um membro da caravana se revolvia por terra com uma brutal ferida de lança numa coxa. O Quarto Filho, que tinha permanecido paralisado de terror debaixo da carroça, saiu a rastejar do seu esconderijo e pediu respeitosamente licença aos honoráveis comerciantes para tratar do ferido.
Como não havia alternativa, autorizaram-no a fazê-lo. Pediu chá para lavar o sangue, depois abriu o seu saco e tirou um frasquinho com bai yao. Aplicou essa pasta branca na ferida, ligou a perna com força e anunciou sem a menor vacilação que em menos de três dias o corte estaria fechado. Assim foi. Esse incidente salvou-o de passar os dez anos seguintes a trabalhar como escravo e a ser tratado pior do que um cão, porque dada a sua habilidade, os comerciantes venderam-no em Cantão a um famoso médico tradicional e mestre da acupunctura "um zhong" que necessitava de um aprendiz. Com aquele sábio, o Quarto Filho adquiriu os conhecimentos que jamais teria obtido com o seu rústico pai.
O velho mestre era um homem plácido, com a cara lisa da lua, voz pausada e mãos ossudas e sensíveis, os seus melhores instrumentos. A primeira coisa que fez com o seu criado foi dar-lhe um nome. Consultou livros astrológicos e adivinhos para averiguar o nome correspondente ao rapaz: Tao. A palavra tinha vários significados, tais como via, direcção, sentido e harmonia, mas representava sobretudo a viagem da vida. O mestre deu-lhe o seu próprio apelido.
- Chamar-te-ás Tao Chi'en. Este nome inicia-te no caminho da medicina. O teu destino será aliviar a dor alheia e atingir a sabedoria. Serás um zhongyi, como eu.
Tao Chi'en... O jovem aprendiz recebeu o seu nome agradecido. Beijou as mãos do seu amo e sorriu pela primeira vez desde que deixara o lar. O impulso da alegria, que antes o fazia dançar de contente sem qualquer motivo, voltou a palpitar no seu peito e o sorriso não se apagou durante semanas. Andava pela casa aos saltos, saboreando o seu nome com fruição, como um caramelo na boca, sonhando e repetindo em voz alta, até se identificar plenamente com ele. O seu mestre, seguidor de Confúcio nos aspectos práticos e de Buda em matéria ideológica, ensinou-o com mão firme, mas com grande suavidade, a disciplina que faria dele um bom médico.
- Se conseguir ensinar-te tudo o que pretendo, algum dia serás um homem ilustrado - disse-lhe.
Argumentava que os ritos e as cerimónias eram tão necessários como as normas da boa educação e o respeito pelas hierarquias. Dizia que de nada serve o conhecimento sem sabedoria, que não há sabedoria sem espiritualidade e que a verdadeira espiritualidade implica sempre o serviço aos outros. Tal como lhe explicou muitas vezes, a essência de um bom médico consiste na capacidade de compaixão e no sentido da ética, sem os quais a arte sagrada da cura degenera em simples charlatanice. Gostava do sorriso fácil do seu aprendiz.
- Tens um bom trecho já ganho no caminho da sabedoria, Tao. O sábio é sempre alegre - defendia.
Durante todo o ano Tao Chi'en levantava-se ao amanhecer, como qualquer estudante, para fazer uma hora de meditação, cânticos e orações.
Dispunha de um único dia de descanso para a celebração do Ano Novo, trabalhar e estudar eram as suas únicas ocupações. Primeiro que tudo, teve de dominar na perfeição a escrita chinesa, meio oficial de comunicação nesse imenso território de centenas de povos e línguas. O seu mestre era inflexível a respeito da beleza e precisão da caligrafia, que distinguia o homem refinado do trapaceiro. Também insistia em desenvolver em Tao Chi'en a sensibilidade artística que, segundo ele, caracterizava o ser superior. Como qualquer chinês civilizado, sentia um desprezo irreprimível pela guerra e inclinava-se, pelo contrário, para as artes da música, da pintura e da literatura. Ao seu lado, Tao Chi'en aprendeu a apreciar a renda delicada de uma teia de aranha perlada de gotas de orvalho à luz da aurora e a expressar o seu deleite em inspirados poemas escritos numa elegante caligrafia. Na opinião do mestre, a única coisa pior que não compor poesia, era compô-la mal. Naquela casa o rapaz assistiu a reuniões frequentes onde os convidados criavam versos na inspiração do momento e admiravam o jardim, enquanto ele servia chá e ouvia, maravilhado.
Podia conseguir-se a imortalidade escrevendo um livro, sobretudo de poesia, dizia o mestre, que escrevera vários. Aos rústicos conhecimentos práticos que Tao Chi'en adquirira vendo o seu pai trabalhar, acrescentou o impressionante volume teórico da ancestral medicina chinesa. O jovem aprendeu que o corpo humano se compõe de cinco elementos, madeira, fogo, terra, metal e água, a que estão associados cinco planetas, cinco condições atmosféricas, cinco cores e cinco notas. Através da utilização adequada das plantas medicinais, acupunctura e ventosas, um bom médico podia prevenir e curar diversos males, e controlar a energia masculina, activa e leve, e a energia feminina, passiva e escura. No entanto, o objectivo dessa arte não era tanto eliminar doenças mas manter a harmonia. "Deves escolher os teus alimentos, orientar a tua cama e conduzir a tua meditação de acordo com a estação do ano e a direcção do vento. Dessa forma estarás sempre em consonância com o universo", aconselhava-o o mestre.
O Zhong Yi estava contente com a sua sorte, embora a falta de descendentes pesasse como uma sombra na serenidade do seu espírito. Não tivera filhos, apesar das ervas milagrosas ingeridas regularmente durante uma vida inteira para limpar o sangue e fortalecer o membro, e dos remédios e encantamentos aplicados às suas duas esposas, mortas na juventude, bem como às numerosas concubinas que as seguiram. Devia aceitar com humildade que não fora culpa dessas abnegadas mulheres, mas da apatia do seu licor viril. Nenhum dos remédios para a fertilidade que lhe tinham servido para ajudar os outros deu resultado em si próprio e por fim resignou-se ao facto inegável de que os seus rins estavam secos. Deixou de castigar as suas mulheres com exigências inúteis e gozou-as plenamente, de acordo com os preceitos dos belos livros de almofada da sua colecção. No entanto, o velho afastara-se desses prazeres há muito tempo, mais interessado em adquirir novos conhecimentos e em explorar a estreita vereda da sabedoria, e desfizera-se uma a uma das concubinas, cuja presença o distraía dos seus afãs intelectuais. Não precisava de ter uma rapariga diante dos seus olhos para a descrever em elevados poemas, bastava-lhe a lembrança. Também desistira de ter filhos próprios, mas devia preocupar-se com o futuro. Quem o ajudaria na última etapa e à hora de morrer? Quem limparia a sua tumba e veneraria a sua memória? Tinha treinado aprendizes anteriormente e com cada um deles alimentou a secreta ambição de adoptá-lo, mas nenhum foi digno de tal honra. Tao Chi'en não era mais inteligente nem mais intuitivo do que os outros, mas trazia dentro de si uma obsessão por aprender que o mestre reconheceu imediatamente, porque era idêntica à sua. Além disso era um garoto doce e divertido, era fácil afeiçoar-se a ele. Durante os anos de convivência chegou a ter-lhe tanto apreço, que perguntava amiúde a si próprio como era possível que não fosse filho do seu sangue. No entanto, a estima pelo seu aprendiz não o cegava. Pela sua experiência, as mudanças na adolescência costumam ser muito profundas e não podia prever que tipo de homem seria. Como diz o provérbio chinês: "Se és brilhante em jovem, não significa que em adulto sirvas para algo." Receava enganar-se novamente, como lhe acontecera antes, e preferia esperar com paciência que a verdadeira natureza do rapaz se revelasse. Enquanto isso guiá-lo-ia, tal como fazia com as árvores jovens do seu jardim, para as ajudar a crescer direitas. Ao menos este aprende rapidamente, pensava o velho médico, calculando quantos anos de vida lhe restavam. De acordo com os signos astrais e com a observação cuidadosa do seu próprio corpo, não teria tempo para treinar outro aprendiz.
Depressa Tao Chi'en soube escolher os materiais no mercado e nas lojas de ervas - regateando tal como devia ser - e pôde preparar os remédios sem ajuda. Observando o médico a trabalhar acabou por conhecer os intrincados mecanismos do organismo humano, os procedimentos para refrescar os febris e os de temperamento fogoso, dar calor aos que padeciam do frio antecipado da morte, fomentar os sucos nos estéreis e secar aqueles esgotados por afluxos. Fazia longas excursões pelos campos procurando as melhores plantas no seu ponto preciso de máxima eficácia, que depois transportava envoltas em trapos húmidos para as preservar frescas durante o caminho para a cidade. Quando fez catorze anos o seu mestre considerou-o maturo para praticar e mandava regularmente atender prostitutas, com a ordem terminante de se abster de comerciar com elas, porque tal como ele próprio podia comprovar examinando-as, traziam a morte em cima.
- As doenças dos bordéis matam mais gente do que o ópio e o tifo.
Mas se cumprires com as tuas obrigações e aprenderes a bom ritmo, no seu devido momento comprar-te-ei uma rapariga virgem - prometeu-lhe o mestre.
Tao Chi'en tinha passado fome em criança, mas o seu corpo esticou até ficar mais alto do que qualquer outro membro da sua família. Aos catorze anos não sentia atracção pelas raparigas de aluguer, apenas curiosidade científica. Eram tão diferentes dele, viviam num mundo tão remoto e secreto, que não as podia considerar realmente humanas. Mais tarde, quando o súbito assalto da sua natureza o fez sair dos carris e andar como um ébrio tropeçando com a sua própria sombra, o seu preceptor lamentou ter-se desfeito das concubinas. Nada distraía tanto um bom estudante das suas responsabilidades como o explodir das suas forças viris. Uma mulher acalmá-lo-ia e ao mesmo tempo serviria para dar-lhe conhecimentos práticos, mas como a ideia de lhe comprar uma lhe parecia maçadora - sentia-se cómodo no seu universo exclusivamente masculino - obrigava Tao a tomar infusões para acalmar os ardores. O zhongyi não se lembrava do furacão das paixões carnais e com a melhor das intenções dava a ler ao seu aluno os livros de almofada da sua biblioteca como parte da sua educação, sem medir o efeito enervante que tinham sobre o pobre rapaz. Fazia-o memorizar cada uma das duzentas e vinte posturas do amor com os seus nomes poéticos e fazia-os identificá-las sem vacilar nas delicadas ilustrações dos livros, o que contribuía de forma notável para a distracção do jovem.
Tao Chi'en familiarizou-se com Cantão tão bem como antes conhecera a sua pequena aldeia. Gostava dessa antiga cidade murada, caótica, de ruas sinuosas e de canais, onde os palácios e as choças se misturavam numa total promiscuidade e onde havia gente que vivia e morria em barcos no rio, sem nunca pisar terra firme. Habituou-se ao clima húmido e quente do longo Verão fustigado por tufões, mas agradável no Inverno, de Outubro a Março.
Cantão estava fechado aos forasteiros, embora lá costumassem cair de surpresa piratas com bandeiras de outras nações. Existiam alguns pontos comerciais, onde os estrangeiros podiam trocar mercadoria apenas de Novembro a Maio, mas eram tantos os impostos, regulamentos e obstáculos, que os comerciantes internacionais preferiam estabelecer-se em Macau. De manhã cedo, quando Tao Chi'en partia para o mercado, costumava encontrar meninas recém-nascidas atiradas à rua ou flutuando nos canais, despedaçadas muitas vezes por dentadas de cães ou de ratazanas. Ninguém as queria, eram dispensáveis. Para quê alimentar uma filha que nada valia e cujo destino era terminar servindo a família do marido? "É preferível um filho disforme do que uma dúzia de filhas sábias como Buda", defendia o dito popular. De qualquer forma havia demasiadas crianças e continuavam a nascer como ratos.
Bordéis e fumarias de ópio proliferavam em toda a parte. Cantão era uma cidade populosa, rica e alegre, cheia de templos, restaurantes e casas de jogo, onde se celebravam ruidosamente as festividades do calendário.
Mesmo os castigos e as execuções se convertiam em motivo de festa.
Juntava-se uma multidão a vitoriar os verdugos, com os seus aventais ensanguentados e colecções de facas afiadas, cortando cabeças com um único golpe certeiro. A justiça aplicava-se de forma expedita e simples, sem apelação possível nem crueldades desnecessárias, excepto no caso de traição ao imperador, o pior crime possível, pago com morte lenta e desterro de todos os parentes, reduzidos à escravatura. As faltas menores castigavam-se com chicotadas ou com uma plataforma de madeira ajustada vários dias no pescoço dos culpados, que desta forma não podiam descansar nem levar as mãos à cabeça para comer ou coçar-se. Nas praças e mercados destacavam-se os contadores de histórias que, tal como os monges mendicantes, viajavam pelo país preservando uma milenária tradição oral. Os malabaristas, acrobatas, encantadores de serpentes, travestis, músicos itinerantes, magos e contorcionistas encontravam-se nas ruas, enquanto fervilhava à sua volta o comércio de seda, chá, jade, especiarias, ouro, conchas de tartaruga, porcelana, marfim e pedras preciosas. Os vegetais, as frutas e as carnes ofereciam-se numa alvoroçada miscelânea: couves e tenros rebentos de bambu ao pé de jaulas de gatos, cães e arminhos que o carniceiro matava e esfolava de um só golpe a pedido dos clientes. Havia ruelas compridas só de pássaros, pois em nenhuma casa podiam faltar aves e gaiolas, desde as mais simples até às de madeira fina com incrustações de prata e madrepérola. Outros lugares do mercado destinavam-se a peixes exóticos, que atraíam a boa sorte. Tao Chi'en, sempre curioso, distraía-se observando e fazendo amigos e depois tinha de correr para cumprir as suas incumbências no sector onde se vendiam os materiais do seu ofício. Podia identificá-los de olhos fechados pelo penetrante aroma das especiarias, plantas e cascas medicinais. As serpentes dissecadas empilhavam-se enroladas como meadas poeirentas, sapos, salamandras e estranhos animais marinhos pendiam trespassados por cordas, como colares, grilos e grandes escaravelhos de duras conchas fosforescentes elanguesciam em caixas, macacos de todos os tipos esperavam a vez de morrer, patas de urso e de orangotango, chifres de antílopes e de rinocerontes, olhos de tigre, barbatanas de tubarão e garras de misteriosas aves nocturnas compravam-se a peso.
Para Tao Chi'en os primeiros anos em Cantão passaram-se em estudo, trabalho e serviço ao seu velho preceptor, de quem chegou a gostar como de um avô. Foram anos felizes. A lembrança da sua própria família esfumou-se e acabou por esquecer os rostos do seu pai e dos seus irmãos, mas não o da sua mãe, porque ela lhe aparecia com frequência. O estudo rapidamente deixou de ser uma tarefa para se converter numa paixão. Cada vez que aprendia uma coisa nova, voava até ao mestre para lhe contar aos borbotões.
"Quanto mais aprenderes, mais depressa saberás quão pouco sabes", ria-se o velho. Por iniciativa própria Tao Chi'en decidiu dominar mandarim e cantonês, porque o dialecto da sua aldeia era muito limitado. Absorvia os conhecimentos do seu mestre a uma velocidade tal, que o velho, a brincar, costumava acusá-lo de lhe roubar até os sonhos, mas a sua própria paixão pelo ensino tornava-o generoso. Partilhou com o rapaz tudo o que este quis averiguar, não só em matéria de medicina, como noutros aspectos da sua vasta reserva de conhecimentos e da sua refinada cultura. Bondoso por natureza, era no entanto severo na crítica e exigente no esforço, porque como dizia, "não me resta muito tempo e para o outro mundo não posso levar o que sei, alguém tem de usá-lo depois de eu morrer". No entanto, também o advertia contra a voracidade de conhecimentos, que pode subjugar um homem tanto como a gula ou a luxúria. "O sábio nada deseja, não ajuíza, não faz planos, mantém o seu espírito aberto e o seu coração em paz", defendia.
Repreendia-o com tanta tristeza quando falhava, que Tao Chi'en preferia uma chicotada, mas essa prática repugnava ao temperamento do zhong yi, que nunca permitia que a cólera guiasse as suas acções. As únicas vezes em que lhe bateu cerimoniosamente com uma vara de bambu, sem aborrecimento mas com firme espírito didáctico, foi quando pôde comprovar sem margem para dúvidas que o seu aprendiz tinha cedido à tentação do jogo ou pago por uma mulher. Tao Chi'en costumava enganar nas contas do mercado para fazer apostas nas casas de jogo, a cuja atracção lhe era impossível resistir, ou para um breve consolo com desconto de estudante nos braços de alguma das suas pacientes nos bordéis. O seu amo não demorava a descobrir porque, se perdia no jogo, não conseguia explicar onde estava o dinheiro do troco e, se ganhava, era incapaz de esconder a sua euforia. As mulheres cheirava-as na pele do rapaz.
- Tira a camisa, terei de dar-te umas vergastadas, a ver se acabas por entender, filho. Quantas vezes já te disse que os piores males da China são o jogo e o bordel? No primeiro os homens perdem o produto do seu trabalho e no segundo perdem a saúde e a vida. Nunca serás bom médico ou bom poeta com esses vícios.
Tao Chi'en tinha dezasseis anos em 1839, quando eclodiu a Guerra do Ópio entre a China e a Grã-Bretanha. Nessa altura o país estava invadido de mendigos. Massas humanas abandonavam os campos e apareciam com os seus farrapos e as suas pústulas nas cidades, de onde eram escorraçados à força e obrigados a vaguear como matilhas de cães famélicos pelos caminhos do Império. Bandos de foragidos e de rebeldes batiam-se com as tropas do governo numa interminável guerra de emboscadas. Era um tempo de destruição e de pilhagens. Os debilitados exércitos imperiais, sob o comando de oficiais corruptos que recebiam de Pequim ordens contraditórias, não conseguiram fazer frente à poderosa e bem disciplinada frota naval inglesa.
Não podiam contar com o apoio popular, porque os camponeses estavam cansados de ver as suas sementeiras destruídas, as suas aldeias em chamas e as suas filhas violadas pela soldadesca. Ao cabo de quase quatro anos de luta, a China teve de aceitar uma derrota humilhante e pagar o equivalente a vinte e um milhões de dólares aos vencedores, entregar-lhes Hong-Kong e outorgar-lhes o direito de estabelecer - concessões- , bairros residenciais defendidos por leis de extraterritorialidade. Aí viviam os estrangeiros com a sua polícia, serviços, governo e leis, protegidos pelas suas próprias tropas, eram verdadeiras nações forâneas dentro do território chinês, a partir das quais os europeus controlavam o comércio, principalmente do ópio. Em Cantão, 50 entraram cinco anos mais tarde, mas ao comprovar a derrota degradante do seu venerado imperador e ver a economia e a moral da sua pátria desmoronar-se, o mestre de acupunctura decidiu que não havia razões para continuar a viver.
Os anos da guerra perturbaram a alma do velho zhong yi que perdeu a serenidade tão arduamente conseguida ao longo da sua existência. O seu desprendimento e distracção relativamente aos assuntos materiais agudizou-se ao ponto de Tao Chi'en ter de lhe dar a comida na boca quando passava dias sem se alimentar. Baralharam-se-lhe as contas e os credores começaram a bater-lhe à porta, mas desprezou-os sem grandes considerações, porque tudo o que se referia ao dinheiro lhe parecia um peso infamante do qual os sábios estavam naturalmente libertos. Na confusão senil desses últimos anos, esqueceu-se das boas intenções de adoptar o seu aprendiz e de lhe arranjar uma esposa, na verdade estava tão desorientado que muitas vezes ficava a olhar para Tao Chi'en com uma expressão perplexa, incapaz de recordar o seu nome ou de situá-lo no labirinto de rostos e eventos que assaltavam o seu espírito, atabalhoadamente. Mas teve ânimo suficiente para decidir os pormenores do seu enterro, porque para um chinês ilustre o evento mais importante na vida era o seu próprio funeral. A ideia de pôr fim ao seu desalento por meio de uma morte elegante rondava-o há algum tempo, mas esperou até ao desenlace da guerra com a secreta e irracional esperança de ver o triunfo dos exércitos do Celeste Império. A arrogância dos estrangeiros era-lhe intolerável, sentia um enorme desprezo por esses brutais fantasmas brancos que não se lavavam, bebiam leite e álcool, eram totalmente ignorantes relativamente às normas elementares de boa educação e incapazes de honrar devidamente os seus antepassados. Os acordos comerciais pareciam-lhe um favor outorgado pelo imperador a esses bárbaros ingratos que, em vez de se curvarem em louvores e gratidão, exigiam mais. A assinatura do Tratado de Nanking foi o último golpe para o zhong yi. O imperador e cada um dos habitantes da China, até ao mais humilde, tinham perdido a honra. Como se poderia recuperar a dignidade depois de semelhante afronta?
O velho sábio envenenou-se ingerindo ouro. Ao regressar de uma das suas excursões ao campo para colher plantas, o seu discípulo encontrou-o no jardim, reclinado em almofadões de seda e vestido de branco, como sinal do seu próprio luto. Ao lado estavam o chá ainda morno e a tinta do pincel fresca. Sobre a sua pequena secretária estava um verso inacabado e uma libélula perfilhava-se na suavidade do pergaminho. Tao Chi'en beijou as mãos desse homem que tanto lhe dera, depois deteve-se um instante para apreciar o desenho das asas transparentes do insecto na luz do entardecer, tal como o seu mestre teria desejado.
Ao funeral do sábio acorreu uma enorme multidão, porque na sua longa vida ajudara milhares de pessoas a viver saudavelmente e a morrer sem angústia. Os oficiais e dignitários do governo desfilaram com a maior solenidade, os literatos declamaram os seus melhores poemas e as cortesãs apareceram ataviadas de seda. Um adivinho determinou o dia propício ao enterro e um artista de objectos funerários visitou a casa do defunto para copiar as suas posses. Percorreu a propriedade lentamente sem tomar medidas ou notas, mas sob as suas mangas volumosas fazia marcas com a unha numa tabuinha de cera, construiu depois miniaturas em papel, da casa, com os seus aposentos e móveis, além dos objectos favoritos do defunto, para serem queimados juntamente com molhos de dinheiro também de papel.
Não deveria faltar-lhe no outro mundo o que tinha usufruído neste. O ataúde, enorme e decorado como uma carruagem imperial, passou pelas avenidas da cidade entre duas filas de soldados em uniformes de gala, precedidos por cavaleiros ataviados de cores brilhantes e uma banda de músicos com címbalos, tambores, flautas, sinos, ferrinhos e uma série de instrumentos de corda. A barulheira era insuportável, tal como exigia a importância do extinto.
Na tumba empilharam flores, roupa e comida, acenderam velas e incenso e queimaram por fim o dinheiro e os minuciosos objectos de papel. A tabuinha ancestral de madeira coberta de ouro e gravada com o nome do mestre foi colocada sobre a tumba para lhe receber o espírito, enquanto o corpo voltava à terra. Competia ao filho mais velho receber a tabuinha, colocá-la em sua casa num lugar de honra junto às dos seus outros antepassados masculinos, mas o médico não tinha quem cumprisse essa obrigação. Tao Chi'en era apenas um criado e teria sido uma absoluta falta de etiqueta oferecer-se para o fazer. Estava genuinamente comovido, entre a multidão era o único cujas lágrimas e gemidos correspondiam a uma dor autêntica, mas a tabuinha ancestral foi parar às mãos de um sobrinho longínquo, que teria a obrigação moral de colocar ali oferendas e de rezar diante dela quinzenalmente e em cada festividade anual.
Uma vez realizados os solenes ritos funerários, os credores caíram como chacais sobre as posses do mestre. Violaram os textos sagrados e o laboratório, revolveram as ervas, arruinaram os preparados medicinais, destruíram os cuidadosos poemas, levaram os móveis e objectos de arte, pisaram o belíssimo jardim e leiloaram a antiga mansão. Pouco antes, Tao Chi'en pusera a salvo as agulhas de ouro para a acupunctura, uma caixa com instrumentos médicos e alguns remédios essenciais, bem como algum dinheiro subtraído pouco a pouco nos últimos três anos, quando o seu patrão começou a perder-se nos despenhadeiros da demência senil. A sua intenção não foi roubar o venerável zhongyi, a quem amava como um avô, mas usar esse dinheiro para o alimentar, porque via as dívidas acumularem-se e receava pelo futuro. O suicídio precipitou as coisas e Tao Chi'en encontrou-se na posse de um recurso inesperado. Apoderar-se desses fundos poderia custar-lhe a cabeça, pois seria considerado crime de um inferior a um ser superior, mas tinha a certeza de que ninguém saberia, excepto o espírito do defunto, que sem dúvida aprovaria a sua acção. Não preferiria premiar o seu fiel criado a pagar uma das muitas dívidas dos seus ferozes credores? Com esse modesto tesouro e uma muda de roupa limpa, Tao Chi'en fugiu da cidade. A ideia de regressar à sua aldeia natal ocorreu-lhe fugazmente, mas descartou-a de imediato. Para a sua família ele seria sempre o Quarto Filho, devia submissão e obediência aos seus irmãos mais velhos. Teria de trabalhar para eles, aceitar a esposa que lhe escolhessem e resignar-se à miséria. Nada o chamava nessa direcção, nem sequer as obrigações filiais para com o seu pai e seus antepassados, que recaíam sobre os seus irmãos mais velhos. Precisava de ir para longe, para onde não chegasse o longo braço da justiça chinesa. Tinha vinte anos, faltava-lhe um para cumprir os dez de servidão e qualquer um dos credores podia reclamar o direito de o utilizar como escravo durante esse período de tempo.
Tao Chi’en
Tao Chi'en tomou uma sampana rumo a Hong-Kong com a intenção de começar a sua nova vida. Agora era um zhong yi, treinado na medicina tradicional chinesa pelo melhor mestre de Cantão. Devia agradecimento eterno aos espíritos dos seus veneráveis antepassados, que tinham encaminhado o seu karma de maneira tão gloriosa. A primeira coisa a fazer, decidiu, era arranjar uma mulher, pois tinha idade de sobra para se casar e o celibato pesava-lhe demasiado. A falta de mulher era sinal de indissimulável pobreza. Acalentava a ambição de adquirir uma jovem delicada com belos pés. Os seus lírios dourados não deveriam ter mais de três ou quatro polegadas de comprimento e deveriam ser rechonchudos e suaves ao tacto, como os de uma criança de poucos meses. Fascinava-o a forma de andar de uma jovem sobre os seus pés minúsculos, com passos muito curtos e vacilantes, como se estivesse sempre prestes a cair, as ancas espetadas para trás e balançando-se como os juncos nas margens do tanque no jardim do seu mestre. Detestava os pés grandes, musculosos e frios, como os de uma camponesa. Na sua aldeia vira ao longe algumas meninas enfaixadas, orgulho das suas mães que sem dúvida as poderiam casar bem, mas só ao relacionar-se com as prostitutas de Cantão teve nas suas mãos um par daqueles lírios dourados e pôde extasiar-se diante das pequenas sapatilhas bordadas que os cobriam sempre, pois os ossos destroçados por anos e anos libertavam uma substância malcheirosa. Depois de os tocar compreendeu que a sua elegância era fruto de um sofrimento constante, e isso tornava-os ainda mais valiosos. Então passou a apreciar devidamente os livros dedicados aos pés femininos, que o seu mestre coleccionava, onde enumeravam cinco classes e dezoito estilos diversos de lírios dourados. A sua mulher deveria ser também bastante jovem, pois a beleza é de curta duração, começa por volta dos doze anos e termina pouco depois dos vinte. Assim lho tinha explicado o seu mestre. Por alguma razão as heroínas mais celebradas na literatura chinesa morriam sempre no momento exacto do seu maior encanto, abençoadas aquelas que desapareciam antes de se verem destruídas pela idade e podiam ser recordadas na plenitude da sua frescura. Além disso havia razões práticas para preferir uma jovem núbil: dar-lhe-ia filhos varões e seria fácil domar o seu carácter para a tornar verdadeiramente submissa.
Nada mais desagradável do que uma mulher berrona, vira algumas que cuspiam e davam bofetões aos maridos e aos filhos, mesmo na rua diante dos vizinhos. Uma afronta tal às mãos de uma mulher era o pior desprestígio para um homem. Na sampana que o levava lentamente através das noventa milhas entre Cantão e Hong-Kong, afastado por minutos da sua vida passada, Tao Chi'en ia sonhando com essa rapariga, com o prazer e com os filhos que lhe daria. Contava vezes sem conta o dinheiro do seu saco, como se por meio de cálculos abstractos o pudesse aumentar, mas era evidente que não lhe daria para uma esposa dessa qualidade. No entanto, por muita que fosse a sua urgência, não pensava conformar-se com menos e viver para o resto dos seus dias com uma mulher de pés grandes e personalidade forte.
A ilha de Hong-Kong apareceu de súbito diante dos seus olhos, com o seu perfil de montanhas e natureza verde, emergindo como uma sereia nas águas anis do mar da China. Mal a leve embarcação que o transportava atracou no porto, Tao Chi'en apercebeu-se da presença dos odiados estrangeiros. Já antes avistara alguns ao longe, mas agora tinha-os tão perto, que a ter-se atrevido tê-lo-ia tocado para comprovar se esses seres grandes e desengraçados, eram realmente humanos.
Assombrado descobriu que muitos dos fan guey tinham cabelos vermelhos ou amarelos, olhos desbotados e pele avermelhada como lagostas fervidas. As mulheres, muito feias em sua opinião, usavam chapéus com penas e flores, tentando talvez esconder os seus diabólicos cabelos. Vestiam-se de uma forma extraordinária, com roupas tesas e justas ao corpo, calculou que por isso se moviam como autómatos e não cumprimentavam com inclinações amáveis, passavam rígidos, sem ver ninguém, sofrendo em silêncio o calor do Verão sob as suas incómodas vestimentas. Havia uma dúzia de barcos europeus no porto, no meio de milhares de embarcações asiáticas de todas as cores e feitios. Nas ruas viu algumas carruagens com cavalos conduzidos por homens de uniforme, perdidos entre os veículos de transporte humano, liteiras, palanquins, padiolas ou simplesmente indivíduos levando os seus clientes às costas. O cheiro a peixe bateu-lhe na cara como uma bofetada, recordando-lhe a sua fome. Primeiro tinha de encontrar uma casa de comida, assinalada com grandes tiras de pano amarelo.
Tao Chi'en comeu como um príncipe num restaurante atestado de gente que falava e ria aos gritos, sinal inequívoco de contentamento e boa digestão, onde saboreou os pratinhos delicados que em casa do mestre de acupunctura tinham caído no esquecimento.
O zhong yi tinha sido um grande guloso durante a sua vida e vangloriava-se de ter tido ao seu serviço os melhores cozinheiros de Cantão, mas nos últimos anos alimentava-se de chá verde e de arroz com pedacinhos de vegetais. Na época em que fugiu da sua servidão, Tao Chi'en estava tão magro como qualquer um dos muitos doentes de tuberculose de Hong-Kong. Aquela foi a sua primeira refeição decente em muito tempo e o assalto dos sabores, dos aromas e das texturas levou-o ao êxtase. Terminou o festim fumando um cachimbo com o maior prazer. Saiu para a rua flutuando e rindo-se sozinho, como um louco: nunca se sentira tão cheio de entusiasmo e de boa sorte em toda a sua vida. Aspirou o ar à sua volta, tão parecido com o de Cantão, e decidiu que seria fácil conquistar esta cidade, tal como nove anos antes chegara para dominar a outra. Primeiro procuraria o mercado e o bairro dos curandeiros e ervanários, onde poderia encontrar hospedagem e oferecer os seus serviços profissionais. Depois pensaria no assunto da mulher de pés pequenos...
Nessa mesma tarde Tao Chi'en conseguiu hospedagem no sótão de um casarão dividido em compartimentos, que albergava uma família por quarto, um verdadeiro formigueiro. O seu quarto, um túnel tenebroso de um metro de largura por três de comprimento, sem janela, escuro e quente, atraía os eflúvios das comidas e dos bacios dos outros inquilinos, misturados com a inconfundível pestilência da sujidade. Comparado com a requintada casa do seu mestre equivalia a viver num buraco de ratazanas, mas lembrou-se que a choça dos seus pais era ainda mais pobre. Na sua qualidade de homem solteiro, não necessitava de mais espaço ou luxo, decidiu, só de um canto para colocar a sua esteira e os seus pertences mínimos. Mais adiante, quando se casasse, procuraria uma casa apropriada, onde pudesse preparar os seus medicamentos, atender os seus clientes e ser servido pela sua mulher de forma conveniente. Por agora, enquanto fazia alguns contactos indispensáveis para poder trabalhar, aquele espaço oferecia-lhe, pelo menos, tecto e alguma privacidade. Deixou as suas coisas e foi tomar um bom banho, rapar a testa e refazer a sua trança. Assim que ficou apresentável, partiu de imediato em busca de uma casa de jogo, decidido a duplicar o seu capital no menor tempo possível, de modo a poder iniciar-se no caminho do sucesso.
Em menos de duas horas apostando ao fan tan, Tao Chi'en perdeu todo o seu dinheiro e não perdeu também os seus instrumentos de medicina porque não se lembrara de os levar. A gritaria na sala de jogo era tão ensurdecedora que as apostas se faziam por sinais através do espesso fumo do tabaco. O fan tan era muito simples, consistia num punhado de botões sob uma taça. Faziam-se as apostas, contavam-se os botões quatro de cada vez e quem adivinhasse quantos restavam, um, dois, três ou nenhum, ganhava.
Tao Chi'en mal conseguia seguir com a vista as mãos do homem que atirava os botões e os contava. Pareceu-lhe que fazia batota, mas acusá-lo em público teria sido uma ofensa de tamanha gravidade que, estando equivocado, podia pagá-la com a vida. Em Cantão recolhiam-se diariamente cadáveres de perdedores insolentes nas proximidades das casas de jogo, em Hong-Kong não devia ser diferente. Regressou ao túnel do sótão e deitou-se na sua esteira a chorar como uma criança de colo, pensando nas vergastadas recebidas da mão do seu velho mestre de acupunctura. O desespero durou-lhe até ao dia seguinte, quando compreendeu com espantosa clareza a sua impaciência e a sua soberba. Começou então a rir com vontade da lição, convencido que o espírito travesso do seu mestre lhe criara este obstáculo para lhe ensinar mais um pouco. Tinha acordado a meio de uma escuridão profunda com o bulício da casa e da rua. A manhã já ia alta, mas nenhuma luz natural entrava no seu tugúrio. Vestiu-se às apalpadelas com a sua única muda de roupa limpa e rindo-se ainda sozinho, agarrou na sua malinha de médico e dirigiu-se para o mercado. Na zona onde se alinhavam as barracas dos tatuadores, cobertos de cima a baixo com pedaços de tecido e de papel que exibiam os desenhos, podia-se escolher entre milhares de desenhos, desde flores discretas em tinta azul indigo, até fantásticos dragões de cinco cores, capazes de decorar com as suas asas abertas e o seu hálito de fogo as costas de um homem robusto.
Passou meia hora a regatear e por fim fez um acordo com um artista desejoso de trocar uma modesta tatuagem por um tónico para limpar o fígado. Em menos de dez minutos gravou-lhe nas costas da mão direita, a mão de apostar, a palavra NÃO em traços simples e elegantes.
- Se ficar contente com o xarope, recomende os meus serviços aos seus amigos - pediu-lhe Tao Chi'en.
- Se ficar contente com a minha tatuagem, faça o mesmo - respondeu o artista.
Tao Chi'en afirmou sempre que aquela tatuagem lhe trouxera sorte.
Saiu da barraca para a algazarra do mercado, avançando aos empurrões e cotoveladas pelas estreitas ruelas atestadas de humanidade. Não se via um único estrangeiro e o mercado parecia idêntico ao de Cantão. O ruído era como uma cascata, os vendedores apregoavam os méritos dos seus produtos e os clientes regateavam aos gritos a meio do rebuliço ensurdecedor dos pássaros engaiolados e dos gemidos dos animais que esperavam a sua vez para a faca. Era tão densa a pestilência de suor, animais vivos e mortos, excrementos e lixo, especiarias, ópio, cozinhados e todo o tipo de produtos e de criaturas da terra, ar e água, que podia tocar-se com os dedos. Viu uma mulher a vender caranguejos. Tirava-os vivos de dentro de um saco, fervia-os alguns minutos numa panela cuja água tinha a consistência pastosa do fundo do mar, extraia-os com um coador, ensopava-os em molho de soja e servia-os aos passeantes num pedaço de papel. Tinha as mãos cheias de verrugas. Tao Chi'en negociou com ela o almoço de um mês a troco do tratamento do seu mal.
- Ah! Vejo que gosta muito de caranguejos - disse ela.
- Detesto-os, mas comê-los-ei como penitência, para não me esquecer de uma lição que devo ter sempre presente.
- E se passado um mês não me tiver curado, quem me devolve os caranguejos que você comeu?
- Se dentro de um mês continuar com verrugas, ficarei desprestigiado. Quem comprará então os meus medicamentos? - sorriu Tao.
- Está bem.
Assim começou a sua nova vida de homem livre em Hong-Kong. Em dois ou três dias a inflamação cedeu e a tatuagem apareceu como um desenho nítido de veias azuis. Durante esse mês, enquanto percorria as barracas do mercado, oferecendo os seus serviços profissionais, comeu apenas uma vez por dia, sempre caranguejos fervidos, e perdeu tanto peso que podia segurar uma moeda entre as ranhuras das costelas. Cada pequeno animal que punha na boca vencendo a repugnância, o fazia sorrir pensando no seu mestre, que também não gostava de caranguejos. As verrugas da mulher desapareceram em vinte e seis dias e ela, agradecida, espalhou a boa nova pela vizinhança. Ofereceu-lhe outro mês de caranguejos se lhe curasse as cataratas dos olhos, mas Tao considerou que o seu castigo fora suficiente e que podia dar-se ao luxo de não voltar a provar esses bichos pelo resto da sua existência. à noite regressava extenuado ao seu cubículo, contava as suas moedas à luz da vela, escondia-as sob uma tábua do chão e aquecia depois água no fogareiro a carvão para matar a fome com chá. De vez em quando, se as pernas ou a vontade começavam a fraquejar-lhe, comprava uma tigela de arroz, um pouco de açúcar ou um cachimbo de ópio, que saboreava lentamente, grato por haver no mundo dádivas tão maravilhosas como o consolo do arroz, a doçura do açúcar e os sonhos perfeitos do ópio.
Gastava apenas com o seu aluguer, com aulas de inglês, a rapar a testa e a mandar lavar a sua muda de roupa, porque não podia andar como um mendigo. O seu mestre vestia-se como um mandarim. "O bom aspecto é sinal de civilidade, um zhongyi não é o mesmo que um curandeiro de aldeia.
Quanto mais pobre for o doente, mais rica deve ser a tua ementa, por respeito", ensinou-lhe. Pouco a pouco a sua reputação espalhou-se, primeiro entre as pessoas do mercado e as suas famílias, depois no bairro do porto, onde tratava os marinheiros dos ferimentos de rixas, do escorbuto, de pústulas venéreas e de intoxicações.
Passados seis meses Tao Chi'en tinha já uma clientela fiel e começava a prosperar. Mudou-se para um quarto com janela, mobilou-o com uma cama grande, que lhe serviria para quando se casasse, uma poltrona e uma secretária inglesa. Adquiriu também algumas peças de roupa, há anos que desejava vestir-se bem. Tinha decidido aprender inglês, porque depressa se apercebeu onde estava o poder. Um punhado de britânicos controlava Hong-Kong, fazia as leis e aplicava-as, dirigia o comércio e a política. Os fan guey viviam em bairros exclusivos e só mantinham relações com os chineses ricos para fazer negócios, sempre em inglês. A imensa multidão de chineses partilhava o mesmo espaço e tempo, mas era como se não existisse. Através de Hong-Kong saíam os mais refinados produtos directamente para os salões de uma Europa fascinada por essa cultura milenária e remota. As chinoisies estavam na moda. A seda fazia furor no vestuário, não podiam faltar graciosas pontes com lanternas de papel colorido e choupos tristes a imitar os maravilhosos jardins secretos de Pequim, os tectos em forma de pagode usavam-se em caramanchões e motivos de dragões e flores de cerejeira repetiam-se até à náusea na decoração. Não havia mansão inglesa sem um salão oriental com um biombo Coromandel, uma colecção de porcelanas e marfins, leques bordados por mãos infantis com o ponto proibido e canários imperiais em gaiolas trabalhadas. Os barcos que transportavam esses tesouros para a Europa não regressavam vazios, traziam ópio da Índia para vender de contrabando e bagatelas que arruinaram as pequenas indústrias locais. Os chineses tinham de competir com ingleses, holandeses, franceses e norte-americanos para fazer comércio no seu próprio país. Mas a grande desgraça foi o ópio. Usado na China há séculos como passatempo e com fins medicinais, os ingleses inundaram o mercado transformando-o num mal incontrolável. Atacou todos os sectores da sociedade, debilitando-a e esmigalhando-a como pão podre.
No início os chineses olharam para os estrangeiros com desprezo, asco e a enorme superioridade daqueles que se acham os únicos seres verdadeiramente civilizados do universo, mas em poucos anos aprenderam a respeitá-los e a temê-los. Por seu lado os europeus agiam imbuídos do mesmo conceito de superioridade racial, certos de serem arautos da civilização numa terra de gente feia, débil, ruidosa, corrupta e selvagem, que comia gatos e cobras e matava as suas próprias filhas ao nascer. Poucos sabiam que os chineses conheciam a escrita mil anos antes deles. Enquanto os comerciantes impunham a cultura da droga e da violência, os missionários tentavam evangelizar. O cristianismo devia propagar-se a qualquer preço, era a única fé verdadeira e o facto de Confúcio ter vivido quinhentos anos antes de Cristo nada significava. Dificilmente consideravam os chineses humanos, mas tentavam salvar as suas almas e pagavam-lhes as conversões em arroz.
Os novos cristãos consumiam a sua ração de suborno divino e iam para outra igreja converter-se de novo, bastante divertidos com aquela mania dos fan guey de pregar as suas crenças como se fossem as únicas. Para eles, práticos e tolerantes, a espiritualidade estava mais próxima da filosofia do que da religião, era uma questão de ética, nunca de dogma.
Tao Chi'en teve aulas com um compatriota que falava um inglês gelatinoso e desprovido de consoantes, mas que o escrevia com a maior correcção. O alfabeto europeu comparado com os caracteres chineses era de uma simplicidade encantadora e em cinco semanas Tao Chi'en conseguia ler os jornais sem se atrapalhar com as letras, embora precisasse de recorrer ao dicionário de cinco em cinco palavras. à noite passava horas a estudar.
Sentia falta do seu venerável mestre, que o tinha marcado para sempre com a sede do conhecimento, tão perseverante como a sede do álcool para o ébrio ou a do poder para o ambicioso. Já não dispunha da biblioteca do velho nem da sua fonte inesgotável de experiência, não podia recorrer a ele para pedir conselho ou discutir os sintomas de um paciente, carecia de um guia, sentia-se órfão. Desde a morte do seu preceptor não voltara a escrever ou a ler poesia, não arranjava tempo para admirar a natureza, para a meditação ou para observar os ritos e cerimónias quotidianas que antes enriqueciam a sua vida. Sentia-se cheio de ruído por dentro, ansiava pelo vazio do silêncio e da solidão, que o seu mestre lhe ensinara a cultivar como o mais precioso dom.
Na prática do seu ofício, aprendia muito sobre a complexa natureza dos seres humanos, sobre as diferenças emocionais entre homens e mulheres, sobre as doenças curáveis apenas com remédios e aquelas que exigiam também a magia da palavra justa, mas faltava-lhe com quem partilhar as suas experiências. O sonho de comprar uma esposa e de ter uma família estava sempre no seu espírito, mas esfumado e ténue, como uma bonita paisagem pintada sobre seda, mas o desejo de adquirir livros, pelo contrário, de estudar e de arranjar outros mestres dispostos a ajudá-lo no caminho do conhecimento ia-se transformando numa obsessão.
As coisas estavam neste pé quando Tao Chi'en conheceu o doutor Ebanizer Hobbs, um aristocrata inglês que nada tinha de arrogante e que, ao contrário de outros europeus, se interessava pela cor local da cidade. Viu-o pela primeira vez no mercado, remexendo nas ervas e poções de uma loja de curandeiros. Falava apenas dez palavras de mandarim, mas repetia-as com uma voz tão estridente e com tanta convicção, que à sua volta se tinha juntado uma pequena multidão entre trocista e assustada. Era fácil vê-lo ao longe, porque a sua cabeça sobressaía por cima da massa chinesa.
Tao Chi'en nunca tinha visto um estrangeiro por aqueles lados, tão longe dos sectores onde normalmente circulavam, e aproximou-se para o olhar de perto.
Era um homem ainda jovem, alto e magro, com feições nobres e grandes olhos azuis. Tao Chi'en comprovou encantado que conseguia traduzir as dez palavras daquele fan guey e ele próprio conhecia pelo menos outras tantas em inglês, de modo que talvez fosse possível comunicarem. Cumprimentou-o com uma reverência cordial e o outro respondeu imitando desajeitadamente as inclinações. Os dois sorriram e depois começaram a rir, coroados pelas gargalhadas amáveis dos espectadores. Começaram um agitado diálogo de vinte palavras mal pronunciadas de parte a parte e uma cómica pantomima de saltimbancos, perante a hilaridade crescente dos curiosos. Depressa se juntou um grupo considerável de pessoas que impedia a passagem do tráfego, todas elas mortas de riso, chamando a atenção de um polícia britânico a cavalo, que mandou dispersar a aglomeração de imediato. Nasceu desta forma uma sólida aliança entre os dois homens.
Ebanizer Hobbs estava tão consciente das limitações do seu ofício, como Tao Chi'en estava das dele. O primeiro desejava aprender os segredos da medicina oriental, pressentidos nas suas viagens pela Ásia, especialmente o controlo da dor através de agulhas introduzidas nos terminais nervosos e a utilização de combinações de plantas e ervas para o tratamento de diversas doenças consideradas fatais na Europa. O segundo sentia fascínio pela medicina ocidental e pelos seus métodos agressivos de tratamento, uma vez que os seus consistiam numa arte subtil de equilíbrio e harmonia, uma tarefa lenta de endireitar a energia desviada, de prevenir as doenças e de procurar as causas dos sintomas. Tao Chi'en nunca tinha praticado cirurgia e os seus conhecimentos de anatomia, bastante precisos no que se referia às diversas pulsações e aos pontos de acupunctura, reduziam-se ao que podia ver e tocar. Sabia de cor os desenhos anatómicos da biblioteca do seu antigo mestre, mas nunca se lembrara de abrir um cadáver.
Esse costume era desconhecido na medicina chinesa, o seu sábio mestre, que toda a sua vida praticara a arte de sarar, raras vezes vira os órgãos internos e era incapaz de diagnosticar se se lhe deparassem sintomas que não coincidiam com o reportório dos males conhecidos. Ebanizer Hobbs, pelo contrário, abria cadáveres e procurava a causa, aprendendo desta forma. Tao Chi'en fê-lo pela primeira vez na cave do hospital dos ingleses, numa noite de tufões, como ajudante do doutor Ebanizer Hobbs que nessa mesma manhã colocara as suas primeiras agulhas de acupunctura para aliviar uma enxaqueca no consultório onde Tao Chi'en atendia a sua clientela. Em Hong-Kong havia alguns missionários tão interessados em curar o corpo como em converter a alma dos seus clientes, com quem o doutor Hobbs mantinha excelentes relações.
Estavam muito mais próximos da população local do que os médicos britânicos da colónia e admiravam os métodos da medicina oriental. Abriram as portas dos seus pequenos hospitais ao zhongyi. O entusiasmo de Tao Chi'en e Ebanizer Hobbs pelo estudo e experimentação levou-os inevitavelmente ao afecto. Reuniam-se quase em segredo, porque se a sua amizade se tornasse conhecida, arriscavam a sua reputação. Nem os pacientes europeus nem os chineses aceitavam que outra raça pudesse ter alguma coisa para ensinar-lhes.
O desejo de comprar uma esposa voltou a ocupar os sonhos de Tao Chi'en mal as suas finanças se endireitaram um pouco. Quando fez vinte e um anos contou mais uma vez as suas poupanças, como fazia com frequência, e verificou encantado que lhe chegavam para uma mulher de pés pequenos e carácter doce. Como já não tinha os seus pais para o ajudar na gestão, tal como exigia o costume, teve de recorrer a um agente. Mostraram-lhe retratos de várias candidatas, mas pareceram-lhe todas iguais, era-lhe impossível adivinhar o aspecto de uma rapariga - e muito menos a sua personalidade - a partir desses modestos desenhos a tinta. Não lhe era permitido vê-la com os seus próprios olhos ou ouvir a sua voz, como teria desejado, também não dispunha de um membro feminino da sua família que o fizesse por ele. Mas em contrapartida podia ver os seus pés sob uma cortina, mas tinham-lhe contado que nem sequer isso era seguro, porque os agentes costumavam fazer batota e mostrar os lírios dourados de outra mulher. Tinha de confiar no destino. Esteve quase a deixar a decisão aos dados, mas a tatuagem na sua mão direita recordou-lhe as suas desventuras passadas nos jogos de azar e preferiu confiar a tarefa ao espírito da sua mãe e ao do seu mestre de acupunctura. Depois de percorrer cinco templos fazendo oferendas, deitou a sorte com os pauzinhos do I Chin, onde leu que o momento era propício, e assim escolheu a noiva. O método não lhe falhou. Quando levantou o pano de seda vermelha da cabeça da sua nova esposa, depois de cumprir as cerimónias mínimas, pois não tinha dinheiro para um casamento mais grandioso, deparou-se-lhe um rosto harmonioso, que olhava obstinadamente para o chão. Repetiu o seu nome três vezes antes de ela se atrever a olhar para ele com os olhos cheios de lágrimas, tremendo de pavor.
Serei bom para ti - prometeu-lhe, tão emocionado como ela.
Desde o momento em que levantou esse pano vermelho, Tao adorou a jovem que lhe coubera em sorte. Esse amor apanhou-o de surpresa: não sabia que podiam existir sentimentos desses entre um homem e uma mulher.
Nunca ouvira manifestar este tipo de amor, lera apenas vagas referências na literatura clássica, onde as donzelas, tal como as paisagens ou a Lua, eram temas obrigatórios de inspiração poética. No entanto, julgava que no mundo real as mulheres eram apenas criaturas de trabalho e de reprodução, como as camponesas entre as quais se criara, ou então objectos caros de decoração. Lin não correspondia a nenhuma dessas categorias, era uma pessoa misteriosa e complexa, capaz de o desarmar com a sua ironia e de o desafiar com as suas perguntas. Fazia-o rir como ninguém, inventava histórias impossíveis, provocava-o com jogos de palavras. Na presença de Lin tudo parecia iluminar-se com um fulgor irresistível. A descoberta prodigiosa da intimidade com outro ser humano foi a experiência mais profunda da sua vida.
As prostitutas tivera encontros de galo apressado, mas nunca dispusera de tempo e de amor para conhecer a fundo nenhuma delas. Abrir os olhos pela manhã e ver Lin a dormir ao seu lado fazia-o rir-se de ventura e um instante depois estremecer de angústia. E se numa manhã ela não acordasse? O cheiro doce da sua transpiração nas noites de amor, o traço fino das suas sobrancelhas erguidas numa expressão de perpétua surpresa, a elegância impossível da sua cintura, toda ela o sufocava de ternura. Ah! E o riso dos dois. Isso era o melhor de tudo, a alegria despreocupada desse amor. Os livros de almofada do seu velho mestre, que tanta exaltação inútil lhe tinham provocado na adolescência, provaram ser de grande proveito à hora do prazer. Como correspondia a uma jovem virgem bem educada, Lin era modesta no seu comportamento diário, mas assim que perdeu o temor ao seu marido emergiu a sua natureza feminina espontânea e apaixonada. Em pouco tempo essa aluna ávida aprendeu as duzentas e vinte e duas maneiras de amar e sempre disposta a segui-lo nessa corrida desvairada, sugeriu ao marido que inventasse outras. Felizmente para Tao Chi'en, os requintados conhecimentos adquiridos em teoria na biblioteca do seu preceptor incluíam inúmeras formas de satisfazer uma mulher e sabia que o vigor conta muito menos do que a paciência. Os seus dedos estavam treinados para sentir as diversas pulsações do corpo e para localizar de olhos fechados os pontos mais sensíveis, as suas mãos quentes e firmes, peritas em aliviar as dores dos seus pacientes, transformaram-se em instrumentos de gozo infinito para Lin. Além disso descobrira algo que o honorável zhong yi se esquecera de ensinar-lhe: que o melhor afrodisíaco é o amor. Podiam ser tão felizes na cama, que os restantes inconvenientes da vida se apagavam durante a noite.
Mas esses inconvenientes eram muitos, como se tornou evidente passado pouco tempo.
Os espíritos invocados por Tao Chi'en para o ajudar na sua decisão matrimonial cumpriram na perfeição: Lin tinha os pés enfaixados e era tímida e doce como um esquilo. Mas Tao Chi'en esquecera-se de pedir também que a sua mulher tivesse força e saúde. A mesma mulher que parecia incansável à noite, durante o dia transformava-se numa inválida. Mal conseguia andar dois quarteirões com os seus passinhos de mutilada. É verdade que ao fazê-lo movia-se com a graça delicada de um junco exposto à brisa, como teria escrito o velho mestre de acupunctura em algumas das suas poesias, mas não era menos verdade que uma curta viagem ao mercado para comprar uma couve para o jantar significava um tormento para os seus lírios dourados. Ela nunca se queixava em voz alta, mas bastava vê-la transpirar e morder os lábios para adivinhar o esforço de cada movimento. Também não tinha bons pulmões. Respirava com um assobio agudo de pintassilgo, passava a estação das chuvas constipada e a temporada seca afogando-se porque o ar quente lhe ficava preso entre os dentes. Nem as ervas do marido nem os tónicos do seu amigo, o doutor inglês, conseguiam aliviá-la. Quando engravidou os seus males pioraram, pois o seu frágil esqueleto mal podia com o peso da criança.
Ao quarto mês deixou de sair por completo e sentou-se, lânguida, diante da janela a ver passar a vida pela rua. Tao Chi'en contratou duas criadas para se ocuparem das tarefas domésticas e acompanhá-la, porque receava que Lin morresse na sua ausência. Duplicou as suas horas de trabalho e pela primeira vez acossava os seus pacientes para lhes cobrar, o que o deixava cheio de vergonha. Sentia o olhar crítico do seu mestre recordando-lhe o dever de servir sem esperar recompensa, pois - quem mais sabe, mais obrigações tem com a humanidade- . No entanto, não podia atender gratuitamente ou em troca de favores, como fazia anteriormente, porque precisava de cada centavo para manter Lin com comodidade. Nessa altura dispunha do segundo andar de uma casa antiga, onde instalou a mulher com requintes que nenhum dos dois gozara antes, mas não estava satisfeito.
Meteu-se-lhe na cabeça conseguir uma casa com jardim, assim ela teria beleza e ar puro. O seu amigo Ebanizer Hobbs explicou-lhe uma vez que ele próprio se negava a encarar as evidências - que a tuberculose estava muito avançada e que não havia jardim capaz de curar Lin.
- Em vez de trabalhar de madrugada até à meia-noite para lhe comprar vestidos de seda e móveis de luxo, fique com ela o mais possível, doutor Chi'en. Deve gozá-la enquanto a tem - aconselhava Hobbs.
Os dois médicos acordaram, cada um deles partindo da perspectiva da sua própria experiência, que o parto seria para Lin uma prova de fogo.
Nenhum dos dois era entendido nessa matéria, pois quer na Europa quer na China estivera sempre nas mãos de parteiras, mas decidiram estudar. Não confiavam na perícia de uma mulher rude, como consideravam todas as desse ofício. Tinham-nas visto trabalhar com as suas mãos asquerosas, as suas bruxarias e os seus métodos brutais para separar a criança da mãe, e decidiram livrar Lin de tão funesta experiência. A jovem, no entanto, não queria dar à luz diante de dois homens, especialmente se um deles era um fan guey de olhos desbotados, que nem sequer conseguia falar a língua dos seres humanos. Suplicou ao marido que recorresse à parteira do bairro, porque a decência mais elementar a impedia de abrir as pernas diante de um diabo estrangeiro, mas Tao Chi'en, sempre disposto a satisfazê-la, desta vez mostrou-se inflexível. Por fim acordaram em que ele a atenderia pessoalmente, enquanto Ebanizer Hobbs permanecia no quarto ao lado para dar apoio verbal, caso fosse necessário.
O primeiro anúncio de parto foi um ataque de asma que por pouco não custou a vida de Lin. Confundiram-se os esforços para respirar com os do ventre para expelir a criança e tanto Tao Chi'en com todo o seu amor e ciência, como Ebanizer Hobbs com os seus textos de medicina, foram impotentes para a ajudar. Dez horas mais tarde, quando os gemidos da mãe se tinham reduzido ao borbulhar de um afogado e a criança não dava sinais de querer nascer, Tao Chi'en foi a voar buscar a parteira e, apesar da sua repulsa, trouxe-a praticamente arrastada. Tal como Chi'en e Hobbs receavam, a mulher era uma velha malcheirosa com a qual foi impossível trocar o menor conhecimento médico, porque o que ela tinha não era ciência mas longa experiência e antigo instinto. Começou por afastar os dois homens aos empurrões, proibindo-os de passar da cortina que separava os dois quartos.
Tao Chi'en nunca soube o que aconteceu atrás daquela cortina, mas tranquilizou-se quando ouviu Lin respirar sem se afogar e gritar com força.
Nas horas seguintes, enquanto Ebanizer Hobbs dormia extenuado numa poltrona e Tao Chi'en consultava desesperadamente o espírito do seu mestre, Lin trouxe ao mundo uma menina exangue. Como se tratava de um bebé do sexo feminino, nem a parteira nem o pai se preocuparam em reanimá-la, mas ambos se dedicaram à tarefa de salvar a mãe, que ia perdendo as suas escassas forças à medida que o sangue lhe escorria por entre as pernas.
Lin pouco lamentou a morte da menina, como se adivinhasse que não teria vida suficiente para a criar. Recompôs-se lentamente do mau parto e durante algum tempo tentou ser outra vez a companheira alegre das brincadeiras nocturnas. Com a mesma disciplina utilizada para dissimular as dores dos pés, fingia entusiasmo pelos abraços apaixonados do seu marido.
"O sexo é uma viagem, uma viagem sagrada", dizia-lhe muitas vezes, mas já não tinha ânimo para o acompanhar. Tanto desejava Tao Chi'en esse amor, que conseguiu ignorar um por um os sinais delatórios e acreditar até ao fim que Lin era a mesma de antes. Sonhara durante anos com filhos varões, mas agora só pretendia proteger a sua mulher de outra gravidez. Os seus sentimentos por Lin tinham-se transformado numa veneração que só a ela conseguia confessar, pensava que ninguém conseguiria entender esse amor sufocante por uma mulher, ninguém conhecia Lin como ele, ninguém sabia da luz que ela trazia à sua vida. Sou feliz, sou feliz, repetia para afastar as premonições funestas, que o assaltavam mal se descuidava. Mas não era. Já não se ria com a leviandade de outrora e quando estava com ela mal conseguia gozá-la, excepto nalguns momentos perfeitos do prazer carnal, porque vivia a observá-la, preocupado, sempre pendente da sua saúde, consciente da sua fragilidade, medindo o ritmo da sua respiração. Chegou a odiar os seus lírios dourados, que no princípio do seu casamento beijava arrebatado pela exaltação do desejo. Ebanizer Hobbs era partidário de que Lin desse longos passeios ao ar livre para fortalecer os pulmões e abrir o apetite, mas ela mal conseguia dar dez passos sem desfalecer. Tao não podia ficar junto da mulher todo o tempo, como sugeria Hobbs, porque tinha de providenciar o sustento de ambos. Cada instante separado dela parecia-lhe vida gasta na infelicidade, tempo roubado ao amor. Pôs ao serviço da sua amada toda a sua farmacopeia e os conhecimentos adquiridos em muitos anos de prática de medicina, mas um ano após o parto Lin estava transformada na sombra da rapariga alegre que fora antes. O marido tentava fazê-la rir, mas o riso soava falso aos dois.
Um dia Lin deixou de conseguir sair da cama. Afogava-se, as forças acabavam-se-lhe tossindo sangue e tentando aspirar ar. Recusava-se a comer, excepto colherzinhas de sopa magra, porque o esforço a esgotava.
Dormia sobressaltada nos raros momentos em que a tosse acalmava. Tao Chi'en calculou que estava há seis semanas a respirar com um ronquido líquido, como se estivesse submersa em água. Ao levantá-la nos braços comprovava como ia perdendo peso e a alma encolhia-se-lhe de terror. Tanto a viu sofrer, que a morte deveria chegar como um alívio, mas na madrugada fatídica em que amanheceu abraçado ao corpo gelado de Lin, julgou morrer também. Um grito longo e terrível, nascido das profundezas da terra, como um clamor de vulcão, sacudiu a casa e acordou o bairro. Vieram os vizinhos, abriram a porta ao pontapé e encontraram-no nu no meio do quarto com a mulher nos braços, uivando. Tiveram de o separar do corpo à força e de o dominar, até chegar Ebanizer Hobbs que o obrigou a beber uma quantidade de láudano capaz de derrubar um leão.
Tao Chi'en mergulhou na sua viuvez com um desespero total.
Fez um altar com o retrato de Lin e algumas das suas pertenças e passava horas a contemplá-lo, desolado. Deixou de ver os seus pacientes e de partilhar com Ebanizer Hobbs o estudo e a investigação, bases da sua amizade. Repugnavam-lhe os conselhos do inglês, que argumentava que "a dentada de um cão cura-se com o pêlo de outro cão" e que o melhor para se recompor do luto era visitar os bordéis do porto, onde poderia escolher quantas mulheres de pés disformes, como chamava aos lírios dourados, lhe apetecesse. Como podia sugerir-lhe semelhante aberração? Não existia quem pudesse substituir Lin, jamais amaria outra, disso Tao Chi'en tinha a certeza.
Só aceitava de Hobbs nesse tempo as suas generosas garrafas de whisky.
Passou semanas na letargia do álcool, até se lhe acabar o dinheiro e pouco a pouco ter de vender ou de empenhar as suas posses, até um dia não poder pagar a renda e ter de se mudar para um hotel de má nota. Então lembrou-se de que era um zhongyi e voltou a trabalhar, embora o fizesse a muito custo, com a roupa suja, a trança despenteada, mal barbeado. Como gozava de boa reputação, os pacientes suportaram o seu aspecto de espantalho e os seus erros de ébrio com a atitude resignada dos pobres, mas depressa deixaram de o consultar. Também Ebanizer Hobbs não voltou a chamá-lo para tratar os casos difíceis, porque perdeu confiança no seu critério. Até essa altura ambos se complementavam com êxito: o inglês podia pela primeira vez praticar cirurgia com audácia, graças às drogas poderosas e às agulhas de ouro capazes de mitigar a dor, reduzir as hemorragias e diminuir o tempo de cicatrização, e o chinês aprendeu o uso do bisturi e outros métodos da ciência europeia. Mas com as mãos trémulas e os olhos enevoados pelo álcool e pelas lágrimas, Tao Chi'en representava um perigo, mais do que uma ajuda.
Na Primavera de 1847 o destino de Tao Chi'en alterou-se de novo subitamente, tal como acontecera algumas vezes na sua vida. à medida que perdia os seus clientes regulares e se espalhava o rumor do seu desprestígio como médico, teve de se limitar aos bairros mais desesperados do porto, onde ninguém pedia as suas referências. Eram casos de rotina: contusões, navalhadas e ferimentos de bala. Uma noite Tao Chi'en foi chamado de urgência a uma taberna para coser um marinheiro depois de uma rixa monumental. Levaram-no para as traseiras do local, onde um homem jazia inconsciente com a cabeça aberta como um melão. O seu adversário, um gigantesco norueguês, tinha levantado uma pesada mesa de madeira e usara-a como alavanca para se defender dos seus atacantes, um grupo de chineses dispostos a dar-lhe uma sova memorável. Atiraram-se em massa para cima do norueguês e tê-lo-iam moído à pancada se não acorressem em sua ajuda vários marinheiros nórdicos, que bebiam no mesmo local, e o que começou como uma discussão de jogadores embriagados, converteu-se numa batalha racial. Quando Tao Chi'en chegou, aqueles que conseguiam andar tinham desaparecido há muito tempo. O norueguês regressou ileso ao seu navio escoltado por dois polícias ingleses e os únicos à vista eram o taberneiro, a vitima agonizante e o piloto, que conseguira afastar os polícias.
Se fosse europeu, certamente o ferido estaria nesse momento no hospital britânico, mas como se tratava de um asiático, as autoridades do porto não se incomodaram demasiado.
Bastou a Tao Chi'en um olhar para ver que não podia fazer nada por aquele pobre diabo com o crânio despedaçado e os miolos à vista. E foi isso que explicou ao piloto, um inglês barbudo e grosseiro.
- Chinês do diabo! Não podes limpar o sangue e coser-lhe a cabeça? - exigiu.
- Tem o crânio partido, para quê cosê-lo? Tem o direito de morrer em paz.
- Não pode morrer! O meu barco zarpa ao amanhecer e preciso deste homem a bordo! É o cozinheiro!
- Sinto muito - respondeu Tao Chi'en com uma vénia respeitosa, tentando dissimular a repugnância que aquele insensato fan Guey lhe provocava.
O piloto pediu uma garrafa de genebra e convidou Tao Chi'en a beber com ele. Se o cozinheiro não tinha salvação, bem podiam tomar um copo em seu nome, disse, para que depois o seu fantasma dum raio, maldito seja, não lhes viesse puxar os pés durante a noite. Instalaram-se a poucos passos do moribundo para se embebedarem sem pressa. De vez em quando Tao Chi'en inclinava-se para lhe medir a pulsação, calculando que não deviam restar-lhe mais do que alguns minutos de vida, mas o homem acabou por ser mais resistente do que esperavam. O zhongyi não se dava conta de como o inglês lhe enchia um copo atrás do outro, enquanto ele bebia apenas do seu.
Depressa ficou enjoado e já não se conseguia lembrar por que estava ali.
Uma hora mais tarde, quando o seu paciente teve algumas convulsões finais e expirou, Tao Chi'en não soube porque caíra ao chão inconsciente.
Acordou à luz de um dia resplandecente, abriu os olhos com enorme dificuldade e, assim que se conseguiu levantar um pouco, viu-se rodeado de céu e de água. Demorou bastante tempo a perceber que estava de costas sobre um grande rolo de cordas na coberta de um barco. O bater das ondas contra os costados do navio repicava na sua cabeça como altíssimas badaladas. Julgou ouvir vozes e gritos, mas não tinha a certeza de nada, podia até estar no inferno. Conseguiu pôr-se de joelhos e avançar de gatas alguns metros, quando uma náusea o invadiu e caiu de bruços. Poucos minutos mais tarde sentiu o embate de um balde de água fria na cabeça e uma voz dirigindo-se-lhe em cantonês. Levantou os olhos e deparou-se-lhe um rosto imberbe e simpático que o cumprimentava com um grande sorriso ao qual faltava metade dos dentes. Um segundo balde de água do mar acabou por tirá-lo do estupor. O jovem chinês que o molhava com tanto alá agachou-se ao seu lado rindo-se muito alto e dando palmadas nas coxas, como se a sua patética situação tivesse uma graça irresistível.
- Onde estou? - conseguiu balbuciar Tao Chi'en.
- Bem-vindo a bordo do Liberty! Vamos em direcção ao oeste, segundo parece.
- Mas eu não quero ir a lado nenhum! Tenho de desembarcar imediatamente!
Novas gargalhadas acolheram as suas intenções. Quando por fim conseguiu controlar a hilaridade, o homem explicou-lhe que tinha sido "contratado", tal como ele próprio o fora alguns meses antes. Tao Chi'en sentiu que ia desmaiar. Conhecia o método. Se faltavam homens para completar uma tripulação, recorria-se à prática expedita de embebedar ou de atordoar os incautos com uma pancada na cabeça para os alistar contra a sua vontade. A vida do mar era dura e mal paga, os acidentes, a má nutrição e as doenças faziam estragos, em cada viagem morria mais de um e os corpos iam parar ao fundo do oceano sem que ninguém voltasse a lembrar-se deles. Além disso, os capitães costumavam ser uns déspotas, que não prestavam contas a ninguém e que castigavam qualquer falta com chicotadas.
Em Xangai tinha sido necessário chegar a um acordo de cavalheiros entre os capitães para se limitarem os sequestros de homens livres e não serem roubados os marinheiros uns dos outros. Antes do acordo, cada vez que um deles ia ao porto beber uns copos, corria o risco de amanhecer noutro navio.
O piloto do Liberty decidiu substituir o cozinheiro morto por Tao Chi'en - aos seus olhos todos os "amarelos" eram iguais e era indiferente um ou outro - e depois de o embriagar levou-o para bordo. Antes que acordasse, marcou a impressão do seu dedo polegar num contrato, amarrando-o ao seu serviço por dois anos. Lentamente a gravidade do que sucedera perfilhou-se no cérebro embotado de Tao Chi'en. A ideia de se revoltar não lhe ocorreu, equivalia a um suicídio, mas decidiu desertar assim que tocassem terra em qualquer ponto do planeta.
O jovem ajudou-o a levantar-se e a lavar-se, levando-o depois ao porão do barco, onde se alinhavam os camarotes e as redes. Mostrou-lhe o seu lugar e uma gaveta para guardar as suas coisas. Tao Chi'en julgava ter perdido tudo, mas viu a sua malinha com os instrumentos médicos sobre o estrado de madeira que seria a sua cama. O piloto tivera a boa ideia de a salvar. O desenho de Lin, no entanto, tinha ficado no seu altar. Compreendeu horrorizado que talvez o espírito da sua mulher não conseguisse descobri-lo a meio do oceano. Os primeiros dias de navegação foram um suplício de mal-estar, era assaltado com frequência pela ideia de se atirar borda fora e acabar com os seus sofrimentos de uma vez por todas. Mal conseguiu aguentar-se de pé, foi destacado para a cozinha rudimentar, onde os utensílios pendiam de uns ganchos, batendo uns nos outros a cada vaivém com um barulho ensurdecedor. As provisões frescas obtidas em Hong-Kong esgotaram-se rapidamente e depressa ficaram limitados a peixe e carne salgada, feijão, açúcar, manteiga, farinha com bicho e biscoitos tão velhos que muitas vezes tinham de ser partidos a martelo. Todos os alimentos eram regados com molho de soja. Cada marinheiro dispunha de uma pinta de aguardente por dia para curar as mágoas e bochechar, porque as gengivas inflamadas eram um dos problemas da vida no mar. Para a mesa do capitão Tao Chi'en dispunha de ovos e marmelada inglesa, que tinha de proteger com a sua própria vida, como lhe disseram. As rações eram calculadas para durar a travessia se não surgissem inconvenientes naturais, como tempestades que os desviassem da rota, ou falta de vento que os paralisasse, e complementavam-se com peixe fresco apanhado nas redes pelo caminho. De Tao Chi'en não se esperava talento culinário, o seu papel consistia em controlar os alimentos, o álcool e a água doce destinada a cada homem e a lutar contra a deterioração e as ratazanas. Tinha de cumprir também as tarefas de limpeza e de navegação como qualquer marinheiro.
Passada uma semana começou a apreciar o ar livre, o trabalho rude e a companhia daqueles homens provenientes dos quatro pontos cardeais, cada um com a sua história, com as suas nostalgias e com as suas habilidades.
Nos momentos de descanso tocavam algum instrumento e contavam histórias de fantasmas do mar e de mulheres exóticas em portos longínquos. Os tripulantes provinham de muitos sítios, falavam diversas línguas e tinham costumes diferentes, mas estavam unidos por algo semelhante à amizade. O isolamento e a certeza de que necessitavam uns dos outros convertia homens, que em terra não se teriam olhado, em camaradas. Tao Chi'en voltou a rir-se, como não o fazia desde antes da doença de Lin. Uma manhã o piloto chamou-o para o apresentar pessoalmente ao capitão John Sommers, a quem vira apenas de longe na escotilha de comando. Viu-se diante de um homem alto, curtido pelos ventos de muitas latitudes, com uma barba escura e olhos de aço.
Dirigiu-se a ele através do piloto, que falava um pouco de cantonês, mas ele respondeu no seu inglês de livro, com o afectado acento aristocrático aprendido com Ebanizer Hobbs.
- Mister Oglesby diz-me que és uma espécie de curandeiro?
- Sou um zhongyi, um médico.
- Médico? Como médico?
- A medicina chinesa é alguns séculos mais antiga do que a inglesa, capitão - sorriu suavemente Tao Chi'en, com as palavras exactas do seu amigo Ebanizer Hobbs.
O capitão John Sommers levantou as sobrancelhas num gesto de cólera diante da insolência daquele homenzinho, mas a verdade desarmou-o. Pôs-se a rir com vontade.
- Vamos lá, mister Oglesby, sirva três copos de brandy. Vamos brindar com o doutor. Este é um luxo muito raro. É a primeira vez que levamos o nosso próprio médico a bordo!
Tao Chi'en não cumpriu o propósito de desertar no primeiro porto onde o Liberty tocasse, porque não soube para onde ir. Regressar à sua desesperada existência de viúvo em Hong-Kong fazia tão pouco sentido como continuar a navegar. Aqui ou ali era igual e ao menos como marinheiro podia viajar e aprender os métodos de curar usados noutras partes do mundo. A única coisa que o atormentava realmente era que, nesse deambular de onda em onda, talvez Lin não conseguisse localizá-lo, por muito que gritasse o seu nome a todos os ventos. No primeiro porto desceu como os restantes com licença para permanecer em terra por seis horas, mas em vez de as aproveitar em tabernas, perdeu-se no mercado procurando especiarias e plantas medicinais por encargo do capitão. "Já que temos um doutor, também precisamos de remédios", dissera. Deu-lhe um saco com moedas contadas e advertiu-o de que se pensava fugir ou enganá-lo, procurá-lo-ia até dar com ele e cortar-lhe-ia o pescoço com as suas próprias mãos, pois ainda não nas cera o homem capaz de troçar dele impunemente.
- Percebido, chinês?
- Percebido, inglês.
- A mim tratas-me por senhor!
- Sim, senhor - respondeu Tao Chi'en baixando os olhos, pois estava a aprender a não olhar para os brancos na cara.
A sua primeira surpresa foi descobrir que a China não era o centro absoluto do universo. Havia outras culturas, mais bárbaras, é verdade, mas muito mais poderosas. Não imaginava que os britânicos controlassem uma boa parte do orbe, tal como não suspeitava que outros fan Guey fossem donos de extensas colónias em terras longínquas repartidas pelos quatro continentes, como o capitão John Sommers se deu ao trabalho de lhe explicar no dia em que lhe arrancou um dente infectado diante das costas de África.
Efectuou a operação com limpeza e quase sem dor graças a uma combinação das suas agulhas de ouro nas fontes e de uma pasta de cravinho e eucalipto aplicada na gengiva. Quando terminou e o paciente aliviado e agradecido pôde concluir a sua garrafa de bebida, Tao Chi'en atreveu-se a perguntar para onde iam. Desconcertava-o viajar ás cegas, com a linha difusa do horizonte entre um mar e um céu infinitos como única referência.
- Vamos em direcção à Europa, mas para nós nada muda. Somos gente do mar, sempre na água. Queres voltar para a tua casa?
- Não, senhor.
- Tens família nalgum lado?
- Não, senhor.
- Então é-te indiferente irmos para o norte ou para o sul, para o este ou para o oeste, não é verdade?
- Sim, mas eu gosto de saber onde estou.
- Porquê?
- Para o caso de cair à água ou de nos afundarmos. O meu espírito precisará de orientar-se para regressar à China, senão ficará a vaguear sem rumo. A porta do céu fica na China.
- As coisas de que te lembras! - riu-se o capitão. - Então para ir para o Paraíso é preciso morrer na China? Olha para o mapa, homem. O teu país é o maior, é verdade, mas há muito mais mundo fora da China. Aqui está a Inglaterra, é apenas uma pequena ilha, mas se somares as nossas colónias, verás que somos nós de mais de metade do globo.
- Como?
- Tal como fizemos em Hong-Kong: com guerra e com embustes. Digamos que é uma mistura de poderio naval, cobiça e disciplina. Não somos superiores, mas mais cruéis e decididos. Não estou particularmente orgulhoso de ser inglês e quando tu tiveres viajado tanto como eu, também não terás orgulho de ser chinês.
Durante os dois anos seguintes, Tao Chi'en pisou terra firme três vezes, uma das quais foi em Inglaterra. Perdeu-se entre a multidão grosseira do porto e andou pelas ruas de Londres observando as novidades com os olhos de uma criança maravilhada. Os fan Guey eram cheios de surpresas, por um lado faltava-lhes o menor requinte e comportavam-se como selvagens, mas por outro eram capazes de uma prodigiosa imaginação. Comprovou que os ingleses padeciam no seu país da mesma arrogância e má educação demonstrada em Hong-Kong: tratavam-no sem respeito, desconheciam a cortesia e a etiqueta. Quis tomar uma cerveja, mas expulsaram-no da taberna aos empurrões: aqui não entram cães amarelos, disseram-lhe. Depressa se juntou a outros marinheiros asiáticos e encontraram um lugar dirigido por um velho chinês onde puderam comer, beber e fumar em paz. Ouvindo as histórias dos outros homens, calculou o muito que lhe faltava aprender e decidiu que a primeira coisa era o uso dos punhos e da faca. De pouco servem os conhecimentos se não somos capazes de nos defender, o sábio mestre de acupunctura também se esquecera de lhe ensinar aquele princípio fundamental.
Em Fevereiro de 1849 o Liberty atracou em Valparaíso. No dia seguinte o capitão John Sommers chamou-o à sua cabina e entregou-lhe uma carta.
- Deram-ma no porto, é para ti e vem de Inglaterra.
Tao Chi'en agarrou no envelope, corou e um enorme sorriso iluminou-lhe a cara.
- Não me digas que é uma carta de amor! - troçou o capitão.
- Melhor do que isso - respondeu, guardando-a entre o peito e a camisa. A carta só podia ser do seu amigo Ebanizer Hobbs, a primeira que recebera nos dois anos que passara a navegar.
- Fizeste um bom trabalho, Chi'en.
- Pensei que não gostava da minha comida, senhor - sorriu Tao.
- Como cozinheiro és um desastre, mas percebes de medicina. Em dois anos não me morreu um só homem e ninguém tem escorbuto. Sabes o que isso significa?
- Boa sorte.
- O teu contrato termina hoje. Suponho que poderia embebedar-te e fazer-te assinar um prolongamento. Talvez o fizesse com Outro, mas devo-te alguns serviços e eu pago as minhas dívidas. Aumento-te o ordenado. Queres continuar comigo?
- Para onde?
- Para a Califórnia. Mas deixarei este barco, acabam de oferecer-me um vapor, esta é uma oportunidade que esperei durante anos. Gostaria que viesses comigo.
Tao Chi'en ouvira falar dos vapores e tinha-lhes horror. A ideia de umas enormes caldeiras cheias de água a ferver para produzir Vapor e fazer mover uma maquinaria infernal, só podia ter ocorrido a gente muito apressada. Não era melhor viajar ao ritmo dos ventos e das correntes? Para quê desafiar a natureza? Corriam rumores de caldeiras que explodiam em alto mar, cozendo viva a tripulação. Os pedaços de carne humana, cozidos como camarões, voavam em todas as direcções para alimento dos peixes, enquanto as almas daqueles infelizes, desintegradas no fulgor da explosão e nos remoinhos de vapor, jamais se conseguiriam reunir com os seus antepassados. Tao Chi'en recordava claramente o aspecto da sua irmãzinha mais nova depois de lhe ter caído em cima a panela de água a ferver, tal como recordava os seus horríveis gemidos de dor e as convulsões da sua morte. Não estava disposto a correr esse risco. O ouro da Califórnia, que segundo diziam estava espalhado pelo chão como calhaus, também não o tentava demasiado. Não devia nada a John Sommers. O capitão era um pouco mais tolerante do que a maioria dos fan guey e tratava a tripulação com alguma equidade, mas não era seu amigo e não o seria nunca.
- Não, obrigado, senhor.
- Não queres conhecer a Califórnia? Podes tornar-te rico em pouco tempo e regressar à China convertido num maguata.
- Sim, mas num barco à vela.
- Porquê? Os vapores são mais modernos e mais rápidos.
Tao Chi'en não tentou explicar os seus motivos. Ficou em silêncio olhando para o chão com o boné na mão enquanto o capitão acabava de beber o seu whisky.
- Não posso obrigar-te - disse Sommers por fim. - Dar-te-ei uma carta de recomendação para o meu amigo Vincent Katz, do bergantim Emilia, que também zarpa para a Califórnia nos próximos dias. É um holandês bastante peculiar, muito religioso e severo, mas é bom homem e bom marinheiro. A tua viagem será mais lenta do que a minha, mas talvez nos encontremos em São Francisco e se estiveres arrependido da tua decisão, podes sempre voltar a trabalhar comigo.
O capitão John Sommers e Tao Chi'en deram as mãos pela primeira vez.
A viagem
Encolhida na sua toca no porão, Eliza começou a morrer. à escuridão e à sensação de estar emparedada em vida juntava-se o cheiro, uma mistura do conteúdo dos fardos e das caixas, de peixe salgado em barris e de peixe-piolho incrustado nas velhas madeiras do barco. O seu bom olfacto, tão útil para transitar pelo mundo de olhos fechados, convertera-se num instrumento de tortura. A sua única companhia era um estranho gato de três cores, sepultado como ela no porão para a proteger dos ratos. Tao Chi'en garantiu-lhe que se habituaria ao cheiro e à clausura, porque a quase tudo se habitua O corpo em tempos de necessidade, acrescentando que a viagem seria longa e que nunca poderia aparecer ao ar livre, de modo que mais valia não pensar para não enlouquecer. Teria água e comida, prometeu-lhe, disso ele próprio se encarregaria quando pudesse descer ao porão sem levantar suspeitas. O bergantim era pequeno, mas ia atestado de gente e seria fácil escapulir sob os mais variados pretextos.
- Obrigada. Quando chegarmos à Califórnia dar-lhe-ei o broche de turquesas...
- Guarde-o, já me pagou. Irá precisar dele. O que vai fazer à Califórnia?
- Vou casar-me. O meu noivo chama-se Joaquín. Atacou-o a doença sem melhoras aparentes e chegou uma altura em que a jovem tinha a pele solta como um pergaminho e já não conseguia levantar-se para fazer os exercícios que Tao lhe impunha. "Se não te mexeres o corpo intumesce e o teu espírito confunde-se", repetia-lhe. O bergantim tocou por pouco tempo os portos de Coquimbo, Caldera, Antofagasta, Iquique e Arica e em cada oportunidade tentou convencê-la a desembarcar e a procurar forma de voltar para casa, porque a via enfraquecer a cada instante e estava assustado.
Tinham deixado para trás o porto de Callao, quando a situação de Eliza deu uma reviravolta fatal. Tao Chi'en conseguira no mercado uma provisão de folhas de coca, cuja reputação medicinal conhecia bem, e três galinhas vivas que pensava manter escondidas para as sacrificar uma por uma, porque a doente precisava de alguma coisa mais suculenta do que as magras rações do barco. Cozinhou a primeira num caldo saturado de gengibre fresco e desceu decidido a dar a sopa a Eliza nem que fosse à viva força. Acendeu uma lanterna de sebo de baleia, abriu caminho entre os fardos e aproximou-se do tugúrio da rapariga, que estava com os olhos fechados e pareceu não se dar conta da sua presença. Sob o seu corpo espalhava-se uma enorme mancha de sangue. O zhong yi lançou uma exclamação e inclinou-se sobre ela, suspeitando que a infeliz tinha resolvido suicidar-se. Não podia culpá-la, em semelhantes condições ele teria feito o mesmo, pensou. Levantou-lhe a camisa, mas não havia nenhuma ferida visível e ao tocá-la verificou que ainda estava viva. Sacudiu-a até ela abrir os olhos.
- Estou grávida - admitiu ela por fim com um fio de voz.
Tao Chi'en levou as mãos à cabeça, perdido numa litania de lamentos no dialecto da sua aldeia natal, ao qual não recorria há quinze anos: se soubesse nunca a teria ajudado, como se atrevera a ir grávida para a Califórnia, estava louca, era o que lhe faltava, um aborto, se morresse ele estaria perdido, em que enorme complicação o metera, que parvo que era, como não adivinhara a causa da sua pressa em fugir do Chile.
Agregou juramentos e maldições por causa do ouro e foi embora. Disse que voltaria, mas eu não posso esperá-lo.
Assim que o navio abandonou a baía de Valparaíso e entrou em alto mar, Eliza começou a delirar. Durante horas esteve deitada na escuridão como um animal na sua própria porcaria, tão doente que não se lembrava onde estava e porquê, até que por fim se abriu a porta do porão e Tao Chi'en apareceu iluminado por um coto de vela, trazendo-lhe um prato de comida.
Bastou-lhe vê-la para se aperceber de que a rapariga não conseguiria levar nada à boca. Deu o jantar ao gato, saiu para buscar um balde com água e regressou para a limpar. Começou por dar-lhe de beber uma forte infusão de gengibre e por aplicar-lhe uma dúzia das suas agulhas de ouro, até o estômago se lhe acalmar. Eliza nem deu conta quando ele a despiu por completo, a lavou delicadamente com água do mar, a enxaguou com uma bacia de água doce e lhe deu uma massagem da cabeça aos pés com o mesmo bálsamo recomendado para tremores de malária. Instantes depois ela dormia, embrulhada na sua manta de Castela com o gato aos pés, enquanto Tao Chi'en, na coberta, lavava a roupa dela no mar, tentando não chamar a atenção, embora a essa hora os marinheiros estivessem a descansar. Os passageiros recém-embarcados iam tão enjoados como Eliza, perante a indiferença daqueles que vinham da Europa e que viajavam há três meses tendo passado já por essa prova.
Nos dias seguintes, enquanto os novos passageiros do Emilia se acostumavam ao bater das ondas e estabeleciam as rotinas necessárias ao resto da travessia, no fundo do porão Eliza estava cada vez mais doente. Tao Chi'en descia sempre que podia para lhe dar água e tentar acalmar as náuseas, admirado por o mal-estar aumentar em vez de diminuir. Tentou aliviá-la com os recursos conhecidos para estes casos e com outros improvisou desesperado, mas Eliza pouco conseguia manter no estômago e estava a ficar desidratada. Preparava-lhe água com sal e açúcar e dava-lhe às colherzinhas com infinita paciência, mas passaram-se duas semanas, mas ela desmaiara de novo e estava longe de qualquer censura. Segurou-a nos braços embalando-a como a um bebé, enquanto a sua raiva se ia convertendo em compaixão irreprimível. Por um momento lembrou-se de recorrer ao capitão Katz e de lhe confessar todo o problema, mas não conseguia prever a sua reacção. Esse holandês luterano, que tratava as mulheres que iam a bordo como se tivessem peste, certamente ficaria furioso quando soubesse que levava a outra escondida e ainda por cima grávida e moribunda. E que castigo reservaria para ele? Não, não podia dizê-lo a ninguém. A única alternativa seria esperar que Eliza morresse, se esse fosse o seu karma, e depois deitar o corpo ao mar juntamente com os sacos de lixo da cozinha. O máximo que poderia fazer por ela, se a visse sofrer demasiado, seria ajudá-la a morrer com dignidade.
Ia a caminho da saída, quando sentiu na pele uma presença estranha.
Assustado, levantou a lanterna e viu com perfeita clareza no círculo de luz trémula a sua adorada Lin observando-o a pouca distância com essa expressão trocista no seu rosto translúcido que era o seu maior encanto.
Trazia o seu vestido de seda verde bordado com fios dourados, o mesmo que usava nas grandes ocasiões, o cabelo apanhado num carrapito simples preso com pauzinhos de marfim e duas peónias frescas sobre as orelhas. Fora assim que a vira pela última vez, quando as mulheres da vizinhança a vestiram antes da cerimónia fúnebre. Foi tão real a aparição da sua mulher no porão, que sentiu pânico: os espíritos, por melhores que tivessem sido em vida, costumavam portar-se cruelmente com os mortais. Tentou fugir em direcção à porta, mas ela bloqueou-lhe o caminho. Tao Chi'en caiu de joelhos, tremendo, sem largar a lanterna, a sua única ligação com a realidade. Tentou uma oração para exorcizar os diabos, no caso de estes terem adoptado a forma de Lin para o confundir, mas não conseguiu lembrar-se das palavras e só um longo queixume de amor por ela e de nostalgia pelo passado saiu dos seus lábios. Então Lin inclinou-se sobre ele com a sua inesquecível suavidade, tão perto que, atrevendo-se, teria podido beijá-la, e sussurrou que não tinha vindo de tão longe para lhe meter medo, mas para lhe recordar os deveres de um médico honorável. Também ela estivera prestes a esvair-se em sangue como essa rapariga depois de dar à luz a sua filha e nessa altura ele tinha sido capaz de a salvar. Por que não fazia o mesmo por aquela jovem? O que estava a acontecer ao seu amado Tao? Tinha porventura perdido o seu bom coração e convertera-se numa barata? Uma morte prematura não era o karma de Eliza, garantiu-lhe. Se uma mulher está disposta a atravessar o mundo sepultada num buraco de pesadelo para encontrar o seu homem, é porque tem muito qi.
- Tens de a ajudar, Tao, se ela morrer sem ver o seu amado nunca terá paz e o seu fantasma perseguir-te-á para sempre - advertiu-o Lin antes de se esfumar.
- Espera! - suplicou o homem estendendo uma mão para a agarrar, mas os seus dedos fecharam-se no vazio.
Tao Chi'en ficou prostrado no chão durante muito tempo, tentando recuperar o raciocínio, até o seu coração enlouquecido deixar de galopar e o ténue aroma de Lin se ter dissipado no porão. Não vás embora, não vás embora, repetiu milhares de vezes, vencido de amor. Por fim conseguiu levantar-se, abrir a porta e sair para o ar livre.
Estava uma noite agradável. O oceano Pacífico brilhava como prata com os reflexos da Lua e uma ligeira brisa enfunava as velhas velas do Emilia. Muitos passageiros já se tinham retirado ou jogavam às cartas nas cabinas, outros tinham pendurado as suas redes para passar a noite entre a desordem de máquinas, apetrechos de cavalos e caixotes que enchiam as cobertas, e alguns entretinham-se na popa contemplando os golfinhos brincalhões no rasto de espuma do navio. Tao Chi'en ergueu os olhos para a imensa abóbada do céu, agradecido. Pela primeira vez desde a sua morte, Lin Visitava-o sem timidez. Antes de iniciar a sua vida de marinheiro tinha-a sentido perto em várias ocasiões, sobretudo quando mergulhava numa profunda meditação, mas nessa altura era fácil confundir a ténue presença do espírito dela com a sua ânsia de viúvo. Lin costumava passar-lhe ao lado roçando-lhe com os seus dedos finos, mas ele ficava na dúvida se teria sido realmente ela ou apenas uma criação da sua alma atormentada. No entanto, momentos antes no porão, não teve dúvidas: o rosto de Lin aparecera-lhe tão radiante e preciso, como nas noites remotas em que ela dormia aninhada nos seus braços depois de fazerem amor.
Tao Chi'en encaminhou-se para o dormitório da tripulação, onde dispunha de um estreito estrado de madeira, longe da única aragem que entrava pela porta. Era impossível dormir com o ar rarefeito e com a pestilência dos homens, mas não tivera de o fazer desde a saída de Valparaíso, porque o Verão permitia que se deitasse no chão da coberta.
Procurou o seu baú, pregado ao chão para o proteger do bater das ondas, tirou a chave do pescoço, abriu o cadeado e tirou a sua malinha e um frasco de láudano. Depois furtou uma dupla ração de água doce e procurou uns trapos na cozinha, que lhe serviriam à falta de algo melhor.
Dirigia-se de regresso ao porão quando uma mão sobre o seu braço o deteve. Voltou-se surpreendido e viu uma das chilenas que, desafiando a ordem peremptória do capitão para se recolherem depois do pôr do Sol, tinha saído para recrutar clientes. Reconheceu-a de imediato. De todas as mulheres a bordo, Azucena Placeres era a mais simpática e a mais atrevida.
Nos primeiros dias foi a única disposta a ajudar os passageiros enjoados e cuidou também com esmero de um jovem marinheiro que caiu do mastro e partiu um braço. Ganhou assim o respeito mesmo do severo capitão Katz, que a partir de então fez vista gorda à sua indisciplina. Azucena prestava de graça os seus serviços de enfermeira, mas quem se atrevesse a pôr uma mão em cima das suas carnes firmes tinha de pagar com dinheiro à vista, porque não se podia confundir bom coração com estupidez, como ela dizia.
Este é o meu único capital e se não tenho cuidado com ele, estou lixada, explicava, dando alegres palmadas nas nádegas. Azucena Placeres dirigiu-se-lhe com quatro palavras compreensíveis em qualquer língua: chocolate, café, tabaco, brandy. Como fazia sempre que se cruzava com ele, explicou com gestos atrevidos o seu desejo de trocar qualquer um daqueles luxos pelos seus favores, mas o zhong yi livrou-se dela com um empurrão e continuou o seu caminho.
Tao Chi'en esteve uma boa parte da noite junto da febril Eliza.
Trabalhou sobre aquele corpo exausto com os limitados recursos da sua malinha, da sua longa experiência e de uma vacilante ternura, até ela expulsar um molusco sanguinolento. Tao Chi'en examinou-o à luz da lanterna e pôde determinar sem margem para dúvidas que se tratava de um feto de várias semanas e que estava completo. Para limpar o ventre a fundo colocou as suas agulhas nos braços e nas pernas da jovem, provocando fortes contracções. Quando teve a certeza dos resultados suspirou aliviado: só restava pedir a Lin que interviesse para evitar uma infecção. Até essa noite Eliza representava para ele um pacto comercial e no fundo do seu baú estava o colar de pérolas que o provava. Era apenas uma rapariga desconhecida pela qual julgava não sentir interesse pessoal, uma fan guey de pés grandes e temperamento aguerrido a quem teria custado muito conseguir um marido, pois não mostrava qualquer disposição para agradar ou para servir um homem, isso era visível. Agora, desgraçada por um aborto, nunca mais poderia casar-se. Nem sequer o amante, que por outro lado já a tinha abandonado uma vez, a desejaria por esposa, no caso improvável de o encontrar algum dia. Admitia que, para estrangeira, Eliza não era de todo feia, tinha pelo menos um leve ar oriental nos seus olhos rasgados e tinha o cabelo comprido, preto e lustroso, como a cauda orgulhosa de um cavalo imperial. Se tivesse uma diabólica cabeleira amarela ou vermelha, como tantas que já vira desde a sua saída da China, talvez não se tivesse aproximado dela, mas nem o seu bom aspecto nem a firmeza do seu carácter a ajudariam, a sua má sorte estava lançada, não havia esperança para ela: acabaria como prostituta na Califórnia. Tinha frequentado muitas dessas mulheres em Cantão e em Hong-Kong. Devia grande parte dos seus conhecimentos médicos aos anos praticando sobre os corpos daquelas infelizes maltratadas por pancada, doenças e drogas. Várias vezes durante essa longa noite pensou se não seria mais nobre deixá-la morrer, apesar das instruções de Lin, salvando-a assim de um destino horrível, mas pagara-lhe adiantadamente e tinha de cumprir a sua parte do acordo, disse para si próprio. Não, não era essa a única razão, concluiu, uma vez que desde o início tinha questionado os seus próprios motivos para embarcar essa garota como clandestina no barco. O risco era enorme, não tinha a certeza de ter cometido tamanha imprudência apenas pelo valor das pérolas. Alguma coisa na corajosa determinação de Eliza o comovera, alguma coisa na fragilidade do seu corpo e no amor destemido que professava pelo seu amante lhe recordava Lin...
Finalmente ao amanhecer Eliza deixou de sangrar. Ardia em febre e tiritava apesar do calor insuportável do porão, mas a pulsação estava melhor e respirava tranquila no seu sono. No entanto, não estava fora de perigo. Tao Chi'en queria ficar ali para a vigiar, mas calculou que faltava pouco para o amanhecer e depressa repicaria o sino chamando-o por sua vez para o trabalho. Arrastou-se extenuado até à coberta, deixou-se cair de bruços sobre as tábuas do chão e adormeceu como um bebé, até uma amistosa patada de outro marinheiro o despertar para lhe recordar as suas obrigações. Mergulhou a cabeça num balde de água do mar para espevitar e, ainda atordoado, foi para a cozinha pôr a ferver as papas de aveia que constituíam o pequeno almoço de bordo. Todos as comiam sem comentários, até o sóbrio capitão Katz, excepto os chilenos que protestavam em coro, apesar de estarem mais bem fornecidos por terem sido os últimos a embarcar. Os restantes tinham dado cabo das suas provisões de tabaco, álcool e guloseimas nos meses de navegação que suportaram antes de chegar a Valparaiso. Correra o boato que alguns chilenos eram aristocratas, por isso não sabiam lavar as suas próprias cuecas ou ferver água para o chá. Os que viajavam em primeira classe levavam criados, que pensavam utilizar nas minas de ouro, porque a ideia de sujarem pessoalmente as mãos não lhes passava pela cabeça.
Outros preferiam pagar aos marinheiros para que os servissem, já que as mulheres tinham, em bloco, recusado fazê-lo, podiam ganhar dez vezes mais recebendo-os por dez minutos na privacidade da sua cabina, não havendo por isso razão para passarem duas horas a lavar-lhes a roupa. A tripulação e os outros passageiros troçavam daqueles fidalgotes mimados, mas nunca o faziam pela frente. Os chilenos tinham boas maneiras e faziam alarde de grande cortesia e cavalheirismo, mas bastava a menor faísca para lhes inflamar a soberba. Tao Chi'en tentava não se meter com eles. Esses homens não escondiam o seu desprezo por ele e por dois viajantes pretos embarcados no Brasil, que tinham pago a sua passagem completa, mas que eram os únicos a não dispor de camarote e que não estavam autorizados a partilhar a mesa com os restantes. Preferia as cinco humildes chilenas, com o seu sólido espírito prático, o seu perene bom humor e a vocação maternal que lhes aflorava nos momentos de maior necessidade.
Cumpriu o seu dia de trabalho como um sonâmbulo, com o espírito em Eliza, mas não teve um momento livre até à noite para a ver. A meio da manhã os marinheiros conseguiram pescar um tubarão enorme, que agonizou na coberta dando pancadas terríveis com a cauda, mas ninguém se atreveu a aproximar-se para acabar com ele à paulada. Tao Chi'en, na sua qualidade de cozinheiro, ficou encarregado de vigiar a faina de tirar a pele, cortá-lo em pedaços, cozinhar parte da carne e salgar o resto, enquanto os marinheiros lavavam o sangue da coberta com escovas e os passageiros festejavam o horrendo espectáculo com as últimas garrafas de champanhe, antecipando o festim do jantar. Guardou o coração para a sopa de Eliza e as barbatanas para as secar, porque valiam uma fortuna no mercado de afrodisíacos. À medida que passavam as horas, ocupado com o tubarão, Tao Chi'en imaginava Eliza morta no porão do barco. Sentiu uma tumultuosa felicidade quando conseguiu descer e verificou que ainda estava viva e que parecia melhor. A hemorragia tinha parado, o jarro de água estava vazio e tudo indicava que tivera momentos de lucidez durante aquele longo dia. Agradeceu brevemente a Lin pela sua ajuda. A jovem abriu os olhos com dificuldade, tinha os lábios secos e a cara afogueada pela febre. Ajudou-a a sentar-se e deu-lhe uma forte infusão de tangkuei para repor o sangue. Quando teve a certeza que a retinha no estômago, deu-lhe uns goles de leite fresco, que ela bebeu com avidez. Reanimada, anunciou que tinha fome e pediu mais leite.
As vacas que tinham a bordo, pouco habituadas a navegar, produziam pouco, estavam pele e osso e já se falava em matá-las. A Tao Chi'en a ideia de beber leite parecia-lhe asquerosa, mas o seu amigo Ebanizer Hobbs advertira-o sobre as suas propriedades para repor o sangue perdido. Se Hobbs o utilizava na dieta de feridos graves, devia ter o mesmo efeito neste caso, decidiu.
- Vou morrer, Tao?
- Ainda não - sorriu ele, acariciando-lhe a cabeça.
- Quanto tempo falta para chegarmos à Califórnia?
- Muito. Não penses nisso. Agora tens de urinar.
- Não, por favor - defendeu-se ela.
- Como não? Tens de o fazer!
- À tua frente?
- Eu sou um zhong yi. Não podes ter vergonha de mim. Já vi tudo o que havia para ver no teu corpo.
- Não consigo mexer-me, não conseguirei aguentar a viagem, Tao, prefiro morrer... - soluçou Eliza apoiando-se nele para se sentar no bacio.
- Coragem, menina! A Lin diz que tens muito qi e não chegaste tão longe para morrer a meio do caminho.
- Quem?
- Não tem importância.
Nessa noite Tao Chi'en compreendeu que não conseguia cuidar dela sozinho, que precisava de ajuda. No dia seguinte, assim que as mulheres saíram da sua cabina e se instalaram na popa, como faziam habitualmente para lavar roupa, entrançar o cabelo e coser as penas e as missangas dos vestidos da sua profissão, fez sinais a Azucena Placeres para lhe falar.
Durante a viagem nenhuma tinha usado as suas roupas de meretriz, vestiam-se com pesadas saias escuras e blusas sem adornos, calçavam chinelas, cobriam-se à tarde com os seus mantos, penteavam-se com duas tranças nas costas e não usavam maquilhagem. Pareciam um grupo de simples camponesas atarefadas nos trabalhos domésticos. A chilena piscou o olho com alegre cumplicidade às suas companheiras e seguiu-o até à cozinha. Tao Chi'en deu-lhe um grande bocado de chocolate, roubado da reserva da mesa do capitão, e tentou explicar-lhe o seu problema, mas ela não percebia nada de inglês e ele começou a perder a paciência. Azucena Placeres cheirou o chocolate e um sorriso infantil iluminou-lhe a cara redonda de índia. Agarrou na mão do cozinheiro e colocou-a sobre um seio, apontando-lhe a cabina das mulheres, desocupada a essa hora, mas ele retirou a mão, agarrou na dela e levou-a até ao alçapão que dava acesso ao porão. Azucena, entre admirada e curiosa, defendeu-se sem convicção, mas ele não lhe deu oportunidade para se recusar, abriu o alçapão e empurrou-a pelas escadinhas, sorrindo sempre para a tranquilizar. Durante alguns instantes permaneceram na escuridão, até ele ter encontrado a lanterna pendurada numa viga e acendê-la. Azucena ria- se: finalmente esse chinês extravagante entendera os termos do negócio.
Nunca o fizera com um asiático e tinha uma enorme curiosidade em saber se a ferramenta dele era como a dos Outros homens, mas o cozinheiro não fez tenções de aproveitar a privacidade e arrastou-a antes por um braço, abrindo caminho por aquele labirinto de volumes. Ela receou que o homem não estivesse bom da cabeça e começou a dar puxões para se libertar, mas ele não a soltou, obrigando-a a avançar até a lanterna iluminar o tugúrio onde Eliza jazia.
- Jesus, Maria, José! - exclamou Azucena benzendo-se aterrada ao vê- la.
- Diz-lhe que nos ajude - pediu Tao Chi'en a Eliza em inglês, sacudindo-a para a reanimar.
Eliza demorou um bom quarto de hora a traduzir, balbuciando, as breves instruções de Tao Chi'en, que tinha tirado o broche de turquesas do saquinho das jóias e o brandia diante dos olhos da trémula Azucena. O contrato, disse-lhe, consistia em descer duas vezes por dia para lavar Eliza e dar-lhe de comer, sem que ninguém soubesse. Se o fizesse, o broche seria seu em São Francisco, mas se dissesse uma única palavra a alguém, degolava-a. O homem tirara a faca do cinto e passava-a diante do nariz, enquanto na outra mão agitava o broche, de modo a deixar a mensagem bem clara.
- Entendes?
- Diz a esse chinês desgraçado que entendo e que guarde essa faca, porque num descuido ainda me mata sem querer.
Durante um tempo que pareceu interminável, Eliza debateu-se entre os desvarios da febre, atendida por Tao Chi'en de noite e por Azucena Placeres de dia. A mulher aproveitava o início da manhã e a hora da sesta, quando a maior parte dos passageiros dormitava, para sigilosamente se escapulir até à cozinha, onde Tao lhe entregava a chave. Ao princípio descia ao porão morta de medo, mas depressa a sua boa índole natural e o broche puderam mais do que o susto. Começou por esfregar Eliza com um trapo ensaboado até a limpar do suor da agonia, obrigava-a depois a comer as papas de leite com aveia e os caldos de galinha com arroz reforçados com tangkuei que Tao Chi'en preparava, dava-lhe as ervas tal como ele mandava, e por iniciativa própria dava-lhe uma chávena por dia de infusão de borragem. Confiava cegamente neste remédio para limpar o ventre de uma gravidez, borragem e uma imagem da Virgem del Carmen eram as primeiras coisas que ela e as suas companheiras de aventura tinham colocado nos seus baús de viagem, porque, sem aquelas protecções, os caminhos da Califórnia podiam ser muito duros de percorrer. A doente andou perdida nos espaços da morte até à manhã em que atracaram no porto de Guayaquil, um casario meio devorado pela exuberante vegetação equatorial, onde poucos barcos atracavam, excepto para negociar com frutos tropicais ou café, mas o capitão Katz tinha prometido entregar umas cartas a uma família de missionários holandeses.
Essa correspondência estava em seu poder há mais de seis meses e não era homem capaz de fugir a um compromisso. Na noite anterior, a meio de um calor de fogueira, Eliza suou a febre até à última gota, dormiu sonhando que trepava descalça pela resplandecente encosta de um vulcão em erupção e acordou ensopada, mas lúcida e com a testa fresca. Todos os passageiros, incluindo as mulheres, e boa parte da tripulação desceram por algumas horas para esticar as pernas, lavar-se no rio e fartar-se de fruta, mas Tao Chi'en ficou no barco para ensinar Eliza a acender e a fumar o cachimbo que ele levava no seu baú. Hesitava quanto à forma de tratar da rapariga, essa era uma das ocasiões em que teria dado qualquer coisa pelos conselhos do seu sábio mestre. Compreendia a necessidade de a manter tranquila para a ajudar a passar o tempo na prisão do porão, mas perdera muito sangue e receava que a droga lhe aguasse o sangue que lhe restava. Tomou a decisão vacilando, depois de suplicar a Lin que vigiasse de perto o sono de Eliza.
- Ópio. Far-te-á dormir, assim o tempo passará rapidamente.
- Ópio! Isso provoca loucura!
- Tu já estás louca de qualquer forma, não tens muito a perder - sorriu Tao.
- Queres matar-me, não é verdade?
- Claro. Não consegui quando te estavas a esvair em sangue, por isso agora fá-lo-ei com ópio.
- Ai, Tao, tenho medo...
- Muito ópio é mau. Pouco é um consolo e eu vou-te dar muito pouco.
A jovem não soube o que era muito ou pouco. Tao Chi'en dava-lhe a beber as suas poções - osso de dragão e concha de osira - e racionava-lhe o ópio para lhe dar algumas horas de um misericordioso sono leve, sem permitir que se perdesse por completo num paraíso sem retorno. Passou as semanas seguintes voando noutras galáxias, longe do esconderijo insalubre onde o seu corpo jazia prostrado, e acordava só quando desciam para lhe dar de comer, para a lavar e para a obrigar a dar alguns passos no estreito labirinto do porão. Não sentia o tormento de pulgas e piolhos, nem o cheiro nauseabundo que ao princípio não podia tolerar, porque as drogas aturdiam o seu prodigioso olfacto. Entrava e saía dos seus sonhos sem qualquer controlo e não conseguia lembrar-se deles, mas Tao Chi'en tinha razão: o tempo passou rapidamente. Azucena Placeres não entendia por que razão Eliza viajava nessas condições. Nenhuma delas tinha pago a sua passagem, embarcaram fazendo um contrato com o capitão, que obteria o custo da passagem ao chegar a São Francisco.
- Se os rumores estiverem certos, num só dia podes meter ao bolso quinhentos dólares. Os mineiros pagam em ouro puro. Passam meses sem ver mulheres, estão desesperados. Fala com o capitão e paga-lhe quando chegares - insistia nos momentos em que Eliza se sentava.
- Não sou uma de vocês - replicava Eliza aturdida na doce bruma das drogas.
Por fim, num momento de lucidez, Azucena Placeres conseguiu que Eliza lhe confessasse parte da sua história. De imediato a ideia de ajudar uma fugitiva de amor apoderou-se da imaginação da mulher e a partir daí tratou da doente com maior esmero. não se limitava a cumprir o acordo de alimentá-la e lavá-la, ficava também junto dela pelo prazer de a ver dormir. Se estava acordada contava-lhe a sua própria vida e ensinava-lhe a rezar o rosário que, dizia, era a melhor forma de passar as horas sem pensar e ao mesmo tempo ganhar o céu sem muito esforço. Para uma pessoa da sua profissão, explicou, era um recurso insuperável. Poupava rigorosamente uma parte dos seus lucros para comprar indulgências à Igreja, reduzindo assim os dias de purgatório que deveria passar na outra vida, embora de acordo com os seus cálculos, nunca fossem suficientes para cobrir todos os seus pecados.
Decorreram semanas sem que Eliza soubesse se era dia ou noite. Tinha a sensação vaga de contar de vez em quando com uma presença feminina ao seu lado, mas depressa adormecia e acordava confusa, sem saber se tinha sonhado com Azucena Placeres ou se na realidade existia uma mulherzinha de tranças pretas, nariz achatado e pómulos salientes, que parecia uma versão jovem de Mama Fresia.
O clima refrescou um pouco ao deixarem o Panamá para trás, onde o capitão proibira as idas a terra por receio de contágio de febre amarela, limitando-se a enviar alguns marinheiros num bote para trazerem água doce, porque a pouca que lhes restava transformara-se num pântano. Passaram o México e quando o Emilia navegava nas águas do norte da Califórnia, entraram na estação do Inverno. O sufoco da primeira parte da viagem transformou-se em frio e humidade, das malas saíram gorros de pele, botas, luvas e saias de lã. De vez em quando o bergantim cruzava-se com outros navios saudando-se de longe, sem diminuir a marcha. Em cada serviço religioso o capitão agradecia ao céu os ventos favoráveis, porque tinha conhecimento de barcos desviados até às costas do Havai, ou mais longe, à procura de impulso para as velas. Aos golfinhos brincalhões juntaram-se as grandes baleias solenes que os acompanhavam por longos trechos. Ao entardecer, quando a água se tingia de vermelho com os reflexos do pôr do Sol, os enormes cetáceos amavam-se num fragor de espuma dourada, chamando-se uns aos Outros com profundos bramidos submarinos. E às vezes, no silêncio da noite, aproximavam-se tanto do barco, que se podia ouvir com nitidez o rumor pesado e misterioso das suas presenças. As provisões frescas tinham desaparecido e as rações secas escasseavam, não havia outras diversões, excepto jogar às cartas e pescar. Os viajantes passavam horas discutindo os pormenores das sociedades formadas para a aventura, algumas com severos regulamentos militares e até com uniformes, outras mais moderadas. Consistiam todas basicamente em unir-se para financiar a viagem e o equipamento, trabalhar nas minas, transportar o ouro e depois repartir os lucros equitativamente. Não conheciam o terreno ou as distâncias. Uma das sociedades estipulava que todas as noites os membros deviam regressar ao barco, onde pensavam viver durante meses, e depositar O ouro do dia numa caixa-forte. O capitão Katz explicou-lhes que não podiam alugar o Ernilja como hotel, porque ele pensava regressar à Europa o mais rapidamente possível, e as minas ficavam a centenas de milhas do porto, mas ignoraram-no. Tinham cinquenta e dois dias de viagem, a monotonia da água infinita alterava os nervos e as brigas surgiam ao menor pretexto. Quando um passageiro chileno esteve prestes a descarregar o seu trabuco sobre um marinheiro com quem Azucena Placeres namoriscava demasiado, O capitão Vincent Katz confiscou as armas, incluindo as navalhas de barbear com a promessa de as devolver à viata de São Francisco. O único autorizado a utilizar facas foi o cozinheiro, que tinha a tarefa ingrata de matar um por um os animais domésticos. Tendo ido a última vaca parar à panela, Tao Chi'en improvisou uma elaborada cerimónia para obter o perdão dos animais sacrificados e limpar o sangue derramado, desinfectando depois a sua faca, que passou várias vezes pela chama de uma tocha.
Assim que o navio entrou nas águas da Califórnia, Tao Chi'en tirou paulatinamente as ervas tranquilizantes e o Ópio a Eliza, dedicou-se a alimentá-la e obrigou-a a fazer exercício para poder sair da sua prisão pelos seus próprios pés. Azucena Placeres ensaboava-a com paciência e até improvisou uma maneira de lhe lavar o cabelo com chávenas de água, enquanto lhe contava a sua triste vida de meretriz e a sua alegre fantasia de enriquecer na Califórnia e voltar ao Chile convertida numa senhora, com seis baús de vestidos de rainha e um dente de ouro. Tao Chi'en hesitava sobre o meio de que se valeria para desembarcar Eliza, mas se a tinha podido embarcar num saco, certamente poderia utilizar o mesmo método para a fazer descer. E uma vez em terra, a jovem já não era da sua responsabilidade. A ideia de se libertar definitivamente dela provocava-lhe um grande alívio e uma incompreensível ansiedade.
Faltando poucas léguas para chegar ao destino, o Emilia foi contornando a costa do norte da Califórnia. Segundo Azucena Placeres era tão parecida à do Chile, que certamente tinham andado em círculos como as lagostas e estavam outra vez em Valparaíso. Milhares de lobos marinhos e de focas abandonavam as rochas e caíam pesadamente à água, a meio da confusão sufocante das gaivotas e dos pelicanos. Não se via vivalma nos penhascos, nem rasto de qualquer povoado, nem sombra dos índios que, segundo se dizia, habitavam essas regiões encantadas há séculos. Por fim aproximaram-se dos ilhéus que anunciavam a proximidade da Porta de Ouro, a famosa Golden Gate, umbral da baía de São Francisco. Uma espessa bruma envolveu o barco como um manto, não se via nada a meio metro de distância e o capitão mandou parar a marcha e lançar âncora com receio de embater. Estavam muito perto e a impaciência dos passageiros convertera-se em alvoroço. Falavam todos ao mesmo tempo, preparando-se para pisar terra firme e sair disparados rumo aos aluviões à procura do tesouro. A maior parte das sociedades para exploração das minas desfizera-se nos últimos dias, o tédio da navegação tinha tornado os sócios inimigos e cada homem pensava só em si próprio, mergulhado em propósitos de imensas riquezas. Não faltaram aqueles que declararam o seu amor às prostitutas, dispostos a pedir ao capitão que os casasse antes de desembarcar, porque ouviram dizer que O que mais rareava naquelas terras bárbaras eram as mulheres. Uma das peruanas aceitou a proposta de um francês, que estava há tanto tempo no mar que já nem se lembrava do seu próprio nome, mas o capitão Vincent Katz recusou-se a celebrar a boda quando soube que o homem tinha mulher e quatro filhos em Avinhão. As outras recusaram linearmente os pretendentes, porque tinham feito uma viagem tão penosa para serem livres e ricas, disseram, e não para se converterem em criadas do primeiro pobretão que lhes propusesse casamento.
O entusiasmo dos homens, mergulhados na leitosa irrealidade da neblina, foi-se apaziguando à medida que as horas passavam imóveis. Por fim, ao segundo dia, o céu abriu subitamente, puderam levantar âncora e lançar-se com as velas desfraldadas na última etapa da longa viagem.
Passageiros e tripulantes foram até à coberta para admirar a estreita passagem do Golden Gate, seis milhas de navegação impulsionados pelo vento de Abril, sob um céu diáfano. De ambos os lados, erguiam-se cerros costeiros coroados de bosques, cortados como uma ferida pelo trabalho eterno das ondas, atrás ficava o oceano Pacífico e à frente estendia-se a baía magnífica como um lago de águas de prata. Uma salva de exclamações saudou o fim da árdua travessia e o princípio da aventura do ouro para aqueles homens e mulheres, bem como para os vinte tripulantes, que decidiram nesse mesmo instante abandonar o navio à sua sorte e lançar-se eles também às minas. Os únicos impassíveis eram o capitão holandês Vincent Katz, que permaneceu no seu posto junto ao leme sem revelar a menor emoção porque o ouro não o impressionava, só desejava regressar a Amsterdão a tempo de passar o Natal com a família, e Eliza Sommers no ventre do veleiro, que não soube que tinham chegado senão muitas horas mais tarde.
O que primeiro assombrou Tao Chi'en ao entrar na baía, foi um bosque de mastros à sua direita. Era impossível contá-los, mas calculou mais de cem barcos abandonados numa desordem de batalha. Qualquer trabalhador em terra ganhava num dia mais do que um marinheiro num mês de navegação, os homens não desertavam apenas pelo ouro, mas pela tentação de fazer dinheiro carregando sacos, fazendo pão ou forjando ferraduras. Algumas embarcações vazias eram alugadas como armazéns ou hotéis improvisados, outras deterioravam-se cobertas de algas marinhas e ninhos de gaivotas. Um segundo olhar revelou a Tao Chi'en a cidade estendida como um leque nas encostas das colinas, um amontoado de tendas de campanha, cabanas de tábuas e de cartão e alguns edifícios simples, mas de boa construção, os primeiros naquela povoação nascente. Depois de lançar a âncora receberam o primeiro bote, que não era da capitania do porto, conforme supunham, mas de um chileno desejoso de dar as boas-vindas aos seus compatriotas e de recolher o correio. Era Feliciano Rodriguez de Santa Cruz, que tinha mudado o seu nome sonante para Felix Cross, para que os yanques conseguissem pronunciá-lo. Apesar de vários passageiros serem seus amigos pessoais, ninguém o reconheceu, porque do peralvilho de sobrecasaca e bigode engomado que tinham visto pela última vez em Valparaíso, nada restava, diante deles apareceu um cavernícola hirsuto, com a pele curtida de um índio, roupa de montanhês, botas russas até meia perna e dois pistolões à cintura, acompanhado por um preto de aspecto igualmente selvagem, também armado como um bandoleiro. Era um escravo fugitivo que, ao pisar a Califórnia, se convertera num homem livre, mas como não foi capaz de suportar as penúrias da mineração, preferiu ganhar a vida como caceteiro a soldo. Quando Feliciano se identificou foi recebido com gritos de entusiasmo e levado praticamente em ombros até à primeira classe, onde os passageiros em massa lhe pediram noticias. O único interesse que tinham era saber se o mineral abundava como diziam, ao que respondeu que havia muito mais e tirou da sua bolsa uma substância amarela em forma de caca esmagada e anunciou que era uma pepita de meio quilo de peso e que estava disposto a trocá-la mano a mano por todo o álcool existente a bordo, mas não se fez negócio porque só restavam três garrafas, o resto tinha sido consumido na viagem. A pepita tinha sido encontrada, disse, pelos bravos mineiros trazidos do Chile, que agora trabalhavam para ele nas margens do rio Americano.
Depois de brindarem com a última reserva de álcool e de o chileno ter recebido as cartas da mulher, este passou a informá-los como sobreviver nesta região.
- Há alguns meses tínhamos um código de honra e até os piores rufiões se comportavam com decência. Podia-se deixar o ouro numa tenda sem vigilância, que ninguém lhe mexia, mas agora tudo mudou. Impera a lei da selva, a única ideologia é a cobiça. Não se separem das vossas armas e andem aos pares ou em grupos, isto é terra de foragidos - explicou.
Vários botes tinham rodeado o navio, tripulados por homens que propunham aos gritos diversos negócios, decididos a comprar qualquer coisa, porque em terra a vendiam por cinco vezes o seu valor. Depressa Os incautos viajantes descobririam a arte da especulação. à tarde apareceu o capitão do porto acompanhado por um agente da alfândega e atrás dois botes com vários mexicanos e alguns chineses que se ofereceram para transferir a carga do barco para o cais. Cobravam uma fortuna, mas não havia alternativa. O capitão do porto não manifestou qualquer intenção de verificar os passaportes ou de averiguar a identidade dos passageiros.
- Documentos? Nada disso! Chegaram ao paraíso da liberdade. Aqui não existe papel selado - anunciou.
As mulheres, pelo contrário, interessavam-lhe vivamente. Vangloriava-se de ser o primeiro a provar todas as que desembarcavam em São Francisco, embora não fossem tantas como desejaria. Contou que as primeiras a aparecer pela cidade, há já vários meses, foram recebidas por uma multidão de homens eufóricos, que fizeram fila durante horas para ocupar a sua vez a preço de ouro em pó, pepitas, moedas e até em lingotes.
Tratava-se de duas valentes raparigas yanques, que tinham feito a viagem desde Boston chegando ao Pacífico pelo istmo do Panamá. Adjudicaram os seus serviços ao melhor licitador, ganhando num dia as receitas normais de um ano. Desde então tinham chegado mais de quinhentas, quase todas mexicanas, chilenas e peruanas, salvo umas quantas norte-americanas e francesas, embora o seu número fosse insignificante comparado com a crescente invasão de homens jovens e sós.
Azucena Placeres não ouviu as notícias do yanquee, porque Tao Chi'en a levou até ao porão assim que soube da presença do agente da alfândega. Não podia desembarcar a rapariga num saco ao ombro de um estivador, como a embarcara, porque certamente a carga seria revistada.
Eliza surpreendeu-se ao vê-los, estavam ambos irreconhecíveis: ele vestia um camisão e calças recém-lavadas, a sua trança apertada brilhava como que oleada e barbeara-se cuidadosamente até ao último pêlo da testa e da cara, enquanto Azucena Placeres trocara a sua roupa de camponesa pelos trajes de batalha e usava um vestido azul com penas no decote, um penteado alto coroado por um chapéu e carmim nos lábios e nas faces.
- Terminou a viagem e ainda estás viva, filhinha - anunciou-lhe alegremente.
Pensava emprestar a Eliza um dos seus vistosos vestidos e tirá-la do barco como se fosse mais uma do seu grupo, ideia nada despropositada, pois certamente esse seria o seu único ofício em terra firme, conforme explicou.
- Venho casar-me com o meu noivo - respondeu Eliza pela centésima vez.
- Não há noivo que te valha neste caso. Se para comer, for preciso vender o traseiro, vende-se. Numa altura destas não podes preocupar-te com pormenores, filhinha.
Tao Chi'en interrompeu-as. Se durante dois meses havia sete mulheres a bordo, não podiam desembarcar oito, argumentou. Reparara no grupo de mexicanos e de chineses que tinha subido a bordo para descarregar e que esperava na coberta as ordens do capitão e do agente alfandegário. Pediu a Azucena que penteasse o longo cabelo de Eliza numa trança como a sua, enquanto ele ia buscar uma muda da sua própria roupa. Vestiram a rapariga com umas calças, um camisão amarrado à cintura com uma corda e um chapéu de palha tipo sombrinha. Nestes dois meses chapinhando nas dunas do inferno, Eliza perdera peso e estava esquálida e pálida como papel de arroz. Com as roupas de Tao Chi'en, demasiado grandes para ela, parecia um miúdo chinês subnutrido e triste. Azucena Placeres cobriu-a com os seus braços robustos de lavadeira e pespegou-lhe um beijo emocionado na testa.
Tinha-se afeiçoado a ela e no fundo alegrava-a que ela tivesse um noivo à sua espera, porque não conseguia imaginá-la sujeita às brutalidades da vida que ela suportava.
- Pareces uma lagartixa - riu-se Azucena Placeres.
- E se me descobrem?
- Qual é a pior coisa que te pode acontecer? Que Katz te obrigue a pagar a passagem. Podes pagá-la com as tuas jóias, não é para isso que as tens? - alvitrou a mulher.
- Ninguém deve saber que estás aqui. Assim o capitão Sommers não te irá procurar na Califórnia - disse Tao Chi'en.
- Se me encontrar, leva-me de volta para o Chile.
- Para quê? De qualquer forma já estás desonrada. Os ricos não aguentam isso. A tua família deve estar muito contente por teres desaparecido, assim não terão de expulsar-te.
- Só isso? Na China matar-te-iam pelo que fizeste.
- Bom, chinês, não estamos no teu país. Não assustes a garota. Podes sair descansada, Eliza. Ninguém reparará em ti. Estarão distraídos olhando para mim - garantiu-lhe Azucena Placeres, despedindo-se num remoinho de penas azuis, com o broche de turquesas preso ao decote.
Assim foi. As cinco chilenas e as duas peruanas, nos seus mais exuberantes trajes de conquista, foram o espectáculo do dia. Desceram para os botes por escadas de corda, precedidas por sete felizardos marinheiros, que tinham sorteado o privilégio de suster com as cabeças as nádegas das mulheres, a meio de um coro de assobios e de aplausos de centenas de curiosos amontoados no porto para as receber.
Ninguém prestou atenção aos mexicanos e aos chineses que, como uma fileira de formigas, passavam a carga de mão em mão. Eliza ocupou um dos últimos botes junto de Tao Chi'en, que anunciou aos seus compatriotas que o rapaz era surdo-mudo e um pouco imbecil, de modo que era difícil tentar comunicar com ele.
Argonautas
Tao Chi'en e Eliza Sommers puseram pela primeira vez os pés em São Francisco às duas da tarde de uma terça-feira de Abril de 1849. Nessa altura já milhares de aventureiros tinham passado brevemente por ali rumo aos aluviões. Um vento pertinaz dificultava a marcha, mas o dia estava limpo e puderam apreciar o panorama da baía na sua esplêndida beleza. Tao Chi'en tinha um aspecto esquisito com a sua malinha de médico, de que nunca se separava, uma trouxa às costas, chapéu de palha e um poncho de lá multicor comprado a um dos carregadores mexicanos. Nesta cidade, no entanto, o aspecto era o menos. à Eliza tremiam-lhe as pernas, que não usara em dois meses e sentia-se tão enjoada em terra firme como antes o estivera no mar, mas a roupa de homem dava-lhe uma liberdade desconhecida, nunca se sentira tão invisível. Quando se recompôs da impressão de estar nua, pôde desfrutar da brisa metendo-se-lhe pelas mangas da blusa e pelas calças.
Habituada à prisão dos corpetes, respirava agora a plenos pulmões. A muito custo conseguia carregar a pequena malinha com os primorosos vestidos que Miss Rose preparara com a melhor intenção e, ao vê-la vacilar, Tao Chi'en tirou-a e pô-la ao ombro. A manta de Castela, enrolada debaixo do braço, pesava tanto como a mala, mas ela compreendeu que não a podia deixar, seria o seu bem mais precioso durante a noite. Com a cabeça baixa, escondida sob o seu chapéu de palha, avançava aos tropeções na pavorosa anarquia do porto. A vilória de Yerba Buena, fundada por uma expedição espanhola em 1769, tinha menos de quinhentos habitantes, mas assim que se espalhou a notícia do ouro começaram a chegar os aventureiros. Em poucos meses aquele pequeno povoado inocente acordou com o nome de São Francisco e a sua fama chegou até aos confins do mundo. Não era ainda uma verdadeira cidade, apenas um gigantesco acampamento de homens de passagem.
A febre do ouro não deixou ninguém indiferente: ferreiros, carpinteiros, professores, médicos, soldados, fugitivos da justiça, pregadores, padeiros, revolucionários e loucos mansos do mais variado aspecto tinham deixado para trás famílias e bens para atravessar meio mundo atrás da aventura.
"Procuram ouro e pelo caminho perdem a alma", repetira incansavelmente o capitão Katz em cada um dos breves ofícios religiosos que impunha aos domingos aos passageiros e à tripulação do Emilia, mas ninguém fazia caso, ofuscados pela ilusão de uma riqueza súbita capaz de mudar as suas vidas.
Pela primeira vez na história, o ouro estava pelo chão sem dono, grátis e abundante, ao alcance de quem decidisse apanhá-lo. Das mais longínquas paragens chegavam os argonautas: europeus que fugiam das guerras, pestes e tiranias, yanquees ambiciosos e destemidos, pretos atrás da liberdade, oregoneses e russos vestidos de peles, como índios, mexicanos, chilenos e pernanos, bandidos australianos, famintos camponeses chineses que arriscavam a cabeça por violarem a proibição imperial de abandonar a sua pátria. Nas enlameadas ruelas de São Francisco misturavam-se todas as raças.
As ruas principais, traçadas como amplos semicírculos cujas extremidades tocavam na praia, eram cortadas por outras rectas que desciam das colinas abruptas e terminavam no cais, algumas tão íngremes e cheias de barro, que nem as mulas conseguiam subir. De repente soprava um vento de tempestade, levantando torvelinhos de pó e areia, mas passado pouco tempo o ar voltava a ficar calmo e o céu límpido. Já existiam vários edifícios sólidos e dúzias em construção, mesmo alguns que se anunciavam como futuros hotéis de luxo, mas o resto era uma amálgama de casas provisórias, barracas, casebres de chapa de ferro, de madeira ou de cartão, tendas de lona e telheiros de palha. As chuvas do Inverno recente tinham transformado o cais num pântano, os poucos veículos atolavam-se no barro e eram necessárias pranchas para passar por cima das valas cobertas de lixo, dos milhares de garrafas partidas e de outros desperdícios. Não existiam sarjetas ou esgotos e os poços estavam contaminados, a cólera e a disenteria provocavam a mortalidade, excepto entre os chineses, que habitualmente bebiam chá, e os chilenos, criados com a água infecta do seu país e imunes, por isso, às bactérias menores. A multidão heterogénea pululava numa actividade frenética, empurrando-se e tropeçando com materiais de construção, barris, caixotes, burros e carroças. Os carregadores chineses balançavam a sua carga nas extremidades de uma vara, sem reparar em quem batiam ao passar, os mexicanos, fortes e pacientes, punham às costas O equivalente ao seu próprio peso e subiam as colinas a trote, Os malaios e os havaianos aproveitavam qualquer pretexto para começar uma briga, os yanquees entravam a cavalo pelas lojas improvisadas, esmagando quem se metesse à frente, os californianos nascidos na região exibiam, ufanos, bonitos casacos bordados, esporas de prata e calças abertas aos lados com uma fila dupla de botões de ouro, da cintura até às botas. A gritaria de lutas ou de acidentes, contribuía para aumentar o barulho de marteladas, serras e picaretas. Ouviam-se tiros com uma frequência aterradora, mas ninguém se alterava por um morto a mais ou a menos, mas um furto de uma caixa de pregos atraía de imediato um grupo de indignados cidadãos dispostos a fazer justiça pelas suas próprias mãos. A propriedade era muito mais valiosa do que a vida, qualquer roubo superior a cem dólares pagava-se com a forca.
Abundavam as casas de jogo, os bares e os satoons, decorados com imagens de mulheres nuas, à falta de mulheres de verdade. Nos toldos vendia-se de tudo, sobretudo álcool e armas, a preços exuberantes porque ninguém tinha tempo de regatear. Os clientes pagavam quase sempre em ouro sem parar para limpar o pó que ficava agarrado aos pesos. Tao Chi'en decidiu que a famosa Gum San, a Montanha Dourada da qual tanto ouvira falar, era um inferno e calculou que, a estes preços, as suas poupanças dariam para muito pouco. O saquinho de jóias de Eliza seria inútil, pois a única moeda aceitável era o metal puro.
Eliza abria caminho por entre a turba conforme podia, colada a Tao Chi'en e agradecida pela sua roupa de homem, porque não se entreviam mulheres em lado nenhum. As sete viajantes do Emilia tinham sido conduzidas em ombros para um dos muitos saloons, onde sem dúvida já estariam a ganhar os duzentos e setenta dólares da passagem que deviam ao capitão Vincent Katz. Tao Chi'en tinha averiguado com os carregadores que a cidade estava dividida em sectores e cada nacionalidade ocupava uma área. Preveniram-no que não se aproximasse dos rufiões australianos, que podiam atacá-los pelo simples prazer da diversão, e apontaram na direcção de um amontoado de tendas e casebres onde viviam os chineses. Para lá se dirigiu.
- Como vou encontrar Joaquín nesta barafunda? - perguntou Eliza, sentindo-se perdida e impotente.
- Se há um bairro chinês, deve haver um bairro chileno. Procura-o.
- Não penso separar-me de ti, Tao.
- À noite regresso ao barco - advertiu ele.
- Para quê? Não te interessa o ouro?
Tao Chi'en apressou o passo e ela ajustou o seu para não o perder de vista. Assim chegaram ao bairro chinês - Little Canton, como o chamavam - duas ruas insalubres, onde ele se sentiu de imediato como em sua casa porque não se via uma única cara de fan gúey, o ar estava impregnado pelos cheiros deliciosos da comida do seu país e ouviam-se vários dialectos, principalmente cantonês. Para Eliza, pelo contrário, foi como aterrar noutro planeta, não entendia uma palavra e parecia-lhe que toda a gente estava furiosa, porque gesticulavam aos gritos. Ali também não viu mulheres, mas Tao apontou para algumas janelinhas com barrotes por onde espreitavam uns rostos desesperados. Estava há dois meses sem mulher e essas chamavam-no, mas conhecia demasiado bem os estragos das doenças venéreas para correr esse risco com uma de tão má nota. Eram garotas camponesas compradas por algumas moedas e trazidas das mais remotas províncias da China. Pensou na sua irmã, vendida pelo seu pai, e uma vaga de náusea dobrou-o em dois.
- O que se passa, Tao?
- Más recordações... Essas raparigas são escravas.
- Não dizem que na Califórnia não há escravos?
Entraram num restaurante, assinalado pelas tradicionais faixas amarelas. Havia um longo balcão cheio de homens que, ombro a ombro, devoravam com rapidez. O ruído dos pauzinhos contra as tigelas e a conversa em voz alta eram música para os ouvidos de Tao Chi'en. Esperaram de pé em fila dupla até conseguirem sentar-se. Não era possível escolher, mas aproveitar o que passasse ao alcance da mão. Era necessário perícia para agarrar o prato no ar antes que Outro mais esperto o interceptasse, mas Tao Chi'en conseguiu um para Eliza e outro para ele. Ela observou desconfiada um líquido esverdeado, onde flutuavam fiapos pálidos e moluscos gelatinosos. Gabava-se de reconhecer qualquer ingrediente pelo cheiro, mas aquilo nem lhe pareceu comestível, tinha aspecto de água pantanosa com girinos, mas tinha a vantagem de não exigir pauzinhos, podia sorver-se directamente da taça. A fome pôde mais do que a suspeita e atreveu-se a provar, enquanto atrás de si uma fila de clientes impacientes a apressava aos gritos. O prato era delicioso e de boa vontade teria comido mais, mas Tao Chi'en não lhe deu tempo e agarrando-a por um braço levou-a para fora. Ela seguiu-o, primeiro a percorrer as lojas do bairro para repor os produtos medicinais da sua malinha e falar com alguns ervanários chineses que trabalhavam na cidade e, depois, até uma casa de jogo, das muitas que havia em cada quarteirão. Era um edifício de madeira com pretensões luxuosas e decorado com pinturas de mulheres voluptuosas semidespidas. O ouro em pó pesava-se para ser trocado por moedas, a dezasseis dólares por onça, ou colocava-se simplesmente o saco todo sobre a mesa. Americanos, franceses e mexicanos constituíam a maior parte dos clientes, mas havia também aventureiros do Havai, Chile, Austrália e Rússia. Os jogos mais populares eram o monte de Origem mexicana e lesquenet. Como os chineses preferiam o fan tan e arriscavam apenas alguns centavos, não eram bem-vindos às mesas onde se jogava forte. Não se via um único preto a jogar, embora houvesse alguns a tocar ou a servir às mesas, mais tarde souberam que, se entravam em bares ou em casas de jogo, recebiam uma bebida grátis e tinham de sair ou expulsavam-nos aos tiros. Havia três mulheres no salão, duas jovens mexicanas de grandes olhos faiscantes, vestidas de branco e fumando um cigarro atrás do outro, e uma francesa com um corpete apertado e uma maquilhagem espessa, já um pouco madura apesar de bonita.
Percorriam as mesas incitando ao jogo e à bebida e costumavam desaparecer com frequência pelo braço de algum cliente atrás de uma cortina de brocado vermelho. Tao Chi'en foi informado que cobravam uma onça de ouro pela sua companhia no bar durante uma hora e várias centenas de dólares para passarem a noite inteira com um homem solitário, mas a francesa era mais cara e não se relacionava com pretos ou chineses.
Eliza, despercebida no seu papel de rapaz oriental, sentou-se a um canto, extenuada, enquanto ele conversava com um e com outro averiguando pormenores do ouro e da vida na Califórnia. A Tao Chi'en, protegido pela lembrança de Lin, era-lhe mais suportável a tentação das mulheres do que a do jogo. O som das fichas do fan tan e dos dados contra a superfície das mesas chamava-o com voz de sereia. A visão dos baralhos de cartas nas mãos dos jogadores fazia-o suar, mas absteve-se, fortalecido pela convicção de que a boa sorte o abandonaria para sempre se quebrasse a sua promessa. Anos mais tarde, depois de múltiplas aventuras, Eliza perguntou-lhe a que boa sorte se referia e ele, sem pensar duas vezes, respondeu que a de estar vivo e tê-la conhecido. Nessa tarde inteirou-se que os aluviões ficavam nos rios Sacramento, Americano, San Joaquín e nas suas centenas de estuários, mas os mapas não eram de fiar e as distâncias eram imensas.
O ouro fácil da superfície começava a escassear. É verdade que não faltavam mineiros felizardos que tropeçavam com uma pepita do tamanho de um sapato, mas a maior parte conformava-se com um punhado de pó obtido à custa de um esforço desmesurado. Falava-se muito do ouro, mas pouco do sacrifício para o obter.
Necessitava-se de uma onça diária para ter algum lucro, desde que se estivesse disposto a viver como um cão, porque os preços eram exorbitantes e o ouro desaparecia num abrir e fechar de olhos. Os comerciantes e prestamistas, pelo contrário, enriqueciam, como um patrício que se dedicou a lavar roupa e que, em poucos meses, pôde construir uma casa de material sólido e que já estava a pensar regressar à China, comprar várias mulheres e dedicar-se a produzir filhos varões, ou outro que emprestava dinheiro numa casa de jogo com juros de dez por cento à hora, ou seja, a mais de oitenta e sete mil por ano.
Confirmaram-lhe histórias fabulosas de pepitas enormes, de pó em abundância misturado com areia, de veios em pedras de quartzo, de mulas que soltavam pedregulhos com os cascos e por baixo aparecia um tesouro, mas tornar-se rico exigia trabalho e sorte. Aos yanquees faltava-lhes paciência, não sabiam trabalhar em equipa, vencia-os a indisciplina e a cobiça. Mexicanos e chilenos entendiam de mineração, mas gastavam muito, oregoneses e russos perdiam o seu tempo lutando e bebendo. Os chineses, pelo contrário, tiravam proveito por pobre que fosse a sua propriedade, porque eram frugais, não se embriagavam e labutavam como formigas dezoito horas sem descanso nem lamentos. Os fan guey indignavam-se com o êxito dos chineses, advertiram-no, era necessário dissimular, fazerem-se tontos, não os provocar, senão passaria tão mal como os orgulhosos mexicanos. Sim, informaram-no, existia um acampamento de chilenos, ficava um pouco afastado do centro da cidade, no pontal da direita, e chamava-se Chilecito, mas era já demasiado tarde para se aventurar por esses lados sem outra companhia para além do seu irmão atrasado.
- Eu regresso ao barco - anunciou Tao Chi'en a Eliza quando por fim saíram da casa de jogo.
- Sinto-me enjoada, como se estivesse a cair.
- Estiveste bastante doente. Precisas de comer bem e de descansar.
- Não posso fazer isto sozinha, Tao. Por favor, não me deixes ainda...
- Tenho um contrato, o capitão mandar-me-á procurar.
- E quem cumprirá a ordem? Todos os barcos estão abandonados. Não ficou ninguém a bordo. Esse capitão poderá esganiçar-se de tanto gritar que nenhum dos seus marinheiros regressará.
O que vou fazer com ela? perguntou-se Tao Chi'en em voz alta e em cantonês. O seu acordo terminava em São Francisco, mas não se sentia capaz de a abandonar à sua sorte num lugar como este. Estava preso, pelo menos até ela estar mais forte, contactar com outros chilenos ou dar com o paradeiro do seu escorregadio apaixonado. Não seria difícil, calculou. Por confuso que parecesse São Francisco, para os chineses não havia segredos em nenhum sítio, podia bem esperar até ao dia seguinte e acompanhá-la a Chilecito. Tinha caído a noite, dando ao lugar um aspecto fantasmagórico. As casas eram quase todas de lona e as lanternas no interior tornavam-nas transparentes e luminosas como diamantes. As tochas e fogueiras nas ruas e a música das casas de jogo contribuíam para a impressão de irrealidade. Tao Chi'en procurou alojamento para a noite e deu com um grande telheiro de uns vinte e cinco metros de comprido por oito de largo, feito de tábuas e chapas metálicas recuperadas dos barcos encalhados e coroado por um letreiro de hotel. Lá dentro havia dois andares de beliches empoleirados, simples estantes de madeira onde um homem encolhido podia estender-se, com um balcão ao fundo onde se vendia bebidas alcoólicas. Não existiam janelas e o único ar para respirar entrava pelas ranhuras entre as pranchas das paredes.
Por um dólar adquiria-se o direito a pernoitar e era preciso trazer a sua própria roupa de cama. Os primeiros a chegar ocupavam os beliches, os restantes aterravam pelo chão, mas a eles, porque eram chineses, não lhes deram nenhum, embora houvesse beliches desocupados. Deitaram-se no chão de terra com a trouxa de roupa por almofada, o poncho de lã de cores vistosas e a manta de Castela por único agasalho. Depressa se encheu de homens de várias raças e cataduras, que se estendiam uns ao lado dos outros em filas apertadas, vestidos e com as suas armas à mão. A pestilência de porcaria, tabaco e eflúvios humanos, mais os roncos e as vozes estridentes dos que se perdiam nos seus pesadelos, tornavam o sono difícil, mas Eliza estava tão cansada que não soube como passaram as horas.
Acordou ao amanhecer tiritando de frio, aninhada contra as costas de Tao Chi'en, e então descobriu o seu aroma a mar. No barco confundia-se com a água imensa que os rodeava, mas nessa noite soube que era a fragrância peculiar do corpo desse homem. Fechou os olhos, apertou-se mais contra ele e rapidamente voltou a adormecer.
No dia seguinte partiram ambos em busca de Chilecito, que ela reconheceu imediatamente porque uma bandeira chilena ondulava ufana no alto de um pau e porque a maior parte dos homens usava os típicos chapéus maulinos em forma de cone. Eram à volta de oito a dez quarteirões atafulhados de gente, incluindo algumas mulheres e crianças que tinham viajado com os homens, todos dedicados a algum ofício ou negócio. As casas eram tendas de campanha, choças e casebres de madeira rodeadas por uma confusão de ferramentas e de lixo. Havia também restaurantes, hotéis improvisados e bordéis. Calculavam em cerca de dois mil os chilenos instalados no bairro, mas ninguém os contara e na verdade era apenas um local de passagem para os recém-chegados. Eliza sentiu-se feliz ao ouvir a língua do seu país e ver um letreiro numa esfarrapada tenda de lona anunciando pequenes e chunchules.
Aproximou-se e, dissimulando o seu acento chileno, pediu uma porção dos segundos. Tao Chi'en ficou a olhar para aquele estranho alimento, servido num pedaço de papel de jornal à falta de prato, sem saber que raio era aquilo. Ela explicou-lhe que se tratava de tripas de porco fritas em gordura.
- Ontem eu comi a tua sopa chinesa. Hoje tu comes os meus chunchules chilenos - ordenou-lhe.
- Como é possível que falem castelhano, chineses? - inquiriu amavelmente o vendedor.
- O meu amigo não fala, só eu porque estive no Peru - respondeu Eliza.
- E o que procuram por aqui?
- Um chileno, Joaquín Andieta.
- E procuram-no para quê?
- Temos uma mensagem para ele. Conhece-o?
- Por aqui passou muita gente nos últimos meses. Ninguém fica mais do que alguns dias, partem rapidamente para os aluviões. Alguns voltam, outros não.
- E Joaquín Andieta?
- Não me lembro, mas vou perguntar.
Eliza e Tao Chi'en sentaram-se a comer à sombra de um pinheiro. Vinte minutos mais tarde o vendedor de comida voltou acompanhado por um homem com aspecto de índio do norte, de pernas curtas e costas largas, que disse que Joaquín Andieta tinha partido em direcção aos aluviões de Sacramento há pelo menos uns dois meses, embora ali ninguém ligasse aos calendários nem tivesse em conta as andanças alheias.
- Vamos para Sacramento, Tao - decidiu Eliza assim que se afastaram de Chilecito.
- Não podes viajar ainda. Deves descansar algum tempo.
- Descansarei lá, quando o encontrar.
- Prefiro regressar com o capitão Katz. A Califórnia não é lugar para mim.
- O que se passa contigo? Tens sangue de barata? No barco não ficou ninguém, só esse capitão com a sua Bíblia. Toda a gente anda à procura do ouro e tu pensas continuar como cozinheiro com um salário miserável!
- Não acredito na fortuna fácil. Quero uma vida tranquila.
- Bom, se não é o ouro, outra coisa haverá que te interesse...
- Aprender.
- Aprender o quê? Já sabes muito.
- Tenho tudo para aprender!
- Então chegaste ao lugar ideal. Não sabes nada deste país. Aqui são precisos médicos. Quantos homens achas que há nas minas? Milhares! E todos precisam de um médico. Esta é a terra das oportunidades, Tao. Vem comigo a Sacramento. Além disso, se não vieres comigo não chegarei muito longe...
Por uma bagatela, dadas as funestas condições da embarcação, Tao Chi'en e Eliza partiram rumo ao norte, percorrendo a extensa baía de São Francisco. O barco ia repleto de viajantes com os seus complicados equipamentos de mineração, ninguém se conseguia mexer naquele espaço reduzido atestado de caixotes, ferramentas, cestos e sacos com provisões, pólvora e armas. O capitão e o seu imediato eram uns yanques de má catadura, mas bons navegantes e generosos com os escassos alimentos e até com as suas garrafas de bebida. Tao Chi'en negociou com eles a passagem de Eliza e a ele permitiram-lhe trocar o custo da passagem pelos seus serviços de marinheiro. Os passageiros, todos com Os seus pistolões à cintura, além de facas ou navalhas, poucas palavras dirigiram uns aos outros durante o primeiro dia, excepto para se insultarem por alguma cotovelada ou patada, inevitáveis naquele aperto. Ao amanhecer do segundo dia, depois de uma longa noite fria e húmida, ancorados perto da margem perante a impossibilidade de navegarem às escuras, cada qual se sentia rodeado de inimigos. As barbas crescidas, a sujidade, a comida execrável, os mosquitos, o vento e a corrente contrária, contribuíam para irritar os espíritos. Tao Chi'en, o único sem planos nem metas, parecia estar perfeitamente sereno e quando não se debatia com a vela admirava o panorama extraordinário da baía. Eliza pelo contrário ia desesperada no seu papel de rapaz surdo-mudo e tonto. Tao Chi'en apresentou-a rapidamente como sendo o seu irmão mais novo e conseguiu acomodá-la num canto mais ou menos protegido do vento, onde ela permaneceu tão quieta e calada, que passado pouco tempo ninguém se lembrava da sua existência. A sua manta de Castela desfilava água, tiritava de frio e tinha as pernas dormentes, mas fortalecia-a a ideia de se aproximar minuto a minuto de Joaquín. Tocava no peito onde levava as cartas de amor e em silêncio recitava-as de cor. Ao terceiro dia os passageiros tinham perdido uma boa parte da agressividade e jaziam prostrados nas suas roupas molhadas, um pouco bêbedos e bastante desanimados.
A baía acabou por ser bastante mais extensa do que tinham imaginado, as distâncias marcadas nos seus patéticos mapas em nada se pareciam às milhas reais, e quando julgaram ter chegado ao destino viram que ainda lhes faltava atravessar uma segunda baía, a de São Paulo. Nas margens avistavam-se alguns acampamentos e botes atestados de gente e de mercadoria, para lá dos bosques espessos. Também não era ali que acabava a viagem, tiveram de passar por um canal tormentoso e entrar numa terceira baía, a de Suisun, onde a navegação se tornou ainda mais lenta e difícil, e depois num rio estreito e profundo que os levou até Sacramento.
Estavam por fim perto da terra onde tinha sido encontrada a primeira escama de ouro. Aquele pedacinho insignificante, do tamanho de uma unha de mulher, tinha provocado uma invasão incontrolável, transformando a face da Califórnia e a alma da nação norte-americana, como escreveria pouco anos mais tarde Jacob Todd, convertido em jornalista. "Os Estados Unidos foram fundados por peregrinos, pioneiros e imigrantes modestos, com uma ética de trabalho duro e coragem face à adversidade. O ouro colocou em evidência o pior do carácter americano: a cobiça e a violência."
O capitão da embarcação explicou-lhes que a cidade de Sacramento tinha nascido da noite para o dia no último ano. O porto estava cheio de embarcações variadas, dispunha de ruas bem traçadas, casas e edifícios de madeira, comércio, uma igreja e um bom número de casas de jogo, bares e bordéis, no entanto parecia uma cena de um naufrágio, porque o chão estava pejado de sacos, montadas, ferramentas e todo o tipo de lixo deixado pelos mineiros apressados em partir para os aluviões. Grandes passarocos pretos voavam sobre os desperdícios e as moscas formavam uma nuvem. Eliza calculou que em poucos dias conseguia percorrer o povoado casa a casa: não seria muito difícil encontrar Joaquín Andieta. Os passageiros da barcaça, agora animados e amistosos pela proximidade do porto, partilhavam os últimos goles de bebida, despediam-se com palmatoadas e cantavam em coro algo sobre uma tal Susana, perante o estupor de Tao Chi'en, que não entendia uma transformação tão súbita. Desembarcou com Eliza antes dos outros, porque traziam muito pouca bagagem, e dirigiram-se sem vacilar ao sector dos chineses, onde conseguiram alguma comida e hospedagem sob um toldo de lona encerada. Eliza não conseguia seguir a conversa em cantonês e a única coisa que desejava era averiguar o paradeiro do seu apaixonado, mas Tao Chi'en recordou-lhe que se devia calar e pediu-lhe calma e paciência. Nessa mesma noite ao zhong yi coube-lhe arranjar um ombro deslocado de um patrício, colocando-lhe o osso de volta ao lugar, ganhando de imediato com isso o respeito do acampamento.
Na manhã seguinte partiram os dois à procura de Joaquín Andieta.
Comprovaram que os seus companheiros de viagem já estavam prontos para partir para os aluviões, alguns tinham conseguido mulas para transportar o equipamento, mas a maior parte ia a pé, deixando para trás uma boa parte dos seus bens. Percorreram todo o povoado sem encontrar rasto de quem procuravam, mas uns chilenos julgavam lembrar-se de alguém com esse nome que passara por ali há um ou dois meses atrás. Aconselharam-nos a seguir rio acima, onde talvez dessem com ele, era tudo uma questão de sorte. Um mês era uma eternidade. Ninguém se preocupava com quem estivera ali no dia anterior, não importavam os nomes ou os destinos alheios. A única obsessão era o ouro.
- Que faremos agora, Tao?
- Trabalhar. Sem dinheiro nada se pode fazer - respondeu ele, pondo ao ombro uns pedaços de lona que encontrou entre os restos abandonados.
- Não posso esperar! Tenho de encontrar Joaquín. Tenho algum dinheiro.
- Reais chilenos? Não servirão de muito.
- E as jóias que me restam? Devem valer alguma coisa...
- Guarda-as, aqui pouco valem. É preciso trabalhar para comprar uma mula. O meu pai ia de aldeia em aldeia curando. O meu avô também. Eu posso fazer o mesmo, mas aqui as distâncias são grandes. Preciso de uma mula.
- Uma mula? Já temos uma: tu. Como és teimoso!
- Menos teimoso do que tu.
Juntaram paus e umas quantas tábuas, pediram algumas ferramentas emprestadas e montaram uma casa com as lonas como tecto, que acabou por ser um casebre precário, pronto a desmoronar-se com a primeira borrasca, mas que pelo menos os protegia do orvalho da noite e das chuvas primaveris. Tinha corrido a notícia dos conhecimentos de Tao Chi'en e depressa chegaram pacientes chineses, que comprovaram o talento extraordinário daquele zhong yí, depois mexicanos e chilenos, por último alguns americanos e europeus. Ao saberem que Tao Chi'en era tão competente como qualquer um dos três doutores brancos e cobrava menos, muitos venceram a sua repugnância relativamente aos "celestiais" e decidiram experimentar a ciência asiática. Nalguns dias, Tao Chi'en estava tão ocupado, que Eliza tinha de o ajudar. Fascinava-a ver as suas mãos delicadas e hábeis tomando as diversas pulsações nos braços e nas pernas, apalpando o corpo dos doentes como se os acariciasse, inserindo as agulhas em pontos misteriosos que só ele parecia conhecer. Quantos anos tinha esse homem?
Perguntou-lhe uma vez e ele respondeu que contando todas as suas reencarnações, teria certamente entre sete e oito mil. A olho nu, Eliza calculava que tivesse uns trinta, embora, quando se ria em algumas ocasiões, parecesse mais jovem do que ela. No entanto, quando se inclinava sobre um doente em total concentração, adquiria a antiguidade de uma tartaruga, nessa altura era fácil acreditar que tinha muitos anos nas costas. Ela observava-o admirada enquanto ele examinava a urina dos seus pacientes num copo e, pelo cheiro e pela cor, era capaz de determinar males ocultos, ou quando estudava as pupilas com uma lente de aumento para deduzir o que faltava ou sobrava no organismo. às vezes limitava-se a colocar as mãos sobre o ventre ou a cabeça do doente, fechava os olhos e dava a impressão de se perder num longo sonho.
- O que estavas a fazer? - perguntava-lhe depois Eliza.
- Sentia a sua dor e transmitia-lhe energia. A energia negativa provoca sofrimento e doenças, a energia positiva pode curar.
- E como é essa energia positiva, Tao?
- É como o amor: quente e luminosa.
Extrair balas e tratar facadas eram intervenções rotineiras e Eliza perdeu o horror ao sangue e aprendeu a coser carne humana com a mesma tranquilidade com que antes bordava os lençóis do seu enxoval. A prática de cirurgia junto do inglês Ebanizer Hobbs provou ser de grande utilidade para Tao Chi'en. Naquela terra infestada de cobras venenosas não faltavam os que eram picados e que chegavam, inchados e azuis, aos ombros dos seus camaradas. As águas contaminadas distribuíam democraticamente a cólera, para a qual ninguém conhecia remédio, e outros males de sintomas escandalosos, mas nem sempre fatais. Tao Chi'en cobrava pouco, mas sempre adiantadamente porque, pela sua experiência, um homem assustado paga sem refilar, um aliviado, pelo contrário, regateia. Quando o fazia aparecia-lhe o seu velho preceptor com uma expressão de censura, mas ele desprezava-a. "Não posso dar-me ao luxo de ser generoso nestas circunstâncias, mestre", resmungava. Os seus honorários não incluíam anestesia e quem desejasse o consolo de drogas ou das agulhas de ouro tinha de pagar um extra. Fazia uma excepção com os ladrões, que depois de um julgamento sumário sofriam chicotadas ou lhes cortavam as orelhas: os mineiros gabavam-se da sua justiça expedita e ninguém estava disposto a financiar e a vigiar uma prisão.
- Por que não cobras aos criminosos? - perguntou Eliza.
- Porque prefiro que me devam um favor - respondeu ele.
Tao Chi'en parecia disposto a estabelecer-se. Nada disse à sua amiga, mas não desejava partir para que Lin tivesse tempo de o encontrar. A sua mulher não comunicava com ele há várias semanas. Eliza, pelo contrário, contava as horas, ansiosa por continuar a viagem e, à medida que decorriam os dias, dominavam-na sentimentos contraditórios para com o seu companheiro de aventuras.
Agradecia a sua protecção e a forma como cuidava dela, pendente de que se alimentasse convenientemente, agasalhando-a à noite, administrando-lhe as suas ervas e agulhas para fortalecer o qi, como dizia, mas irritava-a a sua calma, que confundia com falta de arrojo. A expressão serena e o sorriso fácil de Tao Chi'en cativavam-na às vezes e às vezes incomodavam-na. Não entendia a sua total indiferença em tentar fortuna nas minas, enquanto todos à sua volta, especialmente os seus compatriotas chineses, não pensavam noutra coisa.
- A ti também não te interessa o ouro - respondeu imperturbável, quando ela o censurou.
- Eu vim por outro motivo! E tu, por que vieste?
- Porque era marinheiro. Não pensava ficar até tu me teres pedido.
- Não és marinheiro, és médico.
- Aqui posso voltar a ser médico, ao menos por algum tempo. Tinhas razão, há muita coisa para aprender neste lugar.
E assim estavam as coisas por esses dias. Pôs-se em contacto com indígenas para se informar sobre os remédios dos seus feiticeiros. Eram esquálidos grupos de índios vagabundos, cobertos com imundas peles de coiotes e andrajos europeus, que tinham perdido tudo na corrida do ouro. Iam daqui para ali com as suas mulheres cansadas e os seus filhos esfomeados, tentando lavar ouro dos rios com os seus cestos finos de vime, mas mal descobriam um lugar propício, expulsavam-nos aos tiros. Quando os deixavam em paz, formavam as suas aldeias de choças ou tendas e instalavam-se por algum tempo, até os obrigarem novamente a partir.
Familiarizaram-se com o chinês, recebiam-no com demonstrações de respeito, porque o consideravam um medicine man, um homem sábio, e gostavam de partilhar os seus conhecimentos. Eliza e Tao Chi'en sentavam-se com eles num círculo em volta de um buraco, onde cozinhavam com pedras quentes uma papa de bolotas, ou assavam sementes do bosque e gafanhotos, que Eliza achava deliciosos. Depois fumavam, conversando numa mistura de inglês, de sinais e das poucas palavras na língua nativa que tinham aprendido. Por aqueles dias desapareceram misteriosamente alguns mineiros yanques e apesar dos corpos não terem sido descobertos, os seus companheiros acusaram os índios de os terem assassinado e em represália tomaram de assalto uma aldeia, fizeram quarenta prisioneiros entre mulheres e crianças e como exemplo executaram sete dos homens.
- Se tratam assim os índios, que são donos desta terra, de certeza que tratarão os chineses muito pior, Tao. Tens de tornar-te invisível, como eu - disse Eliza aterrada, quando soube o que acontecera.
Mas Tao Chi'en não tinha tempo para aprender truques de invisibilidade, estava ocupado a estudar as plantas. Fazia longas excursões para recolher amostras e compará-las com as que se usavam na China.
Alugava dois cavalos ou andava milhas a pé sob um sol inclemente, levando Eliza como intérprete, para chegar aos ranchos dos mexicanos, que viviam há gerações nesta terra e conheciam a natureza. Tinham perdido a Califórnia na guerra contra os Estados Unidos há muito pouco tempo e esses grandes ranchos, que antes albergavam centenas de peões num sistema comunitário, começaram a desmoronar-se. Os tratados entre os países ficaram no papel.
No início os mexicanos, que percebiam de mineração, ensinaram aos recém-chegados os procedimentos para obter ouro, mas todos os dias chegavam mais forasteiros para invadir o território que consideravam seu. Na prática os gringos desprezavam-nos, tanto como aos de qualquer outra raça. Começou uma perseguição incansável contra os hispânicos, negavam-lhes o direito de explorar as minas porque não eram americanos, mas aceitavam como tal fugitivos da Austrália e aventureiros europeus. Milhares de peões sem trabalho tentavam a sorte nas minas, mas quando a perseguição dos gringos se tornava intolerável, emigravam para o sul ou transformavam-se em malfeitores. Nalgumas das casas rústicas das famílias que restavam, Eliza podia passar algum tempo em companhia feminina, um luxo raro que lhe devolvia por escassos momentos a tranquila felicidade dos tempos na cozinha de Mama Fresia. Eram as únicas ocasiões em que saía do seu mutismo obrigatório e falava no seu idioma. Essas mães fortes e generosas, que trabalhavam ombro a ombro com os seus homens nas tarefas mais pesadas e estavam curtidas pelo esforço e pela necessidade, comoviam-se com aquele rapaz chinês de aspecto tão frágil, maravilhadas por falar espanhol como uma delas. Entregavam-lhe satisfeitas os segredos da natureza usados durante séculos para aliviar diversos males e, de caminho, as receitas dos seus saborosos pratos, que ela anotava nos seus cadernos, certa de que tarde ou cedo lhe seriam valiosos. Entretanto o zhongyi encomendou de São Francisco remédios ocidentais que o seu amigo Ebanizer Hobbs lhe ensinara a usar em Hong-Kong. Limpou também um pedaço de terreno junto à cabana, cercou-o para o defender dos veados e plantou as ervas básicas do seu ofício.
- Pelo amor de Deus, Tao! Pensas ficar aqui até nascerem estas matas raquíticas? - bradava Eliza, exasperada ao ver os talos desmaiados e as folhas amarelas, sem obter por resposta mais do que um gesto vago.
Sentia que cada dia decorrido a afastava mais do seu destino, que Joaquín Andieta se internava mais e mais naquela região desconhecida, talvez rumo às montanhas, enquanto ela perdia o seu tempo em Sacramento fazendo-se passar pelo irmão tonto de um curandeiro chinês. Costumava cobrir Tao Chi'en com os piores epítetos, mas tinha a prudência de o fazer em castelhano, tal como certamente ele fazia quando se lhe dirigia em cantonês. Tinham aperfeiçoado os sinais para se comunicarem diante dos outros sem falar e de tanto trabalharem juntos chegaram a parecer-se tanto, que ninguém duvidava do seu parentesco. Se não estavam ocupados com nenhum paciente, saíam a percorrer o porto e as lojas, fazendo amigos e indagando sobre Joaquín Andieta. Eliza cozinhava e depressa Tao Chi'en se habituou aos seus pratos, embora de vez em quando escapasse até aos refeitórios chineses da cidade, onde podia engolir tudo o que lhe coubesse na barriga por alguns dólares, uma bagatela, tendo em conta que uma cebola custava um lar. Diante dos outros comunicavam por gestos, mas a sós faziam-no em inglês. Apesar dos insultos ocasionais nas duas línguas, passavam a maior parte do tempo trabalhando lado a lado como bons camaradas e não faltavam ocasiões para se rirem. Ele admirava-se por partilhar com Eliza o sentido de humor, apesar dos obstáculos ocasionais do idioma e das diferenças culturais. No entanto, eram justamente essas diferenças que lhes arrancavam gargalhadas: não conseguia acreditar que uma mulher fizesse e dissesse tamanhas barbaridades. Observava-a com curiosidade e inconfessável ternura, costumava emudecer de admiração por ela, atribuía-lhe a coragem de um guerreiro, mas quando a via fraquejar parecia-lhe uma miúda e vencia-o o desejo de a proteger. Embora tivesse aumentado um pouco de peso e tivesse melhor cor, ainda estava fraca, era evidente. Assim que o Sol se punha começava a cabecear, enrolava-se na sua manta e adormecia, ele deitava-se ao seu lado. Habituaram-se de tal forma a essas horas de intimidade respirando em uníssono, que os seus corpos se aninhavam sozinhos durante o sono e se um se voltava, o outro fazia-o também, de modo que não se despegavam. às vezes acordavam presos nos cobertores, abraçados. Se ele o fazia primeiro, gozava esses instantes que lhe traziam à memória as horas felizes com Lin, imóvel para ela não se aperceber do seu desejo. Não suspeitava que Eliza, por sua vez, fazia o mesmo, agradecida por essa presença masculina que lhe permitia imaginar como teria sido a sua vida com Joaquín Andieta, se tivesse tido mais sorte.
Nenhum dos dois mencionava nunca o que acontecia à noite, como se fosse uma existência paralela da qual não tinham consciência. Assim que se vestiam, o encanto secreto desses abraços desaparecia por completo e voltavam a ser dois irmãos. Em raras ocasiões Tao Chi'en saía sozinho em misteriosas saídas nocturnas, das quais regressava sigiloso. Eliza abstinha-se de indagar, podia cheirá-lo: tinha estado com uma mulher, podia até distinguir os perfumes adocicados das mexicanas. Ela ficava enterrada sob os cobertores, tremendo na escuridão e pendente do menor ruído à sua volta, com uma faca na mão, assustada, chamando-o com o pensamento.
Não conseguia justificar esse desejo de chorar que a invadia, como se tivesse sido traída. Compreendia vagamente que talvez os homens fossem diferentes das mulheres, pelo que lhe dizia respeito, não sentia qualquer necessidade de sexo. Os castos abraços nocturnos bastavam para saciar a sua ânsia de companhia e de ternura, mas nem sequer ao pensar no seu antigo amante sentia a ansiedade dos tempos no quarto dos armários. Não sabia se nela o amor e o desejo eram a mesma coisa e se, ao faltar o primeiro, naturalmente não surgia o segundo, ou se a longa doença no barco tinha destruído alguma coisa essencial no seu corpo. Uma vez atreveu-se a perguntar a Tao Chi'en se poderia ter filhos, porque não voltara a menstruar em vários meses, e ele garantiu-lhe que mal recuperasse as forças e a saúde voltaria à normalidade, e por isso lhe colocava as suas agulhas de acupunctura. Quando o seu amigo deslizava silencioso ao seu lado depois das suas escapadelas, ela fingia dormir profundamente, embora permanecesse acordada durante horas, ofendida pelo cheiro de outra mulher entre eles. Desde que desembarcaram em São Francisco, tinha voltado ao recato no qual Miss Rose a educara. Tao Chi'en vira-a nua durante as semanas de travessia no barco e conhecia-a por dentro e por fora, mas adivinhou as suas razões e também não fez perguntas, excepto para saber da sua saúde. Mesmo quando lhe colocava as agulhas tinha cuidado para não incomodar o seu pudor. Não se despiam na presença um do outro e tinham um acordo tácito para respeitar a privacidade do buraco que lhes servia de latrina atrás da cabana, mas o resto era partilhado, do dinheiro à roupa. Muitos anos mais tarde, revendo as anotações do seu diário correspondentes a essa época, Eliza perguntava a si própria perplexa por que razão nenhum dos dois reconhecia a inegável atracção que sentiam, por que razão se refugiavam no pretexto do sono para se tocarem e durante o dia fingiam frieza. Concluiu que o amor com alguém de outra raça lhes parecia impossível. julgavam que no mundo não haveria lugar para um casal como eles.
- Tu só pensavas no teu amante - esclareceu-lhe Tao Chi'en, que nessa altura já tinha o cabelo grisalho.
- E tu em Lin.
- Na China podemos ter várias mulheres e Lin sempre foi tolerante.
- Também te repugnavam os meus pés grandes - troçou ela.
- É verdade - respondeu ele com a maior seriedade.
Em Junho abateu-se um Verão impiedoso, os mosquitos multiplicaram-se, as cobras saíram dos seus buracos passeando-se impunemente e as plantas de Tao Chi'en brotaram tão robustas como na China. As hordas de argonautas continuavam a chegar, cada vez mais seguidas e numerosas.
Como Sacramento era o porto de acesso, não teve o destino de dúzias de outros povoados, que nasciam como cogumelos perto das jazidas auríferas, prosperavam rapidamente e desapareciam de súbito, assim que se acabava o minério fácil. A cidade crescia minuto a minuto, abriam-se novos armazéns e os terrenos já não eram oferecidos, como no princípio, vendendo-se tão caros como em São Francisco. Havia um governo embrionário e assembleias fre-quentes para decidir pormenores administrativos. Apareceram especuladores: leguleios, evangelistas, jogadores profissionais, bandoleiros, madames com as suas raparigas de vida alegre e outros arautos do progresso e da civilização. Passavam centenas de homens inflamados de esperança e de ambição rumo aos aluviões, e outros esgotados e doentes que regressavam depois de meses de trabalho árduo, dispostos a esbanjar os seus lucros. O número de chineses aumentava de dia para dia e rapidamente se formaram dois bandos rivais. Estes tongs eram clãs fechados, os seus membros ajudavam-se uns aos outros como irmãos nas dificuldades da vida diária e do trabalho, mas também propiciavam a corrupção e o crime. Entre os recém-chegados havia outro zhongyi, com quem Tao Chi'en passava horas de completa felicidade comparando tratamentos e citando Confúcio. Recordava-lhe Ebanizer Hobbs, porque não se conformava em repetir tratamentos tradicionais, procurava também alternativas novas.
- Devemos estudar a medicina dos fan, a nossa não é suficiente - dizia-lhe, e ele estava perfeitamente de acordo, porque quanto mais aprendia, maior era a impressão de que nada sabia e de que a vida não lhe chegaria para estudar tudo o que lhe faltava.
Eliza organizou um negócio de empanadas para as vender a peso de ouro, primeiro aos chilenos e depois também aos yanques, que rapidamente as apreciaram. Começou por fazê-las de carne de vaca, quando conseguia comprá-la aos rancheiros mexicanos que conduziam gado desde Sonora, mas como costumava escassear, experimentou com veado, lebre, ganso selvagem, tartaruga, salmão e até urso. Tudo consumiam agradecidos os seus fiéis clientes, porque a alternativa eram feijões de conserva e porco salgado, a dieta invariável dos mineiros. Ninguém tinha tempo para caçar, pescar ou cozinhar; não se conseguiam verduras nem frutas e o leite era um luxo mais raro do que o champanhe, no entanto não faltava farinha, gordura e açúcar, também havia nozes, chocolate, algumas especiarias, pêssegos e ameixas secas. Fazia bolos e bolachas com o mesmo êxito das empanadas, e também pão num forno de barro que improvisou recordando o de Mama Fresia. Quando conseguia ovos e toucinho punha um letreiro anunciando pequenos almoços, e então os homens faziam fila para se sentarem ao sol diante de um balcão desconjuntado. Essa comida saborosa, preparada por um chinês surdo-mudo, recordava-lhes os domingos familiares nas suas casas, muito longe dali. O pequeno almoço abundante de ovos com toucinho, pão recém-cozido, bolo de fruta e café à discrição, custava três dólares. Alguns clientes, emocionados e agradecidos porque não tinham provado nada parecido em muitos meses, depositavam outro dólar no frasco das gorjetas. Um dia, em meados do Verão, Eliza apresentou-se diante de Tao Chi'en com as suas poupanças na mão.
- Com isto podemos comprar cavalos e partir - anunciou.
- Para onde?
- Procurar Joaquín.
- Eu não tenho interesse em encontrá-lo. Fico.
- Não queres conhecer este país? Aqui há muito para ver e aprender, Tao. Enquanto eu procuro Joaquín, tu podes adquirir a tua famosa sabedoria.
- As minhas plantas estão a crescer e não gosto de andar de um lado para o outro.
- Está bem. Eu vou.
- Sozinha não irás longe.
- Veremos.
Nessa noite dormiram cada um numa ponta da cabana sem trocarem palavra. No dia seguinte Eliza saiu cedo para comprar o que necessitava para a viagem, tarefa nada fácil no seu papel de mudo, mas regressou às quatro da tarde apetrechada com um cavalo mexicano, feio e cheio de peladas, mas forte. Também comprou duas camisas, umas calças fortes, luvas de couro, um chapéu de abas largas, dois sacos de alimentos secos, um prato, uma caneca e uma colher de latão, uma boa navalha de aço, um cantil para água, uma pistola e um rifle que não sabia carregar e muito menos disparar. Passou o resto da tarde organizando a sua trouxa e cosendo as jóias e o dinheiro que lhe restava numa tira de algodão, a mesma que utilizava para esmagar os seios, sob a qual levava sempre o maço de cartas de amor. Resignou-se a deixar a mala com os vesudos, os corpetes e os botins que ainda conservava.
Com a sua manta de Castela improvisou uma sela tal como vira fazer tantas vezes no Chile, despiu as roupas de Tao Chi'en usadas durante meses e experimentou as recém-compradas. Depois afiou a navalha numa tira de couro e cortou o cabelo à altura da nuca. A sua longa trança preta ficou no chão como uma cobra morta. Viu-se num pedaço de espelho quebrado e ficou satisfeita: com a cara suja e as sobrancelhas engrossadas com um risco de carvão, o disfarce seria perfeito. Nisto chegou Tao Chi'en de regresso de uma das suas tertúlias com o outro zhong yi e por um instante não reconheceu esse vaqueiro armado que invadira a sua propriedade.
- Amanhã vou embora, Tao. Obrigada por tudo, és mais do que um amigo, és meu irmão. Far-me-ás muita falta...
Tao Chi'en não respondeu. Ao cair da noite ela deitou-se vestida num canto e ele sentou-se lá fora na brisa estival contando as estrelas.
O segredo
Na tarde em que Eliza saiu de Valparaiso escondida na pança do Emilia, os três Sommers jantaram no Hotel Inglês convidados por Paulina, a mulher de Feliciano Rodriguez de Santa Cruz, e regressaram tarde à sua casa em Cerro Alegre. Só souberam do desaparecimento da rapariga uma semana mais tarde, porque a julgavam na fazenda de Agustín del Valle, acompanhada por Mama Fresia.
No dia seguinte John Sommers assinou o contrato como capitão do Fortuna, o resplandecente vapor de Paulina. Um simples documento com os termos do acordo fechou o contrato. Bastou-lhes verem-se uma vez para confiarem um no outro e não dispunham de tempo para perder em minúcias legais, o frenesim de chegar à Califórnia era o seu único interesse. Todo o Chile andava às voltas com o mesmo, apesar dos apelos à prudência publicados nos jornais e repetidos em apocalípticas homilias nos púlpitos das igrejas. O capitão demorou apenas algumas horas a arranjar tripulação para o seu vapor, porque as longas filas de candidatos, contagiados pela peste do ouro, davam voltas pelos cais. Muitos passavam a noite a dormir pelo chão para não perderem o seu lugar. Perante o estupor de outros homens do mar, que não conseguiam imaginar as suas razões, John Sommers recusou-se a levar passageiros, de modo que o seu barco ia praticamente vazio. Não deu explicações. Tinha um plano de flibusteiro para evitar que os seus marinheiros desertassem ao chegar a São Francisco, mas manteve-o secreto, porque se o tivesse divulgado não teria conseguido um único. Também não notificou a tripulação que, antes de se dirigir para o norte, fariam um insólito desvio pelo sul. Esperava encontrar-se em alto mar para o fazer.
- De modo que o senhor se sente capaz de manobrar o meu vapor e controlar a tripulação, não é capitão? - perguntou-lhe Paulina uma vez mais passando-lhe o contrato para assinar.
- Sim senhora, não receie por isso. Posso zarpar dentro de três dias.
- Muito bem. Sabe o que faz falta na Califórnia, capitão? Produtos frescos: fruta, verduras, ovos, bons queijos, enchidos. É isso que nós vamos lá vender.
- Como? Chegará tudo podre...
- Vamos levar em gelo - disse ela imperturbável.
- Em quê?
- Gelo. O senhor irá primeiro ao sul buscar gelo. Sabe onde fica a lagoa de São Rafael?
- Perto de Porto Alsén.
- Agrada-me que conheça esses lados. Disseram-me que lá existe um glaciar azul belíssimo. Quero que me encha o Fortuna com pedaços de gelo. Que lhe parece?
- Desculpe, senhora, parece-me uma loucura.
- Exactamente. Por isso ninguém se lembrou. Leve toneladas de sal grosso, uma boa provisão de sacos e embrulhe-me pedaços bem grandes. Ah! Calculo que precisará de agasalhar os seus homens para que não congelem. E de caminho, capitão, faça-me o favor de não comentar isto com ninguém, para que não nos roubem a ideia.
John Sommers despediu-se dela desconcertado. Primeiro pensou que a mulher estava doida, mas quanto mais pensava, mais gostava daquela aventura. Além disso, não tinha nada a perder. Ela arriscava a sua ruína, ele, pelo contrário, recebia o seu salário mesmo que o gelo derretesse pelo caminho. E se aquele disparate desse resultado, de acordo com o contrato, ele receberia um bónus nada desprezível. Na semana seguinte, quando explodiu a notícia do desaparecimento de Eliza, ele ia rumo ao glaciar com as caldeiras resfolegando e só se inteirou no regresso, quando entrou em Valparaíso para carregar os produtos que Paulina tinha preparado para transportar num ninho de neve pré-histórica até à Califórnia, onde o marido e o cunhado os venderiam por um preço muitas vezes superior ao seu valor. Se tudo corresse como planeava, em três ou quatro viagens do Fortuna ela teria mais dinheiro do que jamais sonhara, tinha calculado quanto tempo demorariam os outros empresários a copiar a sua iniciativa e a incomodá-la com a concorrência. Quanto a ele, bom, também levava um produto que pensava rematar o melhor possível: livros.
Quando Eliza e a sua ama não regressaram a casa no dia marcado, Miss Rose mandou o cocheiro com um bilhete averiguar se a família del Valle ainda estava na fazenda e se Eliza estava bem. Uma hora mais tarde apareceu-lhe à porta a mulher de Agustín del Valle, bastante alarmada. Não sabia nada de Eliza, disse. A família não tinha saído de Valparaiso porque o seu marido estava prostrado com um ataque de gota. Não via Eliza há meses. Miss Rose teve sangue-frio suficiente para dissimular: tinha sido um erro seu, desculpou-se, Eliza estava em casa de outra amiga, ela confundiu, agradecia-lhe imenso ter-se incomodado a vir pessoalmente... A senhora del Valle não acreditou numa só palavra, como era de esperar, e antes de Miss Rose conseguir avisar o seu irmão Jeremy no escritório, a fuga de Eliza Sommers tinha-se transformado no prato do dia em Valparaiso.
O resto do dia passou-se com Miss Rose em pranto e Jeremy Sommers em conjecturas. Ao revistar o quarto de Eliza encontraram a carta de despedida e releram-na várias vezes tentando em vão descobrir alguma pista. Também não conseguiram localizar Mama Fresia para a interrogar e só então se deram conta de que a mulher trabalhara para eles dezoito anos e nem sabiam O seu apelido. Nunca lhe tinham perguntado de onde vinha ou se tinha família. Mama Fresia, tal como os outros criados, pertencia ao limbo impreciso dos fantasmas úteis.
Valparaíso não é Londres, Jeremy. Não podem ter ido para muito longe. É preciso procurá-las.
- Apercebem-se do escândalo quando começarmos a indagar entre as amizades?
- Que me importa o que digam as pessoas! A única coisa que me importa é encontrar Eliza rapidamente, antes que se meta em confusões. Francamente, Rose, se nos abandonou dessa maneira, depois de tudo o que fizemos por ela, é porque já está com problemas.
- O que queres dizer? Que tipo de problemas? - perguntou Miss Rose, aterrada.
- Um homem, Rose. É a única razão pela qual uma rapariga comete uma loucura desta natureza. Tu sabes isso melhor do que ninguém. Com quem pode estar Eliza?
- Não faço ideia.
Miss Rose sabia-o perfeitamente. Sabia quem era o responsável por este tremendo descalabro: aquele tipo de aspecto fúnebre que levara uns fardos lá a casa há alguns meses atrás, o empregado de Jeremy. Não sabia o nome dele mas ia averiguar. Não o disse ao seu irmão, no entanto, porque achou que ainda ia a tempo de salvar a rapariga das armadilhas do amor contrariado. Lembrava-se com precisão de notário de cada pormenor da sua própria experiência com o tenor vienense, a inquietação desse tempo estava ainda à flor da pele. Já não o amava, é verdade, tirara-o da alma há séculos, mas bastava murmurar o seu nome para sentir um sino estridente no peito.
Karl Bretzner era a chave do seu passado e da sua personalidade, o fugaz encontro com ele determinara o seu destino e a mulher em que se tinha transformado. Se voltasse a apaixonar-se como nessa altura, pensou, voltaria a fazer o mesmo, mesmo sabendo como essa paixão lhe alterara a vida.
Talvez Eliza tivesse melhor sorte e o amor lhe saísse direito, talvez no seu caso o amante fosse livre, não tivesse filhos e uma mulher enganada. Tinha de encontrar a garota, enfrentar o maldito sedutor, obrigá-los a casar-se e depois apresentar os factos consumados a Jeremy, que a longo prazo acabaria por aceitar. Seria difícil, dada a rigidez do seu irmão quando se tratava de honra, mas se lhe perdoara a ela, também poderia perdoar a Eliza. Persuadi-lo seria a sua tarefa. Não fizera o papel de mãe durante tantos anos para ficar de braços cruzados quando a sua única filha cometia um erro, decidiu.
Enquanto Jeremy Sommers se fechava num silêncio obstinado e digno que, no entanto, não o protegeu da bisbilhotice desenfreada, Miss Rose pôs-se em acção. Passados poucos dias descobriu a identidade de Joaquín Andieta e, horrorizada, inteirou-se que se tratava nada menos do que dum fugitivo da justiça. Acusavam-no de ter falsificado a contabilidade da Companhia Britânica de Importação e Exportação e de ter roubado mercadoria. Compreendeu como a situação era bem mais grave do que imaginara: Jeremy jamais aceitaria semelhante indivíduo no seio da sua família. Pior ainda, assim que pudesse deitar a mão ao seu antigo empregado certamente o mandaria para a cadeia, mesmo que nessa altura fosse marido de Eliza. A menos que eu arranje maneira de o obrigar a retirar as queixas contra esse patife e lhe limpe o nome para bem de todos nós, resmungou Miss Rose furiosa. Primeiro tinha de encontrar os amantes, depois se veria como remediava o restante. Teve um cuidado enorme em não mencionar a sua descoberta e o resto da semana passou-a fazendo indagações por aqui e por ali até que, na Livraria Santos Tornero, lhe falaram da mãe de Joaquín Andieta. Conseguiu a sua direcção simplesmente perguntando nas igrejas, tal como supunha, os sacerdotes católicos contabilizavam os seus paroquianos.
Na sexta-feira à hora do almoço apareceu à mulher. Ia cheia de presunção, animada por uma justa indignação e disposta a dizer-lhe umas quantas verdades, mas foi-se-lhe abatendo o orgulho à medida que avançava pelas ruelas sinuosas daquele bairro, onde nunca tinha posto os pés.
Arrependeu-se do vestido que escolhera, lamentou o seu chapéu demasiado vistoso e os seus botins brancos, sentiu-se ridícula. Bateu à porta perturbada por um sentimento de vergonha, que se tornou franca humildade quando viu a mãe de Andieta. Nunca imaginara tanta desolação. Era uma pobre mulherzinha, com olhos febris e expressão triste.
Pareceu-lhe uma velha, mas olhando bem para ela, compreendeu que era ainda jovem e que também fora bonita, mas não havia dúvidas de que estava doente. Recebeu-a sem surpresa, habituada às senhoras ricas que apareciam para lhe encomendar trabalhos de costura e bordado. Passavam palavra umas às outras, não era estranho uma dama desconhecida bater-lhe à porta. Desta vez tratava-se de uma estrangeira, podia adivinhar por esse vestido cor de borboleta, nenhuma chilena ousava vestir-se assim.
Cumprimentou-a sem sorrir e fê-la entrar.
- Sente-se, por favor, senhora. Em que posso servi-la?
Miss Rose sentou-se na beira da cadeira que ela lhe oferecia e não conseguiu articular uma palavra. Tudo o que planeara se esfumou do seu espírito num relâmpago de total compaixão para com aquela mulher, para com Eliza e para com ela, enquanto as lágrimas lhe corriam como um rio, lavando-lhe a cara e a alma. A mãe de Joaquín Andieta, perturbada, colocou a mão dela entre as suas.
- O que tem, senhora? Posso ajudá-la?
E então Miss Rose contou-lhe aos borbotões no seu espanhol de gringa que a sua única filha desaparecera há mais de uma semana, estava apaixonada por Joaquín, tinham-se conhecido meses atrás e desde então a garota não era a mesma, andava derretida de amor, qualquer pessoa podia ver, menos ela que, de tão egoísta e distraída não se tinha preocupado a tempo, e agora era tarde porque os dois tinham fugido e Eliza tinha arruinado a sua vida tal como ela arruinara a dela. E continuou desfiando uma coisa atrás da outra sem conseguir conter-se, até contar a essa estranha o que nunca dissera a ninguém, falou-lhe de Karl Bretzner e dos seus amores órfãos e dos vinte anos decorridos desde então no seu coração adormecido e no seu ventre desabitado. Chorou convulsivamente as perdas caladas ao longo da sua vida, as raivas ocultas por boa educação, os segredos carregados às costas como grilhetas de presos para manter as aparências e a juventude ardente desperdiçada pelo azar de ter nascido mulher. E quando por fim se lhe acabou o ataque de soluços, ficou ali sentada sem entender o que lhe tinha acontecido nem de onde provinha esse diáfano alívio que começava a inundá-la.
- Beba um pouco de chá - disse a mãe de Joaquín Andieta depois de um longo silêncio, colocando-lhe uma chávena desbeiçada na mão.
- Por favor, suplico-lhe, diga-me se Eliza e o seu filho são amantes. Não estou louca, não é verdade? - murmurou Miss Rose.
- É possível, senhora. Também Joaquín andava enlouquecido, mas nunca me disse o nome da rapariga.
- Ajude-me, tenho de encontrar Eliza...
- Ela não está com Joaquín, garanto-lhe.
- Como pode saber?
- Não diz que a menina desapareceu apenas há uma semana? O meu filho foi embora em Dezembro.
- Foi embora? Para onde?
- Não sei.
- Compreendo-a, senhora. No seu lugar eu também tentaria protegê-lo. Sei que o seu filho tem problemas com a justiça. Dou-lhe a minha palavra de honra que o ajudarei, o meu irmão é o director da Companhia Britânica e fará o que eu lhe pedir. Não direi a ninguém onde está o seu filho, só quero falar com Eliza.
- A sua filha e Joaquín não estão juntos, acredite.
- Eu sei que Eliza o seguiu.
- Não pode tê-lo seguido, senhora. O meu filho foi para a Califórnia.
No dia em que o capitão John Sommers regressou a Valparaíso com o Fortuna carregado de gelo azul, encontrou os seus irmãos esperando-o no cais, como sempre, mas bastou-lhe ver as caras deles para compreender que algo muito grave tinha acontecido. Rose estava extenuada e assim que o abraçou pôs-se a chorar descontroladamente.
- Eliza desapareceu - informou-o Jeremy com tanta raiva que mal conseguia pronunciar as palavras.
Assim que ficaram sós, Rose contou a John o que averiguara com a mãe de Joaquín Andieta. Nesses dias eternos esperando o seu irmão favorito e tentando juntar as pontas soltas, convencera-se de que a garota tinha seguido o seu amante para a Califórnia, porque ela teria feito o mesmo. John Sommers passou o dia seguinte indagando no porto e deste modo ficou a saber que Eliza não tinha comprado passagem em nenhum barco nem figurava nas listas de passageiros, mas as autoridades tinham registado um tal Joaquín Andieta embarcado em Dezembro. Calculou que a rapariga pudesse ter mudado de nome para despistar e voltou a fazer o mesmo percurso com a sua descrição detalhada, mas ninguém a vira. Uma jovem, quase uma criança, viajando sozinha ou acompanhada apenas por uma índia teria chamado de imediato a atenção, garantiram-lhe, além disso, muito poucas mulheres iam para São Francisco, só as de vida fácil e de vez em quando a mulher de um capitão ou de um comerciante.
- Não pode ter embarcado sem deixar rasto, Rose - concluiu o capitão, depois de lhe contar minuciosamente as suas pesquisas.
- E Andieta?
- A mãe dele não te mentiu. O nome dele aparece numa lista.
- Apropriou-se de alguns produtos da Companhia Britânica. Tenho a certeza de que só o fez porque não conseguia financiar a viagem de outro modo. Jeremy não suspeita que o ladrão que procura é o apaixonado de Eliza e espero que nunca o venha a saber.
- Não estás cansada de tantos segredos, Rose?
- E que queres que faça? A minha vida é feita de aparências, não de verdades. Jeremy é como uma pedra, conhece-lo tão bem como eu. O que vamos fazer a respeito da garota?
- Parto amanhã para a Califórnia, o vapor já está carregado. Se lá existem tão poucas mulheres como dizem, será fácil dar com ela.
- Isso não é suficiente, John!
- Tens alguma ideia melhor?
Nessa noite à hora do jantar, Miss Rose insistiu uma vez mais na necessidade de mobilizar todos os recursos disponíveis para encontrar Eliza.
Jeremy, que se mantivera à margem da frenética actividade da sua irmã, sem oferecer conselhos ou expressar quaisquer sentimentos, excepto aborrecimento por fazer parte de um escândalo social, argumentou que Eliza não merecia tanto alvoroço.
- Este clima de histeria é muito desagradável. Sugiro que se acalmem. Para que a procuram? Mesmo que a encontrem, não voltará a pisar esta casa - anunciou.
- Eliza não significa nada para ti? - censurou-o Miss Rose.
- Não é essa a questão. Cometeu uma falta irreparável e tem de arcar com as consequências.
- Como eu, durante quase vinte anos?
Um silêncio gelado caiu na sala de jantar. Nunca tinham falado abertamente do passado e Jeremy nem sequer sabia se John estava ao corrente do que acontecera entre a irmã e o tenor vienense, porque ele tivera o cuidado de não o dizer.
- Que consequências, Rose? Foste perdoada e recebida de volta. Nada tens a censurar-me.
- Por que foste tão generoso comigo e não podes sê-lo também com Eliza?
- Porque és minha irmã e o meu dever é proteger-te.
- Eliza é como se fosse minha filha, Jeremy!
- Mas não é. Não temos qualquer obrigação para com ela: não pertence a esta família.
- Pertence, sim! - gritou Miss Rose.
- Basta! - interrompeu o capitão dando um murro na mesa que fez saltar os pratos e os copos.
- Pertence sim, Jeremy. Eliza é da nossa família - repetiu Miss Rose, soluçando com a cara entre as mãos. - É filha de John...
Então Jeremy ouviu dos seus irmãos o segredo que tinham guardado durante dezasseis anos. Esse homem de poucas palavras, tão controlado que parecia invulnerável à emoção humana, explodiu pela primeira vez e tudo o que calara em quarenta e seis anos de perfeita fleuma britânica saiu aos borbotões, afogando-o numa torrente de censuras, de raiva e de humilhação, porque só um tonto como eu, meu Deus, vivendo sob o mesmo tecto num ninho de mentiras sem suspeitar de nada, convencido de que os meus irmãos eram pessoas decentes e que reinava a confiança entre nós, quando o que há é uma prática de patranhas, um hábito de falsidades, quem sabe quantas coisas mais não me terão escondido sistematicamente, mas isto é o cúmulo, por que diabos não mo disseram, o que terei feito para me tratarem como um monstro, para merecer que me manipulem desta forma, para que se aproveitem da minha generosidade e ao mesmo tempo me desprezem, porque não tem outro nome senão desprezo esta forma de enredar-me em enganos e de excluir-me, só precisam de mim para pagar as contas, toda a vida foi a mesma coisa, desde crianças que troçam de mim nas minhas costas...
Mudos, sem saber como justificar-se, Rose e John aguentaram o embate e quando Jeremy esgotou a lengalenga reinou um longo silêncio na sala de jantar. Os três estavam extenuados. Pela primeira vez nas suas vidas enfrentavam-se sem a máscara das boas maneiras e da cortesia. Algo fundamental, que os mantivera no equilíbrio frágil de uma mesa com três pernas, parecia irremediavelmente quebrado, no entanto, à medida que Jeremy recuperava o fôlego, as suas feições voltaram à expressão impenetrável e arrogante de sempre, enquanto compunha uma madeixa de cabelo caído sobre a testa e a gravata torcida. Então Miss Rose levantou-se, aproximou-se por trás da cadeira e pôs-lhe uma mão no ombro, o único gesto de intimidade que se atreveu a fazer, enquanto sentia que o peito lhe doía de ternura por esse irmão solitário, por esse homem silencioso e melancólico que fora para ela uma espécie de pai e a quem nunca se dera ao trabalho de olhar nos olhos. Percebeu que, na verdade, não sabia nada dele e que em toda a sua vida nunca tocara nele.
Dezasseis anos antes, na manhã de 25 de Março de 1832, Mama Fresia foi ao jardim e tropeçou com um caixote ordinário de sabão de Marselha coberto com papel de jornal. Intrigada, aproximou-se para ver do que se tratava e ao levantar o papel descobriu um recém-nascido. Correu para casa aos gritos e um instante depois Miss Rose inclinava-se sobre o bebé. Tinha vinte anos nessa altura, era fresca e bela como um pêssego, estava com um vestido cor de topázio e o vento agitava-lhe os cabelos soltos, tal como Eliza a recordava ou a imaginava. As duas mulheres levantaram a caixa e levaram-na para a salinha da costura, onde afastaram os papeis e tiraram do interior a menina embrulhada apenas num casaco de lá. Não tinha permanecido muito tempo sujeita à intempérie, deduziram, porque apesar da borrasca da manhã o seu corpo estava quente e dormia placidamente. Miss Rose ordenou à índia que fosse buscar uma manta limpa, lençóis e tesouras para improvisar fraldas. Quando Mama Fresia regressou, o casaco tinha desaparecido e o bebé nu gritava nos braços de Miss Rose.
- Reconheci o casaco de imediato. Eu própria o tricotara para John no ano anterior. Escondi-o porque tu tê-lo-ias reconhecido também - explicou a Jeremy.
- Quem é a mãe de Eliza, John?
- Não me lembro do nome dela.
- Nem sabes como se chama! Quantos bastardos semeaste pelo mundo? - exclamou Jeremy.
- Era uma rapariga do porto, uma jovem chilena, lembro-me que muito bonita. Nunca mais voltei a vê-la e não soube que estava grávida. Quando Rose me mostrou o casaco, alguns anos mais tarde, lembrei-me que o colocara sobre essa jovem na praia porque estava frio e depois esqueci-me de o pedir. Tens de entender, Jeremy, é assim a vida dos marinheiros. Não sou um animal...
- Estavas ébrio.
- É possível. Quando percebi que Eliza era minha filha, tentei localizar a mãe, mas tinha desaparecido. Talvez tenha morrido, não sei.
- Por alguma razão essa mulher decidiu que nós devíamos criar a menina, Jeremy, e nunca me arrependi de o ter feito. Demos-lhe carinho, uma boa vida, educação. Talvez a mãe não pudesse dar-lhe nada, por isso nos trouxe Eliza embrulhada no casaco, para que soubéssemos quem era o pai - acrescentou Miss Rose.
- E só isso? Um casaco imundo? Isso não prova absolutamente nada! Qualquer um pode ser o pai. Essa mulher desfez-se da criança com muita astúcia.
- Receava que reagisses assim, Jeremy. Justamente por isso não to disse naquela altura - respondeu a sua irmã.
Três semanas depois de se despedir de Tao Chi'en, Eliza estava com cinco mineiros lavando ouro nas margens do rio Americano. Não viajara sozinha. No dia em que saiu de Sacramento juntou-se a um grupo de chilenos que partia na direcção dos aluviões. Tinham comprado montadas, mas nenhum deles percebia nada de animais e os rancheiros mexicanos disfarçaram habilmente a idade e os feitos dos cavalos e das mulas. Eram uns animais patéticos com as peladas dissimuladas com pintura, e drogados, que a poucas horas de marcha perderam o ímpeto e arrastavam as patas coxeando. Cada cavaleiro levava um carregamento de ferramentas, armas e vasilhas de latão, de modo que a triste caravana avançava a passo lento, a meio de um estrépito de metais. Pelo caminho iam-se livrando da carga, que ficava espalhada junto das cruzes salpicadas na paisagem para indicar os defuntos. Ela apresentou-se com o nome de Elias Andieta, recém-chegado do Chile, encarregado pela sua mãe de procurar o irmão Joaquín e disposto a percorrer a Califórnia de cima a baixo até cumprir o prometido.
- Quantos anos tens, fedelho? - perguntaram-lhe.
- Dezoito.
- Pareces ter catorze. Não és muito jovem para procurar ouro?
- Tenho dezoito e não ando à procura de ouro, mas do meu irmão Joaquín - repetiu.
Os chilenos eram jovens, alegres e mantinham ainda o entusiasmo que os tinha levado a sair da sua terra e aventurar-se tão longe, embora começassem a dar-se conta de que as ruas não estavam empedradas de tesouros, como lhes tinham contado. No início, Eliza tratava de esconder a cara e mantinha o chapéu a tapar os olhos, mas depressa reparou que os homens olham pouco uns para os outros. Assumiram que se tratava de um rapaz e não estranharam a forma do seu corpo, a sua voz ou os seus hábitos. Ocupados cada um consigo próprio, não repararam que ela não urinava com eles e quando encontravam um charco de água para se refrescarem, enquanto eles se despiam, ela chapinhava vestida e de chapéu na cabeça, alegando que assim aproveitava para lavar a sua roupa no mesmo banho. Por outro lado, a limpeza era o menos e passados poucos dias estava tão suja e suada como os seus companheiros. Descobriu que a sujidade iguala todos na mesma abjecção, o seu nariz de sabujo mal distinguia o cheiro do seu corpo do cheiro dos outros. O tecido grosso das calças raspava-lhe as pernas, não estava habituada a cavalgar por distâncias tão grandes e no segundo dia mal podia dar um passo com o rabo em carne viva, mas os outros também eram gente da cidade e andavam tão doridos como ela. O clima seco e quente, a sede, a fadiga e o permanente ataque de mosquitos, rapidamente lhes tiraram a vontade de rir. Avançavam calados, com o chocalhar dos seus tarecos, arrependidos antes de começar.
Exploraram durante semanas em busca de um lugar propício para se instalarem a procurar ouro, tempo que Eliza aproveitou para inquirir por Joaquín Andieta. Nem os indícios recolhidos nem os mapas mal desenhados serviam de muito e quando chegavam a uma boa lavaria deparavam-se-lhes centenas de mineiros chegados antes deles. Cada um tinha direito a reclamar cem pés quadrados, marcava o seu sítio trabalhando diariamente e deixando ali as suas ferramentas quando se ausentava, mas se partia por mais de dez dias, outros podiam ocupá-lo e registá-lo no seu nome. Os piores crimes, invadir uma propriedade alheia antes do prazo e roubar, pagavam-se com a forca e com chicotadas, depois de um julgamento sumário em que os mineiros faziam de juizes, jurados e verdugos. Por toda a parte encontraram grupos de chilenos. Reconheciam-se pela roupa e pelo sotaque, abraçavam-se entusiasmados, partilhavam o mate, a aguardente e o charqui, contavam, carregando nas cores, as desventuras mútuas e cantavam canções nostálgicas sob as estrelas, mas no dia seguinte despediam-se, sem tempo para excessos de hospitalidade. Pela pronúncia de peralvilho e pelas conversas, Eliza deduziu que alguns eram jovens ricos de Santiago, janotas meio aristocratas que poucos meses antes usavam sobrecasaca, botas de verniz, luvas de pelica e brilhantina no cabelo, mas nos aluviões era quase impossível diferenciá-los dos parolos mais rústicos, com quem trabalhavam de igual para igual. Os melindres e preconceitos de classe esfumavam-se em contacto com a realidade brutal das minas, mas não o ódio racial, que ao menor pretexto degenerava em lutas. Os chilenos, mais numerosos e empreendedores do que outros hispanos, atraíam o ódio dos gringos. Eliza soube que em São Francisco um grupo de australianos bêbados tinha atacado Chilecito, desencadeando uma batalha campal. Nos aluviões funcionavam várias companhias chilenas que tinham trazido trabalhadores dos campos, rendeiros que estavam há gerações sob um regime feudal e que trabalhavam por um salário ínfimo sem estranharem que o ouro fosse do patrão e não de quem o encontrava. Aos olhos dos yanques, isso era escravidão pura. As leis americanas favoreciam os indivíduos: cada propriedade era limitada ao espaço que um homem só conseguia explorar. As companhias chilenas enganavam a lei registando os direitos em nome de cada um dos peões para englobar mais terreno.
Havia brancos de várias nacionalidades com camisas de flanela, calças metidas nas botas e um par de revólveres, chineses com os seus casacos acolchoados e calças largas, índios com velhos casacos militares e rabo de fora, mexicanos vestidos de algodão branco e com chapéus enormes, sul-americanos com ponchos curtos e cintos largos de couro onde prendiam a faca, o tabaco, a pólvora e o dinheiro, viajantes das ilhas Sandwich descalços e com faixas brilhantes de seda, toda uma mistura de cores, culturas, religiões e línguas, com a mesma obsessão comum. A cada um Eliza perguntava por Joaquín Andieta e pedia que fizessem correr a notícia de que o seu irmão Elías o procurava. Ao internar-se cada vez mais nesse território, compreendia até que ponto era grande e como seria difícil encontrar o seu amante a meio de cinquenta mil forasteiros saltitando de um lado para o outro.
O grupo de extenuados chilenos decidiu por fim instalar-se. Tinham chegado ao vale do rio Americano com um calor de fornalha e apenas com duas mulas e o cavalo de Eliza, os restantes animais tinham sucumbido pelo caminho. A terra estava seca e partida, sem outra vegetação além de pinheiros e carvalhos, mas, da montanha, um rio claro e caudaloso descia aos saltos pelas pedras, atravessando o vale como uma faca. Em ambas as margens havia filas e mais filas de homens cavando e enchendo baldes de terra fina, que depois crivavam com um instrumento parecido com um berço.
Trabalhavam com a cabeça ao sol, as pernas na água gelada e a roupa empapada, dormiam estendidos no chão sem soltar as armas, comiam pão duro e carne salgada, bebiam água contaminada pelas centenas de escavações rio acima e bebidas tão adulteradas, que muitos ficavam com o fígado rebentado ou enlouqueciam. Eliza viu morrer dois homens em poucos dias, contorcendo-se de dor e cobertos do suor espumoso da cólera e agradeceu a sabedoria de Tao Chi'en, que não lhe permitia beber água por ferver. Por muita que fosse a sede, ela esperava até à tarde, quando acampavam, para preparar chá ou mate. De vez em quando ouviam-se gritos de júbilo: alguém encontrara uma pepita de ouro, mas a maior parte contentava-se em separar uns grãos preciosos entre toneladas de terra inútil.
Meses antes ainda podiam ver as escamas a brilhar sob a água límpida, mas agora a natureza estava transtornada pela cobiça humana, a paisagem alterada com montes de terra e de pedras, buracos enormes, rios e esteiros desviados dos seus cursos e a água distribuída por inúmeros charcos, milhares de troncos amputados onde antes havia bosque. Para chegar ao metal era necessário ter-se uma determinação de titã.
Eliza não pretendia ficar, mas estava esgotada e achou-se incapaz de continuar a cavalgar sozinha à deriva. Os seus companheiros ocuparam um pedaço no fim da fila de mineiros, bastante longe da pequena povoação que começava a emergir naquele sítio, com a sua taberna e o seu armazém para satisfazer as necessidades primordiais. Os seus vizinhos eram três oregoneses que trabalhavam e bebiam álcool com uma resistência descomunal e que não perderam tempo a cumprimentar os recém-chegados, pelo contrário, fizeram-nos saber de imediato que não reconheciam o direito aos grasientos de explorar o solo americano. Um dos chilenos enfrentou-os com o argumento de que eles também não eram dali, que a terra era dos índios, e teria havido briga se os restantes não interviessem para acalmar os ânimos. O ruído era uma contínua algaraviada de pás, picaretas, água, rochas a cair e pragas, mas o céu era límpido e o ar cheirava a folhas de loureiro. Os chilenos deixaram-se cair ao chão, mortos de fadiga, enquanto o falso Elías Andieta acendia uma pequena fogueira para preparar café e dava água ao seu cavalo. Penalizada, deu também às pobres mulas, embora não fossem suas, e descarregou a carga para que pudessem descansar. A fadiga turvava-lhe a vista, mal podia com o tremor dos joelhos e compreendeu que Tao Chi'en tinha razão quando advertia para a necessidade de recuperar forças antes de se lançar naquela aventura. Pensou na casinha de tábuas e lona em Sacramento, onde a essa hora ele estaria a meditar ou a escrever a pincel e tinta da china com a sua bonita caligrafia. Sorriu, admirada por na sua nostalgia não evocar a tranquila salinha de costura de Miss Rose ou a calorosa cozinha de Mama Fresia. Como mudei, suspirou, olhando para as suas mãos cheias de bolhas e queimadas pelo sol inclemente.
No dia seguinte os seus camaradas mandaram-na ao armazém comprar o indispensável para sobreviver e um daqueles berços para crivar a terra, porque viram como esse instrumento era mais eficiente do que as suas humildes bateias. A única rua da povoação, se assim se podia chamar àquele casario, era um lamaçal pejado de detritos. O armazém, uma cabana de troncos e tábuas, era o centro da vida social nessa comunidade de homens solitários. Ali vendia-se um pouco de tudo, servia-se bebidas à discrição e alguma comida; à noite, quando os mineiros vinham beber, um violinista animava o ambiente com as suas melodias, e alguns homens penduravam um lenço no cinto, em sinal de que assumiam o papel de mulheres, enquanto os outros se revezavam para os convidar para dançar. Não havia uma única mulher em muitas milhas em redor; mas de vez em quando passava um vagão puxado por mulas e carregado de prostitutas. Esperavam-nas ansiosos e compensavam-nas generosamente. O dono do armazém era um mórmon loquaz e bondoso, com três mulheres no Utah, que dava crédito àqueles que se convertessem à sua fé. Era abstémio e enquanto vendia as bebidas pregava contra o vício do álcool. Sabia de um tal Joaquín cujo apelido lhe soava como Andieta e informou Eliza quando esta lhe perguntou, mas já passara por ali há um bom tempo e não sabia em que direcção fora.
Lembrava-se dele porque esteve envolvido numa briga entre americanos e espanhóis a propósito de um direito de propriedade. Chilenos? Talvez, tinha apenas a certeza de que falava castelhano, mas podia ser mexicano, disse, para ele todos os grasientos lhe pareciam iguais.
- E o que aconteceu afinal?
- Os americanos ficaram com o prédio e os outros tiveram de ir embora. Estavas à espera de quê? Joaquín e outro homem permaneceram aqui no armazém dois ou três dias. Pus uns cobertores ali num canto e deixei-os descansar até recuperarem um pouco, porque estavam bastante maltratados. Não eram más pessoas. Lembro-me do teu irmão, era um rapaz de cabelo preto e olhos grandes, muito bonito.
- Esse mesmo - disse Eliza, cujo coração disparou a galope.
Terceira parte
1850-1853
El dorado
Levaram o urso entre quatro homens, dois de cada lado a puxar pelas cordas grossas, a meio de uma turba excitada. Arrastaram-no até ao centro da arena e amarraram-no por uma pata a um poste com uma corrente de vinte pés, levando depois quinze minutos a desatá-lo, enquanto ele tentava arranhar e morder com uma ira de fim de mundo. Pesava mais de seiscentos quilos, tinha o pêlo pardo escuro, um olho zarolho, várias peladas e cicatrizes de lutas antigas no lombo, mas era ainda jovem. Uma baba espumosa cobria-lhe a boca de enormes dentes amarelos. Levantado sobre as patas traseiras, dando palmadas inúteis com as suas garras pré-históricas, percorria a multidão com o seu olho bom, puxando a corrente desesperado.
Era uma vilória surgida do nada em poucos meses, construída por trânsfugas num suspiro e sem ambição de durar. à falta de uma arena de touros, como as que havia em todos os povoados mexicanos da Califórnia, dispunha de um amplo círculo desocupado que servia para domar cavalos e para prender as mulas, reforçado com tábuas e munido de galerias de madeira para instalar o público. Nessa tarde de Novembro o céu cor de chumbo ameaçava chuva, mas não estava frio e a terra estava seca. Por trás da paliçada, centenas de espectadores respondiam a cada rugido do animal com um coro de troças. As únicas mulheres, meia dúzia de jovens mexicanas com vestidos brancos bordados e fumando os seus eternos cigarros, davam tanto nas vistas como o urso e também a elas os homens saudavam com gritos de olé, enquanto as garrafas de bebida e os sacos de ouro das apostas circulavam de mão em mão. Os jogadores profissionais, com roupa da cidade, casacos de fantasia, gravatas largas e chapéus altos, distinguiam-se entre a massa rústica e desgrenhada. Três músicos tocavam nos seus violinos as canções favoritas e assim que atacaram com garbo "Oh Susana", hino dos mineiros, um par de cómicos barbudos, mas vestidos de mulher, saltaram para o redondel e deram uma volta olímpica entre obscenidades e palmadas, levantando as saias para mostrar pernas peludas e calções com folhos. O público festejou-os com uma generosa chuva de moedas, e um estrépito de aplausos e de gargalhadas.
Quando se retiraram, um toque solene de corneta e rufar de tambores anunciou o início da lide, seguido por um bramido da multidão electrizada.
Perdida na multidão, Eliza seguia o espectáculo com fascínio e horror.
Tinha apostado o escasso dinheiro que lhe sobrava, na esperança de o multiplicar nos próximos minutos. Ao terceiro toque de corneta ergueram um portão de madeira e um touro jovem, negro e reluzente, entrou resfolegando.
Por um instante reinou um silêncio maravilhado nas galerias e a seguir um grito de olé! recebeu o animal. O touro parou desconcertado, a cabeça levantada, coroada por grandes cornos sem limar, os olhos alerta medindo as distâncias, os cascos dianteiros batendo na areia, até um grunhido do urso captar a sua atenção. O seu adversário vira-o e cavava a toda a pressa um buraco a poucos passos do poste, onde se encolheu, esmagado contra o chão. Aos alaridos do público o touro agachou o cachaço, contraiu os músculos e lançou-se numa corrida libertando uma nuvem de areia, cego de raiva, resfolegando, deitando vapor pelo nariz e baba pelo focinho. O urso estava à espera dele. Recebeu a primeira cornada no lombo, que abriu um sulco sanguinolento na sua pele grossa, mas que não conseguiu movê-lo nem uma polegada. O touro deu uma volta a trote pelo redondel, confuso, enquanto a turba o açulava com insultos, a seguir voltou a carregar, tentando levantar o urso com os cornos, mas este manteve-se agachado e recebeu o castigo sem tugir nem mugir, até ver a sua oportunidade e, de uma sapatada certeira, despedaçar-lhe o nariz. Jorrando sangue, transtornado pela dor e desnorteado, o animal começou a atacar com cabeçadas desorientadas, ferindo o seu adversário vezes sem conta, sem conseguir tirá-lo do buraco.
De súbito o urso levantou-se e agarrou-o pelo pescoço num abraço terrível, mordendo-lhe a nuca. Durante longos minutos dançaram juntos no círculo que a corrente permitia, enquanto a arena se ia empapando de sangue e nas galerias retumbava o bramido dos homens. Por fim conseguiu soltar-se, afastou-se alguns passos, vacilando, com as patas bambas e o seu pêlo de brilhante obsidiana tingido de vermelho, dobrou os joelhos e caiu de bruços. Então um clamor imenso acolheu a vitória do urso. Entraram os cavaleiros no redondel, deram ao vencido um tiro de espingarda entre os olhos, laçaram-no pelas patas traseiras e arrastaram-no para fora da arena.
Eliza abriu caminho até à saída, desgostosa. Tinha perdido os seus últimos quarenta dólares.
Nos meses do Verão e do Outono de 1849, Eliza cavalgou ao longo da Veta Madre de sul para norte, de Mariposa até Downieville e depois de volta, seguindo a pista cada vez mais confusa de Joaquín Andieta por montes abruptos, desde os leitos dos rios até às franjas da Sierra Nevada. Ao principio, quando perguntava por ele, poucos se lembravam de alguém com esse nome ou descrição, mas para o fim do ano a figura dele foi adquirindo contornos reais e isso dava força à jovem para continuar a sua busca. Tinha posto a correr o rumor que o seu irmão Elias andava atrás dele e em várias ocasiões durante esses meses o eco devolveu-lhe a sua própria voz. Mais de uma vez, ao perguntar por Joaquín, identificaram-na como irmão dele mesmo antes de conseguir apresentar-se. Nessa região selvagem o correio chegava de São Francisco com meses de atraso e os jornais demoravam semanas, mas a noticia de boca em boca nunca falhava. Como é possível que Joaquín não soubesse que o procuravam? Não tendo irmãos, devia perguntar a si próprio quem era o tal Elias e, se tivesse um pingo de intuição, podia associar esse nome com o dela, pensava, mas se não suspeitasse, pelo menos sentiria curiosidade em averiguar quem se fazia passar por seu parente. À noite mal conseguia dormir, perdida em conjecturas e com a dúvida pertinaz de que o silêncio do seu amante só podia explicar-se pela sua morte ou por não desejar ser encontrado. E se realmente estava a fugir dela, como insinuara Tao Chi'en? Passava o dia a cavalo e dormia estendida no chão em qualquer parte, com a sua manta de Castela por agasalho e as suas botas por almofada, sem tirar a roupa. A sujidade e o suor tinham deixado de incomodá-la, comia quando podia, as suas únicas precauções eram ferver a água que bebia e não olhar os gringos nos olhos.
Por essa altura havia mais de cem mil argonautas e continuavam a chegar mais, espalhados ao longo da Veta Madre, dando a volta ao mundo ao contrário, movendo montanhas, desviando rios, destruindo bosques, pulverizando rochas, deslocando toneladas de areia e cavando buracos descomunais. Nos Sítios onde havia ouro, o território idílico, que permanecera imutável desde o começo dos tempos, estava convertido num pesadelo lunar.
Eliza vivia extenuada, mas tinha recuperado as forças e perdido o medo.
Voltou a menstruar quando menos lhe convinha, porque era difícil dissimulá-lo na companhia dos homens, mas agradeceu-o como um sinal de que o seu corpo tinha por fim sanado. "As tuas agulhas de acupunctura serviram-me bem, Tao. Espero ter filhos no futuro" escreveu ao seu amigo, certa de que ele entenderia sem mais explicações. Nunca se separava das suas armas, embora não soubesse usá-las e esperava nunca ter necessidade de o fazer.
Só uma vez as disparou para o ar para afugentar uns rapazinhos índios que se aproximaram demasiado e lhe pareceram ameaçadores, mas se tivesse tido de bater-se com eles ter-se-ia dado muito mal, porque era incapaz de acertar num burro a cinco passos de distância. Não tinha apurado a pontaria, mas sim o seu talento para se tornar invisível. Podia entrar nas povoações sem chamar a atenção, misturando-se com os grupos de latinos, onde um rapaz com o seu aspecto passava despercebido. Aprendeu a imitar o acento peruano e mexicano na perfeição, confundindo-se desta forma com um deles quando procurava hospitalidade.
Também mudou o seu inglês britânico pelo americano e adoptou certos palavrões indispensáveis, de modo a ser aceite entre os gringos. Deu-se conta de que, se falasse como eles, a respeitariam, o importante era não dar explicações, dizer o menos possível, não pedir nada, trabalhar pela sua comida, enfrentar as provocações e aferrar-se a uma pequena Bíblia que tinha comprado em Sonora. Até os mais rudes sentiam uma reverência supersticiosa por esse livro. Surpreendia-os aquele rapaz imberbe com voz de mulher que lia as Sagradas Escrituras à tarde, mas não troçavam dele abertamente, pelo contrário, alguns transformavam-se em seus protectores, dispostos a lutar com quem o fizesse. Nesses homens solitários e brutais, que tinham partido em busca de fortuna como os heróis míticos da antiga Grécia, e que acabavam reduzidos ao elementar, frequentemente doentes, entregues à violência e ao álcool, havia uma ânsia inconfessável de ternura e de ordem.
As canções românticas humedeciam-lhes os olhos, estavam dispostos a pagar qualquer preço por uma fatia de tarte de maçã que lhes oferecia um instante de consolo para contrapor à nostalgia dos seus lares, faziam longos desvios para se aproximarem de uma casa onde houvesse uma criança, que contemplavam em silêncio, como se fosse um prodígio.
"Não receies, Tao, não viajo sozinha, seria uma loucura", escrevia Eliza ao seu amigo. "É preciso andar em grupos grandes, bem armados e alerta, porque nos últimos meses multiplicaram-se os bandos de foragidos. Os índios são pacíficos, embora tenham um aspecto aterrador, mas à vista de um cavaleiro desprotegido podem tirar-lhe os seus bens mais preciosos: cavalos, armas e botas. Junto-me a outros viajantes: comerciantes que vão de povoado em povoado com os seus produtos, mineiros à procura de novos filões, famílias de granjeiros, caçadores, empresários e agentes de propriedades que começam a invadir a Califórnia, jogadores, pistoleiros, advogados e outros canalhas, que em geral são os companheiros de viagem mais divertidos e generosos. Também andam pregadores por estes caminhos, são sempre jovens e parecem loucos iluminados. Imagina a fé que é necessária para viajar três mil milhas através de pradarias virgens com o fim de combater vícios alheios. Saem das suas povoações pletóricos de força e de paixão, decididos a trazer a palavra de Cristo a estes ermos, sem se preocuparem com os obstáculos e desditas do caminho porque Deus marcha ao seu lado. Chamam aos mineiros "os adoradores do bezerro de ouro". Tens que ler a Bíblia, Tao, ou nunca entenderás os cristãos. As vicissitudes materiais não conseguem derrotar esses pastores, mas muitos sucumbem com a alma desfeita, impotentes perante a força avassaladora da cobiça. É reconfortante vê-los quando acabam de chegar, ainda inocentes, e é triste encontrá-los quando estão desamparados por Deus, viajando penosamente de um acampamento para outro, com um sol tremendo sobre as cabeças e sedentos, pregando em praças e tabernas a uma assistência indiferente, que os ouve sem tirar o chapéu e que cinco minutos mais tarde se está a embriagar com mulheres de má vida. Conheci um grupo de artistas itinerantes, Tao, eram uns pobres diabos que paravam nas povoações para entreter as pessoas com pantomimas, canções picarescas e comédias grosseiras. Andei com eles várias semanas e incorporaram-me no espectáculo. Se conseguíamos um piano, eu tocava, caso contrário fazia de jovem dama da companhia e toda a gente se maravilhava por eu fazer tão bem o papel de mulher. Tive de os deixar porque a confusão estava a enlouquecer-me, já não sabia se era uma mulher vestida de homem, se um homem vestido de mulher ou se uma aberração da natureza."
Fez amizade com o carteiro e quando era possível cavalgava com ele, porque ele viajava depressa e tinha contactos, se alguém poderia encontrar Joaquín Andieta era ele, pensava. O homem transportava o correio para os mineiros e regressava com os sacos de ouro para guardar nos bancos. Era um dos muitos visionários enriquecidos com a febre do ouro sem nunca ter tido nas mãos uma pá ou uma picareta. Cobrava dois dólares e meio para levar uma carta para São Francisco e, aproveitando a ansiedade dos mineiros para receber notícias das suas casas, pedia uma onça de ouro para entregar as cartas que lhe chegavam. Ganhava uma fortuna com esse negócio, tinha clientes de sobra e nenhum reclamava dos preços, uma vez que não havia alternativa, não podiam abandonar a mina para ir buscar correspondência ou depositar os seus lucros a cem milhas de distância. Eliza também procurava a companhia de Charley, um homenzinho cheio de histórias, que rivalizava com os almocreves mexicanos transportando mercadorias em mulas. Embora não receasse nem o Diabo, gostava sempre de ser escoltado, porque precisava de ouvidos para as suas histórias. Quanto mais Eliza o observava, mais convencida ficava de que se tratava de uma mulher vestida de homem, tal como ela. Charley tinha a pele curtida pelo sol, mascava tabaco, blasfemava como um bandoleiro e nunca se separava das suas pistolas ou das suas luvas, mas uma vez conseguiu ver-lhe as mãos e eram pequenas e brancas, como as de uma donzela.
Eliza apaixonou-se pela liberdade. Tinha vivido entre as quatro paredes da casa dos Sommers, num ambiente imutável, onde o tempo rodava em círculos e a linha do horizonte mal se entrevia através das janelas estreitas, cresceu na armadura impenetrável das boas maneiras e das convenções, treinada desde sempre para agradar e servir, limitada pelo espartilho, pelas rotinas, pelas normas sociais e pelo temor. O medo tinha sido seu companheiro: medo de Deus e da sua imprevisível justiça, da autoridade, dos seus pais adoptivos, da doença e da maledicência, do desconhecido e do diferente, de sair da protecção de casa e de enfrentar os perigos da rua, medo da sua própria fragilidade feminina, da desonra e da verdade. A sua fora uma realidade adocicada, feita de omissões, silêncios corteses, segredos bem guardados, ordem e disciplina. A sua aspiração fora a virtude, mas agora duvidava do significado dessa palavra. Ao entregar-se a Joaquín Andieta no quarto dos armários tinha cometido uma falta irreparável aos olhos do mundo, mas aos seus olhos o amor justificava tudo. Não sabia o que perdera ou ganhara com essa paixão. Saiu do Chile com o propósito de encontrar o seu amante e transformar-se em sua escrava para sempre, julgando que assim apagaria a sede de submissão e a ânsia recôndita de posse, mas já não se sentia capaz de renunciar a estas novas asas que começavam a crescer-lhe nos ombros. Não lamentava nada do que partilhara com o seu amante nem se envergonhava dessa fogueira que a transtornara, pelo contrário, sentia que a fortalecera de repente, que lhe dera arrogância para tomar decisões e arcar com as suas consequências. Não devia explicações a ninguém, se cometeu erros foi castigada de sobra com a perda da família, com o tormento de se ver sepultada no porão do barco, com o filho morto e com a incerteza absoluta do futuro. Quando engravidou e se viu presa, escreveu no seu diário que perdera o direito à felicidade, no entanto nesses últimos meses, cavalgando pela paisagem dourada da Califórnia, sentiu que voava como um condor. Acordou um dia com o relincho do seu cavalo e a luz do amanhecer na cara, viu-se rodeada de sequóias altivas que, como guardas centenárias tinham velado o seu sono, de colinas suaves e, ao longe, de cumes altos e arroxeados, invadiu-a então uma dita atávica nunca antes sentida. Apercebeu-se de que já não tinha essa sensação de pânico sempre à espreita na boca do estômago, como uma ratazana pronta para mordê-la. Os receios tinham-se diluído na opressiva grandiosidade desse território. à medida que enfrentava os riscos, ia adquirindo arrojo: tinha perdido o medo ao medo. "Estou a encontrar novas forças em mim, que talvez sempre tivesse tido, mas que não conhecia, porque até agora não tinha precisado de as exercer. Não sei em que curva do caminho se perdeu a pessoa que eu era antes, Tao. Agora sou mais um dos inumeráveis aventureiros dispersos pelas margens destes rios translúcidos e pelas faldas destes montes eternos. São homens orgulhosos, apenas com o céu por cima dos seus chapéus, que não se inclinam perante ninguém porque estão a inventar a igualdade. E eu quero ser um deles.
Alguns caminham vitoriosos com um saco de ouro às costas e outros derrotados carregam só desilusões e dívidas, mas todos se sentem donos dos seus destinos, da terra que pisam, do futuro, da sua própria irrevogável dignidade. Depois de os conhecer não posso voltar a ser uma menina como Miss Rose pretendia. Finalmente compreendo Joaquín, quando roubava horas preciosas do nosso amor para falar-me de liberdade. Então era isto...
Era esta euforia, esta luz, esta dita tão intensa como a dos escassos momentos de amor partilhado que consigo recordar. Sinto a tua falta, Tao.
Não tenho com quem falar daquilo que vejo, daquilo que sinto. Não tenho um amigo nestes ermos e no meu papel de homem tenho muito cuidado com o que digo. Ando com cenho franzido, para que me julguem bem macho. É um aborrecimento ser homem, mas ser mulher é um aborrecimento pior."
Vagueando de um lado para outro acabou por conhecer aquele terreno abrupto como se tivesse nascido ali, conseguia orientar-se e calcular as distâncias, distinguia as serpentes venenosas das mócuas e os grupos hostis dos amistosos, previa o clima pela forma das nuvens e a hora pelo ângulo da sua sombra, sabia o que fazer se lhe deparasse um urso e como aproximar-se de uma cabana isolada para não ser recebida aos tiros. Às vezes encontrava-se com jovens recém-chegados que arrastavam complicadas máquinas de mineração montanha acima, que deixavam por fim abandonadas por imprestáveis, ou cruzava-se com um grupo de homens doentes que desciam das serras depois de meses de trabalho inútil. Não conseguia esquecer aquele cadáver comido pelos pássaros pendurado num carvalho com um letreiro de advertência... Na sua peregrinação viu americanos, europeus, kanakas, mexicanos, chilenos, peruanos e também longas filas de chineses silenciosos a mando de um capataz, que sendo da sua própria raça, os tratava como servos e lhes pagava migalhas. Levavam uma trouxa às costas e as botas na mão, porque tinham usado sempre sapatilhas e não suportavam o peso nos pés. Era gente poupada, viviam com nada e gastavam o menos possível, compravam as botas grandes porque as julgavam mais valiosas e pasmavam ao verificar que o preço das mais pequenas era o mesmo. Eliza apurou o instinto para iludir o perigo. Aprendeu a viver o dia-a-dia sem fazer planos, como Tao Chi'en lhe aconselhara.
Pensava nele com bastante frequência e escrevia-lhe continuamente, mas só conseguia enviar-lhe as cartas quando chegava a uma povoação com serviço de correio para Sacramento. Era como lançar ao mar mensagens em garrafas, porque não sabia se ele continuava a viver nessa cidade e a única direcção certa que possuía era a do restaurante chinês. Se as suas cartas lá chegassem, sem dúvida que as entregariam.
Falava-lhe da paisagem magnífica, do calor e da sede, dos montes de curvas voluptuosas, dos grossos carvalhos e dos pinheiros esbeltos, dos rios gelados de águas tão límpidas que se podia ver o ouro a brilhar nos seus leitos, de gansos selvagens grasnando no céu, dos veados e dos grandes ursos, da vida rude dos mineiros e da miragem da fortuna fácil. Dizia-lhe o que ambos já sabiam: que não valia a pena desperdiçar a vida perseguindo um pó amarelo. E adivinhava a resposta de Tao: que também não fazia sentido desperdiçá-la perseguindo um amor ilusório, mas ela continuava a sua marcha porque não podia parar. Joaquín Andieta começava a esfumar-se, a sua boa memória não já não bastava para precisar com clareza os traços do amante, tinha de reler as cartas de amor para ter a certeza de que na realidade ele existira, de que se tinham amado e de que as noites no quarto dos armários não eram uma partida da sua imaginação. Assim renovava o doce tormento do amor solitário. A Tao Chi'en descrevia as pessoas que ia conhecendo pelo caminho, as massas de imigrantes mexicanos instalados em Sonora, a única povoação onde corriam crianças pelas ruas, as mulheres humildes que costumavam acolhê-la nas suas casas de adobe sem suspeitar que era uma delas, os milhares de jovens americanos que acorriam aos aluviões nesse Outono, depois de terem atravessado por terra o continente, das costas do Atlântico até às do Pacífico. Calculava-se em quarenta mil os recém-chegados, cada um deles disposto a enriquecer num piscar de olhos e a regressar triunfante às suas aldeias. Chamavam-se "os do 49", nome que se tornou popular e que foi adoptado também por aqueles que chegaram antes ou depois. A leste ficaram povoações inteiras sem homens, habitadas apenas por mulheres, crianças e presos.
"Vejo muito poucas mulheres nas minas, mas há umas quantas com coragem suficiente para acompanhar os maridos nesta vida de cão. As crianças morrem de epidemias ou de acidentes, elas enterram-nas, choram-nas e continuam a trabalhar de sol a sol para impedir que a barbárie acabe com todos os vestígios da decência. Arregaçam as saias e metem-se na água à procura de ouro, mas algumas descobrem que lavar roupa alheia ou cozer bolachas e vendê-las é mais produtivo, e assim ganham mais numa semana do que os seus companheiros rebentando as costas nos aluviões durante um mês. Um homem solitário paga contente por um pão amassado por mãos femininas dez vezes o seu valor. Se eu tentar vender o mesmo, vestido de Elías Andieta, dão-me apenas alguns centavos, Tao. Os homens são capazes de andar muitas milhas para ver uma mulher de perto. Uma rapariga instalada a apanhar sol diante de uma taberna em poucos minutos terá no seu regaço uma colecção de saquinhos de ouro, oferta dos homens embevecidos com a visão evocadora de umas saias. E os preços continuam a subir, os mineiros cada vez mais pobres e os comerciantes cada vez mais ricos. Num momento de desespero paguei um dólar por um ovo e comi-o cru com um cálice de brandy, sal e pimenta, como me ensinou Mama Fresia: remédio infalível para a desolação. Conheci um ia paz da Geórgia, um pobre lunático, mas dizem-me que nem sempre foi assim. No início do ano encontrou um filão de ouro e raspou das rochas nove mil dólares com uma colher, mas perdeu-os numa tarde jogando monte. Ai, Tao, não imaginas a vontade que tenho de tomar banho, de preparar um chá e de sentar-me contigo a conversar. Gostava de pôr um vestido limpo e os brincos que Miss Rose me ofereceu, para que algum dia me possas ver bonita e não achares que sou uma machona. Estou a anotar no meu diário as coisas que me acontecem, desta forma poderei contar-te os pormenores quando nos encontrarmos, porque disso ao menos tenho a certeza, voltaremos a estar juntos um dia. Penso em Miss Rose e em como deve estar aborrecida comigo, mas não posso escrever-lhe antes de encontrar Joaquín, porque até esse momento ninguém deve saber onde estou. Se Miss Rose suspeitasse das coisas que vi e ouvi, morreria. Esta é a terra do pecado, diria Mr. Sommers, aqui não há moral nem leis, imperam os vícios do jogo, do álcool e dos bordéis, mas para mim este país é uma folha em branco, aqui posso escrever a minha nova vida, converter-me na pessoa que desejar, ninguém me conhece excepto tu, ninguém sabe o meu passado, posso voltar a nascer.
Aqui não há senhores nem criados, só gente de trabalho. Vi antigos escravos que juntaram ouro suficiente para financiar jornais, escolas e igrejas para os da sua raça, que combatem a escravatura a partir da Califórnia. Conheci um que comprou a liberdade da mãe, a pobre mulher chegou doente e envelhecida, mas agora ganha o que quer vendendo comida, comprou um rancho e vai à igreja aos domingos vestida de seda numa carruagem com quatro cavalos. Sabes que muitos marinheiros pretos desertaram dos barcos, não só pelo ouro, mas porque aqui encontram uma forma única de liberdade?
Lembro-me das escravas chinesas que me mostraste em São Francisco espreitando atrás de uns bariotes, não consigo esquecê-las, penam-me como almas. Por estes lados a vida das prostitutas também é brutal, algumas suicidam-se. Os homens esperam horas para cumprimentar respeitosamente a nova professora, mas tratam mal as raparigas dos satoons. Sabes como as chamam? Pombas maculadas. E os índios também se suicidam, Tao.
Expulsam-nos de todo o lado, andam esfomeados e desesperados. Ninguém os emprega, depois acusam-nos de vagabundos e acorrentam-nos em trabalhos forçados. Os alcaides pagam cinco dólares por índio morto, matam-nos por desporto e às vezes arrancam-lhes o couro cabeludo. Não faltam gringos que coleccionam esses troféus e os exibem pendurados nas suas montadas. Deves gostar de saber que há chineses que foram viver com os índios. Partem para longe, para os bosques do norte, onde ainda há caça. Restam muito poucos búfalos nas pradarias, dizem."
Eliza saiu da luta do urso sem dinheiro e com fome, não comia desde o dia anterior e decidiu que nunca mais apostaria as suas economias com o estômago vazio. Quando já não tinha mais nada para vender, passou dois dias sem saber como sobreviver, até que foi à procura de trabalho e descobriu que ganhar a vida era mais fácil do que imaginara, em todo o caso preferível à tarefa de arranjar outro que lhe pagasse as contas. Sem um homem que a proteja e mantenha, uma mulher está perdida, tinha-lhe martelado Miss Rose, mas descobriu que nem sempre era assim. No seu papel de Elías Andieta conseguia trabalhos que também poderia fazer com roupa de mulher. Empregar-se como peão ou vaqueiro era impossível, não sabia usar uma ferramenta ou um laço e as forças não lhe chegavam para levantar uma pá ou derrubar um novilho, mas havia outras ocupações ao seu alcance. Nesse dia recorreu à pena, tal como tantas vezes o fizera anteriormente. A ideia de escrever cartas foi um bom conselho do seu amigo, o carteiro. Se não conseguia fazê-lo numa taberna, estendia a sua manta de Castela no centro de uma praça, colocava por cima tinteiro e papel, e depois apregoava o seu ofício aos gritos. Muitos mineiros mal sabiam ler ou assinar o nome, nunca tinham escrito uma carta na sua vida, mas todos esperavam o correio com uma veemência comovedora, era o único contacto com as famílias longínquas. Os vapores do Pacific Mau chegavam a São Francisco de duas em duas semanas com os sacos da correspondência e assim que se perfilhavam no horizonte, as pessoas corriam a pôr-se em fila diante do escritório dos correios. Os empregados demoravam dez ou doze horas a dividir o conteúdo dos sacos, mas ninguém se importava de esperar o dia inteiro. Daí até às minas a correspondência demorava ainda várias semanas.
Eliza oferecia os seus serviços em inglês e espanhol, lia as cartas e dava-lhes resposta. Se o seu cliente só se lembrava de duas frases lacónicas dizendo que ainda estava vivo e mandando cumprimentos para os seus, ela interrogava-o com paciência e acrescentava uma história mais floreada até encher pelo menos uma página. Cobrava dois dólares por carta, sem se importar com o tamanho, mas se lhe juntava frases sentimentais que ao homem nunca teriam ocorrido, costumava receber uma boa gorjeta. Alguns traziam-lhe cartas para que as lesse e também as enfeitava um pouco, desta forma o desgraçado recebia o consolo de algumas palavras de carinho. As mulheres, cansadas de esperar no outro lado do continente, só escreviam queixas, censuras ou um chorrilho de conselhos cristãos, sem se lembrarem que os seus homens estavam doentes de solidão. Numa segunda-feira triste apareceu um shenff à sua procura para que escrevesse as últimas palavras de um preso condenado à morte, um jovem do Wisconsin acusado nessa mesma manhã de ter roubado um cavalo. Imperturbável, apesar dos seus recentes dezanove anos, ditou a Eliza: "Querida Mamã, espero que esteja bem quando receber esta notícia e que diga a Bob e a James que me vão enforcar hoje. Cumprimentos, Theodore." Eliza tentou suavizar um pouco a mensagem, para evitar uma síncope à infeliz mãe, mas o shenff disse que não havia tempo para salamaleques. Minutos depois vários honestos cidadãos conduziram o réu até ao centro da povoação, sentaram-no num cavalo com uma corda ao pescoço, passaram a outra extremidade pelo ramo de um carvalho, deram depois uma pancada nas ancas do animal e Theodore ficou pendurado sem mais formalidades. Não era o primeiro que Eliza via. Esse castigo pelo menos era rápido, mas se o acusado era de outra raça costumava ser chicoteado antes da execução e embora ela fosse para longe, os gritos do condenado e o tumulto dos espectadores perseguiam-na durante semanas.
Nesse dia preparava-se para perguntar na taberna se podia instalar ali o seu negócio de escrivão, quando um alvoroço chamou a sua atenção.
Justamente quando o público saía da luta do urso, pela única rua da povoação entravam umas carroças puxadas por mulas e precedidas por um miúdo índio tocando um tambor. Não eram veículos comuns, as lonas estavam pintalgadas, dos tectos pendiam franjas, pompons e lanternas chinesas, as mulas estavam enfeitadas como animais do circo e acompanhadas por uma chinfrineira incrível de chocalhos de cobre. Sentada à boleia da primeira carruagem ia uma mulherona de seios hiperbólicos, com roupa de homem e um cachimbo de pirata nos dentes. A segunda carroça era conduzida por um tipo enorme coberto com umas peles coçadas de lobo, de cabeça rapada, argolas nas orelhas e armado como se fosse para a guerra.
Cada carroça levava outra a reboque, onde viajava o resto da comitiva, quatro jovens ataviadas com veludos desbotados e falsos brocados e que atiravam beijos à assistência assombrada. O estupor durou apenas um instante, assim que reconheceram as carroças, uma salva de gritos e tiros para o ar animou a tarde. Até essa altura as pombas maculadas tinham reinado sem concorrência feminina, mas a situação mudou quando nas novas povoações se instalaram as primeiras famílias e os pregadores, que agitavam as consciências com ameaças de condenação eterna. à falta de igrejas, organizavam serviços religiosos nos próprios satoons onde floresciam os vícios. Suspendia-se por uma hora a venda de bebidas, guardavam-se os baralhos e voltavam-se para a parede os quadros lascivos, enquanto os homens recebiam as admoestações do pastor pelas suas heresias e devassidão. Assomadas à varanda do segundo andar, as galdérias resistiam filosoficamente ao embate, com o consolo de que uma hora mais tarde voltaria tudo ao seu estado normal. Desde que o negócio não decaísse, pouco importava se aqueles que lhes pagavam para fornicar, as culpassem depois por receber a paga, como se o vício não fosse deles, mas de quem os tentava. Estabelecia-se desta forma uma nítida fronteira entre as mulheres decentes e as de vida airada. Cansadas de subornar as autoridades e de suportar humilhações, algumas partiam com os seus baús para outro lado, onde mais cedo ou mais tarde o ciclo se repetia. A ideia de um serviço itinerante tinha a vantagem de evitar o assédio das esposas e dos religiosos, além de se alargar o horizonte às zonas mais remotas, onde se cobrava o dobro. O negócio prosperava com o bom tempo, mas já estavam às portas do Inverno, dentro de pouco tempo nevaria e os caminhos ficariam intransitáveis.
Esta era uma das últimas viagens da caravana.
As carroças percorreram a rua e pararam à saída da povoação, seguidas por uma procissão de homens encorajados pelo álcool e pela luta do urso. Para lá se dirigiu também Eliza para ver de perto a novidade.
Compreendeu que lhe faltariam clientes para o ofício epistolar, necessitava encontrar outra forma de ganhar o jantar. Aproveitando o céu estar limpo, vários voluntários ofereceram-se para desatrelar as mulas e ajudar a descarregar um desconjuntado piano, que instalaram sobre a erva sob as ordens da madame, a quem todos conheciam pelo nome primoroso de Joe Quebra-ossos. Enquanto o diabo esfrega um olho limparam um pedaço de terreno, colocaram mesas e apareceram como por magia garrafas de rum e pilhas de postais de mulheres em pêlo. Também dois caixotes com livros em edições vulgares, que foram anunciadas como "romances de alcova com as cenas mais quentes de França". Vendiam-se a dez dólares, uma bagatela, porque com eles podiam excitar-se quantas vezes quisessem e emprestar além disso aos amigos, eram muito mais rentáveis do que uma mulher a sério, explicava a Quebra-ossos, e para prová-lo leu um parágrafo que o público ouviu num silêncio sepulcral, como se de uma revelação profética se tratasse. Um coro de risotas e piadas acolheu o fim da leitura e em poucos minutos não sobrou um único livro nas caixas. Entretanto tinha caído a noite e tiveram de iluminar a festa com tochas. A madame anunciou o preço exorbitante das garrafas de rum, mas dançar com as raparigas custava a quarta parte. Há alguém que saiba tocar o maldito piano? perguntou. Então Eliza, a quem chiavam as tripas, avançou sem pensar duas vezes e sentou-se diante do desafinado instrumento, invocando Miss Rose. Não tocava há dez meses e não tinha bom ouvido, mas o treino de anos com a varinha metálica nas costas e as palmatórias do professor belga acudiram em sua ajuda. Atacou uma das canções picaras que Miss Rose e o irmão, o capitão, costumavam cantar em dueto nos tempos inocentes das tertúlias musicais, antes que o destino desse uma rabanada e o seu mundo ficasse de cabeça para baixo. Assombrada, verificou como a sua torpe execução era bem recebida. Em menos de dois minutos surgiu um rústico violino para acompanhá-la, animou-se o baile e os homens arrebataram as quatro mulheres para dar corridas e trotes na pista improvisada. O ogre das peles tirou o chapéu de Eliza e colocou-o sobre o piano com um gesto tão decidido, que ninguém se atreveu a ignorá-lo e depressa se foi enchendo de gorjetas.
Uma das carroças era usada para todo o serviço e para dormitório da madame e do seu filho adoptivo, o menino do tambor, na outra viajavam amontoadas as restantes mulheres e os dois reboques estavam transformados em quartos de dormir. Cada um deles, forrado com lenços coloridos, dispunha de uma camilha de quatro pilares e dossel com uma réstia de mosquiteiro, um espelho de moldura dourada, um conjunto de lavatório e bacia de loiça, tapetes persas desbotados e um pouco roídos, mas ainda vistosos, e castiçais com velas para iluminar. Esta decoração teatral animava os clientes, dissimulava o pó dos caminhos e os estragos do uso.
Enquanto duas das mulheres dançavam ao som da música, as outras faziam o seu negócio a toda a pressa nas carroças. A madame, com dedos de fada para as cartas, não descurava as mesas de jogo nem a sua obrigação de cobrar adiantadamente os serviços das suas pombas, de vender rum e de animar a pândega, sempre com o cachimbo nos dentes. Eliza tocou as canções que sabia de cor e quando se esgotava o reportório começava outra vez pela primeira, sem que ninguém notasse a repetição, até a vista se lhe toldar de fadiga. Ao vê-la fraquejar, o colosso anunciou uma pausa, recolheu o dinheiro do chapéu e meteu-o nos bolsos da pianista, agarrando-a depois por um braço e levando-a praticamente no ar até à primeira carroça, onde lhe meteu um copo de rum na mão. Ela rejeitou-o com um gesto fraco, bebê-lo em jejum equivalia a uma paulada em plena nuca, então ele escarafunchou na desordem de caixas e vasilhas e arranjou um pão e uns pedaços de cebola, que ela atacou tremendo de antecipação. Quando acabou de devorá-los ergueu os olhos e viu-se diante do tipo das peles que a observava da sua altura incrível. Iluminava-o um sorriso inocente com os dentes mais brancos e iguais deste mundo.
- Tens cara de mulher - disse-lhe e ela irritou-se.
- Chamo-me Elias Andieta - respondeu, levando a mão à pistola, como se tivesse disposta a defender o seu nome de macho aos tiros.
- Eu sou Babalú, o Mau.
- Há um Babalú bom?
- Havia.
- O que lhe aconteceu?
- Encontrou-se comigo. De onde és, miúdo?
- Do Chile. Ando à procura do meu irmão. Não ouviste falar de Joaquín Andieta?
- Não ouvi falar de ninguém. Mas se o teu irmão tem os tomates no sítio, mais cedo ou mais tarde virá visitar-nos. Toda a gente conhece as raparigas de Joe Quebra-ossos.
Negócios
O capitão John Sommers ancorou o Fortuna na baía de São Francisco, a uma distância suficiente da margem para nenhum valente ter a audácia de se lançar à água e nadar até à costa. Tinha advertido a tripulação de que a água fria e as correntes os despachavam em menos de vinte minutos, no caso de os tubarões não o fazerem. Era a sua segunda viagem com o gelo e sentia-se mais seguro. Antes de entrar pelo estreito canal de Golden Gate fez abrir vários tonéis de rum, repartiu-os generosamente entre os marinheiros e quando ficaram ébrios, puxou de dois pistolões e obrigou-os a colocar-se deitados no chão de barriga para baixo. O imediato acorrentou-os com cepos nos pés, perante a perplexidade dos passageiros embarcados em Valparaíso, que observavam a cena na primeira coberta sem saber que diacho estava a acontecer. Entretanto, do cais, os irmãos Rodríguez de Santa Cruz tinham enviado uma flotilha de botes para conduzir os passageiros e a preciosa carga do vapor para terra. A tripulação seria libertada para manobrar a saída do barco no momento do regresso, depois de receber mais bebida e um bónus em moedas autênticas de ouro e prata, equivalentes ao dobro do seu salário. Isso não compensava o facto de não poderem perder-se em terra em busca das minas, como quase todos planeavam, mas ao menos servia de consolo. Tinha utilizado o mesmo método na primeira viagem, com excelentes resultados, gabava-se de ter um dos poucos barcos mercantes que não fora abandonado durante a loucura do ouro. Ninguém se atrevia a desafiar esse pirata inglês, filho da puta e de Francis Drake, como o chamavam, porque não tinham a mínima dúvida de que era capaz de descarregar os seus trabucos no peito daquele que se revoltasse.
No cais de São Francisco empilharam-se os produtos enviados por Paulina de Valparaíso: ovos e queijos frescos, verduras e frutas do Verão chileno, manteiga, sidra, peixes e mariscos, enchidos da melhor qualidade, carne de vaca e toda a espécie de aves recheadas e condimentadas prontas para cozinhar. Paulina tinha encomendado às freiras bolinhos coloniais de doce de leite e bolos de milhojas bem como os guisados mais populares da cozinha crioula, que viajaram congelados nas câmaras de neve azul. A primeira remessa foi arrebatada em menos de três dias com um lucro tão espantoso, que os irmãos descuraram os seus outros negócios para se concentrarem no prodígio do gelo. Os pedaços de gelo derretiam-se lentamente durante a navegação, mas ainda sobrava muito e, à volta, o capitão pensava vendê-lo a preço de agiota no Panamá. Foi impossível manter secreto o êxito esmagador da primeira viagem e a notícia de que havia uns chilenos navegando com pedaços de um glaciar a bordo espalhou-se como pólvora. Depressa se formaram sociedades para fazer o mesmo com icebergs do Alasca, mas foi impossível arranjar tripulantes e produtos frescos capazes de competir com os do Chile. Desta forma Paulina pôde continuar o seu intenso negócio sem rivais, enquanto arranjava um segundo vapor para ampliar a empresa.
Também as caixas de livros eróticos do capitão Sommers se venderam num abrir e fechar de olhos, mas sob um manto de discrição e sem passar pelas mãos dos irmãos Rodríguez de Santa Cruz.
O capitão tinha de evitar a todo o custo que se erguessem vozes virtuosas, como acontecera noutras cidades, quando a censura os confiscava como imorais e acabavam ardendo em fogueiras públicas. Na Europa circulavam secretamente em edições de luxo entre grandes senhores e coleccionadores, mas as maiores receitas provinham de edições para consumo popular.
Imprimiam-se em Inglaterra, onde eram vendidos clandestinamente por alguns centavos, mas na Califórnia o capitão obteve cinquenta vezes o seu valor.
Tendo em conta o entusiasmo por esse tipo de literatura, lembrou-se de incluir ilustrações, porque a maior parte dos mineiros só lia os títulos dos jornais. As novas edições já estavam a ser imprimidas em Londres com desenhos vulgares, mas explícitos, que no fim de contas era a única coisa que interessava.
Nessa mesma tarde, John Sommers, instalado no salão do melhor hotel de São Francisco, jantava com os irmãos Rodríguez de Santa Cruz, que em poucos meses tinham recuperado o seu aspecto de cavalheiros. Não restava nada dos hirsutos cavernícolas que há meses atrás procuravam ouro.
A fortuna estava ali mesmo, em transacções limpas que podiam realizar nas fofas poltronas do hotel com um whisky na mão, como gente civilizada e não como campónios, diziam. Aos cinco mineiros chilenos trazidos por eles em finais de 1848, tinham-se juntado oitenta peões do campo, gente humilde e submissa, que não entendia nada de minas, mas aprendia rapidamente, acatava ordens e não se sublevava. Os irmãos mantinham-nos a trabalhar nas margens do rio Americano a mando de capatazes leais, enquanto eles se dedicavam ao transporte e ao comércio. Compraram duas embarcações para fazer a travessia de São Francisco a Sacramento e duzentas mulas para transportar mercadoria para os aluviões, que vendiam directamente sem passar pelos armazéns. O escravo fugitivo, que antes fazia de guarda-costas, revelou-se um ás nos números e agora encarregava-se da contabilidade, vestido também de grande senhor e com um copo e um charuto na mão, apesar das resmunguices dos gringos, que dificilmente toleravam a sua cor, mas que não tinham outro remédio senão negociar com ele.
- A sua senhora manda dizer que na próxima viagem do Fortuna vem com as crianças, as criadas e o cão. Diz para ir pensando onde irão viver, porque não pensa fazê-lo num hotel - comunicou o capitão a Feliciano Rodriguez de Santa-Cruz.
- Que ideia tão despropositada! A explosão do ouro acabará de repente e esta cidade voltará a ser a vilória que era há dois anos atrás. Já há sinais de que o mineral diminuiu, acabaram-se esses achados de pepitas do tamanho de pedras. E a quem importará a Califórnia quando isto acabar?
- Quando eu vim pela primeira vez isto parecia um acampamento de refugiados, mas transformou-se numa cidade como Deus manda. Franca-mente, não creio que desapareça de um sopro, é a porta do Oeste pelo Pacífico.
- É o que Paulina diz na sua carta.
- Segue o conselho da tua mulher, Feliciano, olha que ela tem olho de lince - interrompeu o irmão.
- Além disso não há maneira de a travar. Na próxima viagem ela vem comigo. Não esqueçamos que é a dona do Fortuna - sorriu o capitão.
Serviram-lhes ostras frescas do Pacífico, um dos poucos luxos gastronómicos de São Francisco, rolas recheadas com amêndoas e pêras cristalizadas do carregamento de Paulina, que o hotel comprou de imediato. O vinho tinto também provinha do Chile e o champanhe de França. Espalhara-se a notícia da chegada dos chilenos com o gelo e todos os restaurantes e hotéis da cidade se encheram com clientes ansiosos por se regalarem com as delícias frescas antes que se esgotassem. Estavam a acender os charutos para acompanhar o café e o brandy, quando John Sommers sentiu uma palmada no ombro que por pouco não lhe derruba o copo. Ao voltar-se, encontrou-se diante de Jacob Todds, que não via há mais de três anos, quando o desembarcara em Inglaterra, pobre e humilhado. Era a última pessoa que esperava ver e demorou um pouco a reconhecê-lo, porque o falso missionário de outrora parecia uma caricatura de yanquee. Tinha perdido peso e cabelo, duas longas patilhas emolduravam-lhe a cara, vestia um fato de quadrados demasiado estreito para o seu tamanho, botas de pele de cobra e um incongruente chapéu branco da Virgínia, além de lápis, blocos e folhas de jornal lhe saírem pelos quatro bolsos do seu casaco. Abraçaram-se como velhos camaradas. Jacob Todd estava há cinco meses em São Francisco e escrevia artigos de jornal sobre a febre do ouro, que eram publicados regularmente em Inglaterra e também em Boston e Nova Iorque. Tinha chegado graças à intervenção generosa de Feliciano Rodríguez de Santa Cruz, que não deitara em saco roto o serviço que devia ao inglês. Como bom chileno, nunca esquecia um favor - nem uma ofensa - e tendo sabido dos seus infortúnios em Inglaterra, mandou-lhe dinheiro, passagem e um bilhete explicando que a Califórnia era o lugar mais longínquo onde se podia ir antes de começar a voltar pelo outro lado. Em 1845 Jacob Todd tinha desembarcado do barco do capitão John Sommers rejuvenescido e cheio de energia, disposto a esquecer o vergonhoso incidente em Valparaiso e a dedicar-se de corpo e alma à implantação no seu país da comunidade utópica com que sonhara. Levava o seu grosso bloco de apontamentos, amarelado pelo uso e pelo ar do mar, repleto de anotações. Estudara e planeara a comunidade até ao mais ínfimo pormenor, tinha a certeza de que muitos jovens - os velhos não interessavam - abandonariam as suas enfadonhas existências para se juntarem à irmandade ideal de homens e mulheres livres, sob um sistema de igualdade absoluta, sem autoridades, polícias ou religião.
Os potenciais candidatos à experiência acabaram por ter uma mentalidade bastante mais limitada do que imaginara, mas alguns meses depois tinha já dois ou três dispostos a tentar. Só faltava um mecenas disposto a financiar o dispendioso projecto, era necessário um terreno amplo, porque a comunidade pretendia viver afastada das aberrações do mundo e devia prover a todas as suas necessidades. Todd iniciara conversações com um lorde um pouco louco, que possuía uma enorme propriedade na Irlanda, quando o rumor do escândalo de Valparaíso o atingiu em Londres, acossando-o como um cão tenaz sem lhe dar um momento de descanso. Também ali se lhe fecharam as portas e perdeu os amigos. Os discípulos e o nobre repudiaram-no e o sonho da utopia foi para as urtigas. Mais uma vez Jacob Todd tentou encontrar alívio no álcool e mergulhou de novo no atoleiro das más recordações. Vivia como uma ratazana numa pensão de má morte, quando lhe chegou a mensagem redentora do seu amigo. Não pensou duas vezes. Mudou de apelido e embarcou para os Estados Unidos, disposto a iniciar um novo e brilhante destino. O seu único objectivo era enterrar a vergonha e viver no anonimato até surgir a oportunidade de reavivar o seu idílico projecto.
Primordial era arranjar um emprego, a sua pensão diminuíra e os tempos gloriosos do ócio estavam a acabar. Ao chegar a Nova Iorque apresentou-se nalguns jornais oferecendo-se como correspondente na Califórnia, fazendo depois a viagem para Oeste pelo istmo do Panamá, porque não teve coragem de a fazer pelo estreito de Magalhães e voltar a pisar Valparaíso, onde a vergonha o esperava e a bonita Miss Rose voltaria a ouvir o seu nome manchado. Na Califórnia o seu amigo Feliciano Rodríguez de Santa Cruz ajudou-o a instalar-se e a conseguir emprego no jornal mais antigo de São Francisco. Jacob Todd, agora convertido em Jacob Freemont, pôde trabalhar pela primeira vez na sua vida, descobrindo pasmado que gostava de o fazer. Percorria a região escrevendo sobre tudo o que lhe chamava à atenção, incluindo os massacres dos índios, os imigrantes provenientes de todos os cantos do planeta, a especulação desenfreada dos comerciantes, a justiça rápida dos mineiros e o vício generalizado. Uma das suas reportagens por pouco não lhe custa a vida. Descreveu com eufemismos, mas com muita clareza, a forma como funcionavam algumas casas de jogo dos viciados, cartas untadas, bebidas adulteradas, drogas, prostituição e a prática de intoxicar com álcool as mulheres até as deixar inconscientes, para vender por um dólar o direito de violá-las, a todos os homens que quisessem participar da diversão. "Tudo isto apoiado pelas próprias autoridades que deveriam combater estes vícios", escreveu como conclusão. Caíram-lhe em cima os gangsters, o chefe da Polícia e os políticos, e teve de esfumar-se durante alguns meses até arrefecerem os ânimos. Apesar do percalço, os seus artigos apareciam regularmente e estava a transformar-se numa voz respeitada. Tal como disse ao seu amigo John Sommers: ao procurar o anonimato estava a encontrar a celebridade.
Ao terminar o jantar Jacob Freemont convidou os seus amigos para a função do dia: uma chinesa que se podia observar, mas não tocar. Chamava-se Ah Toy e embarcara num barco à vela com o marido, um comerciante de idade provecta que teve o bom gosto de morrer em alto mar deixando-a livre.
Ela não perdeu tempo em lamentos de viúva e para animar o resto da travessia tornou-se amante do capitão, que era um homem generoso. Ao desembarcar em São Francisco, vistosa e enriquecida, reparou nos olhares de lascívia que a seguiam e teve a brilhante ideia de cobrar por eles. Alugou dois quartos, perfurou orifícios na parede divisória e por uma onça de ouro vendia o privilégio de se deixar observar. Os amigos seguiram Jacob Freemont de bom humor e com alguns dólares de suborno passaram à frente da fila e foram dos primeiros a entrar. Levaram-nos a um quarto estreito, saturado de fumo de tabaco, onde uma dúzia de homens se comprimiam com o nariz colado à parede. Espreitavam pelos incómodos orifícios, sentindo-se como ridículos estudantes, e viam no outro quarto uma bonita jovem vestida com um quimono de seda aberto de ambos os lados até à cintura. Por baixo estava nua. Os espectadores rugiam a cada lânguido movimento que revelava parte do seu corpo delicado. John Sommers e os irmãos Rodríguez de Santa Cruz partiam-se a rir, sem poder acreditar que a necessidade de mulheres fosse tão angustiante. Despediram-se ali e o capitão e o jornalista foram beber um último copo. Depois de ouvir o inventário das viagens e aventuras de Jacob, o capitão decidiu confiar nele.
- Lembra-se de Eliza, a garota que vivia com os meus irmãos em Valparaíso?
- Perfeitamente.
- Fugiu de casa há quase um ano e tenho razões para pensar que está na Califórnia. Tentei encontrá-la, mas ninguém sabe dela ou de alguém com a sua descrição.
- As únicas mulheres que vieram para cá foram as prostitutas.
- Não sei como veio, no caso de ter vindo. O único dado é que partiu à procura do seu apaixonado, um jovem chileno chamado Joaquín Andieta...
- Joaquín Andieta! Conheço-o, era meu amigo no Chile.
- É um foragido à justiça. Acusam-no de roubo.
- Não acredito. Andieta era um jovem muito nobre. Na verdade era tal o seu orgulho e sentido da honra, que se tornava difícil aproximar-se dele. E diz-me que ele e Eliza estão apaixonados?
- Sei apenas que ele embarcou para a Califórnia em Dezembro de 1848. Dois meses mais tarde a garota desapareceu. A minha irmã acha que ela seguiu Andieta, embora não consiga imaginar como conseguiu fazê-lo sem deixar rasto. Como você anda pelos acampamentos e pelos povoados do norte, talvez consiga averiguar alguma coisa...
- Farei o que puder, capitão.
- Os meus irmãos e eu ficar-lhe-emos eternamente gratos, Jacob.
Eliza Sommers ficou na caravana de Joe Quebra-ossos, onde tocava piano e dividia as gorjetas a meias com a madame. Comprou um cancioneiro de música americana e outro de latina para animar os serões e, nos momentos ociosos, que eram muitos, ensinava o garoto índio a ler, ajudava nas múltiplas tarefas quotidianas e cozinhava. Como diziam os da companhia: nunca tinham comido tão bem. Com a mesma carne seca, feijão e toucinho de sempre, preparava saborosos pratos, criados no entusiasmo do momento, comprava condimentos mexicanos e juntava-os às receitas chilenas de Mama Fresia com resultados deliciosos, fazia tartes sem outros ingredientes para além de gordura, farinha e fruta de conserva, mas se arranjava ovos e leite, a sua inspiração elevava-se a alturas gastronómicas celestiais. Babalú, o Mau, não era partidário de os homens cozinharem, mas era o primeiro a devorar os banquetes do jovem pianista e optou por engolir os comentários sarcásticos.
Habituado a ficar de vigia durante a noite, o gigante dormia a bom dormir grande parte do dia, mas assim que o cheirinho das panelas lhe chegava ao nariz de dragão, acordava de um salto e instalava-se perto da cozinha a vigiar. Padecia de um apetite insaciável e não havia orçamento capaz de encher a sua grandiosa barriga. Antes da chegada do Chilenito, como chamavam ao falso Elias Andieta, a sua dieta básica consistia em animais que conseguia caçar, que abria a meio, temperava com um punhado de sal grosso e colocava nas brasas até os carbonizar. Desta forma podia engolir um veado em poucos dias. Em contacto com a cozinha do pianista, o seu paladar refinou-se, saía diariamente para caçar, escolhia as presas mais delicadas e entregava-as limpas e sem pele.
Pelos caminhos, Eliza encabeçava a caravana montada na sua robusta pileca que, apesar do aspecto triste, acabou por ser tão nobre como um alazão puro-sangue, com o rifle inútil atravessado na sela e o garoto do tambor na garupa. Sentia-se tão cómoda com roupa de homem que perguntava a si própria se alguma vez poderia vestir-se novamente de mulher. De uma coisa tinha a certeza: nunca mais poria um espartilho, nem no dia do seu casamento com Joaquín Andieta. Quando chegavam a um rio, as mulheres aproveitavam para juntar água em barris, lavar roupa e tomar banho, esses eram os momentos mais difíceis para ela, tinha de inventar pretextos cada vez mais rebuscados para se lavar sem testemunhas.
Joe Quebra-ossos era uma robusta holandesa da Pensilvânia, que encontrou o seu destino na imensidão do Oeste. Tinha talento de ilusionista para as cartas e para os dados, o jogo com batota apaixonava-a. Ganhara a vida nas apostas até se ter lembrado de montar o negócio das raparigas e de percorrer com ele a Veta Madre "à procura de ouro", como chamava a essa forma de praticar a mineração. Tinha a certeza de que o jovem pianista era homossexual e por isso mesmo começou a sentir por ele um carinho semelhante ao que sentia pelo indiozinho. Não permitia que as raparigas troçassem dele ou que Babalú lhe pusesse alcunhas: o pobre rapaz não tinha culpa de ter nascido sem barba e com esse aspecto efeminado, tal como não era culpa dela ter nascido homem num corpo de mulher. Eram graças de que Deus se lembrava só para chatear. Tinha comprado o garoto por trinta dólares a uns vigilantes yanques, que tinham exterminado o resto da tribo. Ele tinha nessa altura quatro ou cinco anos, era apenas um esqueleto com uma barriga cheia de vermes, mas depois de alimentá-lo à força durante alguns meses e de dominar-lhe as birras para evitar que destruísse tudo o que lhe caía nas mãos ou que desse cabeçadas contra as rodas das carroças, a criança cresceu um palmo e surgiu a sua verdadeira natureza de guerreiro: era estóico, hermético e paciente. Chamou-lhe Tom Sem Tribo, para que ele não esquecesse o dever da vingança. "O nome é inseparável do ser", diziam os índios e Joe acreditava, por isso inventara o seu próprio apelido.
As pombas maculadas da caravana eram duas irmãs do Missouri, que tinham efectuado a longa viagem por terra e que, pelo caminho, tinham perdido as suas famílias, Esther, uma jovem de dezoito anos, que fugira do pai, um fanático religioso que a chicoteava, e uma bonita mexicana, filha de pai gringo e mãe índia, que passava por branca e que aprendera quatro frases em francês para despistar os distraídos, porque segundo o mito popular, as francesas eram as mais entendidas. Naquela sociedade de aventureiros e rufiões havia também uma aristocracia racial, os brancos aceitavam as mestiças cor de canela, mas desprezavam qualquer mistura com preto. As quatro mulheres agradeciam a sorte de terem encontrado Joe Quebra-ossos. Esther era a única sem experiência anterior, mas as outras tinham trabalhado em São Francisco e conheciam a má-vida. Não lhes tinham calhado salões de alta categoria, conheciam a pancada, a doença, as drogas e a maldade dos chulos, tinham contraído inúmeras infecções, suportado remédios brutais e tantos abortos que tinham ficado estéreis, mas longe de o lamentar, consideravam isso uma bênção. Joe salvara-as daquele mundo de infâmias, levando-as para longe. Depois apoiou-as no longo martírio da abstinência para as curar da dependência do ópio e do álcool. As mulheres pagaram-lhe com uma lealdade filial, porque além disso as tratava com justiça e não as roubava. Comiam bem, as carroças itinerantes pareciam-lhes um bom aliciante para a saúde e para o espírito e a presença tremebunda de Babalú desencorajava os clientes violentos e os bêbedos odiosos. Nessas imensidades de montes e de bosques sentiam-se livres. As suas vidas nada tinham de fácil ou de romântico, mas tinham poupado algum dinheiro e podiam ir embora, se desejassem, no entanto não o faziam porque esse pequeno agrupamento humano era o que tinham de mais parecido com uma família.
As raparigas de Joe Quebra-ossos também estavam convencidas de que o jovem Elías Andieta, mirrado e de voz aflautada, era maricas. Isso punha-as à vontade para se despirem, lavarem e falarem de qualquer assunto na sua presença, como se fosse uma delas. Aceitaram-na com tanta naturalidade, que Eliza costumava esquecer-se do seu papel de homem, embora Babalú se encarregasse de o lembrar. Tinha assumido a tarefa de converter esse pusilânime num macho e observava-o de perto, disposto a corrigi-lo quando se sentava com as pernas unidas ou quando sacudia o seu cabelo curto com um gesto muito pouco viril. Ensinou-o a limpar e olear as suas armas, mas perdeu a paciência tentando afinar-lhe a pontaria: cada vez que apertava o gatilho, o seu aluno fechava os olhos. Não se impressionava com a Bíblia de Elías Andieta, antes pelo contrário, desconfiava de que ele a usava para justificar as suas parvoíces e era de opinião de que se o rapaz não pensava transformar-se num maldito pregador para que raios lia tolices, melhor seria dedicar-se aos livros porcos, para ver se lhe vinham à cabeça algumas ideias de macho. Assinava o seu nome com dificuldade e a muito custo conseguia ler, mas não o admitia nem morto. Dizia que tinha falta de vista e que não conseguia ver bem as letras, embora conseguisse acertar a cem metros de distância numa lebre entre os olhos. Costumava pedir ao Chilenito que lesse em voz alta os jornais atrasados e os livros eróticos da Quebra-ossos, mais pelo romance que o comovia do que pelas partes porcas.
Tratava-se invariavelmente de amores escaldantes entre um membro da nobreza europeia e uma plebeia, às vezes ao contrário: uma dama aristocrática perdia o juízo por um homem rústico, mas honesto e orgulhoso.
Nestes relatos, as mulheres eram sempre belas e os galãs incansáveis no seu ardor. O pano de fundo era uma repetição de bacanais, mas ao contrário de outras historietas pornográficas de dez centavos que se vendiam por ali, estas tinham argumento. Eliza lia-as em voz alta sem manifestar surpresa, como se estivesse habituada aos piores vícios, enquanto à sua volta Babalú e três das pombas ouviam pasmados. Esther não participava nessas sessões, porque lhe parecia um pecado maior descrever aqueles actos do que cometê-los. A Eliza ardiam-lhe as orelhas, mas não podia deixar de reconhecer a inesperada elegância com que essas porcarias eram escritas: algumas frases recordavam-lhe o estilo impecável de Miss Rose. Joe Quebra-ossos, a quem a paixão carnal não interessava minimamente em nenhuma das suas formas e a quem, por isso mesmo, essas leituras aborreciam, encarregava-se pessoalmente de que nem uma daquelas palavras ferisse os ouvidos inocentes de Tom Sem Tribo. Estou a criá-lo para chefe índio, não para chulo de putas, dizia, e no seu ata de o fazer macho não permitia também que o garoto a tratasse por avó.
- Eu não sou avó de ninguém, caraças! Eu sou a Quebra-ossos, entendeste, fedelho estuporado?
- Sim, avó.
Babalú, o Mau, um ex-condenado de Chicago, tinha atravessado a pé o continente muito antes da febre do ouro. Falava línguas de índios e fizera de tudo um pouco para ganhar a vida, desde ser fenómeno de um circo ambulante, onde tão depressa erguia um cavalo por cima da cabeça como arrastava uma carroça cheia de areia com os dentes, até ser estivador no cais de São Francisco. Ali o descobriu a Quebra-ossos que o empregou na caravana. Conseguia fazer o trabalho de vários homens e com ele não era necessário mais protecção.
Juntos podiam afugentar quaisquer adversários, como o demonstraram mais de uma vez.
- Tens de ser forte ou desfazem-te. Chilenito - aconselhava a Eliza. - Não julgues que eu fui sempre como me vês. Antes eu era como tu, definhado e meio pachorrento, mas comecei a levantar pesos e olha para os meus músculos. Agora ninguém se mete comigo.
- Babalú, tu medes mais de dois metros e pesas como uma vaca. Nunca serei como tu!
- O tamanho não tem nada a ver, homem. São os tomates que contam. Sempre fui grande, mas riam-se de mim na mesma.
- Quem troçava de ti?
- Toda a gente, até a minha mãe, que descanse em paz. Vou contar-te uma coisa que ninguém sabe...
- Sim?
- Lembras-te de Babalú, o Bom?... Era eu, antigamente. Mas há vinte anos que sou Babalú, o Mau, e as coisas correm-me muito melhor.
Pombas maculadas
Em Dezembro o Inverno caiu de súbito nos sopés da serra e milhares de mineiros tiveram de abandonar os seus bens e de mudar-se para os povoados à espera da Primavera. A neve cobriu, com um manto piedoso, o vasto território perfurado por aquelas formigas ambiciosas e, o ouro que ainda restava, voltou a descansar no silêncio da natureza. Joe Quebra-ossos levou a sua caravana até uma das pequenas povoações recém-nascidas ao longo da Veta Madre, onde alugou um barracão para passar o Inverno. Vendeu as mulas, comprou uma grande tina de madeira para o banho, um fogão, dois braseiros, umas peças de tecido ordinário e botas russas para a sua gente, indispensáveis devido à chuva e ao frio.
Pô-los a todos a rapar a porcaria do barracão e a fazer cortinas para separar quartos, instalou as camas com dossel, os espelhos dourados e o piano.
Depois saiu em visita de cortesia pelas tabernas, armazém e oficina de ferreiro, centros da actividade social. A povoação dispunha, a modos de jornal, de uma folha de noticias feita numa vetusta prensa que tinha atravessado o continente aos arrastões, e da qual Joe se valeu para anunciar discretamente o seu negócio. Para além das suas raparigas, oferecia garrafas do melhor rum de Cuba e da Jamaica, como lhe chamava, embora na verdade fosse uma mistela de canibais capaz de virar o rumo da alma, livros "quentes" e algumas mesas de jogo. Os clientes acorreram com prontidão.
Havia outro bordel, mas a novidade era sempre bem-vinda. A madame do outro estabelecimento declarou uma guerra encoberta de calúnias contra as suas rivais, mas absteve-se de enfrentar abertamente o duo temível formado pela Quebra-ossos e por Babalú, o Mau. No barracão retocava-se atrás das improvisadas cortinas, dançava-se ao som do piano e jogavam-se somas consideráveis sob a custódia da patroa, que não aceitava brigas nem mais batotas, para além das suas, sob o seu tecto. Eliza viu homens perderem, em poucas noites, o lucro de meses de esforço titânico e chorar no peito das raparigas que tinham ajudado a depauperá-los.
Passado pouco tempo, os mineiros afeiçoaram-se a Joe. Apesar do seu aspecto de corsário, a mulher tinha um coração de mãe e, nesse Inverno, as circunstâncias puseram-no à prova. Desencadeou-se uma epidemia de disenteria que deitou por terra metade da população e matou várias pessoas.
Mal ouvia dizer que alguém estava às portas da morte nalguma cabana longínqua, Joe pedia emprestado um par de cavalos na oficina do ferreiro e ia com Babalú socorrer o desgraçado. O ferreiro costumava acompanhá-los, um quaker descomunal que desaprovava o negócio da mulheraça, mas que estava sempre disposto a ajudar o próximo. Joe fazia comida para o doente, limpava-o, lavava-lhe a roupa e consolava-o relendo pela centésima vez as cartas da sua família distante, enquanto Babalú e o ferreiro limpavam a neve, traziam água, cortavam lenha e a empilhavam junto do fogareiro. Se o homem estivesse muito mal, Joe embrulhava-o em cobertores, colocava-o no seu cavalo atravessado como um saco e levava-o para casa, onde as mulheres cuidavam dele com vocação de enfermeiras, contentes pela oportunidade de se sentirem virtuosas. Não podiam fazer muito, para além de obrigar os pacientes a beber litros de chá açucarado para não secarem completamente, mantê-los limpos, agasalhados e em repouso, esperando que a caganeira não lhes esvaziasse a alma e a febre não lhes cozinhasse os miolos. Alguns morriam e os restantes demoravam semanas a regressar ao mundo. Joe era a única que se atrevia a desafiar o Inverno e ir até às cabanas mais isoladas, e foi assim que descobriu corpos convertidos em estátuas de cristal. Nem todos eram vitimas de doença, às vezes os tipos davam um tiro na boca porque não aguentavam mais as fortes dores nas tripas, a solidão e o delírio. Nalgumas ocasiões, Joe teve de fechar o negócio, porque tinha o barracão cheio de esteiras pelo chão e as suas pombas não eram suficientes para cuidar dos pacientes. O shenff da povoação tremia, quando ela aparecia com o seu cachimbo holandês e o seu imponente vozeirão de profeta a exigir ajuda.
Ninguém conseguia negá-la. Os próprios homens que, com os seus desmandos, davam mau nome ao povoado, colocavam-se serenamente ao seu serviço. Não dispunham de nada que se assemelhasse a um hospital, o único médico estava prostrado e ela assumia com naturalidade a tarefa de mobilizar recursos, quando se tratava de uma emergência. Os felizardos a quem salvava a vida convertiam-se em seus devotos devedores e, dessa forma, teceu nesse Inverno a rede de contactos que havia de apoiá-la durante o incêndio.
O ferreiro chamava-se James Morton e era um desses escassos exemplares de homem bom. Sentia um amor inabalável por toda a humanidade, mesmo pelos seus inimigos ideológicos, que considerava estarem errados por ignorância e não por maldade intrínseca. Incapaz de uma vileza, não conseguia imaginá-la no próximo, preferia acreditar que a perversidade alheia era um desvio de carácter, remediável com a luz da piedade e do afecto. Vinha de uma longa estirpe de quakers do Ohio, onde tinha colaborado com os seus irmãos numa rede clandestina de solidariedade com os escravos fugitivos, que escondia e levava para os estados livres e para o Canadá. As suas actividades atraíram a ira dos esclavagistas e uma noite uma turba caiu sobre a granja e ateou-lhe fogo, enquanto a família o observava imóvel porque, fiel à sua fé, não podia pegar em armas contra o seu semelhante. Os Morton tiveram de abandonar a sua terra e dispersaram-se, mas mantinham-se em estreito contacto porque pertenciam à rede humanitária dos abolicionistas. Para James, procurar ouro não lhe parecia ser um meio honrado de ganhar a vida, porque nada produzia e também não prestavam serviços. A riqueza envilece a alma, complica a vida e gera infelicidade, argumentava. Além disso, o ouro era um metal mole, inútil para fabricar ferramentas, não conseguia entender o fascínio que exercia sobre os outros. Alto, robusto, com uma barba maciça cor de avelã, olhos azul-celeste e braços grossos marcados por inúmeras queimaduras, era a reencarnação do deus Vulcano iluminado pelo resplendor da sua forja. Na povoação havia apenas três quakers, gente de trabalho e família, sempre satisfeitos com a sua sorte, os únicos que não juravam, eram abstémios e evitavam os bordéis.
Reuniam-se regularmente para praticar a sua fé sem alardes, pregando com o exemplo, enquanto esperavam com paciência a chegada de um grupo de amigos que vinha do Este para engrossar a comunidade. Morton frequentava o barracão da Quebra-ossos para ajudar as vitimas da epidemia e foi aí que conheceu Esther. Ia visitá-la e pagava-lhe o serviço completo, mas ficava apenas ao lado dela a conversar. Não conseguia compreender por que tinha ela escolhido este tipo de vida.
- Entre as chicotadas do meu pai e isto, prefiro mil vezes a vida que levo agora.
- Por que te batia?
- Acusava-me de provocar luxúria e de incitar ao pecado. Achava que Adão ainda estaria no Paraíso se Eva não o tivesse tentado. Talvez tivesse razão, já vês como ganho a vida...
- Há outros trabalhos, Esther.
- Este não é tão mau, James. Fecho os olhos e não penso em nada. São só alguns minutos e passam depressa.
Apesar das vicissitudes da sua profissão, a jovem mantinha a frescura dos seus vinte anos e havia um certo encanto na maneira discreta e silenciosa de se comportar, tão diferente da das suas companheiras. Nada tinha de provocante, era maciça, com um rosto plácido de vitela e mãos firmes de camponesa. Comparada com as outras pombas, era a menos engraçada, mas tinha a pele luminosa e um olhar suave. O ferreiro não sabia quando começara a sonhar com ela, a vê-la nas faíscas da forja, na luz do metal quente e no céu limpo, até não poder continuar a ignorar essa matéria aveludada que lhe envolvia o coração e que ameaçava sufocá-lo. Desgraça maior do que a de apaixonar-se por uma mulher de má vida não podia acontecer-lhe, seria impossível justificá-lo aos olhos de Deus e da sua comunidade. Decidido a vencer aquela tentação com suor, fechava-se na oficina a trabalhar como um louco. Havia noites em que se ouviam as pancadas ferozes do seu martelo até de madrugada.
Mal teve uma direcção fixa, Eliza escreveu a Tao Chi'en para o restaurante chinês de Sacramento, dando-lhe o seu novo nome de Elías Andieta e pedindo-lhe conselho para combater a disenteria, porque o único remédio que conhecia contra o contágio era um pedaço de carne crua amarrado no umbigo com uma faixa de lã vermelha, como Mama Fresia fazia no Chile, mas não estava a dar os resultados esperados. Sentia desesperadamente a sua falta, às vezes amanhecia abraçada a Tom Sem Tribo imaginando, na confusão do acordar, que era Tao Chi'en, mas o cheiro a fumo do garoto devolvia-a à realidade. Ninguém tinha aquela fresca fragrância a mar do seu amigo. A distância que os separava era curta em milhas, mas a inclemência do clima tornava o percurso árduo e perigoso.
Lembrou-se de acompanhar o carteiro para continuar a procurar Joaquín Andieta, como fizera noutras ocasiões, mas as semanas foram-se passando à espera de uma oportunidade apropriada. Não era apenas o Inverno que se atravessava nos seus planos. Por esses dias tinha explodido a tensão entre os mineiros yanquees e os chilenos ao sul da Veta Madre. Os gringos, fartos da presença de estrangeiros, juntaram-se para expulsá-los, mas os outros resistiram, primeiro com as suas armas e depois perante um juiz, que reconheceu os seus direitos. Longe de intimidar os agressores, a ordem do juiz serviu para exacerbá-los, vários chilenos acabaram na forca ou atirados de um despenhadeiro e os sobreviventes tiveram de fugir. Em resposta formaram-se bandos que se dedicavam a assaltos, tal como faziam muitos mexicanos. Eliza compreendeu que não podia arriscar-se, o seu disfarce de rapaz latino era suficiente para ser acusada de qualquer crime inventado.
Em finais de Janeiro de 1850 caiu uma das piores geadas que se vira por aqueles lados. Ninguém se atrevia a sair das suas casas, a povoação parecia morta e, durante mais de dez dias, não apareceu nenhum cliente no barracão. Fazia tanto frio que a água nas bacias amanhecia sólida, apesar dos fogareiros sempre acesos, e nalgumas noites tiveram de meter o cavalo de Eliza dentro de casa para o salvar da sorte de outros animais, que amanheciam presos em blocos de gelo. As mulheres dormiam duas a duas e ela fazia-o com o garoto, por quem desenvolvera um carinho ciumento e feroz, que ele retribuía com uma fidelidade obstinada. A única pessoa da companhia que podia competir com Eliza pelo afecto do garotinho era a Quebra-ossos. "Um dia vou ter um filho forte e valente como Tom Sem Tribo, mas muito mais alegre. Esta criança nunca se ri" contava a Tao Chi'en nas suas cartas. Babalú, o Mau, não sabia dormir de noite e passava as longas horas de escuridão passeando de um extremo a outro do barracão com as suas botas russas, as suas pobres peles e um cobertor sobre os ombros.
Deixou de rapar a cabeça e exibia uma curta cabeleira de lobo igual à do seu casaco. Esther tricotara-lhe um gorro de lá amarelo patinho, que o cobria até às orelhas e lhe dava o ar de um monstruoso bebé. Foi ele quem sentiu umas pancadas leves nessa madrugada e teve o bom senso de as distinguir do ruído do temporal. Entreabriu a porta com o seu pistolão na mão e deparou-se-lhe um vulto caído na neve. Alarmado, chamou Joe e entre os dois, lutando para que o vento não arrancasse a porta dos gonzos, conseguiram arrastá-lo para o interior. Era um homem meio congelado.
Não foi fácil reanimar o visitante. Enquanto Babalú o friccionava e tentava deitar-lhe brandy pela boca abaixo, Joe acordou as mulheres que espevitaram o lume dos fogareiros e puseram água a aquecer para encher a banheira. Mergulharam-no aí e ele foi reanimando pouco a pouco, perdendo a cor azulada e conseguindo articular algumas palavras. Tinha o nariz, os pés e as mãos queimados pelo gelo. Era um camponês do estado mexicano de Sonora que viera, como milhares de compatriotas seus, para os aluviões da Califórnia, disse. Chamava-se Jack, nome gringo que sem dúvida não era o seu, mas as pessoas nessa casa também não usavam os seus nomes verdadeiros. Nas horas seguintes esteve várias vezes às portas da morte, mas quando parecia não haver já nada a fazer por ele, regressava do outro mundo e engolia uns goles de bebida. Pelas oito horas, quando por fim o temporal amainou, Joe ordenou a Babalú que fosse buscar o médico. Ao ouvi-la, o mexicano, que permanecia imóvel e respirava aos gorgolejos como um peixe, abriu os olhos e lançou um não! atroador, assustando-os a todos.
Ninguém devia saber que estava ali, exigiu, com tanta ferocidade, que não se atreveram a contradizê-lo. Não foram necessárias muitas explicações: era evidente que tinha problemas com a justiça e esse povoado, com a sua forca na praça, era o último do mundo onde um fugitivo desejaria procurar asilo. Só a crueldade do temporal o deveria ter obrigado a aproximar-se dali. Eliza não disse nada, mas para ela a reacção do homem não foi uma surpresa: cheirava a maldade.
Passados três dias Jack tinha recuperado um pouco as suas forças, mas caiu-lhe a ponta do nariz e começaram a gangrenar-lhe os dedos de uma mão. Nem assim conseguiram convencê-lo da necessidade de ir ao médico: preferia apodrecer aos poucos que acabar enforcado, disse. Joe Quebra-ossos reuniu o seu pessoal na outra extremidade do barracão e deliberaram em surdina: tinham de cortar-lhe os dedos. Todos os olhos se voltaram para Babalú, o Mau.
- Eu? Nem morto!
- Babalú, filho de uma cabra, deixa-te de mariquices! - exclamou Joe furiosa.
- Fá-lo tu, Joe, eu não sirvo para isso.
- Se podes esquartejar um veado, podes bem fazer isto. O que são dois miseráveis dedos?
- Uma coisa é um animal e outra bem diferente é um cristão.
- Não posso acreditar! Esse grande filho da puta, com vossa licença, meninas, não é capaz de fazer-me um favor insignificante como este! Depois de tudo o que fiz por ti, desgraçado!
- Desculpa, Joe. Nunca fiz mal a um ser humano...
- Mas o que estás a dizer! Por acaso não és um assassino? Não estiveste na prisão?
- Foi por roubar gado - confessou o gigante prestes a chorar de humilhação.
- Eu faço-o - interrompeu Eliza, pálida, mas decidida.
Ficaram a olhá-la incrédulos. Até Tom Sem Tribo lhes parecia mais apto a efectuar a operação do que o delicado Chilenito.
- Preciso de uma faca bem afiada, de um martelo, agulha, linha e alguns trapos limpos.
Babalú sentou-se no chão com a cabeçorra entre as mãos, horrorizado, enquanto as mulheres preparavam o necessário num silêncio respeitoso. Eliza reviu o que aprendera com Tao Chi'en quando extraíam balas e cosiam feridas em Sacramento. Se nessa altura conseguia fazê-lo sem pestanejar, também podia fazê-lo agora, decidiu. O mais importante, segundo o seu amigo, era evitar hemorragias e infecções. Não o vira fazer amputações, mas quando tratavam os desgraçados que apareciam sem orelhas, comentava que noutras latitudes cortavam mãos e pés pelo mesmo delito. "O machado do verdugo é rápido, mas não deixa tecido para cobrir o coto do osso", dissera Tao Chi'en. Explicou-lhe as lições do doutor Ebanizer Hobbs, que tinha prática com feridos de guerra e lhe ensinara a fazê-lo. Menos mal que neste caso eram só dedos, concluiu Eliza.
A Quebra-ossos saturou de álcool o paciente até deixá-lo inconsciente, enquanto Eliza desinfectava a faca aquecendo-a. Fez sentar Jack numa cadeira, molhou-lhe a mão numa bacia com whisky e colocou-a depois na beira da mesa com os dedos maus separados. Murmurou uma das orações mágicas de Mama Fresia e, quando estava pronta, fez um sinal silencioso às mulheres para que agarrassem no paciente. Apoiou a faca nos dedos e deu-lhe uma pancada certeira com o martelo, enterrando a lâmina, que cortou os ossos com limpeza e ficou cravada na mesa. Jack lançou um grito do fundo do ventre, mas estava tão intoxicado que nem se apercebeu de que ela o cosia e Esther o ligava. Em poucos minutos o suplício tinha acabado. Eliza ficou a olhar para os dedos amputados tentando dominar os vómitos, enquanto as mulheres deitavam Jack numa das esteiras. Babalú, o Mau, que permanecera o mais longe possível do espectáculo, aproximou-se timidamente, com o seu gorro de bebé na mão.
- És um homem a sério, Chilenito - murmurou, admirado.
Em Março Eliza fez discretamente dezoito anos, enquanto esperava que, mais cedo ou mais tarde, o seu Joaquín lhe aparecesse à porta, tal como faria qualquer homem nas cem milhas em redor, conforme argumentava Babalú. Jack, o mexicano, recompôs-se em poucos dias e escapuliu-se de noite sem se despedir de ninguém, antes de os dedos cicatrizarem. Era um tipo sinistro e ficaram contentes quando ele se foi embora. Falava muito pouco e estava sempre sobressaltado, desafiador, pronto para atacar perante a menor sombra de uma provocação imaginária. Não deu mostras de agradecimento pelos favores recebidos, pelo contrário, quando acordou da bebedeira e soube que lhe tinham amputado os dedos de disparar, desferiu um rosário de maldições e de ameaças jurando que o filho da cadela que lhe tinha inutilizado a mão ia pagá-lo com a própria vida. Então Babalú perdeu a paciência. Agarrou-o como a um boneco, levantou-o à sua altura, cravou-lhe os olhos e disse com a voz suave que utilizava quando estava prestes a explodir:
- Fui eu: Babalú, o Mau. Há algum problema?
Assim que lhe passou a febre, Jack quis aproveitar-se das pombas para fazer o gosto ao dedo, mas elas rejeitaram-no em coro: não estavam dispostas a dar-lhe nada grátis e ele tinha os bolsos vazios, conforme tinham verificado quando o despiram para o meter na banheira na noite em que apareceu congelado. Joe Quebra-ossos deu-se ao trabalho de lhe explicar que se não lhe cortassem os dedos teria perdido o braço ou a vida, de modo que era melhor agradecer ao céu ter caído na sua casa. Eliza não permitia que Tom Sem Tribo se aproximasse daquele tipo e ela só o fazia para lhe levar a comida e lhe mudar as ligaduras, porque o cheiro da maldade incomodava-a como uma presença tangível. Babalú também não o suportava e, enquanto ele esteve lá em casa, evitou falar-lhe. Considerava aquelas mulheres como suas irmãs e ficava furioso quando Jack se insinuava com comentários obscenos. Nem num caso de extrema necessidade lhe teria ocorrido utilizar os serviços profissionais das suas companheiras, para ele equivalia a cometer incesto. Se a sua natureza o compelia, ia aos locais da concorrência e avisara o Chilenito para fazer o mesmo, no caso improvável de se curar dos seus maus costumes de menina.
Enquanto servia um prato de sopa a Jack, Eliza atreveu-se finalmente a interrogá-lo sobre Joaquín Andieta.
- Murieta? - perguntou ele, desconfiado.
- Andieta.
- Não o conheço.
- Talvez se trate do mesmo - sugeriu Eliza.
- O que queres dele?
- É meu irmão. Vim do Chile para o encontrar.
- Como é o teu irmão?
- Não muito alto, com o cabelo e os olhos negros, a pele branca, como eu, mas não nos parecemos. É magro, musculoso, valente e apaixonado. Quando fala todos se calam.
- Joaquín Murieta é assim, mas não é chileno, é mexicano.
- Tem a certeza?
- Certeza não tenho de nada, mas se vir Murieta dir-lhe-ei que o procuras.
Na noite seguinte partiu e não souberam mais dele, mas duas semanas mais tarde encontraram na porta do barracão um saco com duas libras de café. Pouco depois Eliza abriu-o para preparar o pequeno almoço e viu que não era café, mas ouro em pó. Segundo Joe Quebra-ossos podia ser de qualquer um dos mineiros doentes que elas tinham tratado durante esse período, mas Eliza teve o pressentimento de que Jack a deixara como forma de pagamento. Aquele homem não estava disposto a dever um favor a ninguém. No domingo souberam que o shenff estava a organizar um grupo de vigilantes para procurar o assassino de um mineiro: tinham-no encontrado na sua cabana, onde passava só o Inverno, com nove punhaladas no peito e os olhos rebentados. Não havia rasto do seu ouro e, pela brutalidade do crime, deitaram a culpa aos índios. Joe Quebra-ossos não quis ver-se metida em confusões, enterrou as duas libras de ouro debaixo de um carvalho e deu instruções peremptórias à sua gente para calar a boca e não mencionar, nem a brincar, o mexicano dos dedos cortados ou o saco de café. Nos meses seguintes, os vigilantes mataram meia dúzia de índios e esqueceram o assunto, porque tinham entre mãos outros problemas mais urgentes, e quando o chefe da tribo apareceu dignamente a pedir explicações, despacharam-no também. índios, chineses, pretos ou mulatos não podiam testemunhar num julgamento contra um branco. James Morton e outros quatro quakers da povoação foram os únicos que se atreveram a enfrentar a multidão disposta ao linchamento. Puseram-se, desarmados, em redor do prisioneiro, formando um círculo, recitando de cor passagens da Bíblia que proibiam matar um semelhante, mas a turba afastou-os aos empurrões.
Ninguém soube do aniversário de Eliza e portanto não o festejaram, mas de qualquer forma essa noite de 15 de Março foi memorável para ela e para os restantes. Os clientes tinham regressado ao barracão, as pombas estavam sempre ocupadas, o Chilenito desancava o piano com sincero entusiasmo e Joe fazia contas optimistas. O Inverno não fora tão mau, apesar de tudo, o pior da epidemia estava a passar e já não havia doentes nas esteiras. Nessa noite estava uma dúzia de mineiros bebendo conscienciosamente, enquanto lá fora o vento arrancava pela raiz os ramos dos pinheiros. Por volta das onze desencadeou-se o inferno. Ninguém conseguiu explicar como começou o incêndio e Joe suspeitou sempre da outra madame. As madeiras incendiaram-se como petardos e num instante começaram a arder as cortinas, os xailes de seda e os penduricalhos da cama. Todos escaparam ilesos, conseguiram mesmo levar alguns cobertores e Eliza agarrou de passagem na caixa de lata que continha as suas preciosas cartas. As chamas e o fumo envolveram rapidamente o local que, em menos de dez minutos, ardia como uma tocha, enquanto as mulheres semivestidas, ao pé dos seus embriagados clientes, observavam o espectáculo numa impotência total. Então Eliza olhou em volta contando os presentes e apercebeu-se, horrorizada, que faltava Tom Sem Tribo. O garoto tinha ficado a dormir na cama que ambos partilhavam. Sem saber como, tirou um cobertor que Esther tinha aos ombros, cobriu a cabeça e correu derrubando de um empurrão o fino tabique de madeira a arder, seguida por Babalú, que aos gritos tentava fazê-la parar sem entender por que razão se lançava ao fogo.
Encontrou o garoto de pé na fumarada, com os olhos espavoridos, mas perfeitamente sereno. Atirou-lhe o cobertor para cima e tentou pegar nele ao colo, mas era muito pesado e um acesso de tosse dobrou-a ao meio. Caiu de joelhos empurrando Tom para que este corresse para fora, mas ele não se moveu do seu lado e os dois teriam ficado reduzidos a cinzas se Babalú não tivesse aparecido nesse instante, metesse cada um deles debaixo de um braço, como se fossem embrulhos, e saísse com eles a correr a meio da ovação daqueles que esperavam lá fora.
- Rapaz desgraçado! O que fazias lá dentro! - censurava Joe ao indiozinho abraçando-o, beijando-o e dando-lhe bofetadas para que este respirasse.
Graças ao facto de o barracão ficar isolado, não ardeu meio povoado, como mais tarde comentou o shenf que tinha experiência em incêndios porque aconteciam com demasiada frequência por aqueles lados. Ao clarão acorreu uma dúzia de voluntários encabeçados pelo ferreiro para tentar combater as chamas, mas já era tarde e só conseguiram salvar o cavalo de Eliza, de quem ninguém se lembrara na barafunda dos primeiros minutos, e que ainda estava amarrado no seu telheiro, louco de terror. Joe Quebra-ossos perdeu nessa noite tudo o que possuía no mundo e pela primeira vez viram-na fraquejar. Com o miúdo nos braços presenciou a destruição, sem conseguir conter as lágrimas, e quando só restavam tições fumegantes escondeu a cara no peito enorme de Babalú, que tinha ficado com as sobrancelhas e as pestanas chamuscadas. Perante a debilidade dessa mãezona, que julgavam invulnerável, as quatro mulheres puseram-se a chorar em coro, num cacho de saiotes, cabelos despenteados e carnes trémulas.
Mas a rede de solidariedade começou a funcionar ainda antes de se apagarem as chamas e, em menos de uma hora, havia alojamento disponível para todos em várias casas da povoação e um dos mineiros, a quem Joe salvara da disenteria, iniciou uma colecta. O Chilenito, Babalú e o garoto - os três varões da companhia - passaram a noite na oficina do ferreiro. James Morton colocou dois colchões com grossos cobertores junto da forja sempre quente e serviu um magnífico pequeno almoço aos seus hóspedes, preparado com esmero pela mulher do pregador que, aos domingos, denunciava aos gritos o exercício descarado do vício, como chamava às actividades dos dois bordéis.
- Não é altura para melindres, estes pobres cristãos estão a tiritar - disse a mulher do reverendo quando apareceu na oficina com o seu guisado de febre, um jarro de chocolate e bolachas de canela.
A mesma senhora percorreu a povoação pedindo roupa para as pombas, que continuavam em combinação, e a resposta das outras damas foi generosa. Evitavam passar à frente do estabelecimento da outra madame, mas tinham-se relacionado com Joe Quebra-ossos durante a epidemia e respeitavam-na. Foi assim que as quatro galdérias andaram uns bons tempos vestidas de senhoras modestas, tapadas do pescoço até aos pés, até conseguirem repor os seus trajes vistosos. Na noite do incêndio, a mulher do pastor quis levar Tom Sem Tribo para a sua casa, mas o garoto aferrou-se ao pescoço de Babalú e não houve força capaz de o arrancar dali. O gigante tinha passado horas acordado, com o Chilenito aninhado num dos seus braços e o garoto no outro, bastante picado pelos olhares surpreendidos do ferreiro.
- Tire essa ideia da cabeça, homem. Não sou maricas - gaguejou indignado, mas sem largar nenhum dos dois adormecidos.
A colecta dos mineiros e o saco de café enterrado debaixo do carvalho serviram para instalar os lesados numa casa tão cómoda e decente, que Joe Quebra-ossos pensou renunciar à sua companhia itinerante e estabelecer-se ali. Enquanto outras povoações desapareciam quando os mineiros se transferiam para outras lavarias, este crescia, afirmava-se e pensavam mesmo mudar-lhe o nome para um mais digno. Quando acabasse o Inverno, voltariam a subir em direcção aos sopés da serra novas vagas de aventureiros e a outra madame estava a preparar-se. Joe Quebra-ossos só contava com três raparigas, porque era evidente que o ferreiro pensava arrebatar-lhe Esther, mas já veria como se iria arranjar. Tinha ganho alguma consideração com as suas obras de compaixão e não desejava perdê-la: pela primeira vez na sua agitada existência sentia-se aceite numa comunidade.
Isso era muito mais do que tivera entre holandeses na Pensilvânia e a ideia de criar raízes não era mal pensada na sua idade. Ao saber destes planos, Eliza decidiu que, se Joaquín Andieta - ou Murieta - não aparecesse na Primavera, teria de despedir-se dos seus amigos e de continuar a procurá-lo.
Desilusões
Nos finais do Outono, Tao Chi'en recebeu de Eliza a última carta, que tinha passado de mão em mão durante vários meses, seguindo o seu rasto até São Francisco. Tinha abandonado Sacramento em Abril. O Inverno naquela cidade tornou-se eterno, só as cartas de Eliza, que chegavam esporadicamente, a esperança de que o espírito de Lin o localizasse e a sua amizade com o outro zhong yi o fizeram aguentar. Conseguira livros de medicina ocidental e assumia encantado a paciente tarefa de os traduzir, linha a linha, para o seu amigo, absorvendo assim ao mesmo tempo esses conhecimentos tão diferentes dos seus. Inteiraram-se de que, no Ocidente, pouco se sabia das plantas básicas, da prevenção de doenças ou do qi, a energia do corpo não se mencionava nesses textos, mas estavam muito mais avançados noutros aspectos. Passava dias com o seu amigo a comparar e a discutir, mas o estudo não foi consolo suficiente, pesava-lhe tanto o isolamento e a solidão, que abandonou a sua casinhota de tábuas e o seu jardim de plantas medicinais e mudou-se para um hotel de chineses, onde pelo menos ouvia a sua língua e comia ao seu gosto. Apesar de os seus clientes serem bastante pobres e de, muitas vezes, os atender gratuitamente, tinha poupado dinheiro.
Se Eliza regressasse instalar-se-iam numa boa casa, pensava, mas enquanto estivesse só, o hotel bastava. O outro zhongyi planeava encomendar uma jovem mulher à China e instalar-se definitivamente nos Estados Unidos, porque, apesar da sua condição de estrangeiro, aqui tinha uma vida melhor do que no seu país. Tao Chi'en advertiu-o da vaidade dos lírios dourados, especialmente na América, onde se andava tanto e onde os fan guey troçariam de uma mulher com pés de boneca. "Peça ao agente que lhe traga uma mulher sorridente e saudável, o resto não importa", aconselhou-o, pensando na breve passagem por este mundo da sua inesquecível Lin e de como teria sido mais feliz com os pés e os pulmões fortes de Eliza. A sua mulher andava perdida, não sabia orientar-se naquela terra estranha. Invocava-a nas suas horas de meditação e nas suas poesias, mas ela não voltou a aparecer, nem sequer nos seus sonhos. A última vez que a viu foi naquele dia no porão do barco, quando ela o visitou com o seu vestido de seda verde e as peónias no cabelo para lhe pedir que salvasse Eliza, mas isso tinha sido por alturas do Peru e desde então tinha passado tanta água, terra e tempo, que Lin certamente vagueava confusa.
Imaginava o doce espírito procurando-o neste vasto continente desconhe-cido sem conseguir localizá-lo. Por sugestão do zhong yi mandou pintar um retrato dela a um artista recém-chegado de Xangai, um verdadeiro génio da tatuagem e do desenho, que seguiu as suas preciosas instruções, mas o resultado não fazia justiça à beleza transparente de Lin. Tao Chi'en construiu um pequeno altar com o quadro, diante do qual se sentava a chamá-la. Não entendia por que razão a solidão, que antes considerava uma bênção e um luxo, lhe era agora intolerável. O pior inconveniente dos seus anos de marinheiro tinha sido a falta de um espaço privado para a paz e o silêncio, mas agora que o tinha desejava companhia. No entanto, a ideia de encomendar uma noiva parecia-lhe um disparate. Já por uma vez, os espíritos dos seus antepassados lhe tinham conseguido uma mulher perfeita, mas por detrás dessa boa sorte havia uma maldição oculta. Conheceu o amor correspondido e nunca mais voltariam os tempos da inocência, quando qualquer mulher com pés pequenos e bom feitio lhe parecia suficiente.
Julgava-se condenado a viver da recordação de Lin, porque nenhuma outra conseguiria ocupar o seu lugar com dignidade. Não desejava uma criada ou uma concubina. Nem sequer a necessidade de ter filhos para honrarem o seu nome e cuidarem da sua tumba lhe servia de aliciante. Tentou explicar isso ao seu amigo, mas enleou-se na linguagem, sem palavras no seu vocabulário para expressar esse tormento. A mulher é uma criatura útil para o trabalho, para a maternidade e para o prazer, mas nenhum homem culto e inteligente pretenderia fazer dela sua companheira, dissera-lhe o seu amigo a única vez que lhe confiara os seus sentimentos. Na China bastava olhar em volta para entender este raciocínio, mas na América as relações entre casais pareciam ser diferentes. Para começar, ninguém tinha concubinas, pelo menos abertamente. As poucas famílias de fan guey que Tao Chi'en conhecera nesta terra de homens sós, eram impenetráveis para ele. Não conseguia imaginar como funcionavam na intimidade, dado que os maridos aparentemente consideravam as suas mulheres como iguais. Era um mistério que lhe interessava explorar, como tantos outros neste extraordinário país.
As primeiras cartas de Eliza chegaram ao restaurante e, como a comunidade chinesa conhecia Tao Chi'en, não demoraram a entregá-las.
Essas longas cartas, cheias de pormenores, eram a sua melhor companhia.
Recordava Eliza, surpreendido pelas saudades que tinha dela, porque nunca pensara ser possível a amizade com uma mulher e menos ainda com uma de outra cultura. Vira-a quase sempre com roupas masculinas, mas parecia-lhe totalmente feminina e estranhava que os outros aceitassem o seu aspecto sem fazer perguntas. "Os homens não olham para os homens e as mulheres julgam que sou um rapaz efeminado" escrevera-lhe ela numa carta. Para ele, pelo contrário, era a rapariga vestida de branco a quem tirou o espartilho num casebre de pescadores em Valparaíso, a doente que se entregou sem reservas aos seus cuidados no porão do barco, o corpo morno colado ao seu nas noites geladas sob um tecto de lona, a voz alegre cantarolando enquanto cozinhava e o rosto de expressão grave quando o ajudava a tratar dos feridos. Já não a via como uma criança, mas como uma mulher, apesar dos seus ossinhos de nada e da sua cara infantil. Pensava em como tinha mudado quando cortara o cabelo e arrependia-se de não ter guardado a sua trança, ideia que lhe ocorreu nessa altura, mas que afastou como uma forma vergonhosa de sentimentalismo. Ao menos agora poderia segurá-la nas suas mãos para invocar a presença dessa amiga singular. Na sua prática de meditação nunca deixava de lhe enviar energia protectora para ajudá-la a sobreviver às mil mortes e desgraças possíveis que tentava não expressar, porque sabia que quem se compraz a pensar no mau, acaba por convocá-lo.
Às vezes sonhava com ela e amanhecia a suar, então deitava a sorte com os seus pauzinhos do I Chin para ver o invisível. Nas ambíguas mensagens, Eliza aparecia sempre em marcha em direcção à montanha e isso tranquilizava-o um pouco.
Em Setembro de 1850 coube-lhe participar numa ruidosa celebração patriótica, quando a Califórnia se transformou noutro Estado da União. A nação americana abarcava agora todo o continente, do Atlântico ao Pacífico.
Por essa altura, a febre do ouro começava a transformar-se numa enorme desilusão colectiva e Tao via massas de mineiros debilitados e pobres, esperando vez para embarcar de regresso às suas terras. Os jornais calculavam em mais de noventa mil os que regressavam. Os marinheiros já não desertavam, pelo contrário, os navios não chegavam para levar todos os que desejavam partir. Um em cada cinco mineiros morrera de doença, de frio ou afogado nos rios, muitos pereciam assassinados ou davam um tiro na cabeça. Ainda chegavam estrangeiros, embarcados meses antes, mas o ouro já não estava ao alcance de qualquer audaz com uma bateia, uma pá e um par de botas, o tempo dos heróis solitários estava a acabar e, em seu lugar, instalavam-se poderosas companhias possuidoras de máquinas capazes de partir montanhas com jorros de água. Os mineiros trabalhavam a soldo e quem enriquecia eram os empresários, tão ávidos de fortuna repentina como os aventureiros de 49, mas muito mais astutos, como aquele alfaiate judeu de sobrenome Levy, que fabricava calças de tecido grosso com costura dupla e rebites metálicos, uniforme obrigatório dos trabalhadores. Enquanto muitos partiam, os chineses, pelo contrário, continuavam a chegar como formigas silenciosas. Tao Chi'en traduzia com frequência os jornais em inglês para o seu amigo, o zhong yi, que gostava especialmente dos artigos de um tal Jacob Freemont, porque coincidiam com as suas próprias opiniões: "Milhares de argonautas regressam às suas casas, derrotados, pois não conseguiram o Velo de Ouro e a sua Odisseia tornou-se uma tragédia, mas muitos outros, embora pobres, permanecem porque já não conseguem viver noutro lado.
Dois anos nesta terra selvagem e bela transformam os homens. Os perigos, a aventura, a saúde e a força vital que se gozam na Califórnia não se encontram em mais nenhum lugar. O ouro cumpriu a sua função: atraiu os homens que estão a conquistar este território para o transformar na Terra Prometida. Isso é irreversível...", escrevia Freemont.
Para Tao Chi'en, no entanto, viviam num paraíso de ambiciosos, gente materialista e impaciente cuja obsessão era enriquecer a toda a pressa. Não havia alimento para o espírito e, em troca, a violência e a ignorância prosperavam. Desses males derivavam todos os restantes, estava convencido. Tinha visto muito nos seus vinte e sete anos e não se considerava moralista, mas chocava-o a destruição dos costumes e a impunidade do crime. Um lugar assim estava destinado a sucumbir no lamaçal dos seus próprios vícios, argumentava. Tinha perdido a esperança de encontrar na América a paz tão desejada, definitivamente não era um lugar para um aspirante a sábio. Por que razão, então, o atraía desta forma? Tinha de evitar que esta terra o enfeitiçasse, como acontecia a todos quantos a pisavam, pretendia regressar a Hong-Kong ou visitar o seu amigo Ebanizer Hobbs em Inglaterra para estudarem e praticarem juntos. Nos anos decorridos desde que fora sequestrado para bordo do Liberty, tinha escrito várias cartas ao médico inglês, mas como estava a navegar, não obteve resposta durante muito tempo, até que por fim em Valparaiso, em Fevereiro de 1849, o capitão John Sommers recebeu uma carta para ele e entregara-a. Nela, o seu amigo contava-lhe que se dedicara à cirurgia em Londres, embora a sua verdadeira vocação fossem as doenças mentais, um campo novo ainda pouco explorado pela curiosidade científica.
Em Dai Fao, a "cidade grande", como os chineses chamavam a São Francisco, planeava trabalhar durante algum tempo e depois embarcar rumo à China, no caso de Ebanizer Hobbs não responder rapidamente à sua última carta. Assombrou-o constatar como São Francisco mudara em pouco mais de um ano. Em vez do ruidoso acampamento de casebres e tendas que tinha conhecido, recebeu-o uma cidade com ruas bem traçadas e edifícios de vários andares, organizada e próspera, onde por todo o lado se erigiam novas casas. Um incêndio monstruoso tinha destruído vários quarteirões três meses antes, ainda se viam restos de edifícios carbonizados, mas as brasas ainda não tinham arrefecido e já estavam todos de martelo na mão a reconstruir.
Havia hotéis de luxo com esplanadas e varandas, casinos, bares e restaurantes, carruagens elegantes e uma multidão cosmopolita, mal vestida e mal encarada, de onde sobressaiam os chapéus altos de alguns dandys. Os restantes eram tipos barbudos e enlameados, com ar de aldrabões, mas ali ninguém era o que parecia, o estivador do cais podia ser um aristocrata latino-americano e o cocheiro um advogado de Nova Iorque. Num minuto de conversa com qualquer um desses tipos medonhos podia descobrir-se um homem educado e fino, que ao menor pretexto tirava da algibeira uma carta enxovalhada da sua mulher, para a mostrar com lágrimas nos olhos. E também acontecia o contrário: o peralvilho embonecado escondia um cabrão sob o fato bem cortado. Não viu escolas no seu trajecto pelo centro, mas viu crianças que trabalhavam como adultos cavando buracos, transportando tijolos, arreando mulas e engraxando botas, mas assim que começava a soprar vento do mar corriam a empinar papagaios. Mais tarde soube que muitas eram órfãs e que vagueavam pelas ruas em bandos, roubando comida para sobreviver. Ainda escasseavam as mulheres e, quando alguma pisava airosa a rua, o tráfego parava para a deixar passar. Ao pé do monte Telegraph, onde havia um semáforo com bandeiras para indicar a procedência dos barcos que entravam na baía, estendia-se um bairro de vários quarteirões no qual não faltavam mulheres: era a zona vermelha, controlada pelos rufiões da Austrália, Tasmânia e Nova Zelândia. Tao Chi'en ouvira falar deles e sabia que não era um lugar onde um chinês se pudesse aventurar depois do pôr do Sol. Espreitando as lojas, viu que o comércio oferecia os mesmos produtos que vira em Londres. Chegava tudo por mar, até um carregamento de gatos que se venderam um por um como artigos de luxo, para combater as ratazanas. O bosque de mastros dos barcos abandonados na baía estava reduzido à décima parte, porque muitos tinham sido afundados para encher o terreno e construir por cima ou tinham sido transformados em hotéis, armazéns, prisões e mesmo num asilo para loucos, onde iam morrer os infelizes que se perdiam nos delírios irremediáveis do álcool. Fazia muita falta, porque antes amarravam os lunáticos às árvores.
Tao Chi'en dirigiu-se ao bairro chinês e verificou que os rumores eram verdadeiros: os seus compatriotas tinham construído uma cidade completa no coração de São Francisco, onde se falava mandarim e cantonês, os anúncios estavam escritos em chinês e só se viam chineses por todo o lado: a ilusão de se encontrar no Celeste Império era perfeita. Instalou-se num hotel decente e dispôs-se a praticar o seu ofício de médico o tempo necessário para juntar mais algum dinheiro, porque tinha uma longa viagem pela frente.
No entanto aconteceu algo que deitaria por terra os seus planos e o reteria nesta cidade. "O meu karma não era encontrar paz num mosteiro das montanhas, como por vezes sonhei, mas lutar numa guerra sem tréguas e sem fim" concluiu muitos anos mais tarde, quando conseguiu olhar para o seu passado e ver com clareza os caminhos percorridos e os que lhe faltavam percorrer. Meses depois recebeu a última carta de Eliza num envelope bastante manuseado.
Paulina Rodríguez de Santa Cruz desembarcou do Fortuna como uma imperatriz, rodeada pelo seu séquito e com uma bagagem de noventa e três baús. A terceira viagem do capitão John Sommers com o gelo tinha sido um verdadeiro tormento para ele, para o resto dos passageiros e para a tripulação. Paulina fez saber a toda a gente que o barco era seu e, para o provar, contradizia o capitão e dava ordens arbitrárias aos marinheiros. Nem sequer tiveram o consolo de a ver enjoada, porque o seu estômago de elefante resistiu à navegação sem outras consequências para além de um aumento de apetite. Os seus filhos costumavam perder-se nos meandros do navio, apesar de as amas não lhes tirarem os olhos de cima e, quando isso acontecia, soavam os alarmes de bordo e tinham de parar a marcha, porque a desesperada mãe guinchava que tinham caído à água. O capitão tentava explicar-lhe com a máxima delicadeza que, se fosse esse o caso, tinha de resignar-se porque o Pacífico já os tinha engolido, mas ela teimava em mandar sair os botes salva-vidas. As crianças acabavam por aparecer, mais cedo ou mais tarde, e, ao fim de algumas horas de tragédia, podiam prosseguir a viagem. O seu antipático cão fraldiqueiro, no entanto, escorregou um dia e caiu ao oceano diante de várias testemunhas, que permaneceram mudas. No cais de São Francisco esperava-a o marido e o cunhado com uma fila de carruagens e de carroças para transportar a família e os baús. A nova residência construída para ela, uma elegante casa vitoriana, tinha chegado em caixas de Inglaterra com as peças numeradas e um plano para armá-la, também importaram o papel de parede, os móveis, a harpa, o piano, os candeeiros e até figuras de porcelana e quadros bucólicos para a decorar.
Paulina não gostou. Comparada com a sua mansão de mármores no Chile, parecia uma casinha de bonecas que ameaçava desmoronar-se quando se apoiava nas paredes, mas de momento não havia alternativa. Bastou-lhe dar uma vista de olhos à efervescente cidade para se aperceber das suas possibilidades.
- É aqui que nos vamos instalar, Feliciano. Os primeiros a chegar transformam-se na aristocracia com o passar dos anos.
- Isso já tu tens no Chile, mulher.
- Eu sim, mas tu não. Acredita em mim, esta será a cidade mais importante do Pacifico.
- Formada por canalhas e por putas!
- Exactamente. São os mais desejosos de respeitabilidade. Não haverá ninguém mais respeitável do que a família Cross. É uma pena que os gringos não consigam pronunciar o teu verdadeiro apelido. Cross é nome de fabricante de queijos. Mas enfim, suponho que não se pode ter tudo...
O capitão John Sommers dirigiu-se ao melhor restaurante da cidade, disposto a comer e a beber bem, para esquecer as cinco semanas na companhia daquela mulher. Trazia vários caixotes com as novas edições ilustradas de livros eróticos. O êxito dos anteriores tinha sido formidável e esperava que a sua irmã Rose recuperasse o ânimo para a escrita. Desde o desaparecimento de Eliza tinha mergulhado na tristeza e não voltara a agarrar na pena. Também a ele lhe transtornara a disposição. Estou a ficar velho, caraças, dizia, ao surpreender-se perdido em nostalgias inúteis. Não tinha tido tempo de gozar aquela sua filha, de a levar a Inglaterra, conforme planeara, também não tivera tempo de lhe dizer que era seu pai. Estava farto de mentiras e de mistérios. Esse negócio dos livros era outro dos segredos familiares. Quinze anos antes, quando a sua irmã lhe confessara que, nas costas de Jeremy, escrevia histórias impudicas para não morrer de aborrecimento, lembrou-se de as publicar em Londres, onde o mercado do erotismo tinha prosperado, juntamente com a prostituição e os clubes de flagelantes, à medida que se impunha a rígida moral vitoriana. Numa remota província do Chile, sentada diante de uma elegante secretária de madeira avermelhada, sem outra fonte de inspiração para além das suas lembranças de um único amor, mil vezes aumentadas e aperfeiçoadas, a sua irmã produzia romance atrás de romance, assinados por "uma dama anónima".
Ninguém acreditava que essas histórias ardentes, algumas com o toque evocativo do marquês de Sade, já clássicas no seu género, fossem escritas por uma mulher. A ele cabia-lhe a tarefa de levar os manuscritos ao editor, controlar as contas, cobrar os lucros e depositá-los num banco de Londres, para a sua irmã. Era a sua maneira de lhe pagar o favor enorme que fizera, recolhendo a sua filha e calando a boca. Eliza... Não conseguia lembrar-se da mãe dela, se bem que devesse ter herdado dela os traços físicos, dele tinha sem dúvida o ímpeto pela aventura. Onde estaria? Com quem? Rose teimava que tinha partido para a Califórnia atrás de um amante, mas quanto mais tempo passava, menos acreditava. O seu amigo Jacob Tood - Freemont, agora - que fizera da procura de Eliza uma missão pessoal, garantia-lhe que nunca pisara São Francisco.
Freemont encontrou-se com o capitão para jantar e depois convidou-o para um espectáculo ligeiro numa das casas de jogo e de baile da zona vermelha. Contou-lhe que Ah Toy, a chinesa que vira através de uns orifícios na parede, tinha agora uma cadeia de bordéis e um "salão" muito elegante, onde se ofereciam as melhores raparigas orientais, algumas com apenas onze anos, treinadas para satisfazer todos os caprichos. Mas disse que não era aí que iriam, e sim ver as dançarinas de um harém da Turquia. Pouco depois fumavam e bebiam num edifício de dois andares decorado com mesas de mármore, bronzes polidos e quadros de ninfas mitológicas perseguidas por faunos. Mulheres de várias raças atendiam a clientela, serviam bebidas e dirigiam as mesas de jogo, sob o olhar atento de chulos armados e vestidos com gritante afectação. Em ambos os lados do salão principal, em recintos privados, apostava-se forte. Ali se reuniam os tigres do jogo para arriscar milhares numa noite: políticos, juizes, comerciantes, advogados e criminosos, todos nivelados pelo mesmo vício. O espectáculo oriental foi um fiasco para o capitão, que já tinha visto a verdadeira dança do ventre em Istambul e que desconfiava que aquelas pobres raparigas pertenciam certamente ao último grupo de galdérias de Chicago, recém-chegadas à cidade. A clientela, composta maioritariamente por mineiros rústicos incapazes de localizar a Turquia num mapa, enlouqueceram de entusiasmo perante aquelas odaliscas cobertas apenas por umas minúsculas saias de contas. Aborrecido, o capitão dirigiu-se a uma das mesas de jogo, onde uma mulher repartia com enorme destreza as cartas do monte. Aproximou-se outra que, agarrando-o pelo braço, lhe sussurrou um convite ao ouvido. Voltou-se para a ver. Era uma sul-americana rechonchuda e vulgar, mas com uma expressão de genuína alegria. Ia mandá-la embora, porque planeava passar o resto da noite num dos salões caros, onde estivera em cada uma das suas visitas anteriores a São Francisco, quando os seus olhos se detiveram no decote. Entre os seios tinha um broche de ouro com turquesas.
- Onde arranjaste isso? - gritou, agarrando-a pelos ombros com duas garras.
- É meu! Comprei-o - balbuciou aterrada.
- Onde? - e continuou a sacudi-la até se aproximar um dos sicanos.
- Passa-se alguma coisa, mister? - ameaçou o homem.
O capitão fez sinal que queria a mulher e levou-a praticamente no ar até um dos cubículos do segundo andar. Fechou a cortina e com uma bofetada atirou-a de costas para cima da cama.
- Vais dizer-me onde arranjaste esse broche ou faço-te voar todos os dentes, percebeste bem?
- Não o roubei, senhor, juro. Deram-mo!
- Quem to deu?
- Não vai acreditar se eu lhe disser...
- Quem?
- Uma rapariga há muito tempo, num barco... E Azucena Placeres não teve outro remédio senão contar a esse energúmeno que o broche lhe tinha sido dado por um cozinheiro chinês, em paga de cuidar de uma pobre criatura que estava a morrer devido a um aborto no porão de um navio a meio do oceano Pacífico. à medida que falava, a fúria do capitão transformava-se em horror.
- O que lhe aconteceu? - perguntou John Sommers com a cabeça entre as mãos, aniquilado.
- Não sei, senhor.
- Pelo que mais prezas, mulher, diz-me o que foi feito dela - suplicou ele, colocando-lhe na saia um molho de notas.
- Quem é o senhor?
- Sou o pai dela.
- Morreu esvaída em sangue e atirámos o corpo ao mar. Juro que é a verdade - respondeu Azucena Placeres sem vacilar, porque pensou que, se essa infeliz tinha atravessado meio mundo escondida num buraco como uma ratazana, seria uma canalhice imperdoável da sua parte lançar o pai no seu rasto.
Eliza passou o Verão na povoação, porque entre uma coisa e outra, foram passando os dias. Primeiro Babalú, o Mau, teve um ataque fulminante de disenteria, que provocou o pânico, porque a epidemia se supunha controlada. Há meses que não havia casos a lamentar, excepto a morte de uma criança de dois anos, a primeira criança que nascia e morria nesse lugar de passagem para adventícios e aventureiros. Esse garoto pôs um selo de autenticidade na povoação, já não era um acampamento alucinado com uma forca como único direito a figurar nos mapas, agora dispunha de um cemitério cristão e com a pequena tumba de alguém cuja vida decorrera ali. Enquanto o barracão esteve transformado em hospital salvaram-se milagrosamente da peste, porque Joe não acreditava em contágios, dizia que era tudo uma questão de sorte: o mundo está cheio de pestes, alguns apanham-nas e outros não. Por isso mesmo não tomava precauções, deu-se ao luxo de ignorar as sensatas advertências do médico e só de má vontade fervia às vezes a água de beber. Ao mudar-se para uma casa como deve ser todos se sentiram seguros, se não tinham adoecido antes, não iriam adoecer agora.
Poucos dias depois de Babalú se ir abaixo, foi a vez da Quebra-ossos, das raparigas do Missouri e da bela mexicana. Sucumbiram com uma caganeira repugnante, ardiam em febre e tinham arrepios incontroláveis que, no caso do Babalú, balançavam a casa. Nessa altura apresentou-se James Morton, vestido de domingo, a pedir a mão de Esther.
- Ai, filho, não podias ter escolhido um momento pior - suspirou a Quebra-ossos, mas estava demasiado doente para se opor e deu o seu consentimento entre lamentos.
Esther repartiu as suas coisas entre as companheiras, porque não quis levar nada para a sua nova vida, e casou-se nesse mesmo dia sem grandes formalidades, escoltada por Tom Sem Tribo e Eliza, os únicos saudáveis da companhia. Uma fila dupla dos seus antigos clientes formou-se em ambos os lados da rua quando o casal passou, disparando tiros para o ar e aclamando-os. Instalou-se na oficina do ferreiro, determinada a transformá-la num lar e a esquecer o passado, mas arranjava maneira de ir a casa de Joe diariamente, para levar comida quente e roupa limpa para os doentes. Sobre Eliza e Tom Sem Tribo caiu a ingrata tarefa de cuidar dos restantes moradores da casa. O médico da povoação, um jovem de Filadélfia que advertia há meses sobre a contaminação da água por resíduos dos mineiros rio acima, sem que ninguém fizesse caso dele, declarou o recinto de Joe de quarentena. As finanças foram para o galheiro e não passaram fome graças a Esther e às ofertas anónimas que apareciam misteriosamente à porta: um saco de feijão, algumas libras de açúcar, tabaco, saquinhos de ouro em pó, alguns dólares de prata. Para ajudar os seus amigos, Eliza recorreu ao que aprendera com Mama Fresia na sua infância e com Tao Chi'en em Sacramento, até que por fim foram recuperando um a um, embora andassem durante um bom tempo trôpegos e confusos. Babalú, o Mau, foi quem mais padeceu, o seu corpanzil de ciclope não estava habituado à doença, emagreceu e as carnes penduraram-se-lhe de tal maneira que até as suas tatuagens perderam a forma.
Nesses dias saiu no jornal local uma pequena notícia sobre um bandido chileno ou mexicano, não havia a certeza, chamado Joaquín Murieta, que estava a adquirir alguma fama ao longo e ao largo da Veta Madre. Por essa altura imperava a violência na região do ouro. Desiludidos ao compreender que a fortuna súbita, como um falso milagre, tinha beneficiado muito poucos, os americanos acusavam os estrangeiros de serem ambiciosos e de enriquecerem sem contribuir para a prosperidade do país. A bebida inflamava-os e a impunidade para aplicar castigos a seu bel-prazer dava-lhes uma sensação irracional de poder. Nunca se condenava um yanquee por crimes contra outras raças, pior, com frequência um réu branco podia escolher o seu próprio júri. A hostilidade racial converteu-se num ódio cego. Os mexicanos não admitiam a perda do seu território na guerra nem aceitavam ser expulsos dos seus ranchos ou das minas. Os chineses suportavam silenciosamente os abusos, não partiam e continuavam a explorar o ouro com lucros de pulga, mas com uma tenacidade tal que, grama a grama, juntavam riqueza. Milhares de chilenos e de peruanos, que tinham sido os primeiros a chegar quando explodiu a febre do ouro, decidiram regressar aos seus países, porque não valia a pena perseguir os seus sonhos naquelas condições. Nesse ano de 1850, a legislatura da Califórnia aprovou um imposto de mineração criado para proteger os brancos. Negros e índios ficaram de fora, a menos que trabalhassem como escravos, e os forasteiros tinham de pagar vinte dólares e renovar o registo dos seus bens mensalmente, o que na prática era impossível. Não podiam abandonar os aluviões para viajar durante semanas até às cidades para cumprir a lei, mas se não o faziam, o shenff ocupava a mina e entregava-a a um americano. Os encarregados de aplicar estas medidas eram designados pelo governador e tiravam o seu salário do imposto e das multas, método perfeito para estimular a corrupção. A lei só era aplicada contra estrangeiros de pele escura, apesar de os mexicanos terem direito à cidadania americana, segundo o tratado que pôs fim à guerra em 1848. Outro decreto acabou de destruí-los: a propriedade dos seus ranchos, onde tinham vivido durante gerações, tinha de ser ratificada por um tribunal de São Francisco. O procedimento durava anos, custava uma fortuna e além disso os juizes e meirinhos eram com frequência os mesmos que se tinham apoderado dos seus prédios. Vendo que a justiça não os apoiava, alguns colocaram-se à margem da lei, assumindo a fundo o papel de malfeitores. Aqueles que antes se contentavam em roubar gado, atacavam agora mineiros e viajantes solitários. Certos bandos tornaram-se célebres pela sua crueldade, não se limitando a roubar as vitimas, mas divertindo-se também a torturá-las antes de as assassinarem. Falava-se de um bandoleiro particularmente sanguinário, a quem se atribuía, entre outros delitos, a morte horrível de dois jovens americanos. Encontraram os seus corpos amarrados a uma árvore com vestígios de terem sido utilizados como alvos para o lançamento de facas, tinham-lhes cortado também a língua, rebentado os olhos e arrancado a pele antes de os abandonarem vivos para que morressem lentamente. Chamavam ao criminoso Jack Três-Dedos e dizia-se que era a mão direita de Joaquín Murieta.
No entanto, nem tudo era selvajaria, também se desenvolviam as cidades e nasciam novas povoações, instalavam-se famílias, fundavam-se jornais, companhias de teatro e orquestras, construíam-se bancos, escolas e igrejas, traçavam-se caminhos e melhoravam-se as comunicações. Havia um serviço de diligências e o correio era distribuído com regularidade. Iam chegando mulheres e florescia uma sociedade com aspirações de ordem e moral, já não era a catástrofe do começo, de homens sós e de prostitutas.
Tentava-se impor a lei e voltar à civilização esquecida no delírio do ouro fácil.
Baptizaram a povoação com um nome respeitável numa cerimónia solene com banda de música e desfile, à qual assistiu Joe Quebra-ossos, pela primeira vez vestida de mulher e apoiada por toda a sua companhia. As mulheres recém-chegadas torciam o nariz às "caras pintadas", mas como Joe e as suas meninas tinham salvo a vida de tantos durante a epidemia, faziam vista grossa às suas actividades. Contra o outro bordel, pelo contrário, declararam uma guerra inútil, porque ainda havia uma mulher por cada nove homens. No fim do ano, James Morton deu as boas-vindas a cinco famílias de quakers, que atravessaram o continente em carroças puxadas por bois e que não vinham por causa do ouro, mas atraídos pela imensidade daquela terra virgem.
Eliza já não sabia que pista seguir. Joaquín Andieta tinha-se perdido na confusão desses tempos e em seu lugar começava a perfilar-se um bandido com a mesma descrição física e um nome parecido, mas que ela achava impossível identificar com o jovem nobre que amava. O autor das cartas apaixonadas, que guardava como seu único tesouro, não podia ser o mesmo a quem se atribuíam crimes tão ferozes. O homem dos seus amores nunca se teria associado a um desalmado como Jack Três-Dedos, julgava, mas a certeza desvanecia-se à noite quando Joaquín lhe aparecia com mil máscaras diferentes, trazendo-lhe mensagens contraditórias. Acordava a tremer, acossada pelos espectros delirantes dos seus pesadelos. Já não conseguia entrar e sair à vontade dos seus sonhos, conforme lhe ensinara Mama Fresia na infância, nem decifrar visões e símbolos, que lhe ficavam a girar na cabeça com um chocalhar de pedras arrastadas pelo rio. Escrevia incansavelmente no seu diário com a esperança de que, ao fazê-lo, as imagens adquirissem algum significado. Relia as cartas de amor, palavra por palavra, procurando sinais esclarecedores, mas o resultado era apenas mais perplexidade. Essas cartas constituíam a única prova da existência do seu amante e aferrava-se a elas para não ficar totalmente transtornada. A tentação de mergulhar na apatia, como uma forma de fugir ao tormento de continuar procurando, costumava ser irresistível. Duvidava de tudo: dos abraços no quarto dos armários, dos meses enterrada no porão do barco, da criança que se lhe fora em sangue.
Foram tantos os problemas financeiros provocados pelo casamento de Esther, que privou a companhia de um quarto das suas receitas de uma só vez, e pelas semanas que os restantes passaram prostrados pela disenteria, que Joe esteve quase a perder a casinha, mas a ideia de ver as suas pombas a trabalhar para a concorrência, dava-lhe brios para continuar a lutar contra a adversidade. Tinham passado pelo inferno e ela não conseguia empurrá-las de volta a essa vida, porque contra a sua vontade, tinha-se afeiçoado a elas.
Sempre se considerara um grave erro de Deus - um homem metido à força num corpo de mulher -, por isso mesmo não entendia essa espécie de instinto maternal que lhe surgira quando menos lhe convinha. Cuidava zelosamente de Tom Sem Tribo, mas gostava de mostrar que o fazia "como um sargento".
Nada de mimos, não estava no seu feitio, e além disso o garoto tinha de ser forte como os seus antepassados, os melindres só serviam para prejudicar a virilidade, advertia a Eliza, quando a encontrava com o garoto ao colo contando-lhe histórias chilenas. Essa ternura nova pelas suas pombas era um inconveniente sério e, para cúmulo, elas apercebiam-se e tinham começado a chamá-la "mãe". A alcunha despedaçava-a, tinha-a proibido, mas não faziam caso. "Temos uma relação comercial, caraças. Não posso ser mais clara: enquanto trabalharem terão receitas, tecto, comida e protecção, mas no dia em que adoecerem, amolecerem ou lhes aparecerem rugas ou cabelos brancos, adeus! Nada mais fácil do que substituí-las, o mundo está cheio de mulheres de má vida", resmungava. E então, de repente, vinha complicar-lhe a existência, esse sentimento adocicado, que nenhuma dona de bordel no seu juízo perfeito se poderia permitir. "Estas coisas acontecem-te por seres boa pessoa" troçava Babalú, o Mau. E de facto era, porque enquanto ela despendera um tempo precioso a tratar de doentes que nem sequer conhecia de nome, a outra madame da povoação não admitiu ninguém com a peste perto do seu estabelecimento. Joe estava cada vez mais pobre, enquanto a outra tinha engordado, pintava o cabelo de louro e tinha um amante russo dez anos mais novo do que ela, com músculos de atleta e um diamante incrustado no dente, tinha ampliado o negócio e aos fins-de-semana os mineiros faziam fila diante da sua porta com o dinheiro numa mão e o chapéu na outra, pois nenhuma mulher, por muito baixo que tivesse descido, tolerava o chapéu posto. Definitivamente não havia futuro nesta profissão, argumentava Joe: a lei não as defendia, Deus esquecera-se delas e pela frente só se entrevia velhice, pobreza e solidão. Teve a ideia de se dedicar a lavar roupa e fazer tartes para vender, mantendo sempre o negócio das mesas de jogo e dos livros porcos, mas as suas raparigas não estavam dispostas a ganhar a vida em trabalhos tão rudes e mal pagos.
- Este é um ofício de merda, meninas. Casem-se, estudem para professoras, façam alguma coisa das vossas vidas e não me chateiem mais! - suspirava tristemente.
Também Babalú, o Mau, estava cansado de fazer de chulo e de guarda-costas. A vida sedentária aborrecia-o e a Quebra-ossos tinha mudado tanto, que não fazia muito sentido continuarem a trabalhar juntos. Se ela perdera o entusiasmo pela profissão, o que lhe restava a ele? Nos momentos de desespero confiava no Chilenito e os dois entretinham-se a fazer planos fantásticos para se emanciparem: iam montar um espectáculo ambulante, falavam em comprar um urso e treiná-lo no boxe para ir de povoação em povoação desafiar os bravos a lutarem a soco com o animal. Babalú andava atrás de aventura e Eliza pensava que era um bom pretexto para viajar acompanhada em busca de Joaquín Andieta. Para além de cozinhar e de tocar piano não havia muita actividade na casa da Quebra-ossos, e também a ela o ócio punha de mau humor. Desejava recuperar a liberdade imensa dos caminhos, mas tinha-se afeiçoado a esta gente e a ideia de separar-se de Tom Sem Tribo partia-lhe o coração. O garoto já lia com fluência e escrevia aplicadamente, porque Eliza o convencera de que quando crescesse devia estudar para advogado e defender os direitos dos índios, em vez de vingar os mortos aos tiros, como pretendia Joe. "Assim serás um guerreiro muito mais poderoso e os gringos terão medo de ti", dizia-lhe. Ainda não se ria, mas nalgumas ocasiões, quando se instalava ao seu lado para que ela lhe coçasse a cabeça, tinha-se desenhado a sombra de um sorriso no seu rosto de índio agastado.
Tao Chi'en apareceu em casa de Joe Quebra-ossos às três da tarde de uma quarta-feira de Dezembro. Tom Sem Tribo abriu a porta, fê-lo entrar para a sala, desocupada a essa hora, e foi chamar as pombas. Pouco depois a bela mexicana apareceu na cozinha, onde o Chilenito amassava pão, para anunciar que estava um chinês a perguntar por Elias Andieta, mas ela estava tão distraída com o trabalho e a lembrança dos sonhos da noite anterior, onde se misturavam mesas de jogo e olhos rebentados, que não lhe prestou atenção.
- Já te disse que está um chinês à tua espera - repetiu a mexicana e então o coração de Eliza deu um coice de mula no peito.
- Tao! - gritou e saiu a correr.
Mas ao entrar na sala deparou-se-lhe um homem tão diferente, que demorou alguns segundos a reconhecer o amigo. Já não tinha a sua trança, estava com o cabelo curto, preso com fixador e penteado para trás, usava uns óculos redondos de aros metálicos, fato escuro com sobrecasaca, colete de três botões e calças afuniladas. Num braço levava um sobretudo e um guarda-chuva, na outra mão um chapéu alto.
- Meu Deus, Tao! O que te aconteceu?
- Na América é preciso vestir-se como os americanos - sorriu ele.
Em São Francisco fora atacado por três rufiões e antes de conseguir tirar a sua faca do cinto, atordoaram-no com uma pancada, só pelo prazer de se divertirem à custa de um "celestial". Quando recuperou os sentidos viu-se jogado numa ruela, coberto de imundícies, com a sua trança cortada e enrolada à volta do pescoço. Tomou então a decisão de manter o cabelo curto e de se vestir como os fan gúey. O seu novo aspecto sobressaía na multidão do bairro chinês, mas descobriu que o aceitavam muito melhor lá fora e lhe abriam as portas de lugares que antes lhe estavam vedados. Era possivelmente o único chinês com semelhante aspecto na cidade. A trança era considerada sagrada e a decisão de a cortar demonstrava a intenção de não regressar à China e de se instalar de vez na América, uma traição imperdoável ao imperador, à pátria e aos antepassados. No entanto, o seu fato e o seu penteado causavam também alguma admiração, pois indicavam que tinha acesso ao mundo dos americanos. Eliza não conseguia tirar-lhe os olhos de cima: era um desconhecido com quem teria de voltar a familiarizar- se desde o principio. Tao Chi'en inclinou-se várias vezes no seu cumprimento habitual e ela não se atreveu a obedecer ao impulso de o abraçar que lhe queimava a pele. Tinha dormido lado a lado com ele muitas vezes, mas nunca se tinham tocado sem a desculpa do sono.
- Acho que me agradavas mais quando eras chinês de cima a baixo, Tao. Agora não te conheço. Deixa-me cheirar-te - pediu-lhe.
Ele não se mexeu, perturbado, enquanto ela o farejava, como um cão a sua presa, reconhecendo por fim o ténue aroma a mar, o mesmo cheiro reconfortante do passado. O corte de cabelo e a roupa austera faziam-no mais velho, já não tinha esse ar de atrevimento juvenil de antigamente. Tinha emagrecido e parecia mais alto, os pómulos estavam marcados no seu rosto liso. Eliza observou a sua boca com prazer, lembrava-se perfeitamente do seu sorriso contagiante e dos seus dentes perfeitos, mas não da forma voluptuosa dos seus lábios. Reparou numa expressão sombria do seu olhar, mas pensou que era um efeito dos óculos.
- Como é bom ver-te, Tao! - e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
- Não pude vir antes, não tinha a tua direcção.
- Também me agradas agora. Pareces um coveiro, mas um coveiro bonito.
- A isso me dedico agora, a coveiro - sorriu ele. - Quando soube que vivias aqui, pensei que se tinham cumprido os prognósticos de Azucena Placeres. Dizia que mais cedo ou mais tarde acabarias como ela.
- Expliquei-te na carta que ganho a vida a tocar piano.
- Incrível!
- Porquê? Nunca me ouviste, não toco assim tão mal. E, se consegui fazer-me passar por um chinês surdo-mudo, também posso fazer-me passar por um pianista chileno.
Tao Chi'en começou a rir surpreendido, porque era a primeira vez em meses que se sentia contente.
- Encontraste o teu apaixonado?
- Não. Já não sei onde procurar.
- Talvez não valha a pena encontrá-lo. Vem comigo para São Francisco.
- Não tenho nada para fazer em São Francisco...
- E aqui? Já começou o Inverno, daqui a poucas semanas os caminhos ficarão intransitáveis e esta povoação ficará isolada.
- É muito aborrecido ser o teu irmãozinho tonto, Tao.
- Há muita coisa para fazer em São Francisco, vais ver, e não tens de vestir-te de homem, agora vêem-se mulheres em toda a parte.
- Em que ficaram os teus planos de voltar para a China?
- Adiados. Não posso ir ainda.
"Sing song girls"
No Verão de 1851 Jacob Freemont decidiu entrevistar Joaquín Murieta. Os bandoleiros e os incêndios eram os assuntos na moda na Califórnia, mantinham as pessoas aterradas e a imprensa ocupada. O crime expandira-se e era conhecida a corrupção da polícia, composta na sua maior parte por malfeitores, mais interessados em apoiar os seus compinchas do que a população. Depois de outro incêndio violento, que destruiu uma boa parte de São Francisco, criou-se um Comité de Vigilantes formado por cidadãos furibundos e encabeçado pelo inefável Sam Brannan, o mórmon que em 1848 espalhou a notícia da descoberta de ouro. As companhias de bombeiros corriam, arrastando com cordas os carros de água, colina acima e colina abaixo, mas antes de chegar a um edifício, o vento tinha empurrado as chamas para o do lado. O fogo começou quando os galgos australianos ensoparam com querosene a loja de um comerciante, que recusou pagar-lhes protecção, pegando-lhe fogo depois. Devido à indiferença das autoridades, o Comité decidiu agir por sua conta. Os jornais clamavam: "Quantos crimes foram cometidos nesta cidade num ano? E quem foi castigado ou enforcado por eles? Ninguém! Quantos homens foram baleados e apunhalados, intimidados e espancados e quem foi condenado por isso? Não aprovamos o linchamento, mas quem poderá adivinhar o que o público indignado fará para se proteger?" Linchamentos, essa foi precisamente a solução do público. Os vigilantes lançaram-se imediatamente ao trabalho e penduraram o primeiro suspeito. Os membros do Comité aumentavam de dia para dia e agiam com um entusiasmo tal que, pela primeira vez, os foragidos evitavam agir à luz do dia. Neste clima de violência e vingança, a figura de Joaquín Murieta estava a caminho de se transformar num símbolo. Jacob Freemont encarregava-se de atiçar o fogo da sua celebridade, os seus artigos sensacionalistas tinham criado um herói para os hispanos e um demónio para os yanques. Atribuía-lhe um bando numeroso e o talento de um génio militar, dizia que fazia uma guerra de escaramuças contra a qual as autoridades eram impotentes.
Atacava com astúcia e velocidade, caindo sobre as suas vitimas como uma maldição e desaparecendo a seguir sem deixar rasto, para surgir pouco depois a cem milhas de distância noutro golpe, de uma audácia tão inesperada, que só era explicável por artes mágicas. Freemont desconfiava que eram vários indivíduos e não apenas um, mas evitava dizê-lo porque isso teria prejudicado a lenda. Por outro lado teve a inspiração de lhe chamar "Robin dos Bosques da Califórnia", com o qual atiçou de imediato uma fogueira de controvérsia racial. Para os yanques, Murieta encarnava o mais detestável dos grasientos, mas pensava-se que os mexicanos o escondiam, lhe davam armas e forneciam provisões, porque roubava aos yanques para ajudar os da sua raça. Tinham perdido na guerra os territórios do Texas, Arizona, Novo México, Nevada, Utah, meio Cobrado e a Califórnia, para eles, qualquer atentado contra os gringos era um acto de patriotismo. O governador advertiu o jornal da imprudência de transformar um criminoso num herói, mas o nome já tinha inflamado a imaginação do público. Freemont recebia dúzias de cartas, até de uma jovem de Washington disposta a navegar meio mundo para casar-se com o bandido, e as pessoas interpelavam-no na rua para lhe perguntarem pormenores do famoso Joaquín Murieta. Sem nunca o ter visto, o jornalista descrevia-o como um jovem de aspecto viril, com as feições de um nobre espanhol e a coragem de um toureiro. Tinha tropeçado sem querer com uma mina mais produtiva do que muitas ao longo da Veta Madre.
Lembrou-se de entrevistar o tal Joaquín, se o tipo realmente existisse, para escrever a sua biografia e, se fosse uma fábula, o assunto daria para um romance. O seu trabalho como autor consistiria simplesmente em escrevê-la num tom heróico, ao gosto do populacho. A Califórnia precisava dos seus próprios mitos e lendas, argumentava Freemont, era um Estado recém-nascido para os americanos, que pretendiam apagar de uma penada a história anterior de índios, mexicanos e californianos. Para essa terra de espaços infinitos e de homens solitários, terra aberta à conquista e à violação, que melhor herói do que um bandido? Colocou o indispensável numa mala, apetrechou-se com cadernos e lápis suficientes e partiu à procura da sua personagem. Os riscos nem lhe passaram pela mente, com a dupla arrogância de inglês e de jornalista, que se julgava protegido de qualquer mal.
Quanto ao resto, já se viajava com alguma comodidade, existiam estradas e o serviço regular de diligências que ligavam as povoações onde pensava efectuar a sua investigação não era como antes, como quando começara o seu trabalho de repórter e ia de mula a abrir caminho, na incerteza de colinas e bosques, tendo como únicos guias mapas demenciais com os quais se podia andar em círculos para sempre. Durante o trajecto pôde ver as mudanças na região. Poucos tinham enriquecido com o ouro, mas graças aos aventureiros chegados aos milhares, a Califórnia civilizava-se. Sem a febre do ouro, a conquista do Oeste teria demorado mais alguns séculos, escreveu o jornalista no seu caderno.
Assuntos não lhe faltavam, como a história daquele jovem mineiro, um rapaz de dezoito anos que, depois de passar penúrias durante um longo ano, conseguiu juntar dez mil dólares de que necessitava para regressar a Oklahoma e comprar uma granja para os seus pais. Descia para Sacramento pelas encostas da Serra Nevada num dia radioso, com o saco do seu tesouro às costas, quando foi surpreendido por um grupo de desalmados mexicanos ou chilenos, não tinha a certeza. Com certeza, só sabia que falavam espanhol, porque tiveram o descaramento de deixar uma inscrição nessa língua, gatafunhada com uma faca sobre um pedaço de madeira: "morram os yanques". Não se contentaram em dar-lhe uma sova e roubá-lo, amarraram-no nu a uma árvore e untaram-no com mel. Dois dias mais tarde, quando uma patrulha o encontrou, estava alucinado. Os mosquitos tinham-lhe comido a pele.
Freemont pôs à prova o seu talento para o jornalismo mórbido com o trágico fim de Josefa, uma bela mexicana empregada num salão de baile. O jornalista entrou na povoação de Downieville no Dia da Independência, e encontrou-se a meio dos festejos encabeçados por um candidato a senador e regados com um rio de álcool. Um mineiro ébrio tinha entrado à viva força no quarto de Josefa e ela rejeitara-o, cravando-lhe a sua faca de mato a meio do coração. à hora em que chegou Jacob Freemont, o corpo jazia sobre uma mesa, coberto com uma bandeira americana, e uma multidão de dois mil fanáticos exaltados pelo ódio racial exigia a forca para Josefa. Impassível, a mulher fumava o seu cigarro como se a gritaria não fosse com ela, com a sua blusa branca manchada de sangue, percorrendo os rostos dos homens com um desprezo abismal, consciente da incendiária mistura de agressão e desejo sexual que provocava neles. Um médico atreveu-se a falar a seu favor, explicando que ela agira em legítima defesa e que, se a executassem, matariam também a criança que trazia no ventre, mas a multidão fê-lo calar-se ameaçando enforcá-lo também. Três médicos aterrados foram levados à força para examinar Josefa e os três disseram não estar grávida, em vista do que o tribunal improvisado a condenou em poucos minutos. "Matar esses grasientos a tiro não está certo, é preciso dar-lhes um julgamento justo e enforcá-los com toda a autoridade da lei", argumentou um dos membros do júri. Freemont nunca tinha assistido a um linchamento de perto e pôde descrever em frases exaltadas como, às quatro horas da tarde, quiseram arrastar Josefa em direcção à ponte, onde tinham preparado o ritual de execução, mas ela sacudiu-se altiva e avançou sozinha para o patíbulo. A bela subiu sem ajuda, amarrou as saias à volta dos tornozelos, colocou a corda ao pescoço, endireitou as tranças negras e despediu-se com um corajoso "adeus senhores", que tinha deixado o jornalista perplexo e os restantes envergonhados. "Josefa não morreu por ser culpada, mas por ser mexicana. É a primeira vez que lincham uma mulher na Califórnia. Que desperdício, quando há tão poucas!", escreveu Freemont no seu artigo.
Seguindo as pegadas de Joaquín Murieta descobriu povoações erigidas, com escola, biblioteca, igreja e cemitério, outras sem outros sinais de cultura para além de um bordel e de uma cadeia. Saloons havia em todos eles, eram os centros da vida social. Ali se instalava Jacob Freemont indagando, e assim foi construindo com algumas verdades e uma quantidade de mentiras, a trajectória, ou a lenda, de Joaquín Murieta. Os taberneiros pintavam-no como um espanhol maldito, vestido de couro e de veludo preto, com grandes esporas de prata e um punhal no cinto, montado no mais brioso alazão que tinham visto. Diziam que entrava impunemente com um chocalhar de esporas e com o seu séquito de bandoleiros, colocava os seus dólares de prata sobre o balcão e ordenava uma rodada a todos os clientes. Ninguém se atrevia a recusar o copo, até os homens mais destemidos bebiam calados sob o olhar relampejante do vilão. Para os meirinhos, pelo contrário, a personagem nada tinha de magnífico, tratava-se apenas de um vulgar assassino capaz das piores atrocidades, que tinha conseguido escapar da justiça porque os grasientos o protegiam. Os chilenos julgavam-no um deles, nascido num lugar chamado Quillota, diziam que era leal com os seus amigos e que nunca se esquecia de pagar os favores recebidos, sendo por isso de boa política ajudá-lo, mas os mexicanos juravam que era oriundo do estado de Sonora e que era um jovem educado, de família nobre e antiga, transformado em malfeitor por vingança. Os jogadores profissionais consideravam-no um perito em monte, mas evitavam-no porque tinha uma sorte louca com as cartas e um punhal alegre que aparecia na sua mão à menor provocação. As prostitutas brancas morriam de curiosidade, pois corria o rumor que aquele moço, bonito e generoso, possuía um incansável vergalho de potro, mas as hispanas não esperavam por ele: Joaquín Murieta costumava dar-lhes gorjetas indevidas, uma vez que nunca utilizava os serviços delas e permanecia fiel à sua noiva, garantiam. Descreviam-no de estatura mediana, cabelo preto e olhos brilhantes como tições, adorado pelo seu bando, irredutível na adversidade, feroz com os seus inimigos e gentil com as mulheres. Outros diziam que tinha o aspecto grosseiro de um criminoso nato e que uma cicatriz pavorosa lhe atravessava a cara, de bonito, fidalgo ou elegante, nada tinha. Jacob Freemont foi seleccionando as opiniões que melhor se ajustavam à sua imagem do bandido e dessa forma o foi revelando nos seus escritos, sempre com a ambiguidade suficiente para poder retratar-se no caso de alguma vez dar de caras com o seu protagonista. Andou de cima para baixo durante os quatro meses do Verão sem o encontrar em parte alguma, mas com as diversas versões construiu uma fantástica e heróica biografia. Como não quis reconhecer-se derrotado, nos seus artigos inventava breves reuniões a desoras, em grutas das montanhas e em clareiras do bosque. No fim de contas, quem iria contradizê-lo? Homens mascarados levavam-no a cavalo com os olhos vendados, não conseguia identificá-los mas falavam espanhol, dizia. A mesma fervorosa eloquência que, anos antes, utilizara no Chile para descrever os índios patagónios da Terra do Fogo, onde nunca tinha posto os pés, servia-lhe agora para tirar da manga um bandoleiro imaginário.
Foi-se apaixonando pela personagem e acabou convencido de que o conhecia, de que os encontros clandestinos nas grutas eram reais e de que o fugitivo em pessoa o tinha encarregado da missão de escrever as suas proezas, porque se considerava o vingador dos espanhóis oprimidos e porque alguém devia assumir a tarefa de lhe dar, e à sua causa, o lugar adequado na história nascente da Califórnia. De jornalismo pouco tinha, mas de literatura tinha o suficiente para o romance que Jacob Freemont planeava escrever nesse Inverno.
Ao chegar a São Francisco um ano antes, Tao Chi'en dedicou-se a estabelecer os contactos necessários para exercer, por alguns meses, o seu ofício de zhongyi. Tinha algum dinheiro, mas pensava triplicá-lo rapidamente.
Em Sacramento a comunidade chinesa contava com uns setecentos homens e nove ou dez prostitutas, mas em São Francisco havia milhares de potenciais clientes. Além disso, eram tantos os barcos que atravessavam constantemente o oceano, que alguns cavalheiros mandavam lavar as suas camisas no Hawai ou na China porque na cidade não havia água corrente.
Isso permitia-lhe encomendar as suas ervas e remédios em Cantão sem qualquer dificuldade. Nessa cidade não estaria tão isolado como em Sacramento, havia vários médicos chineses a exercer, com quem podia trocar pacientes e conhecimentos. Não planeava abrir o seu próprio consultório, porque se tratava de poupar, mas podia associar-se a outro zhongyi já estabelecido. Uma vez instalado num hotel, foi percorrer o bairro, que crescera em todas as direcções como um polvo. Era agora uma cidadela com edifícios sólidos, hotéis, restaurantes, lavandarias, fumarias de ópio, bordéis, mercados e fábricas. Onde antes só havia produtos de qualidade inferior, viam-se lojas de antiguidades orientais, porcelanas, esmaltes, jóias, sedas e marfins. Aí iam os ricos comerciantes, não só chineses, também americanos, que compravam para vender noutras cidades.
Exibia-se a mercadoria numa colorida barafunda, mas as melhores peças, aquelas dignas dos entendidos e coleccionadores, não estavam expostas e eram mostradas nas traseiras da loja apenas aos clientes sérios. Em quartos ocultos, alguns locais albergavam casas de jogo onde se encontravam jogadores audazes. Nessas mesas exclusivas, longe da curiosidade do público e da vista das autoridades, apostavam-se somas extravagantes, faziam-se negócios escuros e exercia-se o poder. O governo dos americanos não controlava nada no mundo chinês, os chineses viviam no seu próprio mundo, com a sua língua, os seus costumes e as suas leis antiquíssimas. Os "celestiais" não eram bem-vindos em lugar nenhum, entre os estrangeiros que invadiam a Califórnia eram considerados os mais abjectos pelos gringos, que não lhes perdoavam por prosperarem. Exploravam-nos como podiam, agrediam-nos na rua, roubavam-nos, queimavam-lhes as lojas e as casas, assassinavam-nos impunemente, mas nada amedrontava os chineses.
Operavam cinco tongs que dividiam entre si a população, qualquer chinês ao chegar integrava-se numa dessas irmandades, única forma de protecção, de conseguir trabalho e de garantir que, à sua morte, o corpo seria repatriado para a China. Tao Chi'en, que tinha evitado associar-se a um tong, teve agora de o fazer e escolheu o mais numeroso, onde se filiavam a maior parte dos cantoneses. Rapidamente o puseram em contacto com outros zhong yi e lhe explicaram as regras do jogo. Primeiro que tudo, silêncio e lealdade: o que acontecia no bairro ficava confinado às suas ruas. Nada de recorrer à polícia, nem sequer em caso de vida ou de morte, os conflitos resolviam-se dentro da comunidade, para isso existiam os tongs. O inimigo comum eram sempre os fan guey. Tao Chi'en viu-se de novo prisioneiro dos costumes, das hierarquias e das restrições dos seus tempos de Cantão. Em poucos dias não havia ninguém que não soubesse o seu nome e começaram a chegar mais clientes do que aqueles que podia atender. Não precisava de procurar um sócio, decidiu então. Podia abrir o seu próprio consultório e fazer dinheiro em menos tempo do que imaginara. Alugou dois quartos por cima de um restaurante, um para viver e outro para trabalhar, pendurou um letreiro na janela e contratou um jovem ajudante para apregoar os seus serviços e receber os clientes. Pela primeira vez utilizou o sistema do doutor Ebanizer Robes para seguir a evolução dos doentes. Até essa altura confiara na sua memória e intuição, mas dado o número crescente de clientes, iniciou um arquivo para anotar o tratamento de cada um.
Numa tarde de princípio de Outono o seu ajudante apareceu com uma direcção anotada num papel e a exigência de se apresentar lá o mais depressa possível. Acabou de atender os pacientes do dia e partiu. O edifício de madeira, de dois andares, decorado com dragões e lanternas de papel, ficava em pleno centro do bairro. Sem precisar de olhar duas vezes soube que se tratava de um bordel. Em ambos os lados da porta havia janelinhas com barrotes, por onde espreitavam rostos infantis chamando em cantonês.
"Entre aqui e faça o que quiser com uma menina chinesa muito bonita". E repetiam o mesmo num inglês incompreensível, para proveito de visitantes brancos e de marinheiros de todas as raças: "dois por olhar, quatro por tocar, seis por fazer>), ao mesmo tempo que mostravam uns peitinhos de meter dó e tentavam os transeuntes com gestos obscenos que, vindos daquelas crianças, eram uma trágica pantomima. Tao Chi'en vira-as muitas vezes, passava diariamente por essa rua e os miados das sing song giris perseguiam-no, recordando-lhe a sua irmã. Que seria dela? Devia ter vinte e três anos, no caso improvável de ainda estar viva, pensava. As prostitutas mais pobres entre as pobres começavam muito cedo e raramente chegavam aos dezoito anos, aos vinte, se tinham tido o azar de sobreviver, já eram anciãs. A lembrança dessa irmã perdida impedia-o de recorrer aos bordéis chineses, se o desejo não o deixava em paz, procurava mulheres de outras raças. Abriu-lhe a porta uma velha sinistra com o cabelo enegrecido e as sobrancelhas pintadas com dois traços de carvão, que o cumprimentou em cantonês. Uma vez esclarecido que pertenciam ao mesmo tong, levou-o até ao interior. Ao longo de um corredor malcheiroso, viu os cubículos das raparigas, onde algumas estavam amarradas à cama com correntes nos tornozelos. Na penumbra do corredor cruzou-se com dois homens, que saíam apertando as calças. A mulher levou-o por um labirinto de passagens e escadas, atravessaram todo o quarteirão e desceram por degraus carcomidos até uma escuridão. Pediu-lhe que esperasse e, durante um tempo que lhe pareceu interminável, aguardou na negrura daquele buraco, ouvindo em surdina o ruído da rua mais próxima. Sentiu um guincho débil e alguma coisa lhe roçou o tornozelo, deu um pontapé e julgou ter acertado num animal, talvez numa ratazana. A velha regressou com uma vela e conduziu-o por outros corredores tortuosos até uma porta fechada a cadeado. Tirou a chave do bolso e forçou a fechadura até conseguir abri-la. Levantou a vela e iluminou o quarto sem janelas, onde havia, como único mobiliário, uma cama de tábuas e algumas polegadas de chão. Um ar fétido bateu-lhes na cara e tiveram de cobrir o nariz e a boca para entrar. Sobre a cama estava um pequeno corpo encolhido, uma malga vazia e um candeeiro a óleo, apagado.
- Examine-a - ordenou-lhe a mulher.
Tao Chi'en voltou o corpo e comprovou que estava rígido. Era uma menina de uns treze anos, com duas rodelas de rouge nas faces, os braços e as pernas marcados por cicatrizes. Como único vestuário usava uma camisa de tecido fino. Era evidente que estava pele e osso, mas não morrera de fome ou de doença.
- Veneno - determinou sem vacilar.
- Não me diga! - riu-se a mulher, como se tivesse ouvido a coisa mais divertida.
Tao Chi'en teve de assinar um papel declarando que a morte se devia a causas naturais. A velha espreitou para o corredor, deu algumas pancadas num pequeno gongo e apareceu imediatamente um homem que meteu o cadáver num saco, o pôs ao ombro e o levou sem dizer uma palavra, enquanto a proxeneta colocava vinte dólares na mão do zhongyi. Depois conduziu-o através de outros labirintos e depositou-o finalmente diante de uma porta. Tao Chi'en deu consigo noutra rua e levou algum tempo a orientar-se para regressar à sua casa.
No dia seguinte voltou à mesma direcção. Lá estavam outra vez as meninas com as suas caras pintalgadas e os seus olhos dementes, chamando em dois idiomas. Dez anos antes, em Cantão, começara a sua prática de medicina com prostitutas, utilizara-as como carne de aluguer e de experimentação para as agulhas de ouro do seti mestre de acupunctura, mas nunca tinha parado para pensar nas suas almas. Considerava-as uma das desgraças inevitáveis do universo, mais um daqueles erros da criação, seres ignominiosos que sofriam para pagar os pecados de vidas anteriores. Sentia pena delas mas não lhe passara pela cabeça que tal destino pudesse modificar se Aguardavam o infortúnio nos seus cubículos, sem alternativa tal como as galinhas o faziam nas gaiolas do mercado, era o seu destino Assim era a desordem do mundo. Tinha passado por essa rua milhares de vezes sem reparar nas janelinhas, nos rostos por trás das grades ou nas mãos ossudas. Tinha uma vaga noção da sua condição de escravas, mas na China as mulheres eram-no todas mais ou menos, as mais felizardas, dos seus pais, maridos ou amantes, outras de patrões sob as ordens dos quais serviam de sol a sol e muitas eram como aquelas meninas. Nessa manhã, no entanto, não as viu com a mesma indiferença, porque nele alguma coisa tinha mudado.
Na noite anterior nem tentou dormir. Ao sair do bordel dirigiu-se para um banho público, onde se lavou demoradamente para se libertar da energia obscura dos seus doentes e da enorme mágoa que o oprimia. Ao chegar a casa mandou embora o ajudante e preparou chá de jasmim, para se purificar.
Não comia há muitas horas, mas esse não era o momento de o fazer.
Despiu-se, acendeu incenso e uma vela, ajoelhou-se com a testa no chão disse uma oração pela alma da rapariga morta. Depois sentou-se a meditar durante horas numa total imobilidade, até conseguir separar-se do bulício da rua e dos cheiros do restaurante e conseguir mergulhar no vazio e no silêncio do seu próprio espírito. Não soube quanto tempo permaneceu abstraído, chamando e chamando por Lin, até que, por fim, o delicado fantasma o ouviu na misteriosa imensidão que habitava e lentamente foi encontrando o caminho, aproximando-se com a leveza de um suspiro, primeiro quase imperceptivelmente e, pouco a pouco, mais substancialmente, até ele sentir com nitidez a sua presença. Não sentiu Lin entre as paredes do quarto, mas dentro do seu próprio peito, instalada no próprio centro do seu coração em calma. Tao Chi'en não abriu os olhos nem se moveu. Durante horas permaneceu na mesma postura, separado do seu corpo, flutuando num espaço luminoso em perfeita comunicação com ela. Ao amanhecer, tendo ambos a certeza de que não voltariam a perder-se de vista, Lin despediu-se com suavidade. Chegou então o mestre de acupunctura, sorridente e irónico, como nos seus melhores tempos, antes de os desvarios da senilidade o afligirem, e ficou com ele, acompanhando-o e respondendo às suas perguntas, até nascer o Sol, o bairro acordar e, na porta, se ouvirem as pancadinhas discretas do ajudante. Tao Chi'en levantou-se, fresco e renovado, como depois de um sono aprazível, vestiu-se e foi abrir.
- Feche o consultório. Hoje não atenderei pacientes, tenho de fazer outras coisas - anunciou ao ajudante.
Nesse dia as averiguações de Tao Chi'en mudaram o rumo do seu destino. As meninas por detrás das grades vinham da China, recolhidas na rua ou vendidas pelos seus próprios pais, com a promessa de que iriam casar-se à Montanha Dourada. Os agentes seleccionavam-nas entre as mais fortes e baratas, não entre as mais belas, excepto quando se tratava de encomendas especiais de clientes ricos, que as adquiriam como concubinas.
Ah Toy, a astuta mulher que inventara o espectáculo dos orifícios na parede para ser espreitada, tinha-se convertido na maior importadora de carne jovem da cidade. Para a sua cadeia de estabelecimentos comprava as raparigas na puberdade, porque eram mais fáceis de domar e, de qualquer forma, duravam pouco. Estava a tornar-se famosa e muito rica, os seus cofres rebentavam pelas costuras e comprara um palacete na China para onde se retirar na velhice. Gabava-se de ser a madame oriental mais bem relacionada, não só entre os chineses, mas também entre os americanos influentes. Treinava as suas raparigas para subtrair informações e, desta forma, tomava conhecimento dos segredos pessoais, das manobras políticas e das debilidades dos homens no poder. Se os subornos falhavam, recorria à chantagem. Ninguém se atrevia a desafiá-la, porque todos, a começar pelo governador, tinham telhados de vidro. Os carregamentos de escravas entravam no cais de São Francisco sem impedimentos legais e em plena luz do dia. No entanto, ela não era a única traficante, o vício era dos negócios mais rentáveis e seguros da Califórnia, tanto como as minas de ouro. Os gastos reduziam-se ao mínimo, as meninas eram baratas e viajavam no porão dos barcos em grandes caixotes acolchoados. Sobreviviam assim durante semanas, sem saber para onde iam nem porquê, só viam a luz do Sol quando lhes calhava receber lições do seu ofício. Durante a travessia os marinheiros encarregavam-se de as treinar e, ao desembarcarem em São Francisco, já tinham perdido toda a sua inocência. Algumas morriam de disenteria, cólera ou desidratação, outras conseguiam saltar para a água nos momentos em que as levavam à coberta para as lavar com água do mar. As restantes ficavam presas, não falavam inglês, não conheciam essa nova terra, não tinham a quem recorrer. Os agentes de imigração recebiam subornos, faziam vista grossa ao aspecto das raparigas e autenticavam sem ler os falsos papéis de adopção ou de casamento. Eram recebidas no cais por uma antiga prostituta, a quem o ofício deixara uma pedra negra em lugar do coração. Levava-as batendo-lhes com uma varinha, como gado, pelo centro da cidade, diante dos olhos de quem quisesse ver. Assim que atravessavam o umbral do bairro chinês, desapareciam para sempre no labirinto subterrâneo de quartos ocultos, corredores falsos, escadas sinuosas, portas dissimuladas e paredes duplas, onde os polícias nunca entravam, porque tudo o que ali se passava era "coisa de amarelos", uma raça de pervertidos com a qual não havia necessidade de meter-se, argumentavam.
Num enorme recinto sob a terra, chamado ironicamente "Sala da Rainha", as raparigas enfrentavam a sua sorte. Deixavam-nas descansar uma noite, lavavam-nas, davam-lhes de comer e às vezes obrigavam-nas a engolir uma taça de uma bebida alcoólica para as atordoarem um pouco. Á hora do leilão levavam-nas nuas para um quarto, atestado de compradores de todas as cataduras imagináveis, que as manuseavam, inspeccionavam os dentes, metiam os dedos onde lhes apetecesse e, finalmente, faziam as suas ofertas.
Algumas eram leiloadas para os bordéis de maior categoria ou para os haréns dos ricos, as mais fortes costumavam ir parar às mãos de fabricantes, mineiros ou camponeses chineses, para quem trabalhariam pelo resto das suas breves existências, a maior parte ficava nos cubículos do bairro chinês.
As velhas ensinavam-lhes o ofício: tinham de aprender a distinguir o ouro do bronze, para que não as vigarizassem no pagamento, a atrair os clientes e a agradar-lhes sem se queixarem, por humilhantes ou dolorosas que fossem as suas exigências. Para dar à transacção um ar de legalidade, assinavam um contrato que não podiam ler, vendendo-se por cinco anos, mas que estava bem calculado para que nunca pudessem libertar-se. Por cada dia de doença acrescentavam duas semanas ao seu tempo de serviço e se tentassem fugir transformavam-se em escravas para sempre. Viviam amontoadas em quartos sem ventilação, divididos por uma cortina grossa, trabalhando como forçados até morrer. Para lá se dirigiu Tao Chi'en naquela manhã, acompanhado pelos espíritos de Lin e do seu mestre de acupunctura. Uma adolescente vestida apenas com uma blusa levou-o pela mão para trás da cortina, onde havia uma enxerga imunda, esticou a mão e disse-lhe que pagasse primeiro.
Recebeu os seis dólares, deitou-se de costas e abriu as pernas com os olhos fixos no tecto. Tinha as pupilas mortas e respirava com dificuldade, ele percebeu que estava drogada. Sentou-se ao seu lado, baixou-lhe a camisa e tentou acariciar-lhe a cabeça, mas ela lançou um guincho e encolheu-se mostrando-lhe os dentes, disposta a mordê-lo. Tao Chi'en afastou-se, falou-lhe demoradamente em cantonês, sem tocar nela, até a litania da sua voz a ir acalmando, enquanto observava as contusões recentes. Por fim ela começou a responder às suas perguntas com mais gestos do que palavras, como se tivesse perdido o uso da linguagem, e assim se inteirou de alguns pormenores do seu cativeiro. Não conseguiu dizer-lhe há quanto tempo estava ali, porque medi-lo era um exercício inútil, mas não devia ser há muito, porque ainda recordava a sua família na China com deplorável exactidão.
Quando Tao Chi'en calculou que os minutos do seu turno atrás da cortina tinham terminado, retirou-se. à porta aguardava a mesma velha que o recebera na noite anterior, mas não deu mostras de o ter reconhecido. Dali foi averiguar nas tabernas, nas salas de jogo, nos fumatórios de ópio e por último foi visitar outros médicos do bairro, até pouco a pouco conseguir encaixar as peças daquele puzzle. Quando as pequenas sing song girls estavam demasiado doentes para continuar a servir, conduziam-nas ao "hospital", como chamavam aos quartos secretos onde estivera na noite anterior, e deixavam-nas ali com uma chávena de água, um pouco de arroz e um candeeiro com óleo suficiente para algumas horas. A porta voltava a abrir-se alguns dias mais tarde, quando entravam para confirmar a sua morte. Se as encontravam vivas, encarregavam-se de as despachar: nenhuma voltava a ver a luz do Sol. Chamaram Tao Chi'en porque o zhong yi habitual estava ausente. A ideia de ajudar as raparigas não foi sua, diria nove meses mais tarde a Eliza, mas de Lin e do seu mestre de acupunctura.
- A Califórnia é um estado livre, Tao, não há escravos. Recorre às autoridades americanas.
- A liberdade não chega para todos. Os americanos são cegos e surdos, Eliza. Essas meninas são invisíveis, como os loucos, os mendigos e os cães.
- E aos chineses também não lhes importa?
- A alguns, como eu, sim, mas ninguém está disposto a arriscar a vida desafiando as organizações criminosas. A maioria considera que, se durante séculos na China, se praticou o mesmo, não há razões para criticar o que se passa aqui.
- Que gente tão cruel!
- Não é crueldade. Simplesmente a vida humana não é valiosa no meu país. Há muita gente e nascem sempre mais crianças do que as que podem ser alimentadas.
- Mas para ti essas meninas não são desprezíveis, Tao...
- Não. Lin e tu ensinaram-me muito sobre as mulheres.
- O que vais fazer?
- Devia ter-te ouvido quando me dizias que procurasse ouro, lembras-te? Se fosse rico comprá-las-ia.
- Mas não és. Além disso nem todo o ouro da Califórnia chegaria para comprar todas elas. É preciso impedir esse tráfico.
- Isso é impossível, mas se me ajudares posso salvar algumas...
Contou-lhe que nos últimos meses tinha conseguido resgatar onze meninas, mas só duas tinham sobrevivido. A sua fórmula era arriscada e pouco eficaz, mas não se lembrava de outra. Oferecia-se para as atender gratuitamente quando estavam doentes ou grávidas e, em troco, entregavam-lhe as agonizantes. Subornava as matronas para que o chamassem quando chegava o momento de mandar uma sing song girl para o "hospital", aparecia então com o seu ajudante, colocavam a moribunda numa maca e levavam-na.
"Para experiências", explicava Tao Chi'en, embora raras vezes lhe fizessem perguntas. A rapariga já nada valia e a extravagante perversão desse doutor poupava-lhes o problema de se desfazerem dela. A transacção beneficiava ambas as partes. Antes de levar a doente, Tao Chi'en entregava um certificado de óbito e exigia que lhe devolvessem o contrato assinado pela rapariga, para evitar que exigissem a sua devolução. Em nove casos as jovens estavam para lá de qualquer forma de alívio e o seu papel fora simplesmente apoiá-las nas suas últimas horas, mas duas tinham sobrevivido.
- O que fizeste com elas? - perguntou Eliza.
- Tenho-as no meu quarto. Estão ainda fracas e uma delas parece meia louca, mas recompor-se-ão. O meu ajudante ficou a tratar delas enquanto eu vim procurar-te.
- Estou a ver.
- Não posso tê-las encerradas por mais tempo.
- Talvez possamos mandá-las de volta para as suas famílias na China...
- Não! Regressariam à escravidão. Neste país podem salvar-se, mas não sei como.
- Se as autoridades não ajudarem, pessoas boas fá-lo-ão. Vamos recorrer às igrejas e aos missionários.
- Não creio que os cristãos se importem com essas meninas chinesas.
- Que pouca confiança tens no coração humano, Tao!
Eliza deixou o seu amigo a beber chá com a Quebra-ossos, embrulhou um dos seus pães acabados de fazer e foi visitar o ferreiro. Encontrou James Morton em tronco nu, com um avental de couro e um trapo amarrado à cabeça, suando diante da forja. Lá dentro fazia um calor insuportável, cheirava a fumo e a metal quente. Era um barracão de madeira com chão de terra batida e uma porta dupla que, de Inverno e de Verão, permanecia aberta durante as horas de trabalho. à frente erguia-se um grande balcão para atender os clientes e mais atrás a forja. Das paredes e vigas do tecto pendiam instrumentos do ofício, ferramentas e ferraduras fabricadas por Morton. Na parte posterior, uma escada de mão dava acesso ao desvão que servia de quarto de dormir, protegido da vista dos clientes por uma cortina de lona encerada. Em baixo o mobiliário consistia numa bacia de banho e numa mesa com duas cadeiras, a única decoração era uma bandeira americana na parede e três flores silvestres, num vaso sobre a mesa. Esther engomava uma montanha de roupa, bamboleando uma enorme barriga e banhada em transpiração, mas levantava as pesadas placas a carvão cantarolando. O amor e a gravidez tinham-na embelezado e um ar de paz iluminava-a como um halo. Lavava roupa alheia, trabalho tão árduo como o do seu marido com a bigorna e o martelo. Três vezes por semana carregava um carrinho de mão com roupa suja, ia ao rio e passava uma boa parte do dia de joelhos ensaboando e esfregando. Se estava sol, secava a roupa sobre as pedras, mas muitas vezes tinha de regressar com tudo molhado, depois vinha a tarefa de colocar a goma e de engomar. James Morton não tinha conseguido que desistisse da sua brutal obrigação, ela não queria que o seu bebé nascesse ali e poupava todos os centavos para conseguir mudar a sua família para uma casa na povoação.
- Chilenito! - exclamou e foi receber Eliza com um abraço apertado. - Há muito tempo que não me vens visitar.
- Que bonita estás, Esther! Na verdade venho falar com James - disse, entregando-lhe o pão.
O homem largou as suas ferramentas, limpou o suor com um pano e levou Eliza para o pátio, onde Esther se lhes juntou com três copos de limonada. A tarde estava fresca e o céu enevoado, mas o Inverno ainda não se manifestara. O ar cheirava a palha recém-cortada e a terra húmida.
Joaquín
No Inverno de 1852 os habitantes do norte da Califórnia comeram pêssegos, damascos, uvas, maçarocas, melancias e melões, enquanto em Nova Iorque, Washington, Boston e noutras importantes cidades americanas as pessoas se resignavam à escassez da temporada. Os barcos de Paulina transportavam do Chile as delícias do Verão no hemisfério sul, que chegavam intactas nos seus leitos de gelo azul. Esse negócio estava a ser muito melhor do que o ouro do seu marido e do seu cunhado, apesar de já ninguém pagar três dólares por um pêssego nem dez por uma dúzia de ovos. Os peões chilenos, instalados nos aluviões pelos irmãos Rodríguez de Santa Cruz, tinham sido dizimados pelos gringos. Tiraram-lhes a produção de meses, enforcaram os capatazes, flagelaram e cortaram as orelhas a vários e expulsaram o resto das lavarias. O episódio saíra nos jornais, mas os pormenores arrepiantes contou-nos um garoto de oito anos que teve de presenciar o suplício e a morte do pai. Os barcos de Paulina traziam também companhias de teatro de Londres, ópera de Milão e zarzuelas de Madrid, que actuavam por pouco tempo em Valparaíso e depois continuavam viagem para o norte. As entradas vendiam-se com meses de antecedência e, nos dias de espectáculo, a melhor sociedade de São Francisco, embonecada com os seus trajes de gala, encontrava-se nos teatros, onde tinha de sentar-se, ombro a ombro, com rústicos mineiros em roupa de trabalho. Os barcos não regressavam vazios: levavam farinha americana para o Chile e viajantes curados da fantasia do ouro, que regressavam tão pobres como tinham partido.
Em São Francisco via-se de tudo menos velhos, a população era jovem, forte, ruidosa e saudável. O ouro tinha atraído uma legião de aventureiros de vinte anos, mas a febre tinha passado e, tal como previra Paulina, a cidade não tinha retornado à sua condição de vilória, pelo contrário, crescia com aspirações de requinte e cultura. Paulina estava nesse ambiente como peixe na água, gostava do desembaraço, da liberdade e da ostentação dessa sociedade nascente, exactamente oposta à hipocrisia do Chile.
Pensava encantada na raiva que o seu pai teria se tivesse que sentar-se à mesa com um forasteiro corrupto, convertido em juiz e com uma francesa de aspecto duvidoso, engalanada como uma imperatriz. Criara-se entre os grossos muros de adobe e janelas gradeadas da casa paterna, olhando para o passado, pendente da opinião alheia e dos castigos divinos, na Califórnia nem o passado nem os escrúpulos contavam, a excentricidade era bem-vinda e a culpa não existia, se a falta fosse ocultada. Escrevia cartas às suas irmãs, sem muita esperança que passassem pela censura do pai, para lhes falar sobre aquele país extraordinário, onde era possível inventar uma nova vida e tornar-se milionário ou mendigo num abrir ou fechar de olhos. Era a terra das oportunidades, aberta e generosa. Pela porta de Golden Gate entravam multidões de pessoas que chegavam fugindo da miséria ou da violência, dispostas a apagar o passado e a trabalhar. Não era fácil, mas os seus descendentes seriam americanos. A maravilha desse país era que todos julgavam que os seus filhos teriam uma vida melhor. "A agricultura é o verdadeiro ouro da Califórnia, a vista perde-se nas imensas pastagens cultivadas, tudo cresce com ímpeto neste solo abençoado. São Francisco transformou-se numa cidade estupenda, mas não perdeu o carácter de posto fronteiriço, que a mim me encanta. Continua a ser um berço de livres pensadores, visionários, heróis e rufiões. Chega gente das mais remotas paragens, pelas ruas ouvem-se todas as línguas, cheira-se comida de cinco continentes, vêem-se todas as raças" escrevia. Já não era um acampamento de homens sós, tinham chegado mulheres e com elas mudou a sociedade.
Eram tão indomáveis como os aventureiros que acorreram à procura do ouro, para atravessar o continente em carroças puxadas por bois exigia-se um espírito forte e essas pioneiras tinham-no. Nada de damas melindrosas como a sua mãe e as suas irmãs, ali imperavam as amazonas como ela. Dia a dia demonstravam a sua têmpera, competindo, incansáveis e tenazes, com os mais bravos, ninguém as qualificava de sexo fraco, os homens respeitavam-nas como iguais. Trabalhavam em profissões que lhes estavam vedadas noutros sítios: procuravam ouro, empregavam-se como vaqueiras, conduziam mulas, perseguiam bandidos pela recompensa, dirigiam casas de jogo, restaurantes, lavandarias e hotéis.
"Aqui as mulheres podem ser donas das suas terras, comprar e vender propriedades, divorciar-se se lhes der na real gana. Feliciano tem de andar com muito cuidado, porque à primeira velhacaria que me faça, deixo-o só e pobre", troçava Paulina nas cartas. E acrescentava que a Califórnia tinha o melhor do pior: ratazanas, pulgas, armas e vícios.
"Uma pessoa vem para o Oeste para fugir do passado e começar de novo, mas as nossas obsessões perseguem-nos, como o vento", escrevia Jacob Freemont no jornal. Ele era um bom exemplo, porque de pouco lhe servira mudar de nome, converter-se em repórter e vestir-se como um yanquee, continuava a ser o mesmo. O embuste das missões em Valparaiso tinha ficado para trás, mas estava agora a forjar outro e sentia, como antes, que a sua criação se apoderava dele e que se ia afundando irremediavelmente nas suas próprias fraquezas. Os seus artigos sobre Joaquín Murieta tinham-se transformado na obsessão da imprensa. Todos os dias surgiam testemunhos alheios confirmando as suas palavras, dúzias de indivíduos garantiam tê-lo visto e descreviam-no de acordo com a personagem da sua invenção. Freemont já não tinha a certeza de nada. Desejava nunca ter escrito essas histórias e, nalgumas ocasiões, tentava-o a ideia de se retratar publicamente, de confessar as suas falsidades e de desaparecer, antes que todo este assunto saísse dos eixos e lhe caísse em cima como um vendaval, tal como lhe acontecera no Chile, mas não tinha coragem para o fazer. O prestígio subira-lhe à cabeça e andava enjoado de celebridade.
A história que Jacob Freemont fora construindo tinha as características de um dramalhão. Contava que Joaquín Murieta tinha sido um jovem recto e nobre, que trabalhara honestamente nos aluviões de Stanislau na companhia da sua noiva. Inteirando-se da sua prosperidade, alguns americanos atacaram-no, roubaram-lhe o ouro, espancaram-no e depois violaram-lhe a noiva à sua frente. Não restou ao infeliz casal outro caminho senão a fuga e partiram rumo ao norte, para longe das lavarias de ouro. Instalaram-se como agricultores a cultivar um idílico pedaço de terra rodeado de bosques e atravessado por um límpido riacho, escrevia Freemont, mas também ali não lhes durou a paz, porque chegaram de novo os yanques para lhes arrebatar o que era seu e tiveram de procurar outro modo de subsistência. Pouco depois, Joaquín Murieta apareceu em Calaveras convertido em jogador de monte, enquanto a sua noiva preparava a festa do casamento em casa dos pais em Sonora. No entanto, estava escrito que o jovem não descansaria em lado nenhum. Acusaram-no de roubar um cavalo e, sem outros trâmites, um grupo de gringos amarrou-o a uma árvore e chicoteou-o barbaramente a meio da praça. A afronta pública fora maior do que aquilo que um jovem orgulhoso conseguia suportar e deu-lhe um baque no coração. Pouco depois encontraram um yanquee cortado aos bocados, como um frango para guisar e, quando juntaram os restos, reconheceram um dos homens que tinham desonrado Murieta com o chicote. Nas semanas seguintes foram caindo, um a um, os restantes participantes, cada um deles torturado e morto de uma forma imaginativa. Tal como dizia Jacob Freemont nos seus artigos: nunca se vira tanta crueldade naquela terra de gente cruel. Nos anos seguintes o nome do bandido aparecia por toda a parte. O seu bando roubava gado e cavalos, assaltava diligências, atacava os mineiros nos aluviões e os viajantes nos caminhos, desafiava os meirinhos, matava qualquer americano que apanhasse descuidado e troçava impunemente da justiça. A Murieta eram atribuídos todos os desmandos e crimes impunes da Califórnia. O terreno era propício para se esconderem, abundavam a pesca e a caça entre bosques e mais bosques, colinas e ribanceiras, pastos altos onde um cavaleiro podia cavalgar durante horas sem deixar rasto, grutas profundas para se acolher, passagens secretas nas montanhas para despistar os perseguidores. Os grupos de homens que saíam à procura dos malfeitores regressavam com as mãos vazias ou pereciam na tentativa. Tudo isso contava Jacob Freemont, enredado na sua retórica, e a ninguém ocorreu exigir-lhe nomes, datas ou lugares.
Eliza Sommers estava há dois anos em São Francisco, trabalhando em conjunto com Tao Chi'en. Durante esse tempo partiu duas vezes, no Verão, à procura de Joaquín Andieta com o mesmo método de antes: juntando-se a outros viajantes. A primeira vez que foi ia com a ideia de viajar até o encontrar ou até começar o Inverno, mas passados quatro meses regressou extenuada e doente. No Verão de 1852 partiu de novo, mas depois de repetir o percurso anterior e de visitar Joe Quebra-ossos, instalada definitivamente no seu papel de avó de Tom Sem Tribo, e James e Esther, que esperavam o seu segundo filho, regressou passadas cinco semanas porque não conseguiu suportar a angústia de afastar-se de Tao Chi'en. Sentiam-se tão à vontade na sua rotina, tão irmanados no trabalho e tão próximos em espírito como um velho casal. Ela coleccionava tudo o que se publicava sobre Joaquín Murieta e memorizava-o, tal como fazia na sua infância com os poemas de Miss Rose, mas preferia ignorar as referências à noiva do bandido. "Inventaram essa rapariga para vender jornal, já sabes como o público adora romance", explicava a Tao Chi'en. Num mapa quebradiço traçava o percurso de Murieta com determinação de navegante, mas os dados disponíveis eram vagos e contraditórios, as rotas cruzavam-se como a teia de uma aranha enlouquecida, sem conduzir a parte alguma. Embora de inicio tenha rejeitado a possibilidade de o seu Joaquín ser o mesmo dos arrepiantes assaltos, rapidamente se convenceu de que a personagem encaixava perfeitamente no jovem das suas recordações. Também ele se revoltava contra o abuso e tinha a obsessão de ajudar os desprotegidos. Talvez não fosse Joaquín Murieta quem torturava as suas vítimas, mas os seus sequazes, como aquele Jack Três-Dedos, de quem se dia esperar qualquer atrocidade.
Continuava com roupa de homem, porque lhe servia para a invisibilidade, tão necessária na missão descomedida das sing song em que Tao Chi'en estava empenhado. Há três anos e meio que não usava um vestido e não sabia nada de Miss Rose, de Mama Fresia ou do seu tio John, parecia terem decorrido mil anos perseguindo uma quimera cada vez mais improvável. O tempo dos abraços furtivos com o seu amante tinha ficado para trás, não tinha a certeza dos seus sentimentos, não sabia se continuava a esperá-lo por amor ou por soberba. às vezes decorriam semanas sem se lembrar dele, distraída com o trabalho, mas de repente a memória lançava-lhe uma sapatada que a deixava a tremer. Então olhava à sua volta desconcertada, sem se situar nesse mundo onde fora parar. Que fazia de calças e rodeada de chineses? Necessitava de fazer um esforço para sacudir a confusão e para recordar que estava ali devido à intransigência do amor. A sua missão não consistia, de forma alguma, em secundar Tao Chi'en, pensava, mas em procurar Joaquín, para isso tinha vindo de tão longe e fá-lo-ia, embora fosse só para lhe dizer cara a cara que era um maldito fugitivo e que lhe tinha arruinado a juventude. Por isso partira as três vezes anteriores.
No entanto faltava-lhe vontade para tentar novamente.
Pespegava-se decidida diante de Tao Chi'en para anunciar-lhe a sua determinação de continuar a sua romagem, mas engasgava-se nas palavras como se tivesse areia na boca. Já não conseguia abandonar esse estranho companheiro que lhe coubera em sorte.
- O que farás se o encontrares? - perguntara-lhe Tao Chi'en uma vez.
- Quando o vir saberei se ainda o amo.
- E se nunca o encontrares?
- Viverei na dúvida, suponho.
Tinha notado alguns cabelos brancos prematuros nas fontes do seu amigo. As vezes a tentação de afundar os dedos naqueles fortes cabelos escuros ou o nariz no seu pescoço para cheirar de perto o seu ténue aroma oceânico, tornava-se insuportável, mas já não tinham a desculpa de dormir pelo chão enrolados num cobertor e as oportunidades de se tocarem eram nulas. Tao trabalhava e estudava demasiado, ela conseguia imaginar como deveria estar cansado, embora parecesse sempre impecável e mantivesse a calma, mesmo nos momentos mais críticos. Só vacilava quando voltava de um leilão, trazendo pelo braço uma rapariga aterrorizada. Examinava-a para ver em que condições se encontrava e entregava-a, com as instruções necessárias, fechando-se depois durante horas. "Está com Lin", concluía Eliza, e uma dor inexplicável cravava-se-lhe num lugar recôndito da alma.
Realmente estava. No silêncio da meditação Tao Chi'en tentava recuperar a estabilidade perdida e livrar-se da tentação do ódio e da ira. Pouco a pouco ia-se despojando de lembranças, desejos e pensamentos, até sentir que o seu corpo se dissolvia no nada. Deixava de existir por algum tempo, até reaparecer transformado em águia, voando muito alto sem qualquer esforço, suportado pelo ar frio e límpido que o elevava por cima das mais altas montanhas. Daí podia ver em baixo as pradarias, os bosques intermináveis e os rios de prata pura. Atingia então a harmonia perfeita em consonância com o céu e com a terra como um fino instrumento. Flutuava entre nuvens leitosas com as suas soberbas asas abertas e de imediato sentia-a com ele. Lin materializava-se ao seu lado, outra águia magnífica suspensa no céu infinito.
- Onde está a tua alegria, Tao? - perguntava-lhe.
- O mundo está cheio de sofrimento, Lin.
- O sofrimento tem um propósito espiritual.
- Isto é só dor inútil.
- Lembra-te de que o sábio é sempre alegre, porque aceita a realidade.
- E a maldade, é necessário aceitá-la também?
- O único antídoto é o amor. E a propósito: quando te casas de novo?
- Estou casado contigo.
- Eu sou um fantasma, não poderei visitar-te durante toda a tua vida, Tao. É um esforço imenso vir cada vez que me chamas, já não pertenço ao teu mundo. Casa-te ou transforma-te num velho antes do tempo. Além disso, se não praticares as duzentas e vinte e duas posições do amor, esquecer-te-ás - troçava, com o seu inesquecível riso cristalino.
Os leilões eram muito piores do que as suas visitas ao "hospital".
Existiam tão poucas esperanças de ajudar as raparigas agonizantes que, quando isso acontecia, era uma oferta milagrosa. Por outro lado sabia que, por cada rapariga que comprava num leilão, restavam dúzias entregues à infâmia. Torturava-se imaginando quantas poderia resgatar se fosse rico, até Eliza lhe recordar aquelas que salvava. Estavam unidos por uma teia delicada de afinidades e segredos partilhados, mas também separados por obsessões mútuas. O fantasma de Joaquín Murieta ia-se afastando, mas o de Lin, pelo contrário, era perceptível como a brisa ou o som das ondas na praia. Bastava Tao Chi'en invocá-la que ela acudia, sempre risonha, como fora em vida. No entanto, longe de ser uma rival de Eliza, convertera-se em sua aliada, embora a rapariga ainda não o soubesse. Foi Lin a primeira a compreender que essa amizade se assemelhava demasiado ao amor e, quando o marido lhe refutou argumentando de que não havia lugar na China, no Chile ou em parte alguma para um casal assim, ela voltou a rir-se.
- Não digas tontices, o mundo é grande e a vida é longa. É tudo uma questão de atrever-se.
- Não podes imaginar o que é o racismo, Lin, viveste sempre entre os teus. Aqui ninguém se importa com o que faço ou o que sei, para os americanos sou apenas um pagão chinês asqueroso e Eliza é uma grasienta.
Em Chinatown sou um renegado sem trança e vestido de yanquee. Não pertenço a lado nenhum.
- O racismo não é uma novidade, na China tu e eu pensávamos que os fan guey eram todos selvagens.
- Aqui só respeitam o dinheiro e pelos vistos eu nunca terei suficiente.
- Estás enganado. Também respeitam aqueles que se fazem respeitar. Olha-os nos olhos.
- Se sigo esse conselho dar-me-ão um tiro numa esquina qualquer.
- Vale a pena experimentar. Queixas-te demasiado, Tao, não te reconheço. Onde está o homem valente que amo?
Tao Chi'en tinha de admitir que se sentia preso a Eliza por fios frágeis e infinitos, fáceis de cortar um a um, mas como estavam entrelaçados, formavam cordas indestrutíveis. Conheciam-se há poucos anos, mas já podiam olhar para o passado e ver o longo caminho cheio de obstáculos que tinham percorrido juntos. As similitudes foram apagando as diferenças de raça. "Tens cara de chinesa bonita", dissera-lhe ele num descuido. "Tens cara de chileno jeitoso", respondera ela imediatamente. Formavam um estranho casal no bairro: um chinês alto e elegante, com um insignificante rapaz espanhol. Fora de Chinatown, no entanto, passavam quase despercebidos, na multidão diversificada de São Francisco.
- Não podes esperar esse homem para sempre, Eliza. É uma forma de loucura, tal como a febre do ouro. Deverias dar um prazo a ti própria - disse- lhe Tao um dia.
- E o que faço com a minha vida quando o prazo acabar?
- Podes regressar ao teu país.
- No Chile uma mulher como eu é pior do que uma das tuas sing song. Tu regressarias à China?
- Era o meu único propósito, mas a América começa a agradar-me. Lá volto a ser o Quarto Filho, aqui estou melhor.
- Eu também. Se não encontrar Joaquín fico e abro um restaurante. Tenho o que é preciso: boa memória para as receitas, carinho pelos ingredientes, sentido do gosto e do tacto, instinto para os temperos...
- E modéstia - riu-se Tao Chi'en.
- Por que razão iria ser modesta com o meu talento? Além disso tenho olfacto de cão. Para alguma coisa tem de servir-me este bom nariz: basta-me cheirar um prato para saber o que contém e fazê-lo melhor.
- Não funciona com a comida chinesa...
- Vocês comem coisas estranhas, Tao! O meu seria um restaurante francês, o melhor da cidade.
- Proponho-te um pacto, Eliza. Se dentro de um ano não encontrares esse Joaquín, casa-te comigo - disse Tao Chi'en e riram-se ambos.
A partir dessa conversa alguma coisa mudou entre os dois.
Sentiam-se pouco à vontade quando estavam a sós e, embora não o desejassem, começaram a evitar-se. A ânsia de segui-la quando ela ia para o quarto torturava Tao Chi'en com frequência, mas detinha-o uma mistura de timidez e de respeito. Pensava que, enquanto ela estivesse presa à lembrança do antigo amante, não deveria aproximar-se, mas também não conseguia continuar a fazer equilibrismo na corda bamba por tempo indefinido. Imaginava-a na cama, contando as horas no silêncio expectante da noite, também insone de amor, não por ele, mas pelo outro. Conhecia tão bem o seu corpo, que conseguia desenhá-lo em pormenor até ao sinal mais secreto, embora não a tenha visto nua desde a época em que a tratou no barco. Imaginava que, se adoecesse, teria um pretexto para tocá-la, mas imediatamente se envergonhava de semelhantes pensamentos. O riso espontâneo e a discreta ternura que antes brotavam a toda a hora entre eles, foram substituídos por uma tensão constrangedora. Se por acaso se roçavam, afastavam-se perturbados, estavam conscientes da presença ou da ausência do outro, o ar parecia carregado de presságios e de antecipação. Em vez de se sentar a ler ou a escrever em suave cumplicidade, despediam-se assim que terminava o trabalho no consultório. Tao Chi'en ia visitar doentes acamados, reunia-se com outros zhongyi para discutir diagnósticos e tratamentos ou fechava-se a estudar textos de medicina ocidental. Cultivava a ambição de obter uma licença para exercer medicina legalmente na Califórnia, projecto que só partilhava com Eliza e com os espíritos de Lin e do seu mestre de acupunctura. Na China um zhong yi começava como aprendiz e depois continuava sozinho, por isso a medicina permanecia imutável há séculos, usando sempre os mesmos métodos e remédios. A diferença entre um bom praticante e um praticante medíocre é que o primeiro possuía intuição para diagnosticar e o dom de aliviar com as suas mãos. Os médicos ocidentais, no entanto, faziam estudos bastante exigentes, permaneciam em contacto entre eles e estavam a par dos novos conhecimentos, dispunham de laboratórios e de morgues para experiências e submetiam-se ao desafio da concorrência. A ciência fascinava-o, mas o seu entusiasmo não tinha eco na sua comunidade, apegada à tradição. Vivia pendente das mais recentes descobertas e comprava todos os livros e revistas sobre esses temas que lhe caiam nas mãos. Era tanta a sua curiosidade pelo moderno, que teve de escrever na parede o preceito do seu venerável mestre: "De pouco serve o conhecimento sem sabedoria e não há sabedoria sem espiritualidade. Nem tudo é ciência, repetia para si próprio, para não esquecer. De qualquer forma, necessitava da cidadania americana, bastante difícil de obter para alguém da sua raça, mas só assim poderia ficar nesse país sem ser sempre um marginal, e precisava de um diploma, dessa forma poderia fazer muito bem, pensava. Os fan guey não sabiam nada de acupunctura ou das ervas usadas na Ásia durante séculos, consideravam-no uma espécie de curandeiro bruxo e era tal o seu desprezo pelas outras raças, que os donos de escravos das plantações do sul chamavam o veterinário quando um negro adoecia. A opinião deles sobre os chineses não era diferente, mas existiam alguns médicos visionários que tinham viajado ou lido sobre outras culturas e que se interessavam pelas técnicas e pelos milhares de drogas da farmacopeia oriental. Continuava em contacto com Ebanizer Hobbs em Inglaterra e nas cartas costumavam ambos lamentar a distância que os separava. "Venha a Londres, doutor Chi'en, e faça uma demonstração de acupunctura no Royal Medical Society, ficariam boquiabertos, garanto-lhe", escrevia-lhe Hobbs. Tal como ele dizia, se combinassem os conhecimentos de ambos, conseguiriam ressuscitar os mortos.
Um estranho casal
As geadas desse Inverno mataram de pneumonia várias sing song giris no bairro chinês, sem que Tao Chi'en conseguisse salvá-las. Chamaram-no algumas vezes quando ainda estavam vivas e conseguiu levá-las consigo, mas faleceram-lhe nos braços delirando de febre poucas horas mais tarde.
Por essa altura os discretos tentáculos da sua compaixão estendiam-se ao longo e ao largo da América do Norte, de São Francisco a Nova Iorque, do rio Grande ao Canadá, mas este esforço descomunal era apenas um grão de sal naquele oceano de desdita. Prosperava na sua prática de medicina e, o que conseguia poupar ou o que arranjava devido à caridade de alguns clientes ricos, destinava à compra das raparigas mais jovens nos leilões. Nesse submundo já o conheciam: tinha fama de degenerado. Não tinham visto sair com vida nenhuma das rapariguinhas que adquirira "para as suas experiências", como dizia, mas ninguém se importava com o que se passava atrás da sua porta. Como zhongyi era o melhor, desde que não fizesse escândalo e se limitasse a essas meninas, que de qualquer forma eram pouco mais do que animais, deixavam-no em paz. As perguntas curiosas, o seu leal ajudante, o único que podia dar alguma informação, limitava-se a explicar que os extraordinários conhecimentos do seu patrão, tão úteis aos seus pacientes, provinham das suas misteriosas experiências. Por essa altura, Tao Chi'en transferira-se para uma boa casa entre dois edifícios no limite de Chinatown, a poucos quarteirões da praça da União, onde tinha a sua clínica, vendia os seus remédios e escondia as garotas até estas poderem viajar. Eliza aprendera os rudimentos necessários de chinês para poder comunicar a um nível primário, o resto improvisava com pantomima, desenhos e umas quantas palavras de inglês. O esforço valia a pena, isso era muito melhor do que fazer-se passar pelo irmão surdo-mudo do doutor. Não conseguia escrever ou ler em chinês, mas reconhecia os remédios pelo cheiro e, para maior segurança, marcava os frascos com um código da sua invenção. Havia sempre um bom número de pacientes à espera de vez para as agulhas de ouro, as ervas milagrosas e o consolo da voz de Tao Chi'en.
Alguns deles perguntavam a si próprios como era possível que este homem tão sábio e afável pudesse ser o mesmo que coleccionava cadáveres e concubinas infantis, mas como não se sabia com certeza em que consistiam os seus vícios, a comunidade respeitava-o. Não tinha amigos, é verdade, mas também não tinha inimigos, o seu bom nome ultrapassava os limites de Chinatown e alguns médicos americanos costumavam consultá-lo quando os seus conhecimentos eram inúteis, sempre com grande sigilo, pois teria sido uma humilhação pública admitir que um "celestial" tivesse alguma coisa a ensinar-lhes. Dessa forma, coube-lhe atender certas personagens importantes da cidade e conhecer a célebre Ah Toy.
A mulher mandou-o chamar, ao tomar conhecimento que aliviara a mulher de um juiz. Sofria de um chocalhar de castanholas nos pulmões, que às vezes ameaçava asfixiá-la. O primeiro impulso de Tao foi recusar-se, mas depois venceu-o a curiosidade de vê-la de perto e de comprovar por si próprio a lenda que a rodeava. Aos seus olhos era uma víbora, sua inimiga pessoal.
Sabendo o que Ah Toy significava para ele, Eliza colocou na malinha arsénico suficiente para despachar uma parelha de bois.
- Para o caso de ser preciso... - explicou.
- Para o caso de ser preciso, o quê?
- Imagina que está muito doente. Não desejarás que sofra, não é verdade? às vezes é necessário ajudar a morrer...
Tao Chi'en riu-se com vontade, mas não retirou o frasco da sua malinha. Ah Toy recebeu-o num dos seus "pensionatos" de luxo, onde o cliente pagava mil dólares por sessão, mas saía sempre satisfeito. Além disso, como ela argumentava: "Se precisa de perguntar o preço, este sítio não é para si." Uma criada preta com uniforme brunido abriu-lhe a porta e conduziu-o através de várias salas, onde deambulavam bonitas jovens vestidas de seda. Comparadas com as suas irmãs menos felizardas, viviam como princesas, comiam três vezes por dia e tomavam banho diariamente. A casa, um verdadeiro museu de antiguidades orientais e engenhocas americanas, cheirava a tabaco, perfumes rançosos e pó. Eram três da tarde, mas as grossas cortinas permaneciam fechadas, naqueles quartos nunca entrava uma brisa fresca. Ah Toy recebeu-o num pequeno escritório atulhado de móveis e de gaiolas de pássaros. Era mais pequena, jovem e bela do que imaginara. Estava cuidadosamente pintada, mas não usava jóias, vestia com simplicidade e não usava unhas longas, indício de fortuna e de ócio. Reparou nos seus pés minúsculos metidos em sapatilhas brancas. Tinha o olhar penetrante e duro, mas falava com uma voz acariciante que lhe lembrou Lin.
Maldita seja, suspirou Tao Chi'en, derrotado à primeira palavra. Examinou-a impassível, sem revelar a sua repugnância ou perturbação, sem saber o que dizer-lhe, porque censurar-lhe o seu tráfico não só era inútil, era também perigoso e podia chamar a atenção para as suas próprias actividades. Receitou-lhe mahuang para a asma e outros remédios para arrefecer o fígado, advertindo-a secamente que, enquanto vivesse fechada atrás daqueles cortinados fumando tabaco e ópio, os seus pulmões continuariam a gemer. A tentação de lhe deixar o veneno, com a indicação de tomar uma colherzinha por dia, roçou-o como uma borboleta nocturna e ele estremeceu, confuso com esse instante de hesitação, porque até esse momento julgava que a ira não lhe chegava para matar alguém. Saiu apressadamente, certo de que, com as suas maneiras rudes, a mulher não voltaria a chamá-lo.
- Então? - perguntou Eliza ao vê-lo chegar.
- Nada.
- Como, nada? Não tinha sequer um bocadinho de tuberculose? Não vai morrer?
- Todos iremos morrer. Esta morrerá de velha. É forte como um búfalo.
- Gente reles é assim.
Por outro lado, Eliza sabia que estava numa encruzilhada definitiva do seu caminho e a direcção escolhida determinaria o resto da sua vida. Tao Chi'en tinha razão: devia dar um prazo a si própria. Já não conseguia ignorar a suspeita de se ter apaixonado pelo amor e de estar presa no dissabor de uma paixão de novela, sem qualquer ligação com a realidade. Tentava recordar os sentimentos que a levaram a embarcar nessa tremenda aventura, mas não conseguia. A mulher em que se transformara, pouco tinha em comum com a criança desvairada de antes. Valparaiso e o quarto dos armários pertenciam a outro tempo, a um mundo que ia desaparecendo na bruma. Perguntava milhares de vezes a si própria por que razão desejou tanto pertencer de corpo e alma a Joaquín Andieta, quando na verdade nunca se sentira completamente feliz nos seus braços, e só conseguia explicá-lo por ter sido o seu primeiro amor. Estava pronta, quando ele aparecera para descarregar alguns volumes em casa dela, e o resto foi coisa do instinto.
Obedeceu simplesmente ao mais poderoso e antigo chamamento, mas isso acontecera há uma eternidade a sete mil milhas de distância. Quem era ela então e o que vira nele, não conseguia dizê-lo, mas sabia que o seu coração já não andava por esses caminhos. Não se cansara apenas de o procurar, no fundo, preferia não o encontrar, mas também não podia continuar atordoada pelas dúvidas. Precisava de uma conclusão dessa etapa para iniciar a limpo um novo amor.
Em finais de Novembro, não suportou mais a angústia e, sem dizer nada a Tao Chi'en, foi ao jornal falar com o célebre Jacob Freemont. Fizeram-na passar para a sala da redacção, onde vários jornalistas trabalhavam à secretária, rodeados de uma desordem esmagadora. Indicaram-lhe um pequeno escritório atrás de uma porta envidraçada e encaminhou-se para lá.
Ficou de pé diante da mesa, esperando que aquele gringo de patilhas vermelhas levantasse os olhos dos seus papéis. Era um indivíduo de meia-idade, com a pele sardenta e um aroma doce a velas. Escrevia com a mão esquerda, tinha a testa apoiada na mão direita e não se lhe via a cara mas, nessa altura, por baixo do aroma a cera de abelhas, ela sentiu um odor conhecido que lhe trouxe à memória alguma coisa remota e imprecisa da infância. Inclinou-se um pouco na sua direcção, farejando dissimuladamente, no mesmo instante em que o jornalista ergueu a cabeça. Surpreendidos, ficaram a olhar um para o outro a uma distância incómoda e, por fim, ambos recuaram. Pelo cheiro ela reconheceu-o, apesar dos anos, dos óculos, das patilhas e do traje de yanquee. Era o eterno pretendente de Miss Rose, o mesmo inglês que comparecia pontualmente às tertúlias de quarta-feira em Valparaiso. Paralisada, não conseguiu fugir.
- O que posso fazer por ti, rapaz? - perguntou Jacob Todd, tirando os óculos para os limpar com o lenço.
O discurso que ensaiara apagou-se-lhe da memória. Ficou com a boca aberta e com o chapéu na mão, certa de que, se ela o reconhecera, ele também, mas o homem colocou cuidadosamente os óculos e repetiu a pergunta sem olhar para ela.
- É por causa de Joaquín Murieta... - balbuciou e a voz saiu-lhe mais aflautada do que nunca.
- Tens informações sobre o bandido? - interessou-se o jornalista de imediato.
- Não, não... Pelo contrário, venho perguntar-lhe por ele. Preciso vê-lo.
- Tens um ar familiar, rapaz... conhecemo-nos por acaso?
- Creio que não, senhor.
- És chileno?
- Sim.
- Eu vivi no Chile há alguns anos. Bonito país. Para que queres ver Murieta?
- É muito importante.
- Receio não poder ajudar-te. Ninguém conhece o seu paradeiro.
- Mas você falou com ele!
- Só quando Murieta me chamou. Entra em contacto comigo quando quer que alguma das suas façanhas apareça no jornal. Não tem nada de modesto, gosta da fama.
- Em que língua se entende com ele?
- O meu espanhol é melhor do que o seu inglês.
- Diga-me, senhor, tem acento chileno ou mexicano?
- Não sei dizer-te. Já te disse, rapaz, não posso ajudar-te - respondeu o jornalista, levantando-se para dar por terminado esse interrogatório, que começava a incomodá-lo.
Eliza despediu-se rapidamente e ele ficou a pensar, com um ar de perplexidade, enquanto a via afastar-se no ruído da sala de redacção. Esse jovem parecia-lhe conhecido, mas não conseguia situá-lo. Vários minutos mais tarde, quando o seu visitante já se retirara, lembrou-se do encargo do capitão John Sommers e a imagem da jovem Eliza passou como um relâmpago pela sua memória. Relacionou então o nome do bandido com o de Joaquín Andieta e percebeu por que o procurava ela. Conteve um grito e saiu para a rua a correr, mas a jovem tinha desaparecido.
O trabalho mais importante de Tao Chi'en e de Eliza Sommers começava à noite. Na escuridão, desfaziam-se dos corpos das infelizes que não tinham conseguido salvar e levavam as restantes para o outro extremo da cidade, onde viviam os seus amigos quaker. Uma a uma, as garotas saiam do inferno para se lançarem às cegas numa aventura sem retorno. Perdiam a esperança de regressar à China ou de reencontrar as suas famílias, algumas não voltariam a falar a sua língua ou a ver um rosto da sua raça, tinham de aprender um ofício e de trabalhar duramente pelo resto das suas vidas, mas qualquer coisa era um paraíso comparado com a vida que levavam anteriormente. As que Tao conseguia rematar adaptavam-se melhor. Tinham viajado em caixotes e tinham sido submetidas à lascívia e à brutalidade dos marinheiros, mas ainda não estavam completamente debilitadas e mantinham alguma capacidade de redenção. As outras, salvas no último instante da morte no "hospital", nunca perdiam o medo que, como uma doença do sangue, as queimaria por dentro até ao último dia. Tao Chi'en esperava que, com o tempo, aprendessem pelo menos a sorrir de vez em quando. Assim que recuperavam as forças e percebiam que nunca mais teriam de submeter-se a um homem por obrigação, mas que seriam sempre fugitivas, conduziam-nas a casa dos seus amigos abolicionistas, parte do underground railroad, como chamavam à organização clandestina dedicada a socorrer os escravos evadidos, à qual também pertencia o ferreiro James Morton e os seus irmãos. Recebiam os refugiados provenientes de estados esclavagistas e ajudavam-nos a instalar-se na Califórnia, mas neste caso deviam realizar a operação contrária, tirando as garotas chinesas da Califórnia para as levar para longe dos traficantes e das pandilhas criminosas, procurar-lhes casa e uma maneira de ganharem a vida. Os quakers assumiam os riscos com fervor religioso: para eles tratava-se de inocentes vilipendiadas pela maldade humana, que Deus colocara no seu caminho como uma prova. Acolhiam-nas com tão boa vontade, que frequentemente elas reagiam com violência ou terror, não sabiam receber afecto, mas a paciência dessa boa gente ia, pouco a pouco, vencendo a sua resistência. Ensinavam-lhes algumas frases indispensáveis em inglês, davam-lhes umas noções dos costumes americanos, mostravam-lhes um mapa para que ao menos soubessem onde estavam, e tratavam de iniciá-las nalgum ofício, enquanto esperavam que chegasse Babalú, o Mau, para as levar.
O gigante encontrara por fim a melhor forma de dar bom uso aos seus talentos: era um viajante incansável, grande noctívago e amante da aventura.
Ao vê-lo aparecer, as sing song girls corriam espavoridas a esconder-se e era necessária muita persuasão da parte dos seus protectores para as tranquilizar. Babalú tinha aprendido uma canção em chinês e três truques de malabarismo, que utilizava para as deslumbrar e mitigar o pavor do primeiro encontro, mas não renunciava de maneira nenhuma às suas peles de lobo, ao seu crânio rapado, às suas argolas de flibusteiro e ao seu espantoso armamento. Ficava alguns dias, até convencer as suas protegidas de que não era um demónio e de que não pretendia devorá-las, depois partia com elas à noite. As distâncias eram bem calculadas para chegar ao amanhecer a outro refúgio, onde descansavam durante o dia. Deslocavam-se a cavalo, um carro seria inútil, porque uma boa parte do trajecto era feito em pleno campo, evitando os caminhos. Tinha descoberto que era muito mais seguro viajar pelo escuro, desde que se soubesse orientar, porque os ursos, as cobras, os foragidos e os índios estavam a dormir, como toda a gente. Babalú deixava-as a salvo nas mãos de outros membros da vasta rede da liberdade.
Acabavam em granjas do Oregón, em lavandarias do Canadá, em oficinas de artesanato no México, outras empregavam-se como criadas de família e não faltavam algumas que se casavam. Tao Chi'en e Eliza costumavam receber notícias por meio de James Morton, que seguia a pista de cada fugitivo resgatado pela sua organização. De vez em quando chegava-lhes um envelope de algum lugar remoto e, ao abri-lo, encontravam um papel com um nome mal garatujado, umas flores secas ou um desenho, e então felicitavam-se porque outra das sing song girls se tinha salvo.
Às vezes Eliza tinha de partilhar por alguns dias o seu quarto com uma garota recém-resgatada, mas também não revelava diante delas a sua condição de mulher, que só Tao conhecia. Dispunha do maior quarto da casa, ao fundo do consultório do seu amigo. Era um aposento amplo com duas janelas que davam para um pequeno pátio interior, onde cultivavam plantas medicinais para o consultório e ervas aromáticas para cozinhar. Fantasiavam muitas vezes mudar-se para uma casa maior e ter um verdadeiro jardim, não apenas para fins práticos, mas para recreio da vista e regozijo da memória, um lugar onde crescessem as mais belas plantas da China e do Chile e que tivesse um caramanchão para se sentarem a tomar chá à tarde e admirarem o nascer do Sol sobre a baía de madrugada. Tao Chi'en notara o alã de Eliza em transformar a casa num lar, o esmero com que limpava e arrumava, a sua perseverança em manter discretos ramos de flores frescas em cada quarto.
Anteriormente nunca tivera ocasião de apreciar semelhantes requintes, crescera numa pobreza total, na mansão do mestre de acupunctura faltava uma mão de mulher para a transformar num lar e Lin era tão frágil, que as forças não lhe chegavam para se ocupar das tarefas domésticas. Eliza, pelo contrário, tinha o instinto dos pássaros para fazer ninho. Investia em móveis para a casa, parte do que ganhava, tocando piano algumas noites por semana num saloon e vendendo empanadas e bolos no bairro dos chilenos.
Desta forma comprara cortinas, uma colcha de damasco, tachos para a cozinha, pratos e taças de porcelana. Para ela, as boas maneiras com que fora criada eram essenciais, convertia num cerimonial a única refeição diária que partilhavam, apresentava os pratos com primor e corava de satisfação quando ele aplaudia os seus esforços. Os assuntos quotidianos pareciam resolver-se por si, como se, durante a noite, espíritos generosos limpassem o consultório, pusessem os arquivos em dia, entrassem discretamente no quarto de Tao Chi'en para lavar a sua roupa, coser os seus botões, escovar os seus fatos e mudar a água das rosas da sua mesa.
- Não me cubras de atenções, Eliza.
- Disseste que os chineses esperam que as mulheres os sirvam.
- Isso é na China, mas eu nunca tive essa sorte... Estás a estragar-me.
- Precisamente. Miss Rose dizia que para dominar um homem era necessário habituá-lo a viver bem e que, quando ele se portasse mal, o castigo consistia em suprimir os mimos.
- Miss Rose não ficou solteira?
- Por decisão própria, não por falta de oportunidades.
- Não penso portar-me mal, mas depois, como viverei sozinho?
- Nunca viverás sozinho. Não és de todo feio e haverá sempre uma mulher de pés grandes e mau feitio disposta a casar-se contigo - respondeu e ele pôs-se a rir, encantado.
Tao tinha comprado móveis finos para o quarto de Eliza, o único da casa decorado com algum luxo. Passeando juntos por Chinatown, ela costumava admirar o estilo dos móveis tradicionais chineses. "São muito bonitos, mas pesados. O erro é pôr demasiados", dizia. Ofereceu-lhe uma cama e um armário de madeira es cura talhada e ela depois escolheu uma mesa, cadeiras e um biombo de bambu. Não quis uma colcha de seda, como usariam na China, mas uma de aspecto europeu, de linho branco bordado com grandes almofadões do mesmo material.
- Tens a certeza de que queres fazer este gasto, Tao?
- Estás a pensar nas sing song girls..
- Sim.
- Tu própria disseste que todo o ouro da Califórnia não conseguiria comprá-las a todas. Não te preocupes, temos o suficiente.
Eliza retribuía de mil maneiras subtis: discrição respeitando o seu silêncio e as suas horas de estudo, esmero em secundá-lo no consultório, coragem na tarefa de resgatar as garotas. No entanto, para Tao Chi'en o melhor presente era o invencível optimismo da sua amiga, que o obrigava a reagir quando as sombras ameaçavam envolvê-lo por completo. "Se andas triste perdes força e não consegues ajudar ninguém. Vamos dar um passeio, necessito cheirar o bosque. Chinatown cheira a molho de soja" e levava-o de carro até aos arredores da cidade. Passavam o dia ao ar livre, deambulando como garotos, e nessa noite ele dormia como um santo e acordava de novo vigoroso e alegre.
O capitão John Sommers atracou no porto de Valparaíso a 15 de Março de 1853, esgotado pela viagem e pelas exigências da sua patroa, cujo capricho mais recente consistia em transportar a reboque, desde o sul do Chile, um pedaço de glaciar do tamanho de um barco baleeiro. Lembrara-se de fabricar sorvetes e gelados para venda, uma vez que os preços das verduras e das frutas tinham baixado muito desde que a agricultura da Califórnia começara a prosperar. O ouro tinha atraído um quarto de milhão de imigrantes em quatro anos, mas a bonança estava a passar. Apesar disso, Paulina Rodríguez de Santa Cruz não pensava abandonar jamais São Francisco. Tinha adoptado no seu indómito coração essa cidade de forasteiros heróicos, onde ainda não existiam classes sociais. Supervisionava ela própria a construção da sua futura casa, uma mansão no alto de uma colina com a melhor vista da baía, mas esperava o seu quarto filho e queria tê-lo em Valparaiso, onde a mãe e as irmãs a mimariam até ao vício. O pai tinha sofrido uma oportuna apoplexia, que lhe deixou meio corpo paralisado e o cérebro amolecido. A invalidez não mudou o carácter de Agustin del Valle, mas meteu-lhe medo da morte e, naturalmente, do inferno. Partir para o outro mundo com uma fiada de pecados mortais às costas não era boa ideia, repetira-lhe incansável o seu parente, o bispo. Do mulherengo e estoura-vergas que fora, nada restava, não por arrependimento, mas porque o seu corpo alquebrado já não era capaz dessas cavalgadas. Ouvia missa diariamente na capela da sua casa e suportava, estóico, as leituras dos Evangelhos e os infindáveis rosários que a sua mulher recitava. Nada disso, no entanto, o tornou mais benigno com os seus rendeiros e empregados.
Continuava a tratar a sua família e o resto do mundo como um déspota, mas parte da conversão foi um súbito e inexplicável amor por Paulina, a filha ausente. Esqueceu-se que a tinha repudiado por fugir do convento para casar-se com aquele filho de judeus, de cujo nome não se conseguia lembrar porque não era um apelido da sua classe. Escreveu-lhe chamando-a sua favorita, a única herdeira do seu temperamento e da sua visão para os negócios, suplicando-lhe que regressasse ao lar, porque o seu pobre pai desejava abraçá-la antes de morrer. É verdade que o velho está muito mal? perguntara Paulina, esperançada, numa carta às irmãs. Mas não estava e certamente viveria muitos anos aborrecendo toda a gente do seu cadeirão de aleijado. De qualquer forma, ao capitão John Sommers coube-lhe transportar nessa viagem a sua patroa e as suas crianças malcriadas, as criadas irremediavelmente enjoadas, o carregamento de baús, duas vacas para o leite das crianças e três cãezinhos fraldiqueiros com fitas nas orelhas como os das cortesãs francesas, que substituíram o cachorro afogado em alto mar durante a primeira viagem. Ao capitão a travessia pareceu-lhe eterna e aterrorizava-o a ideia de que, dentro em pouco, teria de levar Paulina e o seu circo de volta a São Francisco. Pela primeira vez na sua longa vida de navegante pensou em retirar-se e passar em terra firme o tempo que lhe restava neste mundo.
O seu irmão Jeremy esperava-o no cais e levou-o para casa, desculpando Rose, que sofria de enxaqueca.
- Já sabes, adoece sempre no aniversário de Eliza. Não consegue recompor-se da morte da rapariga - explicou.
- É disso que quero falar-vos - respondeu o capitão.
Miss Rose não soube até que ponto amava Eliza até esta lhe faltar e sentir então que a certeza do amor maternal lhe chegava demasiado tarde.
Culpava-se pelos anos em que a quis pela metade, com um carinho arbitrário e caótico, pelas vezes em que se esquecia da sua existência, demasiado ocupada com as suas frivolidades e, quando se lembrava dela, descobria que a garota tinha estado no pátio com as galinhas durante uma semana. Eliza fora o que tivera de mais parecido a uma filha, que nunca teria, durante quase dezassete anos foi sua amiga, sua companheira de jogos, a única pessoa no mundo que a tocava. A Miss Rose doía-lhe o corpo de pura e simples saudade. Sentia falta dos banhos com a garota, quando chapinhavam felizes na água perfumada com folhas de hortelã e alecrim. Pensava nas mãos pequenas e hábeis de Eliza lavando-lhe o cabelo, massajando-lhe a nuca, polindo-lhe as unhas com um pedaço de camurça, ajudando-a a pentear-se. à noite ficava à espera, com o ouvido atento aos passos da rapariga que lhe trazia o seu copinho de licor de anis. Desejava sentir mais uma vez o seu beijo de boa noite na testa. Miss Rose já não escrevia e suspendeu por completo as tertúlias musicais, que antes constituíam o eixo da sua vida social. A vaidade também lhe passou e estava resignada a envelhecer sem graça, "na minha idade espera-se apenas que uma mulher tenha dignidade e cheire bem", dizia. Nenhum vestido novo saíra das suas mãos nesses anos, continuava a usar os mesmos de antigamente e nem se apercebia de que já não estavam na moda. A salinha da costura permanecia abandonada e até a colecção de gorros e chapéus elanguescia nas caixas, porque optara pelo manto preto das chilenas para sair à rua. Ocupava os seus dias relendo os clássicos e tocando peças melancólicas no piano.
Aborrecia-se com método e determinação, como um castigo. A ausência de Eliza transformou-se num bom pretexto para usar luto pelas mágoas e perdas dos seus quarenta anos de vida, sobretudo pela falta de amor. Sentia isso como uma espinha cravada na garganta, uma dor constante em surdina.
Arrependia-se por a ter criado na mentira, não conseguia entender por que inventara a história do cesto com lençóis de cambraia, da improvável mantinha de pele de marta e das moedas de ouro, quando a verdade teria sido muito mais reconfortante. Eliza tinha o direito de saber que o adorado tio John era na verdade seu pai, que ela e Jeremy eram seus tios, que pertencia à família Sommers e que não era uma órfã recolhida por caridade. Lembrava-se horrorizada de quando a arrastara até ao orfanato para lhe pregar um susto, que idade teria nessa altura? Oito ou dez, uma criança. Se pudesse começar de novo seria uma mãe muito diferente... Para começar, teria dado o seu apoio quando ela se apaixonou, em vez de lhe declarar guerra, se tivesse feito isso, Eliza estaria viva, suspirava, a culpa era sua se encontrara a morte ao fugir. Devia ter-se lembrado do seu próprio caso e entender que o primeiro amor transtornava as mulheres da sua família. O mais triste era não ter com quem falar dela, porque Mama Fresia também tinha desaparecido e o seu irmão Jeremy apertava os lábios e saía do quarto se a mencionava. O seu desgosto contaminava tudo em volta, nos últimos quatro anos a casa tinha um ar denso de mausoléu, a comida decaíra tanto, que ela se alimentava de chá com bolachas inglesas. Não tinha conseguido uma cozinheira decente e também não a procurara com muito afinco. A limpeza e a ordem deixavam-na indiferente, faltavam flores nos jarrões e metade das plantas do jardim definhava por falta de cuidados. Durante quatro Invernos as cortinas floridas do Verão penderam na sala sem que ninguém se desse ao trabalho de as trocar no fim da temporada.
Jeremy não censurava a sua irmã, comia quaisquer restos que lhe pusessem à frente e não dizia nada quando as suas camisas apareciam mal engomadas e os seus fatos por escovar. Tinha lido que as mulheres solteiras costumavam sofrer perigosas perturbações. Em Inglaterra tinham desenvol-vido uma cura milagrosa para a histeria, que consistia em cauterizar com ferros em brasa certos pontos, mas aqueles avanços não tinham chegado ao Chile, onde ainda se utilizava água benta para esses males. De qualquer forma, era um assunto delicado, difícil de mencionar diante de Rose.
Não sabia como consolá-la, o hábito da discrição e do silêncio entre eles era demasiado antigo. Tentava agradar-lhe com ofertas compradas de contrabando nos barcos, mas não entendia nada de mulheres e chegava com objectos horrendos que depressa desapareciam no fundo dos armários. Não suspeitava das vezes que a irmã se aproximara dele enquanto fumava no seu cadeirão, prestes a cair-lhe aos pés, a apoiar a cabeça nos seus joelhos e chorar sem parar, mas no último instante retrocedia assustada, porque entre eles qualquer palavra de afecto soava a ironia ou a sentimentalismo imperdoável. Rígida e triste, Rose mantinha as aparências por disciplina, com a sensação de que só o espartilho a segurava e de que se desmoronaria aos bocados se o tirasse. Do seu alvoroço e das suas travessuras nada restava, nem das suas atrevidas opiniões, dos seus gestos ou da sua impertinente curiosidade.
Convertera-se naquilo que mais temia: numa solteirona vitoriana. "É a mudança, nessa idade as mulheres ficam desequilibradas" alvitrava o boticário alemão e receitou-lhe valeriana para os nervos e óleo de fígado de bacalhau para a palidez.
O capitão John Sommers reuniu os seus irmãos na biblioteca para lhes dar a notícia.
- Lembram-se de Jacob Todd?
- O tipo que nos vigarizou com a história das missões na Terra do Fogo? - perguntou Jeremy Sommers.
- Esse mesmo.
- Estava apaixonado por Rose, se bem me lembro - sorriu Jeremy, pensando que ao menos se tinham livrado de ter aquele mentiroso por cunhado.
- Mudou de nome. Agora chama-se Jacob Freemont e está transformado num jornalista, em São Francisco.
- Ora, ora! Então sempre é verdade que nos Estados Unidos qualquer impostor pode começar de novo.
- Jacob Todd pagou de sobra a sua falta. Parece-me magnífico existir um país que oferece uma segunda oportunidade.
- E a honra não conta?
- A honra não é tudo, Jeremy.
- Há mais alguma coisa?
- O que nos interessa Jacob Todd? Suponho que não nos reuniste para falar dele, John - balbuciou Rose, atrás do seu lenço ensopado em perfume de baunilha.
- Estive com Jacob Todd, Freemont, melhor dizendo, antes de embarcar. Garantiu-me que vira Eliza em São Francisco.
Miss Rose julgou que, pela primeira vez na sua vida, ia desmaiar. Sentiu o coração disparado, as fontes prestes a explodir e uma vaga de sangue na cara. Não conseguiu articular uma palavra, sufocada. - Não se pode acreditar em nada do que diz esse homem!
Disseste-nos que uma mulher jurou ter conhecido Eliza a bordo de um barco em 1849 e não ter dúvidas de que tinha morrido - alegou Jeremy Sommers, andando pela biblioteca em passos largos.
- É verdade, mas era uma mulher de má vida e tinha o broche de turquesas que eu dera a Eliza. Pode tê-lo roubado e mentido para se proteger. Que motivos teria Jacob Freemont para me enganar?
- Nenhum, só que é um farsante por natureza.
- Basta, por favor - suplicou Rose, fazendo um esforço colossal para falar. - A única coisa que importa é que alguém viu Eliza, que não está morta, que podemos encontrá-la.
- Não tenhas ilusões, querida. Não vês que esta é uma história fantástica? Será um golpe terrível para ti comprovar que é uma falsa notícia - preveniu-a Jeremy.
John Sommers deu-lhes os pormenores do encontro entre Jacob Freemont e Eliza, sem omitir que a rapariga estava vestida de homem e tão à vontade na sua roupa, que o jornalista não duvidara tratar-se de um rapaz. Acrescentou que foram ambos ao bairro chileno perguntar por ela, mas não sabiam que nome usava e ninguém pôde, ou quis, dar-lhes o seu paradeiro. Explicou que Eliza sem dúvida fora para a Califórnia juntar-se ao seu apaixonado, mas que alguma coisa correra mal e não se tinham encontrado, uma vez que o propósito da sua visita a Jacob Freemont fora averiguar sobre um pistoleiro com um nome semelhante.
- Deve ser ele. Joaquín Andieta é um ladrão. Saiu do Chile para fugir à justiça - resmungou Jeremy Sommers.
Não fora possível esconder-lhe a identidade do apaixonado de Eliza.
Miss Rose também teve de confessar-lhe que costumava visitar a mãe de Joaquín Andieta para saber notícias e que a infeliz mulher, cada vez mais pobre e doente, estava convencida de que o filho morrera. Não havia outra explicação para o seu longo silêncio, argumentava. Tinha recebido uma carta da Califórnia, datada de Fevereiro de 1849, uma semana depois da sua chegada, na qual este lhe anunciava a sua intenção de partir rumo aos aluviões e reiterava a sua promessa de lhe escrever de quinze em quinze dias. Depois, mais nada: tinha desaparecido sem deixar rasto.
- Não lhes parece estranho que Jacob Todd reconhecesse
Eliza fora de contexto e vestida de homem? - perguntou Jeremy Sommers. - Quando a conheceu era uma miúda. Há quantos anos? Há, pelo menos, seis ou sete. Como poderia imaginar que Eliza estava na Califórnia? Isto é absurdo.
- Há três anos contei-lhe o que acontecera e ele prometeu-me procurá-la. Descrevi-a pormenorizadamente, Jeremy. Quanto ao resto, Eliza nunca mudou muito as feições, quando foi embora parecia ainda uma miúda.
Jacob Freemont procurou-a bastante tempo, até eu lhe ter dito que possivelmente tinha morrido. Agora prometeu-me voltar a tentar, pensa mesmo contratar um detective. Espero trazer-lhes notícias mais concretas na próxima viagem.
- Por que não esquecemos este assunto de uma vez por todas? - suspirou Jeremy.
- Porque é minha filha, homem, pelo amor de Deus! - exclamou o capitão.
- Eu irei à Califórnia procurar Eliza! - interrompeu Miss Rose, levantando-se.
- Tu não irás a parte nenhuma! - explodiu o seu irmão mais velho.
Mas ela já tinha saído. A notícia foi uma injecção de sangue novo para Miss Rose. Tinha a certeza absoluta de que encontraria a sua filha adoptiva e, pela primeira vez em quatro anos, tinha uma razão para continuar a viver. Descobriu admirada que as suas antigas forças estavam intactas, escondidas em algum lugar secreto do seu coração, prontas para a servir como a tinham servido antes. A dor de cabeça desapareceu como por encanto, transpirava e as suas faces estavam vermelhas de euforia quando chamou as criadas para que a acompanhassem ao quarto dos armários a buscar as malas.
Em Maio de 1853, Eliza leu no jornal que Joaquín Murieta e o seu sequaz, Jack Três-Dedos, tinham atacado um acampamento de seis pacíficos chineses, os tinham amarrado pelas tranças e degolado, deixando depois as cabeças penduradas numa árvore, como um cacho de melões. As estradas estavam invadidas por bandidos, ninguém andava em segurança naquelas regiões, era necessário deslocar-se em grupos numerosos e bem armados.
Assassinavam mineiros americanos, aventureiros franceses, vendedores ambulantes judeus e viajantes de qualquer raça, mas em geral não atacavam nem índios nem mexicanos, porque, destes, os gringos se encarregavam. As pessoas, aterrorizadas, trancavam portas e janelas, os homens vigiavam com os rifles carregados e as mulheres escondiam-se, porque nenhuma queria cair nas mãos de Jack Três-Dedos. De Murieta, pelo contrário, dizia-se que nunca maltratava uma mulher e que, por mais de uma vez, salvara jovens de serem maculadas pelos facínoras da sua pandilha. As estalagens recusavam hospedagem aos viajantes, porque receavam que um deles fosse Murieta.
Ninguém o vira pessoalmente e as descrições eram contraditórias, embora os artigos de Freemont tivessem contribuído para criar uma imagem romântica do bandido, que a maior parte dos leitores aceitava como verdadeira. Foi em Jackson que se formou o primeiro grupo de voluntários para perseguir o bando, mas rapidamente se formaram companhias de vingadores em cada povoado e se desencadeou uma caçada humana sem precedentes. Ninguém que falasse espanhol estava livre de suspeita, em poucas semanas houve mais linchamentos apressados do que nos quatro anos anteriores. Bastava falar espanhol para se transformar em inimigo público e para se ser vítima da ira dos shenfft e dos meirinhos. O cúmulo do vexame aconteceu quando o bando de Murieta fugia de um grupo de soldados americanos, que ia no seu encalço, e fez um curto desvio para atacar um acampamento de chineses. Os soldados chegaram alguns segundos depois e encontraram vários mortos e os outros agonizantes. Dizia-se que Joaquín Murieta se assanhava com os asiáticos porque estes raras vezes se defendiam, mesmo que estivessem armados, os "celestiais" temiam-no tanto que a simples menção do seu nome provocava entre eles o pânico. No entanto, o rumor mais persistente era que o bandido estava a armar um exército e que, com a cumplicidade de ricos rancheiros mexicanos da região, pensava provocar uma revolta, sublevar a população espanhola, massacrar os americanos e devolver a Califórnia ao México ou convertê-la numa república independente.
Face ao clamor popular, o governador assinou um decreto autorizando o capitão Harry Love e um grupo de vinte voluntários a perseguir Joaquín Murieta por um prazo de três meses. Foi atribuído um ordenado de cento e cinquenta dólares por mês a cada homem, o que não era muito, tendo em conta que teriam de financiar os seus cavalos, armas e provisões, mas, apesar disso, a companhia estava pronta para se pôr a caminho em menos de uma semana. Havia uma recompensa de mil dólares pela cabeça de Joaquín Murieta. Tal como assinalava Jacob Freemont no jornal, condenava-se um homem à morte sem conhecer a sua identidade, sem se terem provado os seus crimes e sem julgamento, pelo que a missão do capitão Harry Love equivalia a um linchamento. Eliza sentiu uma mistura de terror e de alívio, que não conseguiu explicar. Não desejava que esses homens matassem Joaquín, mas talvez fossem os únicos capazes de o encontrar, só queria livrar-se da incerteza, estava cansada de combater as sombras. De qualquer forma, era pouco provável que o capitão Love fosse bem sucedido quando tantos outros tinham fracassado. Joaquín Murieta parecia invencível. Dizia-se que só uma bala de prata conseguiria matá-lo, porque já tinham descarregado duas pistolas no seu peito, à queima-roupa, e ele continuava a galopar pela região de Calaveras.
- Se esse animal é o teu apaixonado, mais vale que nunca o encontres - manifestou-se Tao Chi'en, quando ela lhe mostrou os recortes dos jornais, coleccionados durante mais de um ano.
- Julgo que não e...
- Como sabes?
Em sonhos via o seu antigo amante com o mesmo fato surrado e as camisas gastas, mas limpas e bem engomadas, dos tempos em que se amaram em Valparaíso. Aparecia com o seu ar trágico, os seus olhos intensos e o seu cheiro a sabão e a suor fresco, agarrava-lhe nas mãos como nessa altura e falava-lhe, apaixonadamente, da democracia. Às vezes estavam deitados sobre o monte de cortinas no quarto dos armários, lado a lado, sem se tocarem, completamente vestidos, enquanto à sua volta as madeiras rangiam, fustigadas pelo vento do mar. E sempre, em todos os sonhos, Joaquín aparecia com uma estrela de luz na testa.
- E qual é o significado disso? - quis saber Tao Chi'en.
- Nenhum homem mau tem uma luz na testa.
- É só um sonho, Eliza.
- Não é um, Tao, são muitos sonhos...
- Então estás à procura do homem errado.
- Talvez, mas não perdi tempo - respondeu ela, sem dar mais explicações.
Pela primeira vez em quatro anos voltava a ter consciência do seu corpo, relegado para um plano insignificante desde o instante em que Joaquín Andieta se despedira dela no Chile, naquele funesto 22 de Dezembro de 1848. Na sua obsessão para encontrar esse homem renunciou a tudo, mesmo à sua feminilidade. Receava ter perdido pelo caminho a sua condição de mulher para se transformar num estranho ser assexuado.
Algumas vezes, cavalgando por montes e bosques, exposta à inclemência de todos os ventos, recordava-se dos conselhos de Miss Rose, que se lavava com leite e que nunca permitia um raio de sol sobre a sua pele de porcelana, mas não podia demorar-se em semelhantes considerações. Suportava o esforço e o castigo porque não tinha alternativa. Considerava o seu corpo, tal como os seus pensamentos, a sua memória ou o seu sentido do olfacto, uma parte inseparável do seu ser. Antigamente não entendia a que se referia Miss Rose quando falava da alma, porque não conseguia diferenciá-la do todo que era, mas agora começava a entrever a sua natureza. Alma era a parte imutável de si própria. Corpo, pelo contrário, era essa besta temível que, depois de anos de hibernação, acordava indómita e cheia de exigências.
Vinha recordar-lhe o ardor do desejo que chegara a saborear por pouco tempo no quarto dos armários. A partir dessa altura, nunca mais sentira uma verdadeira urgência de amor ou de prazer físico, como se essa parte de si mesma tivesse permanecido profundamente adormecida. Atribuiu-o à dor de ter sido abandonada pelo seu amante, ao pânico de se ver grávida, ao seu passeio pelos labirintos da morte no barco, ao trauma do aborto. Ficara tão magoada, que o terror de se ver outra vez nessas circunstâncias fora mais forte do que o ímpeto da juventude. Pensava que, pelo amor, se pagava um preço demasiado elevado e que era melhor evitá-lo por completo, mas alguma coisa se alterara dentro de si nos últimos dois anos junto de Tao Chi'en e, de repente, o amor, tal como o desejo, parecia-lhe inevitável. A necessidade de se vestir de homem começava a pesar-lhe como um fardo.
Lembrava-se da salinha da costura, onde certamente nesse momento Miss Rose estaria a fazer outro dos seus primorosos vestidos, e oprimia-a uma vaga de nostalgia por aquelas tardes agradáveis da sua infância, pelo chá das cinco nas chávenas que Miss Rose herdara da mãe, pelas correrias a comprar frivolidades de contrabando nos barcos. E por onde andaria Mama Fresia? Via-a resmungando na cozinha, gorda e carinhosa, cheirando a manjericão, sempre com uma concha na mão e uma panela a ferver sobre o fogão, como uma afável feiticeira. Sentia uma saudade angustiante dessa cumplicidade feminina de outrora, um desejo peremptório de sentir-se mulher novamente. No seu quarto não havia nenhum espelho grande onde pudesse observar aquela criatura feminina que lutava para se impor. Queria ver-se nua. Por vezes acordava ao amanhecer, febril, pelos sonhos impetuosos, nos quais se sobrepunham à imagem de Joaquín Andieta com uma estrela na testa, outras visões surgidas dos livros eróticos que lia antes em voz alta às pombas da Quebra-ossos. Naquela altura fazia-o com uma enorme indiferença, porque aquelas descrições nada lhe evocavam, mas agora vinham assombrá-la em sonhos como espectros lúbricos. A sós no seu belo quarto de mobiliário chinês, aproveitava a luz do amanhecer, que se filtrava suavemente pelas janelas, para se dedicar à exaltada exploração de si própria. Despia o pijama, olhava com curiosidade para as partes do seu corpo que conseguia ver e percorria as outras às cegas, como fazia anos antes, na época em que descobria o amor. Verificava ter mudado pouco. Estava mais magra, mas também parecia mais forte. As mãos estavam curtidas pelo sol e pelo trabalho mas o resto era tão claro e liso como se recordava. Parecia-lhe surpreendente que, depois de tanto tempo esmagados sob uma faixa, tivesse ainda os mesmos peitos de outrora, pequenos e firmes, com os mamilos como grãos-de-bico. Soltava o cabelo, que não cortava há quatro meses e que penteava num apertado rabo-de-cavalo na nuca, fechava os olhos e agitava a cabeça com prazer pelo peso e pela textura de animal vivo do seu cabelo. Surpreendia-a essa mulher quase desconhecida, com curvas nas coxas e nas ancas, com cintura fina e um pêlo crespo e áspero no púbis, tão diferente do cabelo liso e elástico da cabeça. Erguia um braço para medir a sua extensão, apreciar a sua forma, ver de longe as suas unhas, com a outra mão apalpava as suas costas, o relevo das costelas, a cavidade da axila, o contorno do braço. Parava nos pontos mais sensíveis do pulso e da dobra do cotovelo, perguntando a si própria se Tao Chi'en sentiria as mesmas cócegas nos mesmos sítios. Tocava no seu pescoço, desenhava as orelhas, o arco das sobrancelhas, o contorno dos lábios, percorria com um dedo o interior da boca e depois levava-o até aos mamilos, que se empinavam em contacto com a saliva quente. Passava com firmeza as mãos pelas nádegas, para aprender a sua forma, e depois com leveza, para sentir a suavidade da sua pele.
Sentava-se na cama e tocava-se dos pés às virilhas, surpreendida pela quase imperceptível penugem dourada que lhe cobria as pernas. Abria as coxas e tocava na misteriosa fenda do seu sexo, lânguida e húmida, procurava o invólucro do clitóris, o próprio centro dos seus desejos e confusões e, ao roçá-lo, acudia de imediato a visão inesperada de Tao Chi'en. Não era Joaquín Andieta, de cujo rosto escassamente conseguia recordar-se, mas o seu fiel amigo que vinha nutrir as suas fantasias febris com uma mistura irresistível de abraços ardentes, de ternura suave e de riso partilhado. Depois cheirava as mãos, maravilhada com esse aroma a sal e a frutos maduros que emanava do seu corpo.
Três dias depois de o governador colocar a cabeça de Joaquín Murieta a prémio, ancorou no porto de São Francisco o vapor Northener com duzentos e setenta e cinco sacos de correio e Lola Montez. Era a cortesã mais famosa da Europa, mas nem Tao Chi'en nem Eliza tinham ouvido nunca o seu nome. Estavam no cais por acaso, tinham ido buscar uma caixa de remédios chineses que um marinheiro trazia de Xangai. Julgaram que a causa daquele tumulto de carnaval era o correio, nunca tinha sido recebido um carregamento tão abundante, mas o fogo de artifício demonstrou-lhes o seu erro. Naquela cidade habituada a toda a espécie de prodígios, tinha-se juntado uma multidão de homens curiosos para ver a incomparável Lola Montez, que viajara pelo istmo do Panamá precedida pelo rufar dos tambores da sua fama. Desceu do bote nos braços de dois felizardos marinheiros, que a depositaram em terra firme com reverências dignas de uma rainha. E essa era precisamente a atitude daquela célebre amazona enquanto recebia as aclamações dos seus admiradores. A barafunda apanhou Eliza e Tao Chi'en de surpresa, porque não suspeitavam da estirpe da bela, mas depressa os espectadores os puseram em dia. Tratava-se de uma irlandesa, plebeia e bastarda, que se fazia passar por uma nobre bailarina e actriz espanhola.
Dançava como um ganso e de actriz só tinha uma exagerada vaidade, mas o seu nome convocava imagens licenciosas de grandes sedutoras, de Dalila a Cleópatra, e por isso acorriam a aplaudi-la multidões delirantes. Não iam pelo seu talento, mas para verificar de perto a sua perturbante perversidade, a sua lendária beleza e o seu temperamento destemido. Sem outros talentos para além da desfaçatez e da audácia, enchia teatros, gastava como um exército, coleccionava jóias e amantes, tinha birras monumentais, declarara guerra aos jesuítas e tinha sido expulsa de várias cidades, mas a sua máxima façanha tinha sido partir o coração de um rei. Ludwig I da Baviera fora um bom homem, avaro e prudente durante sessenta anos, até ela se cruzar no seu caminho, dar dois saltos mortais e o deixar convertido num boneco de trapos.
O monarca perdeu o juízo, a saúde e a honra, enquanto ela exauria os cofres reais do seu pequeno reino. Tudo o que ela quis, o apaixonado Ludwig lhe deu, até um título de condessa, mas não conseguiu que os seus súbditos a aceitassem. Os péssimos modos e os caprichos despropositados da mulher provocaram o ódio dos cidadãos de Munique, que acabaram por sair em massa para a rua exigindo a expulsão da querida do rei. Em vez de desaparecer discretamente, Lola enfrentou a turba, armada com um chicote para cavalos e tê-la-iam chacinado se os seus fiéis criados não a metessem à força numa carruagem para a levarem até à fronteira. Desesperado, Ludwig abdicou do trono e dispôs-se a segui-la para o exílio, mas, sem coroa, poder ou conta bancária, de pouco servia o cavalheiro, e a beldade deixou-o simplesmente plantado.
- Ou seja, não tem outro mérito senão a má fama - disse Tao Chi'en.
Um grupo de irlandeses desatrelou os cavalos da carruagem de Lola, colocou-se nos seus lugares e arrastou-a até ao hotel por ruas cobertas com pétalas de flores. Eliza e Tao Chi'en viram-na passar em gloriosa procissão.
- É a única coisa que faltava neste país de loucos - suspirou o chinês, sem olhar duas vezes para a beldade.
Eliza seguiu o carnaval por vários quarteirões, entre divertida e admirada, enquanto em seu redor explodiam foguetes e se davam tiros para o ar. Lola Montez levava o chapéu na mão, tinha o cabelo preto com risco ao meio, caracóis sobre as orelhas e olhos alucinados de um azul nocturno, vestia uma saia de veludo bispal, blusa com renda no pescoço e nos punhos e um bolero bordado a missangas. Tinha uma atitude trocista e desafiadora, plenamente consciente de que incarnava os desejos mais primitivos e secretos dos homens e simbolizava o que mais temiam os defensores da moral, era um ídolo perverso e o papel encantava-a. No entusiasmo do momento alguém lhe atirou um punhado de ouro em pó, que ficou preso aos seus cabelos e à sua roupa como uma aura. A visão daquela mulher jovem, triunfante e sem medo, abalou Eliza. Pensou em Miss Rose, como fazia cada vez com mais frequência, e sentiu uma vaga de compaixão e de ternura por ela. Recordou-a afogueada no seu espartilho, as costas direitas, a cintura estrangulada, transpirando sob os seus cinco saiotes, "senta-te com as pernas juntas, anda direita, não tenhas pressa, fala baixinho, sorri, não faças caretas que ficarás cheia de rugas, cala-te e finge interesse, os homens sentem-se lisonjeados quando as mulheres os ouvem". Miss Rose com o seu cheiro a baunilha, sempre complacente... Mas também a recordou na banheira, coberta apenas com uma camisa molhada, os olhos brilhantes de riso, o cabelo em alvoroço, as faces vermelhas, livre e contente, cochichando com ela, "uma mulher pode fazer o que quiser, Eliza, desde que o faça com discrição". No entanto, Lola Montez fazia-o sem a menor prudência, tinha vivido mais vidas do que o mais bravo aventureiro e fizera-o na sua altiva condição de fêmea bem parecida. Nessa noite, Eliza chegou ao seu quarto pensativa e, sigilosamente, abriu a mala dos seus vestidos, como quem comete uma falta. Deixara-a em Sacramento quando partira perseguindo o seu amante pela primeira vez, mas Tao Chi'en guardara-a pensando que, algum dia, o seu conteúdo devia servir-lhe. Ao abri-la, algo caiu ao chão e verificou, surpreendida, que era o seu colar de pérolas, o preço que tinha pago a Tao Chi'en para a meter no barco. Ficou muito tempo com as pérolas na mão, comovida. Sacudiu os vestidos e colocou-os em cima da cama.
Estavam engelhados e cheiravam a cave. No dia seguinte, levou-os à melhor lavandaria de Chinatown.
- Vou escrever uma carta para Miss Rose, Tao - anunciou.
- Porquê?
- É como se fosse minha mãe. Se eu a amo tanto, com certeza ela também me ama. Passaram quatro anos sem notícias, deve julgar que eu morri.
- Gostarias de vê-la?
- Claro, mas isso é impossível. Vou escrever apenas para a tranquilizar, mas seria bom que ela pudesse responder-me. Importas-te que dê esta direcção?
- Queres que a tua família te encontre... - disse ele, e quebrou-se-lhe a voz.
Ela ficou a olhá-lo e percebeu que nunca tinha estado tão próxima de alguém neste mundo, como nesse instante estava de Tao Chi'en. Sentiu esse homem no seu próprio sangue, com tão antiga e feroz certeza, que se maravilhou pelo tempo decorrido ao seu lado sem reparar nisso. Sentia a sua falta, embora o visse todos os dias. Tinha saudades dos tempos despreocupados em que foram bons amigos, nessa altura tudo parecia mais fácil, mas também não desejava voltar para trás. Agora havia algo pendente entre eles, algo muito mais complexo e fascinante que a anterior amizade.
Os seus vestidos e saiotes tinham regressado da lavandaria e estavam em cima da sua cama, envoltos em papel. Abriu a mala e tirou as suas meias brancas e os seus botins, mas deixou o espartilho. Sorriu à ideia de nunca se ter vestido de rapariga sem ajuda, depois vestiu os saiotes e experimentou cada um dos vestidos para escolher o mais apropriado para a ocasião.
Sentia-se forasteira naquela roupa, enleou-se com as fitas, as rendas e os botões, necessitou de alguns minutos para abotoar os botins e encontrar equilíbrio debaixo de tantos saiotes, mas cada peça de roupa que punha ia desfazendo as suas hesitações e afirmando o seu desejo de voltar a ser mulher. Mama Fresia prevenira-a contra as contingências da feminilidade, "o teu corpo mudará, as ideias baralhar-se-ão e qualquer homem poderá fazer contigo o que lhe der na gana", dizia, mas esses riscos já não a assustavam.
Tao Chi'en tinha acabado de atender o último doente do dia. Estava em mangas de camisa, tinha tirado o casaco e a gravata, que usava sempre por respeito para com os seus pacientes, de acordo com o conselho do seu mestre de acupunctura. Transpirava, porque o Sol ainda não se pusera e esse fora um dos poucos dias quentes do mês de Julho. Pensou que nunca se habituaria aos caprichos do clima de São Francisco, onde o Verão tinha cara de Inverno. Costumava amanhecer com um sol radiante e passadas poucas horas entrava uma espessa neblina pelo Golden Gate ou levantava-se vento do mar. Estava a pôr as agulhas em álcool e a ordenar os seus frascos de remédios, quando Eliza entrou. O ajudante já saíra e nesses dias não tinham nenhuma Sing song girl a seu cargo, estavam sós em casa.
- Tenho uma coisa para ti, Tao - disse ela.
Então ele ergueu os olhos e, com a surpresa, o frasco caiu-lhe das mãos. Eliza usava um elegante vestido escuro com gola de renda branca.
Vira-a apenas duas vezes com roupa feminina quando a conhecera em Valparaiso, mas não esquecera o seu aspecto de outrora.
- Agrada-te?
- Agrada-me sempre - sorriu ele, tirando os óculos para admirá-la de longe.
- Este é o meu vestido de domingo. Vesti-o porque quero tirar um retrato. Toma, isto é para ti - e entregou-lhe um saco.
- O que é?
- São as minhas poupanças... para comprares outra menina, Tao. Pensava ir procurar Joaquín este Verão, mas não o farei. Já sei que nunca o encontrarei.
- Parece que todos viemos procurar alguma coisa e acabámos por encontrar outra.
- O que procuravas tu?
- Conhecimento, sabedoria, já não me lembro. Em vez disso encontrei as sing song girls e vê o descalabro em que estou metido.
- Como és pouco romântico, homem de Deus! Por delicadeza devias dizer que também me encontraste a mim.
- Ter-te-ia encontrado de qualquer forma, isso estava predestinado.
- Não me venhas com a história da reencarnação...
- Exactamente. Em cada encarnação voltaremos a encontrar-nos até resolvermos o nosso karma.
- Soa muito bem. Em todo o caso, não regressarei ao Chile, mas também não continuarei a esconder-me, Tao. Agora quero ser eu própria.
- Sempre foste tu própria.
- A minha vida está aqui. Ou seja, se quiseres que te ajude...
- E Joaquín Andieta?
- Talvez a estrela na testa signifique que está morto. Imagina! Fiz esta viagem tremenda em vão.
- Nada é em vão. Na vida não se chega a parte nenhuma, Eliza, caminha-se simplesmente.
- O que caminhámos juntos não está mal. Acompanha-me, vou tirar um retrato para enviar a Miss Rose.
- Podes fazer outro para mim?
Foram a pé e de mão dada até à Praça da União, onde se tinham instalado várias lojas de fotografia, e escolheram a mais vistosa. Na janela exibia-se uma colecção de imagens dos aventureiros de 49: um jovem de barba ruiva e expressão determinada, com a picareta e a pá nos braços, um grupo de mineiros em mangas de camisa, a vista fixa na câmara, muito sérios, chineses na margem de um rio, índios lavando ouro com cestas de trama fina, famílias de pioneiros posando junto das suas carroças. Os daguerreótipos estavam na moda, eram o vínculo com os seres distantes, a prova de que viveram a aventura do ouro. Dizia-se que, nas cidades do Leste, muitos homens que nunca tinham estado na Califórnia, se faziam retratar com ferramentas de mineiro. Eliza estava convencida de que a extraordinária invenção da fotografia tinha destronado definitivamente os pintores, que raras vezes acertavam com a parecença.
- Miss Rose tem um retrato dela com três mãos, Tao. Foi pintado por um artista famoso, mas não me lembro do nome.
- Com três mãos?
- Bom, o pintor colocou duas mãos, mas ela acrescentou outra. O seu irmão Jeremy quase morreu ao vê-lo.
Desejava colocar o seu daguerreótipo numa fina moldura de metal dourado e veludo vermelho, para a escrivaninha de Miss Rose. Levava as cartas de Joaquín Andieta para as perpetuar na fotografia antes de as destruir. Por dentro, a loja parecia a decoração de um pequeno teatro, havia cenários de caramanchões floridos e lagos com garças, colunas gregas de cartão, grinaldas de rosas e até um urso embalsamado. O fotógrafo era um homenzinho despachado que falava aos tropeções e andava aos saltinhos de rã, evitando os móveis do seu estúdio. Uma vez combinados os pormenores, instalou Eliza diante de uma mesa com as cartas de amor na mão e colocou-lhe uma vara metálica nas costas com um suporte para o pescoço, bastante parecida à que Miss Rose lhe punha duas lições de piano.
- É para não se mexer. Olhe para a máquina e não respire.
O homenzinho desapareceu atrás de um pano preto, um instante depois um clarão branco cegou-a e um cheiro a queimado fê-la espirrar. Para o segundo retrato deixou as cartas de lado e pediu a Tao Chi'en que a ajudasse a pôr o colar de pérolas.
No dia seguinte, Tao Chi'en saiu muito cedo para comprar o jornal, como fazia sempre antes de abrir o consultório, e viu os títulos a seis colunas: tinham matado Joaquín Murieta. Regressou a casa com o diário apertado contra o peito, pensando como daria a notícia a Eliza e como a receberia ela.
Ao amanhecer do dia 24 de Julho, depois de cavalgarem três meses pela Califórnia às cegas, o capitão Harry Love e os seus vinte mercenários chegaram ao vale de Tulare. Por essa altura já estavam fartos de perseguir fantasmas e de correr atrás de pistas falsas, o calor e os mosquitos tinham-nos posto de péssimo humor e começavam a odiar-se uns aos outros.
Três meses de Verão a cavalgar à deriva por aqueles montes secos, com um sol abrasador sobre a cabeça, era demasiado sacrifício para a paga recebida.
Tinham visto nas povoações os avisos oferecendo mil dólares de recompensa pela captura do bandido. Em vários deles, estava garatujado por baixo: "eu pago cinco mil", assinado por Joaquín Murieta. Estavam a cair no ridículo e só restavam três dias para terminar o prazo estipulado, se regressassem com as mãos vazias, não veriam um cêntimo dos mil dólares do governador. Mas aquele devia ser o seu dia de sorte porque, justamente quando já perdiam a esperança, deram com um grupo de sete desprevenidos mexicanos, acampados debaixo de umas árvores.
Mais tarde o capitão diria que usavam fatos e equipamentos de montar de grande luxo e que tinham os mais finos corcéis, razão mais do que suficiente para despertar as suas suspeitas, por isso se aproximou exigindo-lhes que se identificassem. Em vez de obedecerem, os suspeitos correram intempestivamente para os seus cavalos, mas antes de conseguirem montar, foram rodeados pelos guardas de Love. O único que ignorou olimpicamente os atacantes e avançou para o seu cavalo como se não tivesse ouvido a advertência foi aquele que parecia ser o chefe. Usava apenas uma faca de mato no cinto, as suas armas pendiam do cavalo, mas não chegou até elas porque o capitão lhe apontou para a testa a sua pistola. A poucos passos, os outros mexicanos observavam atentos, prontos a correr em auxílio do seu chefe ao primeiro descuido dos guardas, diria Love na sua exposição. De repente fizeram uma tentativa desesperada de fuga, talvez com a intenção de distrair os guardas, enquanto o chefe montava com um salto formidável no seu brioso alazão e fugia rompendo fileiras. Não chegou muito longe, no entanto, porque um tiro de espingarda feriu o animal, que caiu por terra vomitando sangue. Então o cavaleiro, que não era outro senão Joaquín Murieta, asseverou o capitão Love, começou a correr como um gamo e não tiveram outra alternativa senão descarregar as pistolas sobre o peito do bandido.
- Não disparem mais, já fizeram o vosso trabalho - disse, antes de cair lentamente, vencido pela morte.
Essa era a versão dramatizada da imprensa e não ficara nenhum mexicano vivo para contar a sua versão dos factos. O valente capitão Harry Love tratou de cortar de um golpe de sabre a cabeça do suposto Murieta.
Alguém reparou que outra das vítimas tinha uma mão disforme e partiram imediatamente do princípio que se tratava de Jack Três-Dedos, de modo que também o decapitaram e de caminho cortaram-lhe a mão má. Partiram os vinte guardas a galope rumo ao povoado mais próximo, que ficava a várias milhas de distância, mas fazia um calor infernal e a cabeça de Jack Três-Dedos estava tão perfurada pelas balas que começou a desfazer-se e deitaram-na fora pelo caminho. Perseguido pelas moscas e pelo mau cheiro, o capitão Harry Love compreendeu que devia preservar os despojos ou não chegaria com eles a São Francisco para cobrar a sua merecida recompensa, de modo que colocou cada um deles em frascos de genebra. Foi recebido como um herói: tinha libertado a Califórnia do pior bandido da sua história.
Mas o assunto não era, de modo algum, claro, como fez notar Jacob Freemont na sua reportagem, a história cheirava a conluio. Para começar, ninguém podia provar que os factos tivessem ocorrido como diziam Harry Love e os seus homens, e era no mínimo suspeito que, depois de três meses de busca infrutífera, tivessem aparecido sete mexicanos justamente quando o capitão mais precisava deles. Também não havia quem pudesse identificar Joaquín Murieta, ele próprio se apresentara para ver a cabeça mas não podia garantir que fosse a do bandido que conhecera, embora houvesse algumas parecenças, disse.
Durante semanas exibiram em São Francisco os despojos do presumível Joaquín Murieta e a mão do seu abominável sequaz Jack Três-Dedos, antes de os levarem numa viagem triunfal através da Califórnia.
As filas de curiosos davam a volta ao quarteirão e ninguém ficou sem ver de perto tão sinistros troféus. Eliza foi das primeiras a vê-los e Tao Chi'en acompanhou-a, porque não quis que passasse sozinha por semelhante provação, apesar de ter recebido a notícia com uma calma espantosa. Depois de uma eterna espera ao sol, chegou finalmente a vez deles e entraram no edifício. Eliza agarrou-se à mão de Tao Chi'en e avançou decidida, sem pensar no rio de suor que lhe empapava o vestido e no tremor que lhe sacudia os ossos. Entraram numa sala sombria, mal iluminada por círios amarelos que expeliam um bafo sepulcral. Panos pretos cobriam as paredes e, a um canto, tinham instalado um esforçado pianista, que martelava uns acordes fúnebres com mais resignação do que verdadeiro sentimento. Sobre uma mesa, também coberta de panos de catafalco, tinham colocado os dois fiascos de vidro. Eliza fechou os olhos e deixou-se levar por Tao Chi'en, certa de que as pancadas de tambor do seu coração se sobrepunham aos acordes do piano. Pararam, sentiu a pressão da mão do amigo na sua, aspirou uma golfada de ar e abriu os olhos. Olhou para a cabeça por alguns segundos e depois deixou-se arrastar para fora.
- Era ele? - perguntou Tao Chi'en.
- Já estou livre... - respondeu ela sem lhe soltar a mão.
Isabel Allende
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