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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHA DA LUZ / Quinn Taylor Evans
FILHA DA LUZ / Quinn Taylor Evans

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

 

 

 

 

 

Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
125
- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

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Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
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- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

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Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
125
- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

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Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
125
- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

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Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
125
- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

Nas fronteiras de Avalon, uma profetiza viaja entre o presente e o passado, entre a luz e as trevas, entre o mundo dos mortais e o da magia, entre o perigo de pérfidas batalhas e a glória de uma indescritível paixão!
Inglaterra, 1067
Cassandra de Tregaron herdou de seu pai, o mago Merlin, o dom de transportar-se livremente através do tempo e do espaço. Stephen de Valois, filho de William, o Conquistador, é um guerreiro destemido, determinado a derrotar o maligno combatente Malagraine. Unidos em uma missão que os leva às ruínas de um reino encantado destroçado, Cassandra e Stephen se confrontam com as poderosas forças das trevas que ameaçam o mundo mortal, e com o desafio de um amor que transcende o infinito...

 

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Capítulo I

Londres, 1067

- Diga-me, filha. O pensamento veio a Vivian, tão facilmente como se o pai estivesse a seu lado, no grande salão da Torre de Londres, e conversasse com ela. Conte-me
do que eles estão falando.
Havia uma estranha urgência na voz, conforme os pensamentos se conectavam aos de Vivian, como se ele sentisse algo mais, que não dissesse. Embora pudesse ler-lhe
os pensamentos daquela maneira especial que os ligava, o pai fechara os seus para ela.
Vivian parou, nas sombras do grande salão da recém-construída Torre de Londres, a fortaleza onde Guilherme da Normandia, agora rei da Inglaterra, estabelecera a
corte. Procurou pelo marido.
Vivian era agora conselheira do rei, como seu pai, Mer-lim, fora certa vez conselheiro de outro rei. Contudo, o bebê a quem dera à luz fazia pouco tempo exigia sua
atenção
ainda mais que o rei Guilherme. Naquela noite, porém, ela se vira atraída para a corte por razões que não compreendia, mas sentia, ao longo de suas terminações nervosas,
como uma premonição a pairar numa presença pesada no ar e a surgir em inquietantes visões no tecido de uma tapeçaria.
- Muita coisa mudou, papai, desde o ano em que Guilherme tomou o trono inglês - Vivian murmurou, sabendo que seus pensamentos se ligariam aos dele, mesmo que o pai
não estivesse ali para ouvi-la. - E, ao mesmo tempo, pouca coisa mudou. Os barões saxões são dissimulados e pouco dignos de confiança. Há rumores constantes de complôs
contra o rei. Os barões e cavaleiros de Guilherme se mostram inquietos e querem voltar à Normandia. Rorke gostaria que deixássemos este lugar, mas eu não posso.
Sou necessária aqui. Sinto isso.
Realmente, muito havia mudado. Os brasões e os emblemas da nobreza saxã que certa vez adornavam as paredes tinham sido substituídos por tapeçarias de trama elaborada
e estandartes de cores brilhantes da Casa de Normandia, de Anjou, Pontiers, e de meia dúzia de outras nobres famílias européias, cujos cavaleiros agora eram titulares
de terras na Inglaterra, como pagamento pelos serviços prestados a Guilherme.
Que notícias há?, o pai perguntou, ansioso, e Vivian soube a razão da pergunta porque também as vira nas brilhantes meadas de seda tecidas na tapeçaria.
- Não há nenhuma notícia. Os homens que o rei mandou para oeste foram vencidos. Teme-se o pior.
Uma discussão acalorada irrompera entre os cavaleiros de Guilherme. Muitos eram a favor de enviar mais homens para a fronteira oeste, enquanto um número igual era
contra isso e falava abertamente do desejo de retornar à Normandia, pois grande parte possuía famílias lá, as quais eles não viam fazia mais de dois anos. Era perigoso
conversar, com os barões saxões a ouvirem atentamente e a armar seus próprios esquemas, caso Guilherme deixasse a Inglaterra.
Tochas queimavam presas às paredes, o cheiro ácido de gordura animal a se mesclar com a fumaça pungente de lenha, o suor frio e a carne quente de tantos corpos aglomerados
no salão, agitados em discussões.
Guilherme, o Conquistador, autoproclamado rei da Inglaterra, sentava-se à mesa na plataforma erguida bem acima daqueles que discutiam com tanta veemência, no salão.
Era um homem robusto, a largura dos ombros destacada ainda mais pelas camadas do rico cetim e veludo de sua túnica. Em seus olhos, luzia a ambição que lhe conquistara
o trono inglês. A seu lado, a rainha Mathilde, recuperada agora, depois do nascimento de seu terceiro filho, sentava-se em pensativo silêncio.
Do outro lado do rei, estava seu amigo e leal cavaleiro Rorke FitzWarren. Ao ver o forte e belo perfil do marido, Vivian sentiu uma onda de orgulho e desejo. Não
tinham momentos de intimidade desde o nascimento do filho. E ainda havia os problemas tão difíceis nas terras do Oeste.
Por longas horas, a cada noite, ele tratava com Guilherme das questões de Estado. Corriam boatos de que, se Guilherme
resolvesse retomar à Normandia, nomearia Rorke FitzWar-ren chanceler, em sua ausência, com absoluta autoridade.
Vivian nunca interviera, com seus poderes, no que dizia respeito à posição de Rorke perante Guilherme, mas não deixaria que fosse atraído para as intrigas políticas.
Ao observá-lo, percebeu que ele parecia calmo, sentado à direita de Guilherme, os dedos a segurar frouxamente uma caneca de bebida. Contudo sentiu que seu marido
estava atento e em estado de alerta a cada coisa que era dita, a cada mudança de expressão e movimento entre aqueles que se encontravam na corte.
Ela captou também o perigo que de repente estava muito perto. Vivian, então, aproximou-se silenciosamente até postar-se atrás da cadeira de Rorke. Pousou a mão em
seu ombro, ao mesmo tempo num gesto de advertência e de instinto em protegê-lo, instantes apenas antes que as portas do grande salão se abrissem com violência.
Rorke saltou da cadeira de imediato, empurrando Vivian para trás conforme levava a mão à espada. Pelo salão, outras armas foram sacadas, enquanto vários guerreiros
entravam sem esperar que fossem anunciados.
Suas armaduras de batalhas estavam cobertas de lama. Eram um grupo rasgado, maltratado e ensangüentado, as faces manchadas de sujeira. Estacaram diante dos degraus
do palanque do rei.
Um dos guerreiros avançou. Os demais se afastaram para deixá-lo passar. Sua cota de malha estava empurrada para trás dos ombros. Viam-se os elos finos de metal torcidos
quebrados, e vários manchados de sangue e arrebentados onde ele fora ferido. Seus cabelos negros estavam emplas-tados na cabeça, as feições mal discerníveis debaixo
da máscara de suor, sujeira e sangue. Só seus olhos eram reconhecíveis, olhos doces, certa vez cheios de gentileza e amizade, quando Vivian precisara de um amigo,
mas que agora se mostravam sombrios devido à trágica perda de um irmão muito amado.
Gavin de Marte postou-se em silêncio diante de seu rei, e seus homens o rodearam. Tinham cavalgado durante dias e sob as mais terríveis condições até chegar a Londres.
As manchas de sangue e o estado da armadura falavam por si só do horrível conflito nas terras ocidentais.
Através do salão, Vivian avistou a cascata dourada dos cabelos de sua irmã, como um farol radiante. Mas, mesmo que não a tivesse visto, seus pensamentos teriam se
conectado daquela maneira antiga que ambas partilhavam com o pai.
Algo pavoroso aconteceu, os pensamentos de Brianna murmuraram, cheios de aflição. Tal como você viu na tapeçaria.
Sim, Vivian respondeu mentalmente. Eu também senti. - Toda sua atenção concentrou-se em Gavin de Marte, que deu um passo em frente e se aproximou do rei.
- Trouxe um presente das terras do Oeste, milorde - disse, a voz tensa de fraqueza e dor pelos muitos ferimentos, mas que não conseguia disfarçar a raiva subliminar
que Vivian sentia dentro dele, como um arco retesado em ponto de ruptura. - Enviado pelos rebeldes galeses.
De dentro do manto, tirou uma cesta. Segurando-a diante de si, avançou. Ajoelhou-se e apresentou-a ao rei.
Mais do que perigo, Vivian sentiu um horror indescritível diante da visão que a invadiu com tamanha clareza como se a tampa da cesta tivesse sido tirada e o conteúdo,
revelado.
- Rorke... - ela murmurou, a voz em parte cautelosa, em parte aflita, o olhar preso à cesta.
Ele se virou, e seus olhos estreitaram-se.
- O que é? Algum perigo para o rei?
Os dedos de Vivian se fecharam com firmeza sobre o braço do marido, como se buscasse forças.
- É perigoso para todos nós. - Seus brilhantes olhos azuis encontraram os dele. E, naquele momento, antes que a tampa da cesta fosse tirada e o conteúdo revelado
a todos, ela murmurou, convicta: - Não precisará da sua espada, meu marido.
Rorke então se voltou e olhou para a cesta. Guilherme levantou-se e desceu os degraus do palanque para o piso do salão. Encarou com firmeza seu cavaleiro e, em seguida,
estendeu a mão e tirou a tampa da cesta. Pegou o presente que lhe fora enviado.
Era redondo e estava enrolado num tecido sujo e manchado. Tinha o tamanho de uma colméia de abelhas. Ao desenrolar o embrulho, o conteúdo caiu e rolou pelo chão.
Ao redor, pelo salão, saxões e normandos arquejaram de horror e repulsa ao fitar a cabeça decepada de John Curthose, cavaleiro e emissário de confiança de Guilherme,
enviado para negociar a paz com o príncipe João.
Senhoras presentes gritaram de pavor. Poladouras, o monge que criara Vivian desde bebê, resmungou uma prece apressada, enquanto todos ao redor reagiam em choque,
tomados de repulsa e indignação.
A rainha deixou escapar um gemido estrangulado, abafado pela revolta enfurecida de Stephen de Valois, o filho bastardo de Guilherme.
John Curthose praticamente criara Stephen até este alcançar idade bastante para montar um cavalo e cavalgar ao lado do pai.
Rorke FitzWarren lhe ensinara tudo que ele sabia sobre a cavalaria. John lhe ensinara sobre o mundo além do campo de batalha. Um mundo de cultura bem mais antigo
que o seu; de idiomas, história e filosofia.
Rorke tornara o jovem um guerreiro. John moldara a mente do jovem guerreiro e a enchera de conhecimento. Agora, o amigo querido e mentor fora brutalmente assassinado.
- Por Deus! - Stephen explodiu, o choque a transformar-se em sofrimento, depois em raiva, conforme avançava por entre os outros cavaleiros de Guilherme. - Esses
rebeldes pagarão pelo que fizeram!
Voltou-se para Gavin de Marte.
- Quantos homens foram perdidos?
- Dez dos meus próprios - Gavin respondeu, olhando de Stephen para o rei. - Todos os homens de sir John estão mortos. Foram pendurados numa árvore para as aves carniceiras
os devorarem até os ossos. Isso - Apontou para o presente horrendo enviado ao rei - foi entregue
no nosso acampamento na manhã em que os encontramos massacrados.
Stephen era da mesma altura do pai, porém com aquela agilidade animal da juventude em cada músculo. Os olhos tinham a mesma cor de âmbar, os cabelos de um castanho
mais vibrante do que os de Guilherme. Havia bem mais do que simples traços de pai para filho, no mesmo queixo forte e nas sobrancelhas num arco agudo. Mas a semelhança
terminava ali. A boca era bela e sensual como a da mãe, a criatura cujo único pecado fora ser da plebe e não possuir terras ou títulos como dote. Embora Guilherme
a amasse com a paixão de seus quinze anos, fora proibido de desposá-la pelo próprio pai, Roberto da Normandia, que também fizera dele um bastardo, mas que o nomeara
seu legítimo herdeiro.
Vivian sabia que Guilherme se enxergava, tal como ele mesmo fora, em Stephen. Pai e filho estavam vinculados pelas circunstâncias do nascimento. Stephen era o primogênito
e amado como nenhum dos outros filhos de Guilherme. Mais que qualquer um deles, Stephen de Valois era filho da paixão e do desejo, em quem o rei via a dor do passado
e vislumbrava a esperança para o futuro.
- Isso não pode ficar assim! - Stephen esbravejou, expressando o que cada cavaleiro e guerreiro no salão pensava. - O senhor deve enviar um exército para as terras
do Oeste.
- Discutiremos o assunto numa outra hora.
- Outra hora? - Stephen retrucou, chocado. - Noutra hora, as próximas cabeças que rolarão podem estar dentro destas próprias paredes. O senhor precisa agir agora.
- Não trataremos disso neste momento! - Guilherme rebateu, num tom de voz mais baixo. Era uma advertência indisfarçável diante da tolice do filho em falar tão abertamente
na presença de toda a corte, que incluía os barões saxões, os quais nada mais queriam além de ver Guilherme expulso da Inglaterra de uma vez por todas. Não faria
diferença se os rebeldes galeses do oeste fossem a causa.
Stephen, porém, não se deixaria reprimir. Durante meses houvera boatos de problemas naquela região fronteiriça da Inglaterra, numa distância não tão remota. As terras
do Oeste ficavam apenas a uns poucos dias de viagem de Londres.
Primeiro o rei enviara John Curthose, e, depois, Gavin de Marte. E houvera aquela carnificina. De que prova maior seu pai precisava? A frustração e a raiva impeliam
Stephen a falar talvez de maneira menos prudente do que deveria. Frustração de que apenas ele, entre os cavaleiros do pai, fosse constantemente subestimado em questões
de estratégia militar, embora tivesse conquistado as esporas de cavaleiro cinco anos antes, com muito menos idade que qualquer dos outros cavaleiros de Guilherme,
inclusive Rorke FitzWarren. Raiva de que cada palavra, cada gesto, cada decisão que fosse tomada era um lembrete de seu nascimento espúrio. Não era considerado tão
digno como os outros cavaleiros e nobres a que o rei confiava seu reino. E essa raiva o tornava precipitado.
- Exijo que o senhor me envie para as terras do Oeste! - Stephen disse ao rei, cabeça erguida, olhos estreitados, num desafio mudo ao pai. Seus punhos estavam cerrados
com força, cada músculo duro de raiva, como se estivesse pronto para a luta. - O senhor me fez comandante do seu exército. É meu dever proteger o rei e vingar a
morte do seu cavaleiro.
- É meu comandante sob a minha autoridade - Guilherme retrucou, por entre os dentes, para que só o filho ouvisse. - Não está em condições de exigir nada. E faria
melhor em se lembrar que o que possui é devido à minha generosidade. - Disse isso com a esperança de dissuadir Stephen de tanta precipitação, mas a frase causou
efeito oposto.
- O que eu possuo - Stephen declarou alto e claro para que todos ouvissem - é meu por direito de sangue derramado em incontáveis campos de batalha, lutando a seu
lado, milorde. Não menos que o sangue dos outros que o servem, mas com o qual o senhor agora se senta no trono da Inglaterra.
Um súbito silêncio pelo salão.
- Por Deus! Você se esqueceu! - Guilherme reagiu, furioso, e esmurrou a mesa diante de si, fazendo as canecas de metal tinirem. - Os cavaleiros que o servem o fazem
graças à minha bolsa.
- Não esqueci de nada! - retrucou Stephen. - É o senhor que se esqueceu!
Em meio aos outros cavaleiros, um guerreiro avançou. Tarek ai Sharif, o mercenário que lutara ao lado de Guilherme e que se casara com a irmã de Vivian, Brianna,
pousou a mão no braço do jovem cavaleiro, num gesto de advertência.
Stephen livrou-se com um safanão, ignorando o aviso e se aproximando com ar atrevido do pai. Furioso, arrancou os galões e a túnica com o emblema de Valois, com
que Guilherme o condecorara quando ele conquistara as esporas e a espada de cavaleiro.
Jogou-os no chão, aos pés do trono. Então, virou-se e saiu do salão, a mão agarrada na empunhadura da espada e com um olhar de relance para os cavaleiros de Guilherme,
caso eles ousassem interceptá-lo.
Em sua fúria cega, saiu pelo corredor e chocou-se com uma jovem, quase jogando-a ao chão. Praguejando, estendeu a mão para segurá-la. Por sob a manga do vestido,
sentiu a tensão repentina dos músculos e tendões delicados, e, então, a força surpreendente quando ela tentou se desvencilhar.
Por um momento, a raiva dirigida ao pai ficou esquecida. Stephen franziu a testa ao olhar para a moça. Não estava vestida como as outras mulheres da corte. Não usava
os ricos brocados e cetins. A manga do vestido sob sua mão era de um azul brilhante e macio como veludo, o resto escondido pelo manto cinza, que ondulava em torno
de seu corpo es-guio. O manto parecia quase diáfano, reluzente de uma luz oculta, e brilhava sobre as pedras do chão, onde se arrastava, aos pés da jovem.
O capuz escorregara para os ombros, revelando cabelos negros como a meia-noite, que escorriam em ondas pelas costas, as belas feições sob a pele de um marfim acetinado
e os olhos mais extraordinários que Stephen já vira. Eram da cor de violeta, como raras pedras preciosas. E assustados.
- Quem é você? - indagou ele. - O que está fazendo aqui?
- Solte-me! - ela murmurou, aflita, tentando libertar-se. - Por favor! - implorou. - Precisa me soltar!
De súbito, um fulgurante lampejo iluminou o corredor sombrio, como se as tochas tivessem explodido nas paredes. A intensidade da luz pareceu penetrar dolorosamente
pelo cérebro do cavaleiro e queimar-lhe os olhos. Então, expandiu-se, rodeando a jovem.
Stephen tentou puxá-la para trás, para longe daquele círculo de luz, certo de que ela seria queimada pelo calor flamejante. Em vez disso, sentiu-se impelido para
a frente, empurrado rumo à luz.
Não havia nada em que segurar, a não ser o pulso delicado em que sua mão se fechara. Então, a luz circundou a ambos. Tremeu e pulsou conforme se tornava mais brilhante
e mais quente. Queimou-lhe a pele e pareceu lhe arrancar o ar dos pulmões.
Mesmo que ainda se agarrasse à jovem, Stephen não conseguia mais vê-la. Sob a luminosidade intensa, ela era apenas uma silhueta dourada. Então, a luz pareceu implodir,
engolindo a si mesma.
Stephen sentiu que caía, parecendo ter sido atingido por um soco que o jogasse ao chão. Só que o chão não mais existia. Figurava-lhe haver sido lançado por algum
tipo de abertura e impelido por uma passagem de luz ofuscante.
Seguia aos trambolhões, a se revirar, escorregando e deslizando através de um vórtice de imagens e sons. Tudo passava por ele numa velocidade imensa, num vívido
borrão de cor e intensas sensações. Miríades de sons ressoavam como se milhões de vozes gritassem ao mesmo tempo.
Era como se ele fosse um pedaço de madeira pego por uma corrente poderosa, sendo sugado para um caos de luz, incapaz de livrar-se, incapaz de parar o que estava
acontecendo, agarrado àquela mãozinha delicada como a uma tábua de salvação.
Então, da mesma forma repentina com que começara, o vórtice de luz, cor e som desapareceu. Stephen foi arremessado sobre uma superfície dura e áspera, as beiradas
agudas das pedras a lhe cortarem as mãos e a lhe arranharem o rosto.
Doía respirar, e ele sentiu frio. Seus músculos pareciam dilacerados. Tinha a sensação de ter os ossos partidos, como se houvesse sido brutalmente surrado.
Ouvira a morte descrita por cavaleiros e guerreiros que encontrara nos campos de batalha. Se não fosse pela dor intensa que pulsava em seu corpo a cada batida do
coração, julgaria estar morto.
Onde estava? A fortaleza do rei fora atacada?
As imagens caóticas cessaram gradualmente de espiralar ao redor. Por fim, Stephen conseguiu puxar o ar para os pulmões. Tentou mover braços e pernas, e arrependeu-se
de imediato, conforme a dor latejou em cada músculo e articulação. Estava tão fraco como um recém-nascido.
Quando o mundo pareceu se acomodar mais uma vez, Stephen flexionou os dedos e descobriu que não mais segurava a jovem pelo pulso. Então, lentamente, conseguiu abrir
os olhos.
Foi-lhe penoso focar a vista e aguçar os ouvidos. Novamente sentiu as pedras frias sob o corpo, não mais duras e ásperas, porém macias e polidas.
Estaria no salão, em Londres? Parecia extremamente mudado. Nenhuma tocha queimava nas paredes. Não se ouvia o ruído dos cavaleiros e guerreiros da corte de Guilherme.
Tudo estava escuro e silencioso.
Ao se virar devagar, sentiu algo leve como uma pluma roçar-lhe a face. E logo depois, sentiu de novo. Olhou para cima e viu que flocos de neve caíam por um buraco
no teto. Branca e silenciosa, a neve penetrava por aquela abertura e cobria as paredes desabadas como um reluzente manto, escondendo a ruína e a decadência. Aquela
não era a torre do rei, em Londres.
O que acontecera? Onde estava? Que lugar era aquele?
Gradualmente, a força voltou-lhe ao corpo, o suficiente para que pudesse se levantar.
Em passos lentos, Stephen percorreu as ruínas. Era um lugar antigo, frio e silencioso, e sombras se estendiam além do feixe de luz pálida que se infiltrava pelo
teto arrebentado. Contudo, mesmo sob aquela parca luminosidade, ele conseguiu discernir que aquele lugar fora, certa vez, um grande e imponente castelo.
As pedras eram todas de cor clara, lisas e polidas sob o musgo e o cascalho que se acumulara pelos séculos. Os painéis das aberturas das janelas abriam-se para um
grande pátio cercado por edificações mais compridas e baixas. E, ao redor de tudo, havia uma muralha ligada a torres de pedra, construída daquela mesma pedra descorada.
As torres luziam sob a neve silenciosa, como sentinelas fantasmagóricas que ainda guardassem aquele lugar antigo. Stephen, porém, sentia bem mais do que via, algo
oculto espreitava sob o manto de neve e destroços.
Com o instinto de todo guerreiro que tivesse pisado num campo de batalha e sentido o cheiro da morte, sabia que uma luta feroz se desenrolara, em algum momento,
dentro daquelas muralhas.
Avistou os sinais denunciadores: as beiradas enegrecidas das pedras claras, onde o fogo varrera o castelo; jarras de metal espalhadas e pedaços de cerâmica quebrada;
e, no grande aposento principal, os restos esfarrapados de alguns estandartes perdidos e os esqueletos desintegrados dos últimos defensores que bravamente haviam
feito um derradeiro esforço para vencer uma luta impossível.
Antigas armaduras de batalha jaziam caídas ao redor das ruínas decadentes daquilo que parecia ser uma enorme mesa redonda. Doze couraças de peito e doze espadas
estavam sobre as pedras do chão, como se os guerreiros sem forças simplesmente tivessem se deitado para descansar por algum tempo, antes de retomar a batalha.
Lentamente, ele aproximou-se da mesa. A superfície se mostrava muito danificada e manchada pela ação dos elementos que haviam se apossado do castelo nos séculos
depois da batalha final. Velhas inscrições gravadas na superfície da pedra ainda eram visíveis.
Stephen correu os dedos levemente pelo tampo da mesa. Havia figuras de guerreiros em painéis esculpidos que contornavam a borda. Dentro do anel de painéis, outro
anel de letras, formando palavras escritas em latim, contudo indecifráveis.
Afastou os detritos de lado, mas, sob a luz débil, não conseguia lê-las claramente. Então, de repente, puxou a mão para trás, num gesto brusco. Embora fosse insuportavelmente
frio dentro do castelo arruinado, seus dedos formigavam como se ele tivesse tocado algo quente e vivo.
A neve se tornara uma chuva gelada. O vento aumentou, e Stephen ouviu o distante ribombar de trovões. No alto, pela abertura no teto, os raios faiscavam. O fulgor
clareava as paredes enegrecidas de fuligem.
Contudo, dentro da fortaleza, havia um silêncio estranho, de expectativa, como naqueles momentos muitas vezes sentidos logo antes de uma batalha, quando parecia
que o coração de cada guerreiro cessava seu bater frenético. Ele se voltou e viu a jovem que encontrara no corredor do lado de fora da corte de Guilherme.
Sob o repentino coruscar de um raio através da rachadura do teto, sua pele era pálida como fino marfim, como se tivesse saído de uma daquelas pedras antigas. Seus
olhos eram de um tom extraordinário de violeta, a iluminar as maçãs altas do rosto; e os cabelos, da cor do céu noturno. Em torno do pescoço, ela usava um colar
com pedras em que haviam sido esculpidas gravações incomuns. Não parecia uma criatura deste mundo. Mas, quando Stephen estendeu a mão e tocou-a, o braço esguio era
de carne e osso, quente e muito real.
- Precisa sair deste lugar agora - a jovem murmurou, aflita. - É perigoso para você estar aqui.
Sua outra mão fechou-se sobre a dele, e novamente Stephen sentiu aquele formigar incomum de calor. Ao contato, foi tomado outra vez pela mesma repentina sensação
de alheamento e confusão, como se estivesse do lado de fora da corte de Guilherme, pouco antes de o mundo parecer explodir a seu redor. E de novo surpreendeu-se
com a força que percebia naquele pulso delicado, como se ela pudesse livrar-se com um leve gesto. Mas não o fez.
- Por favor - a moça implorou outra vez. - Não deveria estar aqui.
- Mas estou. Quem é você? - indagou ele. - Que lugar é este?
- É apenas um sonho - ela retrucou. - Não existe. Os dedos de Stephen se fecharam em torno do pulso da jovem.
- Existe. Diga-me! - Puxou-a contra si. Ela não era um sonho. Era de verdade, quente, de carne e osso.
O manto pareceu rebrilhar sobre os ombros delicados e farfalhar em torno do corpo esguio. Sob aquele tecido pálido, reluzente, os seios fartos comprimiram-se contra
ele, e os quadris delicados moldaram-se às formas de Stephen.
Diante de um contato tão íntimo, ela ergueu a cabeça, os olhos violeta a escurecerem até que pareceram tão negros e insondáveis como a noite; arquejou, o hálito
doce a exalar pelos lábios entreabertos. E, naquele som trêmulo, ele sentiu uma repentina e poderosa paixão.
Então, bem além das muralhas em ruínas e das torres com o pendão de algum rei havia longo tempo desaparecido, Stephen ouviu um barulho distinto, tão familiar a ele
como respirar. Sons de uma batalha. Puxou a jovem consigo para a abertura da janela do grande aposento.
Acima da tempestade, ouviu o tinir de aço, o tropel de cavalos, os gritos agonizantes, em meio à tormenta que crescia. O fedor repugnante de morte subia pelo vale,
além das muralhas do castelo, carregado pela fúria do vento. Guerra.
A jovem fechou a mão mais uma vez em seu braço, e Stephen se voltou. Mesmo que fosse um sonho, sabia que lugar era aquele.
Camelot, o reino lendário do soberano que certa vez regera toda a Bretanha.
A tempestade desabou, e um raio explodiu perto da janela. Em vez de tentar livrar-se, Stephen sentiu que a mão da jovem se fechava sobre a sua. Ela o puxava na direção
da luz.
Mais uma vez, experimentou aquela intensa fulguração e um caos de visões e ruídos a irromper em torno. E, em seguida, percebeu que caía, e que a mão da jovem escapava
da sua...
Stephen sentiu as pedras duras e frias que lhe arranharam as mãos e a face. Levantou-se devagar do chão. As tochas do corredor fumegaram e tremeluziram e, em seguida,
queimaram com mais força. Conforme seus sentidos se focavam, ele ouviu vozes familiares a discutirem no salão, ali perto. Reconheceu os guardas que se postavam à
entrada da corte. Tudo lhe era familiar, exatamente como quando deixara o salão. Mas, dessa vez, a jovem não estava em parte alguma.
Aquilo fora real? Ou ele tinha apenas imaginado?
Abriu os dedos devagar. Fechada em sua mão, tão apertada que deixara uma marca na palma, estava uma das pedras reluzentes do colar que ela usava.
Quando a segurara, naquele lugar antigo, o colar se rompera. A pedra que havia em sua mão era prova de que Stephen não a imaginara! Mas, se não fora imaginação,
então, o que acontecera?
Olhou para a pedra polida e clara. A imagem esculpida na superfície era a figura de um homem empunhando uma arma. Para aqueles que acreditavam nas antigas runas
e no destino que previam, era o símbolo do guerreiro.
Farrapos de névoa, como véus acinzentados, envolviam as árvores da floresta, nos arredores de Londres, ao nublado alvorecer. Havia uma friagem no ar que prenunciava
o outono e logo o inverno, em seus calcanhares. As folhas da vegetação tinham perdido o verdor, tingidas de amarelo nas beiradas, desmaiando em tons de ouro e laranja,
ainda presas aos galhos, no alto, como pequenas bandeirolas douradas.
Os cavalos relinchavam nos estábulos, impacientes, o vapor da respiração a se condensar no ar gelado. Sentiam a jornada próxima e estavam inquietos para escapar
do confinamento de suas baias.
As espadas de batalha tinham um brilho fosco no amanhecer cinzento. Havia colchões enrolados, presos às selas. Duas carroças carregavam provisões. Quando acabassem,
viveriam do que conseguissem na terra.
- Você vai contra as ordens do rei - Rorke FitzWarren avisou Stephen, frente a frente, entre os guerreiros reunidos para seguir viagem, a ansiedade a lhes aquecer
o sangue.
Acompanhara o jovem amigo desde a fortaleza da Torre de Londres. Um por um, noite afora, outros guerreiros e cavaleiros também haviam deixado a fortaleza, a se agruparem
para dormir na floresta. A comida e as carroças tinham vindo da cidade, pois sempre havia algum mercador cobiçoso disposto a ganhar moedas de ouro, não importava
a hora.
Stephen não pegara de volta os galões e a túnica com o emblema de Valois, cujo domínio e título Guilherme lhe dera, um ano antes, por mérito. Usava, em vez disso,
uma túnica negra e calças justas. Seu escudo em formato de pipa, que pendia da sela, também era negro, com uma única marca cor de sangue traçada na diagonal, e,
abaixo, a palavra latina Desdicado. Uma palavra - desditoso - que proclamava orgulhosamente seu nascimento bastardo.
- Eu não estou contrariando ordem alguma - retrucou Stephen ao fechar o cinto da bainha de sua espada com gestos duros, furiosos. Então, lançou um olhar a Rorke
e, lentamente, um sorriso surgiu em sua face. Um sorriso astuto e feroz, muito semelhante ao do pai, quando Guilherme se defrontava com chances insustentáveis num
campo de batalha. - O rei disse apenas que eu nada poderia exigir.
Muito bem, não exijo nada. - Terminou de amarrar a última correia que prendia as armas ao alcance da mão, na sela. - Como comandante do exército do rei, jurei protegê-lo
contra qualquer ameaça ou perigo. Sinto que existe uma ameaça ao reino. Portanto é meu dever perseguir e destruir essa ameaça.
- Sua própria interpretação das palavras do rei - Rorke resmungou, sabendo muito bem que tal atitude não faria nenhum bem a Stephen caso Guilherme preferisse interpretar
de outra forma.
- As palavras exatas do rei no dia em que me honrou com o posto.
- E se, como chanceler do rei, eu o proibisse de ir ao País do Oeste? - perguntou Rorke, preparado para fazer isso se pudesse impedir um confronto perigoso entre
pai e filho, embora já soubesse a resposta.
O sorriso de Stephen desapareceu, substituído por outra expressão que Rorke conhecia bem no pai; a expressão implacável e resoluta quando uma decisão fora tomada
e não poderia ser mudada.
- Não proíba - Stephen avisou. - Eu não gostaria de perder um pai e meu melhor amigo no mesmo dia. Mas, se deve ser, que seja. - Sem deixar dúvida, repetiu: - Vou
para o País do Oeste. Não tente me impedir. - Sua veemência amainou. - Você, com certeza, dentre todos, compreende por quê.
- Compreendo realmente. Tudo o que peço é que espere um tempo.
- Para quê? Para meu pai encontrar dúzias de razões e
me manter em Londres, enquanto manda seus outros cavaleiros para longe a fim de assegurar o reino? E quanto a John Curthose? Era um homem honrado. Não merecia morrer
como morreu. - Stephen meneou a cabeça, a boca apertada numa linha rígida. Prendeu o colchão atrás da sela. - Guilherme não irá me declarar seu filho nem me permitirá
que procure meu próprio destino. - Puxou as correias com fúria. - Fiz tudo que ele me pediu. Nada pedi em troca, a não ser a chance de me comprovar um cavaleiro
de valor, mas ele me nega a oportunidade quando surge. Tal como nega minha existência.
Terminou de amarrar o catre de enrolar. Olhou para o amigo e mentor.
- Preciso fazer isso - disse, a voz de repente tensa ao se recordar do encontro da noite anterior. Fora um encontro que não compreendia, mas que, de certa forma,
sentia que fazia parte de sua jornada.
A pedra polida com a figura do guerreiro gravada estava amarrada no ressalto da sela, um amuleto daquele encontro. Segurou-a entre o polegar e o indicador, sentindo-lhe
a calidez, como se ainda conservasse o calor da jovem. Então, sua expressão se fechou, a ocultar seus pensamentos.
- Preciso fazer isso - Stephen repetiu. - E sei que meu pai tentaria impedir se soubesse.
- Alguns poderiam chamar suas ações de traição - Rorke ponderou. - No mínimo, é uma tolice. Você leva apenas poucos homens consigo.
- Quase o mesmo número que você levou quando se aventurou ao País do Norte - Stephen retrucou, a boca a se curvar num sorriso. Então, ficou muito sério. - Os homens
que cavalgam comigo são os melhores guerreiros. Você ajudou a treiná-los. Viajaremos com pouco peso e rapidez, como os rebeldes que procuramos.
Rorke conhecia aquele rapaz como a si mesmo. Sabia também os demônios internos contra os quais ele lutava, pois se confrontara com a mesma batalha em razão de igual
nascimento bastardo. Seu pai, contudo, não era um rei, que não poderia fazer escolhas com o coração; seu pai não tinha coração. Não havia nada que Rorke pudesse
dizer que convencesse Stephen, e ambos sabiam disso.
Apertou o cavaleiro nos braços, desejoso de seguir com ele, para protegê-lo, como o jovem o protegera contra o inimigo tantas vezes.
- Vá com Deus, meu amigo, e cuidado. Eu o protegerei aqui em Londres, tanto quanto puder.
Stephen apertou os braços de Rorke com as mãos fortes. Em sua expressão, havia uma profunda gratidão.
- Obrigado.
Assim que Rorke se afastou para falar com os outros cavaleiros, uma figura delicada apareceu num torvelinho de névoa. Depois, conforme a bruma se desviava na direção
oposta, levada por alguma invisível corrente de ar, Stephen avistou lady Brianna, a esposa de seu amigo Tarek ai Sharif.
Seus cabelos eram como a luz do sol em meio à bruma, e os olhos, da cor das clareiras das florestas. O amanhecer cinzento pareceu envolvê-la como se ela fosse parte
da névoa, não uma criatura desta terra. Seus passos eram hesitantes; o olhar, cauteloso.
Não disse nada, a princípio, mas se aproximou devagar do cavalo. O animal, nervoso, poderia facilmente machucá-la com um único passo. Mas Brianna não pareceu notar
ou ficar preocupada. Estendeu a mão e pousou-a no pescoço musculoso do cavalo. Quase de imediato, o animal se acalmou, e resfolegou, contente, numa baforada de vapor.
Nunca deixava de intrigar Stephen o efeito que todas as mulheres daquela família causavam nos animais. Como se fossem espíritos afins, os bichos pareciam pressentir
que nada tinham a temer daquelas senhoras.
Brianna acariciou o focinho aveludado do cavalo, a murmurar palavras suaves, ininteligíveis. O garanhão baixou a cabeça e pareceu ouvir. Ela então sorriu e ergueu
os olhos para Stephen.
- É um dom de todos com o meu sangue. Temos uma unicidade com a natureza e tudo que faz parte dela. - Deu a volta ao garanhão, até se postar ao lado de Stephen.
Mas continuou a acariciar o pescoço do animal. - Rorke não conseguiu dissuadi-lo de partir - ela murmurou, não como pergunta, mas como uma afirmação, como se tivesse
ouvido toda a conversa. - Sei que você deve ir. Vi nas meadas tecidas da tapeçaria. - Sua voz era triste. - Você faz parte disso agora, como ela, a jovem dos olhos
cor de violeta.
Stephen não contara a ninguém de seu encontro no corredor, da mulher incomum com cabelos cor da meia-noite e de olhos de um violeta extraordinário, envolta num manto
reluzente; nem de sua experiência quando a tocara, como se tivesse adentrado um outro mundo.
- A semelhança é forte na minha família - Brianna murmurou, com um sorriso sutil, ao lhe conhecer os pensamentos. - O nome dela é Cassandra - continuou, o sorriso
substituído por uma expressão triste. - É minha irmã.
O olhar de Stephen se estreitou. Se a jovem era irmã de Brianna, então era também filha de Merlim. Ele conhecia a lenda, como quase todo o mundo, do grande e sábio
conselheiro do monarca inglês, que fora supostamente aprisionado e mais tarde morrera, depois da morte do rei Arthur. Alguns diziam que Merlim era simplesmente um
homem muito instruído, mas outros afirmavam que era bem mais do que isso. Um homem de talentos e poderes incomuns, extraídos das forças da natureza.
Stephen vira tais poderes com os próprios olhos. Vivian de Amesbury possuía habilidades de cura; podia emendar carne dilacerada e ossos quebrados. Tinha a capacidade
de ver os acontecimentos antes que sucedessem, e o poder do fogo como uma força vital que vivia dentro de si.
Brianna apenas recentemente descobrira a plena extensão dos próprios poderes. O poder de conhecer o pensamento dos outros sem necessidade de palavras, e, o mais
extraordinário de todos, o dom da transformação. Ao extrair os poderes da Luz que fluía em seu sangue, como no de sua irmã, ela era capaz de assumir muitas formas
diferentes.
A mãe era Ninian, A Dama do Lago. Fora ela que transportara a espada Excalibur para o mundo entre os mundos e a dera a Merlim, depois da morte de Arthur. Ninian
juntara-se a Merlim naquele mundo porque ele não poderia viver no seu.
Lá, naquela prisão mágica, Merlim fora pai de três filhas, que haviam sido enviadas para longe, a fim de viver no anonimato, no mundo mortal, para que pudessem ficar
a salvo dos poderes das Trevas.
Brianna captou os pensamentos de Stephen. Seus olhos seguiram os dele e então se arregalaram ao ver a runa amarrada no ressalto da sela.
- Onde conseguiu essa pedra? - Antes que Stephen respondesse, Brianna sentiu a resposta. - Cassandra - murmurou ao tomar a runa entre os dedos. - Não temos notícias
dela faz muitos anos. - Diante da surpresa de Stephen, ela explicou: - Cassandra pensou que nossos pais a tinham abandonado. Quando Merlim se recusou a permitir
que ela voltasse, ficou magoada e furiosa. Depois, negou-se a aceitar sua herança. Nunca voltou ao mundo da bruma.
Correu o dedo pela superfície polida da pedra, como se visse mais do que a imagem ali gravada.
- Não sabemos que poderes ela possui.
- Eu a vi. Ela está aqui - Stephen revelou, sem ver alguma razão para não contar isso a Brianna. Ela acreditaria naquilo que outros não poderiam crer. - A runa é
dela.
Brianna meneou a cabeça, ainda a segurar a pedra entre os dedos.
- Senti a presença de Cassandra assim que vi a pedra.
- Talvez agora ela resolva voltar.
Ao erguer os olhos, Brianna tinha uma expressão distante, como se enxergasse algo que os outros não poderiam.
- Seja qual for a razão que a trouxe, ela se foi, e sem uma palavra, nem mesmo para nossa mãe.
- Para onde? Brianna o encarou.
- Voltou para o País do Oeste.
- Como é possível? Eu a vi faz duas noites, do lado de fora da corte real, e são muitos dias de viagem em terreno difícil e regiões perigosas até as terras ocidentais.
Se... aquilo que vi foi real.
Stephen aprendera, nos encontros anteriores com os poderes da Luz e das Trevas, que nada era o que parecia ser. Não se podia confiar em tudo que se via, pois as
forças assumiam muitas formas e usavam disfarces. As cicatrizes mais recentes que ele carregava eram prova do poder daquelas forças.
Brianna sentiu a frustração e a confusão de Stephen ao lhe captar os pensamentos: o encontro com Cassandra, a incrível jornada que fizera, as imagens da fortaleza
arruinada do castelo.
- Foi muito real. Sinto a força vital de minha irmã na pedra. Se o seu encontro fosse apenas uma ilusão, eu não captaria a presença dela.
Brianna ficou a imaginar o que trouxera Cassandra a Londres, depois de todos aqueles anos. Tão perto da família, recusara-se a qualquer contato. Uma coisa sabia
com certeza: o encontro de Cassandra com Stephen era parte daquilo que estava tecido na tapeçaria.
32
- Sua jornada já começou - murmurou. Estremeceu como se sentisse algo que não pudesse ver, só perceber. Um distúrbio nas forças da Luz que equilibravam seu mundo
e protegiam o dos mortais do perigo.
As Trevas cresciam, tal como sua irmã Vivian vira na tapeçaria. Mas uma coisa Brianna ainda não sentira: que poderes imortais Cassandra possuía.
Teria sua irmã se afastado dos poderes da Luz e se voltado para as Trevas? Por mais que se concentrasse na essência que perdurara na pedra, como um resquício do
calor que era parte da presença de Cassandra, Brianna não conseguiu captar nada acerca dos poderes da irmã. E percebeu que isso fazia parte da jornada que esperava
Stephen de Valois.
- Haverá um imenso perigo - Brianna disse a ele, incapaz de sentir exatamente de onde viria o perigo. Esperava pelo menos lhe dar um aviso que o ajudasse a se proteger.
- Não sei em quem você pode confiar. Mas a missão representa bem mais que vingar a morte de seus companheiros e assegurar o trono de Guilherme contra o ataque rebelde.
De dentro das dobras do manto, tirou um pequeno rolo de tecido. Era fino, não mais que uma fita, e da cor da bruma cinzenta. Segurou o punho de Stephen e amarrou
a fita em torno.
- É um amuleto - explicou. - Os fios são os mesmos daqueles tecidos na tapeçaria. Mas, se for colocado no pulso de Cassandra, ela ficará sem poderes, como qualquer
mortal.
- Diante da expressão duvidosa de Stephen, Brianna avisou:
- Não duvide de mim, guerreiro. Pois falo a verdade.
Isso o protegerá. Pode bem ser a única proteção, pois, para o que virá, sua espada de nada servirá.
Stephen olhou para a fita estreita. Parecia delicada e frágil, tal como um talismã dado por uma jovem a um cavaleiro antes de um torneio. Contudo era forte como
o aço da melhor espada encontrada nos impérios do Oriente Médio. A cor mudara. Não era mais cinza de um lado e azul do outro, mas se alterava constantemente, a reluzir
em nuances intermediárias.
- Sabe de que perigo pode me proteger? - indagou Stephen.
Nos olhos tristes, viu a resposta: de Cassandra, a própria irmã de Brianna.
- Você precisa encontrar o antigo Oráculo. Foi roubado pelos poderes das Trevas, quinhentos anos atrás, quando Merlim foi banido do reino. Cassandra é a única que
pode achá-lo. Só ela pode usar seu poder.
Hesitou por um instante.
- Há mais. Nem mesmo Merlim consegue sentir o verdadeiro coração de Cassandra. É possível que ela tenha se voltado para os poderes das Trevas. A fita de amuleto
lhe dará forças para o que precisar ser feito, pois possui o poder de Merlim combinado com o de minha irmã e o meu.
Ela não precisava explicar o que deveria ser feito.
- O que é o Oráculo? Como o reconhecerei? Brianna esboçou um sorriso.
- Saberá quando o vir, se tiver sorte e força o bastante para triunfar. É o cristal antigo que contém o conhecimento do Universo. Quem possuir o oráculo terá acesso
a esse conhecimento e o poder de alterar o futuro da humanidade. Certa vez o cristal pertenceu a Merlim. Mas foi roubado e escondido durante o grande cataclismo,
quando Arthur, o antigo rei, foi traído e morto.
- O que pode me dizer sobre a ameaça nas terras ocidentais?
- É real. O príncipe galés uniu-se aos rebeldes, juntamente com os saxões que fugiram depois da morte do rei Harold, no campo de Hastings. Ele não pretende devolver
as terras ocidentais a seu pai.
- Pode haver paz?
- Não sei. Os poderes das Trevas se fortalecem nas terras do Oeste, pois foi lá que tudo começou, muito tempo atrás. O futuro está em gestação, e nem mesmo Merlim
pode ver o resultado.
- E quanto a João de Tregaron? - perguntou Stephen, pois fora na fronteira das terras de Tregaron que seus amigos cavaleiros tinham sido atacados e mortos.
- É ambicioso. Procura apenas resguardar a fortuna. Fará o que for necessário para proteger o que é seu. - Brian-na sentiu, contudo, que Tregaron não era a maior
ameaça. - Se for forte e astuto, você pode lidar com ele.
Stephen percebeu a hesitação em sua voz e perguntou:
- Sente alguma coisa mais? Ela concordou.
- Algo que não consigo discernir claramente. Mas existe outra ameaça, muito mais perigosa: o perigo das Trevas.
Não de Tregaron, mas de alguém próximo a ele. Mais que isso não posso lhe dizer, pois não me foi revelado. - Depois de um momento de hesitação, Brianna continuou:
- Precisará de alguém para guiá-lo pelas terras do Oeste. Posso levá-lo até lá, pois vejo o que você não pode ver. Ele meneou a cabeça, e a resposta veio firme:
- Não posso permitir. E mesmo que pudesse, seu marido jamais deixaria. Terei inimigos suficientes nas terras do Ocidente, não preciso fazer mais um daquele que é
um dos meus amigos mais próximos.
- Mas você tem apenas as orientações de sir Gavin e dos homens que voltaram com ele. Podem não se lembrar corretamente de tudo. É perigoso viajar sem guia em terras
desconhecidas...
Gentilmente, mas com firmeza, Stephen recusou.
- Não, lady Brianna, eu a proíbo. Se o perigo é como disse, não a colocarei em risco também. Além disso - acrescentou -, sua imagem não estava tecida no painel da
tapeçaria.
Ela não podia negar a verdade da afirmação. Aquele era o destino de Stephen e o de Cassandra. As imagens mágicas, ainda não claramente definidas, só poderiam ser
descobertas por Stephen de Valois e por sua irmã.
- Muito bem - concordou, relutante.
Da clareira, veio o chamado para que todos montassem seus cavalos. O dia já nascera e a bruma se erguia lentamente da floresta. Precisavam partir enquanto fosse
tempo, antes de serem vistos pelos guardas do rei, das muralhas da fortaleza. Stephen saltou para a sela.
Em torno de seu pulso, mais uma vez o amuleto luziu num tom de violeta profundo. Era cálido ao toque, como se estivesse vivo. Seu olhar pensativo encontrou o de
Brianna.
- O que acontecerá a esta fortaleza e a todos aqui dentro se eu fracassar?
Sem que fosse preciso ser dito, ela sabia que os pensamentos de Stephen estavam no pai, a quem amava, mesmo que o desafiasse. Poderia mostrar raiva e ressentimento,
até desobediência perante o mundo, mas em seu coração tinha um amor profundo pelo homem que o gerara.
Brianna meneou a cabeça e disse, num tom solene:
- Você não pode falhar.
Com a armadura de batalha e as armas escondidas, usando apenas calças e túnicas simples e a transportar apetrechos de caça para que nada os identificasse como soldados
e cavaleiros do exército do rei, Stephen e seus homens emergiram da floresta assim que a névoa se ergueu. Rumaram para Londres.
Uma vintena de homens fortes a cavalo, juntos, simplesmente vestidos ou em plena armadura, chamaria atenção. E a guarda de Guilherme patrulhava regularmente as rotas
de chegada. Assim, seguiram em pequenos grupos de não mais de dois ou três, com os capuzes puxados sobre as faces.
Sir Kay, recém-chegado da Normandia, era um jovem cavaleiro a quem Stephen treinara. Era o último do grupo, com a face manchada de sujeira para esconder as feições,
e roupas encardidas que exalavam um cheiro horrível. Poderia passar por ladrão, não fosse seu berço nobre. Conduzia a carroça de provisões, com seu cavalo a seguir
atrás.
Levou quase duas horas para que todos atravessassem a cidade. Reuniram-se num pequeno bosque nos arredores da velha estrada romana que ligava Londres a cidades e
vilas a oeste. Sir Kay foi o último a chegar.
Tinham ainda várias horas e era preciso colocar distância entre o grupo e Londres, tanto quanto possível, antes que a ausência de todos fosse descoberta. Como mais
uma precaução para não serem seguidos, o grupo rumou para o interior pela floresta em vez de usar a velha estrada romana.
Continuaram a viajar bem depois do cair da noite, a faixa da estrada a guiá-los a distância, sob a luz da lua crescente, que brincava de se esconder entre as nuvens.
Não acenderam fogueiras, e comeram pão, queijo e tiras de carae-seca que cada um levava num alforje, na sela. Na manhã seguinte, antes que a neblina se erguesse
e o céu clareasse, seguiram em frente.
Evitaram vilas, aldeias e fazendas, para que ninguém soubesse que haviam passado por aquele caminho. Como na primeira noite, ao escurecer, não fizeram fogo.
No terceiro dia de viagem, Stephen forçou cavaleiros e montarias até a exaustão antes de parar, ao lado de um pequeno riacho, à beira dos bosques, pouco antes do
pôr-do-sol. Naquela noite, acenderam fogueiras, enquanto vários homens se embrenhavam na floresta para caçar. Sir Kay foi tirar as provisões da carroça. Ninguém
reclamara, mas a promessa de carne quente era tentadora para todos.
Então, um grito agudo cortou o acampamento. Armas foram empunhadas. Vários dos homens de Stephen, que se dirigiam ao bosque para caçar voltavam, mas igual número
recuou, ocultando-se na floresta, de olhos atentos no acampamento.
- Tire as mãos da garota, seu monstro sujo! - uma voz berrou. - Ou eu lhe arranco as tripas como um bacalhau!
Ao redor de todo o acampamento, os homens de Stephen convergiram para a carroça de provisão e para sir Kay. Não fora a voz dele que haviam ouvido.
Sir Kay estava na traseira da carroça, entre os engradados de galinhas espalhados pelo chão, os sacos de grãos, os pães enrolados, as frutas secas e os queijos.
Conforme as tochas iluminavam a clareira, todos depararam com uma cena inusitada.
Uma velha bruxa o defrontava. Tinha metade de sua altura e era seca como um junco. Os longos cabelos brancos emolduravam-lhe o rosto como uma nuvem prateada. A mão
ossuda, cheia de veias salientes, agarrava-se a um cajado no qual ela se apoiava. Os ombros eram curvos e frágeis sob os trajes rasgados. Na outra mão, segurava
uma faca longa e fina, com a ponta mirada com precisão mortal na área vulnerável logo abaixo do cinto de sir Kay, como se tivesse toda a intenção de cumprir a ameaça.
Sir Kay estava plantado no lugar como se tivesse criado raízes, e não ousava nem mesmo respirar. Mas segurava o braço de uma moça esguia.
Era miúda e igualmente vestida com simplicidade como a velha bruxa, mas terminava aí a semelhança. Talvez não tivesse mais de catorze ou quinze anos, o rosto ovalado
a assumir os ângulos esculpidos que a tornariam uma beleza. A pele era pálida e luminosa, quase translúcida como uma pérola, à luz das tochas. Seus olhos, arregalados
e cheios de susto, chamavam a atenção, pois eram da cor de águas-marinhas, nem azuis nem verdes, mas de uma nuance incomum entre as duas.
Sem dizer palavra, ela lutava para libertar-se das garras de sir Kay e. Conforme se debatia, o capuz do manto caiu em seus ombros. Seus cabelos soltaram-se e faiscaram
à luz das tochas. Eram de uma cor profunda, rara, quente, de mel, com toques dourados.
Stephen ordenou a seus homens que baixassem as armas.
- São as minhas tripas que a bruxa quer arrancar - sir Kay reclamou, por entre os dentes cerrados.
- Eu deveria ajudá-la - Stephen retrucou. - Solte a garota.
- Estavam escondidas na carroça. E a velha me ameaçou com a faca. Deus sabe do que é capaz.
- Bem mais do que você pode imaginar ou gostaria de experimentar - Stephen assegurou. E repetiu: - Solte a garota.
Totalmente confuso, sir Kay obedeceu. A jovem fugiu para trás da carroça, e a velha senhora finalmente abaixou a faca. Sua expressão serenou, abrandada por um leve
sorriso. Voltou-se para Stephen e, à luz das tochas, os homens viram que seus olhos eram leitosos, a cor azulada completamente obstruída pela cegueira.
- Suponho que não seja preciso perguntar como chegou à carroça - murmurou Stephen.
A velha soltou uma risada.
- Só se fosse um tolo, Stephen de Valois, e isso você não é. Talvez cabeça-dura e impetuoso, mas não um tolo.
Sir Kay olhou de um para outro, incrédulo. Os outros homens começaram a voltar ao acampamento.
- Conhece esta velha?
- Sim - concordou Stephen, dividido entre a raiva e a frustração. - Eu a conheço. Chama-se Meg.
- Meg? A guardiã de lady Vivian?
- Fui a guardiã dela certa vez! - Meg exclamou, orgulhosa, ao se voltar para a voz como se enxergasse. - Agora que Vivian cumpriu com o seu destino, não sou mais
necessária.
- Nem é necessária aqui - Stephen declarou. - Voltará a Londres.
- Ah, guerreiro... - Ela suspirou. - Não fará isso, pois exigiria mandar um dos seus homens comigo, e não pode; terá necessidade de todos nas terras do Ocidente.
Também precisa de alguém para guiá-lo até lá.
Sir Kay bufou e soltou uma gargalhada.
- Você, velha bruxa? Um guia? Cego?
Meg se virou e encontrou, com notável precisão, a carne vulnerável com a ponta da faca, como se não fosse cega, mas enxergasse tão bem quanto ele.
- Nasci no País do Oeste. Conheço cada vale, rio, pedra. E não necessito destes olhos para ver o que preciso.
Stephen a afastou gentilmente.
- Não preciso perguntar quem a enviou. Meg lançou-lhe um sorriso significativo.
- Não era destino nem de Vivian nem da irmã dela aventurar-se pelo País do Oeste. Mas nada havia na tapeçaria que dissesse que uma velha não poderia acompanhá-lo.
- E a garota? Não pode falar? - sir Kay perguntou, num tom mais atrevido do que deveria.
Os olhos vagos de Meg se estreitaram.
- O nome dela é Amber. Perdeu a fala faz muitos anos, desde que a sua vila foi atacada e a família, assassinada. - Então, franziu a testa, como se tivesse captado
um pensamento que ele não expressara em voz alta. - Tome cuidado, guerreiro - ela advertiu. - Posso me aproximar sem ser pressentida do seu catre e enterrar esta
faca entre as suas costelas antes que você saiba o que aconteceu, se tocar a garota novamente. Ela não é para você.
- Deixe-a em paz - Stephen acrescentou seu aviso ao da velha. - A garota não será tratada como uma acompanhante de campanha.
- Terminarei de descarregar a carroça depois - sir Kay apressou-se a dizer, depois pegou dois engradados de galinhas e levou-os para a fogueira do acampamento, a
uma distância segura.
Stephen voltou-se para a velha Meg.
- Ele não causará problemas à garota - assegurou. - Pela manhã, vocês retornarão a Londres. Um dos meus homens irá acompanhá-las até os limites da cidade.
Meg deu de ombros.
- Fugiremos e os seguiremos. Você não pode impedir. E terá um homem a menos do qual precisará desesperada-mente nas semanas que virão.
Stephen sabia que Meg falava a verdade. E se tentasse amarrar-lhe as mãos e os pés, ela fugiria do mesmo jeito, pois era descendente de uma encantada e um mortal.
Embora seus poderes fossem limitados, podia ainda encontrar maneiras de iludi-lo e a seus homens, e ele não tinha tempo para tais coisas.
- Deixaremos você e a garota no próximo vilarejo - Stephen a avisou, sem querer assumir o fardo de seguir com a velha e a jovem. - Estarão seguras lá. Por enquanto,
podem ficar na carroça para seu uso. - Lançou um olhar na direção do céu, onde as nuvens ocultavam as estrelas. - Ficarão protegidas do mau tempo. - Então, virou-se
e regressou ao acampamento. Meg bufou. -
Veremos, guerreiro. Veremos.

Capítulo II

Acabana ficava no fim da trilha, contornada de árvores e rodeada pela floresta. Erguia-se ali fazia tanto tempo que ninguém nem mais se lembrava de quando. Acima
do som do vento nas árvores, o ribombar estrondoso do oceano ressoava, conforme as ondas se arrojavam contra os penhascos antigos, onde a floresta encontrava o mar.
Chamavam-no de "mar zangado", como um caldeirão que fervesse e borbulhasse abaixo dos rochedos gotejantes, recobertos de musgo esverdeado, enquanto acima, empoleiradas
num alto promontório, semelhante a uma velha megera desdentada cujos ossos branqueavam ao sol, estavam as ruínas de Tintagel, uma antiga fortaleza com origens que
se perdiam no mito.
Alguns diziam que o lendário rei Arthur nascera ali. Dava vista para o mar ocidental, que alguns chamavam de grande lago, na direção de uma ilha visível, apenas
ocasionalmente, através da bruma e das nuvens. O antigo nome da ilha era Avalon.
As ruínas de Tintagel estavam vazias, habitadas agora apenas por aves marinhas. Guardavam os segredos da fortaleza, empoleiradas como sentinelas ao longo do topo
das muralhas esboroadas, chamando umas às outras antes de mergulhar de seus poleiros sobre os cardumes, entre as rochas e lagoas formadas pela maré, na pesca de
peixes e crustáceos deixados para trás com o recuo das águas.
Uma espiral de fumaça desenrolou-se pela chaminé no teto de palha da cabana que ficava à sombra de Tintagel. Carregava um odor estranho e pungente de algum caldo
antigo.
Era ali que agricultores, aldeões, pescadores e mateiros vinham em busca de poções curativas e tisanas da Velha, para aliviar alguma enfermidade ou ferimento incapacitante.
Outros vinham por razões muito diferentes. Esgueiravam-se silenciosamente através da floresta, aparecendo à porta sozinhos ou em grupos de dois ou três, à procura
de ajuda e orientação à velha maneira, do jeito dos ancestrais, que acreditavam nos poderes da terra, do vento e do céu.
Seus pedidos eram sempre atendidos de um modo ou de outro. Elora não mandava ninguém embora. Mas havia alguns a quem ela se recusava receber, aqueles em quem não
confiava.
Muitos já a tinham visto na floresta, a se apoiar pesadamente num cajado, a recolher musgo e liquens, reunindo uma porção de coisas mortas e emboloradas no saco
de pano que pendia do cinto atado em sua cintura. Mas havia outros que alegavam que a criatura que viam não era nenhuma
velha bruxa encarquilhada, e sim uma jovem de beleza in-comum que rapidamente desaparecia quando os avistava.
Dentro da cabana, um enorme lobo branco ergueu a cabeça, de repente, de sobre as patas, as orelhas empinadas na direção da porta, feita de peles de animal esticadas
sobre uma moldura de madeira.
- Sim - disse uma voz vindo de perto do fogão. - Ouvi também, meu amigo. Temos uma visitante. - A voz não era de velha nem de jovem, mas uma voz atemporal que suspirou
como o som do vento. - A garota, Lodi, do castelo de Tregaron. Veio pedir mais pós para a patroa.
O lobo branco ergueu-se, o tufo grosso de pêlos em seu pescoço a se eriçar.
- Lodi é inofensiva - a voz perto do fogo, de alguém invisível até então, finalmente tomou forma, quando aquela que morava ali saiu das sombras. - É a patroa dela
que pensa ser uma feiticeira das artes perdidas. - Bufou de impaciência. - Sortilégios com misturas de ervas, teias de aranha e terra de sepulturas profanadas. Lady
Margeaux acredita que é apenas uma questão de encontrar a poção certa para lhe dar o poder que procura.
Começara com poções curativas para distribuir entre os aldeões de Tregaron. Depois, pós para aliviar o humor negro de lorde João de Tregaron, seu irmão. Mais recentemente,
fora até a cabana da floresta, em pessoa, à procura de outras poções que pudessem lhe dar o poder da intuição.
Ao voltar para a cabana, certa tarde, não fazia muito tempo, a sensitiva encontrara Margeaux de Tregaron já lá dentro,
entre os jarros de cerâmica e frascos que continham ervas e pós medicinais. Embora a dama alegasse inocência, ela percebera que algumas ervas preciosas e alguns
pós tinham sido roubados.
A perda não a preocupara, mas sim a fixação crescente daquela mulher nos poderes que julgava as misturas possuírem.
- Precisamos encontrar alguma coisa para mandar de volta com a garota - disse, em voz alta, para o lobo branco. - Algo que distraia a sra. de Tregaron por algum
tempo.
Virou-se para a prateleira de jarras e frascos, conforme uma forma bloqueava a luz no limiar da porta. Enquanto o lobo branco assumia uma postura protetora entre
a mulher e a entrada, a sensitiva exclamou, numa voz que parecia tão velha como o tempo:
- Entre, menina! O que procura?
Contudo, com os olhos sábios da cor do mais profundo violeta, ela já sabia o que a garota viera pedir.
Lodi entrou hesitante na cabana. Seus olhos demoraram um instante até se acostumarem à penumbra. Sempre a surpreendia que aquele fosse um lugar tão agradável. Nem
escuro e úmido, nem recendendo a odores podres, horríveis, porém aconchegante e acolhedor, os aromas penetrantes a passar pela abertura da porta. Mas as criaturas
que habitavam a cabana com a Velha sempre lhe pregavam um susto.
Agora, ao fechar a porta atrás de si e seus olhos se acostumarem à luz débil de dentro, inteiriçou-se de repente ao ver o enorme rato gerbo que passou pela velha
para se esconder no canto do fogão.
Ela já vira ratos no depósito de grãos e despensas em Tregaron, mas o tamanho daquela criatura sempre a espantava. Tinha as feições pontudas de uma ratazana, porém
era do tamanho de um gato grande. Não fugira de medo, mas a observava das sombras. Parecia que seus olhos brilhavam de uma cor cinza-prateada que a transpassavam.
A garota aproximou-se com relutância.
- Venha, menina. Não seja tímida. - Com um leve sorriso, a velha emendou: - Não vou comê-la. - Viu o olhar cauteloso que sombreou as feições da jovenzinha. - Não
deve acreditar em tudo que escuta. Diga-me, o que a traz à floresta?
- Minha patroa procura um fortificante - Lodi explicou, tirando uma bolsa das dobras do manto.
Os olhos da Velha se aguçaram. Sabia que a bolsa continha peças de ouro, pagamento para os pós e poções. Ouro que seria dado para aqueles que precisavam, depois
que a garota fosse embora, pois Margeaux de Tregaron era incapaz de generosidade e taxava os agricultores de Tregaron com impostos que os levavam à miséria.
- Que tipo de fortificante? - a Velha perguntou ao se voltar para o caldeirão que fervia e borbulhava no fogão e espalhar lavanda sobre o caldo fervente. - O que
aflige sua patroa?
Mesmo antes que a garota falasse, a Velha captou as palavras e franziu o cenho.
- Não é doença - Lodi explicou. - Ela quer um fortificante físico, uma poção que lhe devolva a aparência de juventude. - Num gesto hesitante, colocou a bolsa de
moedas sobre a mesa próxima.
- E quanto aos poderes dela? - a Velha perguntou. - Ouvi dizer que sua patroa se considera uma grande feiticeira. Que necessidade tem de uma velha como eu?
- Todo dia minha patroa se olha no espelho e vê uma nova linha ou marca. E está muito preocupada, principalmente agora.
A Velha franziu a testa.
- Por que está assim preocupada agora?
A mocinha olhou ao redor, como se as paredes pudessem ter ouvidos.
- Porque ela não é casada. Está muito ansiosa por isso. Incita lorde João para juntar seu exército ao dos outros príncipes galeses que planejam um ataque. Mas se
o rei Guilherme invadir as terras do Oeste com todo o seu exército, como invadiu a Inglaterra, ela está determinada a se preparar para fazer uma aliança vantajosa.
Uma ruga profunda vincou a testa da Velha. Naquela manhã mesmo, tivera uma visão muito incomum. Cortara a mão por acidente, ao colher ervas raras na floresta. Sangrara
muito. Ao retornar à cabana, um pouco de sangue pingara na pequena bacia de água, quando fora limpar o ferimento.
Na mancha escarlate que se formara, com o sangue mis-turando-se à água, ela tivera uma visão: guerreiros armados que não usavam emblemas, montados em grandes cavalos
de batalha e banhados em sangue. Porém não previra os planos ambiciosos de Margeaux. Pela primeira vez, seus próprios poderes tinham lhe falhado.
- Onde será esse ataque? - a Velha indagou, curvando os dedos sobre a palma da mão, onde o corte ainda não cicatrizara.
- Na planície de Brodmir, à boca do vale. Os conselheiros de lorde João dizem que é o lugar perfeito para encurralá-los. Serão todos mortos, é claro, como foram
os primeiros.
Com os lábios rígidos numa linha, a Velha colocou dois sacos de pó na mão da garota.
- Leve isto para sua patroa - instruiu.
- Irá recuperar sua juventude e beleza? Se não, tenho medo que ela fique muito zangada.
A Velha concordou.
- Diga a sua patroa que deve ser misturado com precisão; duas partes do pó azul com uma parte do pó branco, e cozido lentamente até que se torne líquido. Depois,
precisa esfriar.
- Vai funcionar? - Lodi perguntou, com uma expressão incrédula.
- Sim, vai - a Velha respondeu com um gesto da mão. - Agora, vá embora.
Viu a garota se virar para sair e sentiu também quando hesitou e ia apanhar a bolsa de moedas de volta, como a patroa a instruíra a fazer.
- Deixe a bolsa e vá embora - a Velha murmurou, baixando a voz a um resmungo. - Está escurecendo. Não vai querer ser pega pela noite, na floresta, sozinha.
Diante do aviso, Lodi saiu correndo da cabana, deixando a bolsa sobre a mesa. A Velha parou de mexer o caldeirão e voltou-se para olhar a garota, pela porta que
ela deixara aberta, na pressa.
O enorme gerbo desaparecera. Em seu lugar, transformado, estava o lobo branco, que rosnou baixinho.
- Sim, Fallon - a dona disse com voz aflita. O lobo a encarou com aqueles olhos sábios, prateados. A Velha também se transformara, assumindo outra vez sua verdadeira
forma, de uma mulher jovem e delicada, de beleza incomum, com cabelos da cor das asas de um corvo e olhos violeta.
- Você precisa ir - ela ordenou ao lobo. O ar estremeceu ao redor, parecendo conter segredos sombrios. - Os soldados do rei Guilherme devem ser avisados do ataque.
Em seus pensamentos, rememorou a visão daquela manhã, os guerreiros cobertos de sangue, e aquele que os conduzia sem nenhum emblema sobre a túnica ou escudo, apenas
as cores negras que usava e a palavra, uma só, que vertia sangue de seu escudo: Desdicado.
Stephen e seus homens tinham acampado dentro da boca estreita do vale. Havia água fresca e muito pasto para os cavalos. A caça fora proveitosa na floresta. Mesmo
assim, ele se sentia inquieto, como antes de uma batalha, com aquele inexplicável ímpeto de energia que parecia lhe queimar a pele e que o impedia de sentar-se ao
lado da fogueira com seus homens.
Sir Kay e John de Lacey aproximaram-se.
- A garota e a velha sumiram.
- Onde as viram pela última vez? - indagou Stephen.
- Pouco antes de acamparmos. Pensei que a velha precisava de um momento de privacidade. Não tirei os olhos dela por mais de um instante.
- Um instante é tudo de que ela precisa - Stephen retrucou, com secura, pois, durante os últimos dias, ele e Meg tinham firmado uma aliança nada fácil: Stephen não
tentaria mandá-la de volta para a Inglaterra, e ela não tentaria transformar seus homens em pedras, o que acreditava plenamente que pudesse ser capaz de fazer.
- Em que direção foram vistas?
- Perto do grande aglomerado rochoso por que passamos. Ela foi para trás de uma pedra enorme.
- Uma pedra atrás da qual você não a veria - Stephen murmurou ao adivinhar a esperteza da mulher, cega como era, a iludir seus guardas.
- Lamento muito - disse sir Kay.
- Lady Vivian gosta bastante daquela velha. Você terá muito que lamentar mesmo se algum mal acontecer a ela. - Fez meia-volta com o cavalo. - Voltarei antes que
a lua esteja no meio do céu.
- Irei junto - disse John de Lacey. - A região é desconhecida e perigosa.
- Fique com os outros - ordenou Stephen. - Um só é um alvo menos visível que dois. Encontrarei a velha e a garota. Não demorarei. - Guiou o cavalo para fora do acampamento.
A lua oferecia pouca luz ao subir lentamente do horizonte.
Stephen marcou o caminho, memorizando as formações rochosas incomuns ou uma curva peculiar de terra sob o pálido luar. O País do Oeste parecia apresentar muitas
peculiaridades. Então, avançou por um grupo de árvores e deparou com um panorama incomum.
Acostumara-se a ver enormes pedras durante a viagem, mas aquela era uma disposição inusual. A configuração o fez puxar as rédeas. Em vez de amontoadas ou empilhadas
uma sobre as outras, como se algum gigante as tivesse jogado na base da colina, aquelas pedras estavam postadas de pé, como menires.
Eram enormes, pelo menos da altura de dois homens, escuras e reluzentes ao luar. Rochas igualmente grandes estavam dispostas como dolmens sobre o topo de vários
pares de pedras de pé, formando um amplo círculo aberto no terreno plano do vale.
Stephen, então, viu a garota, Amber, primeiro, parada do lado de fora do círculo de pedras, ao abrigo de um dos menires. Meg encontrava-se dentro do círculo, a cabeça
jogada para trás, os braços abertos.
O cavalo recusou-se a avançar. Bufou e refugou quando Stephen tentou forçá-lo a ir em frente. Por fim, ele desmontou e amarrou as rédeas do garanhão num galho. Continuou
a pé. Ao chegar mais perto das pedras, ouviu a voz da velha Meg que entoava palavras ininteligíveis em uma estranha cadência.
Stephen aproximou-se de onde estava a garota, chamando-a baixinho para não assustá-la. Ela se voltou. Seus vívidos olhos azuis pareciam claros como pedras-da-lua,
os cabelos como ouro escuro ao luar. Tremia, pois a noite estava fria, e nem ela nem Meg usavam seus mantos. Stephen mandou que Amber voltasse e o esperasse perto
do cavalo. Então, lentamente, aproximou-se do círculo de pedras.
- Sei que está aí, guerreiro - Meg disse suavemente. - Aproxime-se com muito cuidado ou irá assustá-la. - Sentiu a pergunta não formulada e explicou: - A criatura
magnífica do outro lado do círculo de pedras.
Era surpreendente o calor suave dentro do círculo, ele sentiu ao entrar, como se o vento não chegasse ali, embora houvesse enormes vãos entre os menires. Conforme
Stephen se aproximou da velha, viu por fim a criatura da qual ela falara.
Era um magnífico lobo branco, maior que qualquer um que ele já vira. Estava do lado oposto do círculo, dentro do espaço dos menires azuis mais ao norte. Assim que
Stephen se postou ao lado da velha Meg, o olhar prateado do lobo cravou-se nele.
Stephen já vira aquela mesma expressão nos olhos de um animal, antes que atacasse. Não esperava que a velha fosse deparar com um animal selvagem. Desejou ter trazido
a espada que deixara na sela, mas sacou o punhal de caça da bainha do cinto. Meg ergueu a mão e segurou-o pelo pulso com a facilidade e certeza de quem enxergava.
- Não faria nenhum bem - murmurou. - A criatura está protegida pelo círculo de pedras e não pode ser morta.
- E eu não estou protegido dentro do círculo - Stephen retrucou com sarcasmo.
- Não precisa ter medo. A criatura veio avisá-lo.
Os pêlos se eriçaram na nuca de Stephen, num alarme instintivo. As antigas cicatrizes em seu ombro, conseguidas num encontro com uma criatura das Trevas, formigaram
como se recentemente curadas. Cada músculo ficou tenso.
- Que aviso?
- De grave perigo - respondeu Meg. - A não mais que dois dias de viagem daqui. Haverá um ataque. Você e seus homens estarão inferiorizados em número, pelo menos
em dez para um, como estavam os cavaleiros que vieram antes de você.
- O lobo lhe disse isso?
- O lobo é o mensageiro. Trouxe a mensagem de outra pessoa.
Os olhos de Stephen se estreitaram.
- Que jogo é esse?
- Jogo nenhum, guerreiro, mas assunto mortalmente sério. Você e seus homens correm grave perigo. Muitos morrerão, a menos que ouça o aviso e tome precauções.
- Precauções? Contra um exército dez vezes maior? Talvez você devesse perguntar ao lobo como isso pode ser feito - sugeriu, com ironia e consternação.
Meg deu de ombros.
- É você o guerreiro. Cabe a você determinar. - Então, um sorriso lento curvou-lhe a boca. - Mas não existe nenhuma regra que diga que você deva encontrar esse inimigo
em campo aberto de batalha.
- Quem mandou a criatura? - perguntou Stephen.
Meg sorriu. Ao fazer a pergunta, ele aceitara a mensagem como verdadeira.
- Você a conheceu, guerreiro, no reino perdido. Minha jovem patroa, lady Cassandra.
- Onde acontecerá? - Stephen quis saber, mas, ao se virar, o lobo branco se fora como se tivesse desaparecido na bruma que lentamente se erguia em torno das pedras,
até que uma nuvem envolveu todo o círculo.
- Você foi avisado - Meg o relembrou e chamou a garota, Amber, ao se voltar e sair do anel de pedras. - Faça o melhor.
Stephen não deixou de imediato o círculo, mas ficou ali, ciente daquela sensação incomum como se tivesse, mais uma vez, se afastado do mundo real para outro mundo
que existia em paralelo.
Seus dedos se fecharam sob a runa polida com o símbolo gravado, que ele amarrara no cinto, e de novo sentiu aquele calor incomum a despeito do ar frio da noite.
O mesmo calor de dentro do anel de pedras.
Ao sair, relanceou os olhos para trás. Os dolmens no alto, de um azul suave, pareceriam luzir com uma luz imaterial sob o arco da luz crescente. Quando olhou outra
vez, a lua se escondera. As pedras pareciam gigantes imóveis, silentes, guardiões de segredos.
Perto do meio-dia, dois dias depois, sir Kay e De Lacey retornaram com notícias de que os rebeldes tinham sido avistados a menos de uma hora de viagem, à frente.
Isso lhes dava pouco e precioso tempo para preparar uma defesa.
Ainda com a lembrança da morte de Curthose, Stephen levara a sério as palavras da velha Meg. Não era necessário lugar em campo aberto. Havia outros meios de lutar,
que ele aprendera com o amigo Tarek ai Sharif, cuja estratégia era atacar sem aviso, fugir, depois atacar de novo, como faziam as tribos guerreiras do deserto de
quem ele descendia.
Stephen optara por esperar. Se os rebeldes sabiam de sua presença, então que viessem até eles, raciocinara. Pelo restante da manhã, fez seus homens terminarem as
armadilhas e ciladas mortais que haviam preparado para os rebeldes, na floresta.
Cordas foram esticadas pelas clareiras. Galhos flexíveis, despidos de todas as folhas, tinham as pontas aguçadas em lanças letais, depois enterradas pelas trilhas
e picadas, à espera do avanço dos atacantes. A floresta se tornara uma armadilha fatal para o incauto. Então, Stephen distribuiu lanças e indicou posições a seus
homens, as armaduras pesadas descartadas em prol da uma maior liberdade de movimento. Todos tinham ordens de se encontrar do outro lado da pequena floresta.
Tudo pronto, ele deixou Meg e a garota com os cavalos do lado oposto da mata, com instruções de que, se os rebeldes chegassem tão longe, as duas deveriam pegar dois
cavalos, dispersar o resto e fugir. Então, ele retornou à posição avançada com seus homens para esperar o nascer do dia.
- Você preparou tudo muito bem, guerreiro - uma voz se fez ouvir da cobertura das árvores. - Mas tem menos que cinqüenta homens. E Malagraine manda quase quinhentos
mercenários e rebeldes saxões contra você.
Stephen puxou sua espada e virou-se para se defrontar com o ataque. Mas, em vez de deparar com um guerreiro a se esgueirar pelas árvores e arbustos, não viu ninguém.
Então, uma figura vestida toda de verde e marrom saltou de um galho acima do chão, diante dele.
- Você precisará de bem mais que meia centena de homens. - Uma espada de aço sibilou no ar, empunhada por duas mãos fortes, na frente de um rosto bonito, barbudo.
- Ofereço minha espada a seu serviço.
Stephen olhou incrédulo para a aparição que parecia ter caído do céu.
- Sim, bem mais - concordou, e ergueu a espada, sem saber se deveria rir ou matar o tolo atrevido. - Mas daremos um jeito. Talvez eu deva começar com você - sugeriu.
- Talvez - o estranho concordou, o sorriso que lhe curvava a boca a iluminar os olhos de um azul-cobalto. Tinha as feições emolduradas por cabelos negros, a face
coberta por barba igualmente escura. - Mas você precisará de cada homem que possa empunhar uma espada. Deixe-me viver, e isso perfaz cinqüenta e um contra Malagraine.
- Ou você é um idiota, ou um tolo - Stephen retrucou. O estranho jogou a cabeça para trás e riu. Depois, enterrou a ponta da espada no solo macio. Ou era muito corajoso,
ou muito inconseqüente, diante de uma espada larga.
- Sim, talvez um pouco de ambos. Sou Truan Monroe - disse. - Ofereço meus serviços. Você seria prudente em aceitá-los. Pode me matar, se preferir - emendou ao ler
os pensamentos de Stephen -, mas então lhe faltará uma espada e um guerreiro muito bom.
Com um movimento rápido como um raio, que fazia o sorriso de bobo mostrar-se uma mentira, pegou a espada pela empunhadura, tirou-a do chão como se fosse uma pena
e mirou-a com precisão mortal, a ponta a centímetros da garganta de Stephen.
- Ou pode me deixar lutar a seu lado e me arriscar contra o exército rebelde.
Sem mostrar nenhum sinal exterior de medo, Stephen perguntou:
- Como saberei que você não é um dos rebeldes enviados por Tregaron? Pode voltar-se contra mim na batalha.
Monroe deu de ombros.
- Se eu o quisesse morto, inglês, você já estaria. Anda pela floresta como um javali, tropeçando em raízes, num tropel que todos podem ouvir, anunciando sua presença.
Já tive muitas oportunidades.
- E suponho que você se mova silenciosamente! - retrucou Stephen.
Truan Monroe foi irônico:
- Estava diante de você antes que pudesse puxar a espada.
Stephen o encarou através dos olhos estreitados. Aprendera, com Rorke FitzWarren, que o verdadeiro coração de um homem se revelava pelos olhos. Um homem honesto
o encara diretamente, um covarde ou dissimulado não consegue.
- Por que faz tal oferta? - perguntou.
- Sabe por quê.
Stephen ficou a imaginar se era o homem trajado de bobo da corte que respondia, ou se havia algum outro significado maior oculto em suas palavras.
- Acabamos de nos conhecer. Como eu saberia suas razões?
O sorriso reapareceu na face do estranho, e Stephen teve certeza de que era o bobo que respondia.
- Porque somos ambos guerreiros. É o nosso destino. Você não pode me negar meu destino.
Havia algo no comportamento daquele homem que evidenciava a impossibilidade de ser um idiota. Era como se jogasse um jogo perigoso e mortal. Era hábil com uma espada
e poderia facilmente ter matado Stephen antes que este se desse conta.
Ele ouviu a aproximação de seus homens. Irromperam na pequena clareira com as espadas sacadas. Monroe não pareceu preocupado.
- Não fiz a oferta com leviandade, inglês - Truan o relembrou. E deu de ombros. - É só sangue. O meu escorrerá tão facilmente como o seu, se for essa sua escolha.
- Parem! - Stephen ordenou a seus homens quando estes avançaram, embora não soubesse por quê. Teve receio de se arrepender ao acrescentar: - Este homem virá conosco.
- Conosco?! - exclamou Kay, surpreso. - Com a espada empunhada contra você? Dê a ordem e ele morrerá onde está.
- Afastem-se - Stephen ordenou. - Era uma demonstração.
- Fez uma expressão intrigada. - Se ele me quisesse morto, eu já estaria.
- Pode se juntar a nós - disse a Truan. - Mas, se me trair, deceparei a sua cabeça.
Truan sorriu com ar de malícia e inclinou-se até a cintura.
- Uma troca justa, mas irá me perdoar se eu der o melhor de mim para manter minha cabeça no lugar. Gosto muito dela.
- Está avisado - retrucou Stephen ao embainhar a espada. - Você não é das terras do Oeste - comentou ao voltarem pela floresta até o acampamento.
- Sou do oeste das terras ocidentais, de um lugar além do mar - Truan respondeu evasivamente, com um sorriso enganoso.
- Oeste do ocidente? - John de Lacey resmungou, do outro lado de Stephen. - O homem é um idiota. Não existe oeste do ocidente, só mar aberto.
Truan esboçou um sorriso malicioso.
- Um tolo somente quando preciso ser - respondeu. - E existem bem mais terras ocidentais a oeste do mar do que poderiam imaginar.
Depois, afastou-se para sugerir aos homens de Stephen outras armadilhas que poderiam armar na floresta e como reforçar posições, dando a impressão que fosse um deles
e que lutara a seu lado durante anos em vez de ser uma ameaça recente que precisava passar por um teste.
A batalha aconteceu ao cair do sol, como Truan Monroe previra. Enquanto o resto do exército rebelde contornava as colinas, duzentos guerreiros atacaram o acampamento
de tendas e fogueiras fumegantes à beira da floresta só para descobrir que estava completamente deserto. Então, se embrenharam na floresta atrás de pistas, sinais
deliberadamente deixados pelos homens de Stephen para atraí-los. Um erro que lhes custaria caro.
Muitos morreram nas ciladas armadas, transpassados por estacas, presos em armadilhas, abatidos por um inimigo que nem conseguiam ver ou ouvir, até que fosse tarde
demais. Uma nova leva de guerreiros os seguiu. A luta tornou-se feroz, conforme adentravam mais fundo na mata.
Os homens de Stephen lutavam e fugiam; em seguida, voltavam de uma dezena de direções e lutavam de novo. Sempre a atrair o inimigo cada vez mais para o interior
da floresta, até que estava disperso pela mata. Então, ao chegar a um ponto predeterminado, Stephen ordenou que a floresta fosse incendiada. O exército rebelde não
teve outra escolha a não ser recuar. Ou ser queimado vivo.
Stephen e seus homens fugiram das chamas para a beira do rio, onde Meg e Amber esperavam, com sir Kay e os cavalos amarrados. Truan Monroe surgiu da outra parte
da floresta, com o rosto manchado e as roupas cheias de fuligem. Comprovara sua lealdade várias vezes, mas não esperou palavras de gratidão de Stephen.
- Muitos escaparão das chamas. E não irá demorar até que contornem a floresta e nos dêem caça. Precisamos fugir enquanto podemos.
- Fugir para onde? - perguntou sir Kay. - A floresta está às nossas costas e o rio, à nossa frente. - E a noite caía depressa, junto com a ameaça de tempestade,
que apagaria o fogo e atrasaria a fuga em terreno escorregadio, pensou.
- Há um lugar seguro aqui perto - Truan lhes disse. - Eu os levarei. - Viu as expressões de dúvida nos guerreiros. - Ou fiquem e saúdem os rebeldes, quando aparecerem.
Stephen hesitou. A seu lado, a velha Meg pousou a mão em seu braço. Como se conhecesse seus pensamentos, disse:
- Não duvide, guerreiro. Deve seguir o caminho do lobo branco.
Com um exército inimigo à retaguarda e o território desconhecido à frente, Stephen vacilou. Então, conforme as nuvens se abriram por um breve instante, viu um relancear
prateado no horizonte. Poderia ser um raio, pensou. Mas, ao enxergar o lobo branco postado a distância, na mesma direção que Truan Monroe apontara, decidiu-se.
- Siga na frente - disse a Truan, e, enquanto falava, centenas de metros ao longe e além do alcance do ouvido, o lobo branco saltou em frente, como se os conduzisse.
O local para o qual Truan os levou ficava numa elevação de terra na confluência de dois rios. A velha fortaleza era rodeada de água por três lados, com muralhas
altas de pedra de frente para o vale, abaixo.
Era sombria e abandonada, parecendo pouco mais que uma pilha de rochas com suas paredes desabadas sobre as muralhas mais abaixo. Porém, à luz da lua, que brincava
de se esconder entre as nuvens, as paredes internas tinham um aspecto pálido e luminoso, uma imagem fantasmagórica do que o lugar fora, em outros tempos.
- Conheço este lugar - Stephen disse ao entrarem pelo portão em ruínas, o pátio a revelar a influência romana sob o cascalho e a destruição que assolara o local
durante os séculos. - Já estive aqui.
Seus homens se espalharam pela fortaleza, à procura de uma forma de armar uma barricada e fortificar a entrada e uma dúzia de outros lugares pelos quais se poderia
facilmente entrar. Stephen tomou uma tocha e seguiu em silêncio pelos corredores abandonados, na trilha do lobo branco, que saltara para as ruínas antes deles.
Avistara o lobo várias vezes à medida que avançavam, sempre a distância. Agora, não havia sinal da criatura, conforme ele vistoriava a fortaleza.
As colunas, os largos degraus de pedra e as paredes de pedra clara e polida eram reminiscências de fortalezas semelhantes às dos impérios do Oriente Médio, uma convergência
de influências mais forte que a da arquitetura romana, com suas varandas abertas dominadas por trepadeiras e musgo. Sob as camadas de sujeira e destruição, as pedras
luziam, muitas pintadas com murais nítidos cujas imagens espiavam dos rebocos enegrecidos de fumaça.
Houvera um incêndio de grandes proporções ali, como se alguém tivesse tentado queimar tudo até o chão depois de um saque. Mas a pedra e a argamassa estavam lá, um
esqueleto silencioso e fantasmagórico daquilo que fora antes.
Em tamanho, tinha sido muito imponente, uma fortaleza acastelada construída para um rei e que poderia facilmente proteger a população de uma cidadezinha dentro de
seus portões. Isso, antes do cataclismo que a sorte decretara de forma repentina, a julgar pela aparência das coisas.
As mesas estavam reviradas, as cadeiras entalhadas, desmanteladas aos pedaços. O chão da maioria dos cômodos encontrava-se coberto de cerâmica quebrada, de tapetes
podres reduzidos a meros fiapos e dos restos dos últimos habitantes que haviam morrido tentando defender o lugar. Os esqueletos eram em número menor do que se poderia
esperar de uma tal fortaleza. A menos que o exército tivesse sido chamado para longe e deixado o castelo desprotegido. Então, Stephen descobriu a câmara estrelada.
As enormes portas duplas pendiam em suas ferragens. A luz da tocha, a se infiltrar pela abertura, luziu nas paredes de um azul pálido. No alto, o teto, a maior parte
milagrosamente intacta, feito de painéis grossos de resina clara, brilhava com a luz de um milhar de estrelas que fitavam o centro do aposento.
Stephen chutou as madeiras quebradas das portas e engatinhou para dentro. Ouviu o ruído de ratos fugindo da luz e o som do vento através das janelas arrebentadas.
Então, a tocha iluminou a enorme mesa redonda no centro da câmara.
Tinha pelo menos cinco metros de diâmetro, a superfície arranhada e escavada. Fora queimada em vários lugares, quando os invasores tentaram destruí-la, em vão. Mas
o que não tinham conseguido fazer, o tempo fizera.
A mesa pendia onde uma das pernas fortes apodrecera e arrebentara. A superfície estava coberta de pó e detritos, porém a sujeira e a destruição não conseguiam disfarçar
a beleza da peça ou os painéis coloridos e ornamentados que haviam sido esculpidos em seu tampo.
Havia doze painéis em toda a borda, cada um gravado com um emblema ou insígnia. Dentro, palavras em latim. Stephen inclinou-se e levantou a tocha ao alto a fim de
examinar atentamente cada painel. Contavam uma história de bravura, coragem e sacrifício de uma casta nobre da cavalaria empenhada numa causa comum.
- Doze painéis, doze emblemas, doze cavaleiros... Exatamente o mesmo que ele vira antes.
Ao correr os dedos pelos símbolos e emblemas esculpidos, uma luz bruxuleou de um canto mais escuro do aposento.
- Quem está aí? - Stephen indagou, ao estender a tocha à frente, a espada diante de si na outra mão. - Identifique-se. Senão, morrerá.
Não houve resposta.
Das sombras, atrás de uma coluna, a jovem ficou a observar o cavaleiro, a mão segurando o pêlo áspero do pescoço de Fallon, o lobo branco, comunicando a ele os pensamentos
por meio do toque, para refreá-lo.
O guerreiro era alto, e sua sombra se alongava para tocar a dela, onde se escondera, na escuridão. Em torno do pescoço, ele usava uma tira de couro e a pedra de
runa que ela perdera na noite em que o encontrara do lado de fora da corte do rei.
Recordou-se do toque de sua mão no pulso, forte e, no entanto, gentil, e seu destemor quando aquele contato o impulsionara através do portal de luz, junto com ela.
E tal como antes, experimentou uma mistura de fascinação e terrível incerteza. Queria fugir, ao mesmo tempo em que percebia que era impossível escapar.
- Quem está aí? - Stephen perguntou novamente, rodeando a mesa e aproximando-se mais.
Apavorada em ser descoberta, Cassandra recuou para as sombras atrás da coluna. Com o movimento, seu manto far-falhou em torno dos tornozelos, e os fios prateados
do tecido de um azul pálido refletiram a luz da tocha.
Cassandra tinha certeza de que o cavaleiro a vira. Contudo não conseguia se afastar, como se atraída para aquele homem que, por uma fatalidade, fizera uma viagem
pelo tempo até aquele mesmo lugar e que agora estava diante dela outra vez.
Seria dia claro em poucas horas. Notícias do desastre na floresta se espalhariam rapidamente até Tregaron. Ao salvar um homem, traíra outro, alguém que era como
um irmão para ela.
Sentiu o movimento antes que o aviso silencioso de Fallon a avisasse de que seu esconderijo fora descoberto. A luz da tocha afastou as sombras, iluminando-a por
um breve momento. Na expressão do guerreiro, ela viu o reconhecimento.
Tal como antes, Cassandra sentiu que possuía um vínculo com aquele homem, quando ele estendeu a mão e a tocou.
Voltou-se e fugiu pelo portal de luz, com Fallon, deixando o guerreiro a pensar que fora vítima de uma ilusão.
Stephen contornou o grande aposento com a espada empunhada, a tocha erguida para iluminar as sombras. Sua busca o trouxe de volta à enorme mesa redonda no centro.
Rodeou-a novamente, devagar. As palavras em latim, traduzidas, falavam de honra, dever, lealdade, confiança, bravura, escritas centenas de anos antes, em outra época.
Um código de regras que formava as linhas de um compromisso solene.
Conseguiu, com dificuldade, decifrar as primeiras e poucas palavras do texto, mas o sentido parecia fazer tremer o ar como se outras vozes as repetissem. Doze vozes
que haviam empenhado suas espadas, sangue e honra sagrada a um rei, fazia mais de quinhentos anos. Stephen conhecia aquele lugar.
Perdera-se no mito e na lenda havia tanto tempo que a maioria duvidava de que alguma vez tivesse existido. Camelot, o antigo reino do lendário rei Arthur e de seus
bravos e leais cavaleiros da Távola Redonda.
Ouviu um estalar de madeira. A luz de uma segunda tocha apareceu na soleira da porta arrebentada e se espalhou pelo chão do aposento. Truan Monroe afastou os detritos
e se arrastou para dentro.
Ergueu a tocha acima da cabeça. A luz incidiu sobre a mesa com seus entalhes antigos e os doze lugares distribuídos igualmente em torno.
- "À minha irmandade, empenho minha espada, meu sangue e minha sagrada honra..."
Sua expressão era intensa ao repetir o antigo juramento, dentro daquele aposento, outrora magnífico, do lendário rei.
- Conhece essas palavras? - perguntou Stephen, observando o jovem guerreiro que se juntara a eles apenas recentemente.
O bobo da corte, que usava uma espada com a habilidade do melhor dos guerreiros, não fez nenhum comentário cômico ou esboçou um sorriso amável, mas foi "substituído"
por alguém que Stephen não conhecia.
- Sim, eu as conheço - Truan respondeu, a voz baixa como se perdido em recordações. Estava sério, o ar de riso se fora do belo rosto e dos olhos provocativos.
- "...além desta vida, além da morte, até a jornada final de minh'alma para dentro da luz..."
As palavras pareceram ecoar nas paredes enegrecidas de fuligem, no teto estrelado em forma de domo, e suspirar pelo chão de pedras, como alguma antiga ladainha que
atravessasse os séculos. Como se os homens que tivessem pronunciado aquele juramento o murmurassem do túmulo, num lembrete.
Então o encanto rompeu-se, quando vários dos homens de Stephen também encontraram a câmara e entraram pelo batente arrebentado.
- Deixamos a fortaleza segura e aguardamos suas ordens - sir Kay anunciou, a entonação de voz normalmente alta a se tornar baixa e reverente, quando seu olhar percorreu,
intrigado, o incomum aposento redondo com seu teto enfeitado de estrelas.
Gavin e John de Lacey ficaram igualmente admirados ao examinar o local. De Lacey achou uma espada antiga, caída da mão do guerreiro que a empunhara, e agora, pela
ação do tempo, transformada em pó.
Gavin ouvira histórias da lendária Távola Redonda e franziu a testa, incrédulo, diante das ruínas da mesa que ali estava, como se esperasse que os guerreiros tomassem
seus lugares outra vez.
- O que você fará? - perguntou Truan, o olhar cravado em Stephen. - Agora que torceu o rabo do leão.
Stephen sentiu que seus homens o examinavam com a mesma pergunta em suas expressões.
- Há um fosso fundo com água suficiente - Gavin explicou. - E agora que sabemos contra quantos estamos lutando, poderemos descansar e depois voltar à Inglaterra.
- O rei nos dará apoio assim que souber do tamanho do exército inimigo e que os saxões se juntaram a ele - sir Kay emendou.
Era evidente que ambos sentiam que deveriam retirar-se para a Inglaterra em face da disparidade numérica. Era a coisa lógica a fazer. Mas Tregaron e o príncipe galês
que ele servia não tinham meios de saber a verdadeira força que os defrontara.
Stephen voltou-se para De Lacey, em quem confiava como um irmão. Ele também era um bastardo e compreendia o que motivara Stephen a desafiar o pai e rumar para as
terras do Ocidente.
- Você não falou ainda. O que tem a dizer?
John o encarou, a expressão espantada. Embora sua amizade fosse profunda, Stephen sempre tomara suas próprias decisões. Em suas veias corria o sangue real da Normandia.
Não precisava do conselho de ninguém. Mesmo assim, perguntava como se quisesse a opinião de cada um de seus cavaleiros.
- Viemos de longe para vingar as mortes de nossos companheiros - De Lacey declarou. - Malagraine ainda está vivo. Não cumprimos o que viemos fazer.
- Somos apenas cinqüenta - ponderou Stephen. Sabia o que pensava cada um de seus homens. - Mesmo com as perdas na floresta de Frodmir, eles nos superam em pelo menos
oito para um. Estamos em terra estrangeira, onde ninguém nos ajudará.
- Eles não sabem quantos somos - insistiu De Lacey. - Podemos ser cinqüenta ou quinhentos. E temos estas muralhas para nos proteger.
- Sim - murmurou Stephen, pensatívo -, temos estas muralhas. - Muralhas que haviam sobrevivido a uma batalha terrível que as penetrara; e, contudo, se mantinham
de pé fazia quinhentos anos. No entanto não era uma decisão que ele pudesse tomar por todos.
Seus outros cavaleiros tinham entrado e se reunido ali. Entre eles, estava Meg e, ao lado da velha, a garota, Amber. Pouca gente em número. Doze, o mesmo número
de homens leais que haviam servido o antigo rei até a morte.
- Cada homem deve sentir-se livre para tomar a própria decisão - Stephen disse a eles. - Não posso tomá-la por vocês. Porém, quanto a mim - Voltou-se para a mesa
em que estavam gravadas as palavras lealdade e honra, e pousou a espada sobre o tampo de modo que a lâmina apontasse para o centro -, ficarei e vingarei os que aqui
morreram. Era como se tomassem parte de algum antigo ritual, naquele aposento secular, cheio de poeira, detritos e teias de aranha. De Lacey foi o primeiro a colocar
a espada sobre a mesa. Então, um por um, os demais cavaleiros adiantaram-se e também puseram suas espadas exatamente do mesmo jeito, até que onze armas rodeavam
o tampo.
- E quanto a ele? - Gavin perguntou, olhando para Truan Monroe. - Onde reside sua lealdade, estranho?
- Está escrita nas estrelas - Truan respondeu, enigma-ticamente, com um gesto a apontar o teto em domo.
- Uma resposta tola de um idiota. Como saberemos que não nos trairá?
Ciente de que a garota, Amber, a muda, o observava com intensidade por trás da velha, Truan sorriu, os dentes a reluzirem contra a barba escura.
- Se eu quisesse traí-lo, seu sangue ensoparia a terra na floresta de Brodmir. - Pegou a espada e a colocou sobre o último lugar vago na mesa, a lâmina a luzir com
a luz das tochas. - Ficarei - disse. Então, seu sorriso alargou-se e a expressão de tolo ressurgiu. - Quero ver como cinqüenta homens pretendem derrotar Malagraine.
- Cinqüenta e um - Stephen o relembrou, o olhar firme sobre o rapaz que, num piscar de olhos, parecia se transformar de um imbecil num guerreiro atilado.
- Sim - Truan declarou, com uma risada -, cinqüenta e um. - Então, pegou sua espada e a enfiou na bainha. Com um sorriso largo, aproximou-se de Meg. - Não franza
tanto a testa, velha bruxa. Vai arranjar mais rugas.
Meg bufou, indignada, mas sua expressão era pensativa ao virar o rosto na direção do rapaz, a despeito da cegueira.
- Quem é você?
- Só um tolo com alguma habilidade com uma espada.
- Tolo demais, eu creio - ela retrucou, com um ar perplexo.
Truan, então, voltou-se para Amber. Mais rápido do que os olhos pudessem enxergar, depressa demais para que ela pressentisse e recuasse com timidez, como normalmente
faria, a mão dele se esticou. Com a destreza de um guerreiro, fez um gesto e, de trás da orelha da jovem, tirou uma pequena flor branca.
Os lábios delicados de Amber, de onde não saíam palavras, formaram um "Oh" de espanto, e um som estrangulado escapou, com o fôlego contido, quando ela arregalou
os olhos de prazer instintivo.
- Venha - Truan disse a Amber, sem tocá-la, mas fazendo um gesto para que ela passasse. - É um truque simples. Vou lhe mostrar como é feito. Depois eu lhe ensinarei
como fazer as coisas desaparecerem.
Saiu com Amber do aposento. Quando não estavam mais ao alcance do ouvido, De Lacey comentou com secura:
- Tão facilmente como desaparecerá quando nos trair.
- Se quisesse nos trair, já o teria feito na floresta. Em
vez disso, matou muitos rebeldes, lutou ao nosso lado e impediu que mais de uma espada lhe arrancassem a cabeça dos ombros. Não vejo mais razão para duvidar da lealdade
dele do que para duvidar da sua. - Stephen virou-se para a Távola Redonda, rodeado pelo resto de seus cavaleiros. - Esta será a nossa fortaleza. Aqui estabeleceremos
nossa cidadela de resistência. - E, conforme falava, sentiu o ar frio e parado do aposento estremecer, como se alguém invisível o ouvisse.
Uma delgada faixa de luz brilhou no canto do quarto, em Tregaron. Expandiu-se, tornando-se mais brilhante, até que se abriu, e Cassandra passou pela abertura, seguida
pelo lobo branco.
Um olhar rápido ao redor deu-lhe a certeza de que o quarto estava como o deixara quando saíra, havia horas. Porém, antes que pudesse acender o braseiro, ouviu uma
leve batida na porta.
Lodi, ela pensou, com aquela certeza que costumava ter desde criança. Não havia trancas para fechar as portas em Tregaron, a não ser no quarto de Margeaux. Sua irmã
adotiva insistira em ter privacidade, mas não pensava nem julgava necessário desculpar-se por invadir a privacidade dos outros, a qualquer hora do dia ou da noite.
Somente Lodi, a pobre menina cujo infortúnio era ser a criada de Margeaux, batia antes de entrar. Mas qualquer um que tentasse correr o ferrolho teria o caminho
barrado como se estivesse trancado, até mesmo Margeaux. Com um gesto, Cassandra desfez o sortilégio que barrava a porta.
- Pode entrar, Lodi - falou com doçura.
A porta entreabriu-se, e o rosto tímido de Lodi apareceu na fresta aberta. Parecia aliviada.
- Graças a Deus está aqui por fim, senhora - a menina murmurou, empurrando a porta mais alguns centímetros.
- O que foi? O que aconteceu? - Cassandra perguntou, apenas com uma ordem mental, ao acender o braseiro atrás de si. As chamas ganharam vida e a emolduraram, conforme
ela se virou para a garota.
Lodi era uma criatura absolutamente leal. Olhou para as chamas que não estavam lá um instante antes e agora queimavam, reluzentes, mas não disse nada.
- Os nobres estão para chegar a Tregaron - disse, aflita. - São esperados a qualquer momento, e a patroa está com um humor terrível.
- Por favor, aproxime-se e me conte tudo - Cassie disse suavemente, já suspeitando daquilo que veria. A garota me-neou a cabeça.
- A patroa chamou pela senhora - Lodi murmurou, e, nas sombras, Cassandra viu que a garota mordia o lábio. - Nada lhe agrada quando está com esse humor. Talvez,
se fosse vê-la... - A criada estava à beira das lágrimas.
Cassandra atravessou o quarto e abriu a porta. A luz das velas e do braseiro incidiu sobre as feições da menina, que recuou para a sombra.
A face esquerda de Lodi estava inchada, um hematoma arroxeado contornava-lhe o olho quase fechado. Não era preciso perguntar nada.
- Margeaux... - Cassie murmurou, furiosa.
- Por favor, senhora - Lodi implorou. - Não diga nada. Com ela tão mal-humorada, só iria piorar as coisas. Se pudesse ir vê-la agora... Por favor...
Cassandra sabia que era verdade. Margeaux tinha um temperamento imprevisível, normalmente dirigido aos criados. Mas ninguém era imune à sua raiva.
-- Onde ela está?
- Em seus aposentos. - E Lodi emendou: - O príncipe Malagraine vem também. Disse que mandaram um missal de paz para o exército do rei Guilherme.
- Missal?! - exclamou Cassandra. - Quer dizer emissário?
- Isso mesmo. Emissário.
Cassie franziu a testa, pois não pressentira nada quando saíra naquela manhã. Contudo, se o príncipe Malagraine viajara para Tregaron, isso pelo menos explicava
o acesso de mau humor de Margeaux.
- Muito bem, Lodi - murmurou, pensativa. - Verei o que pode ser feito.
- Quer que eu vá junto? - Na voz da garota, trêmula e baixa, Cassie percebeu o medo e a relutância.
- Se precisar, mandarei chamá-la - Cassie respondeu, pousando a mão no ombro da criada.
- Obrigada, senhora - disse Lodi, com gratidão.
- Vá, agora, e veja se descobre o que puder sobre os visitantes e me traga notícias. Há muita coisa que precisa ser feita antes que eles cheguem.
Lodi afastou-se para fazer o que ela lhe pedira, contente por escapar do quarto de Margeaux.
- O que está olhando? - Cassie perguntou a Fallon, que a encarava com seus olhos sábios, perspicazes. - Sim, eu sei - murmurou, como se o lobo tivesse dito alguma
coisa. - Uma visita ao quarto dela é como saltar do caldeirão para o fogo, mas, se eu não for, ela pode pôr Tregaron abaixo com seus gritos. E existem coisas que
eu poderia saber a respeito da visita desses nobres - emendou, pen-sativa. - Eu deveria ter sentido.
O lobo rolou de costas e não fez nenhuma menção de segui-la.
- Fique, se quiser. Não tenho medo dela. Os latidos de Margeaux são piores que as suas mordidas. - Baixinho, murmurou: - Espero.
Os aposentos de Margeaux ficavam em outra parte da fortaleza de Tregaron, ocupados por aquelas que ostentavam o título de senhora dos domínios. Era um título que
ela reivindicava para si por direito de sangue, não pelo casamento, pois era irmã de lorde João, que ainda não se casara, embora fosse pai de vários filhos de criadas
e moças infelizes da vila.
Cassie hesitou do lado de fora do quarto de Margeaux, ouvindo barulho de louça se partindo. Ao erguer a mão para bater na porta maciça, sentiu uma presença a seu
lado. Nas sombras do corredor escuro, viu os olhos cinza-prateados a fitá-la e sorriu. Com a mão pousada no pescoço peludo de Fallon, abriu a porta.
- Não venha com esse animal para cá! - Margeaux esbravejou, quando Cassandra apareceu na soleira da porta. Fallon postou-se à entrada, revirou os olhos e depois
deitou a cabeça nas patas e fingiu dormir. - O lugar todo está infestado de parasitas, e você traz esse bicho aqui. Podemos todos ficar empestados.
- Queria me ver? - Cassie indagou, captando uma vaga inquietude no quarto. Parecia mais sombrio que o comum, como se a luz das velas e do braseiro lutassem para
brilhar. Era como se um véu de escuridão cobrisse tudo no aposento. Então, desapareceu.
- Chamei por você horas atrás. Onde esteve? Os nobres devem chegar esta noite. Dizem que o príncipe Malagraine virá com eles. Há muita coisa a ser feita e eu não
consigo encontrá-la quando preciso da sua ajuda.
Ajuda? Cassandra quase riu alto, pois era notório que, embora Margeaux exigisse para si o título de senhora de Tregaron, com todas as responsabilidades que isso
representava, era Cassandra que cuidava de todos os detalhes do dia-a-dia para o funcionamento da casa.
- Está tudo em ordem - ela assegurou a Margeaux, ao abarcar com o pensamento os cantos mais longínquos de Tregaron, das cozinhas aos estábulos, para se assegurar.
Os domínios eram administrados com eficiência. Cassie providenciara que a responsabilidade lhe fosse passada com a morte da segunda esposa de lorde João, pois embora
Margeaux fosse por direito senhora das terras até o casamento de João, não mostrava interesse por tais responsabilidades.
Estava por demais preocupada com seus próprios planos ambiciosos,
Cassie ficou a observar enquanto Margeaux se sentava diante do painel de aço polido, perdida nos próprios pensamentos ao empalmar os seios pequenos através da camisola
macia.
Margeaux herdara as belas feições do pai, os cabelos de um castanho-escuro e os frios olhos verdes. Também herdara sua ambição e inclemência, e o desapontamento
amargo de não ter nascido homem. Porém, o que o destino lhe negara, Margeaux pretendia agarrar por si mesma.
Persuadira o irmão a descartar propostas de casamento de nobres menores, em favor do título de princesa, que cobiçava. Pouco interessava se o príncipe Malagraine
já tivesse uma esposa.
- Ela é doente e não viverá muito - Margeaux dissera, despreocupada. - O príncipe já expressou seu desejo de ter muitos filhos. Não encontrará nada a não ser solo
infértil entre aquelas patéticas coxas descoradas. No momento certo, encontrará terreno rico e fecundo onde sua semente fincará raízes e crescerá forte.
A princesa vivera mais do que a maioria esperava. Dera à luz uma filha que sobrevivera pouco tempo. Depois, enfraquecida pelo parto e por uma série de doenças desconhecidas,
morrera no ano anterior. Margeaux fora a Pendragon com lorde João e outros nobres. Depois de voltarem, correram boatos de que o príncipe Malagraine já levara outra
para a sua cama.
João de Tregaron não era nem um guerreiro nem um político. Não tinha a destreza exigida para a primeira das funções nem a fria ambição requerida para a outra. Era
de inteligência mediana e ostentava as feições macilentas de sua mãe, os cabelos negros lisos e os pálidos olhos azuis. Mas um traço ligava os irmãos: uma cruel
inclemência.
Nem sempre fora assim. Sua mãe morrera quando eram muito jovens, e o senhor de Tregaron tomara uma segunda esposa, bem mais jovem. Anne de Aberswyth era doce e gentil
e se tornara mãe das duas crianças depois do casamento. Mas ansiava por um filho seu.
Incapaz de conceber, fora em busca de ajuda da Velha que vivia na floresta. Fora lá que estabelecera uma ligação profunda com a criança sensível e introspectíva
que a curandeira criava desde pequena: Cassandra.
Cassie fora viver com Elora quando era bebê. Da própria família, sabia muito pouco. Era assombrada por sonhos que Elora tentara explicar. Contara-lhe que os pais
a amavam muito, porém tinham precisado mandá-la para longe. Tudo que Cassie compreendia era a solidão que lhe fora imposta. E quando chegara o momento de voltar
para a própria família, recusara-se, zangada.
- A senhora e Fallon são minha família - dissera à velha. - Não preciso de ninguém mais.
A Velha não pudera forçá-la a voltar, pois mesmo com tão pouca idade, os poderes de Cassandra eram bem maiores que os seus.
Por fim, lady Anne convencera a Velha a deixar que Cassandra fosse viver em Tregaron. Cassie estava com seis anos, então. Elora a levara, floresta adentro, como
em outras ocasiões, para colher ervas e plantas que só cresciam em lugares secretos.
- Chegou a hora de sair para o mundo - explicara. E avisara: - Você precisa ter cuidado em quem confiar. Nem todos entenderão os seus poderes. Alguns tentarão usá-los
para o próprio ganho. Precisa se resguardar contra essas pessoas, pois não compreendem tais coisas. Só os de seu sangue entenderão os dons com os quais você nasceu.
Sua verdadeira família.
A mesma família que a havia abandonado.
Depois, Elora explicara que estava tudo arranjado para que a menina fosse para Tregaron, onde lady Anne a ajudaria a aprender as coisas necessárias para viver no
mundo conhecido. Falara muito naquele dia, da época antes do cataclismo e dos últimos dias do antigo reino. De reis, cavaleiros, feiticeiros e encantados. Um mundo
mágico de luz que fora mergulhado num vácuo de maldade e trevas, quinhentos anos antes.
Voltaram para a cabana da floresta quando o sol se punha. Elora apoiava-se pesadamente em Cassandra ao chegarem, e se sentara na cadeira ao lado da porta aberta,
com os últimos raios de sol a lhe banhar a face enrugada.
A menina se ajoelhara ao lado da cadeira. Naquela voz suave que parecia vir de longe, como se ela não se encontrasse ali, como se tivesse voltado no último instante
para dizer algo que Cassandra precisava saber, Elora murmurara:
- Você foi um presente abençoado, confiado aos meus cuidados. Sempre estarei com você, minha menina. Mas não se afaste do Poder da Luz. Precisa cumprir o seu destino.
Está em seu sangue e torna-se mais poderoso a cada dia que passa. Proteja o conhecimento e seus poderes e não guarde raiva em seu coração. A raiva é a arma das Trevas.
Será usada contra você, se permitir.
Então, dera um presente a Cassandra, um colar que sempre usava, feito de pedras polidas, cada uma com uma estranha figura gravada.
Cassandra se recusara a pegar o colar, enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos. Mas Elora sorrira.
- Este é seu legado, minha menina. Aquele que nasceu para cumprir. Para quem tem o poder de lê-las, as runas contam o futuro. - Colocara o colar na mãozinha da menina
e lhe dobrara os dedos em torno das pedras.
Fechara os olhos como se fosse descansar, do mesmo jeito que Cassandra havia visto centenas de vezes. Porém, dessa vez, não acordara quando a menina a chamara. E
nada que ela fizesse conseguira despertar sua amada guardiã.
Desde aquele dia, a Velha definhara aos poucos, até o final. E, então, quando Cassandra beijara o rosto enrugado, tivera a impressão que tocava apenas ar, uma suave
sugestão de calor que a banhava e confortava como uma carícia. Elora se fora. Sua presença, contudo, permanecia por toda a parte.
Na manhã seguinte, Cassandra enrolara os poucos pertences, inclusive o colar de runas, num pedaço de pano e esperara pela senhora de Tregaron. Quando ela chegara,
a menina explicara que Elora havia ido para a floresta, recusando-se a pensar na guardiã como uma morta.
A vida, em Tregaron, não se mostrara desagradável. Anne era gentil e de natureza delicada, e passava muitas horas ensinando-a sobre o mundo conhecido, como Elora
o chamava. Embora Margeaux e João fossem alguns anos mais velhos e tivessem estudado bem mais, Cassandra os excedia em capacidade. Tinha um dom natural para idiomas,
matemática e ciências. Em breve, lera todos os livros em Tregaron. Muitas vezes pegava um volume e se refugiava na cabana da floresta para ler em paz.
Corriam boatos de que a curandeira ainda morava na floresta. Na verdade, quando enfermos e feridos procuravam as poções curativas da Velha, Cassandra não conseguia
mandá-los embora. Tinha em mente, porém, o aviso de Elora. Ninguém deveria saber de seus poderes. Portanto assumia a aparência da Velha, usando o dom da transformação
que descobrira quando era bem pequena.
Certo dia, chegara tarde a Tregaron e encontrara a casa inteira em lágrimas. Lady Anne estava gravemente enferma. Semanas antes, a senhora de Tregaron anunciara
que finalmente concebera o filho tão desejado. Contudo ficara doente desde o princípio. Naquela manhã, começara o sangramento. Cassandra tentara ir para a floresta
à procura de uma erva curativa que pudesse estancar a hemorragia, porém Margeaux, mais velha oito anos e na posição temporária de senhora da casa, a proibira. Cassandra
conseguira fugir do olhar atento de Margeaux antes que o dia amanhecesse. Ficara
pouco tempo fora, mas, quando voltara, percebera que era tarde demais. Lady Anne e o filho não nascido estavam mortos.
Ela nunca havia vivenciado a perda de alguém a quem amava. Não considerava a transformação de Elora do mundo físico para o espiritual da mesma forma, pois sentia
a presença da Velha constantemente. A morte de lady Anne era diferente, algo para o qual não estava preparada.
Depois da perda da jovem esposa, lorde João se retraíra mais e mais, abandonando os deveres de Tregaron, deixando-os para o filho, ainda mal preparado para assumir
tamanha responsabilidade. Os encargos da casa recaíram sobre Margeaux, então com dezoito anos, que os assumira, desejosa do poder que lhe conferiam.
Não muito tempo depois, lorde João morrera, em virtude de um ferimento de caçada infeccionado e que não recebera os devidos cuidados. Seu filho, então com vinte
anos, tornara-se lorde Tregaron, e, aos vinte e três, Margeaux era a senhora de Tregaron.
A vida mudara pouco para Cassandra. Mais jovem oito anos que a irmã adotiva, chamava pouca atenção, a não ser pela capacidade de dirigir com eficiência a enorme
propriedade, um talento que Margeaux nem tinha nem queria adquirir.
- Veja, estou com estas horríveis bolhas - Margeaux gemeu. - Juro que aquela garota idiota me passou as proporções erradas!
Cassandra olhou para a mesa e viu o conteúdo esparramado entre a louça quebrada. Num relance, sentiu que fora misturado exatamente de acordo com as instruções que
pusera na bolsa e dera a Lodi na cabana da floresta.
Escondeu um sorriso ao ver a erupção que se espalhava rapidamente pelo pescoço de Margeaux, dando a ela uma aparência rajada de uma porca que tivesse chafurdado
na lama. Mas não podia deixar Lodi levar a culpa por aquilo.
- Misturou você mesma?
- Claro! - esbravejou Margeaux. - Não acha que eu confiaria àquela idiota que medisse as coisas direito.
- Duas partes do pó azul para uma parte de lavanda? - Cassandra pegou as instruções do chão, escritas exatamente como dissera a Lodi. Mas, conforme falava, as letras
sumiam, revelando a verdadeira mistura por baixo. Era um pequeno truque, inofensivo. Mas que poderia dar a Margeaux uma lição de que muito precisava.
- Claro que não! - ela exclamou. - Uma parte de azul para duas partes de lavanda. Segui exatamente as instruções. - Margeaux arrancou-lhe o pedaço de pergaminho
da mão. Leu o que estava escrito e empalideceu.
- Oh, querida - Cassie murmurou. - Parece que não leu direito...
O pergaminho caiu dos dedos tensos de Margeaux conforme ela se voltava e corria para a placa espelhada de aço. O reflexo não era perfeito, mas revelava o suficiente.
Ela ergueu os punhos cerrados e soltou um berro pavoroso, assustando Fallon.
- O que farei? - choramingou, coçando-se furiosamente,
enquanto as borbulhas se espalhavam. - Esta noite precisa ser perfeita. Tudo está pronto. Planejei cada detalhe.
Cassandra captou o que não era vocalizado tão claramente como se Margeaux tivesse dito tudo, e a razão de tamanho nervosismo. Dizia respeito à chegada dos nobres,
particularmente Malagraine, a Tregaron.
- Tente não coçar - murmurou.
Os nobres e o príncipe Malagraine não chegaram a não ser no dia seguinte, para alívio de Margeaux. Até lá, as bolhas tinham sumido, embora ainda coçassem.
Tudo estava pronto. Fora preparado um banquete generoso. Margeaux apareceu no último instante, tomando o lugar de senhora de Tregaron ao lado do irmão. Estava pálida,
mas sem nenhum sinal exterior da coceira que a infernizara.
Cassandra entendia a ambição de Margeaux. Não era nenhum segredo. Porém não conseguia compreender como poderia se oferecer tão abertamente ao príncipe Malagraine.
Ele não era um homem de aparência desagradável, mas de compleição forte e poderosa e se portava como um guerreiro. Nem era velho como os outros lordes que haviam
pedido a mão de Margeaux, de olho no rico dote que João lhe daria.
Havia, contudo, uma frieza nele que sugeria uma natureza cruel. A expressão era, em grande parte, fechada e indecifrável. Os pensamentos, diferentemente dos outros
nobres, não eram captados com facilidade por Cassandra. No entanto, em alguns momentos, quando o príncipe julgava que ninguém o observava, ela via a astúcia a brilhar
naquele olhar.
E, mais de uma vez, ao conversar com Margeaux, num tom de voz baixo como o de um amante, Cassandra sentira que ele a observava através do salão.
Naqueles momentos, a expressão de Malagraine era evidente, óbvia, predatória, perigosa. Ela estremeceu, pois viu de relance algo que nunca vira antes. Uma maldade
tão grande e tão invasiva que se fechou como um punho em torno de seu coração, num aperto tão forte que Cassandra julgou difícil respirar.
Fallon pareceu sentir também, andando pelo salão, inquieto. Relutara em deixá-la entrar e depois a seguira com um feroz ar protetor que, pela primeira vez, a deixara
com medo do que o lobo branco poderia fazer, se provocado.
Cassandra afastou-se do salão e, atraindo o poder interior, com um simples passo seguiu o caminho através de um prisma de luz e, num piscar de olhos, surgiu na pequena
cabana da floresta. Fallon saltou pelo portal, atrás dela.
Cassandra não acendeu nem fogo nem vela, mas abriu a porta. O céu estava coalhado de estrelas, e a lua cheia subia além das copas das árvores. Ela sentou-se na cadeira
de Elora e enrolou o xale da Velha nos ombros, como se tentasse se envolver em sua doce presença.
- Não compreendo o que está acontecendo - murmurou. - Sinto uma presença poderosa. Fale comigo. Diga-me o que fazer.
Não houve respostas nem conexão de pensamentos nem conforto para lhe acalmar os medos e a incerteza. Nem mesmo o vento fazia farfalhar as folhas das árvores. Nenhuma
criatura da floresta emitia qualquer som noturno. Era como se tudo aguardasse em mudo silêncio.
Cassandra não tinha idéia de quanto tempo ficou sentada ali. Por fim, sentiu o focinho de Fallon na mão. A lua não estava mais no alto do céu, porém descia, espiando
por entre os galhos mais baixos das árvores.
- Sim - ela murmurou, em resposta ao lobo. - É tarde.
Não retornou pelo portal de luz, mas preferiu caminhar pela escuridão reconfortante, terrena, perfumada, da floresta. Fechou a porta da cabana e correu o ferrolho,
e depois seguiu para a trilha familiar que percorrera tantas vezes quando criança, ao lado de Elora.
Você precisa cumprir seu destino.
Ouviu a mensagem com tamanha clareza que era como se tivessem lhe falado. Mas, ao se virar para ver quem a dissera, não viu ninguém.
Capítulo III

Os salões de Tregaron estavam silenciosos quando Cas-sandra retornou com Fallon, exceto pelos criados que limpavam os restos do banquete das mesas.
- Mestre João foi tarde para o quarto - Lodi a informou, cansada. Sorriu. - Mas não aborreceu nenhuma das moças. Os outros nobres se espalharam pelos quartos no
andar de cima.
- E lady Margeaux? - perguntou Cassandra.
- Recolheu-se mais cedo. Disse que eu deveria mandar a senhora ir vê-la, mas isso faz horas.
Cassie franziu a testa. Nas últimas duas noites, preparara um sedativo para Margeaux dormir, pois ela não conseguia pegar no sono com toda a coceira da poção da
juventude que espalhara por todo o corpo. Contudo parecia bem melhor naquele dia. Mesmo assim, se deixasse de preparar a dose de remédio, Margeaux ficaria aborrecida.
Fallon subiu as longas escadas em caracol à frente da dona. Cassandra passou por vários quartos onde os nobres dormiam, os criados espalhados no corredor, do lado
de fora das portas, caso fossem necessários durante a noite. Também passou pelo próprio quarto, confiante de que ninguém entrara ali.
As tochas queimavam, no fim, outras fumegavam na escuridão. Ela seguiu com facilidade pelas sombras, a visão tão aguçada como a de um animal. Fallon saltou à frente,
mas, ao se aproximarem do quarto de Margeaux, o lobo recuou, de repente.
Seus olhos luziram intensamente, a cabeça a se inclinar de um lado para outro. Então, repuxou a boca sobre os dentes fortes e soltou um rosnado.
Cassandra viu o guarda do lado de fora da porta. Instintivamente, ela puxou Fallon para trás, para as sombras, e, com o pensamento, pediu que ficasse quieto. Quando
Cassandra bateu, o homem não pareceu enxergá-la.
Ouviu-se uma ordem resmungada de dentro do quarto, e o guarda empurrou a porta. A luz da tocha que ele carregava incidiu sobre a cama e nas duas pessoas deitadas.
Margeaux estava esparramada, os cabelos escuros soltos da trança e espalhados em leque. Encontrava-se completamente nua, o corpo pálido a luzir sobre as mantas de
peles, as pernas separadas. Malagraine estava de pé, de lado, olhando para a porta. Fez um gesto de comando, sem se preocupar que alguém o visse num momento de intimidade
com Margeaux.
- Mande-o embora! - disse ela, num tom rouco, ao puxar Malagraine, as unhas a riscarem a carne onde a túnica se abrira, expondo as marcas avermelhadas no peito mus-culoso.
Os laços da calça de Malagraine pendiam soltos, e o membro, ereto, palpitava livre.
Com um sorriso, Margeaux arqueou-se para trás, enlaçando Malagraine pela cintura, com as pernas, enquanto emitia gemidos ávidos, suplicantes, para que ele a tomasse.
Não houve nenhum traço de delicadeza quando o príncipe a possuiu. Ela deu um grito, de dor e prazer, um som que não parecia humano, mas de um animal no cio. Os movimentos
de ambos tornaram-se frenéticos, e os gemidos, guturais, roucos, ansiosos. Então, de onde se curvava sobre a cama, Malagraine ergueu os olhos.
Olhou para além do guarda, pela porta aberta, como se enxergasse Cassandra escondida nas sombras, incapaz de se afastar, pois seria vista, incapaz de desviar os
olhos. E um prazer maligno surgiu na expressão do príncipe, enquanto continuava a possuir Margeaux como um animal. Mas era como se a ignorasse, o sorriso apenas
dirigido a Cassandra. Então, com os olhos ainda fixos naquele ponto do corredor, investiu mais fundo e, de repente, ele ficou rígido. Margeaux soltou um grito, seu
corpo sacudido por espasmos de prazer.
Malagraine voltou-se e mandou que o guarda entrasse. Com o corpo do soldado a bloquear a visão do quarto, Cassandra fugiu pelo corredor para os próprios aposentos.
Vira algo nos olhos do príncipe que a deixara apavorada.
Ao chegar ao próprio quarto, bateu a porta. Em torno do portal, uma tênue faixa de luz brilhava - o encanto protetor além do qual nenhum mortal poderia passar. Então,
ela ouviu passos no corredor e percebeu também que alguém parava do lado de fora da porta. E soube que era Malagraine.
A faixa de luz tremeu e tornou-se mais débil e, em seguida, Cassandra ouviu o ruído de um toque no ferrolho. Os pêlos no dorso de Fallon se arrepiaram conforme ele
se colocava entre a dona e a porta, a boca arreganhada sobre os dentes afiados.
Cassandra parou de respirar. Não sentia o que os mortais sentiam, mas experimentava uma intensidade de energia selvagem e turbulenta, diferente de qualquer coisa
que já vivenciara antes, e cada átomo de seu ser reagia violentamente a um perigo que jamais conhecera na vida.
Então, a sensação passou. A intensa energia lentamente se extinguiu. Fallon sentiu também que o perigo havia desaparecido. Inclinou as orelhas para trás e para a
frente, como se procurasse captar algum som. Havia apenas silêncio do outro lado da porta. Malagraine se fora.
No dia seguinte, Cassandra manteve-se afastada tanto quanto possível do grande salão, onde os nobres e Malagraine reuniam-se com João de Tregaron. Margeaux, ao contrário,
estava constantemente ao lado do príncipe, com um brilho febril no olhar, a fitá-lo com avidez e luxúria.
Logo depois do meio-dia, chegaram notícias de que os cavaleiros do rei inglês chegariam a Tregaron ao cair da noite, para discutir os termos da paz. Depois da derrota
na floresta, tinham mandado um emissário aos soldados de Guilherme para propor um encontro. Mesmo assim, Cassandra sentia-se inquieta.
João, o príncipe Malagraine e os nobres mostravam um estado de espírito incomum. As perdas na floresta de Brod-mir nem foram mencionadas, como se eles não se importassem.
E, sobretudo, havia uma tensão de expectativa tão impenetrável e difusa como a maldade das Trevas a que se referira Elora, com pavor.
Depois, veio o anúncio de que os cavaleiros do rei Guilherme tinham chegado. Os portões de Tregaron foram abertos. Apenas uns poucos guardas permaneciam no topo
das muralhas, menos do que João normalmente designava para proteger a fortaleza. Meia dúzia de guardas pessoais encontravam-se no salão. Alguma coisa estava errada.
Um lauto banquete foi servido. Como hóspede de honra, o príncipe Malagraine sentou-se ao centro da grande mesa perto da lareira. Margeaux ocupou o lugar ao lado
dele. João, como anfitrião e senhor de Tregaron, sentou-se do outro lado.
Cassandra teria preferido observar das sombras, mas João insistiu para que se juntasse a eles e se sentasse a seu lado. O pedido a surpreendeu. Foi então que viu
a expressão no rosto de Malagraine. Um lento sorriso curvou-lhe a boca quando se inclinou para ouvir algo que Margeaux murmurava. Mas seu olhar estava cravado em
Cassandra.
A tensão permeava o ar quando os cavaleiros do rei inglês entraram no salão principal, cada um com vários guerreiros. Não usavam cores ou emblemas. Nem carregavam
estandartes.
Trajavam túnicas escuras sobre calças justas e calçavam botas. As cotas de malha brilhavam sob as túnicas. As lâminas de aço das espadas refletiam as luzes das dezenas
de tochas.
Cassandra procurou entre eles o guerreiro que encontrara naquele corredor escuro em Londres. Depois do segundo encontro, dias antes, na antiga fortaleza, sabia ser
ele quem liderava aqueles homens.
Um dos guerreiros adiantou-se. Como aquele que ela encontrara, era alto e de ombros largos. A mão repousava na empunhadura da espada. A borda do capuz do manto estava
puxada sobre o rosto, impedindo que Cassandra lhe visse as feições.
Ela franziu a testa, pensativa. Não sentia nenhuma das emoções poderosas e apaixonadas que a tinham invadido nos encontros anteriores. Mais perturbador ainda, porém,
era perceber que, por mais que tentasse expandir seus sentidos para captar alguma essência daquele homem, não conseguia sentir nada. Isso era muito incomum, pois,
como Elora, a Velha, a ensinara, os mortais eram facilmente acessíveis para ela, por meio de seus dons especiais de intelecto e intuição.
- Trouxeram espadas de batalha para dentro de Tregaron - João observou, um ar aborrecido a lhe franzir as feições acinzentadas. - Não foram estes os termos acordados.
Ao longo das paredes e dos cantos, os homens de João deram um passo à frente, as mãos nas espadas e lanças.
- Tal como o senhor já deixou evidente - o líder dos homens do rei Guilherme retrucou, a cabeça encapuzada a apontar para a fila de guerreiros que avançava das sombras.
Os lábios de João se curvaram com uma expressão de desgosto. Ao lado dele, Margeaux se endireitou, com um interesse renovado, sua atenção atraída para longe de Malagraine.
O príncipe recostou-se na cadeira, o olhar cravado do guerreiro encapuzado. Não disse nada, mas ergueu a mão do braço da cadeira, num gesto que imediatamente calou
a resposta de João.
Cassandra sentiu a raiva do irmão adotivo. Pela primeira vez, ela percebia quem realmente governava Tregaron. Não era João. Nem mesmo Margeaux, cujas ambições ansiavam
por bem mais que aquelas muralhas de pedra e campos ver-dejantes.
Uma fria impressão de temor envolveu-a, com o presságio de um futuro sombrio que jazia adiante, pois o príncipe Ma-lagraine já mostrara sua autoridade num simples
gesto ao silenciar o protesto de João.
- Um equívoco - Malagraine explicou, como se fosse mera trivialidade. - São tempos perigosos. Muitos morreram. É preciso precaução. - A uma ordem gestual, os homens
de João recuaram para as sombras.
Cassandra não se deixou enganar e suspeitava que o guerreiro postado diante deles não se iludira também. Embora tivessem relaxado as mãos nas armas e recuado, os
soldados continuavam de prontidão. E ela agora sentia vários outros, não notados, entre eles. Estranhou, pois não eram nem guerreiros do príncipe nem de João.
Não conseguia vê-los, mas lhes sentia a presença, as emoções ferozes, os pensamentos perigosos. Inquietou-se. A seus pés, percebeu a perturbação de Fallon também.
Stephen observava das sombras, escondido entre os camponeses de Tregaron, com o resto de seus homens, vestido como eles, as armas ocultas sob os trajes simples.
Seu olhar percorreu o salão, contando mentalmente o inimigo. Havia usado de dissimulação para entrar em Tregaron. E precisariam usar de astúcia para sair, pois não
tinha certeza, agora, do resultado daquelas negociações.
Ele e seus homens haviam aceitado o convite de Tregaron, porém não eram tolos. Depois de escapar por pouco de uma armadilha, ele suspeitava de outra. Por isso, colocara
outro como líder e um punhado de seus guerreiros no salão.
Truan Monroe insistira em apresentar-se como o comandante, embora o perigo fosse grande. Estariam rodeados pelos guerreiros de Tregaron, sem nenhuma possibilidade
de fuga, a menos que Stephen e o resto de seus homens conseguissem meios de escapar. A despeito das probabilidades de sobreviverem estarem contra eles, Monroe insistira.
- Eles não me matarão - declarara, com uma confiança inacreditável em face das dificuldades.
- Você é imprudente, meu amigo - Stephen lhe dissera. - Será muito perigoso.
- O mundo é perigoso - retrucara Monroe. - Se nos escondermos do perigo, ele certamente nos encontrará.
Agora, lá estava ele de pé, no centro do salão, com um punhado de homens, rodeado pelos guerreiros de Tregaron.
Então Stephen avistou a jovem que se sentava à direita de João de Tregaron, à longa mesa, a mesma jovem que ele encontrara do lado de fora da corte real em Londres
e, outra vez, dias antes, na antiga fortaleza. Cassandra de Tregaron.
Era tão bela como se recordava... Tão linda como a imagem tecida em seda na tapeçaria. A quem, porém, ela servia?
Estava sentada ao lado de João de Tregaron, imóvel, o rosto sem expressão. A não ser os olhos. Brilhavam como violetas banhadas pelo sol, num turbilhão de emoções
incontáveis. Seu rosto era pálido à luz mutante das tochas. Os cabelos, da cor de cetim negro, escorriam por sobre um ombro e tombavam até a cintura. Ela ia se levantar,
mas Tregaron a impediu. Mas, ao observá-la, Stephen viu o que poucos poderiam ver, quando ela se livrou do aperto de Tregaron tão facilmente como se limpasse uma
pitada de poeira da saia.
Viu o constrangimento de Tregaron, e depois a raiva perigosa que reluziu em seus olhos cruéis.
- Estes são os termos pelos quais o senhor e seus homens podem viver - João de Tregaron repetiu, representando seu papel de senhor poderoso ao expor as condições.
Mas Stephen sabia de onde vinha o verdadeiro poder: do príncipe Malagraine. - Renderão seus cavalos e armas - Tregaron continuou a exigir de Monroe. - Seu rei pagará
indenização pelas vidas perdidas nas terras do Oeste. Além disso, pagará um resgate pelas vidas dos seus cavaleiros. Se não o fizer, então os guerreiros morrerão.
- Esses - exclamou, com um sorriso vazio de qualquer humor- são os nossos termos!
Cassandra estava estupefata. Aquelas deveriam ser negociações de paz para acabar com a matança, depois das mortes brutais dos primeiros guerreiros enviados pelo
rei inglês e do recente ataque na floresta de Brodmir.
Aqueles termos eram um insulto. Seu irmão devia estar louco. Então, seu olhar encontrou o de Malagraine, e Cassandra viu a maldade sombria que cintilava naqueles
olhos. Na noite anterior, vira a verdadeira natureza daquele homem na maneira com que a observara, encurralada nas sombras do corredor, enquanto ele e Margeaux mantinham
relações. E percebeu que o príncipe não tinha nenhuma intenção de negociar a paz.
Era tudo uma mentira. E, ao observá-lo, percebeu que havia muito mais. Ele queria, deliberadamente, provocar uma confrontação. Tinha de ser impedido, antes que mais
homens morressem. Cassandra levantou-se da cadeira.
João pousou a mão em seu braço, puxando-a para baixo.
- Quer me trair outra vez, irmã? - murmurou com voz rancorosa. - Avisando-os, como fez na floresta de Brodmir? Esqueceu-se de com quem está lidando.
Ela o encarou, incrédula. Não era possível que João soubesse que ela avisara os ingleses, pois ele ignorava seus poderes. Contudo, de alguma forma, João soubera.
Então, percebeu que mais alguém a observava: Malagraine. E aqueles olhos negros luziam, intensos.
Cassandra voltou a sentar-se na cadeira. Não poderia permitir que aquilo acontecesse. Quaisquer que fossem os planos de Malagraine, jurou que o impediria. Concentrou-se
em seu poder. Depois, ao fitar João, livrou-se com facilidade dos dedos que lhe apertavam o pulso, como se afastasse um inseto. Não permitiria que ele agisse assim.
- Você não sabe com o que está lidando, irmão - avisou. - Tome cuidado.
Mas João não mais a escutava.
- O que diz? - ele perguntou ao guerreiro.
- Não sou nenhum cavaleiro do rei inglês - o guerreiro assegurou e se aproximou por vários passos. Tirou as manoplas e empurrou o capuz para trás.
Cassandra o fitou com surpresa. Não era o guerreiro que encontrara na corte do rei Guilherme nem nas ruínas do castelo, na segunda vez. Era um completo estranho.
Não conseguia captar seus pensamentos como sentia os dos outros, mas, mesmo assim, tinha a sensação de que devia conhecê-lo.
As feições eram difíceis de discernir atrás da barba escura que lhe cobria o rosto. Mas não havia como disfarçar a força do ângulo do queixo, a boca sensual curvada
num sorriso de malícia e os olhos da cor de cobalto, que cintilavam de astúcia.
- Não devo obediência a nenhum homem.
- No entanto lidera os guerreiros do rei Guilherme.
- Não os lidero. Luto com eles. Há uma diferença.
- Tem nossos termos - João o relembrou, a mão fechada em punho sobre o tampo da mesa, como se sua paciência se acabasse.
- Bem, existe um problema - o guerreiro retrucou, num tom afável. - Não podemos entregar nossos cavalos - disse, com um riso suave. - Senão, como iríamos deixar
as terras do Oeste? E manteremos nossas armas também, pois existem perigosos rebeldes saxões por aí. Seu sorriso se alargou.
- Tenho certeza que uma pessoa da sua posição está bem ciente disso. E não haveria de querer deixar esses homens desprotegidos, pois poderiam cair sob o ataque de
algum inimigo despercebido.
O interesse de Cassie aguçou-se diante do sutil jogo de palavras. Aquele não era o bobo alegre que fingia ser, pois sabia exatamente o que João pretendia fazer.
Nem ele e os demais homens tinham simplesmente entrado em Tregaron, Cassandra sentiu, com a presunção de que seriam recebidos com acolhedoras promessas de paz.
Quem era ele? Por que parecia liderar os homens quando ela sabia que era uma farsa? O que havia a respeito dele que parecia de certa forma familiar, ao mesmo tempo
em que tinha certeza de que não o conhecia?
- O rei Guilherme não veria tais coisas com bons olhos e poderia julgar necessário enviar todo o seu exército para as terras do Oeste - o guerreiro ponderou. Depois,
deu de ombros, com ar divertido, como se negociasse cavalos e simplesmente barganhasse o preço. - Quanto à indenização, receio que não haja nenhuma.
Então, Cassie percebeu a mudança sutil na voz do guerreiro. E não era nenhuma peça que ele estava representando.
- Agora, o senhor ouvirá nossos termos.
As sobrancelhas de João se juntaram num ângulo agudo diante de algo que ele não antecipara. Malagraine não demonstrou exteriormente qualquer surpresa, a não ser
ao estreitar aqueles olhos sombrios e atentos.
- Se seus homens renderem suas armas, o senhor terá permissão para viver - declarou o guerreiro.
João encarou-o, incrédulo. Então, caiu na gargalhada.
- Você mal conta com uma vintena de guerreiros. Não creio que esteja em posição de fazer tais exigências quando são tão poucos.
-As aparências podem ser ilusórias-retrucou Monroe, a boca a se curvar nos cantos, num sorriso charmoso e, ao mesmo tempo, atrevido e predatório. Embora não conseguisse
captar seus pensamentos, Cassandra sentiu o perigo que emanava daquele homem.
Como um tolo, João soltou outra gargalhada.
- Ora, você e seus homens não dariam nem para o começo.
O guerreiro riu. E sua voz tornou-se gélida como a morte, numa transformação tão repentina e terrificante que Cassie estremeceu.
- Seus homens cometeram o mesmo erro na floresta de Brodmir - ele relembrou a João.
Cassandra viu o movimento nas sombras onde se postavam os homens do irmão adotivo, alinhados contra a parede. Num piscar de olhos, uma dezena deles despencou para
a frente. Então, avistou o guerreiro que passava por sobre o guarda mais próximo, que caíra morto, ao mesmo tempo em
que pelo menos outras duas vintenas de guerreiros apareciam de repente entre os homens de João.
O capuz do traje de camponês que ele usava foi empurrado para trás, os cabelos acastanhados como pele de zibe-lina a luzir à luz das tochas, quando ele ergueu a
espada. O olhar que encontrou o de Cassandra era como âmbar derretido. Uma expressão feroz endurecia as belas feições. Seus pensamentos eram tão claros e perigosos
como na primeira vez em que ambos haviam se encontrado.
João saltou da cadeira, derrubando-a para trás. Em meio ao caos, Cassandra ouviu os gritos de Margeaux e viu Ma-lagraine sacar a espada. Os guerreiros do rei Guilherme
pareciam enxamear pelo salão.
Um deles agarrou Margeaux. Cassandra tentou ajudá-la, mas não conseguiu; a mesa foi virada e meia dúzia de outros guerreiros atacou a plataforma sobre a qual estavam.
João sacou a espada ao recuar. Então, virou-se e fugiu, abandonando todos. Rodeado por vários de seus homens, Malagraine abriu caminho para fora do salão. Cassandra
poderia ter fugido facilmente, usando de seus poderes, mas nãó o fez.
João atraíra os guerreiros do rei Guilherme para Tregaron com promessas de negociar a paz. Agora, estavam encurralados dentro da fortaleza. Pois, se ela bem conhecia
o irmão adotivo, ele sem dúvida reunira mais homens, que eram esperados naquele exato momento.
Com Fallon a seu lado, Cassandra procurou ao redor, em busca do guerreiro que conhecera em Londres. Poderia ainda haver uma chance de salvar seus homens. Um dos
guardas de João tentou barrar-lhe o caminho, mas se viu confrontado com o lobo, e foi jogado ao chão, a espada a lhe voar dos dedos. Outro tentou agarrá-la, porém
recuou quando o animal o atacou.
Cassandra viu o guerreiro alto e barbudo empenhado numa luta no centro do grande salão. Gradualmente, abriu caminho para fora, livrando-se com grande perícia. Mais
dois guerreiros do rei Guilherme investiam sobre a mesa revirada.
Se pudesse alcançá-los, ela os protegeria e os tiraria dali em segurança. Mas viu seu caminho bloqueado pelo homem que encontrara no corredor da corte, em Londres.
- Boa noite, Cassandra. Voltamos a nos encontrar. - A raiva faiscava nos olhos de um âmbar dourado, quando Stephen a cumprimentou com a espada em punho. - Esta é
a recepção de boas-vindas que planejou para mim e meus homens?
Espantada com a pergunta e que ele soubesse seu nome, Cassandra recuou, hesitante. O desejo de alcançar e conduzir os homens para longe, em segurança, fora um instinto
de uma criatura mortal. Agora, usaria de seus outros sentidos e dos poderes com que nascera para captar os pensamentos do guerreiro. Conectou-se com a lembrança
de seus outros encontros, pois havia alguma coisa a mais que lhe fugia.
- Não há tempo - ela avisou. - Você e seus homens precisam sair daqui agora.
- Sim - concordou Stephen -, devemos sair andando enquanto duzentos rebeldes saxões esperam além daquelas muralhas para nos abater quando passarmos.
Cassandra fechou o cenho diante do frio sarcasmo.
- Existe um outro caminho - explicou. - Ao longo das cavernas abaixo da fortaleza. Mas vocês precisam sair agora e depressa. Ou todos morrerão.
- E você não se preocupa com o que pode lhe acontecer?
- Não, claro que não.
O belo guerreiro barbado juntou-se a eles, acompanhado de vários outros combatentes.
- Tregaron e os seus homens fugiram - informou.
A luta se reduzira a não mais que umas poucas escaramuças entre os soldados do rei e os últimos soldados de Tregaron que não haviam fugido.
- Reúna o resto dos homens - Stephen ordenou. - Sairemos deste lugar agora. - Agarrou Cassandra pelo pulso. - E você nos mostrará o caminho.
Ela sentiu uma estranha advertência de perigo provinda daquele guerreiro que não captara antes. Instintivamente, tentou libertar-se, mas não conseguiu. Ao ver que
ele não a soltaria, tentou escapar atraindo seus poderes.
- Não desta vez - Stephen murmurou, ao tirar um pedaço de fita azul da frente da túnica e amarrá-lo depressa em torno do pulso de Cassandra.
Leve como uma pluma, suave como cetim, a fita brilhou à luz das tochas, como se tivesse vida, e fechou-se em seu pulso como se fosse feita de aço.
Extremamente alarmada, Cassandra tentou invocar seus poderes, mas descobriu que não conseguia. Tentou libertar-se, debatendo-se, sem sucesso. Depois, chamou Fallon
mentalmente, porém percebeu que não conseguia comunicar-se com ele por pensamentos. Confuso, cauteloso com aqueles estranhos e com o medo que sem dúvida captara
na dona, o lobo branco se esquivara furtivamente para as sombras.
O pânico dominou Cassandra. Seu coração disparou. Pela primeira vez na vida experimentava uma emoção que nunca conhecera. Medo.
O que estava acontecendo? Quem era aquele guerreiro estranho que encontrara pela primeira vez por acidente, ao passar pelo portal de luz para o corredor do lado
de fora da corte de Guilherme, em Londres?
Que poderes ele possuía que anulara os dela? Elora lhe contara histórias dos velhos dias da época do grande cata-clismo. E a avisara sobre os poderes das Trevas.
Seria ele um guerreiro das Trevas?
Embora não mais possuísse o poder de conhecer os pensamentos dos outros, Cassandra se recordou de algo que a Velha lhe ensinara:
As Trevas são de uma maldade tão penetrante que consomem a luz da verdade, da honra e do amor. Tome cuidado, menina, pois elas se erguerão novamente. Estão aqui
agora, a esperar nas sombras. Você deve destruí-las, ou será destruída.
Stephen puxou-a contra o próprio corpo, empurrou-lhe os braços de Cassandra para trás e amarrou os pulsos juntos, às costas, como se ela fosse uma galinha no mercado.
A luz das tochas reluziu nas profundezas dos olhos cor de violeta, sombrios e tempestuosos.
O que ele via ali? Medo? Traição? Raiva? Ou as sombras das Trevas, que já poderiam ter se apossado dos poderes daquela jovem?
Cassandra sentiu a emanação rude da força do guerreiro pelo corpo todo, comprimido contra o dele. Os olhos cor de âmbar se estreitaram como se ele tentasse enxergar
dentro dela. O terror instalou-se em seu peito de uma forma diferente de qualquer coisa que ela já tivesse vivenciado. Sentiu-se desnudada, completamente sem força,
com apenas a energia mortal para protegê-la, e teve consciência de que não era páreo para a dele.
- O que você fez? - Cassandra murmurou.
- Eu a tomei como prisioneira.
- Não é preciso. Solte-me.Eu o ajudarei a escapar.
- Vai nos ajudar a escapar, e eu não a soltarei. Quando ela ia protestar, Stephen fez um sinal para que seus homens os seguissem. Então, voltou-se de novo para Cassandra.
- Onde fica essa passagem abaixo da fortaleza?
Ela os conduziu para a entrada, uma série de degraus de pedra que desciam para buracos escavados na rocha e cavernas que os antigos senhores da fortaleza haviam
construído de sobreaviso contra invasões. Cassandra não tinha idéia se João sabia das cavernas.
Os homens seguiram em fila, atrás deles, atentos pelo caminho, armas em punho, caso ela os conduzisse para uma. armadilha. Então, Cassandra viu, de relance, que
Margeaux também fora feita prisioneira. Embora se debatesse, eles a haviam silenciado com um pano amarrado na boca, e tinha as mãos atadas às costas.
As paredes eram úmidas, o ar abafado e de cheiro fétido. Cassie descobrira as passagens fazia muito tempo, quando fora viver em Tregaron. Embora pudesse deslocar-se
à vontade, algumas vezes usava as passagens por precaução caso pudesse ser vista e seus dons, descobertos.
O ar penetrante do mar encheu-lhe os pulmões, ao chegarem ao fim da passagem que se abria para os penhascos litorâneos.
- Estes penhascos ficam à beira da floresta. Podem escapar sem serem vistos. - Embora sua voz tremesse, Cassandra murmurou, desafiadora. - Seus homens estão salvos.
Exijo que me solte.
- Não posso - retrucou Stephen. - Você virá conosco. O medo fechou a garganta de Cassandra. Ela torceu os pulsos, tentando livrar-se da corda rústica. Deu um passo
para trás, respirou fundo, procurou confiar em seus sentidos, numa tentativa de reunir o poder com que sempre contara. Não captava nenhum dos pensamentos de ninguém.
Não sabia em quem confiar. Recuou outro passo, aproximando-se perigosamente da beira do penhasco.
- Não irei com você. Não pode me forçar. - Palavras corajosas, quando o pavor lhe apertava a garganta.
O vento embaraçou-lhe os cabelos e moldou-lhe o vestido contra o corpo. Seus pés escorregaram nas pedras molhadas que a espuma das ondas encharcava. Mesmo assim,
ela recuou outro passo.
Ao fazê-lo, foi subitamente agarrada por um dos homens. O guerreiro de olhos azuis que se apresentara como líder em Tregairon. Cassandra gritou quando ele a afastou
para longe da beira do penhasco. Em terreno mais firme, ela começou a se debater e tentou escapar.
Dedos fortes fecharam-se em seu ombro, um toque acariciou-lhe de leve a nuca. Foi a última coisa que Cassandra sentiu, antes que a escuridão a envolvesse. Desmaiou,
a cabeça a pender contra o ombro de Truan, conforme ele a erguia nos braços.
- O que aconteceu? - perguntou Stephen, espantado.
- Ela deve ter perdido os sentidos. - Truan explico u Então, sorriu. - Pelo menos, desse jeito, não causará nenhum problema.
Stephen concordou. -
- Sim, traga-a. Precisamos encontrar os cavalos e sair deste lugar. - Ergueu os olhos para a fortaleza de Tregairon, empoleirada nas rochas, lá no alto. Luzes brilhavam
em torno das muralhas. Não demoraria muito até que a fuga fosse descoberta. - Precisamos chegar a Camelot antes do alvorecer.
Cassandra acordou e abriu os olhos com relutância, devido à luz que incidia dolorosamente em seu rosto. A mão que sentiu na testa era fria e gentil, uma carícia
delicada que trouxe consigo devaneios vagos e lembranças enevoadas Depois, se foi, conforme ela lutava para escapar do vácuo escuro do sono sem sonhos.
Lançou os pensamentos ao redor, tentando captar o que acontecia, mas encontrou apenas silêncio. Procurou voltar-se para o íntimo, em busca do poder que era como
uma voz que sempre a guiava, porém não houve resposta.
Ouvia-se apenas um débil som sibilante, ocasionalmente interrompido por um estalar agudo, que ela reconheceu como o ruído do fogo no braseiro, o cantar musical de
água e aquela mão gentil com um pano frio que pousava em sua testa.
No teto, havia belas flores, centenas delas, que caíam em cachos de trepadeiras, de um verde luxurioso, que subiam pelas paredes. E, com o belo cenário, vinha um
cheiro delicioso, fugidio a princípio, depois a espalhar-se sobre ela em ondas perfumadas. Sob seu corpo, parecia que havia uma nuvem macia.
Então, lembranças vívidas retornaram. De uma batalha feroz entre os rebeldes saxões e os guerreiros do rei Guilherme, em Tregaron, a fuga ao longo das cavernas sob
a fortaleza, com ela feita prisioneira e sem mais contar com os poderes extraordinários.
Sentou-se e conteve o fôlego com a dor a latejar em sua cabeça. Uma onda de náusea dominou-a.
- Calma, menina - uma voz murmurou. - Vai passar.
Cassandra comprimiu os dedos contra as têmporas, abriu os olhos e viu a criatura que estava de pé ao lado da cama. Era velha, miúda e frágil. Os longos cabelos brancos
emolduravam-lhe a cabeça numa nuvem prateada. Os olhos chamaram-lhe a atenção: eram leitosos e opacos. A mulher era cega.
- Um pequeno inconveniente - disse a velha, com um sorriso. - Mas eu vejo bem mais que a maioria que enxerga.
Afastou-se da cama em passos lentos e depois voltou, também devagar. Tinha uma caneca na mão.
- Beba isto. - Diante da expressão de suspeita de Cassie, explicou: - É um tônico. Afastará o resto do desconforto.
Cassie pegou a caneca, hesitante, e cheirou o conteúdo fumegante. Camomila. A velha sorriu ao sentar-se num banco ao lado da cama de peles, enquanto Cassandra bebia
o chá.
- Eu sei alguma coisa sobre a arte da cura - explicou a mulher, com um sacudir dos ombros. - Se quisesse envenená-la, poderia. - Antes que Cassie perguntasse, murmurou:
- Me chamam de Meg.
A despeito da cegueira, Cassie sentiu que a velha a observava, os olhos vazios e brancos cheios de perguntas.
Cassandra colocou a caneca sobre o banco e esticou as pernas pela borda da cama. Baixou os pés até o chão frio de pedra. Quando percebeu que o quarto não iria rodopiar,
levantou-se devagar.
- Que lugar é este? - indagou.
- Chamam de Camelot.
- A antiga fortaleza? Mas ela foi destruída muito tempo atrás... Nada restou, a não ser ruínas. - Cassandra deu um passo hesitante. O dor já não a incomodava.
As paredes tinham um tom suave de rosa, a cor natural da pedra com a qual fora construída. Um braseiro espalhava calor, e a luz dourada brincava pelas paredes e
criava a ilusão de uma alvorada. No alto, a abóbada florida se espalhava pelo teto, cada botão pintado como se alguém tivesse tentado recriar um céu cheio de flores
de primavera.
- Nem tudo são ruínas - Meg retrucou, com um sorriso. - Alguma coisa restou. Dizem que à espera do herdeiro certo para reivindicá-la.
- A relutar com o fenecer da Luz, e no aguardo das Trevas da noite... - Cassie repetiu as palavras da antiga lenda conhecida entre os antigos durante quinhentos
anos e murmurada entre a gente simples que ainda acreditava que o antigo rei voltaria a governar um dia. Encarou a velha com um olhar cauteloso.
- Como vim parar aqui? Quem é você?
Havia muitas respostas, pensou Meg. Por onde começar? E qual ela aceitaria? Não conseguia penetrar no verdadeiro coração da jovem, nem sabia se as Trevas já a haviam
dominado. Só sabia que o poder era forte dentro dela, muito mais forte do que em Vivian ou Brianna. Aquela filha da Luz tinha o poder da grandeza. Se o aceitasse...
se não tivesse se voltado para as Trevas...
- Você foi trazida para cá pelos homens do rei Guilherme, depois que lorde João os traiu.
- E aquele que os lidera? - Cassie perguntou, correndo os dedos pela fita que estava amarrada ao seu pulso, tentando encontrar um jeito de removê-la.
Qualquer que fosse sua origem, tinha um efeito estranho, pois assim que o guerreiro a amarrara em seu pulso, era como se estivesse presa em grilhões. Logo, porém,
escaparia, pois qualquer grilhão tinha uma chave que o destrancava. A fita não tinha nem começo nem fim. Nem se rompia.
- É um cavaleiro do rei - respondeu Meg. - Chama-se Stephen de Valois.
- Havia outro com ele - comentou Cassie, a caminhar lentamente pelo quarto, procurando algum meio de tirar a fita, pois tinha certeza de que era o motivo da perda
de seus poderes. - Um guerreiro alto, de barba escura e ar de bobo alegre.
-- De bobo não tem nada - retrucou Meg, acompanhando o som da voz. - Truan Monroe é das ilhas além do mar do Oeste. - Captou a próxima pergunta de Cassie. - Não
deve fidelidade a nenhum rei. Juntou-se à luta contra Ma-lagraine.
Cassandra a encarou com surpresa, ao perceber que a velha tinha o dom de ler os pensamentos. Sabia que havia muitos com aquela habilidade, mas nunca encontrara ninguém
além de Elora. Então, viu a fina faca que pendia do cinto da velha. Ocultou os próprios pensamentos com cuidado ao se aproximar lentamente de Meg.
- Havia um lobo branco. O que aconteceu a ele?
- Ele nos acompanhou desde Tregaron, mas não se aproxima de ninguém nem deixa que alguém se aproxime dele.
- E a outra mulher que foi capturada? Meg bufou.
- Tem um temperamento detestável. Não deveriam tê-la trazido. Mas pensam em negociá-la com Tregaron. Em meu ponto de vista, já fizeram a pior das barganhas.
- E qual será a minha sorte? - perguntou Cassandra. - Qual é o meu valor para os guerreiros do rei Guilherme?
- Era uma conversa para distrair a velha, mas a resposta a espantou.
- Bem mais do que imagina, minha menina: o futuro inteiro de um reino.
Por um momento, Cassandra hesitou. Sem seus poderes, mesmo a mais simples habilidade, nada conseguia discernir além das palavras da mulher. Contudo havia algo na
maneira com que ela o dissera, uma tristeza profética envolvida num pequeno fragmento de esperança que ressoara em seu íntimo como uma voz rememorada que murmurava
algo que ela não conseguia ouvir claramente.
E, naquele breve instante, sentiu que conhecia a velha senhora de um outro tempo e lugar.
Afastou a sensação. Aproveitando-se da única oportunidade que poderia ter, avançou para a velha e apoderou-se da faca em sua cintura.
Menina esperta, pensou Meg. Corajosa. Privada de seus poderes pelo sortilégio que virtualmente a mantinha prisioneira no mundo mortal, ela lançara mão dos recursos
de qualquer ser humano para libertar-se.
Precisaria de todas as suas qualidades mortais, assim como dos dons imortais para aquilo que estava adiante, pensou Meg. Então, sentiu a frustração e a raiva de
Cassandra por intermédio dos pensamentos desguardados e tomados de pura emoção. A faca não cortava a fita.
- Não pode ser cortada - Meg lhe disse, desejosa de poder tirar a fita e acalmar os medos de Cassandra. Mas não poderia, pois não tinha tal poder. - Só há uma pessoa
que pode tirá-la. Aquela que a colocou aí.
A faca caiu ao chão e retiniu como a explosão de uma raiva humana. Meg percebeu a angústia crescente de Cassandra e o medo que ela tentava esconder.
- É um feitiço.
- Com que finalidade? - Cassandra perguntou.
Não foi Meg que respondeu, mas alguém que entrava no quarto naquele instante:
- Para impedir que fuja.
Cassandra virou-se. Stephen de Valois estava na soleira da porta do quarto. A luz do braseiro brincou pelas belas feições e reluziu nos olhos cor de âmbar, fazendo-a
recordar-se daquele dia em que o encontrara por acaso, e quando ele se recusara a deixá-la ir, viajando através do portal de luz em que poderia facilmente ter morrido.
Novamente, Stephen a mantinha prisioneira.
- Deixe-nos a sós - ele pediu gentilmente à velha senhora.
Meg hesitou, uma ruga a lhe crispar a testa. Então, concordou e dirigiu-se para a porta. Parou ao passar pelo guerreiro. Segurou-o pelo braço com uma força incrível
para sua mão frágil.
- Tudo que ela conhece lhe foi tirado. Está vulnerável e assustada como uma criança que precisa aprender tudo outra vez. Stephen franziu a testa.
- Não irei lhe fazer nenhum mal. Tem minha palavra.
- Não é com ela que estou preocupada, milorde.
De repente, ouviu-se um estouro de louça quebrada que vinha de dentro do quarto.
Meg recostou-se contra a porta maciça que apenas recentemente fora recolocada. Meneou a cabeça. Pensamentos ansiosos conectaram-se aos seus no silêncio do corredor:
Fale sobre ela. Conte-me tudo.
Captou todas as esperanças e temores de Ninian na mente que se unia à sua, enquanto a mãe procurava desespera-damente saber algo a respeito da filha que não via
fazia tantos anos.
- Tem sua lógica e sensibilidade - respondeu Meg, em voz alta, como se alguém estivesse ali para ouvir. - É esguia e bela. - Lembrou-se da sensação das feições,
da curva delicada do queixo, do nariz arrebitado. - Também é teimosa e voluntariosa. - Uma outra peça de cerâmica explodiu na porta, e Meg emendou: - E tem o temperamento
do pai.
E quanto ao coração? É sincero?
Na pergunta não formulada, Meg percebeu o pior medo de Ninian: que sua filha teimosa e voluntariosa já pudesse estar perdida para as Trevas.
Com tristeza, havia só uma resposta que ela poderia dar.
- Não sei, patroa. Só o tempo dirá se o coração de Cassandra é sincero. Se sobrevivermos.
- Largue isso! - Stephen ordenou ao confrontar a zangada prisioneira. - Se quebrar, terei de bater em você. Em menos tempo do que levara para a velha deixar o quarto,
ele já estava prestes a perder a paciência. Naquele momento, umas boas palmadas pareciam uma excelente idéia, embora tivesse prometido não maltratar a jovem.
Desviou-se de outro pote, um dos poucos intactos nas ruínas da antiga fortaleza, que passou a milímetros de sua cabeça e explodiu na parede.
- Pare com isso agora! - Inclinou-se a tempo de impedir que outro projétil estourasse em seu crânio. - Chega! - Resmungando uma praga, avançou contra Cassandra.
Ela era ágil e rápida. Fugiu de Stephen e pegou outro pedaço de louça do arsenal apanhado às pressas para atirar nele. Quando Stephen avançou, ela o atingiu com
uma carga de cacos voadores, pedaços de metal, galhos e utensílios de madeira. Ele só conseguiu agarrá-la pelo braço quando Cassandra tentou pegar um pote de barro.
- Não faça isso! - Stephen exclamou, a paciência esgotada.
Ela o encarou com aqueles olhos violeta e uma expressão inocente que poderia derreter o coração mais empedernido.
- Muito bem, milorde - disse, com tamanha suavidade e doçura que ele cometeu o erro de acreditar. Cassandra estendeu a outra mão e abriu os dedos. O pote estourou
ao cair sobre o chão de pedra.
Stephen estava furioso. O quarto, um dos poucos na fortaleza que permanecera intacto durante todos aqueles anos, estava agora um caos. Em questão de poucos instantes,
ela conseguira o que quinhentos anos de decadência e os ratos não haviam logrado.
- Vai tirar a fita?! - Cassandra exclamou, sem se dobrar quando os dedos dele lhe apertaram o braço.
- Preferiria cortar o meu braço - Stephen retrucou, furioso. Puxou-a contra si.
- Isso pode ser arranjado, milorde. Na verdade, vai ficar sem os dois, se eu puser minhas mãos naquela espada.
Raiva e ameaças. Meg tinha razão. A jovem era como uma criança, privada dos poderes que conhecera a vida inteira pelo encantamento da fita enrolada em seu pulso,
e lutava da única maneira que sabia, com o que lhe sobrara: o instinto de mortal.
Mas a criatura que Stephen retinha nos braços não era uma criança. Era uma mulher de beleza extraordinária, com olhos violeta que faiscavam entre a raiva e as lágrimas,
faces que queimavam de rubor, pele como um pálido cetim e seios macios que ele sentia através das camadas de roupa a cada respiração.
Ela arqueou as costas, o corpo rígido, ao se afastar de Stephen, a expressão de surpresa com o contato íntimo.
- Solte-me - exigiu, a voz baixa e cheia de incerteza. Stephen se recordou do primeiro encontro, que poderia ter terminado de modo bem diferente. Os poderes da jovem
eram grandes, sua força imortal muito maior que a dele. Cassandra poderia tê-lo abandonado enquanto viajavam pelo portal de luz, deixando-o diante de um destino
incerto talvez pior que a morte. Mas não o fizera.
Quando ela o tocava, tocava uma parte mais profunda dentro dele. Como se chegasse à sua alma, uma criatura de luz, não deste mundo, uma criatura que assombrara
sua 1 branca e o trouxera a uma terra desconhecida numa missão perigosa.
Agora, era ela que precisava dele.
Stephen afrouxou a pressão dos dedos e soltou-a. Abriu um sorriso diante da expressão de espanto que imediatamente surgiu nos olhos de Cassandra, diante de uma reação
que não previra.
Ciente das ameaças, Stephen pegou a faca de Meg do chão. Firmeza e paciência, recordou-se, tinham feito maravilhas com ele, quando criança. E trabalhou duro, depois
de ter pesado as opções a escolher.
Primeiro, ela precisava de tempo para considerar as escolhas que devia fazer, pensou Stephen, ao colocar a faca no cinto. Olhou ao redor, pensativo. a
- Vai limpar este quarto - disse, olhando para a destruição que Cassandra causara. Não era uma escolha, era uma ordem. Um pouco de trabalho duro daria tempo a ela
para pensar. - Esfregará o chão e as paredes. Quando tiver limpo, terá comida e roupas limpas; antes, não. Se- não estiver limpo, ficará com fome.
Os olhos violeta faiscaram. Os pés firmemente no chão, as mãos nos quadris, ela perguntou:
- Pensa em me submeter pela inanição?
Cassandra era a imagem deliciosa da infantilidade (desafiadora e indignação feminina. Stephen cerrou os dentes para não rir. Ou beijá-la. O perigo jazia no caminho,
e ele estava disposto a não percorrer aquela estrada, pois fora testemunha do feitiço a que seus dois amigos tinham sucumbido ao se envolverem com as filhas de Merlim.
- Não precisa morrer de fome - Stephen retrucou, com firmeza e ironia, ao se lembrar de seus próprios confrontos com a autoridade, quando criança. - Só precisa cooperar.
A escolha é sua.
- Porco! - ela exclamou, desejando ter o poder de transformá-lo com aquelas palavras. Ele nem mesmo piscou diante do insulto. Na verdade, Cassandra teve a impressão
de que o guerreiro quase sorrira. O que apenas a enfureceu mais. - Você é pior que um porco! Se não me soltar, eu juro que...
Stephen cortou-lhe a frase com um gesto brusco.
- Fará o quê, Cassandra? - perguntou, com um sorriso. Segurou-a pelo pulso, a fita a brilhar à luz das tochas. - Quem sabe me transformará num porco-espinho.
A mão dele era quente, e seu polegar tocou-lhe o pulso na curva abaixo da mão, os longos dedos a lhe envolverem o braço com uma pressão gentil. Cassandra sentira
aquele poder antes, no primeiro encontro, quando Stephen a agarrara no momento em que ela tentara fugir pelo portal, e, novamente, quando fora seqüestrada de Tregaron.
Sabia do poder mortal daquelas mãos, acostumadas a empunhar a espada com perícia letal. Contudo os dedos que lhe prendiam o pulso eram surpreendentemente gentis,
seu toque quase uma carícia que Cassandra poderia facilmente interromper.
Puxou o braço e, instintivamente, esfregou o lugar onde os dedos a tinham retido pelo pulso.
- Um porco-espinho seria muito bom-murmurou, tentando disfarçar a sensação desconcertante que permanecia em sua pele, no lugar em que Stephen a tocara.
- Talvez tenha a oportunidade - declarou ele, e voltou-se para sair. À porta, parou. - Mandarei lhe trazerem comida, mas só quando o quarto estiver cuidadosamente
limpo. A escolha é sua.
- O que quer dizer que terei permissão para viver se eu me submeter às suas exigências.
Com uma calma irritante, como se o resultado não importasse, Stephen deu de ombros e repetiu:
- A escolha é sua, demoiselle.
- Isso não é escolha! - Cassandra berrou quando ele fechou e trancou a porta atrás de si. - Seus termos ou nada? Não aceito tais condições! - A última peça de cerâmica
estourou na porta, transformando-se em cacos.
Deveria existir um jeito mais fácil, pensou Stephen, diante da percepção que todas as coisas na vida perfaziam um círculo completo, ao revisitar os atos da infância
agora, como homem. Como gostaria de ter sido uma criança menos teimosa e birrenta.
Por fim, exausta, Cassandra encostou na parede. O fogo queimava baixo no braseiro. Não havia nem comida nem água nem qualquer recipiente inteiro dentro do quarto.
A raiva amainou, e ela se viu a sós com os pensamentos, enquanto uma dúvida avassaladora a dominava.
Onde está, Elora? Preciso de você. Ensinou-me a usar meus poderes, mas não me ensinou como viver sem eles. O que devo fazer?
Apenas o silêncio veio em resposta a seus pensamentos angustiados.
Cassandra sentou-se contra a parede, desorientada, sem seus sentidos para guiá-la. Então, por fim, sua percepção mortal se aguçou. E ela ouviu ruídos além da porta
como se alguém se aproximasse e depois passasse. Levantou-se e tentou correr o ferrolho, embora soubesse que a porta fora trancada pelo lado de fora. Voltou-se para
o íntimo e tentou reunir seus poderes para abrir a tranca, embora soubesse que estava impotente. Depois, foi até as janelas.
Eram em arco, emolduradas de madeira e feitas de um material resistente, em algum tempo pintadas num tom delicado de rosa. Uma prisão real, certa vez ocupada por
uma rainha.
Abriu uma das janelas e espiou para fora. Descobriu que estava num quarto de uma alta torre. Havia um pequeno patamar do lado de fora, porém nenhum meio de fugir
até o chão, a não ser que tivesse asas. E, no momento, era óbvio que não tinha.
Passeou de um lado para outro, a chutar os pedaços de louça, os dedos a esfregar a fita, imaginando sua origem: um encantamento com a capacidade de lhe roubar os
poderes. Onde o guerreiro a arranjara? Qual era a fonte do poder daquele pedaço de pano? Quem era Stephen de Valois? Era um servo das Trevas? Se assim fosse, por
quê, como Elora a avisara, ele simplesmente não a destruíra?
Sentiu fome, mas ignorou o ronco do estômago, e chutou mais cacos. Por fim, a luz do dia se extinguiu nas janelas.
O quarto ficava cada vez mais escuro e frio. E Cassandra se refugiou no calor da cama com suas peles espessas.
Ali, encolhida numa bola, os braços em torno dos joelhos, ficou a olhar para o teto, que antes brilhava como a alvorada, com as flores que pareciam que iriam despencar
em cima dela. Conforme a noite caía, as flores deram lugar a uma abóbada de luzes cintilantes que se espalhavam pelo teto e brilhavam como estrelas no céu.
Cassandra adormeceu. E teve sonhos estranhos. Com guerreiros e cavaleiros de tempos antigos, com um rei poderoso que certa vez governara Camelot com força, coragem,
honra. E ouviu seus murmúrios, cheios de ternura e saudade, por uma rainha que ele amara com um amor mais forte que a morte.
Lembre-se...
Capítulo IV

Cassandra acordou cedo. Prendeu os cabelos numa longa trança e tentou tornar sua aparência a melhor possível. Não arrumou nada no quarto e esperou que seus captores
aparecessem.
Tinha esperanças de que a velha pudesse voltar, pois sentira uma simpatia nela que poderia usar em sua vantagem. Certamente um cavaleiro do rei Guilherme não teria
tempo de se preocupar com prisioneiros. Convenceu-se, depois da reclamação barulhenta de seu estômago, de que estava preparada para desafiar as exigências, a menos
que ele aceitasse a sua.
Pelo meio da manhã, finalmente ouviu o raspar de metal contra metal de um ferrolho girando numa trava de ferro. Cassandra saltou de pé e alisou o vestido. A expressão
em seu rosto, quando a porta se abriu, era de um frio desafio que, bem depressa, se transformou em surpresa diante de uma mocinha que entrou no quarto.
Era magra como um junco e miúda e trajava um vestido simples de lã. Parou, hesitante, os olhos a avaliar a confusão no quarto. Sem dúvida, imaginava se corria perigo
ao entrar. Tinha o rosto em formato de coração, o nariz arrebitado, a boca delicada. Prometia se tornar uma mulher adulta linda. No braço, carregava um vestido,
uma combinação e um macio par de botas de couro. E, com ela, pela porta, vinha o cheiro de comida.
A garota não disse uma palavra. Então, um guerreiro entrou atrás, trazendo uma bandeja de comida. Era o mesmo que liderara os homens do rei Guilherme no salão, em
Tregaron.
Os olhos de Truan Monroe eram tão azuis como Cassandra se recordava. E seu sorriso, delineado pela barba cerrada, era irritante. A bandeja e um jarro de metal que
ele carregava estavam cobertos por um pano. Um cheiro maravilhoso escapava da comida, atormentando-a, como certamente era a intenção.
Ele levou a bandeja até a mesa ao lado do braseiro e retirou o pano. O jarro, de metal, continha leite fresco. Só de ver, Cassandra sentiu sede, pois quebrara o
pote de água na parede, na noite anterior, em seu acesso de fúria. A comida na bandeja era simples: pão recém-assado, pedaços de frango frio e fatias de maçã, além
de um pote de mel. Parecia um banquete.
Sua boca encheu-se de água, o estômago roncou. Ela não conseguia desgrudar os olhos da bandeja.
A garota atravessou o quarto e colocou as roupas sobre a cama. Eram simples, mas limpas, se comparadas às que Cassandra usava, manchadas de lama e bolor das cavernas
sob Tregaron.
Na verdade, ela percebera, ao se levantar, um cheiro particularmente desagradável que subia do vestido sujo. Examinara as manchas, que cheiravam a estrume. Seus
chinelos estavam cheios das mesmas manchas. Usara a combinação e uma pequena poça de água no chão, no lugar onde o pote se quebrara, para se limpar um pouco. Mas
agora a combinação estava arruinada e ela não tinha nada para usar sob o vestido.
- Vejo que já fez alguns arranjos - Truan comentou, os olhos risonhos ao examinar o quarto atulhado de cacos. - Milorde ficaria encantado em ver o esforço que fez.
Primeiro um porco, e agora um asno pomposo e falastrão!, Cassie pensou, furiosa, o olhar mais uma vez atraído para a bandeja de comida. Não era preciso ter poderes
especiais para ver o jogo que seu captor jogava. Julgava que a forçaria a ceder ao provocá-la com comida e roupas limpas!
- Você lidera os homens. E agora faz papel de criado. Talvez, em seguida, terá de esvaziar o urinol!
Truan sorriu. Gostava da presença de espírito daquela jovem.
- Creio que não - retrucou, com aquele ar de bobo alegre. - Como você o quebrou, não há nada para esvaziar. Mas tenho certeza de que já sentiu a falta dele.
Realmente, ela sentira logo ao acordar. E isso viera se somar à sua lista crescente de desconfortos.
125
- E não lidero homem algum. Era necessário que milor-de e o resto dos seus guerreiros pudessem se esconder entre os rebeldes saxões dentro do salão, em Tregaron.
Se tivéssemos entrado juntos - Truan ponderou, a observá-la, para ver a reação -, seríamos todos mortos.
Por um momento, o humor naqueles olhos desapareceu e Cassandra viu, debaixo da fachada jovial, um comportamento sério, como se houvesse outro homem por trás daquele
ar de tolo.
- Agora, no entanto, você age como se fizesse parte dos lacaios.
Ele piscou e levou a mão ao coração, como se mortalmente ferido.
- Sua língua, senhora, é tão afiada feito um punhal. Ninguém nunca lhe disse que atrairá mais moscas com mel do que com vinagre?
Cassandra tentou ignorar o comportamento de palhaço. Às vezes, aquele homem realmente parecia um bobo. Mas, em outras... Lentamente, ele verteu o leite numa caneca.
- Não quero atrair moscas - ela retrucou, determinada a ignorar o jogo. - Eu as mataria, portanto não preciso de mel.
Truan espalhou mel sobre uma fatia de pão, o líquido espesso e dourado a lhe escorrer pelos dedos. Lambeu-os, devagar, com ar deliciado. E uma maçã suculenta estava
sob outro pano.
Com uma piscadela, ele murmurou:
- Vou me lembrar do que disse.
No íntimo, Cassie gemeu ao imaginar a doçura do mel a lhe encher a boca. Conforme via Truan devorar o pão e tomar o leite, seu estômago começou a roncar alto, sem
que ela pudesse evitar.
- O que foi que ouvi?! - ele exclamou, com uma seriedade caçoísta, colocando a mão em concha atrás da orelha. - Disse alguma coisa, sra. Cassandra?
- Você é um idiota! - ela bufou ao se virar para a janela a fim de não ser forçada a assistir àquele teatrinho. - E pode levar isso embora, pois não quero nada.
Não, até que ele tire esta maldita fita do meu pulso.
Truan deu de ombros ao enfiar outro pedaço de pão na boca.
- Se não precisa de comida, talvez queira roupas limpas - ele sugeriu. - Este quarto está cheirando a estábulo.
Cassandra virou-se devagar. Seu olhar pousou instintivamente sobre a bandeja agora vazia de toda a comida, a não ser um pedaço de pão que parecia esperar por ela.
- E o preço das roupas? - perguntou, imaginando que novas exigências seriam feitas.
- Precisa limpar o quarto, primeiro.
- E o preço da comida?
Ele sorriu, e Cassandra soube a resposta. Era o mesmo.
- E se eu quiser sair deste quarto? - Ergueu a mão, já sabendo a resposta. - Não diga nada!
- É simples - disse Truan, enquanto a garota pegava as roupas da cama e as entregava a Cassandra.
- Leve-as embora - Cassie falou, ofendida, pois não se dobraria à vontade de Stephen de Valois. - Leve tudo embora.
A menina se encolheu como se tivesse levado uma bofetada e afastou-se rapidamente. Na pressa, deixou cair as botas de couro. Olhou, hesitante, de Cassandra para
o guerreiro, como se esperasse uma repreensão.
- Qual é o problema? A menina não pode falar?
- Disseram-me que não fala desde que a sua vila foi queimada e a família assassinada à sua frente pelos rebeldes saxões que fugiram para as terras do Oeste - Truan
explicou, muito sério.
Com seus poderes, Cassie sempre soubera dos sentimentos e pensamentos dos outros. Agora, porém, não conseguia mais captar nada. Era como se uma coberta tivesse sido
colocada sobre seus sentidos, deixando-a apenas com as habilidades dos outros mortais. E magoara a garota com sua grosseria.
Abaixou-se e pegou as botas. Foi na direção da menina, mas Truan a impediu segurando-a pelo braço.
- Não pretendo maltratá-la - murmurou Cassandra, surpresa.
- O nome dela é Amber - disse Truan, e soltou-a. Cassie entregou-lhe as botas e explicou.
- Por favor, tente entender, Amber. Eu não posso aceitar. A garota encarou-a com cautela. Por fim, concordou e pegou o calçado.
- Por favor, leve tudo embora - Cassie lhe disse, voltando-se para que não vissem a dúvida e a incerteza em sua expressão.
- Então? - Stephen perguntou, quando os dois saíram do quarto. - Tiveram êxito?
- Não - Truan o informou; espetou a maçã com a ponta da faca e mordeu-a. - Meu amigo, tem pela frente um trabalho talhado para você.
- Já faz seis dias - Stephen murmurou, com crescente frustração. - Ela comeu alguma coisa?
- Tomou só água - disse Meg.
- E as roupas?
- Recusou tudo.
- E quanto ao quarto?
- Do mesmo jeito.
Stephen estava sentado diante do fogo do braseiro, na câmara estrelada. Desde o dia que haviam se instalado nas antigas ruínas, os aposentos tinham sido limpos dos
detritos e poeira. Os corpos dos guerreiros haviam sido removidos e enterrados na colina que dominava a fortaleza. Mas ainda existiam sinais da batalha que fora
travada ali quinhentos anos antes.
Embora as paredes tivessem sido esfregadas, as marcas permaneciam. As cadeiras que certa vez rodeavam a grande mesa redonda não estavam mais lá, substituídas por
bancos simples, pois Stephen escolhera aquele lugar para reunir-se com seus cavaleiros, tal como o antigo rei se aconselhara ali com os companheiros.
A mesa, mais uma vez, estava ereta; o pé apodrecido fora trocado. Tinha sido a primeira coisa que ele ordenara ao regressarem de Tregaron. Stephen se levantou e
contornou lentamente a mesa, olhando pensativo para os doze painéis com as inscrições latinas. Desde que vira aquele lugar pela primeira vez, e seus guerreiros fantasmagóricos
a guardarem as posições com as espadas empunhadas, ele sentira uma identificação que não conseguia explicar. Identificação que o compelira a retornar, em desafio
a seu próprio rei, e que sentira novamente ao voltar depois da batalha na floresta de Brodmir.
A partir de então, quase todo dia, chegava gente à fortaleza arruinada. A princípio, uma ou duas, um agricultor trazendo alimentos, um pedreiro perito em construção.
Mas o número aumentava a cada dia conforme a notícia se espalhava, até que mais de cem pessoas agora habitavam dentro das muralhas do castelo em ruínas, e outras
tantas chegavam o tempo todo.
Operários escalavam as muralhas e calafetavam as fendas entre as pedras. Outros refaziam os telhados. Carpinteiros derrubavam os prédios desabados, que se alinhavam
pelas muralhas da fortaleza, e construíam novos. Da noite para o dia, a cidade ressurgira para a vida. E também entre aqueles que se espalhavam pelas colinas das
redondezas, havia homens que poderiam empunhar uma espada ou machado de guerra, e muitos mais que eram extremamente habilidosos com um longo e incomum arco e flecha.
De Tregaron para o oeste, havia apenas silêncio. Um perigoso e ameaçador silêncio que não poderia durar. Disso, Stephen tinha certeza.
Ele pôs-se a caminhar de um lado para outro do aposento. Virou-se para Meg.
- Não há nada que possa ser feito?
- Eu o avisei de que Cassandra não seria persuadida facilmente - a velha o recordou. - Você joga um jogo que ela não compreende.
- Isso não é um jogo, mas algo extremamente sério. Não sei se Cassandra é confiável. Como saber, ao remover o encantamento, se ela já não se voltou para os poderes
das Trevas? Eu estaria arriscando todos que colocaram sua confiança e a vida em minhas mãos. E se Cassandra não se voltou para as Trevas, como pode ser persuadida
a fazer o que deve ser feito?
- É um dilema interessante, guerreiro. Pois o encantamento protege, ao mesmo tempo em que impede que ela saiba a verdade.
- Não há nada que você possa me dizer para que eu saiba se Cassandra tem o coração sincero?
- Sei apenas da sinceridade da raiva que ela carrega, faz muitos anos. Cassandra se recusou a voltar para a bruma e aprender os métodos antigos e receber o legado
que a aguardava. Virou as costas para aqueles que a amavam. Não posso dizer o que existe em seu coração.
- Se ela é como uma criança, então, o que devo fazer? Como fazê-la compreender?
- Você é o professor. Ela é a aluna.
- Uma aluna teimosa.
- Então, talvez você deva primeiro conseguir-lhe a atenção.
Os olhos de Stephen se estreitaram, pensativos. Em seguida, ele sorriu.
Os últimos seis dias, desde que Cassandra fora seqüestrada de Tregaron, tinham se transformado numa rotina monótona que às vezes a fazia pensar que enlouqueceria.
Cada manhã, precisamente à mesma hora, a porta se abria e uma bandeja com comida era entregue. E, cada manhã, ela recusava-se a atender ao ultimato que lhe fora
dado. A rotina se repetia ao meio-dia e de novo à noite. E, todas as vezes, Cassandra se negava a aceitar os termos estabelecidos. Contudo, na sucessão dos dias,
tornava-se mais difícil resistir. Se não fosse pela água e a oliveira-brava que a velha lhe trouxera, Cassandra não julgava que poderia ter sobrevivido até então.
No terceiro dia, a velha trouxera a pequena planta. Um fortificante, dissera, contra qualquer desgaste de seu seqüestro.
Sob o olhar atento dos guardas, a velha a instruíra a ferver um chá especial com as folhas da planta. Mas Cassandra sabia que aquelas mesmas folhas nutriam também.
Durante os últimos três dias, subsistira de água e das folhas da oliveira-brava.
Era um substituto muito pobre para a comida. A cada vez que uma bandeja de carne suculenta e pão cheiroso era trazida para o quarto, Cassie encontrava mais dificuldade
em resistir. Reunia forças e chutava os cacos de cerâmica para todos os lados, raivosa.
Durante as longas horas de confinamento, procurara do topo ao chão do quarto por algum meio de fuga, e nada encontrara. Haviam sido feito reparos. A porta era resistente.
E a fita azul reluzente era como um grilhão. Estava aprisionada, até que encontrasse uma maneira de convencer Stephen de Valois a soltá-la.
Virou-se ao ouvir ruído no ferrolho. Alisou o vestido sujo e amassado. Conseguira limpar-se com o pouco de água que lhe traziam todo dia. A que não bebia, usava
para se lavar.
Endireitou os ombros e preparou-se para encarar o guarda com uma expressão cordial. E sempre ficava contente em ver Meg e a garota, Amber, embora não pudesse conversar
com esta última.
Arregalou os olhos de surpresa quando a porta se abriu e nem Meg nem Amber traziam a bandeja de comida. Em vez delas, seu captor estava na soleira da porta, de braços
cruzados no peito.
Não carregava nenhuma bandeja, nem qualquer criado o seguia. Cassandra olhou ao redor, pois também não via nenhum dos guardas.
- Bom dia, senhora - Stephen a cumprimentou. - Espero que tenha dormido bem.
- Muito bem - ela murmurou, hesitante.
- O quarto não está limpo. - Ela franziu a testa diante do óbvio, imaginando se ele esperava que houvesse uma resposta. - Recusa-se a limpá-lo?
Que jogo era aquele?
- Sim, milorde, eu me recuso.
- Está preparada para aceitar sua punição?
Punição? Encarou-o. Ele decidira mandar surrá-la?
- Pode fazer o que quiser, milorde - Cassandra declarou, desafiadora. - Eu não limparei o quarto.
A expressão do cavaleiro era impenetrável. E pior, ela não tinha idéia do que ele pensava. O medo invadiu-a quando Stephen declarou, muito sério:
- Lamento que tenhamos chegado a tal ponto.
Ele atravessou o quarto em passadas largas, alcançando-a antes que Cassie pudesse reagir. Quando Stephen ergueu a mão, Cassandra levantou os braços num gesto defensivo.
Mas, em vez de bater nela, ele a agarrou e jogou-a sobre o ombro.
Stephen ajeitou-a como se Cassandra fosse um saco de batatas. O ar escapou-lhe dos pulmões quando o ombro largo apertou-lhe as costelas. Sua visão borrou-se de salpicos
negros e, de repente, ela sentiu uma fraqueza imensa ao ter de lutar para conseguir respirar. Apoiou-se nas costas do guerreiro para tentar se levantar, mas ele
a agarrou pelas nádegas, com força. Cassandra reagiu, indignada.
- Exijo que me solte! - gritou. Stephen pareceu não ouvir e saiu pela porta.
- Ponha-me no chão! - ela esbravejou, e terminou a frase com um berro, quando ele soltou suas pernas e quase a deixou cair pelas costas.
Os cabelos se soltaram da trança e se espalharam, cobrin-do-lhe o rosto. Durante o tempo todo, enquanto Stephen a carregava pela fortaleza até um pátio aberto, Cassandra
resmungou pragas e ameaças e algo parecido com uma promessa do que faria com ele quando pudesse tirar a fita.
- Ponha-me no chão! - ela berrou. - Você não tem idéia de com quem está lidando.
- Está enganada, Cassandra. Sei exatamente com quem estou lidando.
A resposta a enfureceu ainda mais. Cassie começou a bater nas costas de Stephen e a chutar-lhe o peito, determinada a se libertar.
- Exijo que me solte!
- Muito bem, demoiselle. Como quiser.
A mudança no tom de voz deveria tê-la avisado. Mas Cassie não prestou atenção. Quando se deu conta de que ele pretendia soltá-la, era tarde demais para imaginar
o motivo.
Stephen tirou-a do ombro e tomou-a no colo, um braço sob os dela, o outro sob os joelhos. Então, de repente, Cassandra se viu lançada ao ar. Seu berro de susto terminou
num arquejo ao se afundar no cocho dos cavalos.
Cuspindo e engasgada, ela debateu-se na água, os cabelos ensopados a lhe cobrir o nariz e a boca, as roupas a puxá-la para o fundo, impedindo-a de ficar de pé.
- Eu o odeio! - gritou.
- Não duvido.
- Você é um sapo nojento, um porco sujo, asqueroso... A última palavra terminou num berro, no instante em que Stephen a segurou pelo colarinho do vestido. Cassie
arregalou os olhos ao vê-lo tirar o punhal, e depois os arregalou ainda mais quando ele cortou-lhe o vestido do pescoço até a barra.
Ela não usava combinação, e a pele pálida parecia quase translúcida à luz da alvorada. Embora tentasse fechar o vestido, ele se abriu, expondo a curva suave dos
quadris, a cintura fina, que as mãos de Stephen poderiam circundar, e os seios firmes.
Ele se viu pego de surpresa por aquela nudez inesperada e pelo calor igualmente súbito que o dominou, e que nada tinha a ver com raiva.
Cassandra tentou se resguardar, agarrada às partes do vestido, e usou a única maneira de se cobrir: afundou na água até o pescoço.
- Eu o detesto! Seu filho de uma depravada! Prole do demo! Que seu corpo se cubra de verrugas! Que a sua virilidade encolha e apodreça! Que...
Stephen tapou-lhe a boca e empurrou-lhe a cabeça para dentro da água.
- Que boca suja para uma jovem dama - repreendeu-a, conforme uma multidão lentamente se reunia ao redor, inclusive Truan Monroe, que os seguira pelo pátio.
Stephen deixou que ela subisse à tona para respirar.
- Pede desculpas?
- Nunca! Maldigo o dia em que você nasceu! Sua espinha vai se entortar e se curvar. Nascerá um calombo no meio das suas costas...
Ele empurrou-a para baixo outra vez.
- A água está fria - Truan comentou, conforme fiapos de vapor subiam do cocho, no ar frio da manhã.
- Sim, está - confirmou Stephen, segurando a cabeça de Cassandra sob a água.
- Você não vai querer que ela fique doente.
- Neste momento, eu gostaria simplesmente que a levassem daqui. - Deixou que Cassandra boiasse e depois a afundou de novo.
Com uma expressão pensativa, Truan sugeriu:
- Acho que deveria parar com isso.
- Quando ela tiver o bastante.
Em meio a pragas cuspidas, Stephen empurrou a cabeça de Cassandra para baixo.
- Ela teve o bastante.
- Isso não diz respeito a você.
- Diz respeito a mim! - Truan exclamou, num tom perigoso. Então, quando Stephen o encarou, sorriu. - Você está se divertindo, sem pensar que pode afogá-la.
- Não me ocorreu... - Stephen a soltou.
Cassandra boiou até a superfície. Engasgada, cuspiu, entre pragas e palavrões, e afastou os cabelos do rosto. Seus olhos pareciam querer fuzilar Stephen de Valois.
Ele pegou uma escova das usadas nos cavalos e jogou-a no cocho, junto com um pedaço de sabão de cinzas.
- Esfregue-se - ordenou. - Toda, até estar limpa. Se não fizer o que eu disse - Debruçou-se sobre o cocho, as mãos apoiadas na borda -, eu mesmo a esfregarei!
A escova boiou diante dela como um barquinho num mar revolto. Cassandra percebeu que todos ao redor observavam para ver o que ela faria.
Seus dentes começaram a bater de frio. Mas não se atreveu a sair da água sem fazer o que Stephen mandara, pois tinha medo de que ele cumprisse a ameaça. Arrancou
os restos do vestido e começou a esfregar o pé com a escova e o sabão debaixo d'água.
- Se continuar assim - Stephen avisou -, serei forçado a entrar aí e providenciar que o serviço seja feito direito.
Ela o encarou, entre furiosa e apavorada.
- Não se atreveria!
- Claro que sim! - ele exclamou. - Pois não posso admitir que ninguém cheire pior que o meu cavalo! E quando estiver limpa, e não fedendo como um monte de estérco,
conversaremos outra vez. Até lá... Inclinou-se para mais perto. Cassandra ficou imóvel na água, os lábios a se tornarem azulados de frio e de pavor.
- Sugiro que continue se esfregando. - O tom de voz tornou-se frio e calmo, e era bem mais assustador do que quando Stephen gritava. - Cada parte.
Entre os que haviam se reunido ao redor, Stephen viu sir Kay afastando-se do cocho.
- Traga algo para a moça se cobrir quando terminar. Se ela reclamar, se disser uma palavra desagradável, deixe-a onde está.
Então, virou-se e deixou o pátio. Agora, Cassandra lhe daria atenção.
Cassandra acordou num sobressalto e ergueu a cabeça dos braços dobrados pelos joelhos. O ruído de metal contra metal a despertara.
A porta se abriu lentamente. A luz das tochas no corredor incidiu no chão de pedras. Ela se levantou, os músculos cansados a protestar a cada movimento, os nervos
retesados.
Passara o dia inteiro esfregando o quarto, paredes, chão, janelas, até que cada pedra brilhasse na cor de areia clara. Até que os nós de seus dedos estivessem em
carne viva e sangrando; além do ponto em que os músculos tinham cãi-bras de cansaço. Além da exaustão, para não correr o risco de uma nova punição; além da raiva
e da humilhação; além das lágrimas que derramara até que, exaurida, sozinha e cheia de medo, não conseguira mais chorar.
Horas antes, uma criada lhe trouxera água quente, uma tigela de sopa e uma roupa limpa, que agora usava. Cassandra pensara em jogar as três coisas pela janela. Mas
o medo da retaliação a impedira.
Tinha os olhos secos agora, apenas ligeiramente inchados, ao recuar para as sombras perto do fogareiro, os punhos cerrados dos lados, sem nenhuma arma, a não ser
o orgulho.
Diga-me.
Os pensamentos insistentes de lady Ninian conectaram-se com os da velha Meg quando esta se postou na soleira do quarto.
O que Cassandra sente?
Sente medo, raiva... muita raiva e coragem.
Ela está bem?
Sim, senhora, tanto quanto se pode esperar.
E seus pensamentos?
Estão fechados para mim. Sinto apenas suas emoções humanas. Muita raiva e sofrimento. Não consigo ver seu coração.
Precisa alcançá-lo, minha amiga, Ninian implorou. Precisa ajudar o rapaz a aproximar-se dela, pois o destino dele está entrelaçado com o de Cassandra. Ela deve aceitar
seu legado.
Tentarei, senhora, respondeu Meg. Mas não posso obrigá-la a ver o que não quer enxergar. Não posso fazê-la aceitar aquilo para o que fechou o coração.
A princípio, apenas o silêncio se seguiu. Então, a encantada captou o desespero de Ninian.
Então, ela já está perdida, e não há esperança.
Ao lado da velha, à porta, Gavin de Marte acendeu outra tocha. A luz iluminou Cassandra, que se escondia nas sombras com um ar aguerrido, pronta para a confrontação.
Ela pode vir de boa vontade ou arrastada, aos chutes e berros. Mas deve vir. Essa era a ordem dada a Gavin de Marte.
O jovem Gavin esperava não ter de arrastá-la para o salão principal. Vira a confrontação no pátio. Sentiu como aquela ordem seria recebida. E resolveu usar outra
estratégia.
- Com sinceras desculpas - começou, hesitante, ao inventar a própria frase -, milorde, humildemente, lhe faz um convite para que se junte a ele para a refeição da
noite.
Ao lado, Meg ergueu a cabeça, surpresa, pois outras eram as ordens de Stephen, e ela esperava o pior. Cassandra também pareceu surpreendida.
- Foram essas as palavras dele?
- Sim, senhora, as palavras exatas.
- Ele se desculpa? - ela perguntou, incrédula.
Sir Gavin engoliu em seco. Que diferença faria uma mentira ou uma dúzia?
O resultado não poderia ser pior do que cumprir a ordem que lhe fora dada.
- Ele pede desculpas humildemente e lamenta o tratamento que dispensou à senhora. Espera que o perdoe.
Ao lado, Meg resmungou:
- É melhor esperar o pior quando ele descobrir as mentiras; e ela, a enganação.
A tensão diminuiu nos ombros de Cassandra, substituída por um profundo cansaço e muita fome. Seu estômago doía, tanto quanto os músculos, que latejavam, e as costas,
que ardiam.
- Aceito.
- Você está condenado - Meg murmurou baixinho para o guerreiro, com um sorriso. - Vou gostar de ver o que virá.
- Tem uma idéia melhor, velha bruxa? - ele murmurou.
- Nenhuma que possa ser tão divertida.
Cassie ficou impressionada com a transformação do castelo arruinado, conforme acompanhava sir Gavin. Estava muito diferente das ruínas esboroadas que descobrira
tantos anos antes. Quando criança, ouvira todas as lendas a respeito do antigo castelo e seu rei. Mito e lenda se entrelaçavam em histórias de bravos cavaleiros
e do sábio conselheiro real, Merlim. O castelo era chamado de Camelot, onde doze cavaleiros, os mais conhecidos de nomes como Lancelot, sir Gawain, Melador, sir
Hector e sir Bors, se reuniam em torno da Távola Redonda para decidir sobre o futuro do reino.
Mas a guerra se espalhara pela região. Um imenso exército se formara no norte e invadira o reino, liderado por guerreiros cujos elmos, espadas e couraças eram tão
negros quanto as trevas que enchiam suas almas empedernidas pelo Mal.
Os poderes das Trevas invadiram Camelot. O rei fora traído por um de seus cavaleiros a quem ele amava como a um irmão e em quem confiava acima de todos os outros.
As sombras encheram os corredores e pátios da fortaleza. Arthur fora mortalmente ferido na batalha. Merlim, capturado e banido para o mundo entre os mundos. Os guerreiros
haviam se confrontado pela última vez contra o inimigo na grande câmara estrelada da Távola Redonda. Ali, com as espadas em punho, defenderam o rei e caíram, um
a um, de arma na mão.
Depois disso, com o rei e os guerreiros mortos e Merlim banido para o mundo inferior, as Trevas tinham se espalhado pela Terra. Guerra, doença, morte e o crescente
poder da cobiça se instalaram em homens implacáveis como o príncipe Malagraine.
Eram histórias contadas às crianças ao lado das lareiras, à noite. Mas havia os que ainda acreditavam que os poderes da Luz e das Trevas continuavam a batalhar pelo
reino da humanidade e que um dia a Luz se reergueria contra as Trevas para reclamar o reinado.
Cassandra ouvira todas as histórias quando criança. Porém não acreditava nelas. Até que acordara de um sonho perturbado e se descobrira na câmara estrelada, dentro
das muralhas do castelo em ruínas. Fora a primeira vez que atravessara o portal de luz. Quando surgira do outro lado, entrara na câmara. E se vira atraída, conforme
crescia, cada vez mais pelas antigas ruínas.
Agora, corredores e quartos estavam bem diferentes das imagens que guardava desde a infância. Todos os detritos e sujeira haviam desaparecido. As paredes tinham
sido esfregadas e os chãos, varridos. Camadas de argamassa eram visíveis nas paredes onde as pedras tinham sido recolocadas. Luzes brilhavam nas tochas e lamparinas
a óleo. Ao passar por um corredor que se abria para um balcão, Cassandra viu clarões nos parapeitos das muralhas. O pátio, abaixo, estava pontilhado do brilho de
fogueiras. Uma pequena cidade se instalara ao abrigo do castelo. Depois de quinhentos anos, Camelot estava viva outra vez.
Cassandra parou, hesitante, ao chegarem ao grande salão. Diante da lareira, havia várias mesas com bancos de ambos os lados. Um veado assava no fogo. As mesas estavam
cheias de travessas de comida. O aroma dos pratos se misturava com o de lenha, argamassa e o cheiro doce e penetrante de pinho nas lamparinas nas paredes.
A conversa parou de repente quando Cassandra entrou. E ela percebeu que, entre aqueles que a encaravam, estava Margeaux, tratada como uma hóspede em vez de prisioneira.
Sentava-se à mesa perto da lareira. Tinha os cabelos trançados, presos com uma fita de seda que combinava com a cor do vestido, e o olhar sombrio, em vivo contraste
com o sorriso que dirigia ao guerreiro ao lado.
Cassie foi acompanhada até a mesa diante da lareira. Stephen de Valois levantou-se e cumprimentou-a.
- Boa noite, senhora. Fico contente que tenha se juntado a nós.
- Suas desculpas foram muito persuasivas - ela declarou. - Mas fiquei intrigada com a humildade que demonstrou. Pensei que fosse incapaz disso.
Stephen dirigiu ao seu cavaleiro um olhar interrogativo.
- Eu também estou intrigado.
Gavin pediu licença e se afastou depressa. Meg foi se sentar num banco no canto da lareira, de onde poderia observar tudo, mas a distância.
- Parece que ambos fomos enganados, milorde - Cas-sandra disse a Stephen ao se virar para sair, decidida a deixar o salão o mais depressa que pudesse.
Ele a segurou pelo pulso.
- Por favor, fique.
Ela sentiu que era uma ordem, não um pedido, pela pressão dos dedos em seu pulso.
- E se eu me recusar?
- Já sabe o que esperar.
Cassandra respirou fundo e seus seios arfaram sob o vestido simples de lã cinza, que substituíra aquele que Stephen cortara. Seus cabelos estavam soltos e caíam
numa torrente de cetim reluzente, da cor da meia-noite, e emolduravam as feições delicadas. Seus olhos eram olhos de feiticeira, escuros como uma obsidiana, que
luziam com chamas violeta sob o arco delicado das sobrancelhas. Um rubor intenso espalhou-se por suas faces.
Stephen viu a raiva e a humilhação naquele rosto, a cor ruborizada, o queixo tenso, enquanto Cassandra lutava para conservar a calma. Finalmente, ela se sentou.
- Seria uma pena desperdiçar uma comida tão boa - ele murmurou, fazendo um sinal para que uma criada colocasse um prato para Cassandra.
- Que diferença faz se eu comer ou não?
- Faz uma grande diferença, e você vai comer.
Estava na ponta da língua dizer que recusava, porém Cassandra já sabia o que Stephen retrucaria. Que ela teria de agüentar as conseqüências.
- Garanto que a comida não está envenenada.
Para provar, ele cortou um pedaço de carne da perna de veado e colocou-o no próprio prato. O pedaço grosso, suculento, era apetitoso. A boca de Cassandra encheu-se
de água e ela engoliu em seco quando Stephen mastigou uma porção.
- Se quisesse envenená-la, teria feito isso dias atrás, na água que você bebeu. - Serviu-se, então, de uma coxa de frango que nadava num molho doce de ameixas. -
Talvez prefira frango assado ao veado - murmurou, oferecendo-lhe a coxa, depois de morder um naco.
O orgulho teimoso brigava com a fome e o bom senso, embora Cassandra não conseguisse afastar os olhos da comida. Então, a fome venceu. Ela estendeu a mão e pegou
a coxa de frango. Experimentou o molho de ameixas e soltou um suspiro de satisfação enquanto os dentes perfeitos se enterravam na carne macia. Correu a língua pelo
lábio inferior para limpar o molho que escorria.
Aquele gesto simples fez a boca de Stephen ressecar-se e um desejo ardente queimar suas veias.
Havia algo quase íntimo na maneira com que Cassandra saboreava exatamente a mesma coxa de frango que ele mordera, o molho a reluzir nos lábios voluptuosos, como
se... ela o saboreasse. Sentiu-se, de repente, como se Cassandra fosse o captor; e ele, o cativo.
Ela colocou o osso limpo no prato e Stephen a serviu de fatias de veado, uma porção de pão e maçãs assadas. O olhar observador de Cassandra encontrou o dele, ainda
cauteloso, ainda atento.
Stephen deixou-a à vontade e dedicou-se à própria refeição. O silêncio instalou-se entre ambos.
Cassandra comeu até a saciedade. Então relaxou e olhou em volta. Havia uma atmosfera quase festiva no salão. Até mesmo Margeaux parecia sentir-se à vontade, conversando
com o guerreiro a seu lado.
A velha Meg não estava longe. A garota, Amber, servia comida e enchia as canecas, movendo-se silenciosamente entre as mesas. Apetites satisfeitos, as conversas se
animaram, e se ouviam risadas e misturas de idiomas. Truan Mon-roe entretinha alguns com truques de prestidigitação. Depois, provocou gritos deliciados de uma das
criadas ao tirar uma flor de trás de sua orelha, e um ovo do ar.
Diante dos pedidos de todos, Truan foi para o centro do salão. Com um sorriso de bobo na face, fez moedas de ouro desaparecer e surgir na orelha de um ou de outro;
uma pomba apareceu na palma de sua mão e depois sumiu. Um volume encheu-lhe as virilhas. Vermelho, ele se encolheu e se cobriu, provocando risadas. Então, enfiou
a mão no bolso e tirou de lá a pomba, que voou, desaparecendo no teto, enquanto se ouviam piadas a respeito da virilidade dos rapazes que muitas vezes também sumia.
Cassandra não conseguiu mais se conter.
- Por que me trouxe aqui? - perguntou a Stephen. - O que quer de mim?
O olhar de Stephen era contemplativo, enquanto ele se recostava na cadeira, a estudar Cassandra, uma caneca de vinho presa nos dedos longos. Seus cabelos caíam soltos
sobre os ombros, dando-lhe uma aparência leonina.
O encontro que ela tivera com Stephen ainda lhe queimava na memória, e de uma tal maneira que só de pensar Cassandra experimentava, mais uma vez, aquele calor in-quietante
na pele.
- Não tenho valor para vocês. Nem sou uma ameaça para os seus homens. Se pensa em pedir resgate ou fazer acordos para a minha volta...
Ele não respondeu. Na verdade, parecia não prestar atenção nela, os olhos presos em Truan Monroe, que fazia um truque com uma barrica de água e repetia certas palavras,
como um encantamento. Ao tirar as mãos da barrica, esta pareceu flutuar no ar. Truan dispôs-se a ensinar a mágica ao filho de uma cozinheira.
Cassie fez uma careta diante das palavras tolas e sem sentido que nada queriam dizer, mas olhou para o menino, Gryffyd, todo animado a repeti-las. Então, conforme
Truan o ensinara, Gryffyd tirou a mão de sob a barrica.
Para surpresa e admiração de todos que observavam, a barrica ficou suspensa no ar. Gryffyd sorriu e inclinou-se em reverências, diante dos aplausos e gritos da platéia.
Stephen virou-se para Cassandra e finalmente respondeu:
- Não há pedido de resgate. Nem condições.
Ela o encarou. Então, de repente, gritos de surpresa seguiram-se a explosões de gargalhadas quando a barrica entornou e todo o conteúdo derramou-se sobre a cabeça
e os ombros do garoto.
- Mas, com certeza, não pensa em me manter aqui - Cassandra retrucou, aflita, em meio ao sorriso que lentamente perdia o brilho conforme Truan Monroe se aproximava
da mesa. Pela expressão no rosto daquele bobo alegre, ela sabia exatamente o que ele pretendia.
- Um pouco de diversão talvez traga um sorriso ao rosto da dama... - murmurou Truan. - Um truque simples. Acho que vou ler seus pensamentos.
Cassandra recuou, assustada. Mal conseguira ouvir o que ele dissera. Quando Truan a puxou pela mão, ela instintivamente tentou se livrar.
- Não, por favor...
Precisava sair dali, deixar aquele lugar. Ele sorriu, não o sorriso de bobo alegre, mas um sorriso velado por trás daquela máscara de idiotizado.
- Será sua chance de provar que o bobo é bobo mesmo. Sem aceitar um não como resposta, Truan explicou-lhe como seria o truque. Com um pedaço de carvão, Cassandra
devia desenhar alguma coisa num pergaminho, sem mostrar para ninguém. O pergaminho seria dobrado e deixado aos cuidados da garota, Amber. Truan, então, tentaria
ver o que ela desenhara.
Ao perceber que ele não a deixaria em paz até que ela concordasse, Cassandra pegou o pedaço de carvão e desenhou uma das antigas runas, o signo do pássaro em vôo,
símbolo da liberdade. Quando terminou, dobrou o pergaminho e estendeu-o à garota.
- Agora, você deve pensar só naquilo que desenhou no pergaminho.
Truan fechou os olhos e comprimiu os dedos nas têmporas, como se pudesse encontrar a resposta ali.
Volte, Cassandra. As palavras ecoaram nos pensamentos dela. Você precisa voltar. Lembre-se...
- Já sei - Truan anunciou. Fitou-a nos olhos. - A imagem que desenhou no pergaminho é de um bicho. - Franziu a testa, como se fizesse um esforço. - Um pássaro.
- Sorriu, mais uma vez daquele jeito de bobo alegre. Pegou uma coxa de frango da mesa. - Um frango! - anunciou, com um sorriso largo.
Pelo salão, ouviram-se os gritos para que Amber mostrasse o que estava desenhado no pergaminho. A garota desdobrou-o e exibiu o desenho. Gargalhadas explodiram.
Mas Cassandra pareceu não ouvir nada. Olhava para a fita no pulso com ar perdido.
- Exijo que me solte - disse, amargurada.
Stephen percebeu a mudança na voz, a raiva mesclada ao medo.
- Lamento, demoiselle, mas não posso.
- Não pode ou não quer?
- Está bem, Cassandra - declarou Stephen. - Não a soltarei.
Tarde demais, ele viu a faca na mão dela.
Capítulo V

A lâmina faiscou e deslizou pela pele de Stephen, da face ao queixo. Uma estreita linha de sangue reluziu pelo corte.
Ele agarrou os pulsos de Cassandra e torceu-os para trás. Conforme ela se debatia, puxou-a contra o peito e ergueu-lhe os pulsos pelas costas até que Cassandra berrou
de dor e parou de lutar.
O salão estava mergulhado no silêncio. Só se ouvia o chiar das brasas no fogo e o som da respiração ofegante de todos, diante da cena.
Com Cassandra presa em uma de suas mãos, Stephen tocou com a outra o corte no rosto.
- Sua mira é tão ferina quanto sua língua - ele murmurou.
- Não, milorde - ela retrucou, por entre os lábios apertados de raiva, medo e surpresa. - Eu errei.
Cassandra ofegou quando Stephen dobrou-lhe os pulsos com mais força nas costas. Então, a faca lhe caiu dos dedos
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e retiniu ao bater na mesa. Derrotada, rodeada pelos homens de Stephen, completamente indefesa e sem esperança ou possibilidade de fuga, Cassandra sentiu os olhos
se encherem de lágrimas.
Meg aproximou-se, aflita. No centro do salão, Truan observava, as mãos fechadas em punho, cada músculo tenso.
Todos esperavam o que iria acontecer. No mínimo, ela merecia uma surra. Mas isso só aumentaria a vontade de desafiá-lo e fazer crescer a raiva, pensou Stephen. Segurou-a
pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Torceu os fios como uma corda de cetim, o outro pulso a lhe empurrar o queixo, de modo que Cassandra tivesse de encará-lo.
- Eu não pretendo errar - disse, antes de beijá-la.
Cortou-lhe a respiração ofegante, provou a curva dos lábios cheios e depois a suavidade e maciez do toque. Sentiu a surpresa e, em seguida, a raiva. Cassandra tentou
escapar. E Stephen apertou a mão que a prendia pelos cabelos, mantendo-a prisioneira, enquanto aprofundava o beijo, forçando-a a se abrir para ele, obrigando-a a
recuar, ao insinuar a língua para dentro da cavidade úmida. Então, ela sentiu o calor. Movia-se através de seu corpo com o poder de mil sóis a lhe queimar no sangue
e em cada terminação nervosa.
Emoções e sentimentos que Cassandra raramente viven-ciara antes, com seus poderes incomuns que a protegiam da fragilidade humana, de repente explodiam dentro dela.
Ódio, sofrimento e medo a envolveram. Depois, confusão e humilhação. E, finalmente, algo completamente novo: desejo.
A sensação perpassou-lhe os sentidos como uma bruma a se curvar lentamente em torno do ódio e do medo, como o calor do sol na face, depois de um longo e frio inverno,
como a quentura vagarosa de uma fogueira que parece dor-mitar nas brasas e de repente explode em chamas.
Sua boca moveu-se contra a dele, primeiro num protesto zangado, enquanto procurava libertar-se, o corpo arqueado para se distanciar o quanto pudesse. Depois, num
arquejo de espanto, Cassandra estremeceu violentamente. E, por fim, confusa, ofegante, abandonou-se às sensações.
A raiva luzia nos olhos dourados de Stephen quando ele interrompeu abruptamente o beijo, a fita de sangue a se destacar em seu rosto; a expressão, uma máscara dura.
Encarou-a.
A pulsação no pescoço de Cassandra era a de um pássaro pego em armadilha. Stephen passou os dedos pela veia que latejava e fechou a mão em torno da garganta frágil
com incrível ternura.
- Da próxima vez que puxar uma faca, senhora, é melhor me matar. - Empurrou-a de volta na cadeira, obrigando-a a se sentar. - Ou o preço será bem mais que um beijo.
- Solte-me, e não precisará ter medo de uma faca em suas costas quando estiver dormindo.
Stephen debruçou-se sobre ela, as mãos fechadas de cada lado dos braços da cadeira, o rosto tão perto que a risca de sangue tornou-se um borrão. Tão perto que tudo
que Cassandra via eram aqueles olhos dourados e perigosos.
-- Não vejo razão para ter medo, senhora - disse ele, com um arquear de sobrancelhas -, a menos que queira se juntar a mim na minha cama.
Ela arregalou os olhos. Seu rosto queimou de humilhação. Levantou-se da cadeira.
- Nem mesmo se você fosse o último homem na face da Terra!
Stephen a empurrou de volta e segurou-a pelo queixo. Seus lábios roçavam os de Cassandra a cada palavra.
- Então, nenhum de nós tem alguma coisa a temer.
O silêncio pesava pelo salão. Cassandra sentiu os olhares dos homens. Ela era a inimiga. Em pensamento, estava condenada à morte.
Sentiu o sangue fugir-lhe das veias, como se congelasse num momento e, em seguida, queimasse em furioso desafio. Ódio e orgulho eram o que lhe restara. E aquela
estranha emoção envolvente que ainda pulsava sob a pele, como se algo vivo despertasse em seu íntimo e a rasgasse em pedaços para sair.
De repente, ouviu-se um burburinho pelos corredores. Aumentou em volume até que estava do lado de fora do salão. Então, as portas se abriram.
Os cavaleiros empunharam as espadas e formaram uma barreira de proteção entre as mesas e as portas. Stephen adiantou-se, arma em punho, seguido por sir Gavin e Truan
Monroe.
Gritos de surpresa ecoaram e a confusão se instalou pelo salão quando vários homens se afastavam para dar passagem a um grupo. Outros saltavam de lado, ao som de
rosnados e grunhidos.
A mão de Stephen relaxou na empunhadura da espada ao ver quatro de seus homens se aproximarem, arrastando alguma coisa com muito esforço. Quando se separaram, ele
viu o que traziam, e a causa de tamanha comoção. Um enorme lobo branco.
Seguravam a fera com laços corredios presos em varas fortes, uma de cada lado, passados pela cabeça do animal. Quando a criatura tentava investir numa direção, era
empurrada para o lado oposto, ficando a uma distância segura das varas.
Stephen reconheceu o animal de imediato. Era o lobo que encontrara na floresta. Seus homens o tinham visto outra vez nas muralhas da fortaleza, mas ele se recusara
a se aproximar. Até aquele momento. E fora capturado.
Era uma criatura magnífica, de pelagem completamente branca. Não tinha os olhos dos lobos que ele vira nas montanhas da Europa, e sim de um cinza prateado, da cor
da névoa. Lutava com a força de dez cães, e esgotava os quatro homens que lutavam por contê-lo.
- O bicho estava atacando as lavouras dos camponeses. Perderam gado e ovelhas. Derrubou um homem do seu cavalo e o matou. Nós o pegamos numa armadilha no lado de
fora dos portões.
Exausto, o lobo pendia entre os laços, a língua pendurada de um lado da boca, a respirar pesadamente. Os olhos prateados não tinham uma expressão selvagem, mas um
ar de sabedoria ao olhar para Stephen. Por toda a parte, ergueram-se gritos para que o animal fosse sacrificado.
- Não! Por favor, não! - Cassandra gritou ao saltar da cadeira e dar a volta à mesa.
Vários homens tentaram impedi-la, erguendo as espadas para lhe bloquear a passagem.
Mesmo exausto como estava, o animal pareceu explodir de súbita energia. Os laços se apertaram a cada movimento frenético, conforme os homens tentavam conter o poderoso
lobo. De repente, o sangue começou a escorrer de seu focinho. Era como se lutasse para alcançar Cassandra. Para protegê-la.
Não lute com eles, Cassandra gritou, em seus pensamentos, mas o lobo não conseguia ouvi-la.
Ela empurrou um guerreiro, desafiou o outro ao lutar para chegar ao lobo, arriscando a própria vida contra as espadas em riste. Virou a cabeça na direção de Stephen,
os cabelos da cor da meia-noite a emoldurar as feições pálidas e os olhos violeta suplicantes.
O que ele viu naquele olhar? Capitulação? Jamais. Tristeza condoída pelo lobo? Possivelmente. Na sorte que caberia ao animal, Stephen viu uma vantagem que poderia
usar em seu favor.
- Parem! - ordenou. - Deixem-na passar.
Viu a surpresa que surgiu nos olhos vívidos. Cassandra voltou-se e empurrou outro guerreiro. Às cotoveladas, avançou até o espaço que se abrira em torno do lobo.
Roubada de seus dons, ela se viu forçada a confiar nas habilidades mortais. Rezou para que Fallon a escutasse. Implorou mentalmente que ele se acalmasse, pois nunca
o vira assim.
Assobiou baixinho, um som familiar entre os dois. Mesmo então, o lobo se debatia, a rosnar e grunhir, cada vez mais sufocado conforme lutava.
- Soltem-no! - ela implorou. - Vocês o estão estrangulando. Quanto mais o puxarem, mais ele lutará. - Voltou-se para Stephen, o coração no olhar. - Por favor!
Naquela simples palavra e no tormento que viu naqueles olhos, ele teve a impressão de que Cassandra era o lobo a implorar pela vida, e que aqueles laços lhe rodeavam
o pescoço tal como o encantamento lhe prendia o pulso.
- Ele não fará mal a ninguém! Por favor, eles o estão matando!
Com um olhar para seus homens, Stephen concordou. Todos, a não ser os dois que mantinham o lobo pelos laços, afastaram-se para uma distância segura, as espadas em
punho. Finalmente, um deles colocou a vara no chão. O outro também. O animal virou a cabeça primeiro numa direção e depois na outra, sacudindo o focinho repetidas
vezes para se livrar do peso das varas.
Cassie assobiou baixinho. Não houve resposta. Fallon simplesmente continuou postado ali, a respiração ofegante, a boca repuxada contra os dentes, a espuma ensangüentada
a pingar dos cantos da boca. Ela assobiou de novo e começou a rodeá-lo.
Ele seguiu o movimento, a cabeça baixa, um olhar fixo e vitrificado sobre Cassandra. Rosnou.
- Ele vai estraçalhá-la - Stephen avisou.
- Não vai! - ela retrucou com veemência. - Ele me conhece. Não me fará mal. - Embora tivesse suas dúvidas, continuou a rodear o lobo para poder encará-lo.
Pela primeira vez na vida, Fallon fora maltratado e abusado. Embora fosse uma criatura extraordinária, que velara por Cassandra e a protegera com habilidades impressionantes,
mesmo assim era governado pelo lobo dentro do qual habitava, selvagem de coração, cauteloso do homem mortal, justificadamente.
Agora, o elo especial que sempre os ligara fora rompido. Cassandra não conseguia alcançá-lo em pensamentos como sempre fizera, comunicar-se com ele da maneira instintiva
de todas as criaturas. Agora ela possuía apenas capacidades humanas. Não sabia nem mesmo se Fallon a conheceria naquela forma mortal. Mas arriscaria a própria vida
para salvar a dele.
Assobiou pela terceira vez e depois murmurou as palavras que sempre os tinham ligado:
- Calma, velho amigo. Não vou machucá-lo. - Chegou mais perto e abaixou-se, mãos e joelhos no chão, arrastan-do-se como os bichos que mostram subserviência aos mais
poderosos e mais fortes. Lentamente, aproximou-se dele. Pelo canto dos olhos, viu o brilho de uma espada e imaginou se era para si ou para o lobo.
Ainda de gatinhas, avançou mais.
- Sou eu, velho amigo. Você me conhece - falou baixinho. - Caminhamos pelas trilhas e campinas da floresta. Caçamos juntos. Você me conhece, Fallon.
Estava agora apenas a poucos centímetros do lobo. Aga-chou-se e deitou-se de lado, imitando os cães quando juntos, e estendeu a mão para que ele pudesse lhe sentir
o cheiro.
Se estivesse enganada, se o elo não mais existisse entre os dois, em qualquer plano, então estaria morta.
- Vamos, Fallon - murmurou e assobiou de novo, estendendo um pouco mais a mão. Ele recuou, hesitante, a boca a se franzir num rosnado. Cassandra assobiou outra vez,
arrastando-se lentamente para mais perto.
Viu o momento em que Fallon a aceitou. Aquele súbito reconhecimento no olhar, a confusão exausta e depois o uivo baixo, na garganta, em resposta. A postura mudou,
os músculos rígidos se afrouxaram, a cauda balançou, as orelhas se empinaram.
- Venha, Fallon, você me conhece.
O lobo sentiu-lhe o cheiro e esticou o focinho. Deu um passo hesitante para a frente e depois mais outro. As orelhas se abaixaram. Uivou baixinho e aproximou-se.
Após um simples toque dos dedos esguios de Cassandra na pelagem da nuca, o lobo despencou no chão, a cabeça no colo dela.
- Tragam-me água, por favor.
O pedido foi murmurado com tamanha calma e autoridade que vários homens se adiantaram. Logo, uma tigela com água era empurrada na direção de Cassandra.
Ela colocou um pouco de água na palma da mão e deixou que o líquido pingasse na boca ofegante do lobo. A água misturou-se à espuma e ao sangue e lhe mancharam o
vestido. Cassandra lhe deu mais água, procurando nos olhos semicerrados por algum sinal de reação.
- Não pode morrer, meu amigo - murmurou ao lhe dar mais água. - Eu preciso de você. Por favor, Fallon.
Por fim, a respiração do animal se acalmou. A língua lambeu a água dos dedos de Cassandra e os olhos sábios se abriram, fitando-a com reconhecimento. A cauda moveu-se
lentamente. E o lobo esforçou-se para ficar de pé, fazendo com que todos no salão recuassem.
- Ele não fará mal a ninguém - Cassandra lhes disse. Mas não poderia convencê-los. Por fim, Truan Monroe avançou, sem medo, para o lobo. Agachou-se até que, como
ela, estava no mesmo nível, de igual para igual, com a criatura.
- Olá, Fallon - ele disse suavemente. - É um belo animal, mas não vou me rebaixar para você. Precisa me aceitar como sou, e eu farei o mesmo.
O lobo inclinou a cabeça, os olhos prateados a faiscar. Lentamente, estendeu o focinho, captando o cheiro do homem. Não recuou, como faria diante de qualquer mortal,
mas dobrou as orelhas para a frente, em aceitação.
- Acha que ele acreditou em mim? - Truan perguntou, encarando Cassandra com aquele ar de bobo alegre.
- Talvez ele seja mais tolo que você, que se aproxima de um bicho desse jeito.
- Por que não? Você fez a mesma coisa.
- Ele me conhece. Eu o criei desde pequenino. Não tem motivo para ter medo de mim.
- Nem de mim - Truan respondeu, num tom solene, deixando Cassandra impressionada com a súbita intensidade daqueles olhos azuis. Então, ele sorriu, e o ar de bobo
voltou. - Os animais gostam de mim. Coelhos, passarinhos e que tais.
Amber se aproximou, deixando que o lobo a cheirasse.
- O animal ainda é selvagem - um dos homens de Stephen ponderou. - Matou muitos animais e agora um homem.
- Não é verdade! - Cassandra defendeu o lobo com veemência. - Ele caça apenas na floresta, ou come o que eu lhe dou. Nunca atacou nenhuma fazenda ou vila. E jamais
atacaria gente, a menos que fosse ameaçado. - Olhou ao redor e viu que não convencera ninguém. - Veja como me aceita. Ele é domesticado. Não há nada a recear! -
Se tivesse seus poderes, ela os convenceria com um simples pensamento. Mas só tinha sua palavra e a sinceridade que nascia de seu coração. Não suportaria se alguma
coisa acontecesse a Fallon.
- Por favor! - Cassandra implorou novamente ao se voltar para Stephen, ao se dar conta de que ele não tinha nenhuma razão para confiar nela, depois do que lhe fizera.
Suplicou, com o olhar, para que poupasse o animal.
- Abaixem as armas - ele ordenou aos homens, depois de pensar por algum tempo. - Veremos quanto a esse seu lobo, senhora - disse. - Mas até que saibamos como é a
sua verdadeira natureza e comportamento, ele permanecerá confinado.
O pensamento a repugnou. Fallon jamais ficara confinado, tinha liberdade de correr pela região e mesmo pelos salões de Tregaron. Com seus poderes, ela podia se certificar
de que o lobo não fosse visto. Só uma vez ele assustara um criado, que entrara sem se anunciar e deparara com o lobo ao pé da cama.
Cassandra aceitou os termos, sabendo que era igualmente perigoso para Fallon voltar para a floresta. Seria caçado e certamente morto.
- Muito bem, concordo.
- Não pedi a sua concordância, senhora. São os meus próprios termos, pois você é igualmente prisioneira, tal como o animal.
- Só peço uma coisa mais - ela emendou.
- O que é?
- Que eu tenha permissão de cuidar dele, pois não aceitará comida de ninguém.
A velha Meg postou-se ao lado de Stephen e o segurou pelo braço. Aparecera do nada, sem mesmo um ruído. Era sempre um pouco desconcertante a forma como fazia isso.
Seu jeito de agir e aqueles olhos sem cor. Embora lady Vi-vian assegurasse que a velha era cega, Stephen não tinha certeza.
- Isso pode ser revertido em nossa vantagem - Meg murmurou ao sentir que Stephen lhe dava toda a atenção.
Aquele mortal, cujas meadas da vida estavam entrelaçadas com as da filha da Luz, sobrevivera àquilo que poucos mortais tinham superado: a uma batalha com uma criatura
das Trevas que provocava tamanho terror e detinha tanto poder que a maioria dos homens jamais sonhara.
Sobrevivera, mas não escapara incólume, pois seu corpo guardava cicatrizes daquele encontro, as marcas horríveis dos dentes que haviam dilacerado sua carne quando
ele se vira privado de suas armas, uma a uma, até que restava apenas o que possuía para enfrentar as Trevas: sua coragem.
Era por essa razão que fora escolhido, tal como os outros haviam sido escolhidos pelos guardiães, embora Stephen não soubesse. Julgava que precisava apenas encontrar
a filha da Luz e convencê-la a aceitar o legado que deveria cumprir.
- Explique-se, mulher.
Meg sorriu, pois debaixo do escudo de guerreiro, dentro do coração de Stephen, sentiu uma paixão violenta. Uma paixão apenas recentemente vislumbrada e que despertara
naquele único beijo. Percebeu que outra meada fora tecida pelo Tear Cósmico.
- Ela não se dobrará pela força. Você já viu que é assim - Meg ponderou. - É muito melhor ter a cooperação da moça do que a sua inimizade. - Sentiu que ele reagia
favoravelmente e continuou: - Você tem nas mãos a sorte de algo que Cassandra valoriza muito. E precisa da colaboração dela. Use uma coisa para ganhar a outra. E
lembre-se: assim que Cassandra fizer uma promessa, será mantida.
Stephen percebeu a intenção da velha. Cassandra estava agradecida por ele poupar o lobo. Quanto ficaria mais grata se pudesse preservar o bem-estar do animal?
- Concordo com o que pede, desde que eu tenha sua palavra de que não tentará fugir - declarou Stephen.
Viu o jogo de emoções na expressão de Cassandra, a luta interior revelada em cada linha do rosto. E o momento em que capitulou.
- Está bem - ela respondeu, rígida, o olhar preso em Fallon, que agora se postava, tranqüilo, a seu lado. - Não tentarei fugir.
- Tenho a sua palavra?
- Sim.
- Diga com todas as letras.
Os olhos violeta faiscaram zangados quando Cassandra o encarou.
- Tem minha palavra de que não tentarei fugir.
Stephen anuiu e depois se virou para Gavin, a quem deu instruções para que arranjasse um lugar apropriado para o lobo.
Até que tivesse certeza da verdadeira natureza do animal, este deveria ficar confinado. No momento em que Gayin se aproximou, hesitante, Fallon rosnou.
- Preciso acompanhá-lo - Cassandra disse. - A menos que o seu homem queira perder um braço. - Viu a recusa nos olhos de Stephen e então usou as próprias palavras
contra ele: - Afinal, milorde, tem a minha promessa de que não tentarei fugir.
- Ele a mantém bem guardada - Margeaux comentou, quando Cassandra voltou ao quarto e descobriu a irmã adotiva a esperar por ela.
Cassie fechou a porta depressa. Era o primeiro contato direto com a irmã em mais de duas semanas, desde que estavam ali.
- E você não é guardada de jeito nenhum, parece - disse, em voz baixa, ao se aproximar.
- Sou tão bem guardada quanto você, mas aprendi a mostrar humildade para os guardas. E comecei a chorar com problemas femininos - explicou, os olhos com uma expressão
velada. - Reclamei tão dolorosamente que eles ficaram felizes em me deixar vir até o seu quarto. - Bufou. - Sem outras mulheres, a não ser aquela velha bruxa e a
garota muda, ficaram contentes em fazer alguma coisa para aliviar o meu sofrimento. Você faria melhor em usar meios semelhantes em nossa vantagem.
Margeaux atravessou o quarto, recostou-se na porta para ter certeza de que ninguém ouvia e, então, voltou-se e encarou Cassandra.
- Você nos põe em perigo com os seus modos rebeldes. Se continuar assim, lorde Stephen nos colocará nas gaiolas dos corvos e nos deixará lá, para que nos devorem
até os ossos. Mas, se cooperar, então talvez ele pense que vale a pena negociar a nossa liberdade.
Cassandra meneou a cabeça.
- João não negociará a nossa libertação.
- Claro que negociará! - Margeaux exclamou, indignada.
- E se separar de um pouco do seu precioso ouro?
- Malagraine providenciará tudo - Margeaux declarou, confiante. - E João não se atreve a desafiar o príncipe Malagraine. Arregimentará todos os nobres e os rebeldes
saxões contra o exército do rei inglês, e esta fortaleza será reduzida a pó.
- Como sabe disso? - Cassie perguntou, suspeitosa da certeza de Margeaux. - O que você quer dizer?
- Garanti a nossa liberdade porque tenho algo que Malagraine quer mais do que qualquer outra coisa-Seus olhos faiscaram. - O filho dele.
- Filho? - Cassandra repetiu, incrédula. - Do que está falando?
Todos sabiam que ao longo dos anos de seu casamento com a princesa galesa, nenhuma criança fora concebida. E havia boatos de que nenhuma das amantes engravidara,
pois Malagraine não hesitaria em se afastar de uma esposa e tomar outra, se carregasse um filho seu. Mas tal não acontecera. Malagraine não tinha herdeiro para sucedê-lo.
Margeaux sorriu ao alisar a lã macia do vestido sobre o ventre. Lentamente a compreensão despertou em Cassandra, com as imagens de Margeaux nua, sendo possuída por
Malagraine.
- E qual foi a reclamação feminina que convenceu os guardas a trazê-la aqui?
Cassandra achou impossível acreditar que Margeaux estivesse grávida. Não havia nada em sua aparência que sugerisse isso.
- Eles não quiseram ouvir os detalhes. São como qualquer homem e estavam loucos para impedir que eu ficasse gemendo em seus ouvidos.
- Lorde Stephen sabe disso?
- Saberá quando me for conveniente.
- Mas como pode ter certeza de que Malagraine ficará ciente?
- Sempre existe um meio - Margeaux respondeu, de um jeito evasivo. - Ninguém é absolutamente leal. Tudo tem seu preço. Mas você precisa cooperar. Não fará nenhum
bem se ele nos lançar num calabouço ou em grilhões porque você não consegue manter a língua dentro da boca e nem se portar de forma civilizada.
- Dei minha palavra de que não tentaria fugir - Cassie a relembrou.
- Sua palavra? - Margeaux soltou uma gargalhada. - Uma mentira conveniente dada num momento particular em troca de algo que você queria. Você é uma prisioneira.
Ninguém espera que se sinta ligada a uma tal promessa.
- Eu espero e me sinto ligada. Não posso quebrar minha promessa.
- Tudo pela vida de um bicho inútil? Um lobo e um sujeito que serão mortos quando convier àqueles guerreiros? Quem é a tola, minha cara?
- Ele deu sua palavra de que Fallon seria poupado. Devo confiar nisso.
- Faça como quiser-Margeaux declarou, com desdém. - Mas nada de colocar em risco a nossa fuga. - Meneou a cabeça. - Você sempre foi estranha, sempre se resguardando.
Seria de admirar que algum homem a olhasse favoravelmente.
Sua irmã adotiva sempre tivera a língua ferina. Só com Malagraine ela tomava cuidado com cada palavra, controlando-se para que ele não se ofendesse quando estava
hospedado em Tregaron. E agora, por alguma razão, aquelas palavras tinham conseguido magoar Cassandra profundamente.
- Quando você vai embora? - Cassie perguntou.
- Logo, eu espero. Não posso suportar esses guerreiros com seus modos estranhos e hábitos esquisitos.
Cassie sorriu, no íntimo, pensando se a irmã falava da disciplina incomum, da lealdade e firmeza do jovem lorde Stephen, pois tinha certeza de que o irmão adotivo
jamais conquistara tanta lealdade. Seu próprio exército era composto na maior parte de mercenários e saxões que haviam fugido das fronteiras do Ocidente depois da
morte do rei Harold. Os nobres galeses dificilmente seriam melhores, por demais influenciados por gente como Malagraine a lutar uma guerra para a qual não tinham
habilidade nem esperança de vencer.
Mas por que prosseguir com uma guerra que não poderia ser vencida? Como sempre, naquelas últimas semanas, não houve resposta para seus pensamentos.
Ouviu-se um ruído à porta. Não a mantinha mais trancada do lado de fora. Nisso, pelo menos, Cassandra não era tratada como prisioneira. Margeaux a olhou com olhos
fais-cantes e recuou para as sombras.
A velha Meg parou à porta do quarto e sentiu imediatamente a presença de Cassandra, com quem entrara em sintonia nas últimas semanas. O retraimento de Cassie tinha
sido substituído por aceitação, depois que o lobo fora poupado. Porém seus sentidos lhe diziam que havia outra pessoa ali também. Alguém que se escondia nas sombras.
Voltou-se para Cassandra, guiada pela aura que era como um sol dourado numa profunda escuridão.
Se pelo menos ela soubesse de seu legado e o aceitasse, Meg pensou, com uma crescente sensação de urgência. O tempo se esgotava. Logo, deveria ser convencida a aceitar
seu destino.
- Milorde deseja vê-la - disse, os sentidos em alerta com a presença latente que era como uma sombra que bloqueava o sol.
Desde aquela noite em que Fallon fora arrastado para o salão, Cassandra esperava encontrar-se novamente com Stephen. Havia perguntas que continuavam sem respostas.
Quem era ele? O que queria dela? Que encantamento era aquele que a mantinha sem poderes, afinal?
Mas Stephen não tivera tempo de falar com ela nas últimas semanas, conforme os últimos reparos eram feitos na fortaleza, contra qualquer ataque. Quase todos os dias,
chegava mais gente, muitos jovens querendo pegar em armas contra João de Tregaron e o príncipe Malagraine.
A população de Camelot crescia como um enxame. Lorde Stephen não tinha nenhuma intenção de se retirar ou se render. Cassandra ouvira boatos de que ele fazia planos
para a guerra, com a certeza de que chegaria o dia em que Malagraine uniria suas forças e atacaria.
- Ficarei contente em me reunir com ele - disse à velha, ao sair depressa para que Meg não pudesse entrar. - Vai me acompanhar? - perguntou.
- Sou uma velha - retrucou Meg. - Meus ossos doem a cada passo que dou. Ele pediu que você o encontrasse na câmara estrelada. Disse que saberia a razão.
Cassie olhou, hesitante, para a porta do quarto. Se agisse de maneira a levantar suspeitas, Meg poderia entrar e encontrar Margeaux. Concordou.
- Sei bem. - Afastou-se, rezando para que Margeaux tivesse o bom senso de ficar escondida por algum tempo, até a velha ir embora.
Depois que Cassandra se fora, Meg ainda sentia aquela presença no ar. Franziu a testa, contente porque não era de Cassie a aura sombria que captava, mas, ao mesmo
tempo, preocupada. Pensou em procurar pelo quarto, mas depois hesitou.
Lá dentro, Margeaux esperou até não ouvir mais vozes. Ia deixar o quarto quando, de repente, uma onda de dor a dominou, tão violenta que ela caiu de joelhos. A dor
centrava-se em seu ventre e parecia dilacerá-la, como se alguma criatura lhe arrancasse as entranhas, tentando sair. O suor escorreu-lhe da testa, ao mesmo tempo
em que um frio pegajoso a invadia. Sentiu a náusea subir-lhe pela garganta e lutou para se controlar. Detestava ficar doente.
Sua mão alisou o ventre, trêmula. Depois de todas as vezes em que estivera com Malagraine, perdera a esperança de conceber um filho. Nem mesmo tinha certeza de estar
grávida agora, pois haviam se deitado fazia poucas semanas. Nada sabia sobre o que era carregar uma criança no ventre e tinha horror em pensar que seu corpo pudesse
ficar distorcido e enorme. Porém aquele filho prometia bem mais do que ela esperava. Seus olhos faiscaram ao pensar no poder que teria ao alcance das mãos. Logo
Malagraine saberia do fato, talvez até mesmo naquele momento as notícias estivessem sendo levadas a ele. E, quando soubesse, mandaria resgatá-la.
Cassandra não tinha estado na câmara estrelada desde a última vez em que Fallon levara Stephen e seus homens até Camelot, então povoado de fantasmas e em ruínas.
Como o resto da fortaleza, ela descobriu que a sala de reuniões de Arthur e seus cavaleiros estava muito mudada.
Os detritos e ruínas de séculos não se encontravam mais lá. As paredes brilhavam, claras e douradas, o chão de malaquita polida e reluzente. Suportes de vela da
altura de um homem estavam postados pelo perímetro da câmara, as chamas a bruxulear com o golpe de ar, quando ela abriu a porta. Depois, continuaram a queimar, firmes
mais uma vez, quando a porta se fechou.
Cassandra parou logo à entrada, recordando-se daquele outro encontro, semanas antes. A lembrança a fez erguer os olhos para o teto. Fora consertado também, com remendos
de colmo a cobrir os buracos.
Sentiu uma onda de desapontamento ao pensar na primeira vez em que encontrara Stephen de Valois, depois da viagem de volta através do portal. Desde então, parecia
que suas vidas estavam inexoravelmente interligadas. E agora, ela era sua prisioneira.
Esfregou o dedo pela fita azul que se enrolava em seu pulso, imaginando de novo a fonte de seu poder.
Era o poder das Trevas, como Elora sempre a avisava, quando criança? Ou alguém mais o possuía? E com que propósito?
Subiu os degraus para a câmara que sempre a atraíra quando criança como uma estrela-guia. Ao circular o aposento, correu os dedos pelas paredes lisas, o corte perto
das pedras claras que refletiam a luz das velas e com as estrelas a brilhar ao alto, fazendo parecer que aquele lugar englobava todo o universo conhecido.
A Voz a trouxera ali quando pequena, como se algo a aguardasse. Ali, descobrira os guerreiros, havia tanto tempo mortos, que deram a vida para o antigo rei. Um castelo
lendário, guerreiros lendários, um rei lendário. Tudo real. Todos a esperar naquele antigo lugar.
Cassandra sentira-lhes a presença, outras vozes que lhe pediam que recordasse. Eram como as imagens enevoadas que surgiam em seus sonhos, rostos dos quais deveria
se lembrar, mas não conseguia. Sentia uma incrível solidão naqueles derradeiros momentos antes de dormir, toda noite, quando Elora se sentava na cadeira de balanço
e Fallon se deitava aos pés da cama. E nem mesmo a presença amorosa de ambos aliviava a dor que lhe enchia o coração mortal e lhe trazia lágrimas aos olhos.
O lobo e a velha eram sua única companhia, então. Aquele lugar fora seu esconderijo, um lugar secreto de lenda e mito, por onde ela e Fallon vagueavam. Em sua imaginação,
alimentada pelas histórias de Elora, Cassandra via como fora a fortaleza, cheia de vida, com cavaleiros e guerreiros corajosos, uma venturosa rainha que era amada
por um poderoso rei. E, em sua imaginação, não havia nenhuma traição. Rei e rainha não morriam, mas viviam para sempre. Então, chegara o dia em que ela deveria fazer
a jornada através da bruma para aquele outro lugar secreto. O lugar de que Elora sempre falava. O lugar onde Cassandra nascera. Ela, porém, recusara-se teimosamente
ao declarar que não tinha pais. Se tivesse, como poderiam tê-la abandonado? Como não ouviriam seus pensamentos, cheios de desejo de estar com eles? Como não saberiam
das lágrimas de solidão que ela derramava todas as noites? Não queria nada daquelas criaturas sem coração e fechara os pensamentos para todas as súplicas de Elora,
como também para aquelas vozes gentis que falavam de amor.
Ali, agora, Cassandra estava verdadeiramente sozinha, com Fallon aprisionado numa jaula, e sem mesmo os poderes com que nascera para protegê-la. Viu as chamas estremecerem
e voltou-se quando Stephen de Valois desceu lentamente os degraus.
Ele ficara a observá-la à entrada da câmara, tentando captar seu ânimo, como fazia todo dia nas últimas duas semanas desde que lhe concedera a vida do lobo. Gradualmente,
dera a ela mais liberdade, contanto que um de seus homens a acompanhasse. E a velha Meg também lhe fazia companhia, tentando convencê-la por meio dos pensamentos
e compartilhando as lembranças de sua família e do destino que a aguardava.
O tempo se esgotava, a velha o advertira. A cada dia o poder das Trevas aumentava. Ela o avisara naquela manhã que os dias não mais se mostravam cheios de luz. Stephen
desdenhara do aviso, alegando que era apenas a mudança de estação. O inverno estava às portas, mas mesmo assim ele não conseguia negar que uma estranha escuridão
parecia pairar sobre a terra, logo além das muralhas do castelo, como se mantida a distância por alguma mão invisível. E enquanto isso, corriam rumores a respeito
do exército que Malagraine reunia.
Em breve, os passos nas montanhas que rodeavam o vale ficariam fechados pelas nevascas. Mas, com a chegada da primavera, vinha a certeza da guerra.
Cassandra voltou-se, a chama de uma vela próxima a se refletir nas profundezas daqueles olhos violeta. Tinha a expressão cautelosa, porém sem a usual desconfiança.
- Mandou me chamar, milorde?
- Um pedido, Cassandra, não uma ordem - Stephen disse, esperando que dessa vez fosse diferente, que pudessem encontrar algum nível de entendimento em vez da discórdia
com que constantemente se confrontavam: o pedido de Cassandra de que ele tirasse o encantamento e a recusa de Stephen em fazê-lo.
- Um pedido em troca da vida de quem, agora, milorde?
- Um pedido simples, não em troca de uma vida, mas da dádiva de uma vida para fazer com ela o que você quiser - ele explicou ao se aproximar, uma das mãos enfiadas
dentro da túnica de tal modo que, por um breve momento, Cassandra receou que ele pudesse estar ferido.
Tirou de dentro da túnica uma pequena bola de pêlos, aninhada na palma da mão. Estava encolhida, enrolada do rabo ao focinho, sendo impossível dizer onde era o começo
e o fim. O corpo era escuro, com listras mais claras a riscar uma porção que poderia ser a cauda. A bola de pêlos tremia. Por um momento, toda a animosidade entre
os dois foi esquecida.
Sem nenhum receio, Cassandra estendeu a mão para acariciar o bichinho.
Um pequeno focinho mascarado espiou do bolo de pêlos. Dois olhos escuros a encaravam, sem forças até para demonstrar medo. A pobre criatura estava morrendo.
- Um dos camponeses encontrou o ninho num monte de feno - Stephen explicou, enquanto Cassandra afagava a pele macia. - Dois outros filhotes estavam mortos. A mãe
não apareceu. Este foi o único que restou vivo.
- E não por muito tempo - ela retrucou, baixinho, ao deixar o filhote de guaxinim lhe sentir o cheiro, pois sabia por instinto que o medo poderia matar tão facilmente
como a fraqueza pela falta de comida ou qualquer outra enfermidade que a pequena criatura sofresse. - Por que o trouxe aqui?
- Você parece ter jeito com bichos. Um dom - ele explicou ao pensar na outra irmã dela, que também possuía o poder da cura. - Eles confiam em você.
- Porque não têm razão para desconfiar - Cassandra respondeu, com aspereza. - Não bato neles nem os deixo passar fome nem os prendo com laços nem os uso para conseguir
algo que eu queira.
Entreolharam-se por um instante por sobre a bola de pêlos ainda aninhada na mão de Stephen, contra o calor de seu peito. E ele imaginou quanto dos poderes de percepção
Cassandra ainda possuía.
- Se não quiser cuidar do bichinho, mandarei que seja devolvido ao monte de feno. Talvez a mãe volte para buscá-lo.
- Ela não voltará! - Cassie exclamou, com uma expressão de sofrimento no olhar. - Uma vez que abandonou a prole, não voltará mais. Por causa do cheiro de gente dentro
das muralhas. Quando o feno foi trazido para dentro, ela fugiu de medo. Os filhotes já foram esquecidos. As coisas são assim. Ficarei com esta pobre criatura, embora
duvide que possa viver. É muito pequena e fraca.
- Mas com um coração valente - Stephen comentou, mostrando a marca da mordida no dedo. - Tirou um bom naco de mim pelos meus esforços.
- Sem dúvida mereceu - Cassandra resmungou. - Ele precisa se acostumar com o meu cheiro para que possa me aceitar - explicou ao correr os dedos de leve sobre o pêlo
macio do bicho. Depois, soprou, aquecendo com seu hálito o ar que a criatura respirava.
O toque dos dedos, o cetim lustroso dos cabelos a cair pelos ombros de Cassandra e a roçar pela manga de Stephen, o hálito doce a escapar por entre os lábios entreabertos,
tudo lembrava aquele último encontro e o gosto daquele beijo. Nesse momento, ligados pela criatura trêmula, não havia raiva entre ambos, só o calor partilhado. Stephen
abaixou a cabeça, a seda dos cabelos de Cassandra a lhe roçar a face, seus lábios tão próximos que ele teria apenas que virar o rosto para lhe sentir o sabor novamente.
- Sim, sem dúvida, mereci - Stephen murmurou ao pensar como a magoara e humilhara.
Cassandra ergueu os olhos, lagoas de um fogo violeta, e, por um momento, estabeleceu-se aquele vínculo experimentado semanas antes, no corredor da corte em Londres,
quando ele a encontrara e a seguira pelo portal até o lugar onde estavam agora. Seus lábios se entreabriram, o hálito quente a bafejá-lo quando murmurou:
- Milorde, eu...
Stephen percebeu a confusão naquela voz, ouviu o aviso de seu próprio coração de que seria imprudente tirar vantagem da situação, mas ignorou tudo ao deslizar os
dedos pela cortina daqueles cabelos.
A respiração de Cassandra tornou-se ofegante. E ela ergueu a mão, em protesto, quando ele gentilmente a segurou pela nuca. Os olhos violeta se cravaram nos lábios
carnudos de Stephen, e Cassandra deixou escapar um pedido aflito que ambos sabiam que ele não ouviria.
- Por favor...
Fosse que fosse o que ela iria dizer, foi abafado pelo beijo de Stephen. Sua boca pousou sobre a de Cassandra. Com a ponta da língua, gentilmente, entreabriu-lhe
os lábios. Com um gemido de prazer, insinuou-se para dentro, a acariciar e mergulhar no calor sedoso da cavidade úmida até que tudo que sentia era ela, toda doçura
e suavidade.
Cassandra apoiou a mão no peito de Stephen, trêmula como o bichinho que ele lhe dera. Ela pôs um fim ao beijo ao se afastar de repente. Porém seu olhar se enevoara,
e havia nele um fogo ardente. Seus seios arfavam sob o vestido, sua pele queimava num rubor que não era nem de constrangimento nem de humilhação.
- Se puder salvar o bichinho, posso conservá-lo? - Cassandra perguntou.
- Pode, em troca de um pequeno favor.
Stephen viu a cautela e depois a raiva que imediatamente saltou aos olhos de Cassandra e soube o que ela estava pensando. Que ele tentara seduzi-la para obter alguma
coisa.
- Sempre há um preço, não é, milorde? - Cassandra murmurou, furiosa.
- Peço apenas que leve isto e olhe com atenção. - Da mesa, Stephen pegou um rolo de tecido. A tapeçaria que lady Vivian tecera e que ele trouxera de Londres.
- Um presente? - A ironia voltara, juntamente com a raiva. - Não pensei que fosse tão generoso.
- Falta muito pouco tempo, Cassandra. Talvez apenas algumas semanas. Isto foi enviado...
- Não preciso de tais coisas - ela retrucou, zangada. - Afinal, sou uma prisioneira. Que necessidade tem uma prisioneira de tal ornamento? - Pegou o guaxinim e aninhou-o
na curva dos seios. - Agradeço pelo bichinho, milorde. - Voltou-se e saiu correndo da câmara estrelada.
- Droga! - Stephen resmungou. Sentiu a vibração do ar no aposento e depois a forma encurvada que subia lentamente os degraus.
- Ela se recusou a olhar a tapeçaria - Meg murmurou, com tristeza, já sabendo sem a necessidade de ver o rolo ainda nas mãos de Stephen. - Precisa encontrar uma
maneira, guerreiro. Ou tudo estará perdido.
Meg vira uma criança, ainda não nascida, que traria consigo ou a esperança para o futuro ou o fim de tudo.
Capítulo VI

- Alguém disse a ela que não é a primeira mulher a carregar um filho? - falou a velha Meg ao colocar mais lenha no braseiro.
- Isso não teria importância - retrucou Cassandra. - Margeaux não tolera desconforto. E, na verdade, esse confinamento parece a ela particularmente difícil. Molhou
a boca da irmã adotiva, que parecia gravemente enferma.
Fazia umas poucas semanas que Margeaux anunciara que esperava um filho de Malagraine, mas parecia estar grávida de alguns meses. Ficara acamada desde o princípio,
com uma queixa após outra, o corpo a se avolumar depressa, de tal modo que sua barriga estava arredondada, a gravidez visível sob o vestido.
Para piorar as coisas, nevava sem cessar, deixando todos confinados às muralhas do castelo. Mesmo para ir de uma edificação a outra, era difícil, a não ser que o
caminho fosse limpo.
- Esse remédio de erva é inútil - Cassandra murmurou, frustrada. - Ela está cada vez mais fraca e mais irritada.
Meg bufou.
- Uma condição natural, pelo que percebi. Cassandra sorriu, a despeito da fadiga que sentia, depois de cuidar da irmã durante todas as noites. Se não fosse pela
velha e a garota, Amber, teria enlouquecido nas últimas semanas, confinada no mesmo lugar que Margeaux.
De muitas maneiras, a velha Meg fazia Cassandra lembrar-se de Elora. Na companhia tranqüila da velha, ela encontrara algo que perdera quando Elora morrera. Amber
era de uma paciência infinita e cuidava de Margeaux quando Cassandra precisava descansar. Muitas vezes brincavam que, em vez de ser muda, a menina poderia ser surda,
para não ter de ouvir tantas reclamações. Amber parecia a irmã que Cassandra nunca tivera, pois dificilmente Margeaux se enquadraria nessa condição.
Até mesmo o bichinho, Pippen, que sobrevivera miracu-losamente e agora corria pelo quarto com entusiasmo, a fazer travessuras como todo guaxinim, dera para se esconder
na pilha de lenha ou debaixo das peles na cama, quando as reclamações de Margeaux se tornavam enfadonhas e irritantes. Cassandra o pegou e o colocou no ombro de
Amber.
- Eu voltarei - disse - com o remédio que aliviará o desconforto de Margeaux, ou juro que ela não sobreviverá outra noite.
- Senão - Meg emendou -, eu mesmo posso dar cabo dela.
- Vocês todas me odeiam - Margeaux gemeu e depois começou a chorar. - Acham que estou assim porque quero?
Quem dera eu pudesse tirar essa criança de dentro de mim agora.
- Creio - disse Meg - que você tem o que merece por se deitar com um homem. E alguém abominável como aquele um.
Todos sabiam que Malagraine era o pai, pois Margeaux não poupara ninguém de suas conversas de como o príncipe viria resgatá-la quando soubesse que esperava um filho
seu. Isso fora semanas antes. E não houvera nenhuma notícia de Malagraine ou do irmão. E o inverno chegara.
- Ande logo - Meg disse a Cassandra. - Fale com lorde Stephen!
Cassandra fechou a porta, mais uma vez espantada ao não sentir a corrente gelada de ar que sempre havia nos corredores de Tregaron. Camelot fora construído para
tirar vantagem do calor do sol no inverno e aproveitar as brisas frescas no verão.
Depois de procurar pelo salão, foi informada por um dos homens dele que Stephen estava na câmara estrelada. Cassandra entrou sem se anunciar e parou, surpresa, ao
vê-lo reunido com seus cavaleiros em torno da mesa redonda.
Stephen levantou-se de uma das doze cadeiras que rodeavam a Távola Redonda. Uma delas encontrava-se vazia. Sir Gavin fora com seus homens verificar os passos da
montanha. Deveria estar de volta em breve. Cassandra virou-se para sair. Era raro se encontrarem, mais raro ainda que ela o procurasse.
- Não vá, senhora. Já terminamos. - Os cavaleiros e Truan Monroe levantaram-se das cadeiras e pegaram mapas, gráficos e armas. Sempre tinham as armas à mão.
- É um assunto sem importância - Cassandra murmurou, hesitante, conforme os homens passaram por ela e saíram. - É sobre lady Margeaux.
- O que há?
- Ela não está bem. Está grávida. Algumas mulheres passam muito mal. Há remédios que poderiam aliviar-lhe o desconforto.
- E sem dúvidas as reclamações também? - Stephen perguntou, pois a velha Meg não fazia segredo da sua implicância com aquela mulher.
- Seria um benefício adicional - Cassandra admitiu.
- Para todos nós.
Ela ergueu os olhos diante do tom de riso da voz de Stephen, e se viu tocada por aquele sorriso compreensivo e cheio de simpatia.
- Do que precisa?
- O que preciso não pode ser encontrado dentro das muralhas do castelo. É um tubérculo que cresce na floresta. Tem uma folha roxa, mas a batata que cresce debaixo
da terra contém o remédio que pode aliviar o desconforto de Margeaux.
- Meg ameaçou fazê-la se calar, não é?
- Se eu não voltar logo, disse que iria matá-la.
- Nenhum homem em Camelot a culparia por isso.
- Nenhum homem já esperou um filho - Cassandra retrucou, em defesa da condição feminina. - É um grande fardo carregar uma criança e colocá-lo em segurança no mundo.
- Muitos homens não temem a dor. Aquela resposta a surpreendeu.
- Trocaria de lugar com uma mulher e geraria um filho, se pudesse?
Ele pensou em Rorke FitzWarren, que era como um irmão mais velho, e a agonia que sofrera durante a gravidez problemática de lady Vivian.
- Como pode afirmar que um homem não sofre, talvez mais, em sua impotência, ao observar a mulher que ama passar uma tal agonia?
- Não consigo imaginar um amor assim - ela respondeu, com honestidade. O filho de Margeaux não fora gerado por amor, mas pela fria ambição. E Cassandra pensou nos
pais, de quem sabia pouco, imaginando se seu pai amara sua mãe assim.
- Nem eu - Stephen murmurou, também com franqueza. - Mas já vi. Vi um guerreiro tornar-se humilde e se ajoelhar, a implorar a Deus que tirasse sua vida em troca
da vida de sua amada.
- Posso ter o remédio?
- Mandarei que o tragam para você.
- Obrigada. - Ela se voltou, ansiosa para terminar a conversa. O assunto sobre amor a perturbara.
- Em troca, peço uma coisa.
Era sempre assim. Tudo implicava uma barganha. Algo dado por algo em troca. Cassandra se virou devagar, imaginando qual seria o preço. Esperou quando Stephen rodeou
a mesa e se aproximou.
Ele percebeu a mudança sutil na respiração de Cassandra, o arfar dos seios, o modo como desviava os olhos, a secura da boca e como corria a língua pelo lábio inferior.
Estendeu o braço e tomou-lhe a mão, ao sentir que ela recuava instintivamente. Segurou-a com firmeza, virando a palma para cima.
- Nossa barganha é - disse e colocou um pano enrolado na mão aberta - você ter o remédio de que precisa em troca de concordar em olhar a tapeçaria.
Cassandra pensou em Margeaux. Parecia um preço baixo a pagar para aliviar o desconforto que a irmã estava impondo a todos.
- Tudo bem, concordo.
- Vai olhar com cuidado - Stephen insistiu.
- Olharei. - Não lhe deu oportunidade para acrescentar outras condições, pois virou-se e desceu correndo as escadas e saiu do aposento.
Voltou ao próprio quarto por um breve momento e colocou de lado a tapeçaria enrolada. Ia voltar ao quarto de Margeaux, quando a luz do fogo no braseiro refletiu-se
nas meadas penduradas no fim do rolo bordado.
Eram cores maravilhosas que imediatamente atraíram-lhe os olhos e as mãos. Ao pegar os fios, eles brilharam em diversas nuances, como se tivessem vida. Como se tentassem
tocá-la. Cassandra ia soltar a faixa que prendia o rolo quando Amber apareceu à porta. Diante da expressão suplicante da garota, a tapeçaria foi esquecida.
Conforme empenhara a palavra, Stephen mandou um caçador, familiarizado com a floresta que rodeava Camelot, até o quarto de Margeaux. Cassandra descreveu com detalhes
a planta que queria, explicando que o tubérculo precisava estar intacto, pois era a batata que continha o remédio de que Margeaux precisava.
O homem voltou, no fim da tarde, com a planta que ela pedira. Cassandra preparou uma tisana com um pedaço do tubérculo, guardando o resto num pano úmido, para conservá-lo.
Depois, deu o chá à irmã adotiva.
Era uma beberagem amarga, do tipo que faz a pessoa perguntar o que é pior, a doença ou a cura. Margeaux, porém, não tinha escolha nem estava em condições de protestar.
O remédio logo fez efeito e em breve ela dormia tranqüilamente, para sossego de todos.
Cassandra pegou um manto de lã que Meg lhe trouxera num outro dia. Suas costas doíam de ficar dobrada sobre a cama de Margeaux a maior parte do dia. O manto era
de uma lã fina, num tom de azul profundo e tecido com delicados fios prateados. Quando perguntara onde Meg conseguira uma peça tão fina, a velha dera de ombros.
- Achei por aí. Ninguém queria e é muito grande para mim.
Quando Cassandra colocou o manto nos ombros e amarrou os laços para se proteger do frio, Pippen atravessou o quarto e se enfiou debaixo de suas saias. Ela o sentiu
se enrolar em seu tornozelo.
- Muito bem, pode vir. - Como se a compreendesse, Pippen correu para a porta quando Cassandra a abriu, ambos ansiosos pelo ar frio do inverno.
Nevara constantemente durante a última semana, e o tempo firmara apenas naquela manhã. Cassandra atravessou o portão sem problemas, quando o guarda a reconheceu.
Como sempre, sentiu a sombra que a acompanhava, a uns poucos passos de distância.
Ela ergueu a face para o sol de inverno, sentindo o calor penetrar-lhe até os ossos, como se o frio já durasse muito tempo em vez de ser a primeira tempestade da
estação. O sangue parecia correr com mais vigor em suas veias.
Pippen pareceu captar seu ânimo. Embora tivesse dobrado de tamanho, ainda não conseguia caminhar pela neve que chegava até os joelhos de Cassandra. Saltava de uma
pegada a outra, desaparecendo completamente em cada buraco. Logo ficou para trás e começou a guinchar. Cassandra voltou, resgatou o bichinho e colocou-o sobre o
ombro, debaixo do capuz, com ele a apontar o nariz para fora, em busca de cada novo cheiro, os olhos agudos como os de um falcão.
Com a nevasca, era muito importante que Cassandra fosse até o abrigo onde Fallon estava preso. Ela o via duas vezes por dia. Por natureza, o lobo era uma criatura
selvagem e se mostrava cada vez mais inquieto com aquele confinamento. Incapaz de caçar por si, a sobrevivência do animal dependia de Cassandra.
Embora inimigos naturais em essência, Fallon aceitara Pippen sem restrições. O guaxinim passou pelas fendas da jaula e se enrolou nas pernas do lobo, sem imaginar
que deveria se comportar de maneira diferente.
- Como está o meu velho amigo? - perguntou Cassandra ao abrir o portão e soltar o lobo. Este se aproximou, e ela o abraçou, o rosto enterrado no pêlo do pescoço
de Fallon, comunicando-se com ele pelo toque, pelo cheiro e pelos sons. O lobo rosnava baixinho, enquanto Cassandra respondia com palavras gentis. Então ele puxou-a
pelos cabelos, numa brincadeira.
- Você quer brincar!
Cassandra riu e riu ainda mais quando Pippen saltou pela neve e se enrolou numa bola de pêlos.
- Vamos, Fallon - ela chamou, enquanto ele farejava o animalzinho embolado. - Você é maior que ele e mais sabido.
O lobo a fitou com aqueles olhos prateados, a bocarra repuxada como se sorrisse. Então, empurrou Pippen, ro-lando-o pela neve. Pippen foi rolando por um declive
até parar. Ergueu a cabeça, os olhinhos vivos parecendo pedir por mais.
Cassandra ria e os chamou, sem perceber que se tornara o centro das atenções de camponeses e guerreiros, que pararam de trabalhar para observar a bela e estranha
moça que era prisioneira em Camelot a brincar na neve com um lobo e um guaxinim.
Ela jogava bolas de neve em Fallon, que as pegava com a boca e sacudia a cabeça, enquanto Pippen corria em torno deles até que caía e se enrolava numa bola. O lobo
se atirava sobre Cassandra, errando por pouco em derrubá-la, ao saltar pela neve. O rosto dela estava corado, a expressão feliz, os cabelos negros salpicados de
neve.
Stephen observava a brincadeira de longe. Cassandra era como uma criança, inocente e pura, sem nenhuma maldade, como o tinham advertido. Como era possível que um
coração mesquinho convivesse com tanto riso? Com tamanha inocência e alegria? Com tanta paixão?
Como seus homens, ele se sentia enfeitiçado, encantado pela leveza e a felicidade de Cassandra, e, como eles, atraído para ela. Atravessou o pátio e se aproximou
lentamente do espaço aberto, na área externa, onde seus homens normalmente se exercitavam. Trazia uma cesta que pegara com o camponês de uma carroça.
- É difícil dizer quem é quem com tanta neve - Stephen comentou ao se aproximar do trio.
Cassandra sentou-se na neve. Tinha os cabelos e os cílios salpicados de gelo. Seus lábios reluziam, os olhos fais-cavam.
Fallon sentiu o cheiro de carne da cesta e, para admiração de Cassandra, aproximou-se sem hesitação.
- Mas não é difícil dizer quem é o traidor.
Ela ajoelhou-se e caiu para trás, ao se emaranhar nas saias e puxada pelo peso do manto. Pippen aproximou-se e, mais cauteloso, cheirou a maçã que Stephen segurava
nos dedos esticados.
- Você também? - Cassandra comentou, desistindo de se levantar da neve macia. - Estou rodeada por traidores cujo afeto pode ser comprado com um simples bocado de
comida.
- Mais do que um simples bocado de comida - Stephen confessou ao estender outra perna de veado para o lobo. - Entre a comida que você dá a ele e a que eu lhe trago,
é de admirar que o lobo não tenha engordado como um monge. Diante do olhar surpreso de Cassandra, Stephen deu de ombros.
- Eu disse que ele precisava ficar preso, não que deveria passar fome. Além disso, você não cumpriu sua parte no trato. O lobo não está preso.
- E quanto a Pippen? - ela perguntou. - Você o transformou num traidor também?
- Ele é um ladrãozinho safado. Só na semana passada, perdi vários medalhões e a pedra com uma inscrição incomum.
- Pippen adora objetos brilhantes - Cassandra admitiu. - Estou ensinando-o a ser mais seletivo. Só pegar moedas de ouro. De preferência, as do rei Guilherme.
- Se por acaso encontrar o meu cinto, seria bom que o devolvesse. Acho necessário para impedir que minhas calças caiam nos tornozelos.
- Seria um panorama e tanto. O senhor de Camelot desmoralizado por um guaxinim.
- Senhor de Camelot?
- Não é o que é, com os seus cavaleiros da Távola Redonda?
Stephen estendeu a mão a Cassandra.
- Pensei apenas em encontrar um lugar que fosse defensável contra Malagraine. Se estas muralhas resistiram por quinhentos anos, então talvez possam resistir por
mais quinhentos.
Ela olhou para a mão estendida, pensou na neve que ensopava seu manto e aceitou o oferecimento. Viu-se livre da neve, de pé e tão perto de Stephen que podia sentir-lhe
o calor, a despeito do frio da tarde, com o sol abaixo das muralhas do oeste.
- Fala de um reino, milorde.
- Não sou rei - ele retrucou, baixinho, a voz amargurada. - Sou um deserdado. Um homem sem domínios.
- Desdicado - ela murmurou, ao reconhecer a palavra latina que ele levava no escudo. Franziu a testa ao se recordar de uma lenda ouvida quando criança. - Existe
um reino no coração, não em possessões terrestres. - Encarou-o com expressão pensativa, como se tentasse ver mais através dele. - Sabia que Arthur era um rei guerreiro
sem terras para reivindicar até Camelot?
- É uma lenda - Stephen murmurou. - Nada mais.
- Realmente. Camelot não passa de um sonho, e a Távola Redonda, de uma fábrica de histórias contadas às crianças diante da lareira, de noite. - Cassandra ergueu
as saias e a barra do manto encharcado de neve e chamou por Fallon.
O lobo, no entanto, não veio com presteza. Tinha as orelhas empinadas, os músculos tensos, o olhar prateado fixo na direção dos portões principais. Então, um grito
ressoou nas torres de vigia. Um grupo de homens a cavalo se aproximava.
Guerreiros e cavaleiros se reuniram no pátio. Os habitantes de Camelot saíram de suas cabanas e choças, os fogões acesos no salão principal do castelo. Foi dado
um sinal para a torre do portão. Sir Gavin e seus homens estavam regressando. Os portões se abriram lentamente, baixados por cordas grossas.
Os homens que atravessaram os portões mal podiam ser reconhecidos. Sir Gavin ia adiante, o emblema quase invisível devido ao sangue em sua túnica. A seu lado, estava
John de Lacey, o rosto exausto e murcho. Atrás, menos da metade dos homens que haviam partido. Ordens foram dadas para que os portões fossem fechados imediatamente
quando se percebeu que ninguém vinha a pé.
John de Lacey puxou as rédeas do cavalo e desmontou depressa, mas não o bastante para segurar sir Gavin, que tombou da sela. Stephen o amparou e o deitou no chão
coberto de neve.
- O que aconteceu?
- Fomos atacados no passo norte, entre aqui e Tregaron. Três guarnições de vinte homens. Não usavam emblemas nem carregavam estandarte, mas apenas isto. - Puxou
um elmo com uma pluma negra da sela.
- Mercenários - disse Truan ao se aproximar. - Foram contratados por Malagraine. Bastardos implacáveis que venderiam a alma de suas mães por uma refeição. Esta é
a bandeira que carregam. Da cor da morte.
Cassandra ajoelhou-se ao lado de sir Gavin, na neve, e pousou a mão em sua testa. Ele queimava de febre, mas ao toque da mão fria, seus olhos se abriram.
- Eu posso lutar, milorde - declarou e olhou para além de Stephen. - Minha espada.
Stephen ajoelhou-se do outro lado.
- Não precisará lutar agora, meu amigo. Acalme-se, está em casa. - Seu olhar encontrou o de Cassandra.
Ela ergueu a borda da túnica de sir Gavin. Mesmo à luz vacilante do fim de tarde, pôde ver o sangue que ensopava as grossas camadas de protetores, a carne aberta
até o osso em seu ombro. Não compreendia como ele pudera cavalgar até tão longe. Só o extremo frio o salvara, diminuindo a hemorragia e impedindo que a infecção
se espalhasse.
- Precisamos levá-lo para dentro. Stephen não hesitou, enfiou os braços sob o corpo do amigo e ergueu-o, embora Gavin fosse mais pesado e estivesse com armadura
de batalha. Carregou-o pelo pátio até o salão principal.
Os outros o seguiram, muitos com ferimentos. Os demais se livraram das armaduras e foram se alimentar. A ala oeste do salão principal ainda não estava bastante protegida
contra o clima. Sofrera muitos danos no cerco de todos aqueles anos e não houvera tempo suficiente para fechar o teto de madeira. Retalhos de colmo cobriam largas
áreas, ensopadas com o peso da neve. O fogo lutava para manter o interior aquecido.
- Aqui não - disse Cassandra. - Ele precisa de calor.
Stephen rumou para os degraus do quarto que tomara para si. Ficava no segundo piso e havia sofrido menos danos. Encontrava-se perto do quarto de Cassandra e do que
era ocupado por Margeaux. John de Lacey seguiu adiante e abriu a pesada porta. Stephen entrou e colocou o amigo na cama de peles grossas, diante do braseiro.
Cassandra não vira aquele quarto antes e hesitou ao perceber que fora o quarto do rei. As paredes tinham o antigo emblema de Arthur e, ao lado, a insígnia mais delicada
de sua rainha.
Mas logo se esqueceu de tudo ao passar instruções às criadas, pedindo as coisas de que iria precisar, enquanto Stephen e John de Lacey removiam a túnica, a armadura
de batalha, as cotas de malha das calças e o colete almofadado de proteção, até que sir Gavin jazia deitado apenas com uma camisa de lã e ceroulas justas.
O sangue ensopara tudo, a carne aberta no ombro e no peito. Ela podia enxergar o osso embaixo, os fragmentos quebrados na ferida e a fibra de músculo, que era tudo
que protegia o coração.
- Pai do céu - John de Lacey murmurou.
Mas Stephen não desperdiçou palavras ao se voltar para Cassandra. Seu rosto era uma máscara atormentada de emoções que ele não procurava esconder.
- Ele viverá?
Cassandra meneou a cabeça, incerta.
- Mesmo que a carne possa ser costurada, há o osso embaixo. Foi arrebentado. Pedaços estão enterrados na ferida. O músculo é tudo que protege o coração.
- Você tem habilidade de cura. Ela concordou.
- Com erva e pós. Mas isto pede muito mais.
- Não falo de ervas e pós. - O olhar de Stephen cravou-se no dela. - Ossos podem ser soldados até ficar inteiros e fortes mais uma vez. A carne pode ser curada sem
deixar marca. - Abriu a própria túnica, revelando uma longa cicatriz de um ferimento não muito diferente do de Sir Gavin que poderia ter lhe tirado a vida, mas ele
estava ali, diante dela.
Cassandra engoliu em seco.
- Fui salvo por alguém com o dom da cura - Stephen revelou.
- Então teve muita sorte. Se puder encontrar uma curandeira assim, traga-a aqui.
- Existe uma aqui! - ele exclamou, segurando-a pelo pulso. - O poder é forte na sua família. Você pode salvá-lo.
- Não tenho família. Ninguém que possa reivindicar laços de sangue comigo, nem que eu possa chamar de parentes.
- Então você tem o que habita no seu coração - Stephen disse. - Gavin tem sido seu amigo. Não o deixe morrer.
Cassandra sentiu o coração partir-se. Stephen não precisava recordá-la da amizade de sir Gavin, quando ninguém tinha uma palavra gentil para com ela.
- Ele está quase morto. Não posso devolver-lhe a vida.
- Pode salvá-lo. Enquanto ele ainda respirar. Já vi acontecer.
- Pede demais.
- Peço pela vida do meu amigo. - E concordou: - Sim, peço demais.
- E o que fará em troca?
A expressão angustiada de Stephen tornou-se furiosa.
- Não farei barganhas com a vida de sir Gavin!
Cassandra estendeu o pulso, a fita do encantamento a brilhar à luz do braseiro.
- Solte-me. É a única maneira para que eu possa salvá-lo.
Stephen olhou para o encantamento que prendia o pulso de Cassandra. Fora avisado de que era a única maneira com que poderia proteger-se se ela tivesse se voltado
para os poderes das Trevas.
Abaixo do pulso estendido, jazia o corpo ensangüentado de seu amigo, que arriscara a própria vida tantas vezes para proteger um cavaleiro inexperiente, mais imprudente
e teimoso do que o bom senso pedia.
Aquela mesma impulsividade o trouxera para o País do Oeste contra as ordens do rei, e agora guiava a única decisão que poderia tomar, não importando o resultado.
Devia a Gavin a própria vida. O mínimo que poderia fazer era lhe devolver a vida, em troca.
- Tenha certeza do que fará, guerreiro - Meg murmurou ao lado dele, pois ouvira tudo, os boatos a correrem entre os criados.
Stephen pegou o pulso de Cassandra. Em seu olhar de espanto, viu descrença e depois a incredulidade quando ele pegou a faca do cinto e preparou-se para cortar a
fita azul. Não foi preciso. Ao primeiro toque de seus dedos, a fita se rompeu e caiu do pulso de Cassandra.
- Peço só isso, que honre o juramento que fez de curar o ferimento - ele a relembrou. - Assim que uma promessa é feita, deve ser cumprida.
- Sabe muito dos nossos costumes.
- Aprendido na ponta mortal de uma espada empunhada pelos guerreiros das Trevas. Foi uma lição que aprendi bem.
Ela captou, então, o que Stephen pensava, e também o que a velha pensava. Que os de Cassandra eram poderes das Trevas, e o encantamento fora usado para protegê-los
contra eles.
- Honrará sua promessa?
- Sir Gavin é meu amigo - ela declarou. - Você não precisa de promessa, e sim confiar.
Stephen segurou-a pelo pulso, num aviso. Em seus olhos, Cassandra viu a dúvida; em seus pensamentos, compreendeu as razões ao penetrar em seu íntimo e reviver, em
sua memória, o que ele sofrera.
- Se fizer algum mal a ele, eu a matarei.
- Você já viu o procedimento?
Stephen anuiu, a lembrança vivida e dolorosa, mesmo depois de tanto tempo, pois fora a cura de seu próprio pai, o rei.
- Todos os outros precisam sair - disse Cassandra, com doçura.
Enquanto os outros cavaleiros deixavam o salão, Meg anunciou:
- Eu ficarei. Embora seja cega, conheço os métodos antigos. Não tenho medo.
- Pode ficar, mas não interfira.
- Interferir? - Meg bufou. - Sou velha. Mais velha do que pode imaginar. Vi muito mais coisas do que você, com todos os seus poderes. Posso aliviar a dor do guerreiro.
Faça o que tem de ser feito.
A velha passou para o outro lado da cama. Ao se ajoelhar, colocou as mãos ossudas de cada lado da cabeça de Gavin. Os olhos cegos se fecharam conforme ela lhe aliviava
a dor da mente inconsciente. Pestanejou e arqueou-se quando o sofrimento do cavaleiro tornou-se seu próprio sofrimento.
- Pode começar, menina, mas não demore. A força vital está fraca dentro dele.
- O que posso fazer? - perguntou Stephen.
- O que deve ser feito, só eu posso fazer - Cassandra murmurou, sentindo-lhe a angústia pelo amigo. Pousou a mão sobre a dele. - Fique ao lado como se fosse num
campo de batalha, pois se eu falhar, Gavin terá ao lado alguém que o amou e lutou com ele.
Ela ficou profundamente comovida quando Stephen tomou a mão de sir Gavin entre as suas, num gesto terno de companheirismo, de vidas compartilhadas, de eterna amizade.
- Estou com você, meu amigo. Como você foi o escudo às minhas costas e a espada a meu lado, serei sua espada e escudo agora. - Então, voltou-se para Cassandra: -
Faça o que deve ser feito.
Havia semanas que ela não convocava os poderes interiores. Mas foi como uma fonte a jorrar, guiada por seus pensamentos, a correr por seu sangue e a expandir-se
para a ponta de seus dedos. Lembrou-se da primeira vez que descobrira o dom da cura. Encontrara uma corça com a perna quebrada na floresta. Sua vontade inocente
de ajudar o animal a fizera parar e tocá-lo. A corça ficara perfeitamente imóvel; e, então, algo misterioso e assustador acontecera quando os ossos se endireitaram
e se emendaram sob a ponta de seus dedos, e a carne dilacerada fechou-se, deixando apenas uma leve cicatriz.
A corça ferida ficara deitada como se num sono profundo. Sua respiração se acalmara, o medo desaparecera. Por fim, os olhos enormes tinham se aberto, e neles Cassandra
vira a si própria. Uma parte dela tornara-se a alma da criatura, e a criatura, parte dela. Mais tarde, descansada, com novas forças, a corça ficara de pé.
Cassandra seguira o animal, quando este se afastara, sob o olhar velado da Velha, Elora, que via duas corças onde antes havia apenas uma e a criança que a acompanhava.
Cassandra tinha cinco anos na ocasião. Já descobrira o poder do pensamento, depois o conhecimento das ervas, por meio de Elora, e, naquele momento, o poder da cura.
Elora lhe dissera que seu poder era mais forte do que em qualquer das outras. Elora se referia as irmãs que Cassandra não conhecia; O poder de Cassandra era forte
o bastante para abrir o próprio portal do Tempo.
Agora, num murmúrio cadenciado, Cassandra começou a pronunciar as antigas palavras, passadas de geração em geração. As chamas das lamparinas e do braseiro diminuíram
de intensidade, os carvões luziram, como a descansar. Então, ela convocou o fogo, sentiu-o queimar através de si, a ferver no sangue, até que parecia inflamar-se.
Em seguida, pressionou os dedos contra o osso quebrado e a carne dilacerada. Stephen vira o pai ser curado daquela maneira. Vivera a mesma experiência, certo de
que estava morrendo. Sabia da dor imensa e insuportável que perpassava Gavin, mesmo que Meg tentasse aliviá-la.
Era um sofrimento pior que a dor de um ferimento, pois soldava o osso quebrado, unia os tendões rompidos, os músculos, a carne, cada terminação nervosa. O corpo
de Gavin se convulsionava conforme o fogo o percorria, ao toque de Cassandra.
Nos pensamentos, ela se tornara una com o guerreiro, sentia cada fragmento de osso conforme o soldava no lugar, experimentava cada fibra muscular ligada ao músculo
estraçalhado, os tendões de volta ao lugar natural em torno do osso.
Era um processo lento, o corpo mortal bastante forte e, no entanto, tão frágil. Gavin perdera muito sangue. Isso Cassandra não poderia emendar. Por duas vezes, sentiu
que o coração do ferido fraquejava, e infundiu-lhe força até que, mais uma vez, as batidas soavam em uníssono com o dela.
Abriu os olhos, liberando o elo que a conectava a sir Gavin. Uma enorme fraqueza invadiu-a. Roubara-lhe toda a força manter a energia vital dentro do guerreiro.
Suas mãos estavam ensangüentadas quando ergueu os olhos e fitou Stephen.
A expressão daqueles olhos não era humana, nem era o olhar das Trevas. Ele já vira os olhos do Mal e o conhecia Bem. Os de Cassandra eram olhos vistos num campo
de batalha. O olhar de alguém que vira a morte e vivera para contar.
- Está feito - ela murmurou e, em seguida, desmaiou nos braços de Stephen.
- Tire-a daqui - Meg ordenou, como um general. - Ela provou quem é, no dia de hoje. Agora, precisa descansar.
Quando Stephen hesitou, dividido entre a lealdade ao amigo e a necessidade de Cassandra, aninhada em seus braços, Meg assegurou:
- Você viu o poder que ela tem. É mais forte do que o das irmãs. Seu amigo viverá. Agora, Cassandra precisa recuperar as energias para aquilo que nos espera à frente.
Stephen ergueu-a no colo. Vira o poder que ela possuía. Vira o olhar sobrenatural quando o fitara, ainda dominada pelo dom. Mas a mulher que aninhava nos braços
parecia muito humana, e, de repente, muito frágil e vulnerável.
Cassandra acordou como se emergisse de um sonho. Imagens povoavam sua mente, e foi inundada pela percepção das coisas a seu redor, além das paredes do quarto, dos
pensamentos e sonhos de outras pessoas. E pela lembrança de horas antes.
Era noite. A luz se refletia nas paredes de arenito pálido, vinda das chamas que queimavam no braseiro. Ela reconheceu a janela em arco com aquele vidro cor de âmbar,
a lareira alta e a cama de peles grossas com o pesado cortinado ao redor, a protegê-la como um casulo.
Conhecia aquele lugar. Era seu quarto, mas não o quarto em Tregaron. Depois, gradualmente, tudo lhe voltou à mente: a tarde anterior, o repentino entendimento entre
ela e seu captor, e, depois, o retorno dos cavaleiros feridos. E sir Gavin à beira da morte.
Cassandra estremeceu e puxou as peles em torno do corpo quando uma fraqueza dolorosa a percorreu. Era sempre assim depois da junção de seu poder com uma força vital.
Então sua mão roçou em um corpo arfante, e um bafo quente lhe aqueceu os dedos. Fallon.
Daquela maneira familiar, seus pensamentos entraram em contato com o lobo. Como se ela o chamasse em voz alta, ele ergueu a cabeça, os olhos prateados a reluzir
na escuridão. Uivou baixinho.
Cassandra não tinha idéia de como o animal fora parar em seu quarto. Só sabia que estava agradecida de que não estivesse mais confinado na jaula, pois a noite prometia
outra nevasca e receava por ele, sem um abrigo adequado.
- Estou bem, velho amigo - murmurou.
O lobo respondeu com um abanar de cauda. Perto da cabeça, ela ouviu o guincho gutural de Pippen, embolado no travesseiro. Então, sentiu que afundava no sono outra
vez, depois de ampliar as sensações e verificar que Gavin de Marte estava vivo e dormia pesadamente. Dormiu com os dedos fechados na pelagem farta do pescoço de
Fallon.
Cassandra acordou muito tempo depois, a letargia que a dominara anteriormente quase desaparecida. O lobo estava deitado no chão. Pippen dormia embolado no travesseiro.
Ela se sentou e pendurou os pés para fora, a tocar as pedras frias do chão.
Sentiu as pernas fracas e um frio a enregelá-la. Esquecera como era exaustivo curar. Firmou-se na parede e percebeu, pela primeira vez, que não usava nada no corpo.
Estava completamente nua. Seu vestido e a combinação encontravam-se numa pilha, no chão, os laços cortados. As roupas ainda estavam molhadas da neve, lembrança da
brincadeira com Fallon e Pippen. Não tivera tempo de trocar de roupa depois do retorno de sir Gavin e seus homens.
Confusa, Cassandra olhou ao redor do quarto, tentando recordar-se de alguma coisa, mas não conseguiu. Voltou os pensamentos para seu íntimo, em busca de lembranças
no subconsciente.
Viu-se carregada até aquele quarto por braços fortes, e sentiu o bater de um coração onde sua cabeça repousava, contra um peito musculoso. Não protestara quando
as mãos poderosas gentilmente a tocaram e lhe tiraram as roupas. Parecera natural, e havia uma familiaridade naquele toque, que acalmava e trazia calor à pele fria
depois que ela se aventurara a se defrontar com a morte para salvar a vida de sir Gavin.
Quando Stephen a deitara na cama de peles, Cassandra esperara, instintivamente, que ele se juntasse a ela, ali, com saudade daquele calor a seu lado, uma saudade
tão intensa que parecia emanar de sua alma imortal, de algo predestinado.
Mas Stephen se afastara. E Cassandra experimentara uma repentina sensação de vazio e perda, que voltava agora, em ondas, em lembranças físicas tão poderosas que
ela estremeceu e puxou a pele da cama sobre os ombros.
Levantou-se e foi até a lareira alta, tentando compreender aqueles sentimentos extraídos da memória. Certamente deviam ser emoções e sensações mortais, uma dualidade
que era parte dela, mas que sempre lhe parecera uma sombra, dominada desde a infância pela força maior de seus poderes imortais.
O frio do vazio permanecia dentro de Cassandra, mesmo quando colocou mais lenha no braseiro. Um vazio de anseios desconhecidos.
Stephen ficara sentado ali depois que a desnudara e a deitara na cama de peles. Ela sentia sua aura como se tivesse acabado de sair da cadeira e seu calor ainda
permanecesse ali.
Fechou os olhos e, com o poder interior, focou-se naquela essência, a voz profunda, o olhar penetrante, como se a enxergasse por dentro, a intensidade com que se
movia, igual a um animal encarcerado, o cheiro com um traço de sândalo, o toque, forte e rude num momento, surpreendentemente terno no seguinte. E o gosto dele...
Por um instante, as lembranças foram tão fortes, tão vívidas e poderosas em seus sentidos que era como se ela pudesse abrir os olhos e encontrar aquele olhar de
âmbar a fitá-la de volta, só para entreabrir os lábios e experimentar de novo o calor possessivo do beijo de Stephen. Com arquejo de prazer rememorado, Cassandra
olhou ao redor. Só havia sombras. E a tapeçaria enrolada que estava sobre a mesa, à sua frente.
A luz brilhou nos fios visíveis nas bordas. Recordou-se da promessa que fizera. Levou a mão, hesitante, para desenrolá-la. O tecido pareceu banhar-se de luz, que
ondulou e desapareceu.
O que foi certa vez pode ser de novo...
As palavras pareciam sussurradas pelas paredes e perpassavam, num suspiro, pelo ar frio, como se em resposta.
Cassandra levantou-se da cadeira e recuou para o fundo do quarto, recusando-se a olhar para a tapeçaria. Mas, ao se afastar, experimentou uma sensação de perda tão
intensa que lhe expulsou o ar dos pulmões. Uma dor profunda a dominou, como se sua alma estivesse morrendo.
Não sentia mais a presença de Stephen, a essência máscula em sua pele. Era como se, ao se recusar a olhar a tapeçaria, ela o tivesse perdido, perdido a lembrança
dele, e, então, perdido a si mesma.
Voltou à cadeira. Deixou-se inebriar pela aura restante, puxando-a para dentro de si. Estendeu a mão mais uma vez para a tapeçaria.
Um simples toque, e a fita que a amarrava caiu. Como se guiada por algum poder invisível, a peça abriu-se, revelando as imagens nítidas, tecidas em cores vibrantes.
Da esquerda para a direita, uma história se desenrolava em vívidos detalhes, de uma enorme batalha liderada por um valente guerreiro e da bela curandeira de cabelos
cor de fogo com poderes incomuns que fora feita cativa; a vida de um rei que fora salvo; amantes entrelaçados numa representação gráfica; depois, uma escuridão crescente
que começava nas bordas da tapeçaria e lentamente avançava, como o mal a se esgueirar pelos fios brilhantes de vida; um confronto, e o mal destruído por uma poderosa
espada.
- Excalibur - Cassandra murmurou, a alma mortal tomada de incredulidade, mesmo que a imortal soubesse que era verdade.
Como os capítulos de um livro, os próximos painéis da tapeçaria revelavam a imagem de uma bela moça de cabelos loiros com os poderes de uma encantada, uma criatura
transformada que salvara a vida de um guerreiro que viajara para o longínquo País do Norte; um cálice dourado perdido por séculos até que julgassem que existira
apenas na lenda, guardado por uma horrível criatura das Trevas; a jornada até uma ilha envolta em bruma e a batalha entre a criatura das Trevas e os poderes da Luz,
ao reivindicar o cálice de ouro perdido, conhecido pelos mortais como o Graal.
No próximo conjunto de painéis, Cassandra viu uma jovem de cabelos negros, os fios de seu vestido tecido num tom incomum, azul por um momento e depois violeta-escuro
no próximo, combinando com a cor de seus olhos.
Cassandra recuou, tirando a mão da tapeçaria. As pontas do trabalho tecido se curvaram sozinhas. As imagens não mais brilhavam com a luz da vida, mas esmoreciam
e perdiam a cor. E depois, desapareceram da vista, quando a tapeçaria mais uma vez enrolou-se diante de seus olhos.
Por um momento, Cassandra tentou se convencer de que não vira aquelas imagens. Que era tudo imaginação ou um truque. Mas, em sua alma, sabia que o que enxergara
eram imagens de um passado recente, os fios tecidos por alguém com poderes quase tão grandes quanto os seus.
Sentiu que, mesmo naquele instante, na sensação que formigava em seus dedos, onde tocara os quadros bordados, havia um vínculo de conexão entre a tecelã e ela própria,
um toque quase humano.
Minha irmã. Num único pensamento, a verdade emergiu, trazendo emoções e sentimentos havia muito tempo negados. A raiva da infância cedeu e deu lugar à necessidade.
Necessidade que sempre existira, sob a raiva, do ser mortal ligar-se aos de seu sangue.
Minha irmã.
Lentamente, tocou a tapeçaria. Como antes, o bordado se abriu. Aqueles painéis se desdobraram à sua frente e, nas imagens de um deles, Cassandra viu lágrimas no
rosto da mulher de cabelos de fogo, a expressão a se transformar lentamente. Onde havia tristeza, surgia um sorriso.
Poderia ser apenas uma mudança da luz incidindo no tecido, mas, conforme ela já descobrira, as imagens pareciam vivas, como algo pulsante bordado nas tramas. Então,
passou a mão sobre o lado enrolado da borda. Esta se abriu, revelando a mulher de cabelos negros, ela própria, um guerreiro cujo destino estava vinculado ao seu,
a mão estendida a segurá-la; depois, as imagens imprecisas, parcialmente bordadas, de uma esfera dourada no topo de um cetro. O Oráculo de Luz.
Aquelas imagens se sobrepunham a muitas outras, quadro após quadro, criados em detalhes penosos, uma tapeçaria tecida pelo Tear do Destino, o passado nas imagens
de um reino perdido, uma mulher metade mortal, metade imortal, a carregar a espada da fábula através do mundo da bruma para alguém aprisionado ali. E duas palavras
escaparam dos lábios de Cassandra. Palavras que ela sempre se negara a pronunciar:
- Mamãe... Papai...
Ondas de escuridão engolfavam os últimos painéis em sombrias imagens de morte, destruição e o fim da humanidade.
Por um longo tempo, Cassandra deixou-se ficar ali, depois que o fogo se transformara em cinzas, no braseiro, e a luz acinzentada surgia pelas frestas da janela.
Finalmente, ela se levantou. Com a pele em torno do corpo, saiu do quarto. Fallon seguiu a seu lado enquanto ela procurava o único lugar que sempre a atraíra. O
lugar das esperanças e sonhos perdidos, o lugar onde encontrara, pela primeira vez, seu próprio destino.
A câmara estrelada estava escura e silenciosa, envolta em sombras. Cassandra estava sozinha. Mas, ao voltar os pensamentos para o íntimo, viu imagens da luta final,
ali, naquele mesmo lugar, séculos antes, quando cavaleiros corajosos cujo rei já estava morto tinham se empenhado num derradeiro esforço na luta contra as Trevas,
e, um por um, deram as vidas por aquilo em que acreditavam.
Sentiu-lhes a valorosa lealdade, a angústia e o sofrimento conforme eram destroçados por um inimigo que não poderiam derrotar, e, contudo, continuavam a combater,
até que o último caísse, o sangue a manchar a madeira da Távola Redonda. Cassandra pousou a mão naquele ponto exato, havia muito apagado pelo tempo e pelas intempéries
que se apossaram de Camelot nos séculos seguintes. Era como se tocasse o sangue naquele instante, quente, espesso, a última essência agonizante de bravura, fé e
esperança, num mundo de crescente escuridão.
Sentiu que não estava mais sozinha. Havia alguém à porta do aposento.
- Ele foi encontrar os que atacaram sir Gavin - Cas-sandra murmurou, com a certeza dentro do coração, pois em lugar algum da fortaleza captava a presença de Stephen.
- Sim - veio a resposta, uma voz ao mesmo tempo familiar, mas que despertava lembranças mais antigas. - Antes do amanhecer - Truan continuou ao descer os degraus
da câmara.
- E deixou você para defender Camelot? - Ela voltou-se e o encarou. Franziu a testa ao perceber que não conseguia chegar à mente daquele homem. Sentiu uma pontada
de medo. - Um bobo para guardar o reino?
O sorriso de bobo alegre encontrava-se na expressão de Truan, os olhos azuis risonhos. Ele agitou as mãos no ar e, quando abriu os dedos, ali estava uma flor.
Não era pouco arranjar uma flor em pleno inverno, mas mesmo assim, tratava-se de um truque, de uma bobagem, Cassandra pensou, impaciente, a meditar a respeito das
contradições que envolviam aquele homem, um guerreiro que lutava e criava ilusões. Não compreendia por que os homens de Stephen o toleravam.
- Um bobo - ele retrucou -, além de cerca de uma centena de guerreiros e cavaleiros.
Ela se assustou. Com a perda dos guerreiros de sir Gavin e tantos deixados para trás, Stephen tinha a seu lado apenas um punhado de homens.
- Ele levou tão poucos para ajudá-lo?
- Em sua maneira de pensar, a necessidade maior jaz aqui - retrucou Truan.
- E suponho que você tenha preferido ficar para trás, a fim de praticar seus truques de feiticeiro!
- Fico onde sou mais necessário.
- Sinto-me reconfortada. - Cassandra não disfarçou o sarcasmo. - Se precisarmos de flores ou badulaques brilhantes tirados das nossas orelhas, então não há nada
com que se preocupar.
Como para irritá-la, Truan se aproximou, os dedos a escorregar pelos cabelos dela, que caíam por seus ombros. Pareceu pegar um objeto, aparentemente no ar. Quando
abriu a mão, mostrou um medalhão, muito parecido com as pedras polidas do colar que Elora lhe dera. Cassandra o arrancou dos dedos dele.
- Interrompo alguma coisa?
Ambos olharam para Margeaux, parada à soleira da porta. Era a primeira vez que se aventurava a sair da cama. Parecia que o chá a reanimara. Embora ainda houvesse
olheiras fundas em seu rosto, ela aparentava estar aliviada das recentes complicações. Encarava-os com uma expressão divertida.
- Seria possível encontrar alguma coisa de comer neste lugar? - perguntou. - Estou absolutamente faminta. Poderia comer um javali inteiro. Mas, por favor - implorou,
com um olhar conhecedor -, vista-se primeiro, minha cara. Esses corredores são frios e cheios de corrente de ar. Não vai querer cair doente.
Foi então que Cassandra se deu conta de que usava apenas a pele grossa em torno do corpo. Percebeu o que deveria parecer o fato de se encontrar ali, com Truan, o
ombro nu a aparecer acima da pele.
- Ela está bastante bem -Truan comentou, os olhos azuis cravados em Margeaux, que se afastava. - Acho que era preferível doente.
Pela primeira vez, Cassandra riu de algo que ele dissera. Concordava plenamente.
- Lorde Stephen disse quando voltariam?
Truan a encarou. Nos olhos de Cassandra, viu algo mais do que simples preocupação pela própria segurança e a daqueles que haviam ficado para trás.
- Quando estiver acabado.
Ela não perguntou o significado, pois compreendia o que ele queria dizer. Stephen fora caçar aqueles que haviam atacado sir Gavin e seus homens. Fora atrás de Malagraine.
Nevou pelos próximos cinco dias, e cada tempestade trouxe novas preocupações. Cassandra voltou várias vezes à câmara estrelada, pensando em usar seus poderes para
ir até Stephen. E se viu impedida a cada vez, presa pela promessa que fizera de não deixar Gavin morrer.
O progresso do cavaleiro era lento. Nos primeiros dois dias, ficara largado, num sono profundo, inconsciente de tudo. Por duas vezes resvalara para perto da morte,
e Cas-sandra tivera medo de não conseguir trazê-lo de volta. Lutara pela vida do amigo, pois assim, sentia-se mais próxima de Stephen. Então, no terceiro dia, ele
pareceu acordar, os olhos a se moverem como se sonhasse, e a reagir a toques ou sons em torno.
Ossos, músculo e carne saravam. Mas o espírito se curava mais devagar. No subconsciente e nos pensamentos revividos nos sonhos e nas histórias contadas pelos homens
que haviam sobrevivido, Cassandra vivenciara o ataque a que poucos tinham escapado. E vira o que ele não enxergara, a escuridão do mal no meio dos guerreiros atacantes.
Os dias completaram uma semana, e depois, quase duas. Gavin tornou-se mais forte e passava algumas horas por dia no salão com seus homens. Ali, assumiu o comando
e a proteção do castelo, aconselhando-se com Truan e outros cavaleiros que haviam permanecido na fortaleza.
Margeaux também marcava presença, gloriosa da maternidade que ostentava. Era vista mais e mais pelos aposentos de Camelot, e retornava à natureza antiga, de língua
ferina, que mantinha todos longe de seu caminho. Meg ameaçara colocar uma poção para dormir em seu chá, para poupar a todos de sua disposição mal-humorada. Amber,
normalmente paciente e cândida, tornava-se uma sombra.
Naquela noite, Truan e Gavin tinham formado um quarteto com Amber e outro cavaleiro e se entretinham com um jogo de tabuleiro. Amber vencera várias vezes, fazendo
Cassandra pensar na honestidade de seus oponentes. A garota era muito querida por todos em Camelot. E desde que estava ali, parecia que tinha perdido aquele olhar
apavorado. A amizade com Truan dava a impressão de haver contribuído para isso.
Quando saíram, depois do jogo, ao passar por uma das lamparinas, Truan fez um truque. Mas a expressão nos olhos de Amber não era apenas de divertimento. Cassandra
percebeu que era emocionada, franca, completamente desguar-dada. A dor do passado desaparecera diante de um anseio intenso. Num movimento repentino, Amber estendeu
os braços e enlaçou Truan pelo pescoço. Sua boca abriu-se de encontro à dele, entregando-se a um beijo profundo e apaixonado.
Pego de surpresa, por um instante Truan ficou visivelmente aturdido. Então, com uma paixão que Cassandra não julgara existir no bobo alegre, ele retribuiu o beijo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos de Amber, emoldurando-lhe a cabeça. Ergueu-a contra si, de modo a que aquele corpo delicado se moldasse ao seu, enquanto a beijava.
Da garganta silenciosa de Amber veio um gemido profundo. Em vez de atrapalhá-lo, aquele som, o primeiro que a garota deixava escapar, pareceu algum encantamento
a enfeitiçá-lo. Truan colou-se a ela, as mãos a lhe acariciar as costas, como se os dois pudessem tornar-se um só. Aprofundou o beijo, tão íntimo e caloroso que
Cassandra o viu transformar-se, não mais num tolo, mas num homem vibrante de anseios e faminto para se unir a uma mulher.
Viu isso nas veias que saltavam nas mãos conforme ele se agarrava à garota, na maneira com que arqueava o corpo contra o dela, como se fosse lhe arrancar as roupas
e tomá-la ali mesmo; no cheiro de paixão que vinha dos dois: o de Truan forte e poderoso de desejo humano de se unir fisicamente; o dela, doce, quente, inocente,
com o primeiro despertar do sexo; e, depois, o faiscar dos olhos quando se abriram.
Por um momento, Cassandra teve receio de que ele possuísse a garota ali, no corredor. Então, tão subitamente como acontecera, os dedos de Truan se fecharam nos braços
de Amber. E ele deixou escapar um som rouco, ríspido, ferido, como se uma parte de si se dilacerasse no íntimo. Afastou-a.
A expressão na face da garota foi de espanto e confusão. A de Truan, cabeça jogada para trás, olhos fechados, era de agonia. Suas palavras soaram duras e ecoaram
pelas paredes:
- Não, Amber. Não pode ser.
O olhar da jovem o procurou. A expressão ferida voltara.
- Você é uma criança. O que sente é amizade, nada mais. Com o tempo, experimentará outros sentimentos.
Amber meneou a cabeça, recusando-se a ouvir, com ar de raiva e tristeza.
Ele a sacudia pelos ombros, como se a forçá-la a entender.
- Eu não sirvo para você. Vai encontrar um rapaz da sua idade e com o tempo nutrirá por ele os sentimentos que pensa ter por mim.
Truan se mostrava de caráter extremamente correto. Amber era quase uma criança e ele, um homem bem mais velho. Cassandra condoeu-se quando o silêncio da garota se
transformou em soluços. Na declaração atormentada de Truan, ela percebera que ele imporia distância entre os dois. Já se afastava pelo corredor, de punhos cerrados.
- É tarde, Amber. Volte para o seu quarto. Meg está à sua espera.
A garota continuou parada, as lágrimas escorrendo pelas faces. Então, virou-se e saiu correndo. Cassandra ficou emocionada com o que vira e sentira, e espicaçada
pelo vazio que crescia dentro de si a cada dia.
Com a neve a se adensar, tornou-se mais e mais difícil aos homens saírem em patrulha além das muralhas de Camelot. E ainda não havia notícias do retorno de Stephen.
Já tinham se passado quase três semanas. A atmosfera, em Camelot, ficava mais pesada e angustiada a cada dia. Mesmo Truan parara com seus truques e jogos e se tornara
silencioso e retraído. Estava sempre em companhia de Gavin e seus homens. Amber parecia ter o rosto tomado pelas olheiras e se mostrava ainda mais silenciosa, como
se isso fosse possível. Raramente aparecia no salão.
Margeaux dava a impressão de estar alheia a tudo. Desfrutava de seu papel de prisioneira mimada. Não mais presa à cama, parecia mais saudável a cada dia, o corpo
a se avolumar conforme o filho de Malagraine crescia em seu ventre, junto com a certeza de que ele a resgataria em breve.
Cassandra passava tanto tempo quanto possível longe das paredes, que pareciam confiná-la. Toda vez que o tempo abria, ela se envolvia no manto de lã e saía com Fallon
e Pippen, a percorrer as casas dos habitantes de Camelot para ver se estavam bem de saúde e ouvir as reclamações. Só voltava se era absolutamente necessário.
Mais de uma vez fora pega do lado de fora quando uma nova tempestade desabara. Seria tolice tentar voltar mesmo usando a rede de cordas esticada para guiar os guerreiros
e cavaleiros dos estábulos para o pátio interno e depois do saguão até as portas principais do salão. Quando isso acontecia, Cassandra ficava feliz em aceitar a
hospitalidade daqueles a quem ajudava. Sentava-se com eles diante de um fogo acolhedor, partilhava a comida simples. Só ali não sentia o vazio e o medo de que Stephen
e seus homens pudessem não retornar.
Na quarta semana, as tempestades finalmente amainaram. A neve silenciosa, a se depositar, camada após camada, em portas e janelas, cessou momentaneamente. Cassandra
saiu para encontrar-se com Fallon no pátio interno. O lobo não ficava mais confinado, mas era visto a seu lado sempre que ela saía pelos arredores de Camelot. Pippen
farejou o ar, como se quisesse adivinhar se a primavera chegara, e correu na direção da despensa para ver se conseguia comida.
Ao som da voz aguda de Margeaux, ao encontrar o guaxinim no corredor, Cassandra fugiu, no rastro dos passos de Fallon pela neve. Aproveitou que o tempo abrira e
passou a manhã inteira nos depósitos subterrâneos que certa vez tinham guardado mantimentos para uma cidade inteira. Fizera um levantamento, calculando os suprimentos
trazidos Pelos lavradores e camponeses que haviam voltado para Ca- com seus pertences.
Um homem de nome Goodoe a ajudou, fazendo as marcações que ela registrava, e abrindo um caminho entre en-gradados, barricas, sacos de grãos e fardos de lã cardada.
Stephen o designara como guarda-livros, posição que ele assumira com seriedade.
Era um moleiro e, antes das primeiras nevascas, felizmente dera o toque final para reparar o antigo celeiro que guardava os grãos para as necessidades de Camelot.
Permanência. Futuro. Cassandra percebeu que, a cada dia que passava, mais e mais daquela gente simples voltava, família após família, séculos depois, para o lugar
em que seus ancestrais tinham habitado, com nova esperança de um futuro prometido na lenda.
Poderiam tais esperanças ser passageiras? Cassandra ficou a imaginar, com os pensamentos nas imagens incertas da tapeçaria, do passado, do presente e do presságio
sombrio que jazia à frente de todos eles.
Depois do almoço, continuou a trabalhar, sem noção do tempo. Era fim de tarde quando, finalmente, ela saiu dos depósitos.
O céu estava cinzento com a promessa de uma nova tempestade, o ar gelado e ríspido, trazendo o cheiro dos fogões, o som de vozes das cabanas que se alinhavam pelas
muralhas. Cassandra voltou ao salão, assim que a primeira neve começou a cair.
Ao entrar, olhou para Gavin. Um menear de cabeça a informou que ainda não havia notícias de Stephen ou de seus homens.
Ela não fez a refeição no salão, naquela noite, mas recolheu-se ao quarto com Fallon e Pippen. O lobo sentiu seu humor e se deitou no chão, ao lado do fogo, os olhos
tristes a observá-la intensamente. Criatura noturna por natureza, Pippen escapou, esgueirando-se pela porta, quando Cassandra a abriu, para vasculhar as cozinhas.
Em algum lugar, deu de encontro com Margeaux, novamente.
Cassie ouviu o berro da irmã adotiva, e depois vários xingamentos. Logo depois, Margeaux passou pela porta do quarto, a resmungar contra a inadmissível permissão
que bichos andassem pelos corredores de uma moradia. Algum tempo depois, ouviu-se um raspar na porta. Cassandra abriu-a. O guaxinim entrou, o lombo estufado de algum
banquete que descobrira. Talvez maçãs. Procurou o lugar predileto ao lado do braseiro e acomodou-se, lambendo o focinho e as patas.
Cassandra andava pelo quarto sem cessar, em torno da tapeçaria, tentando ver algum padrão nos fios não tecidos e depois deixando-a de lado, cheia de frustração.
O fogo morria. Ela o alimentou com várias achas e, em seguida, aconchegou-se no calor da cama.
Acordou, tempo depois, num sobressalto. Sentira uma mudança no ar. Levantou-se e se enrolou numa pele. Quando Falon ergueu a cabeça, Cassandra deu-lhe uma ordem
mental: fique aqui.
Saiu pelo corredor frio e vazio. Não se ouvia nenhum som. Mas ela continuava a captar alguma coisa. Atravessou o salão e puxou o pesado ferrolho. Empurrou a porta
do quarto do rei.
O fogo queimava no braseiro, e poças de luz banhavam as paredes claras, a pele sobre o chão de pedra, a cadeira de madeira nova e o homem que estava diante da lareira,
as mãos estendidas para as chamas. Ao primeiro olhar, era o mesmo Stephen. Mas, conforme Cassandra o observou com mais atenção, sentiu-lhe um cansaço que parecia
drenar suas forças. Os ombros estavam caídos, a cabeça pendida para a frente, como se não tivesse energia e ele pudesse desfalecer a qualquer momento.
Ela avançou lentamente pelo quarto, com os sentidos e pensamentos a lhe rebuscar a mente, desesperada para se assegurar de que Stephen não estava ferido. Ele, finalmente,
pareceu notar sua presença. Ergueu a cabeça e, na expressão exausta e no olhar assombrado, Cassandra viu a mais profunda dor. Viu o que Stephen vira; o que ele e
seus homens tinham encontrado; viu os fios da tapeçaria tecidos num painel de horror, morte e destruição.
Seu olhar encontrou o de Stephen, o medo a invadi-la diante do que ele presenciara e experimentara. Procurou por alguma brasa naquelas profundezas cor de âmbar,
alguma pequena chama que ainda existisse. Então, percebeu-a, uma pequena labareda de vida a lutar para fugir do horror da escuridão, no instante em que ele a viu.
Cassandra avançou para Stephen, temendo que aquela chama pudesse morrer, horrorizada com o que ele vira e suportara, esforçando-se para enxergar as mesmas imagens,
a fim de tomá-las para si, de modo a poder compreender e lhe minimizar a angústia.
O olhar que se cravou no seu era assombrado e queimava febril como se lutasse para fugir da escuridão. Cassandra sentiu o sofrimento que o destroçava, o horror da
morte que presenciara, as vidas perdidas, a culpa que ele carregava.
Sem dizer palavra, deixou a pele cair ao chão, a seus pés.
Capítulo VII

- Meus homens...
A voz de Stephen soou baixa e rouca, de agonia mesclada a uma raiva impotente diante do que encontrara.
- Eu sei - Cassandra murmurou.
Antes mesmo que ela tivesse acabado de falar, ele estendeu os braços e a puxou contra o peito, as mãos fortes a prendê-la, os lábios famintos a lhe devorar a boca.
Não havia ternura, apenas desespero. Um desespero que vinha daquilo que Stephen vivenciara e carregara de volta em cada fibra da memória. Uma lembrança que assombrava
e continuaria a assombrá-lo enquanto vivesse.
Stephen torceu-lhe os cabelos, enrolando as mãos nas ondas sedosas, ao lhe inclinar a cabeça para trás. Beijou-a no pescoço e ergueu-a no colo como se fosse uma
pluma. E, com um gemido selvagem a ressoar no fundo da garganta, deslizou os lábios sobre os seios arfantes.
Cassandra arquejou diante da ousadia, do poder mal controlado que bordejava a loucura, como se o contato com seu corpo pudesse varrer as horríveis lembranças da
mente de Stephen. E assustou-se com o desvario que a dominava, ao se arquear para se oferecer e entregar-se, agarrada a ele, o anseio interno tornando-se uma dor
bem diferente ao vê-lo sugá-la como quem suga a própria vida.
Acariciou-o, então, nas faces, nos olhos, na curva dura do queixo. Tocou cada ponto que memorizara nas semanas que haviam transcorrido, e depois o beijou com toda
a saudade que sentira e a dolorosa incerteza de que talvez não voltasse mais.
- Faça-me esquecer - Stephen murmurou, agarrado em Cassandra. - Você tem o poder. Arranque de mim esta dor.
Enquanto ele a acariciava, Cassie o envolveu pela cintura com as pernas e inclinou a cabeça para buscar seu beijo.
- Entregue-me a sua dor - ela disse, lábios nos lábios, os pensamentos a perpassar a mente de Stephen, o corpo a requeimar conforme descobria mais das lembranças
dolorosas e depois o desejo que jazia latente desde o momento em que haviam se encontrado.
Fechou os olhos, permitindo que os pensamentos de Stephen se tornassem os dela, em todas as vívidas imagens que ele imaginara - de como ansiara por fazer amor e
possuí-la. Eram imagens sensuais, eróticas, impetuosas, algumas cheias de ternura e delicadeza, mas também de fogo e paixão. Viu o momento em que Stephen a desnudara,
o anseio que o envolvera de tomá-la, as emoções e sentimentos quando a beijara.
Eram emoções e desejos tão intensos que se tornaram as emoções e desejos de Cassandra. E se percebeu invadida pela mesma fome física, profunda e dolorosa que Stephen
sentia. A necessidade de unir-se a ele tornou-se tão violenta e tão vívida que pulsava dentro dela como uma força vital.
- Dê-me tudo de si - Cassie murmurou ao tirar a túnica de Stephen dos ombros musculosos. Viu a cicatriz que lhe marcava a carne e que o deixava ainda mais belo a
seus olhos. - Dê-me seu coração.
Fechou os olhos novamente ao provar a textura da pele da garganta, enquanto corria os dedos pelo peito másculo, a transmitir-lhe energia.
- Dê-me sua alma.
Como se não pudesse suportar mais, ele a encarou, os olhos a faiscarem de desejo e de uma raiva quase desesperada. Na raiva de Stephen, Cassandra sentiu a dúvida
e a pergunta. Seria ela uma criatura das Trevas?
No desejo que flamejava entre os dois, como um fogo sem controle, Cassandra viu a resposta quando ele a carregou para a cama em rápidas passadas. Não foi com gestos
gentis que a deitou sobre as peles. Havia apenas urgência. Urgência ao arrancar a túnica, a livrar-se da calça e jogá-la de lado. Urgência quando seu peso afundou
a cama, as mãos a lhe afastar os joelhos. E urgência na reação de Cassandra ao estremecer de expectativa, a enterrar as unhas nos músculos fortes; no instintivo
arquear dos quadris. E, quando suas mentes se uniram, ela já sentia a poderosa e doce união física.
Entregaram-se com loucura e paixão, como se um fogo ardente os consumisse, até que os corpos estremeceram em espasmos e atingiram o êxtase ao mesmo tempo.
Stephen abriu os olhos, e neles Cassandra viu toda a angústia e a percepção do que acabara de fazer.
- Não! - ela exclamou com veemência, e depois, outra vez, com ternura, ao silenciá-lo com o dedo em seus lábios. Abraçou-o quando ele se retraiu, horrorizado de
havê-la possuído daquela forma. Puxou-o para a cama, a seu lado, sobre as peles macias. Com as pernas ainda entrelaçadas nas de Stephen, afastou os demônios das
lembranças dele com pensamentos límpidos, deixando-o apenas com o calor do corpo aninhado ao seu, em segurança. E, pela primeira vez em muitos dias, Stephen adormeceu
profundamente e sem sonhos.
Quando Stephen acordou, pensou que o casulo sem vista e sem sons que o rodeava poderia bem ser a morte, e, por um momento, conforme as lembranças o invadiram de
volta, ele a teria acolhido de bom grado.
Então, gradualmente, tomou consciência das peles grossas sob o corpo, de um golpe de ar frio que se insinuava pela abertura do cortinado, da luz do braseiro que
se refletia no chão. As lembranças das horas passadas voltaram, com o calor suave que emanava de uma esplêndida criatura a seu lado. À luz suave do braseiro, Stephen
viu o cetim dos cabelos de Cassandra espalhados em um dos ombros de marfim, até a cintura, numa torrente negra que revelava um vislumbre dos seios pálidos. Depois,
sentiu a hesitante carícia dos dedos delicados em sua coxa.
- Cassandra? - ele murmurou, rezando para que não fosse um sonho.
Sentiu que ela o acariciava e depois se levantava para sentar-se, de modo a recebê-lo dentro de si mais uma vez.
- Cassandra, não devemos. - Segurou-a pelos quadris como se fosse afastá-la. - O que eu vi...
Poderia tê-la impedido. Mas não conseguiu. Deixou-se envolver por aquele fogo, dentro daquele casulo de proteção que os rodeava e mantinha o mundo à parte. Ela sentira
a agonia de Stephen diante da morte lenta e brutal de seus homens, uma agonia que ele despejara dentro dela quando haviam se unido. Dessa vez seria diferente, não
haveria nenhum mundo do lado de fora.
- Não pode nos alcançar aqui - Cassandra disse.
Enlaçou os dedos nos de Stephen. Arqueou as costas, enquanto se movia lentamente numa cadência tão antiga quanto a humanidade. Os corpos ajustaram-se ao compasso,
como se feitos para se completarem. Então, num gesto rápido, ele virou-a de costas, assumindo o controle.
- Cassandra! - murmurou, enlouquecido de paixão. Muito depois, em silenciosa agonia, Stephen fechou os olhos e puxou-a, adormecida, para mais perto de si. E se tivessem
gerado um filho? Um filho bastardo como ele, num mundo incerto e sombrio? Lembrou-se das imagens na tapeçaria. Era impotente para impedir que isso acontecesse. Assim
como não tinha forças para lutar contra o desejo de possuí-la.
Dormiram, o mundo além dos portões de Camelot, esquecido.
Ao despertar, Cassandra sentiu um calor delicioso que a circundava. Abriu os olhos e viu o olhar cor de âmbar de Stephen, a mão dele a descansar em sua coxa, que
se apoiava sobre o quadril firme.
Stephen se inclinou, a boca a procurar a dela com imensa ternura. Encheu-a de carícias. As sombras haviam desaparecido do olhar dele, substituídas por um calor que
queimava nos beijos que lhe dava.
Fizeram amor outra vez, de novas maneiras. Era mágico. Era maravilhoso. Era agonia. Esquecidos de tudo, entregaram-se ao fogo da paixão e se perderam nele, sem se
importar se a alvorada nasceria.
Stephen mudara diante daquilo que encontrara nas montanhas do norte. Nos dias que se seguiram ao seu regresso, Cassandra sentiu isso com mais força. Era como se
alguma coisa tivesse morrido dentro dele.
Stephen não falava no assunto, nem ela perguntava, pois o compreendia, fosse pela união dos pensamentos, ou, à noite, na quase desesperada junção de seus corpos.
O inverno estava em sua plenitude. Camelot se instalara em seu casulo gelado, isolado do mundo exterior, protegido da escuridão que rondava além das muralhas.
Tinham lenha para as fogueiras e comida para durar por todo o inverno. De noite, os homens se distraíam com jogos de tabuleiro ou se exercitavam no pátio interno
quando havia uma melhoria no tempo. Truan divertia todos com seus truques de prestidigitador e ilusionista, mas seus raros sorrisos desapareciam quando Amber surgia.
Ao contrário do que Cassandra esperava depois do que vira entre os dois, Amber não se tornara chorosa e emotiva. Parecia ter amadurecido nos últimos meses. Se não
era feliz, não deixava transparecer e cumpria zelosamente suas tarefas.
Margeaux não precisava de motivos para seu humor mutante. Num momento parecia animada e ia ao salão para as refeições da noite, no próximo se mostrava estúpida e
retraída. E o tempo todo a reclamar. Conforme sua barriga aumentava, mais infeliz ela se sentia.
Insistira em afirmar, nos primeiros dias de inverno, que Malagraine não sabia do filho que ela trazia no ventre. Com tempo bom, seria fácil para um dos camponeses
levar a notícia até ele.
Contudo, nenhuma palavra se ouvira para falar de resgate. E com o ataque aos homens de sir Gavin no passo norte, parecia pouco provável que quisessem pagar para
libertá-la.
Sir Gavin, assim como os outros que haviam sido feridos e retornaram, estavam recuperados. Porém, como Stephen, tinham visto coisas das quais não falavam.
Meg costumava se sentar perto da lareira, pois o frio se instalara em seus ossos, tornando doloroso para ela caminhar. Mas isso não a impedia de conversar. Principalmente
em pensamentos, com Cassandra. Sempre falava da tapeçaria.
Foi tecida por sua irmã. O poder é forte na sua família. Mas o bordado não está terminado. Existe um presságio de um futuro desconhecido. Um legado que você não
deve negar.
Eles me abandonaram, Cassandra a relembrou, pois considerava Elora a única pessoa que a amara. Elora morrera, não a abandonara. E ainda podia sentir a presença da
Velha. Eu não tenho família.
Está no seu sangue, Meg retrucou. Você não pode negar.
Só quando o clima permitia, ou no quarto que compartilhava com Stephen, Cassandra conseguia fugir dos pensamentos da velha Meg. Porém, mesmo lá, as imagens da tapeçaria
constantemente a relembravam de seu futuro incerto.
Um novo ano chegou. Fevereiro trouxe tempestades geladas tão violentas como Cassandra nunca vira, confinando-os à fortaleza. E, com isso, o temperamento de Margeaux
tornou-se ainda pior. Estava inquieta e briguenta. Todos eram alvo dela, mas sobretudo Cassandra.
- Não sei como pode tolerar uma coisa dessas - Stephen lhe disse uma noite, ao se retirarem para o quarto. - Talvez uns poucos dias nos porões do castelo adoçassem
o temperamento de sua irmã adotiva.
Cassandra caiu na risada.
- Você não conhece Margeaux. Ela sempre acha novas maneiras de fazer as pessoas sofrerem.
Cassandra soltou os laços da saia e tirou o vestido até que parou diante do fogo do braseiro só de combinação. Com o brilho do fogo, o tecido deixava pouco para
a imaginação.
- Isso não é nada diante da maneira com que você me faz sofrer - declarou Stephen.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Não parece torturado, milorde.
- Uma hora sem que possa tocá-la é uma tortura.
Ele a segurou pelo pulso e puxou-a para o colo. Acariciou-lhe os cabelos e, depois, desamarrou as fitas da combinação com incrível rapidez. Bastava tocá-la para
que Cas-sandra fervesse de desejo. Tomou-a ali, na cadeira.
- Oh, céus! - Stephen murmurou, rouco. - Como adoro seu jeito quando fazemos amor. Há uma volúpia que me tira o fôlego, como se você se apossasse da minha alma.
Adoro seu gosto. A doçura que brota de dentro de você, o calor que queima quando a toco. A energia... O fogo...
Levantou-se e a carregou para a cama de peles. Deitou-a de costas e se afundou dentro dela.
- A paixão em você. O som que faz no momento final. Cassandra sentiu a pele salgada do ombro de Stephen e os músculos poderosos retesados em suas costas. Voltou
os pensamentos para o ponto em que se uniam; o desejo os encadeava, o calor parecia mais brilhante que milhares de sóis. Então, ele a segurou contra o peito. Coração
contra coração, as almas a se tocarem.
Todos se mostravam cada vez mais mal-humorados no confinamento provocado pelo clima. Menos Cassandra. Enquanto o inverno bloqueasse os passos da montanha, o vale
e Camelot estavam a salvo. Malagraine não poderia entrar, e Stephen não poderia sair com seus homens. E ela poderia imaginar por mais umas poucas semanas que as
coisas sempre seriam assim.
Não mais julgava os truques de Truan uma bobagem. Muitas noites eram alegradas por suas brincadeiras, sempre diferentes. Agora, era Amber que pensava serem perda
de tempo. E se recusava a participar. Estava sempre no canto, com Meg, ou nas cozinhas, onde praticava a mistura de ervas e pós que a velha começara a lhe ensinar.
Pelas manhãs, Margeaux se sentava diante da lareira, os tornozelos inchados apoiados num banco, com um olhar atento e observador, o temperamento mais desagradável
que nunca.
Naquela manhã, Stephen e Gavin saíram cedo com Goo-doe para inspecionar o suprimento de comida nos depósitos. Acontecera que, em seu último truque, na noite anterior,
Truan tirara uma maçã, aparentemente do ar, e a estendera a Pippen, enfiado na cesta de lã aos pés de Cassandra. Pippen roubara a maçã da mão esticada de Truan e
correra para um canto a fim de comer sem ser perturbado.
- Não sei por que você se derrete todo por esse bicho estúpido! - Margeaux reclamou.
- Porque talvez eu o ache mais agradável companhia do que algumas pessoas que conheço - Truan retrucou, com ironia.
Margeaux era vazia, frívola, encrenqueira e às vezes cruel. Mas não era estúpida. Sabia exatamente de quem ele falava.
- Um palhaço e um bobo - disse, com ar de desgosto. - Companheiros perfeitos.
Truan a ignorou, sentou-se ao lado de Cassandra e pegou uma bola de lã da pilha.
- Ela seria a companhia perfeita para si mesma - murmurou, em voz baixa. - Ambas absolutamente desagradáveis.
Cassandra riu.
- Imagine o que aconteceria se Margeaux não gostasse tanto de si mesma.
- Poderiam se pegar a socos.
Os olhos de Cassandra luziram de divertimento.
- Seria esperar demais.
- É bom ouvir você rir, Cassandra. Deveria fazer isso mais vezes.
- Há pouca coisa ultimamente do que rir.
- De fato-Truan concordou, os olhos azuis a estudá-la. - Lorde Stephen não ri muito.
Ela pensou nos momentos de privacidade entre ambos, quando havia muitas risadas. Risadas e paixão.
- Talvez mais do que você saiba.
- E mais do que você admitirá, também?
A expressão dos olhos de Truan não era de caçoada nem de bobo alegre, mas ligeiramente intrigada.
- Talvez.
Ele soltou uma gargalhada. O novelo emaranhara-se em seus dedos e Cassandra se viu forçada a ajudá-lo a se livrar ou perderia um pedaço grande, cheio de nós. Era
um processo complicado, pois Truan se comportava como um gatinho brincalhão que emaranhava os fios de lã, quanto mais ela tentava soltá-los.
Por fim, Cassandra fez a única coisa que parecia ter sentido. Normalmente, não se valia dos próprios poderes, pois era difícil explicar às pessoas. Mas uma coisa
simples como desemaranhar um novelo era bastante inocente. A um simples pensamento dela, o novelo se soltou como se tivesse vida, caiu dos dedos de Truan e correu
pela mesa. Ele o pegou e a cumprimentou.
- Tem um toque mágico, senhora.
- Apenas não sou tão desajeitada. Você é melhor em fornecer maçãs para Pippen.
Foi a risada suave e musical de Cassandra que Stephen ouviu ao entrar, com Gavin, no salão. E a mão dela a segurar a de Truan Monroe.
- Ou, talvez, companheiros mais perfeitos - Margeaux comentou, os olhos a se estreitarem ao perceber novas possibilidades diante da expressão de Stephen, que olhava
para Cassandra e Truan, aparentemente numa conversa íntima.
- Você agora enrola novelos de lã? - Stephen perguntou enquanto se servia de uma caneca de vinho e se sentava diante dos dois, à mesa.
- Cassandra me convenceu de que os meus talentos são necessários bem longe daqui - retrucou Truan, com um ar de bobo -, ou todo Camelot ficará sem roupa por causa
de novelos estragados.
Cassandra riu.
- Mas, pelo menos, haverá um monte de maçãs.
Stephen olhou de um para o outro como se fossem malucos. Bateu a caneca de vinho na mesa e o líquido se es-Palhou pela borda.
- Creio que os seus talentos seriam mais bem aplicados em coisas que não fossem novelos nem maçãs. Talvez na espada. Precisaremos de muito mais do que maçãs quando
enfrentarmos Malagraine, a não ser que você pense que pode derrotá-lo com frutas.
De repente, a conversa não era mais engraçada. Stephen estava mal-humorado desde a manhã. E não melhorara.
- Foi só uma brincadeira que partilhamos - Cassandra tentou explicar.
- Parecia que partilhavam bem mais.
Ela jogou a bola de lã na cesta.
- Umas poucas risadas, nada mais. Rir não é contra a lei, milorde.
- Não, não é. Mas a impertinência deveria ser. - Voltou-se para Truan: - O que pensa, meu amigo? Deveríamos considerar fora da lei as impertinências?
- Creio que existem leis suficientes, e o mais importante é a sua aplicação - Truan respondeu, com diplomacia. - Mas se julga que é preciso mais, então o Conselho
de Cavaleiros poderia decidir melhor.
- Sim, o Conselho! - exclamou Stephen. - Onze cavaleiros e um bobo.
Cassandra levantou-se do banco. A raiva faiscava em seus olhos violeta.
- Talvez devesse haver uma lei contra espíritos de porco - sugeriu.
- Tem alguém em mente, senhora?
- Estou olhando para um! Margeaux soltou uma risadinha.
- Talvez fosse melhor discutir isso em particular - Stephen murmurou por entre os dentes.
Cassandra pegou a cesta de novelos de lã.
- Não vejo razão para discutir o assunto. - Com um gesto altivo de cabeça, saiu do salão.
Stephen não a seguiu e ela ficou feliz com isso, pois tinha medo do que pudesse dizer. Ele agira como um bobo e sem razão. Usara palavras ferinas, mas fora especialmente
cruel com Truan, um bom amigo.
Ao chegar ao quarto, jogou a cesta num canto. Com o baque no chão, Fallon ergueu a cabeça e a encarou com uma expressão quase humana.
- Não quero conversar! - Cassandra exclamou.
Despiu-se rapidamente e entrou debaixo das peles. Muito tempo depois, ela ouvir a porta se abrir e a luz das tochas do corredor incidir sobre as pedras da parede.
Ao lado da cama, Fallon levantou-se e caminhou pelo quarto. A porta se fechou.
O fogo estava baixo no braseiro, e o aposento, às escuras. Cassandra ouviu quando Stephen atravessou o quarto, os sons tão familiares e queridos a ela como o ato
de respirar. Mesmo estando com raiva. Depois, veio um golpe de ar frio, seguido pelo calor quando o corpo longo e enxuto curvou-se em torno do seu. Sentiu-lhe os
dedos a acariciar sua cintura e o desejo que a invadiu, a despeito dos esforços para se manter impassível.
Fechou os olhos com força, voltando os pensamentos para o íntimo, resolvida a resistir. Porém seu corpo mortal traiu sua alma quando a mão quente deslizou para baixo,
pelo ventre, ao mesmo tempo em que os lábios roçavam seu ombro.
- Sei que não está dormindo - Stephen murmurou. A excitação percorreu-a àquele simples contato, e o hálito quente recordou-a de outras carícias anteriores. Mesmo
assim, recusou-se a responder. Ele, porém, continuou a acariciá-la, a beijá-la na nuca, as mãos a tocar os pontos mais sensíveis, até sentir que Cassandra se arqueava,
incapaz de se controlar mais.
- Você é minha-Stephen murmurou, mordiscando-lhe o pescoço, enquanto prosseguia com as carícias. - Minha - murmurou ao tomá-la.
Finalmente saciados, Stephen mergulhou num sono profundo. Cassandra não dormiu. Levantou-se e atravessou o quarto. Colocou lenha no braseiro e sentou-se diante do
fogo. A olhar para as imagens formadas na tapeçaria aberta sobre a mesa. Uma delas se revelava mais nítida, agora. A de uma viagem para uma terra imprecisa, mas
Cassandra não conseguia saber se era ela que faria a viagem ou se regressaria.
- Quantas semanas restam de inverno? - Truan perguntou, quase no fim de fevereiro, quando as tempestades finalmente cessaram. A neve caía devagar, branqueando as
torres de vigia.
Cassandra o encarou com surpresa, pois não o ouvira se aproximar.
- Ainda faltam seis semanas até a primavera. - Ela olhou para o pátio interno, que desaparecera sob um manto de neve. - Mas creio que o tempo não sabe disso.
- E quanto tempo falta para a criança nascer?
A mão de Cassandra vacilou sobre o registro onde marcava a quantidade de suprimentos. Então, respondeu ao fazer a próxima anotação.
- Três meses. Embora eu duvide que qualquer um possa agüentar Margeaux até lá.
- Não estou falando de Margeaux. Ela o encarou, assustada.
- Você não contou a ele - Truan concluiu.
A negativa subiu aos lábios de Cassandra, em frases que pensara nas últimas semanas, desde que tivera certeza de que esperava um filho. No olhar do bobo alegre,
que dificilmente era de bobo, viu que não adiantava negar, sobretudo a ele. Truan era muito perspicaz, embora parecesse querer que ela e todos pensassem que era
um tolo.
- Como sabe?
- Não é difícil de ver. É só saber o que procurar. - Diante do olhar de espanto, ele explicou: - Existem sinais evidentes em todas as criaturas. Numa mulher, é uma
certa radiância de beleza. - Então, revirou os olhos, a olhar para onde Margeaux se sentava. E se corrigiu: - Em algumas mulheres. Em outras, parece germinar a irritação.
Cassandra não sabia se ria ou chorava. Esperava que ninguém houvesse notado. Pelo menos por enquanto.
- Fala como se tivesse alguma experiência nesse assunto.
- Só por observação.
- E não por experiência? - ela murmurou, ao se recordar do encontro que vira entre Truan e Amber, que revelara uma fachada muito diferente da que ele mostrava a
todos.
Truan riu e deu de ombros.
- Alguma, talvez. - Em seguida, ficou sério. - Você não pode manter o segredo por muito tempo. Alguns notarão mais depressa que outros. Aqueles - ponderou intencionalmente
- que não têm nada melhor a fazer de seu tempo do que procurar por tais coisas.
Cassandra sabia que ele falava de Margeaux e assegurou:
- Direi a Stephen quando chegar a hora. Mas existem assuntos que pesam demais sobre ele. O inverno está sendo muito longo e duro. A comida começa a escassear. Stephen
se preocupa com o povo de Camelot. E, com a primavera, ele levará seus homens pelos passos do norte para procurar Malagraine. Não serei mais um fardo e motivo de
preocupação.
Truan inclinou-se e tomou-lhe a mão. Beijou-lhe os dedos. - Se uma dama adorável carregasse meu filho, eu lhe asseguro que não seria um fardo.
Não houvera o momento certo para contar a Stephen, em grande parte porque Gassandra não tinha certeza de como ele receberia a notícia. Sabia de seu nascimento bastardo.
Stephen falava pouco sobre isso, mas ela sabia que a incapacidade do pai, de pôr de lado os deveres de rei e reconhecer os deveres de genitor, deixara-lhe uma mágoa
profunda que jamais seria curada. Compreendia tais sentimentos muito bem, pois não eram muito diferentes dos seus com relação aos pais que a tinham abandonado.
Agora, o filho de Stephen crescia dentro dela, uma fagulha de vida criada com paixão mortal e imortal, com o sangue das eras a fluir em suas veias.
Como Stephen se sentiria com relação ao próprio filho bastardo? E quanto ao futuro? Um amanhã incerto envolto em trevas e morte. Um futuro do qual Cassandra era
parte. E porque era parte, então também era parte a criança que viria a nascer.
Nos momentos em que estava sozinha, nas noites em que Stephen vinha tarde para a cama, Cassandra chorava, a mão a repousar sobre a vida que sentia desde o primeiro
momento em que a concebera.
Seu filho. Uma criança de poderes desconhecidos. Se sobrevivesse.
Esse era seu maior medo. Não que Stephen não aceitasse a criança, mas que ela não fosse capaz de proteger a nova vida que crescia em seu ventre daquilo que haveria
adiante.
Por um breve instante, num momento de fraqueza mortal e incerteza, Cassandra pensara como as coisas poderiam ser diferentes se não esperasse um filho. Havia meios
conhecidos pelas curandeiras. E outros mais, para quem tivesse os seus poderes. Com um simples pensamento concentrado, Poderia varrer a vida frágil de seu ventre,
como se nunca tivesse existido. Mas, a que preço? Pois seus poderes extraíam alma e substância da Luz, da fonte da vida em si, no universo. Se renunciasse ao filho,
então renunciaria a seus poderes para as Trevas, à morte e à destruição?
E quanto a seu ser mortal? Que parte de si era humana? Seu coração? Sua alma? Embora tivesse pensado brevemente nisso, assolada por dúvidas e temores mortais, a
resposta viera do âmago de seu ser.
Não poderia. O filho dentro de seu ventre fora gerado com amor e paixão, diferentemente de qualquer coisa que Cassandra tivesse vivenciado antes. E ela daria a própria
vida para protegê-lo.
A bandeja caiu num baque no chão.
A expressão no rosto do criado era de horror ao olhar para a preciosa comida que levara horas para ser preparada e agora se espalhava pelo assoalho.
- Não me olhe dessa maneira! - Margeaux exclamou. - Sei o que está pensando. Mas eu sou filha do lorde de Tregaron. Carrego o filho do príncipe Malagraine. Exijo
que me respeite!
O pobre homem desviou-se do pé calçado com botas quando Margeaux o chutou. Cassandra interveio, mas a irmã não lhe deu atenção, disposta a descarregar a raiva e
a frustração no criado.
Margeaux se tornara cada vez mais briguenta nas últimas semanas, a provocar quem quer que se aproximasse dela. Ninguém era poupado, até que Stephen jurara que iria
confiná-la no quarto.
Ao perceber que a irmã não lhe dava ouvidos, Cassandra tentou puxá-la. Mas a julgou mal. Não imaginara que Mar-geaux fosse capaz de machucar alguém, e não viu a
faca que ela pegou de cima da mesa. Sentiu o perigo tarde demais, a lâmina a cortar o tecido fino em seu ombro. Tão surpresa ficou que demorou um instante antes
de sentir a dor e outro até perceber o calor viscoso do sangue.
Truan foi o primeiro a saltar, e agarrou Margeaux pelo braço com um aperto firme. Aos berros, ela se pôs a praguejar coisas horríveis, quando a faca caiu de seus
dedos. Diante da confusão, vários cavaleiros apareceram às pressas no salão, de espada em punho. Stephen estava entre eles.
- O que aconteceu? - indagou ao cruzar o salão. Margeaux ergueu os olhos furiosos para Truan e depois encarou Cassandra.
- Um bastardo para um bastardo! - esgoelou, num jogo sujo, vingando-se por palavras. - De quem será? Do guerreiro ou do bobo?
- Do que ela está falando? - quis saber Stephen.
- Um bastardo para um bastardo! - Margeaux repetiu. - Se não sabe, deveria perguntar à mãe do bastardo.
- Basta! - Truan esbravejou ao obrigar Margeaux a dar meia-volta. Segurou-a pelo ombro. Num gemido de protesto, ela revirou os olhos e perdeu a consciência. Teria
caído no chão se um dos homens de Stephen não a pegasse e a entregasse a um criado próximo.
- Tire-a daqui! - Truan ordenou e, em seguida, voltou-se para Cassandra. A expressão nos olhos dela o impediu de fazer alguma brincadeira ou de negar as insinuações
malignas de Margeaux.
Eram feições contraídas, cheias de angústia. Cassandra olhou para Stephen, mas viu apenas raiva.
- O que ela queria insinuar? - ele indagou, a olhar de um para o outro, a suspeita a toldar seu coração.
- O que você deveria ter sabido sem que precisasse ser dito! - Truan esbravejou com ousadia.
Stephen voltou-se para Cassandra. A raiva ainda estava lá, mas havia indagações e dúvidas.
- Importa-se de explicar a mim? - perguntou. Então, viu o sangue que escorria do ombro dela, e a raiva desapareceu de sua face. Correu para acudi-la.
Cassandra nunca ficara doente na vida. Jamais se sentira mal fisicamente, mesmo depois de descobrir que estava grávida. Mas, agora, a dor latejava em seu ombro.
Uma onda de náusea subiu-lhe pela garganta com o cheiro de sangue. Cambaleou para trás, lentamente. Só queria afastar-se. Então, de repente, era como se seus pés
pesassem como chumbo. Uma sensação de esmagamento a puxava para baixo. Sentiu-se caindo, desabando como se não fosse mais que uma boneca de pano, e esperou sentir
a qualquer momento as pedras frias e duras do chão em seu rosto. Em vez disso, braços fortes a rodeavam.
Ela protestou, empurrando o peito musculoso. Não podia suportar a raiva de Stephen.
Mas não era Stephen que a carregava, nem Stephen que murmurara em seu ouvido. - Eich le, mo chroi. Palavras estranhas, reconfortantes, ressoaram, vindas de uma
lembrança havia longo tempo perdida e depois sumiram no miasma negro que se fechou em torno de Cassandra.
Cassandra parecia vagar à deriva num casulo quente e macio. Ocasionalmente, vozes entravam no casulo, a flutuar por seu subconsciente, e depois se esgueiravam para
longe.
Não havia raiva naquele local quente e seguro. Não mais ouvia as intrigas mentirosas de Margeaux.
Flutuava, dormia, depois flutuava novamente, preferindo ficar naquele lugar por enquanto. Ciente do líquido doce e morno que escorria por entre seus lábios e pela
garganta, sentiu o gosto de chá. Sorriu com a suave letargia que ele lhe provocou e, em seguida, deixou-se vaguear na incons-ciência.
- Por que fui o último a saber? - Stephen perguntou, zangado.
- Porque quis - Meg retrucou. Soltou uma risadinha irônica ao colocar a caneca de chá de lado, que faria Cassandra dormir, e não prejudicaria nem ela nem a criança.
E bufou. - Não existe cego maior do que aquele que não quer ver.
- Cassandra ficará bem?
- O ferimento no ombro é leve e sara com o poder que é forte dentro dela. Quanto ao resto... - Não terminou.
- A criança está a salvo?
- Cresce forte, e seu poder a protege. Nenhum mal sucederá à criança enquanto ela viver. - Sentiu a incerteza de Stephen e riu de novo. - Você se deitou com Cassandra
com uma paixão capaz de abalar as próprias muralhas de Camelot e não pensou na possibilidade de gerar um filho? Quem é o bobo?
- Não é que eu não tenha pensado nisso.
- Então, talvez já tenha uma esposa, ou filhos com outra mulher, e não queira mais.
- Não tenho nenhum filho - Stephen declarou com veemência. - Sempre me certifiquei disso antes.
- Sim - retrucou Meg -, antes. Agora, o que fará, guerreiro? Seu filho cresce no ventre de Cassandra. Mas fique certo de que ela não pedirá nada a você. É muito
orgulhosa para tanto. Nem precisa de você. Cassandra, mais do que ninguém, sabe que uma criança pode sobreviver sem os pais. A escolha é sua.
- Deixe-nos.
Quando ela hesitou e o encarou com dureza com aqueles olhos cegos, Stephen lhe assegurou:
- Não haverá nenhum mal para ela ou à criança.
Depois que a velha se afastou, ele ficou sentado por longas horas na cadeira, diante da lareira, a olhar para Cassandra, pálida e imóvel, mergulhada num sono profundo
e reparador.
Um bastardo para um bastardo.
As palavras o dilaceravam. Mas não por causa de qualquer sofrimento que pudessem lhe causar. Fazia longo tempo que se reconciliara com seu nascimento ilegítimo.
A raiva existente entre ele e o pai derivava de velhas discussões e teimosias. As circunstâncias de seu nascimento, Stephen percebia agora, simplesmente haviam
servido de desculpa para as desavenças.
O sofrimento que experimentava naquele momento, até o fundo da alma, era pela jovem que lhe dera uma paixão inacreditável e que agora fecundava seu filho no ventre.
E que guardara segredo para poupá-lo.
E se?, perguntou-se. O poder de Cassandra protegia a criança, contanto que ela vivesse. E se a faca a tivesse atingido de maneira letal? Poderia ele suportar a perda
da amada? Poderia suportar perder a criança que ambos haviam gerado?
Levantou-se da cadeira e tirou as roupas ao atravessar o quarto. Enfiou-se, nu, sob as peles, indo ao encontro do calor de Cassandra ao puxá-la contra si.
Mesmo no sono, sentiu-lhe a resistência, pois a magoara profundamente. Ela se remexeu, tentando se afastar. Mas Stephen não permitiria. Puxou-a de volta com gentileza
extrema, a abraçá-la contra o peito, a mão a pousar protetoramente sobre o ventre da mulher amada e a pequena vida que crescia ali.
Quando Cassandra acordou, a rigidez que imobilizava seu ombro era a única recordação do ferimento. A carne se recompusera. Tudo que restara era uma linha estreita
que logo desapareceria com seus poderes curativos.
Então, sentiu o calor familiar às suas costas, e as lembranças voltaram. Tentou afastar-se. E percebeu que Stephen não estava dormindo, mas deitado ao lado. Hesitou
em voltar-se, a imaginar o que esperar.
Havia quanto tempo que ele estava ali a observá-la? Podia sentir aquele olhar cor de âmbar, sentir o turbilhão de emoções com que ele lutava, e as palavras que jaziam
sem ser ditas entre os dois.
- Não existe nada entre mim e Truan. Ele é um amigo, nada mais - Cassandra começou, hesitante, só para sentir o calor dos dedos de Stephen sobre os lábios a silenciá-la.
Então, percebeu que ele a acariciava e depois se erguia para beijá-la com doçura. Seus braços a envolveram pela cintura. Em seguida, Stephen se abaixou, a face a
se recostar contra o ventre ainda liso.
Humildade e ternura eram estranhos a ele, contudo, humildemente, abraçou-a com ternura, como se Cassandra fosse frágil como um cristal... abraçando também a criança
que crescia dentro dela. E lágrimas marejaram os olhos de Cassandra. Lágrimas tão quentes como aquelas que sentia escorrer pela face de Stephen.
Pousou a mão na cabeleira farta e afagou-lhe o rosto, novamente unidos pela paixão e pelo amor, com um simples toque, a resguardá-los da escuridão da noite.
Capítulo VIII

Um vento cálido soprou do oeste, uma falsificação da primavera que ainda estava distante algumas semanas, mas que trouxe um breve alívio para o rígido inverno.
A neve derretera no pátio, tornando possível chegar às casas que se enfileiravam pelas ruas de Camelot, pela primeira vez desde o ano novo. Os estábulos foram abertos
para exercitar os cavalos inquietos. Carroças rodavam pelas ruas enlameadas, os condutores a se ajudarem com a alegria singela de poder sair, não importava a tarefa
difícil.
A refeição da manhã terminara havia algum tempo. Os homens de Stephen tinham saído para aproveitar o clima, pois os camponeses previam que a calmaria não iria durar.
Por um breve e raro momento, Cassandra e Stephen ficaram sozinhos. Até mesmo Pippen se aventurara para fora, em busca de algum tesouro diferente das maçãs, das quais
se cansara.
Sem dizer uma palavra, Stephen puxou-a contra o peito.
As linhas tinham se suavizado em torno de seus olhos e a boca, nas últimas semanas, como se ele houvesse se aliviado de algum grande fardo. Ou como se alguma decisão
pudesse ser tomada. Mas Stephen não tocara no assunto. Na verdade, tinham trocado poucas palavras, e nada a respeito da criança. Era como se saber do filho tivesse
mudado seus sentimentos para com Cassandra. Mudado de um jeito que a deixava com uma sensação de vazio e solidão.
Naquele momento, porém, a expressão no rosto e nos olhos dele era diferente, a mesma que havia daquela primeira vez, depois de saber do filho, quando a aninhara
nos braços de um jeito humilde e terno.
Puxou-a para o colo, os dedos entrelaçados com os de Cassandra. Fitou os dedos delgados como se visse algo que ela não conseguia enxergar, mesmo com seus poderes.
Então, baixou a cabeça, os lábios a acariciarem a palma aberta, com uma ternura tão grande que a comoveu e deixou sem fôlego.
- Você é minha vida - Stephen murmurou. - É meu sangue, meu coração, minha alma, o próprio ar que eu respiro. - Tinha os olhos fechados, os cílios espessos a pousar
sobre as faces bronzeadas. Então, lentamente, encarou-a. A expressão do olhar era atormentada. A expressão de um homem que sente coisas que estão além de sua capacidade
de controlá-las.
Aquelas palavras dilaceraram o coração de Cassandra. E ela tentou abafá-las com os dedos contra os lábios de Stephen. Sua alma doía, e lágrimas inundaram-lhe os
olhos.
- Milorde, por favor...
Ele, porém, não poderia ficar calado.
- Ouvi dizer que, para algumas mulheres, carregar um filho é uma coisa difícil. De bom grado, eu tomaria para mim sua dor. Ficaria feliz em dar meu sangue em seu
lugar. Mas se alguma coisa acontecer a você por minha causa, eu não poderei suportar.
Era isso que o mantinha longe de Cassandra desde que soubera do filho. De repente, ela soube da razão com clareza. E se espantou. Tentara extrair o motivo dos pensamentos
de Stephen e não percebera que não era ali que o encontraria, mas no coração. Ele temia por ela, por causa da criança.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, Cassandra raramente tentara invadir-lhe os pensamentos. De certa forma, parecia importante que Stephen expressasse
os sentimentos por meio de um toque, de um beijo, do corpo dentro dela na união fundamental entre um homem e uma mulher. E só partilhava os próprios pensamentos
com ele naqueles momentos apaixonados, quando se entregavam um ao outro, ao permitir que Stephen visse, sentisse e experimentasse o que ela via, sentia e experimentava
ao se unirem de uma forma que imprimia um significado mais profundo à conjunção carnal, como se naqueles momentos realmente se tornassem um só corpo e uma só alma.
A única maneira de fazê-lo compreender a força e o enorme poder que fluíam de Cassandra, a protegê-la dos piores temores que Stephen pudesse nutrir, era lhe dar
o que ela possuía dentro de si. Ao beijá-lo, Cassandra abriu seus pensamentos, a própria essência, numa junção que ultrapassava a forma física.
Um calor familiar os envolveu e depois se aprofundou quando Cassandra o levou consigo para aquele lugar onde residia seu poder, o lugar onde o filho crescia forte
e protegido. E Stephen viu a força das eras que fluía dela e a doce e terna paixão que os ligava. E viu, também, o filho dormindo em segurança.
Quando o beijo terminou, os olhos de Stephen se abriram aos poucos. Luziam com uma ternura amorosa que Cassandra jamais julgara que pudesse ver. Então, ele acariciou
o ventre ligeiramente arredondado, como se pudesse tocar o filho que vira. Com os olhos marejados, murmurou o nome de Cassandra ao pousar testa contra testa, cheio
de respeito e deslumbramento. Sua boca procurou a dela mais uma vez.
- Ainda é cedo, milorde - Cassandra murmurou. - Todos se foram. Ninguém notará se demorar um pouco mais.
Stephen carregou-a para a cama com o maior cuidado, as mãos tremendo ao lhe tirar as roupas: o colete, o vestido de lã e, finalmente, a fina combinação que o atormentara
por semanas com relances daquele corpo esguio; até que Cassandra jazia gloriosamente nua à sua frente.
Ali, à luz do dia que se infiltrava pelos painéis cor de âmbar, ele percebeu as mudanças sutis. O arredondamento suave do ventre acima da cintura ainda fina, os
seios fartos, as veias finas sob a pele pálida, os mamilos mais escuros, mais cheios e encorpados e depois empinados com a friagem do ar.
Cassandra, no entanto, não sentia frio ao procurá-lo com mãos febris. Impaciente, desatou-lhe os laços da túnica, depois da calça. Desnudou os poderosos músculos
do peito e do ombro. Em seguida, tirou-lhe as botas e a calça, lentamente, pelas nádegas firmes, até que Stephen também se mostrasse, totalmente nu, diante dela.
- Cassandra? - Tinha medo de machucá-la.
A pergunta ficou sem resposta quando ela o puxou contra o próprio corpo. E se uniram com loucura até que os espasmos os sacudiram. Com o fôlego preso à garganta,
Cassandra arqueou-se e, com todo o ardor da alma, gritou-lhe o nome.
- As paredes começaram a falar - Meg comentou durante a refeição do meio-dia. - Dizem nomes. Sobretudo alguns - continuou, com a curva de um sorriso ao se voltar
para Cassandra. - Acho que ouvi o nome de milorde quando passei pelo quarto esta manhã. Deve ser um presságio.
Cassandra quase engasgou com um pedaço de pão. Da cadeira onde fazia a refeição com Truan e sir Gavin, ela sentiu o olhar caloroso de Stephen e depois a risada que
se espalhou por suas feições ao ouvir o comentário de Meg.
Margeaux estava ausente, para alívio de todos. O humor do ambiente era mais leve por causa disso.
- Ou talvez - Meg ponderou, a voltar aquele olhar vazio na direção da lareira e das vozes masculinas - fosse um rato faminto.
- Não temos ratos aqui - Cassandra retrucou, com firmeza, para mudar a conversa ao sentir o rosto queimar com a lembrança das horas anteriores.
- Então ratazanas, quem sabe - Meg prosseguiu.
- Sim - concordou Stephen, o olhar a se toldar de desejo. - Ratazanas famintas.
- Acho que precisam de mim - murmurou Cassandra. - O tempo não vai se manter bom e eu quero visitar as cabanas. Quem sabe alguém ficou doente. - Levantou-se e pegou
a cesta de ervas e pós que sempre tinha por perto. Recusando-se a olhar para Meg ou para Stephen, pediu que Amber a acompanhasse.
O vento tinha esfriado e trazia o cheiro de mais neve. Cassandra e Amber percorreram as cabanas, deixando saquinhos de ervas. As nuvens enchiam o céu quando saíram
da última choça com pão quente em pagamento enfiado dentro da cesta. Os flocos de neve caíam no chão já salpicado de branco.
Voltaram para o salão depois de deixar o pão na cozinha e tirar a neve das botas e mantos. As faces de Amber luziam, rosadas. Ela era inteligente e aprendera depressa
as diferentes combinações de ervas e pós que aliviavam diversas doenças. Ficava feliz em ajudar os outros.
Ao pendurar o manto num gancho, Cassandra percebeu que Meg esperava, ansiosa, à porta em arco. Ela sabia que Stephen e sir Gavin tinham resolvido cavalgar pelas
imediações, determinados a enviar patrulhas para ver se o exército de Malagraine avançara pelos passos do norte com a melhora do tempo. O medo fechou-se como um
punho gelado em torno do coração de Cassandra, embora sentisse que o problema não era com Stephen.
- O que é? - perguntou ao tomar a mão da velha. Sentiu a conexão de pensamentos. Margeaux!
- Sua irmã sumiu logo depois do meio-dia. Não percebi até que levei um chá calmante para o quarto dela. Então, vi que havia desaparecido. Levou roupas quentes.
- E um cavalo dos estábulos - Truan emendou ao se aproximar.
- A maluca! - Cassandra resmungou. - Ela sabe que não se pode confiar no clima.
Ao dizer isso, percebeu que fora o tempo que a levara a decidir-se. Um breve alívio era tudo de que Margeaux precisava para fugir, num momento em que todos pensassem
que estava dormindo e os portões de Camelot estivessem abertos para Stephen e seus homens saírem. Devia ter sido fácil esgueirar-se para fora junto com os habitantes
que iam caçar na floresta vizinha.
- Que direção ela tomou? Alguém a viu?
- Uma trilha de cascos leva à floresta - Truan respondeu. - Nenhum caçador saiu montado.
Cassandra pegou o manto e amarrou-o nos ombros. Quando Meg tentou impedi-la, ela meneou a cabeça com veemência.
- Ela é minha responsabilidade. Não pode ter ido longe. A tempestade vai retardá-la.
- Eu vou com você - disse Truan, com uma firmeza que não admitia recusa. Então, sorriu. - Talvez desse jeito eu possa me redimir.
- Ou não! - Meg bufou, considerando que os dois pensavam que as coisas ficariam mais tranqüilas sem a presença de Margeaux.
- Devemos pensar na criança! - Cassandra exclamou ao puxar o capuz sobre a cabeça. - Se Margeaux se machucar, precisará de cuidados.
- E quanto à criança que você carrega? - Meg segurou-a pelo braço.
- Nenhum mal irá me acontecer. Além disso, não vou sozinha. Tenho toda a fé do mundo que Truan pode empunhar uma espada como empunha uma maçã.
A princípio, a neve caía de leve quando eles seguiam os rastros, e as esperanças de Cassandra aumentaram ao pensar que logo alcançariam Margeaux. Depois, a raiva
pela tolice da irmã adotiva ao arriscar a si e ao filho não nascido transformou-se em preocupação conforme as horas passavam e foram forçados a se embrenhar na floresta.
Truan seguia atrás, puxando o cavalo.
- Não é prudente continuar - ele disse, com o cenho fechado.
- Ainda está claro. Posso ver os rastros.
- Não a deixarei correr perigo.
- Não há perigo. Além de Margeaux, a única criatura que talvez possamos encontrar é um coelho em busca da toca.
Pousou a mão no ombro de Truan e sentiu o calor de seu corpo, apesar do frio. Preocupava-se com ele, pois usava apenas uma túnica e calça enfiada nas botas.
- Margeaux pode ter a língua ferina, mas devemos pensar na criança.
- É na criança que estou pensando. Não gosto dos sons da floresta - disse Truan.
- Não ouço nada - Cassandra murmurou ao usar o sentido humano da audição.
- Exatamente - retrucou ele, os lábios apertados. - Percebemos o vento soprar nas árvores, mas não ouvimos o farfalhar das folhas nem sentimos as rajadas. Não é
natural.
Atenta em seguir os rastros na neve, Cassandra fechara seus outros sentidos ao que a rodeava. Franziu a testa ao perceber o que Truan insinuava.
- Viemos até tão longe - ela retrucou, com uma repentina inquietação. - Não podemos voltar agora.
A luz se extinguia no céu, a escuridão descia, a tempestade avançava. Os cavalos continuaram, guiados pela visão interior de Cassandra, que não poderia enxergá-los
com os olhos mortais. Então, à frente, uma forma escura assomou sobre a brancura da neve.
Truan adiantou-se. Cassie apressou-se em segui-lo.
- O que é?
Ele voltou, a expressão impenetrável.
- Não é Margeaux. É o cavalo. Então, ela deve estar por perto. Talvez.
- O que houve? Encontrou alguma coisa?
Truan não disse nada ao guiá-la para longe do cavalo caído. Cassie olhou para a pobre criatura, pensando que sucumbira de uma perna quebrada ou de exaustão. Nem
uma coisa, nem outra. Tudo que restara do cavalo de Margeaux era uma carcaça horripilante, como se tivesse ficado ali durante meses. A única maneira de reconhecê-lo
era pelo pedaço de pano rasgado preso no ressalto da sela. O mesmo tecido do vestido que Margeaux usava naquela manhã.
- Vamos voltar - disse Truan.
- Não podemos! Ela está por aqui. Não voltarei até encontrá-la. - Cassandra olhou para o céu, sem precisar de luz para encontrar o caminho. - Só uns poucos minutos
mais. Margeaux não pode ter ido tão longe a pé. Se não a encontrarmos logo, voltaremos.
- Só até enquanto houver luz - Truan disse, numa voz que não admitia discussão. - E, mesmo assim, lorde Stephen vai arrancar minha pele vivo.
- Foi decisão minha.
- Não creio que ele se convencerá disso. Seguiram em frente, a tempestade a estourar em trovões enquanto um frio de enregelar os chicoteava, tornando impossível
enxergar e até mesmo respirar, de modo que se viram forçados a cobrir os rostos, só deixando de fora os olhos.
Cassandra lançou os pensamentos a distância, procurando através da escuridão, tentando encontrar algo que indicasse a direção que Margeaux tomara.
- Ali! - apontou através da neve que os cegava. - Ela está perto. - Escorregou da sela e pisou no chão coberto de neve, guiada pela visão interior, como se o sol
brilhasse.
Então o medo a invadiu ao encontrar o que procurava. Não muito além de alguns metros, viu Margeaux afundada na neve. Apressou-se, com Truan logo atrás, a voz máscula
a penetrar em sua mente num grito de advertência.
Cassandra achou Margeaux tal como a vira na visão interior. Estava amontoada na neve. Chamou-a ao tomá-la entre os braços, a culpa a invadi-la por causa de todas
as palavras rudes que ambas haviam trocado. A cabeça de Margeaux pendeu para trás, os olhos arregalados, vazios, apavorados.
- Ajude-me! - Cassandra gritou quando Truan chegou à clareira. Ao se debruçar e tentar erguer Margeaux, sentiu que estava leve demais. Então, viu a neve ensangüentada
sob o corpo. - Ela está mal. O bebê... - Empurrou o manto de Margeaux, pensando em usar as mãos dotadas do dom da cura, mas Truan puxou-a pelo ombro.
- Solte-a!
Cassandra o encarou com ar espantado.
- Que tipo de monstro é você?
- Ela já está morta! Não pode ajudá-la!
- A criança!
- Veja! - Truan puxou-a com uma força que a surpreendeu. - Olhe para ela! - exclamou, enérgico, fazendo-a olhar para o corpo destroçado de Margeaux e os olhos arregalados,
sem vida. O manto estava aberto sobre as formas prostradas. O vestido, ensopado de sangue, rasgado, e a carne por baixo também, o útero ainda quente da criança que
recentemente estivera ali. Mas que não estava mais.
Cassandra cambaleou e quase caiu. A criança fora arrancada violentamente de dentro dela, e a carne, rasgada, como se tivesse sido atacada por algum animal.
- O bebê - ela murmurou, tremendo convulsivamente conforme os pensamentos se voltavam para o filho que trazia dentro de si.
Truan puxou-a para os cavalos.
- O bebê! - Cassandra repetiu, tentando se livrar, mas não conseguiu. Um medo horrível começou a crescer dentro dela. - O que aconteceu ao bebê? - Embora procurasse
pela essência da criança, sentia apenas escuridão e sombras.
- Virtualmente morta!
- Não! Existe uma chance de estar viva!
Truan a puxou com mais força, os dedos a lhe machucarem os braços.
- Melhor a morte do que aquilo que a espera!
- Do que está falando?
Como em resposta, de repente o vento pareceu ganhar vida em torno deles, uivando na copa das árvores e depois varrendo o chão da floresta, arrastando-os, tirando-lhes
o ar dos pulmões. Apavorados, os cavalos empinaram e saíram em disparada, desaparecendo no redemoinho de trevas e frio cortante que rapidamente se fechou em torno
de Cassandra e Truan, como se algum animal enfurecido tivesse atacado a floresta.
Truan puxou Cassandra pelos ombros.
- Precisamos encontrar abrigo - gritou por sobre o uivar do vento, que os empurrava em todas as direções, parecendo tentar separá-los. Mas não havia abrigo. Era
como se estivessem à deriva num mundo glacial de vento e escuridão que não eram desta terra.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo e convocou o poder da Luz, atraindo-o enquanto segurava a mão de Truan para lhe transmitir calor. Uma fraqueza estranha
a perpassou e ela arquejou de dor, como se o frio penetrasse até a criança que estava em seu ventre.
Truan sentiu a energia incomum que oscilava e depois o arrepio que percorreu o corpo de Cassandra. Sem dizer palavra, tirou o manto de seus ombros enquanto a escuridão
se fechava. Empurrou-a no chão, protegendo-a com o próprio corpo. Quando ele enrolou o manto em torno de ambos, Cassandra viu de relance uma coisa sombria, as próprias
Trevas, um mal penetrante feito de desespero, morte e destruição, tão imenso e voraz que ela percebeu, com a própria alma, que a humanidade poderia não sobreviver
àquilo. E queria alcançá-la.
Ao puxar o manto com força em torno dos dois, Truan relanceou os olhos pela clareira, através da tempestade. Viu uma figura agachada na neve e que lentamente se
levantava, nua, malformada, uma sombra escura. E, ao se erguer, cresceu, do tamanho de uma criança para o tamanho de um homem. Enquanto a neve e o vento giravam
em remoinhos ao redor, a criatura olhou para trás.
Por um longo momento, que poderia ser apenas o intervalo entre duas batidas do coração, Truan e a criatura se fitaram. Então, ela se voltou e fugiu pela tempestade,
engolida pela escuridão, como se nunca estivesse aparecido ali.
E Truan teve certeza, no fundo da alma, de que acabara de ver o filho de Margeaux.
Era como se mãos invisíveis puxassem as bordas em torno deles, fechando o manto, selando-os contra o frio num calor protetor que luzia com o poder da Luz e da Esperança.
Um casulo dourado que mantinha as trevas ao largo, um lugar onde a escuridão não poderia entrar, um local seguro que os abrigava, e ao filho não nascido de Cassandra.
Não era possível saber quanto tempo se passara. Só que o vento cessara de rugir em torno. Lentamente, a luz dentro do abrigo pareceu escapar sob as bordas do manto.
Sem dizer nada, Truan levantou-se, o olhar de guerreiro a vasculhar a clareira, mas com uma expressão que Cassandra nunca vira antes.
Mudo, puxou-a de pé, envolveu-a com o manto mais uma vez; afastaram-se dali e saíram da floresta. Encontraram os cavalos, trêmulos e de olhos esgazeados, à beira
da campina.
A distância, as luzes das torres de vigia piscavam nas ameias. Enormes fogueiras iluminavam o pátio externo. Com o brilho das chamas, viram os portões abertos e
os guerreiros montados que se reuniam.
Cassandra sentiu que Stephen retornara. Mas qualquer sensação de alívio foi toldada por uma nova e mais desesperada aflição. Ele e seus homens se juntavam para investir
contra Malagraine.
Com um simples toque, Truan aquietou os cavalos e ajudou-a a montar. Nenhum dos dois falou ao cavalgarem para os portões de Camelot.
O grito veio das ameias quando foram avistados. A velha Meg os encontrou às portas do salão, os olhos sem visão a fitar intensamente Cassandra.
- Lady Margeaux?
- Está morta.
Ao se conectar aos pensamentos da velha, Cassandra descobriu o que mais receava.
- Sim - murmurou Meg, muito séria. - Eles irão ao ataque contra Malagraine.
Cassandra subiu as escadas depressa na direção da câmara estrelada. Ao entrar no aposento, vibrante de energia, conforme Stephen e seus homens planejavam a estratégia,
ela disse a Truan, que a seguira:
- Não diga nada daquilo que vimos.
Desceu os degraus para o imponente recinto, sentindo a sombra negra dos acontecimentos que não poderia impedir ou alterar a lhe pesar a cada passo.
Como naquela época antiga, os cavaleiros de Stephen ocupavam seus lugares em torno da Távola Redonda, as espadas com as lâminas reluzentes a convergirem para o ponto
central na mesa. Quando Truan juntou-se a eles, Stephen ergueu a cabeça dos mapas desenhados de forma rudimentar. Seu olhar encontrou o de Cassandra na comunicação
muda de amor e paixão, e ela sentiu algo que nunca vira naqueles olhos antes: medo.
Então, sumiu, e ele se inclinou mais uma vez, os pensamentos concentrados naquilo que encontrariam pela frente. Stephen não tinha tempo para Cassandra no momento,
mas ela continuou ali por alguns instantes, a ouvir as discussões sobre a batalha, a observar os rostos sérios, porém, sobretudo, a olhar para Stephen, a se deter
em cada detalhe para memorizá-los, enquanto uma sensação de algo inevitável lentamente a envolvia.
Saiu, por fim, ao saber que partilhariam umas poucas horas antes que ele e seus homens partissem, e com a certeza do que ela mesma deveria fazer.
Encontrou a velha sentada diante da lareira, no quarto do lorde. Cassandra estendeu as mãos para o fogo a fim de espantar o frio, que parecia tê-la penetrado profundamente
depois daquele encontro na floresta. Um frio do qual não conseguia se livrar. Curvou a mão protetora sobre a barriga arredondada, por cima do vestido.
Meg fitou-a com os olhos cegos. Sentia uma aceitação que não sentira antes em Cassandra. A raiva e a atitude desafiadora haviam sumido, assim como a resistência
teimosa em receber o legado com que nascera. Não precisava de nenhum dom de percepção para saber que os pensamentos dela estavam voltados para o filho que carregava
no ventre. Um filho para o qual não haveria futuro se Cassandra não aceitasse seu legado.
Cassie olhou para a tapeçaria aberta sobre a mesa, as imagens sombrias incertas e tão terríveis como as que encontrara na floresta, a forma esguia mal visível onde
fora tecida, com os fios a captar a luz e cintilar em azul por um momento, e em brilhante violeta no seguinte. Ela própria. Seu destino encontrava-se nas tramas
não tecidas.
- Diga-me o que eu devo saber.
Quando soube de tudo, sentou-se ao lado de Meg e indagou:
- Existe alguma esperança?
- Sempre existe esperança.
Cassandra correu os dedos pelas imagens bordadas por uma mulher cujo sangue era o mesmo que corria em suas veias. Não tinha idéia se poderia haver uma resposta.
- Só precisa estender a mão para alcançá-la - disse Meg, diante da pergunta não formulada.
Cassie voltou os pensamentos para o íntimo, atraindo o poder que atravessava tempo e espaço, como fizera meses antes, ao se concentrar em apenas duas palavras: minha
irmã.
E, na friagem do quarto, ela sentiu o calor do amor de um espírito afim, que vinha em resposta.
Naquela noite, quando Cassandra e Stephen se deitaram na cama de peles, havia algo de comovente no ato de amor, uma nova urgência que parecia fluir de Cassandra
para dentro de Stephen, numa comunicação quase frenética. Da parte dele, diante da certeza da batalha que haveria adiante; da dela, diante do destino que a aguardava,
mas sobre o qual Cassandra não poderia contar a ninguém.
Depois, Stephen abraçou-a com força, sentindo a energia que vinha de Cassandra, sentindo a própria vida nela, no volume da criança, e reconfortou-se por saber que,
fosse o que fosse que o esperasse, o que haviam partilhado viveria naquele filho.
Quando a aurora nasceu, Stephen se levantou para se vestir.
Cassandra agarrou-se a ele, os olhos marejados. Não trocaram nenhuma palavra. Por fim, Stephen se afastou e se vestiu no escuro, a espada a brilhar do lado do corpo.
Cassandra enrolou-se nas peles e saiu da cama.
- Tenho um presente para você. - Foi até a mesa perto da lareira e pegou alguma coisa. Era uma runa com a imagem de uma mulher esculpida na superfície plana. - É
a metade da outra que você pegou de mim - disse ao colocá-la na palma da mão de Stephen. - Se um guerreiro a carrega, dizem que carrega consigo aquela a quem ama.
Os dedos de Stephen deslizaram pela pedra, numa carícia. Então, tirou o cordão com a outra runa do pescoço e colocou-o em Cassandra, dizendo:
- Até que as duas peças da pedra sejam reunidas.
As feições dela estavam pálidas e extenuadas, cheias de uma tristeza de partir o coração. Puxou-a para seus braços com a força do desespero, as mãos a afagar e acariciar
cada detalhe do rosto, como se querendo memorizá-lo. A boca, incrivelmente terna, beijou-a mais uma última vez.
- Não me acompanhe até o pátio. Quero me recordar de você exatamente como está agora, quente com o calor do meu amor - murmurou contra os lábios de Cassandra, salgados
das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Então, sua mão pousou amorosamente sobre o ventre avolumado, com infinito carinho. - Tome conta de meu filho.
Em seguida, saiu.
Pouco tempo mais tarde, o pátio externo estava silencioso e deserto. Stephen e seus homens tinham partido, e Truan com eles.
Cassandra ajeitou o manto sobre os ombros e o amarrou. Com um último pensamento, pegou a runa polida que usava agora no pescoço e da qual Stephen se apossara da
primeira vez que tinham se encontrado.
Ele a usara desde então, a pedra clara e incomum com a imagem do guerreiro ainda quente de sua essência vital. Cassandra a pendurara no pescoço, a pedra a repousar
contra seu coração. A outra metade, aquela que Stephen agora usava, era o complemento perfeito, a de uma mulher em toda a sua gloriosa nudez. Quando as duas metades
se juntavam, era como se os amantes se entrelaçassem. Cassandra sorriu, pois Stephen não tinha como saber o destino que o aguardava quando se apossara da pedra.
Ela gostaria de ficar naquele quarto e esperar pelo retorno do amado. Passar todos os seus dias ali com Stephen, sentir a criança crescer forte e depois experimentar
a dor prazerosa de trazer o filho ao mundo e colocá-lo nos braços do pai. Mas não podia.
- Perdoe-me pelo que devo fazer - Cassandra murmurou ao enviar seus pensamentos a ele.
O lobo seguiu a seu lado, as garras a arranhar as pedras quando ela saiu e entrou na câmara estrelada. Ali, naquele lugar onde o antigo rei governara um reino lendário
de esperança e luz, Cassandra convocou seus poderes. O portal se abriu. E ela o atravessou, acompanhada de Fallon, numa missão de busca para cumprir o legado com
que nascera.
A luz circundou Cassandra, moveu-se através dela e depois explodiu com uma intensidade esbranquiçada que era quase ofuscante.
Imagens passavam num brilhante borrão de cor, luz e tempo, impossíveis de discernir. Vozes, como uma multidão de almas, chamavam, murmuravam, riam, choravam, diziam
palavras ternas, falavam de sonhos perdidos e sonhos realizados.
Lembre-se...
, " Quinhentos anos desfilaram perante ela, gerações, multidões de vidas vividas e depois apenas relembradas e, em seguida, ultrapassadas além da memória para a
lenda. Apenas um único passo separava a época e o lugar em que nascera, de um mundo que, para alguns, existia somente no mito.
A luz recuou, extinguindo-se conforme Cassandra passava pelo portal para adentrar a câmara estrelada. Não como a deixara, mas como fora, com a Távola Redonda no
centro do grande recinto, a madeira nobre e reluzente, esculpida com aqueles painéis com palavras latinas: honra, bravura, coragem e lealdade.
Lentamente, deu a volta à mesa, os dedos a tocar cada um dos doze lugares com um medalhão entalhado na madeira. Cada um tinha um emblema. Um era um pouco maior que
os outros e ostentava a insígnia real do regente, Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
- Estávamos esperando por você.
Assustada, Cassandra deu meia-volta. O homem que falara estava no patamar das escadas.
Era alto e magro. A túnica azul que usava chegava-lhe aos joelhos, logo acima das botas, que moldavam as coxas longas. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros.
Acima da barba escura e cheia, os olhos tinham um intenso tom de azul.
Era jovem, não mais velho que Stephen, e movia-se com a mesma intensidade. Poderia ser um guerreiro, um estudioso ou um rei. Usava o medalhão de alto conselheiro
real.
Por um momento, Cassandra ficou por demais aturdida para falar. Emoções a invadiam, surpresa, incredulidade, raiva, junto com outros sentimentos enterrados por tanto
tempo que ela nem saberia nomear ao se defrontar com o conselheiro do rei Arthur. Merlim. Seu pai!
Por fim, Cassandra recuperou a voz:
- O senhor não compreende. Eu vim porque...
- Sei por que veio - disse ele. Ao se voltar, segurou-a pelo braço. - Resta pouco tempo. Mesmo agora pode ser muito tarde. - Abriu a porta. Cassandra não teve escolha
a não ser acompanhá-lo.
A câmara estrelada encontrava-se em silêncio, parecendo congelada no tempo. Em contraste, o resto de Camelot explodia em frenética atividade sobre a qual pairava
uma atmosfera de desespero. Camelot estava sob cerco.
Merlim levou-a até os aposentos reais. Cassandra empurrou a porta, atraídas pelas próprias lembranças partilhadas com Stephen naquele mesmo quarto, naquele outro
tempo. Então, viu o rei.
Lenda e mito se entrelaçavam à realidade no homem que jazia na cama de peles espessas. Era belo, de cabelos cas-tanho-avermelhados e cortados rentes, na plenitude
da virilidade, o corpo longo a encher a cama. Acima do lençol que o cobria, Cassandra viu os ombros e o peito nus. Ele arfava, com esforço, em respirações curtas
e difíceis.
Seus cavaleiros o rodeavam, as feições macilentas e exaustas. O sangue da batalha manchava-lhes as túnicas. Todos portavam espadas. Nos olhares tensos, de expectativa,
Cassandra percebeu que era a última esperança que se encontrava tão perto da morte.
A mão firme de Merlim em suas costas guiou-a gentilmente adiante. Mas foi a compaixão e uma tristeza incontida que a fizeram erguer a mão e pousá-la sobre o rei
caído. Não tinha febre, apenas a Maldade da morte que se avizinhava.
- Precisa fazer tudo que estiver ao seu alcance, senhora - um dos cavaleiros implorou, postado ao lado da cama, todos formando um anel protetor, as espadas reluzindo
à luz das lamparinas.
Um rosto molhado de lágrimas encarou-a do outro lado da cama. As feições exaustas, delicadas, a cascata de cabelos dourados que caía sobre seus ombros em desleixo,
o sofrimento nos doces olhos cinzentos da rainha que o traíra. Mas Cassandra viu apenas sofrimento naquele olhar, nas palavras murmuradas pelos lábios sem cor:
- Por favor...
Ela concordou, mesmo que sentisse a inutilidade do esforço.
- Farei o que puder. - Aproximou-se da cama e levantou a borda do lençol. Um dos cavaleiros ergueu uma lamparina acima de sua cabeça.
O rei fora gravemente ferido. Tinha três profundas perfurações de espada que haviam sido enfaixadas para estancar a hemorragia. Cada ferimento em si poderia ser
curado, mas todos, não.
Mesmo agora, ao colocar a mão no peito arfante e abrir a mente, Cassandra sentia a morte sobre ele, e a escutava no chiado dos pulmões, conforme o rei lutava a cada
hausto de ar. Contudo lutaria para lhe salvar a vida, para reter aquela preciosa força vital com o pensamento silencioso: Seria capaz de alterar tudo aquilo se ele
sobrevivesse?
Fechou as feridas e juntou músculos e tendões. Reuniu a força vital dentro de si mesma com aquela última energia feroz com que o rei se agarrava a este mundo.
Por intermédio daquele elo, durante as longas horas, Cassandra conheceu seus sonhos de menino, suas ambições como guerreiro e rei, suas maiores alegrias e maiores
tristezas, e seu amor pela mulher que mantinha vigília lacrimosa a seu lado.
Quase perto da alvorada, muitas horas depois que ela passara pelo portal, o rei abriu os olhos devagar e olhou para seus cavaleiros. Sua respiração se acalmara.
O sofrimento da luta desaparecera de sua face.
Um por um, chamou os nomes de seus cavaleiros. Um por um, eles ergueram as espadas diante dele enquanto a rainha soluçava baixinho. O rei tocou-lhe as mãos, entrelaçando
os dedos nos dela. Um toque que, de certa forma, comoveu Cassandra profundamente e a fez desejar desviar os olhos diante de tanta ternura. Era como se visse algo
íntimo demais, a ser compartilhado apenas por duas pessoas.
- Perdoe-me - ele murmurou. A rainha ergueu a face riscada de lágrimas, a expressão sofrida e cheia de angústia. - Perdoe-me por não acreditar em você como você
acreditou em mim. - A respiração tornou-se mais rasa, e ele lutou para dizer as próximas palavras com um último fôlego agonizante, palavras que poderiam ser tanto
para ela como para seus cavaleiros: - Lembre-se, o que foi certa vez pode ser de novo.
Seu peito arfou, subiu e desceu. E então, não subiu mais. A mão jazia imóvel na da rainha, os olhos fitaram a última coisa que escolhera ver naquela vida: a mulher
a quem amava.
As lágrimas inundaram os olhos de Cassandra. Em todas as lendas, em todas as histórias contadas e recontadas ao redor do fogo, à noite, através dos séculos, ninguém
falara daqueles últimos momentos, em que o rei se tornara homem mais uma vez, o corpo sujeito às fragilidades de qualquer ser, vulnerável à espada e às mágoas do
coração humano.
O rei foi vestido com seus melhores trajes, cuidado na morte por aqueles que o tinham servido em vida. Seus cavaleiros. Então sua espada foi colocada ao lado dele.
Enquanto nas colinas e montanhas ao longe, um grande exército se reunia, um exército das Trevas, no tempo que restava a Cassandra, Camelot se preparava para o fim
como história e para representar seu papel na lenda.
As ruas logo se tornaram desertas, percorridas apenas por guerreiros e cavaleiros armados, os últimos da outrora poderosa força militar de Arthur, praticamente destruída
num lugar chamado de broad moor, o rei traído por um de seus cavaleiros mais leais. Em outra época, no futuro, chamariam o lugar de Brodmir, onde outra batalha se
desenrolara. O que foi certa vez pode ser de novo.
O céu de chumbo parecia desabar sobre as montanhas escuras. Um vento frio penetrou pelo pátio e os salões, projetando sombras pelas paredes de arenito e enchendo
de escuridão os cantos.
Cassandra sentiu uma presença no quarto, uma essência que era parte do passado e do futuro, profundamente ligada a ela por meio do sangue que partilhavam. Seu pai.
- E quanto à rainha? - ela perguntou.
- Levada para um lugar seguro, agora mesmo - Merlim respondeu.
Cassandra sabia que, de acordo com a lenda, a rainha viveria lá pelo resto de seus dias, em silenciosa reclusão, fechada para o mundo, a sós com seus sonhos e lembranças.
- Você também precisa ir embora - Merlim lhe disse, a aflição expressa nas palavras. - Apenas os cavaleiros de Arthur devem estar aqui. Ficarão até o fim.
- E quanto ao senhor? Ele sorriu com tristeza.
- Tenho meu próprio destino a cumprir.
- Um destino que não precisa ser assim - Cassandra apressou-se em dizer. - Eu vim aqui porque...
- Sei por que veio, Cassandra - ele murmurou, com uma ternura que a deixou sem palavras. Aturdida, fitou-o. Nem mesmo dissera-lhe o nome. - Eu estava esperando por
você.
- Sabe por que vim?
- Estava previsto - ele disse. Então, sua voz fraquejou: - Quando soube, tentei impedir, para que nada disso pudesse atingi-la.
Estendeu a mão, um jovem nascido com poderes imortais, que já vislumbrara o próprio destino, e, ao vê-lo, convocava uma visão do futuro. E aquele futuro se postava
diante dele.
Ansiava por tocá-la, aquela bela jovem, sua prole do futuro. Sua filha.
Cassandra, porém, não o conhecia como ele a conhecia. Como a vira em suas visões, aquela filha tinha poderes quase tão grandes como os seus, e voltara no tempo para
reivindicar uma esperança para o futuro.
Merlim fechou os dedos num punho vazio. Não havia tempo para curar o sofrimento e a raiva. Isso só aconteceria no futuro. Havia tempo apenas para ajudar Cassandra.
Ela sentiu que os pensamentos do pai lhe invadiam a mente e resistiu. A escolha que fizera de voltar ali não era por ele, mas pela criança que carregava.
- Apenas tentei protegê-la e a suas irmãs da única maneira que poderia - ele respondeu ao ler seus pensamentos.
Cassandra não queria acreditar. Passara a vida inteira a odiá-lo por isso.
Do lado de fora das muralhas de Camelot, levantou-se um vento forte. Sacudiu janelas e portas e depois apagou as chamas das lamparinas, trazendo consigo o cheiro
de batalha e de morte. O quarto, de repente, ficou gelado. Tão gelado como na floresta, na manhã em que Cassandra e Truan tinham seguido Margeaux. Tão frio como
a morte.
Merlim sentiu também.
- Não há mais tempo - disse, aflito. Pegou-a pelo pulso. - Você precisa ir. Parta antes que seja tarde demais. Antes que as Trevas a encontrem aqui também.
Fugiram pelos corredores escuros, com Fallon a saltar ao lado de Cassandra. Encontraram os cavaleiros de Arthur à entrada da câmara estrelada, entraram e passaram
a barra maciça pelas enormes portas duplas. Ali, sir Bors, Melodor e os outros cavaleiros sacaram as espadas e prepararam-se para fazer a barreira final quando as
Trevas os encontrassem e investissem.
De repente, as portas foram golpeadas incessantemente, as tábuas a estalar e gemer. Partiram-se em lascas quando começaram a ceder. A fumaça se infiltrava pelas
frestas, conforme o fogo avançava. Logo as Trevas cairiam sobre eles.
Merlim empurrou Cassandra para o canto mais distante do aposento, na parede dos fundos, onde a insígnia de Arthur fora gravada na pedra, um emblema circular repetido
no padrão da Távola Redonda. O círculo da vida e a promessa daquilo que seria outra vez.
Sacou a espada quando mais golpes se chocaram contra as portas, a fumaça a encher o recinto. Por fim a madeira cedeu e as Trevas enxamearam sobre eles. Merlim ergueu
a espada sobre a cabeça e investiu contra o centro do emblema gravado na pedra.
Fagulhas se espalharam quando o aço bateu na pedra da parede. O centro do círculo de pedra se inclinou e se abriu. No pequeno nicho do centro do emblema havia um
cristal esférico suspenso dentro de um anel dourado.
Era do tamanho da mão de um homem e perfeitamente redondo, um magnífico cristal a flutuar naquele orbe dourado, a girar lentamente, refletindo milhões de luzes como
as estrelas no céu. Se as Trevas se apossassem dele, não haveria nenhuma esperança para o futuro.
- Pegue-o - disse Merlim. - Foi para isso que você veio. É a única esperança para o futuro.
Cassandra o encarou quando aqueles guerreiros sombrios, com a morte por trás dos elmos negros, abriram caminho e entraram na câmara.
- Venha comigo - ela pediu com veemência. - Pode ver o futuro. Se ficar, será banido para as brumas.
Ele meneou a cabeça.
- Se eu pudesse me reunir a você em sua época, então você não existiria. Este é meu destino, Cassandra. Deve cumprir o seu.
Um a um, os valentes cavaleiros de Arthur caíram sob as espadas das Trevas, nos mesmos lugares onde seriam encontrados cinco séculos no futuro, com as armas em suas
mãos reduzidas a pó.
- Precisa ir agora! - Merlim disse à filha, empurrando-a para a parede do fundo da câmara. Então, sorriu com doçura. - Seu futuro é meu futuro. - Voltou-se para
enfrentar as Trevas, que pareciam alcançá-lo com as mãos estendidas, nas formas daqueles horríveis guerreiros com a morte nos elmos.
- Papai!
Ao som daquela palavra, Merlim voltou-se e fitou-a, os olhos azuis a luzir com intensidade. Quando Cassandra hesitou, ele juntou seus poderes aos dela, convocando
a Luz, e abriu o portal. Mandou Cassandra para longe, como fizera em outra época, para protegê-la. Fallon saltou através do portal, com ela.
O portal se fechou por trás de Cassandra, e ela ouviu aqueles sons distantes de batalha, os gritos ferozes dos bravos cavaleiros conforme lutavam e morriam, e o
pensamento cheio de ternura e amor que se conectava à sua mente.
Eu sempre estarei com você, minha filha.
Cassandra deu um passo à frente, de um mundo para outro, as visões e os sons a desfilarem, imagens aparecendo e depois desaparecendo, forças poderosas a puxá-la
na direção da luz.
Segurava o Oráculo de Luz numa das mãos e a pedra de runa na outra, como um talismã que a guiasse para casa.
Então, foi seguindo, e através da abertura à frente, viu a câmara estrelada. Deu mais um passo e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Era o mesmo recinto e, contudo, não era. Estava mudado, de alguma forma alterado, não era o mundo que acabara de deixar nem aquele de onde partira, mas um mundo
entre dois mundos, onde não havia luz, somente escuridão.
Virou-se e tentou retornar através do portal, extraindo o poder de si mesma para manter a passagem aberta. Mas sentiu forças invisíveis que a puxavam e soube que
os poderes das Trevas estavam ali. Tinham-na seguido pelo portal quando ela fugira.
Cassandra enfiou a mão pela fenda, na tentativa de reter o poder, mas se tornava mais débil a cada momento que passava, fechando-se em si. E conforme se fechava,
ela viu Fallon correndo na sua direção.
- Volte! - Cassandra gritou, num aviso, quando a abertura começou a desabar. Ela sentiu um roçar de pêlos contra a mão, o calor aveludado da língua de Fallon, e,
depois, o portal se fechou. E o lobo desapareceu.
Cassandra se virou de novo para a câmara estrelada e sentiu o frio repentino que se fechava ao seu redor. Ao tentar sair do recinto, descobriu que não poderia. Algum
tipo de parede invisível a impedia.
Não importava em que direção tentasse escapar, via-se bloqueada por aquela parede de gelo que lentamente se fechava em torno dela. Até que Cassandra não conseguia
mais se mexer.
Tentou reunir seus poderes, mas descobriu que não podia. Então seus pensamentos pareceram se enevoar. E havia sempre aquela friagem infiltrando-se em seu sangue,
a penetrar profundamente como se quisesse alcançar a criança.
Cassandra dirigiu a mente para o seu interior, rodeando a criança como o último luzir de calor dentro de si, a protegê-la com o derradeiro raio de luz que lutava
debilmente para resistir. E a última coisa que pensou quando uma única lágrima escorreu por sua face e juntou-se ao gelo que a en-capsulara, foi em Stephen.
Lembre-se...
O portal abriu-se de um mundo para outro, uma faixa estreita de luz que brilhava debilmente e depois bruxuleou e aos poucos se tornou mais débil. O lobo enterrou
as garras pela abertura fugidia e caiu do outro lado. Presa em seu pêlo branco, estava a pedra de runa.
Capítulo IX

Stephen e seus homens cavalgavam pelos campos enlameados perto de Brodmir, onde haviam se defrontado em batalha com Malagraine. Porém, com exatidão profética, ele
soubera que Malagraine não se postaria novamente de tocaia na floresta. E, assim, estavam naquela estreita planície espraiada a enfrentar um inimigo que haviam encontrado
outras duas vezes.
Muitos pensamentos tumultuavam sua mente. Todos a desembocar num só. Cassandra e o filho que ela trazia no ventre. Seu filho.
Não tinham trocado palavras nas horas antes da partida. Apenas aquela comunicação de contato, ao fazerem amor como se pudesse ser a última vez. Agora, havia tanto
que desejava ter dito a ela...
Que a amava, que a honrava acima de tudo, que não faria um bastardo do filho que Cassandra carregava, que pronunciaria os votos de enlace com ele onde e quando ela
escolhesse, contanto que a alegria e a paixão que descobrira ao lado de Cassandra durassem para sempre.
Para sempre. Uma expressão que possuía significados diferentes para ambos.
Cassandra não era realmente mortal. Para ela, "para sempre" queria dizer "para sempre", tanto tempo quanto ele poderia imaginar. Para ele, "para sempre" eram os
momentos que passava em seus braços, e se fossem os últimos, ele saberia então que ela fora sua para sempre.
Então, concentrou seus pensamentos na batalha iminente, e tudo o mais foi esquecido.
Nas colinas distantes, o exército de Malagraine se congregava. Uma formação serpentina, escura, frenética de morte e destruição. Fazia dias que estavam reunidos
ali, a crescer em número, até que as encostas das colinas recobriram-se de negro com aquele enxame sombrio.
- São muitos - Gavin disse, baixinho, não com medo, mas com aquela resolução de ter enfrentado muitos inimigos em batalha e se ver diante de um assustador que agora
os defrontava. - Faz-me lembrar de Hastings, quando lutamos ao lado do rei Guilherme.
- Sim - respondeu Stephen, os olhos fixos naquela encosta distante enquanto seus homens flanqueavam à esquerda e à direita, numa cunha. - Só que, agora, estamos
um pouco inferiorizados em termos de número.
Quando a batalha se desencadeasse, avançariam contra o inimigo, impelindo aquela cunha no coração daquelas bestas humanas.
Por um momento, Stephen pensou no pai, e aventou-lhe na mente a esperança de vir a morrer dignamente. Com sua morte, talvez o rei por fim mostrasse um pequeno orgulho
que não pudesse mostrar por ele em vida.
O olhar agudo de Truan encontrou o seu. Stephen poderia jurar que via um ar de riso ali.
- Talvez um pouco - reconheceu Truan, ao esquadrinhar a encosta. - Avalio que haja uma diferença de vinte para um.
- Só isso? - Gavin indagou, incrédulo, ao entrar na brincadeira. Fez um ar de escárnio. - Então não temos nada com que nos preocupar. - Olhou para Stephen. Ambos
sabiam que a diferença chegava perto de trinta para um. - Enfrentamos essa desigualdade em Antióquia, quando você ganhou suas esporas de cavaleiro. Foi um bom dia.
E este também será um dia de glória.
Stephen concordou, enquanto seu olhar esquadrinhava o céu e o débil sol que finalmente se mostrara entre a nuvens.
- É um bom dia.
Pelo vale, um rugido alto ecoou, conforme a fera parecia se espreguiçar. Stephen sacou a espada.
- Você é um excelente guerreiro - disse para Truan. - Pode proteger minha retaguarda.
Truan cravou nele aquele olhar penetrante que era tanto de riso como de valentia.
- Você pode guardar minhas costas, inglês. E não falhe. Não tenho desejo algum de sentir a lâmina da abominação a decepar a cabeça de meus ombros.
Então, esporeou o cavalo para a frente e soltou um poderoso grito de guerra. A resposta veio daquela encosta distante. Conforme a formação bestial estremecia e
depois escorria para baixo daquela colina ao longe, Stephen ergueu a espada e deu a ordem para que atacassem o pleno coração do inimigo.
Numa explosão de aço, corpos a se chocarem, e sangue, confrontaram-se naquela pequena planície. A abominação se mostrava claramente estupefata. Malagraine não esperava
que contra-atacassem, tão poucos eram em número, tão grande a disparidade. Tendo calculado mal uma vez, não cometeria o mesmo erro ao fechar o exército em torno
deles.
No centro da batalha, Stephen abandonou seu cavalo e foi para o chão a abrir caminho entre os guerreiros de elmos negros que o cercavam, a retalhá-los, cortá-los,
abatê-los, os joelhos a afundar na lama, que rapidamente se tingia com o sangue de seus homens.
Ele e Truan lutavam de costas um para o outro, enquanto uns poucos passos adiante, sir Gavin e o resto de seus homens formavam um círculo defensivo que lentamente
se restringia. Então, Stephen sentiu uma mudança no guerreiro contra quem combatia, uma hesitação que não houvera antes. E, acima dos sons dos combates, ecoou um
grito familiar de batalha.
No cume da coluna acima das encostas onde Malagraine iniciara sua carga, uma linha vibrante de púrpura e dourado fulgurante apareceu cintilando sob o sol do meio-dia.
Estandartes de batalha ondulavam ao vento conforme guerreiros montados investiam colina abaixo, a luminosidade destacando os emblemas em suas túnicas, as insígnias
da Normandia, de Poitoirs e Anjou, junto com o estandarte real de um leão com as patas dianteiras levantadas num fundo azul. Enxameavam pela colina, a se fechar
na retaguarda de Malagraine.
Quando tudo estava terminado, Stephen e seus homens se viram num mar de guerreiros caídos. Os elmos, ao serem empurrados para trás, revelaram os rostos de rebeldes
saxões, mercenários, mas, em alguns, não havia feições. Truan chutou de lado um dos elmos, a expressão transformada numa máscara dura. Ali perto, Gavin apoiava John
de Lacey. Com a quantidade de sangue que cobria ambos, era impossível dizer quem estava mais ferido.
Stephen debruçou-se pesadamente sobre a empunhadura da espada, enquanto os guerreiros montados, que haviam descido a colina e atacado Malagraine pela retaguarda,
avançavam lentamente pelos soldados caídos. Puxaram as rédeas dos cavalos e empurraram os elmos para trás.
Stephen fez um gesto de reconhecimento ao encará-los.
- O que os trouxe tão longe?
Tarek ai Sharif, ao desmontar com aquela maneira graciosa e fácil das tribos do deserto onde nascera, avançou, a mão a descansar na cimitarra ensangüentada presa
na cintura.
- Nosso amigo aqui queria ver como você se saía no comando de seu próprio exército.
Stephen estreitou os olhos para ver, através do elmo do homem ainda montado, que era um irmão, pai e mentor para ele. Rorke FitzWarren, alto chanceler do rei Guilherme.
O guerreiro desmontou e empurrou a proteção do elmo para trás.
- Saiu-se bem, meu amigo - disse Rorke ao abraçar Stephen. - De maneira insensata, mas bem. Ignorou a regra básica de batalha. Nunca deixar um inimigo conhecer sua
verdadeira força.
Stephen franziu a sobrancelha e relanceou os olhos para além do amigo, para o exército do rei, agora acampado no campo de batalha.
- O inimigo não conhecia minha verdadeira força! - exclamou. E então, acrescentou: - Nem eu. Quem lhe disse onde nos encontrar?
Um cavaleiro solitário insinuou-se entre a fila de guerreiros reunidos. Debaixo do sol do meio-dia, a capa brilhante de seus cabelos era como uma cascata de fogo.
Rorke Fitz-Warren aproximou-se e, com um gesto possessivo de ternura, ajudou a jovem esguia a desmontar.
- Minha irmã - ela murmurou. - Cassandra.
- Onde está ela? - Stephen perguntou, furioso, ao esmurrar a mesa no salão principal, em Camelot, fazendo tinir as travessas e entornando um jarro, que explodiu
no chão de pedra.
Truan puxou Amber gentilmente para trás, para protegê-la do acesso de ira de Stephen e dos cacos de cerâmica que voavam, enquanto Pippen fugia para se esconder debaixo
de uma cesta virada de boca para baixo.
Rorke FitzWarren e seus cavaleiros observavam a tudo com crescente inquietude.
- Para onde ela foi? - Stephen perguntou de novo. - Não há ninguém que possa me dizer?
Finalmente, a velha Meg aproximou-se, o olhar cego guiado pelo som da voz e pela raiva.
- Cumprir seu destino, como você sabia que ela precisava fazer.
- Do que está falando, velha?
Ela colocou a tapeçaria enrolada sobre a mesa, diante dele. Com um aceno da mão esquelética, o bordado se abriu, as imagens brilhantes de batalhas, de cavaleiros
e guerreiros, de poderes sombrios e misteriosos aparentemente vivos nas tramas reluzentes.
- É o seu destino. Você o mostrou a ela nas imagens da tapeçaria.
- Onde? - ele indagou. - Como?
- Cassandra partiu para encontrar o Oráculo da Verdade.
- Ela não acreditava. Nem mesmo falava nisso.
- Teimosia e raiva - retrucou Meg. - Até que tive medo de que tudo pudesse estar perdido.
Stephen apoiou as mãos na mesa, recusando-se a olhar para a tapeçaria, em luta para não acreditar, mesmo depois de ter se confrontado com as Trevas por duas vezes
antes, e novamente, naquele recente campo de batalha, onde tantos haviam morrido e Malagraine escapara. Conhecia o poder maligno, mas também não confiava na velha.
- Como a convenceu? Que poder sombrio usou para mudar-lhe o coração?
Meg sentiu-lhe o sofrimento. Condoeu-se por ele, pois sabia que Stephen perdera o coração e a alma para a Filha da Luz, ao cumprir o que indicavam as imagens vistas
da primeira vez de relance na tapeçaria, as figuras entrelaçadas dos amantes de mãos dadas no padrão da trama, e que agora estavam separadas.
- Eu não poderia convencê-la nem em um milhar de anos - ela respondeu, com sinceridade. - Pois nunca possuí um tal poder. - Então, deixou-o boquiaberto. - Foi você
que a convenceu.
- Eu?! - Stephen exclamou, incrédulo e furioso. - Você ficou maluca, mulher. Eu nunca a convenceria a isso. - Sua voz fraquejou, em parte de raiva, em parte de impotência.
- Eu nunca a enviaria para a morte.
- Convenceu-a por causa da paixão e do amor que Cas-sandra encontrou com você - disse Meg, com doçura. - E da criança que cresce no ventre dela.
- Explique-se!
A mão magra de Meg acariciou a tapeçaria, as tramas fortes e seguras onde estavam bordadas e contavam uma história.
- Os acontecimentos que já começaram a passar - Deslizou os dedos sobre os amantes; o guerreiro e a Filha da Luz, as imagens tecidas ali também e, depois, os dois
de mãos separadas. Em seguida, pelas formas sombrias que assomavam além. - O que era, o que é e o que será - disse. - O futuro da humanidade. Perdido se as Trevas
não puderem ser impedidas. Nenhum futuro de maneira alguma para o filho que ela carrega.
Meg sentiu a pergunta que ainda afligia Stephen.
- É por causa daquilo que Cassandra encontrou na floresta - explicou. - O que viu lá a convenceu como nada que eu pudesse lhe contar. Quando voltou, exigiu saber
o que precisava fazer. Se eu não tivesse falado, ela teria extraído o conhecimento de mim pelo método antigo. Eu não poderia impedi-la.
Stephen se recordou daquele dia em que soubera, depois que Cassandra estivera na floresta.
- Você estava com ela naquele dia! - ele exclamou, ao se voltar para Truan. - O que Cassandra encontrou na floresta?
A angústia o destroçou enquanto ouvia e se inteirava da morte brutal de Margeaux, da tempestade que quase matara os dois, e do encontro com as Trevas.
- As Trevas vieram reivindicar sua prole - Meg murmurou, com voz profética. - Nascido de carne, mas com poderes que só podem ser imaginados e temidos.
- Isso não estava tecido na sua tapeçaria, velha - Stephen declarou com amargura.
- Uma criança - Meg admitiu ao rebuscar na memória. - Estava previsto nas tramas. Uma vida por uma vida.
- Mas que criança? - ele indagou. - A de Margeaux ou a de Cassandra?
Meg não respondeu, e Stephen compreendeu que ela não poderia.
- Há mais - disse Meg, quando sentiu que ele prestaria atenção. Estendeu a mão. Dos dedos pendia, num cordão, uma pedra polida e chata que parecia pela metade, como
se a outra estivesse faltando.
Nela estava gravada a figura de um guerreiro. Era a pedra que Cassandra recebera de volta.
- Foi encontrada no chão da câmara estrelada - explicou Meg. - Na base do grande emblema, quando o lobo retornou sozinho, quase perto da morte.
Stephen ajoelhou-se ao lado do lobo branco. O animal o fitou com os grandes e sábios olhos prateados, e depois lhe lambeu a mão. Desde que fora encontrado na câmara
estrelada, tinha se recuperado bastante da jornada pelo portal, embora ainda estivesse muito fraco. Só Fallon sabia o que acontecera além do portal. Por intermédio
do lobo, poderia haver uma chance de encontrar Cassandra.
- Pode ser feito?
Lady Vivian também se ajoelhou ao lado do lobo, à maneira daqueles com poderes especiais que não têm medo de criaturas selvagens. O lobo aceitou-a como se a conhecesse,
e talvez assim fosse, já que partilhava laços com sua dona.
Seus cabelos se espalhavam sobre os ombros numa cascata de fogo. Ela o recordava de outra pessoa, com aquele mesmo nariz arrebitado, a mesma curva das faces, o queixo
teimoso, e olhos que eram vários tons mais claros, mas que possuíam a mesma luz interior do poder que queimava dentro das filhas de Merlim.
Vivian roçou a face no pêlo áspero do lobo, de olhos fechados, como se extraísse a essência da criatura para dentro de si.
- Talvez - murmurou. - Ele guarda a aura daquele último momento em que a tocou. Por intermédio disso, pode haver um meio.
- Deve haver um meio! - Stephen exclamou com veemência. - Não aceitarei que ela esteja perdida para mim.
As palavras eram como uma lembrança de outro guerreiro que se dispusera a enfrentar as Trevas para encontrá-la. Vivian pousou a mão no braço de Stephen. Eram amigos
e tinham partilhado muita coisa. Ele arriscara a vida uma vez por ela. E Vivian sabia que a daria alegremente pela jovem que se apossara de seu coração.
Levantou-se, a mão a descansar na cabeça do lobo, de um jeito parecido com o que Cassandra tocava o animal.
- A lembrança da jornada está dentro de Fallon - disse, muito séria. - Se a viagem deve ser feita, ele precisa ser o guia para o caminho de volta.
Stephen ficou de pé, tomado de ansiedade. Havia mais do que apenas isso. Podia sentir.
- O que mais?
- Não sei se posso abrir o portal. O poder que originalmente o abriu era de Cassandra. Mas a verdade é que, uma vez aberta uma passagem de um mundo para o outro,
fica uma indicação.
Ele olhou ao redor, aflito.
- Que indicação?
- Uma essência de energia deixada para trás. A mesma essência que ainda se apega ao pêlo do lobo.
Ao fechar os olhos, Vivian concentrou seu poder. Depois, ao estender a mão, deixou que brotasse da ponta de seus dedos. Sua pele tornou-se cintilante, com traços
de luz, como se tivesse um milhar de estrelas na mão.
Caminhou na direção da parede do fundo da câmara, onde aquele emblema antigo fora entalhado em pedra, e passou a mão devagar sobre cada centímetro da superfície.
Finalmente, exclamou:
- Encontrei!
Um feixe de luz apareceu na pedra conforme ela deslizava a mão pela extensão da parede, a faiscar com o reflexo da cintilação que emanava de seus dedos.
- Está muito tênue - disse para Stephen. Então ergueu os olhos para ele. - Cassandra mandou o lobo de volta, mesmo com o portal quase fechado, com o poder que lhe
restava.
Um frio glacial instalou-se dentro de Stephen.
- Ela está morta?
- A morte não é a mesma para nós como é para os mortais comuns. - Vivian meneou a cabeça. - Cassandra não está morta. Mas também não está verdadeiramente viva.
- Mande-me pelo portal agora! - Stephen exclamou. - Antes que a essência desapareça e não exista meio de encontrá-la.
Vivian ia protestar. Dizer a ele do risco de uma jornada tão incerta, que poderia nem mesmo levá-lo até Cassandra, e tampouco assegurar que fosse possível a Stephen
voltar. Havia uma possibilidade muito maior de que ele não a encontrasse, mas que entrasse numa dimensão, um mundo dentro de um mundo, onde poderia se perder para
sempre. Então, seu olhar encontrou o do marido, que viera se postar a seu lado.
- Faça o que puder - ele lhe disse. - O destino é dele, para escolher.
Vivian pousou a mão contra o emblema de pedra e concentrou todos os seus poderes. Aquilo era muito diferente de entrar no mundo onde nascera e para onde Merlim fora
banido, coisa familiar como o ato de respirar, como entrar num aposento conhecido através das pedras. Porém o que fazia agora era buscar pelo desconhecido, abrir
um mundo e viajar, pelo tempo e espaço, para outro. Requeria enorme concentração e elementos de poder que ela jamais tivera.
A energia bruxuleava dentro de Vivian. Era difícil demais. Não conseguiria! No sofrimento da concentração, ouviu vozes familiares e amadas. Sua mãe e seu pai a buscá-la,
cada um do mundo que agora ocupavam, a juntar seus poderes aos dela. Então, sentiu o toque da mão forte. A mão poderosa. A mão de um guerreiro.
- Talvez possamos abrir juntos - disse Truan ao fechar a mão sobre a dela, na parede. O débil faiscar de luz de repente resplandeceu e se expandiu. Percorreu a extensão
inteira da parede e depois se abriu.
Stephen já estava ao lado do casal, com Fallon a segui-lo.
- Creio que existe muita coisa que não me contou - ele disse ao amigo que lutara tão bem em sua retaguarda na batalha da planície de Brodmir. Surpreendentemente
bem. Ou talvez não fosse tão surpreendente assim, depois do que acabara de ver.
- Eu lhe contarei quando você voltar - prometeu Truan -, pois não posso acompanhá-lo nesta jornada. Não é meu destino. O meu ainda está por vir.
Vivian postou-se ao lado deles, a olhar para o belo guerreiro, tentando mergulhar em seus pensamentos pelo meio antigo para que pudesse saber a verdade. Ele a fitou.
- Não brinque comigo, Vivian. Não pode ganhar.
Ela o encarou, irritada por não conseguir desvendar-lhe a mente.
- Não se aborreça, minha esposa - Rorke murmurou. - Pelo menos, deixe em paz um homem nesta terra que possa manter segredos de você. - Ao se aproximar de Stephen,
estendeu-lhe a espada que carregara na batalha contra o exército de Malagraine.
Era uma espada ornamentada, com uma empunhadura elegantemente entalhada e em cujo topo havia uma única pedra preciosa azul, reluzente. Excalibur.
- Eu a trouxe apenas para você - explicou. - Foi mandada por outra pessoa que lhe confia tanto a espada como a filha da própria filha.
- Trarei ambas de volta comigo.
- Lembre-se - Rorke avisou. - Nada é o que parece no mundo para onde vai. Não pode confiar naquilo que vê ou crê.
- Então, no que posso confiar?
- Apenas no que sentir.
- Eu me lembrarei. - Com a espada na mão, Stephen ajoelhou-se ao lado de Fallon. - Você precisa encontrá-la para mim. Deve ser meus olhos na escuridão.
Fallon saltou pelo portal. Stephen o seguiu, dando um Passo na direção da luz. Com a mão agarrada ao pêlo grosso da nuca do animal, iniciou a jornada.
Anteriormente, viajara pelo portal com Cassandra. Contudo, naquela ocasião, ela estava lá, a energia gentil de sua mão fechada na dele, a guiá-lo, a protegê-lo através
de um mundo de visão e sons onde era perigoso ser mortal.
Pareceu uma eternidade, mas provavelmente não tivesse passado de uma batida do coração quando Stephen sentiu a repentina aflição do lobo. Uma tensão de energia que
se transmitia pelo súbito e poderoso retesar de músculos sob sua mão. E então, percebeu que deixava a luz, lançado para fora com uma força que o fez dobrar-se de
dor.
A mão que segurava Fallon se soltou. Tudo que Stephen poderia fazer era agarrar-se à espada. O ar foi sugado de seus pulmões, a dor o percorreu, a dilacerá-lo, e
depois queimou em sua pele como se fosse arrancada do corpo. Então, estava livre do portal, entrando na fria escuridão, como se mergulhasse num lago escuro e gelado,
a superfície da luz a desaparecer acima, enquanto ele era levado cada vez mais para o fundo da negrura.
A princípio, não conseguiu ver nem sentir nada, além daquela friagem incrível. Depois, lentamente, sentiu o pêlo áspero sob a mão e ouviu um débil uivo. Não conseguia
enxergar. Não havia luz. Tentou mover-se e sentiu o deslocamento do peso de Fallon a seu lado. Então, viu uma faísca luminosa quando sua mão pousou na empunhadura
da espada.
Viu-a de novo quando moveu outra vez a espada, um reflexo de luz provindo da lâmina. Rolou para o lado e ficou de pé, e sentiu a presença sólida do lobo contra a
perna.
- Estamos aqui - Stephen murmurou.
Mas onde era? Estaria Cassandra ali também, ou teriam emergido de uma jornada incerta, em um mundo desconhecido?
Ergueu a espada à frente, na postura de um guerreiro. Novamente, captou aquele reflexo de luz. Era fixo, a assomar logo adiante, um ponto de luz que poderia ser
uma estrela ou uma porta distante que alguém abrira. Stephen deu um passo hesitante, porém não conseguiu determinar se tinha percorrido alguma distância.
- Maldita escuridão! Tira minha capacidade até de engatinhar como um bebê.
Pense!, disse a si mesmo. Devia haver um meio de sair desta escuridão que o asfixiava e o rodeava.
Por duas vezes antes, ele se confrontara com as Trevas. Conhecia suas ilusões e truques. Coisas que apareciam de um jeito e não eram. Recordou-se do aviso de Rorke
de que não poderia confiar no que visse. Só no que sentisse.
Nos impérios longínquos do Oriente, Stephen ouvira falar de homens que sentiam e viam com olhos fechados, sem tocar em nada. Seu amigo Tarek conhecia esses meios,
o desapegar-se do mundo conhecido, o modo de cerrar os sentidos nos quais normalmente se confiava, de modo a permitir que outros se abrissem. Seria muito diferente
de apreender a presença de um ser amado? Tornar-se parte de outro por intermédio de pensamentos e sentimentos compartilhados que pareciam fazer de você esse ser,
tanto que poderia sentir, partilhar sua dor, sua alegria, sua felicidade, sua paixão, sem tocar ou ver essa pessoa?
Deixou de procurar ver a luz e, em vez disso, fechou os olhos. Permitiu que seus outros sentidos se expandissem, buscassem, a imaginá-los ver por ele. E assim que
abandonou o mundo ao qual estava acostumado e se abriu para experimentar o que realmente existia a seu redor, Stephen tornou-se consciente de muitas coisas.
O frio contra sua pele, o ar que soprava em seu rosto, trazendo consigo o cheiro úmido de lugares escuros extraídos de sua infância. Então o ar assumiu um movimento
específico, como se algo passasse perto dele. Stephen virou-se instintivamente e sentiu o roçar do ar outra vez, sutil como o toque de uma pluma, a guiá-lo numa
nova direção.
Percebeu que subia, caminhando para o alto com firmeza, a mão no pêlo espesso de Fallon a seu lado. Então, seu ombro roçou contra algo duro e úmido. Sentiu o fio
de água nos dedos e depois ouviu o murmurejar de uma torrente. Seguiu o som, a avançar sempre subindo. E acima, aquela luz distante tornou-se mais próxima, como
se ele escalasse ou subisse através do interior de uma montanha.
O lobo subia atrás, usando as garras como apoio e depois saltando para o próximo ponto. Por fim, aquela luz não estava mais que a uma centena de metros adiante.
Stephen continuou subindo, a bainha da espada passada sobre o ombro, para ficar com as mãos livres a fim de se apoiar.
Parecia que aqueles últimos metros nunca terminariam; mas, enquanto prosseguia, dois pensamentos torturantes revolviam sua mente. O que encontraria quando chegasse
ao topo? Como Cassandra suportara aquela escalada, se realmente estivesse ali?
Finalmente chegou ao cume, aquela luz apenas a uma curta distância acima. Fallon saltou em frente.
- Espere!
Mas o lobo se fora. Stephen rastejou atrás dele. Mesmo com aquela luminosidade mínima, apertou os olhos diante da repentina claridade comparada à passagem escura
pela qual subira. Olhou ao redor e percebeu que se encontrava no topo de uma montanha. Imediatamente a reconheceu. Dias antes olhara na direção daquela mesma montanha,
com o exército de Malagraine a se espalhar pelas encostas.
Contudo, nas encostas que agora se espraiavam abaixo, não havia sinal de batalha. E Stephen percebeu que não haveria. Viajara para outro tempo através do portal,
um tempo em que a batalha não acontecera. Ou talvez tivesse acontecido fazia muito tempo.
Era um pensamento assustador.
Abaixo, na encosta, viu Fallon, a pelagem reluzente do lobo como um farol pálido acinzentado que pairava sobre a terra. Stephen rastejou pelas rochas e começou a
descer atrás dele.
Cruzou a planície de Brodmir, parando apenas para re-lancear os olhos pelo local onde tantos tinham morrido, o sangue a ensopar a terra. Depois, foi em frente, a
correr com o lobo, a rumar para onde o animal o conduzia, numa jornada que os levou de volta àquele pequeno vale.
O terreno pelo qual passava era desnudo e morto, bem mais que depois do degelo do inverno. Era um lugar no qual nada nunca vivera. Um espaço de morte, onde criaturas
sem rosto espreitavam nas sombras, aparecendo e depois desaparecendo.
A fome rosnava em seu estômago. Quantas horas tinham se passado? Stephen não poderia avaliar pelo céu, pois era daquele cinza incessante que nunca mudava.
Parou apenas o suficiente para pegar com a mão em concha a água de uma lagoa escura, e, em seguida, a cuspiu, pois recendia a morte e estagnação. Continuaram a caminhar.
O lobo se empenhou, de repente, numa corrida desabalada. Stephen foi obrigado a acompanhá-lo ou ficaria para trás. O animal parecia ter sentido alguma coisa, talvez
atraído por aquela essência de Cassandra que levara de volta pelo portal. Stephen rezou para que fosse. Mas não conseguia se livrar da sensação de que estavam sendo
conduzidos para alguma coisa.
Não encontraram inimigos nem criaturas das Trevas com corpos humanos e almas do Mal, como no campo de batalha. Nem dragão, nem diabo alado para furar seus olhos.
Finalmente, alcançaram o vale. A distância, ele viu as torres pontiagudas do castelo e a faixa escura de água que rodeava a fortaleza.
Camelot.
Fora lá que Cassandra pisara ao passar pelo portal. E também o lugar onde fora procurar o Oráculo. Camelot que haviam partilhado, e aquele que existira quinhentos
anos antes.
Stephen atravessou correndo o campo nu, tão seco e en-regelado que nem um tufo de grama crescia ali. Olhou para as torres de vigia e sentiu alívio diante da visão
dos guardas. Os portões se abriram e Fallon saltou adiante.
Dentro dos portões, a aldeia estava como ele se lembrava. Cabanas e choças enfileiradas pela rua. O martelo de um ferreiro ecoava. Uma carroça passou. Ali perto,
uma mulher jogava comida para as galinhas que bicavam o chão do pátio externo. Através do pátio, viu cavalos amarrados e estandartes de guerreiros.
Reconheceu-os tão bem quanto as vozes de seus homens que vinham da armaria. Atravessou o espaço em grandes passadas, à procura do portão para o pátio interno. Fallon
corria adiante.
Com a esperança crescendo em seu coração, Stephen abriu o portão. A luz brilhava no vidro cor de âmbar na janela no alto do salão principal.
Seria possível que Cassandra tivesse voltado, afinal? E, ao segui-la na jornada, ele também tivesse retornado? Se é que havia realmente partido...
As portas do grande salão estavam abertas. Fallon passou correndo por elas e desapareceu, sem dúvida à procura de Cassandra. O fogo queimava na lareira. Havia comida
sendo preparada para a refeição da noite. Stephen viu os homens sentando-se, como vira incontáveis vezes, inclusive Gavin. Atravessou o salão em passos rápidos.
- Gavin! É você!
Gavin o encarou de modo estranho.
- Claro que sou eu. Quem mais poderia ser? Stephen meneou a cabeça.
- Pensei que talvez... - Seu olhar voltou-se para os
degraus que levavam para os quartos do segundo andar. - Lady Cassandra?
Gavin fez um gesto de cabeça.
- Está salva e em segurança. Voltou faz pouco tempo. O alívio perpassou Stephen.
- E os outros?
- Todos estão a salvo e bem. Junte-se a nós num jogo de tabuleiro, e depois vamos jantar.
Stephen olhou para além do amigo, para assegurar-se de que as coisas realmente estavam bem. Tudo estava como sempre fora. O único que não viu foi Truan. Pareceu
estranho que seus amigos se divertissem com jogos e Truan não estivesse envolvido nisso. Então, o fato foi esquecido. Ele meneou a cabeça, o olhar atraído outra
vez para os degraus.
- Talvez mais tarde.
Gavin riu e piscou com um ar de cumplicidade.
- Sua senhora está muito ansiosa para vê-lo.
- Então, você pode compreender minha preferência pela companhia dela à sua.
O amigo concordou.
- Devemos esperá-lo para a refeição? Ou vai jantar outra coisa?
Stephen ignorou a piada grosseira.
- Mais tarde, meu amigo.
Virou-se e subiu os degraus, três de cada vez. Passou por uma criada no corredor do lado de fora de seus aposentos. A moça se afastou depressa quando ele puxou o
ferrolho e entrou no quarto.
Um fogo queimava baixo no braseiro, a envolver o recinto em suaves sombras. Uma bandeja de comida encontrava-se sobre a mesa, como se Cassandra tivesse adivinhado
seu retorno. O vinho luzia numa taça. Uma fragrância suave o envolveu, um perfume adocicado de lavanda e sândalo quando ela se espreguiçou na cama onde estivera
descansando.
- Milorde?
Uma onda de alívio derramou-se por Stephen ao som daquela voz, a relembrá-lo daquela última manhã, quando saíra dali, o gosto e a sensação de Cassandra a pulsar
forte em seus sentidos, de tal maneira que ele queria que fosse essa sua última lembrança. Suave e envolvente.
Observou quando ela se levantou da cama, banhada nas sombras, a luz do fogo a faiscar brevemente no cetim negro de seus cabelos. Cassandra não se aproximou, mas
esperou até que Stephen fosse até ela.
- Estive à sua espera - disse, quando ele se aproximou e a puxou para seus braços.
Seu corpo era macio e quente, e estava gloriosamente nu sob as mãos ansiosas de Stephen. Ela o abraçou pelo pescoço, a puxá-lo para mais perto, até que os seios
fartos se comprimiram contra o peito forte, e o ventre, muito mais crescido, se apertava contra as coxas do guerreiro. Ele deslizou as mãos pelos quadris sedosos,
mais largos agora, e ela gemeu baixinho, a lhe buscar os lábios.
Uma suavidade incrível e um calor inacreditável o seduziam. Na umidade ansiosa daquela boca a se colar à dele, na carne intumescida dos seios, cortados de veias,
os mamilos escuros se destacavam. As unhas de Cassandra arranharam os ombros de Stephen ao lhe abrir a túnica e comprimir a boca contra a curva do músculo duro do
peito. Então, ela deslizou as mãos para o cinto, a cabeça jogada para trás, para soltar os laços da calça. Ele puxou-a contra o peito.
- A criança? - perguntou, com voz ríspida, preocupado com ela e com o bebê, com medo de que o ato de amor pudesse fazer mal a um dos dois. Mas Cassandra pareceu
não ouvir, ao lutar com os cordões da calça. - Cassandra - Stephen murmurou. - Podemos esperar.
- Não! Tem de ser agora.
- Não quero machucá-la.
- Não machucará.
- Mas a criança cresceu muito.
- Não! - ela insistiu, ajoelhando-se diante dele. - Preciso ter você - Cassandra murmurou, desesperada. - Precisa me amar. - Havia uma entonação naquela voz que
o surpreendeu.
Stephen tentou acalmá-la.
- Eu a amo mais que a própria vida.
Algo estava errado. Ele nunca a vira assim antes. Nem mesmo naquela última manhã, quando se separaram sem saber se veriam um ao outro novamente. Sempre houvera uma
força tranqüila dentro dela.
O medo cravou as garras dentro de Stephen. Havia algo que Cassandra não estava lhe contando. Tinha medo por ela e pelo filho não nascido, e esse medo sobrepujava
qualquer desejo de fazer amor. Segurou-a gentilmente pelos pulsos e afastou-a.
- O que é? Aconteceu alguma coisa? É o bebê? - Tentou levantá-la do chão, mas ela livrou-se com um safanão. - Cassie! Precisa me dizer.
Ela estremecera quando ele a afastara, o rosto escondido pelos cabelos. Então, pareceu chorar. Baixinho a princípio, depois aos soluços.
- Cassie, pelo amor de Deus! O que foi?
Ela ergueu a cabeça de repente. Tentou livrar-se das mãos de Stephen. Quando não conseguiu, começou a rir. Loucamente. A cabeça caiu para trás e os cabelos se afastaram
dos lados das faces, não mais a lhe esconder as feições.
Os olhos que ele fitava não eram os olhos de um violeta profundo de Cassandra. A boca que se escancarava em gargalhadas loucas não era a boca macia de Cassandra.
As feições naquela horrível face distorcida não eram as dela.
Quando Stephen tentou empurrar a criatura para longe, ela se agarrou a ele e voltou-se na direção da luz do fogo no braseiro. Uma criatura que não era nem humana
nem viva, mas que um dia fora assim. Lady Margeaux.
Não como fora, mas como estava, na morte. Stephen sabia que ela estava morta. Meg contara aquilo que Cassie e Truan tinham encontrado na floresta. O corpo mutilado
de Margeaux, a criança arrancada de dentro dela. Em outro tempo e lugar. Não naquele tempo e lugar.
A ilusão fora perfeita. Mas, ao olhar para ela, sua forma mudou e alterou-se. Não tinha mais uma criança no ventre, nem era a figura esguia e delicadamente curvada.
Agora, possuía seios planos e ventre fundo, os cabelos emaranhados e mais claros. Mortos, sem vida. Tão mortos e sem vida quanto ela.
Tudo fora uma ilusão. Isso explicava por que Stephen não encontrara Fallon ali. O lobo não fora enganado.
- Você não pode tê-la - a criatura murmurou, num frenesi agora, suas feições como uma máscara mortuária. Então, começou a rir, um som horrível, diabólico, que parecia
estrangulado na garganta. Nada nela tinha semelhança com lady Margeaux, que negociara a alma para as Trevas e perdera tudo. - Cassandra está perdida para você. Ela
e a criança.
O movimento repentino da criatura foi parecido com o de um animal, rápido e ligeiro ao pegar a faca da mesa e avançar contra Stephen.
Aquela coisa perversa era inacreditavelmente forte, os braços vigorosos a se livrarem das mãos de Stephen quando ele se desviou do golpe e tentou lhe tomar a faca.
Ela investiu contra ele outra vez, e atingiu-o no antebraço. Stephen deu um passo para o lado, virou-se, pegou a espada que deixara de lado ao se descuidar, quando
acreditara na ilusão.
Tentou repelir a criatura com um golpe, porém ela continuou a acossá-lo, como um cachorro louco, a insanidade nos olhos. Atacou outra vez, guinchando horrivelmente
quando falhou em acertá-lo com a faca. Então, avançou de novo. Stephen a empurrou para trás, ainda aturdido pela ilusão diante de si e pelas imagens daquilo que
ela fora.
A criatura saltou sobre suas costas, as presas a se enterrarem fundo em seus ombros. Todos os traços de Margeaux haviam desaparecido. Ela nunca estivera ali. Ao
lutar para se equilibrar, Stephen livrou-se da besta. Com um torcer do pulso, girou a espada e agarrou a empunhadura com ambas as mãos, a lâmina angulada para trás,
junto à lateral de seu corpo. Quando a criatura avançou outra vez, atacan-do-o pelas costas, ele empurrou a ponta da lâmina, transpassando o ar.
Stephen caiu de joelhos, arquejando para respirar. O sangue corria pelos lados de sua cabeça, misturado ao suor que lhe ardia nos olhos. Limpou-o, colocou-se em
pé, e, num único movimento, arrancou a espada da criatura. Postou-se a uma distância segura, caso aquela coisa não estivesse ainda morta.
A dor se espalhava por seu ombro, no ponto em que a besta o ferira. Ele limpou o sangue e o suor da face e encarou a criatura. Não se mexia. Cutucou-a com a ponta
da bota, com a espada Excalibur erguida sobre a cabeça, pronto para desferir um golpe mortal, se aquele ser maligno ainda não estivesse liquidado.
A coisa não se moveu. Quando a virou com a bota, ela o encarou com olhos sem vida, encolhidos dentro da cabeça. Era algo que não era humano nem animal.
Stephen limpou o rosto e os ombros com água. A experiência que vivenciara lhe parecera extremamente real. Então, pegou a túnica, colocou-a sobre o ombro e saiu do
quarto.
A primeira coisa que percebeu foi que as chamas das lamparinas quase morriam, bruxuleando debilmente, como se um grande período de tempo tivesse se passado. Com
ambas as mãos agarradas na espada, desceu lentamente as escadas.
O local estava mudado. Tudo mudara. Nenhum fogo queimava na lareira. Nenhuma tocha luzia. Não viu ninguém. Nem Gavin, nem qualquer de seus homens. Nem a criada que
vira anteriormente. A despeito do suor que lhe ensopava a túnica, um arrepio gelado o percorreu, espinha abaixo. Fora tudo uma ilusão.
Recuou lentamente pela passagem que ligava o salão principal aos outros aposentos, e chegou finalmente ao corredor que conduzia à câmara estrelada. Lá, encontrou
Fallon, parado à porta, as orelhas empinadas para a frente, a uivar baixinho.
Nada é o que parece.
Stephen pousou a mão no enorme ferrolho e lentamente empurrou as portas da câmara estrelada para abri-las.
Igual ao resto de Camelot, parecia exatamente como deveria ser, uma ilusão perfeita, exata, conforme Stephen avançava pelas sombras acinzentadas. Então Fallon lançou-se
adiante dele. Stephen voltou-se com cautela, segurando Excalibur à frente, conforme passava pela grande mesa redonda. Então, ao se virar outra vez, viu o que atraíra
o lobo.
Na parede dos fundos da câmara, em frente ao emblema real, onde Cassandra abrira o portal e viajara de volta no tempo, havia um enorme cristal.
Estava pelo menos a quatro metros de altura, uma esfera de cristal de não menos que quatro metros de diâmetro. Parecia
suspensa no ar e cintilava conforme girava lentamente, como se movida por alguma invisível corrente de ar.
As facetas do cristal refletiram a luz da lâmina da espada quando Stephen se aproximou devagar. A respiração de Stephen se condensava no ar de repente frígido como
no inverno. Ele estendeu a mão, hesitante, imaginando o que encontraria. Outra ilusão? Quando, porém, tocou a esfera de cristal, descobriu que não era cristal afinal,
era gelo!
Então, a esfera girou, cintilando e refletindo a débil luz acinzentada que raiava pela câmara. E, a um giro da esfera gelada, Stephen descobriu algo dentro dela.
Como uma bela e delicada criatura pega no fluxo líquido de âmbar quando uma árvore expele sua seiva, havia ali uma imagem congelada no tempo. Congelada dentro do
coração do cristal.
A curva perfeita das faces, o ângulo teimoso do queixo, os espessos cílios escuros que pousavam sobre as maçãs do rosto, o cetim da cor da meia-noite dos cabelos
a cair pelos ombros, um braço esguio cruzado no ventre, avolumado pela criança que carregava dentro, como se para protegê-la, o outro braço curvado sobre o coração.
E, agarrado com firmeza na mão, estava o mítico Oráculo. Um cristal muito menor, que cabia na palma de sua mão, suspenso numa esfera dourada.
O lobo uivou baixinho ao se deitar na base de cristal.
Stephen a encontrara. Ali estava Cassandra.
Capítulo X

Ele chegara tarde demais para salvá-la. Linda, delicada, perfeita, ali estava, para sempre congelada no tempo, um braço apertado no lugar onde o filho jazia, dentro
dela, o outro a segurar o Oráculo pelo qual arriscara a vida para encontrar.
Cassandra o encontrara. Porém tarde demais. E, depois, não conseguira retornar. Mas mandara o lobo de volta.
O animal pareceu sentir a agonia de Stephen e aproximou-se, a esfregar o focinho em sua perna. Ele ajoelhou-se ao lado do lobo e enterrou as mãos na pelagem grossa
e áspera que era a última coisa que Cassandra tocara, deixando um pouco de sua essência no pêlo de Fallon. Talvez na esperança de que ele pudesse chegar até ela.
Tarde demais!
Então, Stephen afundou a face no pêlo, a verter a agonia e o sofrimento, esbravejando contra sua débil força mortal que não fora páreo para as Trevas. Que, agora,
tinham se apossado de Cassandra. E do Oráculo, que haviam encerrado na tumba de gelo com ela. Para sempre.
Comprimiu a cabeça contra a parede de gelo que a encarcerava, a gritar sua raiva na escuridão, pressionando cada vez mais mesmo quando sua pele se tornou entorpecida.
Se pelo menos pudesse tocá-la. Se pelo menos pudesse abraçá-la. Se pelo menos pudesse olhar novamente para aqueles doces olhos violeta que faiscavam de amor e com
a força do poder dentro dela...
- Deve haver um meio.
Porém, ao procurar, não viu nenhum modo de libertá-la. Então, a tristeza transformou-se mais uma vez em raiva. E Stephen agarrou a espada com força com ambas as
mãos e começou a escavar a parede congelada. Com estocadas e golpes, lascas de gelo a voar pelo ar e a acertar-lhe o rosto; os pequenos fragmentos começaram a derreter
e a água a escorrer como lágrimas pelas faces de Stephen.
Enxugou o rosto. Recusava-se a deixar que as Trevas a encerrassem ali, para sempre suspensa no tempo, nem morta nem viva. Ao erguer a espada para outro golpe, uma
luz refletiu-se na lâmina. Luz, num recinto escuro.
Stephen virou-se, a imaginar que novo truque era aquele. Mas não havia nada, a não ser sombras. Girou a espada ao redor e viu de novo um reflexo que luzia na lâmina,
deslizava pelo aço conforme Stephen se afastava e depois retornava conforme ele voltava. A luz vinha de dentro do cristal de gelo, do próprio âmago da pedra presa
na mão de Cassandra. Do Oráculo.
Pulsava, um minúsculo e frágil raio de luz, como um coração a bater.
Seu poder unido ao do Oráculo. O poder era mais forte nela.
Não morta, mas viva. Cassandra estava viva dentro do cristal de gelo. Ele sabia disso. Se pelo menos pudesse alcançá-la. Libertá-la e retornar com ela ao mundo mortal.
Ergueu a espada outra vez, e lentamente a abaixou. Se arrebentasse o gelo, poderia matá-la.
Tinha de haver um jeito...
Precisava pensar, lembrar o que acontecera das outras vezes, naqueles outros encontros com as Trevas. Truques e ilusões. Stephen não poderia cortar o gelo e se arriscar
a feri-la. Passou a mão pelo rosto ainda molhado. Era isso! Poderia ser derretido.
Empunhou a espada e voltou para o lugar exato onde estava quando a luz do Oráculo se refletira na lâmina de Excalibur. Inclinou a espada exatamente na mesma posição.
A luz do Oráculo reluziu com um brilho forte e esbranqui-çado na lâmina e depois se refletiu na superfície gelada.
Stephen inclinou ligeiramente a espada, e o brilho se intensificou. Mudou o ângulo, e o reflexo tornou-se como um feixe concentrado de luz que partia da lâmina.
Ficou mais brilhante, a faiscar quase num branco azulado. Gotas de água começaram a se formar na superfície do gelo, e a escorrer lentamente, como lágrimas antigas.
A luz dentro do Oráculo amplificou-se, crescendo mais vibrante, mais intensa, a arrancar um facho de luz abrasador da lâmina de Excalibur. A forma do cristal começou
a mudar conforme se derretia, a água a brotar dele como o último degelo de inverno antes do calor abençoado da primavera.
Renovação, renascimento, a vida em si a renascer, conforme Cassandra emergia da prisão gelada. Uma madeixa sedosa de cabelo, a extensão da perna, a curva do ombro.
Então as feições, quando o gelo se derreteu, a curva pálida das faces, a boca carnuda. A curva do braço, um seio redondo, a barra do vestido.
Uma das mãos delicadas foi exposta, o gelo a escorrer pela curva do braço, pelo pescoço e pelos cabelos. O Oráculo emergiu, a luz dentro dele a pulsar mais brilhante
como um coração que despertasse. Gotas pingavam das pálpebras, da face, da garganta. Os dedos fechados em torno do Oráculo se moveram. A curva dos seios arfou, subindo
e descendo numa respiração profunda. Debilmente a princípio, e depois, como se tivesse ficado submersa por muito tempo e de repente irrompesse à superfície. Seus
olhos se abriram, palpitantes, e Cassandra arquejou. Um grito de dor abafado saiu de sua garganta ao retornar ao mundo dos viventes.
Sua outra mão vacilou e depois se apertou, num gesto protetor, sobre a criança. Mesmo naquele momento, naquele lugar entre viver e morrer, seu primeiro pensamento
fora para a criança. O cristal de gelo continuou a derreter, pedaços maiores a desabar, até que ela se libertou do que restava de sua prisão gelada.
Stephen a pegou e deitou-a no chão da câmara estrelada. Cassandra estava pálida como morta, a pele enregelada, a mão ligeiramente mais quente onde ainda agarrava
o Oráculo. Tremia a cada dolorosa respiração, a puxar o ar de volta aos pulmões congelados, os cabelos molhados grudados nos ombros.
Stephen arrancou sua túnica e enrolou-a em Cassandra. Ao aninhá-la contra o peito, esfregou-lhe as mãos e braços, depois os ombros e as pernas, insuflando vida dentro
dela a cada toque das mãos, que forçavam o sangue a lhe correr nas veias e a cor a voltar à carne.
Cassandra parecia inalterada, as curvas delicadas sob o vestido tão familiares como se ele a tivesse tocado no dia anterior. Então, a mão de Stephen acariciou-lhe
o ventre. A curva da cintura sumira, a ligeira protuberância agora era cheia e tensa, a se avolumar até os seios.
Quanto tempo havia se passado? Parecia que fazia apenas dias desde que ele saíra com seus homens para enfrentar Malagraine. Contudo o volume da criança dentro de
Cassandra falava da passagem de semanas, meses e estações, naquele lugar onde o tempo movia-se fora de seu ritmo.
Então, a criança se mexeu, um espreguiçar lento como o de acordar. Seu filho... vivo dentro dela.
Cassandra estendeu a mão e roçou a face de Stephen. Ele a tomou entre as suas e beijou-lhe a ponta dos dedos, ainda frios em seus lábios. Contudo, mesmo com a letargia
do longo sono, Cassandra foi tomada de uma nova urgência.
- Precisamos deixar este lugar - murmurou.
- Pode ficar de pé?
Ela concordou e cerrou a mandíbula quando se sentou, devagar. Depois, caiu de costas de novo. Custara toda a sua energia sustentar a própria vida e a do filho. Força
supra-humana que os poderes das Trevas não tinham conseguido nem matar nem derrotar. E, portanto, incapazes de destruí-la, A tinham aprisionado. Tal como Merlim
fora feito prisioneiro.
Ao segurá-la contra o peito, Stephen enfiou a espada na bainha, às costas. Depois, guiou-lhe o braço em torno de seu pescoço.
- Segure-se em mim - murmurou contra os cabelos molhados, ao erguê-la nos braços e virar-se para o portal.
- Não! - Cassandra exclamou, num tom débil. - O poder das Trevas é muito forte aqui. E o meu não está forte o suficiente para permitir a jornada. Se abrirmos o portal
novamente e falharmos, podemos deixar uma trilha aberta para nosso próprio mundo através da qual as Trevas seguirão.
- Então encontraremos outro jeito - retrucou Stephen, ao chamar por Fallon, que seguiu seus passos conforme a carregava da câmara estrelada.
Stephen levou-a pelos corredores escuros de Camelot, uma Camelot que nunca houvera, e através do pátio. Fallon corria à frente. Cruzaram o pátio principal. Quando
ele passara por ali, pouco tempo antes, a aldeia parecia viva.
Agora, o local estava vazio, as construções a esboroar em pó. Os portões estavam escancarados. Nenhum guarda se postava na torre. Nenhuma luz brilhava ao longo das
muralhas. Nenhuma conversa ou risada chegava até eles. Apenas aquele estranho silêncio premonitório. De algo a esperar e espreitar.
O céu era de chumbo. Poderia se tratar daqueles poucos e derradeiros momentos antes da alvorada, ou o último antes do cair da noite. Aquele palio acinzentado pairava
sobre tudo.
Ao chegarem aos estábulos, Stephen colocou Cassandra gentilmente de pé.
Estavam vazios. Sem um cavalo, não havia esperança de chegar às montanhas. Voltou-se para Cassandra, imaginando se a libertara do sono congelado por seu próprio
egoísmo apenas para perdê-la agora. Pois ela não conseguia viajar a pé a distância que ele percorrera.
Ali, no pátio, com a maldade das Trevas a se fechar em torno deles, Cassandra ajoelhou-se ao lado do lobo branco e pousou a cabeça contra a espádua de Fallon. Os
olhos sábios da criatura faiscaram. Os pensamentos de Cassandra conectaram-se com os do animal, naquele vínculo que era antigo e familiar entre os dois, enquanto
o poder da Luz movia-se dentro dela, lentamente a princípio, depois de forma dolorosa quando ela acariciou aquela espádua forte.
Onde o lobo estivera, havia agora um cavalo branco. Stephen se aproximou e o animal sacudiu a crina. Os olhos prateados luziram.
- Precisamos ir agora.
Stephen montou no cavalo e, em seguida, ergueu Cassandra e colocou-a diante de si. Um pedaço de corda servia de rédea e freio. Saíram a galope.
A viagem foi longa e extenuante. Pareceu estender-se por horas, talvez dias. Era impossível saber. Cassandra seguia em silêncio, enrolada na túnica de Stephen, o
Oráculo preso com força na mão.
Pararam brevemente para descansar à beira do rio onde Stephen havia passado antes, porém ele não se atreveu a deixar o cavalo beber da água negra. Depois, prosseguiram,
subindo as colinas, rumo a uma montanha distante que Stephen nem mesmo tinha certeza de poder encontrar novamente sem o lobo para guiá-los.
Sentiu o momento em que o cavalo perdeu as forças, contudo impeliu-o adiante.
- Pare! - Cassandra gritou. - Precisa parar. Você o está matando.
Stephen desmontou e conduziu o cavalo pela rédea, quando o animal não poderia mais suportar o peso de ambos. Até que ouviu a criatura gemer dolorosamente. O cavalo
tropeçou, arrancando-lhe a rédea das mãos, conforme as longas pernas se dobravam e ele caía, lançando Cassandra a rolar para o chão.
Ela se ergueu de joelhos e rastejou até o animal. Seus grandes flancos arfavam. Uma espuma ensangüentada apareceu em sua boca. Cassandra ergueu aquela cabeça sólida
e aninhou-a nos braços.
Chorava baixinho quando Stephen a alcançou, a criatura transformada, o lobo a jazer com a cabeça no colo de Cassandra. Olhos brilhantes de lágrimas se ergueram para
ele.
- Não há nada que você possa fazer - Stephen disse a ela, suavemente. - Precisamos ir.
Cassandra concordou, afagou a cabeça branca com ternura e, depois, levantou-se devagar. Quando começaram a última e longa escalada através das rochas, Cassandra
olhou para trás. O pêlo branco prateado do lobo reluzia. Então, a bruma lentamente começou a se erguer, a rodeá-lo, a encobri-lo até que ele desapareceu por completo.
Continuaram a escalar as pedras, como as estruturas pontiagudas das torres de um castelo.
- É aqui - disse Cassandra.
Movia-se com certeza pelas pedras que somente Stephen vira antes e não sabia se poderia voltar a encontrar. Então, ele percebeu o brilho do resíduo nas rochas quando
Cassandra passou a mão sobre elas: a essência do trajeto anterior por aquele lugar. Encontraram a abertura e começaram a descer pela passagem. Conforme se tornava
mais escuro lá dentro, a luz do Oráculo brilhava mais forte a guiá-los.
Cassandra conteve a respiração quando a dor perpassou-a novamente, dessa vez sem avisar. Atingiu-a como um soco, arrancando-lhe o ar dos pulmões, num arquejo de
susto.
Stephen imediatamente a abraçou.
- Não é nada - ela mentiu, cerrando os dentes com teimosia. - Precisamos continuar. - Porém, mesmo enquanto desafiava a dor, ela voltava, a lhe retesar a barriga,
a torcê-la por dentro, até que Cassandra gritou. O braço de Stephen a rodeou, com uma energia poderosa e feroz em que se apoiar enquanto a dor a percorria.
Cassandra voltou os pensamentos para o íntimo, na direção da criança, comunicando-se com ela no ritmo das batidas do coração e do sangue vital que fluía entre ambos.
Ainda não. Não neste sombrio lugar perdido.
Com a mão pousada no ventre de Cassandra, Stephen sentiu o súbito retesar dos músculos delicados, e o poderoso ímpeto da criança que se movia dentro dela.
Ergueu-a nos braços. À frente, um feixe de luz cintilava. Ele se concentrou naquele foco luminoso, a caminhar com firmeza naquela direção, para longe da escuridão
que tentava se apossar de Cassandra.
O Oráculo tornou-se mais brilhante na mão dela, a expandir a luminosidade rumo àquela luz distante, conectan-do-se com ela, reluzindo em torno deles.
Então, com a luz a circundá-los, avançaram, entre cores brilhantes e imagens a passar, em borrões, enquanto Stephen segurava Cassandra com força contra o peito,
a procurar o outro lado, rezando para que o mundo que os esperava um passo à frente fosse o mesmo mundo que haviam deixado para trás.
As lamparinas de óleo de pinho queimavam em torno do quarto, o odor pungente a penetrar o ar. O fogo luzia no braseiro, criando halos de luz dourada pelas pálidas
paredes de arenito e sobre a jovem que jazia sobre a cama de peles.
O suor formava gotas pela testa de Cassandra, o cetim cor da meia-noite de seus cabelos a se grudar nas faces. Um macio lençol de lã cobria seus seios e o ventre
dilatado, a borda erguida sobre os joelhos dobrados.
Quando outra contração dolorosa a dominou, seu corpo torceu-se em espasmos. Ela jogou a cabeça para trás, os braços esticados, os nós dos dedos brancos conforme
se agarrava à haste de madeira forte que fora amarrada às traves da cama.
A dor cedeu e outra começou em seguida. Quando Cassandra procurou apoio na barra de madeira, as mãos fortes de Stephen se fecharam sobre as dela.
Ele se enfiara na cama, ao lado de Cassandra, os braços a lhe rodear os ombros. Segurou-a conforme a dor a invadia e depois chegava a um clímax, até que ela jazia
esgotada, a cabeça caída contra o peito de Stephen.
Uma nova pontada começou, quase imediatamente, e Cassandra mal pudera reunir energia para enfrentá-la. Quando lady Vivian trouxe um pano úmido, Stephen pegou-o.
Com uma ternura imensa, passou-o pela testa de Cassandra e pelo pescoço, pelos seios e pela extensão dos braços. Depois, sentiu que ela continha a respiração, e
uma nova contração já a fazia gemer e se contorcer.
Stephen segurou-a com força, sentindo o pico da dor e as contorções dentro de Cassandra, conforme ela lutava para dar à luz o filho que haviam gerado. Outro espasmo,
e lady Vivian empurrou o lençol, expondo as pernas dobradas de Cassandra.
- Não há nada que você possa fazer para lhe aliviar a dor? - ele perguntou, atormentado.
- Se eu lhe tirasse a dor - Vivian explicou -, Cassandra não saberia quando empurrar. Tenha fé, ela é forte.
Porém nos olhos angustiados de Stephen, Vivian viu o amor profundo e intenso que ele sentia por sua irmã, e foi invadida por uma onda de piedade. Era tão difícil
para os homens... Pensou no próprio marido quando o filho nascera, um bravo guerreiro reduzido a lágrimas enquanto jurava que nunca permitiria que ela engravidasse,
pois não poderia suportar tamanho sofrimento. Contudo, naquele mesmo momento, uma nova vida se remexia dentro de Vivian. Precisava lembrar-se de contar isso a ele.
- Será em breve - ela disse, os claros olhos azuis a observar o jovem guerreiro que aninhava sua irmã no peito. Queria dar a ele a oportunidade de sair, se quisesse.
Um tumulto de emoções desfilou pelas feições de Stephen, nenhuma de medo. Mas não hesitou na decisão.
- Ficarei.
Quando a próxima contração chegou, Cassandra agarrou-se à sua mão, retesando-se, tentando empurrar a criança para fora. Uma nova dor se sucedeu, e mais outra, os
músculos a se contraírem em cãibras e espasmos. Ela gritou, puxando golfadas de ar para os pulmões, enquanto outra contração acontecia.
O pano foi empurrado para trás. Cassandra jazia nua sobre a cama, os joelhos dobrados, o corpo tenso. Um grito irrompeu de seus lábios, seguido por um arquejo assustado
quando ela arqueou as costas e ofegou. Por sobre a tensa forma roliça do ventre, Stephen viu uma pequena cabeça emergir.
O corpo de Cassandra convulsionou-se em outro violento espasmo e ela se agarrou às mãos de Stephen. E, conforme ele observava, ambos apavorados e tomados de humildade,
um pequeno ombro apareceu. Um empurrão a mais e o filho tão esperado escorregava para o mundo.
Era pequeno e perfeito, a chorar a plenos pulmões quando Vivian o limpou e depois o envolveu num lençol. Ela rodeou a cama e estendeu o bebê a Cassandra.
Stephen fitou com admiração a pequena vida nova que jazia contra os seios de Cassandra. Um tufo de cabelos escuros se grudava à cabeça do bebê, os olhos azuis se
apertavam, o queixinho teimoso tremia enquanto a boca se abria e se fechava.
Cassandra levou-o ao seio, uma criança que era tanto mortal como imortal, com a sabedoria das eras a fluir por suas veias, um legado de amor e poder.
Stephen afagou com ternura a mãozinha do filho. Os dedinhos se abriram e depois se fecharam sobre os seus, a se apossarem de seu coração. E ele olhou, deslumbrado,
para aquela frágil vida nova que era parte de ambos, e parte de um legado que entrelaçara suas vidas, juntando-as nas tramas de uma tapeçaria.
- O que vê? - Cassandra perguntou.
Com a boca a buscar a dela, com dolorosa ternura, Stephen respondeu:
- O futuro.

 

 

                                                   Quin Taylor Evans         

 

 

 

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