Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
FILHA DA TEMPESTADE
O MAR chorava. Era um mar cinzento a que um vento súbito dera vida; um mar agitado desencontradamente, salpicado de branco. Nestas condições, os pescadores diziam que o mar chorava e garantiam que era um prenúncio de catástrofe.
‑ Isto não vai durar ‑ disse a minha mulher, Joanna, falando da ira súbita do mar.
Estávamos os dois no cais do nosso estaleiro olhando para as nuvens negras que subiam o canal da Mancha. Era Sexta‑Feira Santa, ao fim da tarde, mas, pela temperatura do ar, mais parecia Novembro, e o mar cinzento e agitado parecia o de Janeiro. O vento atraira os praticantes de windsurf, claro, e as suas velas de cores vivas deslizavam no mar sombrio, ressaltando perigosamente na rebentação da barra do estuário.
‑ Não vai durar ‑ insistiu Joanna, como se pudesse atrair o bom tempo da Páscoa com a força da sua convicção.
‑ O pior ainda está para vir ‑ comentei eu com pessimismo.
‑ Está bem, não podemos largar hoje, mas de certeza que podemos sair amanhã de madrugada ‑ concluiu ela mais realisticamente.
Fora nossa intenção fazer uma passagem nocturna até à ilha de Guernsey, onde morava a irmã de Joanna e onde a familia dela costumava reunir‑se, depois da missa, para o almoço pascal de cabrito assado e batatinhas novas. Esta reunião de familia na Páscoa era já uma tradição, e Joanna e eu encarávamo‑la com um prazer muito especial, agora que tínhamos recuperado das tragédias da morte do nosso filho e do desaparecimento da nossa filha. O tempo talvez não tivesse sarado completamente essas duas feridas gémeas, mas pelo menos tinha‑as coberto de várias camadas de tecido cicatricial. Em suma, a vida voltava ao normal, e com a normalidade voltavam todos os pequenos problemas quotidianos.
Para já, o nosso maior problema era um yawl de quatro toneladas e meia que estava pronto para ser lançado à água quando o condutor da grua o abalroou com a lança da máquina. Os estragos eram superficiais, mas o proprietário vinha ao estaleiro no dia seguinte, à hora do almoço, e contava encontrar o seu barco na água, aparelhado e pronto para largar. Billy, o nosso capataz, recém‑casado, oferecera‑se para ficar e reparar os estragos, mas ele já me ia substituir no fim‑de‑semana da Páscoa, por isso mandei‑o para casa, para junto da mulher, e reboquei eu próprio o grande yawl até ao barracão. Enquanto raspava a zona danificada à luz dos holofotes, eu ia planeando a viagem do dia seguinte. Se as previsões meteorológicas estivessem certas e este temporal súbito acalmasse, podíamos sair do rio ao romper do dia e chegar a Guernsey à hora do jantar.
Pelo cair da noite, parecia improvável que o tempo melhorasse até de madrugada. O vento uivava com tanta força que alguns dos sócios do Clube Naval nos pediram a lancha emprestada para irem buscar uma fila de barcos à vela do clube às amarrações, situadas a meio rio, e os trazerem para o abrigo dos nossos pontões. Joanna ajudou‑os, depois passou duas horas a pôr em dia a contabilidade do estaleiro antes de se aventurar a sair à rua para comprar duas doses de bacalhau com batatas fritas na rua principal da terra. Enquanto ela estava fora, telefonou Harry Carstairs.
Carstairs era um vendedor de iates que trabalhava num gabinete com ar condicionado em Londres, no bairro chique de Mayfair. Os clientes dele não eram os velejadores modestos que me davam a ganhar o pão de cada dia, mas sim os super‑ricos, que podiam dar‑se ao luxo de manter um lugar permanente na marina de Monte Carlo. O movimento do nosso estaleiro não estava à altura dos negócios de alto coturno de Carstairs, mas nesse ano Joanna e eu, por acaso, tínhamos à venda um grande sloop de casco de aço. O Stornchild, cotado em 150000 libras, estava no topo da gama do nosso stock, mas mal atingia a gama inferior dos barcos que Harry vendia.
‑ Tenho um cliente em perspectiva para o "monstro" ‑ disse‑me ele com a sua pronúncia de champanhe e caviar. ‑ Amanhã dá‑lhe jeito?
Hesitei antes de responder. Ultimamente, Joanna e eu tínhamos falado em ficar com o Stormchild para nós. Sonhávamos em vender a nossa casa, arranjar um gerente para tomar conta do estaleiro e depois zarpar para paragens exóticas. O problema é que era só um sonho, e eu sabia que não estávamos prontos para essa mudança, como sabia que não podia ignorar uma boa proposta de compra do grande barco de aço.
‑ O Stormchild ainda cá está ‑ respondi relutantemente a Carstairs. ‑ E o estaleiro está aberto das nove às seis, por isso pode vir à vontade. Peça a chave do Stormchild ao meu capataz.
‑ O cliente está aí ao meio‑dia ‑ disse Harrrrv. ‑ Vai tentar fazer baixar o preço para as cento e dez mil libras, mas eu já lhe disse que você não descia abaixo das cento e trinta mil.
‑ Espere lá! ‑ protestei indignadamente. Não era o preço sugerido que me irritava, mas sim a certeza da parte de Harrv de que eu estaria disponível para mostrar o Stormchild ao cliente dele. ‑ Por essa altura, vou eu a meio caminho de Guernsey. Porque é que não lhe mostra você o barco?
‑ Porque vou estar em Maiorca a impingir um palácio flutuante a um xeque das Arábias ‑ disse Harry. Depois de uma pausa, acrescentou: ‑ Está bem, Tim, se não quer vender o seu barco, diga‑me só se sabe o que é feito daquele yawl alemão que estava no cais do Cobb? Ainda continua à venda?
‑ Vá para o diabo ‑ resmunguei, provocando uma gargalhadinha cínica de Harry, que sabia que Joanna e eu nunca devíamos ter aceitado o Stormchild na nossa lista de vendas.
O grande iate estava para além das nossas possibilidades, mas ia ser vendido por morte do proprietário; a viúva era uma velha amiga da família e não tínhamos tido coragem de recusar o pedido dela para que nos encarregássemos da venda. Por sentimentalismo, tínhamos, inclusive, renunciado à nossa comissão de intermediários, mas nem assim conseguíramos vender o velho barco, e portanto o casco de quinze metros do Stormchild ocupava há um ano um espaço precioso no nosso estaleiro. Harry Carstairs sabia que eu estava desesperado e era por isso que tinha tanta certeza de que eu ia alterar os meus planos para a Páscoa.
‑ OK, Harrv ‑ respondi, resignando‑me ao inevitável. ‑ Eu fico.
‑ Muito bem, Tim. O nome do cliente é John MilIer. É um advogado ainda mais insuportável do que o costume, mas é rico, claro, e por isso garanto‑lhe que não vai perder o seu tempo.
Pousei o auscultador e saí para debaixo da chuva torrencial para ver se Joanna já tinha voltado. Os reflexos da luz dos candeeiros da rua dançavam na água escura, na outra margem do rio, e pareceu‑me ver uma sombra em movimento recortada num dos feixes de luz. O movimento parecia vir do nosso barco, um Contessa 32 chamado Slip‑Slider, e achei que Joanna tinha levado o jantar para o nosso camarote acolhedor.
Jo! gritei.
O portão do estaleiro bateu por detrás de mim.
‑ Estou aqui! ‑ Joanna correu debaixo da chuva para se abrigar no escritório. ‑ Anda comer enquanto está quente!
Acendi as luzes de segurança do estaleiro. A chuva cortava os feixes de luz amarelos, mas não vi nada a mexer nos pontões flutuantes que balançavam com as ondas e decidi que a sombra no Slip‑Suder fora imaginação minha.
‑ O que foi? ‑ perguntou Joanna da porta do escritório.
‑ Nada.
Apaguei as luzes, mas continuei a olhar para o rio, martelado pela chuva, parecendo‑me ver um grande iate escuro nas amarrações do meio do rio, mas o brilho das luzes de segurança diminuira‑me a visão nocturna e eu não percebia se aquilo que via correspondia à realidade.
Fui até ao escritório e falei a Joanna do potencial cliente de Harry, e concordámos ambos em que uma oportunidade de vender o grande iate não se podia deitar a perder. Joanna ofereceu‑se para ficar comigo, mas eu sabia que ela estava cheia de vontade de passar o fim‑de‑semana com a família, e portanto insisti para que fosse sozinha para Guernsey.
‑ Talvez consigas apanhar o avião ‑ sugeriu ela, mas sem grande convicção, pois sabia que as probabilidades de se arranjar um lugar no avião para as ilhas do Canal no sábado de Aleluia eram muito remotas. ‑ Mas podes ver as coisas pelo lado bom ‑ continuou maliciosamente. ‑ Agora não tens desculpa para não ir ouvir a homilia pascal do teu irmão.
‑ Bolas, não me tinha lembrado disso.
O meu irmão, David, era o pastor da nossa igreja local e queixava‑se muitas vezes de que eu raramente o visitava no seu local de trabalho, se bem que ele viesse muito ao meu. O cristianismo musculado de David não me agradava muito, mas desta vez parecia que não tinha outro remédio senão aguentar de cara alegre a minha dose de homilia.
Depois de termos comido o peixe com batatas fritas, deixei Joanna a fazer as contas e fui acabar a reparação do iate. Quando atravessei o estaleiro a corrér, reparei que as amarrações do meio do rio estavam vazias, o que significava que o barco que eu pensara ter visto lá fora era só imaginação; ninguém no seu perfeito juízo teria saído para o mar com um temporal daqueles.
QUANDO acordei com o despertador, antes do raiar do dia, o vento perdera a sua fúria do dia anterior.
‑ Eu bem te disse ‑ declarou Joanna, ainda ensonada. ‑ Acabaste o yawl?
Acenei afirmativamente.
‑ Nem se percebe que foi danificado.
Joanna abriu a janela do quarto e farejou o vento.
‑ A travessia vai ser rápida ‑ disse, contente.
Joanna crescera em Guernsey, onde aprendera a velejar tão naturalmente como outras crianças aprendem a andar de bicicleta. Gostava de ventos fortes e de um mar revolto e estava ansiosa por se pôr a caminho.
Preparei‑lhe o pequeno‑almoço e depois levei‑a de automóvel até ao rio. Ela vestia um fato impermeável, e o cabelo louro‑arruivado, orvalhado por um aguaceiro, saía em desordem das bordas do barrete de lã amarela. De repente, tinha um ar tão jovem que, por instantes, a sua cara cheia de vivacidade me recordou cruelmente a nossa filha, Nicole.
‑ Mas que ar tão infeliz ‑ disse Joanna do poço, vendo a minha expressão.
Não ia falar da Nicole, por isso inventei outra desculpa.
‑ Quem me dera ir contigo.
‑ Eu também gostava ‑ disse ela com os seus modos práticos, aceitando que não podíamos fazer nada para mudar as coisas. - Mas é impossível. Por isso, fazes favor de tratar bem o advogado de Londres.
‑ Claro que vou tratá‑lo bem ‑ disse eu, irritado.
‑ Claro, porquê? Geralmente, rosnas aos clientes de quem não gostas e ainda está para nascer o primeiro advogado que te agrade minimamente.
Joanna riu‑se e depois atirou‑me um beijo.
‑ Vou tratá‑lo bem ‑ prometi. Soltei o cabo da proa do Slip‑Suder e empurrei o barco para longe do pontão. ‑ Telefona‑me quando chegares!
‑ Está bem! ‑ Joanna soltara o cabo da ré e pusera o motor a trabalhar. ‑ Beijos!
‑ Beijos! ‑ repliquei.
Com um último aceno, Joanna virou para jusante, para onde as ondas da Mancha rebentavam em espuma branca na barra do estuário. Fiquei a vê‑la içar as velas, mas uma cortina cinzenta de chuva forte e repentina escondeu o Slip‑Slider e obrigou‑me a correr para o carro para me abrigar.
Fui até um café de camionistas no acesso à auto‑estrada, onde serviam um pequeno‑almoço como deve ser: ovos estrelados com bacon, salsichas, rins, cogumelos e tomate, pão com manteiga para rapar o molho e um chá tão forte que podia servir como decapante.
Quando abri o estaleiro, a chuva abrandara e um sol pálido brilhava no rio.
O advogado de Londres apareceu com uma hora de atraso para o nosso encontro. Era um homem novo, não tinha mais de trinta anos, mas via‑se que ganhava bem a vida, pois apareceu num grande BMW e, antes de sair do carro, serviu‑se ostensivamente do telefone do automóvel para que nós, os parolos, percebêssemos que ele tinha um. Mas era mais provável os parolos repararem na rapariga que o acompanhava, que era alta e esbelta, tipo modelo, com umas pernas que nunca mais acabavam de sair do carro. O advogado, que vestia um anorak de marca, daqueles que têm um forro que se enche de ar quando se puxa o cordão e um arnês de segurança, estendeu‑me a mão.
‑ Tim Blackburn? perguntou.
‑ Sou eu ‑ confirmei.
‑ John Miller. E esta é a Mandy.
Mandy estendeu‑me frouxamente a mão.
‑ Você é muito famoso, não é? ‑ foi o cumprimento dela.
‑ Sou?
‑ Foi o que o meu pai disse. Disse que você tinha ganho muitas regatas.
‑ Isso já foi há muito tempo ‑ respondi modestamente.
Fora um dos últimos ingleses a ganhar a regata transatlântica em solitário antes de os velozes barcos franceses a terem transformado numa reserva gaulesa; depois, durante um breve período, detivera o recorde da volta ao Mundo em solitário e sem escalas. Essas proezas não me tinham dado o estatuto de uma estrela de rock, mas o meu nome ainda era recordado pelos velejadores.
O advogado levantou os olhos para o Stormchild, com a sua quilha alta encaixada num berço metálico maciço, e depois observou rispidamente que pensara encontrar o barco na água.
‑ Nesta altura do ano, não era provável. ‑ Lembrei‑me das instruções de Joanna, recomendando‑me para tratar bem este pulha, e mantive uma voz calma e paciente. ‑ A Primavera ainda mal chegou e ninguém põe um barco na água a não ser quando precisa dele. Além disso ‑ continuei desembaraçadamente ‑, achei que gostaria de verificar o estado do casco.
‑ Sim, é verdade ‑ respondeu ele, relutante.
Mas duvido que ele tivesse reparado, mesmo que o casco fosse um labirinto de buracos enferrujados cheio de ratazanas. Era óbvio que John MilIer não percebia nada de barcos e que essa ignorância o tornava claramente impaciente com a minha enumeração da longa lista de virtudes do Stormchild. O barco fora construído por encomenda para um proprietário exigente, que queria um barco suficientemente robusto para aguentar os piores mares, mas também suficientemente confortável para viver a bordo durante meses seguidos. O resultado era uma embarcação maciça e pesada, tão segura como qualquer iate de cruzeiro, com um potente motor diesel turbo enterrado no bojo. Mas o Stormchild também era um barco bonito, de linhas elegantes, aparelho gracioso e convés revestido de belas pranchas de teca da melhor qualidade.
‑ E é por isso que agradecia que se descalçasse antes de subir a bordo ‑ concluí bruscamente.
Miller fez má cara ao meu pedido, mas tirou os sapatos caros.
Mandy também descalçou os sapatos de salto de agulha antes de subir em bicos de pés as escadas de embarque, de madeira.
‑ É tão bonito ‑ disse delicadamente.
Mas o advogado ignorou‑a. Estava a espreitar para o painel de instrumentos do poço, fingindo que percebia o que via.
‑ Aceita cem mil? ‑ atirou de repente.
‑ Não brinque comigo ‑ retorqui bruscamente.
Fiquei tanto mais furioso quanto sabia que, mesmo por cento e cinquenta mil libras, o Stormchild ainda era muito barato. Muler pareceu ficar irritado com o meu acesso de fúria, mas controlou‑se, talvez porque eu tinha pelo menos mais trinta centímetros de altura do que ele.
‑ Estávamos a pensar em levá‑lo para o Mediterrâneo. MilIer deu umas pancadinhas na bússola como se fosse um barómetro. ‑ Acha que pode entregar lá o barco?
‑ Talvez seja possível ‑ respondi. Mas o meu tom de voz implicava que essa entrega seria difícil, pois, apesar de estar ansioso por vender o Stormchild, não estava muito certo de que o destino mais indicado para o barco fosse servir de brinquedo caro para deslumbrar os amigos e os clientes de MilIer. ‑ Se o que quer é um barco de recreio para climas quentes, talvez fosse preferível procurar um casco de fibra de vidro ‑ sugeri diplomaticamente. Exigem muito menos manutenção.
‑ No Mediterrâneo, há muitos pacóvios desempregados dispostos a fazer trabalhos de manutenção ‑ disse o advogado num tom de voz desagradável.
Recalcando a minha vontade de torcer o pescoço a Miller, levei‑o para baixo para exibir o impressionante painel de instrumentos montado por cima da mesa de navegação do Stormchild. MilIer nem ouviu a minha descrição do SatNav, do Decca, do radar e do weatherfax, declarando que o seu arrais se encarregaria desses pormenores. O próprio Miller estava mais interessado na comodidade do barco, e apesar de não estar tudo novinho em folha, esse aspecto mereceu a sua aprovação relutante. O que mais lhe agradou foi o camarote da popa, onde Mandy estendera o corpo comprido e sinuoso ao atravessado no enorme colchão do beliche duplo.
‑ Olá, marinheiro ‑ disse ela a Miller.
‑ Ah, óptimo ‑ disse Miller. Via‑se que estava a imaginar o efeito que a beleza grácil de Mandy produziria nos seus clientes. - Aceita cento e dez mil? ‑ perguntou‑me repentinamente.
Eu sentia uma grande tristeza, porque sabia que, depois de ter servido de isco para concretizar alguns negócios, o barco iria apodrecer num canto qualquer.
‑ Ouça, porque é que não vai dar uma vista de olhos aos outros camarotes? ‑ perguntei com toda a paciência que consegui arranjar. ‑ Depois, podemos discutir o preço no meu escritório. Vou fazer café.
Deixei‑os a ver o barco, e quando atravessava o estaleiro, Billy, que acabara de aparelhar o yawl reparado, saiu‑me ao caminho.
‑ Reparou no anorak daquele idiota?
‑ às vezes, faz muito mau tempo no lago de Hyde Park ‑ respondi num tom de voz repreensivo, mas depois afastei‑me, porque acabava de entrar um automóvel no estaleiro. Era o velho Riley do meu irmão.
A minha primeira ideia foi que David tinha vindo ao estaleiro para sair no seu dinghy de regatas da classe 505. O meu reverendo irmão mais velho era um adversário perigoso e, tal como muitos outros velejadores habituados ao desconforto e às molhas dos frágeis barcos de regata, dizia desprezar as comodidades sibaríticas dos marinheiros de longa distância como eu.
‑ Não vais sair para o mar com a tua casca de noz com este vento, pois não? ‑ foram as palavras com que acolhi David quando ele abriu a porta do Riley.
Mas depois vi que vinha de sotaina e cabeção e que a excentricidade de David não ia ao ponto de velejar com o seu traje de homem de Deus. A outra porta da frente do Riley abriu‑se e saiu mais um homem.
É a partir do momento em que Brian Caílendar saiu do carro de David que a recordação desse fim‑de‑semana da Páscoa se desenrola na minha cabeça como um filme sombrio e sinistro que se repete interminavelmente.
Brian Caílendar avança na minha direcção. É um velho conhecido, mas é sargento da Polícia local e qualquer coisa na cara dele e na de David diz‑me que os dois homens não vieram ao estaleiro por coisa boa, nem para eles nem para mim.
‑ Tim? ‑ diz Caílendar, numa voz forçada. Continuo a sorrir, mas percebo pelo tom de voz do agente que não vou ter vontade de rir durante muito tempo. ‑ Tim? ‑ repete Caílendar.
Gostava que o filme parasse. Gostava tanto que o filme parasse
mas não pára.
DAVID pegou‑me no braço e levou‑me para o pontão, ficando a meu lado enquanto Caílendar me dizia que tinha explodido um iate a meio do canal da Mancha. Tinham encontrado alguns destroços, entre eles uma bóia com o nome Slip‑Slider pintado em letras pretas.
Fiquei a olhar para ele.
‑ Não ‑ disse. Não fui capaz de dizer mais nada. ‑ Não.
‑ Um cargueiro holandês assistiu, Mr. Blackburn. ‑ Callendar, como convém a um portador de más notícias, passara a um tom mais formal. ‑ Disseram que a explosão foi muito forte.
‑ Não.
A palavra era mais do que uma negação, era um protesto. David continuava a agarrar‑me no braço. Na cidade, os sinos repicavam ruidosamente, anunciando os casamentos pascais.
Caílendar calou‑se por instantes para acender um cigarro.
‑ Não há sobreviventes, Mr. Blackburn ‑ disse finalmente. - O barco holandês andou à procura e a Marinha mandou um helicóptero, mas só encontraram destroços.
‑ Não. ‑ Eu olhava para o rio, mas sem ver nada.
‑ Era a Joanna? ‑ David parecia embaraçado, como lhe acontecia sempre que emoções fortes perturbavam a superfície calma da vida, mas via‑se que estava desolado, pois sabia exactamente quem é que ia no Slip‑Síider. No entanto, a pergunta tinha de ser feita. - A Joanna ia a bordo?
Assenti com um aceno de cabeça. Tinha um nó na garganta. A minha vontade era voltar‑lhes as costas e ir‑me embora, como se nunca tivéssemos tido aquela conversa.
‑ Ia mais alguém a bordo, Mr. Blackburn? ‑ perguntou Callendar.
Abanei a cabeça.
‑ Só a Joanna. ‑ Tremia. Tudo aquilo me parecia irreal. O Mundo estava voltado de pernas ao ar. ‑ Meu Deus. Quando é que foi?
Não que isso interessasse, mas a única coisa que eu podia fazer agora eram perguntas para tentar dar sentido à tragédia.
‑ Esta manhã, pouco depois das nove ‑ disse Caílendar.
Mas nada fazia sentido, nada, a não ser a lenta consciencialização de que a minha Joanna estava morta; comecei a chorar.
A partir desta altura, o filme está muito riscado, riscado e partido. Lembro‑me de ter mandado passear o advogado de Londres e a namorada. Lembro‑me de David me ter feito beber um conhaque e depois me levar para casa dele, e de Betty, a sua mulher, ter começado a chorar. David teve de sair para celebrar três casamentos na igreja, por isso Betty e eu ficámos em casa, desolados, enquanto os sinos repicavam a sua mensagem de alegria no dia ventoso.
Quando David voltou dos casamentos, um grupo de jornalistas encurralou‑o à porta da residência paroquial, mas ele mandou‑os para o inferno.
Por mim, já me sentia no inferno. David, que estava sempre mais à vontade a agir do que a dar largas às suas emoções, tentou descobrir uma causa mecânica que pudesse explicar a morte de Joanna. Perguntou se não poderia ter havido uma fuga de gás de cozinha a bordo do Slip‑Slider, mas eu abanei a cabeça.
‑ Tínhamos instalado um alarme de gás.
‑ Os alarmes nem sempre funcionam ‑ disse David.
‑ O que é que isso interessa? ‑ perguntei.
Só tinha vontade de chorar. Primeiro tinha morrido o meu filho, depois Nicole desaparecera e agora era Joanna. Não queria acreditar que ela tivesse morrido. Nos dias seguintes, agarrei‑me ferozmente à convicção de que ela tinha sido projectada para fora do barco pela explosão e que continuava a nadar na Mancha. Mesmo quando encontraram os seus restos mortais, tentei convencer‑me de que não era ela.
Mas claro que era, e depois de os patologistas terem acabado o seu trabalho no que restava da minha mulher, David enterrou‑a no cemitério, no alto do monte onde ela e eu costumávamos sentar‑nos a olhar para o canal da Mancha. Joanna foi enterrada na mesma campa onde jazia o nosso filho, Dickie, que também morrera numa explosão quando um outro ano desabrochava de vida.
Lembro‑me de ficar a olhar, boquiaberto, para o sargento Brian Caílendar quando ele me foi visitar para dizer que os especialistas forenses que haviam examinado os destroços do Slip‑Slider tinham chegado à conclusão de que Joanna morrera devido a uma bomba. Tentei novamente negar o inegável.
‑ Não, não pode ser.
‑ Lamento, Tim, mas é verdade.
Restavam poucos destroços físicos para os especialistas examinarem, mas eles haviam conseguido extrair conclusões muito pormenorizadas acerca da bomba. Sabiam qual o explosivo que fora usado e como é que tinha sido detonado. Até sabiam dizer em que parte do barco a bomba fora colocada. Segundo eles, a explosão devia ter aberto um grande rombo no fundo do Slip‑Slider, e no mesmo instante terrível devia ter criado na cabina uma pressão intolerável que fizera saltar o convés, separando‑o do casco. O barco devia ter‑se afundado em poucos segundos e Joanna não dera por nada, garantiu‑me Brian Caílendar. Caílendar veio até a minha casa para me explicar os pormenores horríveis.
‑ Isto significa que vão mandar cá os durões de Londres - disse. Fez uma pausa e depois acrescentou: ‑ E quer dizer que você vai ser sarrazinado pelo pessoal da imprensa.
Os jornalistas já tinham começado a perseguir‑me. Eu protegia‑me o melhor possível, tirando o auscultador do telefone do descanso e barricando‑me em casa, onde me alimentava de whisky e de sanduíches que David me trazia. Tal como a Polícia, os jornalistas queriam saber quem colocara a bomba. Durante algum tempo, a Polícia suspeitou de mim, mas quando os durões de Londres revistaram o estaleiro e a casa não encontraram nada que me incriminasse e nada que sugerisse que a nossa vida de casados não era feliz.
Também não tinha motivos para destruir o Slip‑Slider. Mas havia outros homens que podiam ter tido motivos para colocar uma bomba a bordo do meu barco; os mesmos homens que tinham armadilhado a bomba que matara o meu filho.
‑ Mas essa bomba era uma bomba Mark One Provo do IRA Provisório detonada por comando à distância e recheada de semtex ‑ disse o inspector Fletcher o mais duro dos durões designados para resolver o caso. ‑ Quer recordar‑me onde é que isso se passou?
‑ Em Freeduff.
Freeduff, no condado de Armagh, onde o tenente Richard Blackburn, comandando a sua primeira patrulha, fora feito em pedaços.
‑ Entre Crossmaglen e Cullyhanna ‑ disse Fletcher.
Lancei‑lhe um longo olhar meditabundo. O inspector Godfrey Fletcher não era um polícia qualquer, mas sim um bandido legal que vivia no mundo sombrio do contra terrorismo e do crime político.
‑ Mas a bomba que matou a sua mulher não era uma Mark One Provo, pois não?
Haviam passado duas semanas sobre o funeral de Joanna, e Fletcher viera a minha casa para me informar muito relutantemente de que já não suspeitavam de mim no caso do assassínio da minha mulher. Mas parecia que ele também não achava que o responsável fosse o IRA.
Fora a imprensa que, à falta de outros culpados, começara a especular que o IRA Provisório colocara a bomba para destruir o Slip‑Slider. Não era pura fantasia, porque nós emprestávamos com frequência o Contessa 32 a tripulações do Exército Britânico, e alguns jornais sugeriram que o IRA podia ter pensado que o SlipSlider levava a bordo uma tripulação do Exército nesse fim‑de‑semana da Páscoa.
‑ Não, não era uma bomba vulgar do IRA ‑ continuou Fletcher. ‑ Além disso, se tivessem sido eles já teriam reivindicado o atentado. Para que é que serviria à causa de uma nova Irlanda imolar uma mulher inocente se não se anunciasse ao Mundo essa grande proeza?
Estava de pé à porta da cozinha, olhando para as águas revoltas da Mancha, para lá do vale. Joanna comprara a casa devido àquela paisagem até ao mar.
‑ Não ‑ continuou Fletcher, sem se voltar para trás. ‑ Não me parece que a sua mulher tenha morrido por uma nova Irlanda. Quem são os seus inimigos, Mr. Blackburn?
Saiu de ao pé da porta e fitou‑me nos olhos.
‑ Não tenho inimigos ‑ repliquei.
‑ Quem é que sabia da vossa reunião familiar da Páscoa? - Ficou à espera, mas não obteve resposta. ‑ Alguém pode ter pensado que iam ambos no barco? ‑ Os olhos dele tinham a expressão cruel de um falcão. ‑ Quem é que fica com a massa se o senhor morrer, Mr. Blackburn?
‑ Não seja ridículo ‑ respondi bruscamente.
‑ Devem ter bastante dinheiro na sua família. ‑ A voz de Hetcher era tão azeda como água de porão. ‑ O seu pai era um cirurgião da Harley Street muito conhecido, não é verdade? Dos melhores. Quanto dinheiro é que lhes deixou, a si e ao seu irmão? Meio milhão a cada um?
‑ Isso não é da sua conta ‑ respondi, irritado.
‑ Por acaso, até é. ‑ Inclinou‑se para a frente. ‑ É tudo da minha conta até eu apanhar o safado que matou a sua mulher.
Retribui‑lhe o olhar implacável, mas não disse nada.
‑ Sabe que foi ela, não sabe? ‑ insistiu Fletcher.
‑ Não! Não! ‑ E essa simples palavra era mais uma vez um protesto, além de uma negação. ‑ Não! Não! Não!
Fletcher estava a sugerir que a minha filha, Nicole, tinha matado a mãe. Fletcher estava doido. Não tinha sido a minha filha. Não tinha sido a Nicole.
RICHARD e Nicole eram gémeos. Nicole fora sempre a chefe, a mais corajosa, a instigadora da desobediência e da ousadia, se bem que Richard nunca ficasse muito atrás da maria‑rapaz da irma. Quando tinham treze anos, durante uma trovoada repentina de Primavera, o pequeno barco onde velejavam teve de ser socorrido dos recifes pelo salva‑vidas local. O patrão do salva‑vidas, que era boa pessoa, primeiro salvou‑os e depois deu‑lhes uma boa descompostura. Nicole ficou furiosa, não por o patrão do salva‑vidas ralhar com ela, mas sim consigo mesma por ter encalhado.
‑ Ela é muito brava ‑ disse‑me o patrão do salva‑vidas no dia seguinte. ‑ Virou‑se a mim como um gato assanhado.
Nicole perdia a cabeça quando a contrariavam. Mas frequentemente era ela própria a causa das suas contrariedades, quando falhava em qualquer coisa que ambicionava fazer; apesar de raramente falhar, porque era uma rapariga dotada e extremamente persistente. O irmão recorria ao humor para ultrapassar os momentos difíceis, mas Nicole cultivava a dureza. às vezes, essa dureza preocupava‑nos, a Joanna e a mim, porque traía uma certa falta de compaixão da parte da nossa filha, mas também tínhamos muito por que estar agradecidos. Nicole, tal como o irmão, era uma adolescente bonita, de cabelo liso cor de palha e olhos azuis como o mar.
Os gémeos tinham a beleza da saúde e da força física, mas o carácter de Nicole continuava a ser de gelo. Richard era imensamente generoso e compreensivo, mas Nicole mostrava‑se intolerante para com as fraquezas, tanto as suas como as dos outros. Nicole tinha de ser sempre a melhor em tudo, com uma única excepção. Só o seu irmão gémeo, Richard, podia ser igual a ela ou mesmo melhor. Eram inseparáveis, amicíssimos. Nicole sentia as vitórias de Richard como suas e as derrotas do irmão como ofensas pessoais.
Com a idade, Nicole acalmou. Nos últimos anos da adolescência, era capaz de controlar o seu génio, e quando entrou na universidade, já quase conseguia "fazer uma imitação razoável de uma pessoa normal", como dizia o irmão alegremente. Richard já saíra de casa e, para minha grande satisfação, alistara‑se no meu antigo regimento. Nicole, que atravessava uma fase passageira de antimilitarismo, não aprovava a carreira escolhida pelo irmão. Frequentava uma universidade do Norte do país onde estudava Geologia, manifestando dotes académicos que nos surpreendiam. Mas a velha Nicole revoltada não desaparecera completamente. Lançou‑se de corpo e alma nas lutas políticas universitárias, e uma vez até foi presa por ter atirado ovos ao primeiro‑ministro numa manifestação contra as emissões tóxicas das centrais nucleares. No entanto, apesar da sua intolerância apaixonada em relação a todas as ideias que não fossem as suas, Nicole parecia feliz e realizada, e Joanna e eu começávamos a pensar que se aproximava o dia em que poderíamos concretizar um sonho muito antigo: vender a casa e comprar um barco suficientemente grande para vivermos permanentemente a bordo.
Foi então que Richard morreu num dia de Primavera na Irlanda, quando as flores nas sebes do condado de Armagh pareciam uma explosão de branco. E, com a morte do gémeo, qualquer coisa morreu também em Nicole. Desistiu de estudar e voltou para casa, revoltada com a injustiça do destino. Joanna e eu fomos aconselhados a dar tempo ao tempo, pois o desgosto de Nicole acabaria por desaparecer por si, como um estilhaço de metralha expulso pelo organismo. Pareceu enterrar‑se cada vez mais fundo na amargura, tornando‑se azeda numa revolta soturna e desesperada. Nicole estava cada vez mais magra, pálida e irritadiça, e durante algum tempo passou a vida metida nas igrejas, chegando mesmo ao ponto de anunciar a sua intenção de entrar para um convento de carmelitas descalças na Provença. O tio David disse‑lhe para se deixar de disparates, e foi o que ela fez, só que disparatou no sentido oposto. Primeiro, foi presa por embriaguez e perturbação da ordem pública e, três semanas depois, por posse de marijuana. Joanna e eu pagámos as multas, mas depois disso Nicole mergulhou numa crise de depressão e revolta ainda mais insuportável do que os extremos de religiosidade e hedonismo anteriores.
Foi nesse mesmo Verão que Nicole conheceu Caspar von Rellsteb. Conheceu‑o no estaleiro, onde ele atracou para reparar o estai real do seu catamarã. Foi num sábado, e Joanna e eu estávamos a tentar dar um jeito no jardim, que se tornara um matagal, quando Nicole apareceu em casa ao fim da tarde e declarou que se ia embora para viver com um homem chamado Caspar.
‑ Vou agora mesmo ‑ acrescentou.
‑ Agora? Caspar? Caspar quê? ‑ perguntou Joanna, assombrada.
‑ Só Caspar. ‑ Ou Nicole não sabia o nome dele, ou não queria que nós o soubéssemos. ‑ É um ecologista. Também vive sempre a bordo, como o pai e a mãe querem fazer ‑ disse‑nos calmamente. ‑ E vai largar com a maré logo à noite.
‑ Largar para onde? ‑ perguntou Joanna.
‑ Não sei. Vai largar.
Nicole entrou em casa e começou a cantar enquanto procurava o fato de oleado e as botas de borracha. Primeiro, Joanna e eu ficámos a olhar um para o outro, mas depois achámos que a felicidade súbita da nossa filha talvez fosse uma bênção e que fugir de casa com Caspar, o marinheiro misterioso, podia acabar por ser melhor do que desperdiçar a juventude, ainda por cima descalça, num convento francês ou andar a embebedar‑se até à inconsciência nos bares da cidade.
Nicole arrumou rapidamente as suas coisas na mochila e depois tentou dissuadir‑nos de irmos despedir‑nos dela, mas como não conseguiu impedir‑nos, levámo‑la de automóvel até ao rio, onde verificámos que o barco de Caspar era um grande catamarã de madeira chamado Erebus, uma embarcação deselegante, de quase quinze metros de comprimento, com um aspecto pesadão. Não havia nenhuma indicação do porto de origem do barco, não tinha pintado à popa o nome de nenhuma cidade e a bandeira era um trapo verde desbotado e anónimo.
O grande catamará estava atracado ao nosso pontão de visitantes. Tinha peças de vestuário e panos de cozinha pendurados a secar na balaustrada, mas não havia outros sinais de vida a bordo, até que saíram de repente da cabina quatro crianças muito pequenas, muito louras e completamente nuas, que começaram a correr umas atrás das outras no tecto da cabina aos gritos.
‑ São filhos de Caspar? - perguntou Joanna com uma paciência que me pareceu heróica.
‑ São - respondeu Nicole, como se fosse a coisa mais normal do Mundo uma rapariga sair de casa para fazer parte de uma família completa que só conhecera há duas ou três horas.
‑ Então, ele é casado? ‑ perguntei eu.
‑ Não seja antiquado, pai. ‑ Nicole pôs a mochila ao ombro e avançou pelo pontão.
As crianças nuas, que estavam agora na proa do catamarã, guinchavam, excitadas. Nessa altura, apareceu repentinamente no poço do Erebus um homem alto e esquelético com um lenço verde‑claro atado ao pescoço.
‑ Calados! ‑ Falava alemão, uma língua que eu aprendera há anos e que ainda compreendia mais ou menos.
As quatro crianças calaram‑se e imobilizaram‑se imediatamente.
‑ Valha‑me Deus ‑ murmurou Joanna, pois, para além do lenço verde, o homem estava completamente nu.
Tinha a pele castanha, tisnada do sol, contrastando com as compridas farripas da sua cabeleira branca e com a barba desgrenhada, também branca. Fitou as crianças amedrontadas durante segundos com um olhar feroz e depois voltou‑se quando ouviu os passos de Nicole no pontão. Sorriu e estendeu‑lhe a mão para ajudá‑la a entrar a bordo.
- Está na altura de impor a minha autoridade paternal ‑ disse eu decididamente, e avancei pelo pontão, saltando para o poço do Erebus.
Nicole e o homem da barba tinham desaparecido no interior. Mergulhei pelo albói, desembocando no grande salão, onde a minha primeira impressão foi a de uma confusão de gente nua. Olhando melhor, vi que, além de Nicole e do homem da barba, que devia ser o sedutor Caspar, estavam também no camarote mais duas raparigas. As duas raparigas eram mais ou menos da idade de Nicole e estavam ambas nuas. Uma delas parecia estar a ajudar Nicole a despir‑se.
- Que raio é isto? - perguntei severamente.
‑ Este é o meu pai ‑ explicou‑lhes laconicamente Nicole.
As duas raparigas pegaram à pressa em roupa para esconderem a sua nudez, e o homem voltou‑se lentamente para mim. Não disse nada, limitando‑se a fitar‑me.
‑ Que raio é isto? ‑ perguntei novamente. ‑ Nicole! Vamos embora!
‑ Por amor de Deus, pai, deixe‑me ‑ disse Nicole, como se eu estivesse a aborrecê‑la.
Caspar pegou nuns calções de caqui desbotados e enfiou‑os; depois, fez‑me sinal para voltarmos para o poço.
‑ Gostava de falar consigo ‑ disse com modos tão delicados que não fui capaz de recusar o seu pedido. ‑ Está preocupado? - perguntou quando estávamos outra vez cá fora. Falava inglês com um sotaque alemão muito pronunciado e num tom de voz simultaneamente espantado e magoado. ‑ Tem medo que aconteça alguma coisa à sua filha, é? Peço desculpa. É só que, no barco, andamos assim à vontade.
Eu estava de cabeça perdida.
‑ Isto aqui é um bordel! ‑ gritei.
Joanna, do pontão, tentou acalmar‑me. Caspar fez‑lhe uma ligeira vénia.
‑ Chamo‑me Caspar von Rellsteb ‑ apresentou‑se. ‑ Bem‑vindos a bordo do Erebus. A vossa filha quer juntar‑se ao nosso pequeno grupo e eu estou encantado, por ela e por nós. ‑ Abanou uma mão magra, apontando para o barco, e acrescentou misteriosamente: ‑ Há muito trabalho a fazer.
‑ Trabalho? ‑ perguntou Joanna.
‑ Não andamos no mar por gosto ‑ disse portentosamente Caspar von Rellsteb. ‑ Mas sim para avaliarmos os estragos que o nosso planeta está a sofrer.
De repente, a voz dele endureceu e percebi que, apesar da sua magreza, não era fraco. Pareceu‑me que devia ser da minha idade, uns quarenta e tal anos, apesar de parecer mais velho por causa do cabelo branco.
‑ A Nicole disse‑nos que o senhor era ecologista - observou Joanna, fazendo conversa.
‑ um rótulo cómodo, sim, mas prefiro pensar que sou um vigilante do planeta. A minha tarefa actual é avaliar a extensão da poluição e da extinção das espécies.
‑ Ecologista, uma ova ‑ disse eu em tom de desprezo. ‑ Ele tem mas é um harém particular. ‑ Empurrei o homem alto e gritei para o escuro, lá para dentro: ‑ Nicole!
‑ A Nicole é adulta, Mr. Blackburn ‑ explicou‑me ele num tom de superioridade. ‑ Pode fazer o que quiser da vida dela. Voltou‑me as costas. ‑ Nicole! Queres deixar o Erebus e voltar para casa dos teus pais?
‑ Quero ficar.
Nicole falou com uma timidez inusitada, como se receasse desagradar ao homem, e Joanna e eu ficámos assombrados com aquela mansidão desusada.
‑ Então, podes ficar ‑ declarou Rellsteb magnanimamente. - Mas primeiro tens de te despedir do teu pai e da tua mãe. Anda!
Deixou‑nos sozinhos com Nicole, que vestia agora uma camisa e umas calças verde‑claras, aparentemente a cor dos uniformes do Erebus.
‑ Lamento ‑ disse embaraçada ‑, mas tenho de fazer isto.
‑ Não sabes nada acerca deste homem! ‑ exclamei, numa última tentativa de dissuasão.
‑ Caspar é bom marinheiro e quer fazer qualquer coisa pelo nosso mundo poluído. ‑ Nicole recuperara uma parte da sua teimosia habitual. ‑ Quero transformar o Mundo num lugar melhor. É assim tão mau?
"Meu Deus", pensei, mas não se pode fazer nada para dissuadir os jovens quando pensam que podem salvar o Mundo.
‑ Gosto muito de ti ‑ disse eu timidamente.
Tentei dar‑lhe todo o dinheiro que trazia na carteira, mas Nicole não quis aceitar. Beijou‑me, beijou a mãe e depois, limpando as lágrimas que lhe molhavam as faces, acompanhou‑nos até desembarcarmos.
Joanna e eu fomos até ao carro e depois seguimos para o Cross and Anchor, um pub de onde se via o mar. Joanna mandou vir um gin tónico e eu pedi uma cerveja. Ao fim de meia hora, vimos o Erebus sair a barra a motor. As três raparigas estavam na coberta, todas vestidas de verde‑claro.
‑ A Nicole parece feliz ‑ disse Joanna pensativamente. Tinha ido buscar um binóculo ao automóvel e passou‑mo para as mãos. ‑ Talvez ela precisasse de fazer isto para ultrapassar esta fase.
‑ O que me preocupa é o que aquele hippie retardado lhe vai meter na cabeça ‑ disse eu ferozmente quando o hippie em causa apareceu na coberta, vestindo os mesmos calções e com o cabelo atado num rabo‑de‑cavalo.
Parecia um bode, pensei, sentindo‑me perturbado com o facto de as raparigas estarem vestidas de igual, pois parecia que se humilhavam diante da autoridade do homem.
‑ É um homem muito carismático ‑ disse tristemente Joanna.
‑ Que disparate!
‑ Deu‑te a volta. ‑ Joanna acariciou‑me a mão enquanto o pesado catamará passava à nossa frente, dirigindo‑se para o mar.
Foquei o binóculo e vi que Nicole, que efectivamente tinha um ar feliz, pegara no leme do catamará enquanto Caspar von Rellsteb içava a vela grande, que também era verde.
‑ Ela alistou‑se ao serviço de uma boa causa, Tim ‑ disse Joanna, olhando para o barco que lhe levava a filha para longe. - Além disso, Nicole sempre foi ecologista. Que mal é que isso tem?
‑ Nenhum ‑ disse eu. ‑ Só que não me parece que aquele safado seja um verdadeiro ecologista. E mas é um oportunista. Sabe que as jovens anseiam por uma boa causa e por isso atrai‑as com toda essa conversa fiada para as recrutar para o seu harém.
‑ Não tens a certeza disso ‑ retorquiu pacientemente Joanna.
‑ Se ele é um ecologista assim tão convicto, porque é que tem os motores tão sujos? ‑ perguntei. Realmente, os escapes do Erebus deixavam atrás de si duas nuvens de fumo negro que flutuavam sobre o rio. ‑ Não devia tê‑la deixado ir.
‑ Não podias fazer nada para a impedir ‑ disse Joanna, de olhos fitos no catamara que se afastava. Fez uma longa pausa e depois olhou‑me com tristeza. ‑ Nunca te disse isto, Tim, porque é uma estupidez e uma injustiça, mas a Nicole acha que tu foste o culpado da morte do Dickie.
‑ Eu?! ‑ Fiquei a olhar para Joanna, embasbacado. ‑ Ela acha que eu fui o culpado?
‑ Porque encorajaste o Dickie a ir para a tropa.
Dei um suspiro exasperado.
‑ Porque é que ela nunca me falou nisso?
‑ Só Deus sabe. Não percebo esta gente nova. Tenho a certeza de que ela sabe que não tiveste culpa nenhuma, mas ... ‑ Joanna encolheu os ombros, afastando esse pensamento. ‑ Vais ver que ela volta, Tim.
Mas eu estava inconsolável. Via a minha filha, que me culpava pela morte do meu filho, partir de barco rumo ao desconhecido, e perdera‑a a favor de um homem que detestara instintivamente à primeira vista.
‑ A Nicole é forte. ‑ Joanna tentava descobrir razões para se sentir mais sossegada enquanto olhávamos para a nossa filha timonando habilmente o catamará. ‑ Vai aproveitar‑se dele e das suas ideias para conseguir o que quer. Ele é um homem atraente, mas duvido que seja suficientemente esperto para a não perder; vais ver se não tenho razão. Ela está de volta antes do Natal.
Mas Nicole não voltou nesse Natal, nem no outro, nem no outro a seguir. Não nos escreveu nem nos telefonou. A nossa filha tinha desaparecido, não sabíamos para onde, com um homem que não podíamos localizar. Nunca voltou a casa, apesar de Fletcher, o polícia antipático, insistir que Nicole voltara no meio da noite, como um ladrão, para colocar a bomba que matara a mãe e que devia também ter matado o pai.
‑ Não. ‑ Neguei com desprezo a afirmação de Fletcher.
Mas o sorriso sabido dele troçava da minha negativa.
‑ Ela ainda figura no seu testamento? ‑ perguntou. Não lhe dei resposta, pelo que ele presumiu correctamente que sim. ‑ Altere o seu testamento. ‑ Fletcher ignorou a minha indignação. ‑ Exclua‑a. Assim, se a próxima bomba o matar a si, pelo menos ela não lucra com isso. Não queremos que os maus sejam recompensados, pois não, Mr. Blackburn?
‑ Não seja tão ofensivo ‑ respondi‑lhe bruscamente, mas a resposta pareceu‑me ociosa e, pela primeira vez na vida, senti‑me completamente sozinho.
O INTERESSE do público pela morte de Joanna foi‑se atenuando à medida que o tempo passava e não eram feitas prisões. Para meu grande espanto, Miller, o advogado londrino, ou seja ele e os sócios, comprou o Stormchild. A firma pagou um preço razoável e depois ofereceu mais dinheiro ao meu estaleiro para aparelharmos o barco e o pormos na água. Miller e um grupo de amigos barulhentos vieram de Londres para estrear o Stor'nchild. Nem sequer içaram as velas; limitaram‑se a sair a barra a motor, ancorando lá fora e bebendo champanhe nesse dia soalheiro de Verão, antes de trazerem o belo barco de volta para o estaleiro.
‑ Não se importa de o guardar aqui até vir uma tripulação buscá‑lo? ‑ perguntou‑me Miller. ‑ Vou mandar o barco para Antibes.
Acedi em guardar o Stormchild durante um mês numa das amarrações do estaleiro, mas ao fim desse tempo não apareceu nenhuma tripulação. Passou mais um mês, e o barco continuava a baloiçar na amarração. As chamadas para o escritório de MilIer não adiantaram nada, por isso mandei‑lhe a conta do aluguer da amarração, mas a conta, tal como o barco, foi ignorada.
Não é que eu me ralasse muito com isso, porque desde a morte de Joanna caíra num estado de desespero e apatia. A casa degradava‑se, o jardim era um matagal e o estaleiro só continuava a funcionar porque o pessoal tratava disso sozinho. Eu não fazia nada senão sentir pena de mim próprio. Tinha perdido a minha mulher e o meu filho, a minha filha desaparecera e eu afundei‑me no desespero. Durante semanas, passei as noites a chorar, e as minhas lágrimas eram alimentadas a whisky. Os meus amigos tentavam ajudar‑me, mas o que me faltava era a companhia da minha mulher. David esforçava‑se por me consolar, mas para isso seria necessária uma sensibilidade que David não tinha ou não queria ter.
‑ Bom, pelo menos podias cortar o cabelo ‑ disse‑me finalmente. ‑ Pareces um hippie.
A referência a hippie lembrou‑me Caspar von Rellsteb, e falei pela milésima vez em Nicole e no seu paradeiro e em como é que poderia mandar‑lhe a notícia da morte da mãe.
‑ Se ela soubesse que a mãe morreu, voltava para casa ‑ insisti, voltando‑me para David. ‑ Tenho a certeza.
David resmungou qualquer coisa no sentido de que o que não tem remédio remediado está. Queria que eu esquecesse Nicole, não porque não gostasse dela, mas apenas porque duvidava de que ela voltasse para casa. Achava que ela talvez tivesse morrido. O meu irmão tinha uma atitude muito vigorosa perante a vida e por isso achava que eu devia esquecer o passado e recomeçar.
Paradoxalmente, foi David quem acabou por me dar notícias dela. Foi num domingo, quando eu estava a abrir uma lata de sopa para o meu almoço. David apareceu à porta das traseiras de sotaina.
‑ Sou eu ‑ disse desnecessariamente. Depois, atirou para cima da mesa, para junto da minha sopa de tomate, o suplemento a cores de um jornal de domingo. ‑ Foi Mrs. Whittaker quem mo deu depois das matinas ‑ explicou, apontando para o jornal. ‑ Porque reconheceu ... bom, podes ver por ti. Na página quarenta.
Com o coração a bater descompassadamente, procurei a página 40. Sabia que era Nicole. David não precisava de dizer nada; os modos dele indicavam‑me que a minha filha tinha finalmente reaparecido.
Era Nicole numa fotografia que mostrava um grupo de ecologistas militantes perseguindo um vaso de guerra junto de umas instalações francesas de testes de armamento nuclear no Pacífico Sul. As fotografias ilustravam um longo artigo sobre a militância crescente dos movimentos ecologistas, e ali estava Nicole, mesmo ao centro da fotografia. Senti uma alegria súbita: os dezoito meses de desespero e tristeza desde a morte de Joanna iluminaram‑se de repente. Nicole estava viva. Afinal, eu não estava sozinho.
A fotografia, a preto e branco, mostrava um catamará decorado com bandeirolas com slogans antinucleares. Nicole era um dos seis manifestantes de pé no poço do barco. Tinha a cara, magra e dura, distorcida pela cólera.
‑ Génesis ‑ disse David.
‑ Génesis? ‑ perguntei, pensando que devia ter‑me escapado alguma alusão bíblica.
‑ Vê por baixo da fotografia, na caixa!
O tom de David sugeria claramente que esta recordação de que Nicole continuava viva não agoirava nada de bom para a minha vida.
No fundo da página, o jornal enumerava as várias organizações militantes que recorriam à sabotagem, a que chamavam ecotagem, para obrigar os governos de todo o Mundo a darem mais atenção ao ambiente. Um desses grupos chamava‑se a Comunidade Génesis, provavelmente, segundo o deduzia o autor do artigo, porque os seus membros queriam que o Mundo regressasse ao seu estado primitivo. Sabia‑se pouco sobre a Génesis, para além de que era chefiada por um homem chamado Caspar von Rellsteb e que o grupo era especializado nas actividades marítimas. Nesse momento, estavam no Pacífico, onde desenvolviam esforços vigorosos, mas vãos, para impedir os testes nucleares franceses.
‑ Não diz onde é a base de operações deles! ‑ protestei.
Mas depois olhei outra vez para a fotografia, como se aquela imagem granulada me pudesse fornecer alguma pista sobre o paradeiro da minha filha. Reconheci o catamarã, o Erebus, que há quatro anos levara Nicole para fora da minha vida. Não se via Caspar von Rellsteb na fotografia; se algum dos manifestantes parecia dominar a cena, era Nicole.
David chupou no cachimbo, enviando para o ar uma cortina de fumo.
‑ Se leres o resto do artigo, verás que o grupo dinamitou navios baleeiros japoneses ‑ disse.
Fez‑se silêncio durante uns segundos, mas depois explodi de indignação perante o que ele estava a insinuar.
‑ Não sejas ridículo, David!
‑ Não estou a ser ridículo ‑ observou. ‑ Estou apenas a chamar a tua atenção para algo em que a Polícia também vai reparar.
‑ A Polícia já se desinteressou do caso ‑ retorqui.
- Pois, tens razão. ‑ David não pretendera desencadear a minha ira e agora tentava aplacá‑la mudando de assunto. Pegou na lata de sopa de tomate. ‑ É o teu almoço?
‑ É.
‑ É melhor vires até lá a casa. A Betty fez lombo de porco assado com molho de maçã.
Por isso, nesse domingo fui almoçar ao presbitério e nós três discutimos o artigo, examinámos a fotografia e chegámos à conclusão de que Nicole estava com bom aspecto. Eu fiquei excitadíssimo, o que preocupou David e Betty, que receavam ambos que a minha esperança de rever Nicole fosse prematura.
‑ Vou descobri‑la ‑ disse eu a David. ‑ E dizer‑lhe que a mãe morreu.
‑ Vai ser difícil ‑ avisou David. ‑ O artigo não dá muitas informações sobre o paradeiro da Génesis.
Mas o nome já era indicação suficiente, e na manhã seguinte, ainda entusiasmado, parti para Londres para descobrir mais coisas.
MATYHEW ALLENBY era secretário, fundador, presidente, inspirador e pau‑para‑toda‑a‑obra de um dos maiores e mais activos grupos de pressão ecologistas da Grã‑Bretanha. Era também um homem muito modesto e bondoso. Eu conhecia‑o mal, mas tinhamo‑nos encontrado algumas vezes em conferências onde eu era o porta‑voz da indústria naval contra os manifestantes que se queixavam de que as nossas marinas poluiam as águas costeiras. Agora, apesar de não nos vermos há dois anos, cumprimentou‑me calorosamente e, depois de termos feito conversa durante algum tempo, perguntou‑me porque é que eu insistira tanto num encontro urgente.
A minha resposta foi empurrar o suplemento a cores do jornal para a frente dele sobre a secretária. Tinha desenhado um círculo em volta da cara de Nicole.
‑ Essa é a minha filha e quero encontrá‑la.
‑ Ah, a Guénesis! ‑ disse Matthew Allenby.
Pronunciou a palavra com um G gutural e em tom de reprovação.
‑ Guénesis? ‑ perguntei, referindo‑me à pronúncia do G.
‑ É a pronúncia alemã ‑ explicou. ‑ Julgo que o dirigente do grupo nasceu na Alemanha.
‑ Eu conheço‑o.
‑ Ai sim? ‑ Allenby parecia interessado. ‑ Eu não conheço Von Rellsteb. Pouca gente conhece.
Descrevi‑lhe as circunstâncias do meu encontro com o harém de gente nua no catamarã de Von Rellsteb. Allenby pareceu achar piada à história. Via‑se que precisava muito de achar graça a qualquer coisa, porque o seu escritório estava forrado de cartazes mostrando os cadáveres ensanguentados e esquartejados de focas, golfinhos, baleias e tartarugas, assim como fotografias de paisagens poluídas, rios sujos e céus carregados de nuvens tóxicas.
‑ O que eu queria saber é o que é a Génesis e onde é que posso encontrá‑los ‑ rematei.
‑ A Génesis é uma comunidade de ecologistas militantes. - Allenby falava sem despegar os olhos da fotografia de Nicole. - São também muito secretivos e, como resultado disso, famosos.
‑ Famosos? Nunca tinha ouvido falar deles até ontem!
Allenby empurrou o suplemento a cores na minha direcção.
‑ Isso é porque eles têm restringido as suas actividades ao Pacífico, mas pode crer que são famosos no seio do nosso movimento.
‑ Você está a falar num tom de reprovação ‑ observei.
‑ É porque não aprovo o que eles fazem. A Génesis acha que a persuasão e a negociação são métodos ultrapassados e que os inimigos do ambiente só entendem uma coisa: a força. ‑ Mexeu‑se na cadeira, embaraçado. ‑ Mas o problema da ecotagem, Mr. Blackburn, é que se transforma facilmente em ecoterrorismo.
‑ Tem morrido gente em resultado da ecotagem da Génesis? - perguntei.
‑ Que eu saiba, não ‑ respondeu Allenby, para meu grande alívio.
‑ Diziam no jornal que a Génesis usou dinamite nalguns atentados ‑ observei, na esperança de que Allenby negasse essa acusação.
‑ Isso são boatos ‑ respondeu‑me em voz neutra.
‑ Só boatos? ‑ insisti.
Fez uma pausa, como se estivesse a pesar se seria prudente repetir meros boatos, mas depois encolheu os ombros:
‑ No ano passado, quando dois navios baleeiros japoneses estavam a fazer escala na Coreia do Sul, os mecanismos das comportas da doca foram destruidos por uma bomba. Os dois navios ficaram fechados na doca seca. A ecotagem foi reivindicada por uma dúzia de organizações verdes, mas há provas sólidas que apontam para a Génesis.
Tentei imaginar Nicole na pele de um comando dos Verdes. Arriscar‑se‑ia a ir parar a uma prisão coreana, colocando uma bomba? E se assim fosse, arriscar‑se‑ia a ir parar a uma prisão inglesa por um crime semelhante? A suspeita de que a minha filha era bombista, incutida inicialmente por Fletcher e alimentada depois pelo artigo do jornal, não morria em mim.
‑ Já ouviu falar de actividades da Génesis no Atlântico? - perguntei.
‑ Não, mas não quer dizer que nunca tenham actuado aí. São especialistas em ataques relâmpagos e podem ter entrado e saído do Atlântico sem ninguém dar por nada.
Pensei de mim para comigo que a travessia do Atlântico era uma proeza mais complicada do que Allenby pensava.
‑ Como é que posso encontrar a Génesis? ‑ perguntei, em vez de aprofundar a hipótese da culpabilidade de Nicole.
‑ Não faço a menor ideia. ‑ Matthew Allenby estendeu as suas mãos brancas e compridas num gesto que exprimia impotência.
Durante algum tempo, a base deles era na Colúmbia Britânica. Claro que, como Von Rellsteb foi lá criado
‑ Ele é canadiano? ‑ perguntei, admirado, porque pensava que era alemão.
‑ Nasceu na Alemanha, mas foi criado nos arredores de Vancouver. Mas agora não vale a pena procurar a Génesis no Canadá - advertiu Allenby. ‑ Tinham um acampamento numa ilha ao largo da costa da Colúmbia Britânica, mas foram‑se embora há quatro ou cinco anos e ninguém sabe para onde. ‑ Allenby passava revista a um monte de cartões que tinha em cima da secretária. ‑ Se alguém o pode ajudar, são estas pessoas ‑ disse.
Estendeu‑me um cartão com o nome Molly Tetterman e uma morada de Kalamazoo, no Michigan, EUA. Por baixo do nome havia uma legenda dizendo: Presidente do Grupo de Apoio aos Pais Génes is.
‑ A filha de Mrs. Tetterman, tal como a sua, alistou‑se na Génesis e nunca mais foi vista ‑ explicou Allenby. ‑ Mrs. Tetterman escreveu‑me a pedir ajuda, mas infelizmente não lhe pude dar mais informações do que a si.
‑ Ajudou‑me muitíssimo ‑ respondi delicadamente. Peguei no suplemento a cores e apontei para o nome do jornalista que escrevera o artigo. ‑ Será que ele pode ajudar‑me mais?
‑ Duvido ‑ respondeu Allenby com um sorriso. ‑ Fui eu que lhe dei a maior parte dessas informações. E se for falar com um jornalista, ele vai querer saber porque é que está tão interessado na Génesis e, mesmo que não seja muito esperto, relaciona a sua pergunta sobre atentados bombistas contra navios baleeiros na Coreia com uma bomba misteriosa que explodiu no canal da Mancha. Estou certo de que não há nenhuma relação, mas o jornalismo vive dessas suposições ‑ acrescentou delicadamente.
Percebi que Allenby era muito astuto e também muito bondoso, porque acabava de me salvar de publicidade indesejável.
‑ Porque é que não me deixa falar com o jornalista ‑ ofereceu‑se Allenby ‑ sem referir o seu nome? Falo também com alguns dos meus colegas americanos e canadianos, e se descobrir alguma coisa, digo‑lhe.
Agradeci‑lhe e saí, mas, apesar dos bons conselhos de Allenby, não resisti à tentação de tentar descobrir mais coisas sobre a Génesis sozinho. Escrevi para Kalamazoo, para Molly Tetterman, mas a resposta que recebi foi um folheto dactilografado sobre o seu Grupo de Apoio aos Pais Génesis que não acrescentava nada ao que eu já sabia. Depois, escrevi para a Armada Francesa perguntando delicadamente se estava na posse de algumas informações sobre os activistas que tinham tentado impedir os testes nucleares franceses no Pacífico, mas a única resposta que recebi foi um desmentido oficial de que essas tentativas tivessem acontecido. As semanas foram passando e parecia que Von Rellsteb tinha desaparecido da face da nossa terra poluida.
Mas depois Matthews Allenby fez uma descoberta sensacional.
‑ A verdade é que não fiz nada ‑ disse modestamente quando me telefonou a dar a notícia. ‑ Foi um dos nossos grupos americanos que o descobriu.
‑ Onde? ‑ perguntei ansiosamente.
‑ Já ouviu falar da Conferência Zavatoni? ‑ perguntou Allenby.
‑ Não.
‑ É uma reunião bienal, uma oportunidade para os ecologistas e os políticos se encontrarem, e vai realizar‑se dentro de duas semanas em Key West, na Florida. Os organizadores mandaram um convite a Von Rellsteb
‑ Sabiam para onde é que lhe haviam de escrever? ‑ interrompi‑o, irritado, lembrando‑me dos meus esforços vãos para descobrir o paradeiro da Génesis.
‑ Claro que não ‑ respondeu Allenby, tentando aplacar‑me. - Publicaram anúncios em todos os jornais de ecologistas da Costa Oeste e, surpreendentemente, ele aceitou o convite. Concordou em fazer o discurso‑chave.
‑ E como é que eu posso assistir à conferência? ‑ perguntei.
‑ Se você tratar da viagem e do alojamento, posso dizer que é um dos meus delegados ‑ sugeriu Allenby. ‑ Mas sei que não há quartos vagos no hotel onde vai realizar‑se a conferência.
‑ Estou‑me nas tintas. Até durmo na rua, se for preciso!
‑ Não tenha muitas esperanças! ‑ avisou Allenby. ‑ Von Rellsteb pode não aparecer. Aliás, eu diria que há menos de cinquenta por cento de hipóteses de ele aparecer.
‑ Essa probabilidade já me chega!
POR Isso, comprei um bilhete de avião para Miami. David achou que eu estava doido, uma opinião que repetiu várias vezes quando me foi levar ao Aeroporto de Heathrow no seu velho Riley.
‑ A Nicole não vai estar em Key West! Percebes isso, não é verdade?
‑ Não acreditas em milagres? ‑ perguntei, para o arreliar.
‑ Claro que acredito! ‑ protestou veementemente. ‑ Mas também sei o que são esperanças vás e tempo perdido.
‑ A minha ideia é só encontrar a Nicole e dizer‑lhe que a mãe morreu ‑ expliquei calmamente. ‑ Mais nada. ‑ Não era bem verdade. Também queria e precisava que Nicole me dissesse que já não me considerava responsável pela morte do irmão. ‑ E para encontrar Nicole,, estou disposto a deitar muito dinheiro pela janela - continuei. ‑ É assim tão mau?
David fungou e depois ficou a meditar na minha teimosia.
‑ Lá os táxis são cor‑de‑rosa, sabias? ‑ perguntou‑me finalmente quando entrámos no aeroporto.
‑ Táxis cor‑de‑rosa?
‑ Em Key West ‑ declarou ele, como se a existência de táxis cor‑de‑rosa fosse o último argumento que poderia evitar a minha partida.
‑ Deve ser engraçado ‑ respondi, e saí do carro para ir à procura da minha filha.
DAVID tinha razão. Havia táxis cor‑de‑rosa‑vivo em Key West. E de repente senti‑me satisfeito por ter vindo, porque a cidade era incrível, completamente disparatada: uma cidade de conto de fadas, de casas de madeira em estilo vitoriano construídas num recife de coral inundado de sol, ao fim de cento e sessenta quilómetros de estrada que se estendia sobre um viaduto através de um mar extraordinariamente azul. Sentia‑me repentinamente transportado para um mundo muito colorido, que contrastava cruelmente com a monotonia triste da minha vida a seguir à morte de Joanna. Comecei a ficar mais bem‑disposto à medida que o táxi cor‑de‑rosa me transportava do minúsculo Aeroporto de Key West até ao emaranhado de ruas estreitas da cidade velha. Dirigia‑me para uma casa de hóspedes particular que o meu agente de viagens tinha descoberto milagrosamente e que ficava numa rua cheia de árvores, perto do centro da cidade.
O gerente era um homem chamado Charles de Charlus, que, quando eu cheguei, estava deitado de costas no chão, por debaixo de um velho Austin Healey 3000 levantado por um macaco. Torceu‑se para sair debaixo do carro e levantou‑se para me cumprimentar. Era um homem alto e tinha a cara suja de óleo.
‑ O nosso visitante de Inglaterra! Muito prazer. ‑ De Charlus limpou as mãos a um trapo e conduziu‑me até à entrada da casa, luxuosamente mobilada em estilo vitoriano, onde tirou da gaveta de uma secretária a chave de um quarto. ‑ Vou dar‑lhe um quarto com janela para o pátio. Temos um ginásio, se quiser fazer exercício. Flectiu o braço direito, impressionantemente musculoso. ‑ E uma praia eléctrica.
‑ Uma praia eléctrica?
‑ Uma sala de bronzeamento eléctrico. Para os dias encobertos.
‑ Não me parece que vá ter tempo para descansar ‑ disse‑lhe.‑ Vim para a Conferência Zavatoni.
‑ Ah, é dos Verdes! ‑ Charles levou‑me para cima, para um quarto maravilhosamente cómodo. ‑ Vai desculpar-me se não entrar para lhe mostrar onde é que estão as coisas ... ‑ A laia de explicação, levantou as mãos, que ainda estavam sujas de óleo do automóvel, e depois atirou a chave do quarto para cima da cama. ‑ A sua casa de banho é na porta azul. Divirta‑se!
Deixou‑me no fresco do ar condicionado.
Sentei‑me na cama e procurei o cartão que Matthew Allenby me tinha dado. Marquei o número de Molly Tetterman, em Kalamazoo, no Michigan, e fui atendido por um gravador de chamadas. Deixei um recado a dizer que tinha vindo à América porque Caspar von Rellsteb devia fazer um discurso na Conferência Zavatoni, em Key West, e que, caso o Grupo de Apoio tivesse mandado observadores à conferência, gostaria de me encontrar com eles. Ditei o número da casa de hóspedes ao gravador de chamadas de Molly Tetterman e depois, vencido pelo cansaço, deitei‑me em cima da colcha de retalhos da cama e adormeci.
NA MANHÃ seguinte, segunda‑feira, era a abertura da Conferência Zavatoni. Dirigi‑me a pé para o hotel e descobri que Matthew Allenby tinha cumprido a sua palavra, dando o meu nome aos serviços de recepção dos congressistas, instalados no átrio. Descobri também que era um de várias centenas de delegados, o que me surpreendeu, pois estava convencido de que se tratava de uma pequena reunião. Esquecera‑me do entusiasmo com que os Americanos se dedicam a todas as actividades. O tom foi dado logo que disse o meu nome na recepção e me presentearam com um crachá verde com a seguinte inscrição: "Olá, chamo‑me Tim! E preocupo‑me!"
‑ É de plástico reciclado ‑ tranquilizou‑me um funcionário simpático, que me indicou depois um grande quadro onde estavam enumeradas todas as atracções desse dia.
A maior parte delas correspondiam ao que seria de esperar: podia ver um filme sobre o trabalho do Greenpeace, assistir a uma conferência sobre as depredações da indústria madeireira da Malásia ou apanhar um autocarro para ir ver os gamos de Big Pine Key, uma espécie em vias de extinção.
Quando me afastei do quadro, avistei Matthew Allenby. Estava de pé junto da porta aberta de uma sala cheia de gente, ouvindo um conferencista que declarava apaixonadamente que o marxismo era realmente a única solução viável para o problema da poluição global. Matthew, reconhecendo‑me, sorriu resignadamente e depois levou‑me para fora dali.
‑ Tenho remorsos de lhe ter falado desta conferência ‑ disse‑me, de volta ao átrio. ‑ Desconfio que o fiz perder o seu tempo e bastante dinheiro. Não há sinais de Von Rellsteb e disseram‑me que já é costume ele dizer que vem e depois não aparecer.
‑ A culpa não é sua ‑ comentei. ‑ E um pai não ia deixar escapar a oportunidade de encontrar a filha, não acha?
‑ Claro ‑ concordou Matthew, mas parecia duvidoso.
Tínhamo‑nos aproximado da porta principal do hotel, em frente da qual um bando de manifestantes apupava iradamente os delegados que chegavam de carro, contribuindo assim para o aquecimento global com os gases do escape.
‑ São do WASH ‑ disse Matthew, apontando para os manifestantes furiosos.
‑ Wash? ‑ Achei que era uma região cujo nome nunca tinha ouvido.
‑ World AIIance to Save Humanity (Aliança Mundial para a Salvação da Humanidade) ‑ explicou Matthew. Depois, fez uma careta. ‑ Durante algum tempo, acamparam à porta do meu escritório, porque achavam que a minha organização ia apoiar o seu apelo à abolição de todos os automóveis particulares. ‑ Matthew suspirou. ‑ O movimento dos Verdes está cheio de gente assim, com atitudes radicais. E contraproducentes, claro. Se cooperássemos e chegássemos a acordo sobre alguns objectivos específicos, podíamos fazer progressos. Podíamos proibir as redes de arrasto no Pacífico. Provavelmente, podíamos acabar com o uso de CFCs nos frigoríficos e nos aerossóis e até talvez conseguíssemos salvar o que resta das florestas tropicais. Mas o que não podemos fazer é expulsar todos os automóveis da estrada, e não é vantajoso para a nossa causa dizermos que isso é possível. As pessoas vulgares não querem ficar sem o seu automóvel. O problema do nosso movimento, Mr. Blackburn, é que estamos sempre a querer proibir coisas sem oferecer alternativas. As pessoas escutavam‑nos se lhes déssemos esperanças e até estariam dispostas a pagar mais uns tostões se pensassem que esse dinheiro ajudava o planeta. Mas se só lhes falarmos de desgraças, habituam‑se à ideia e pensam que já agora é preferível ir tirando partido das coisas enquanto isso é possível. É a síndroma do caminho mais fácil: para que é que nos havemos de sacrificar, se de qualquer maneira caminhamos para o inferno?
Ele sorriu.
‑ Eu acho que você é que devia fazer o discurso‑chave da conferência.
‑ Pediram‑me para o fazer, mas só no caso de Von Rellsteb não aparecer na quarta‑feira à noite. Claro que o meu discurso não vai agradar tanto, porque o bom‑senso nunca é tão interessante como o fanatismo. Se Von Rellsteb aparecer e começar a arengar que a poluição deve ser combatida pela força, a notícia vai ser publicada em todos os jornais do mundo livre. O meu realismo vai ocupar menos de uma coluna num jornal local.
O interesse da imprensa e da televisão pela conferência era bem visível. Os jornalistas não eram obrigados a usar o crachá verde dos delegados, mas tinham cartões de identificação oficiais de cor vermelha, onde constava, além do nome, o do jornal ou revista onde trabalhavam. Quando Matthew e eu estávamos junto da entrada, chegou um desses jornalistas, que tinha incorrido na ira do WASH. Era uma rapariga, pálida e desorientada e com uma expressão tão receosa que tive imediatamente vontade de a proteger. Vestia uma saia rodada amarela que lhe dava um ar fresco e primaveril. Devia ter chegado de carro, porque os manifestantes do WASH estavam a fazê‑la passar um mau bocado.
‑ Como vê, o fanatismo degenera facilmente em terrorismo - disse Matthew em voz baixa.
A jornalista frágil, de cabelo louro desgrenhado, conseguiu refugiar‑se no hotel, visivelmente aliviada, deixando cair no chão uma montanha de papéis. Um dos empregados do hotel precipitou‑se para ajudá‑la a apanhá‑los.
‑ Quarta‑feira à noite, Mr. Blackburn ‑ recordou Matthew. - Se Von Rellsteb aparecer, vai vê‑lo na quarta‑feira à noite. Até lá não vale a pena maçar‑se com o que se passa aqui.
A jornalista ansiosa, depois de ter salvo os seus papéis, sumira‑se por entre a multidão, mas a cara dela tinha qualquer coisa que fez que eu não conseguisse esquecê‑la. Talvez fosse a sua vulnerabilidade que a tornava atraente ou então o seu olhar verde, inocente e preocupado, pois não era especialmente bonita.
No dia seguinte, fiando‑me na intuição de Matthew Allenby de que não precisava de me preocupar com a conferência até quarta‑feira, explorei as bonitas ruas arborizadas de Key West, pensando que Joanna teria gostado muito da zona antiga. As casas, com as suas fachadas de madeira ricamente talhada, tinham sido construídas no século XIX por carpinteiros navais, que aplicaram nessa construção as técnicas que permitiam que os madeiramentos dos barcos flectissem com a ondulação, tornando‑as assim resistentes aos terríveis furacões da região.
Charles, o dono da casa de hóspedes onde me alojara, explicou que, durante anos, a cidade fora tão pobre que não havia dinheiro para fazer novas casas, sendo obrigada a manter as velhas, pelo que agora essas casinhas eram consideradas como um dos tesouros artísticos da América.
Nessa tarde, suei as estopinhas a levantar o bloco do motor do Austin Healey de Charles. Este descobrira que eu tivera em tempos um carro igual e que percebia alguma coisa de motores, por isso recrutara‑me para o ajudar a montar uma nova embraiagem. Enquanto trabalhávamos, sacou‑me toda a história da minha viagem: a história de Joanna e Nicole e a da Comunidade Génesis de Von Rellsteb.
‑ E o que é que vai fazer se Von Rellsteb aparecer amanhã à noite? ‑ perguntou‑me.
‑ Deito a mão ao estupor e peço‑lhe para dar um recado à Nicole.
O plano não era lá grande coisa, mas de momento não me ocorria nada melhor.
‑ O melhor era eu ir também para lhe dar uma ajuda ‑ ofereceu‑se Charles, flectindo os músculos do braço.
Apesar de ter dúvidas de que fosse necessário recorrer à força física, a ideia de que Charles me faria companhia era de certo modo reconfortante.
No dia seguinte, telefonei aos organizadores da conferência, mas ninguém me soube dizer se Von Rellsteb tinha ou não chegado, e quando Charles e eu nos metemos no Austin Healey reparado para ir até ao hotel, ainda não sabíamos se o convidado de honra se tinha dignado aparecer.
Quando nos dirigíamos para a sala de banquetes, encontrei Matthew Allenby, que revia à pressa o seu discurso moderado, prevendo que teria de substituir Von Rellsteb.
‑ Lamento ‑ disse‑me.
‑ Não faz mal ‑ respondi, tranquilizando‑o.
‑ Pode ser que ainda apareça ‑ disse Matthew.
Nessa esperança, Charles e eu postámo‑nos de pé junto da porta principal do salão de festas. O nosso novo plano de ataque, proposto entusiasticamente por Charles, era deitar mão a Von Rellsteb assim que ele entrasse. Eu tinha passado a tarde a pensar e a escrever uma carta a Nicole que trazia na algibeira do casaco. Charles raciocinara que Von Rellsteb, apanhado de surpresa à entrada, concordaria em aceitar a carta só para se ver livre de nós, mas, à medida que o banquete prosseguia sem sinais do convidado de honra, a minha carta e o entusiasmo de Charles pareciam‑me inúteis.
Começaram os discursos. O presidente da conferência fez uma breve introdução, depois os políticos foram apresentados e aplaudidos. As apresentações foram muito demoradas e, à falta de melhor entretenimento, relanceei o olhar pela sala de banquetes, procurando a jornalista da saia amarela, mas não a vi. Reparei que estavam presentes muitos jornalistas, atraidos obviamente pela oportunidade de ver o misterioso defensor da ecotagem, mas Von Rellsteb não apareceu e, finalmente, o presidente levantou‑se e anunciou, desanimado, que infelizmente a ausência do orador convidado impunha uma alteração dos planos e que a conferência tinha o prazer de contar com a presença de Matthew Allenby, que acedera a substituir Caspar von Rellsteb na ausência deste.
Matthew fez o seu discurso sensato e racional. Era bom orador, mas eu reparei que alguns dos delegados mais extremistas começaram a agitar‑se, descontentes, quando ele falou de consenso e de cooperação. Ao fim dos primeiros cinco minutos do seu discurso, uma mesa de activistas escandinavos começou a protestar. Matthew elevou a voz, calando temporariamente os seus críticos, e falou da importância de não alienar o homem e a mulher comuns, que queriam contribuir para reparar os estragos infligidos à Terra. Um homem manifestou o seu desacordo batendo com o cabo da faca no copo de água vazio. Depois, outras pessoas aderiram à manifestação e, de repente, os clamores de protesto ressoaram ruidosamente na sala. Estava prestes a começar a protestar contra os clamores quando as luzes do grande salão se apagaram de repente, o céu, a ocidente, se iluminou de vermelho e os primeiros convidados gritaram de terror. Finalmente, a Génesis chegara.
Alguém abriu a pontapé as portas atrás de mim e de Charles. Voltei‑me e vi as silhuetas de três homens barbudos recortadas de encontro à luz forte do corredor. Os homens avançaram até meio das portas do salão de banquetes e depois atiraram com força para dentro da sala uns projécteis que deixavam um rasto de fumo. "Meu Deus, são granadas", pensei. Agachei‑me instintivamente quando o primeiro projéctil rebentou, espalhando um cheiro pestilento a produtos químicos. Afinal, eram bombas de mau‑cheiro.
‑ Vamos, Tim! Vamos!
Charles recuperara mais depressa do que eu e já corria atrás dos bombistas em fuga. Segui‑o, mas fui atropelado por uma repentina multidão de delegados, intoxicados e aos gritos, que fugiam para o ar mais puro do corredor. Um alarme de incêndio começara a uivar ruidosamente e empurrei com força a massa de fugitivos para abrir caminho pelo meio do seu clamor.
‑ Por aqui, Tim!
Charles corria para os jardins do hotel. Os atacantes fugiam pelo jardim até ao mar, largando panfletos pelo caminho. Eu via as três sombras a correr à luz fantasmagórica das chamas que iluminavam o jardim.
Precipitei‑me atrás de Charles. Estavam a arder umas palmeiras na orla da praia e percebi que era esse fogo que tingia o céu de encarnado. O telhado de colmo de um bar da praia também pegara fogo e cuspia furiosamente faúlhas para o vento nocturno.
Fiquei entusiasmado quando me apercebi de que os três homens vestiam fatos‑macaco do mesmo verde‑pálido da roupa de Nicole quando partira no Erebus. Um dos fugitivos, mais lento que os seus companheiros, corria aos ziguezagues por entre as cadeiras de repouso da borda da piscina, e Charles saltou para as costas do homem com uma placagem que faria inveja a um internacional de râguebi. Ouviu‑se um estrondo quando os dois homens caíram no meio dos móveis de madeira e o fugitivo da Génesis deu um grito de dor.
Os outros dois homens voltaram atrás para ajudar o companheiro. Passei a correr por Charles e pelo seu prisioneiro, que se debatia, e dei uma pancada forte com o ombro no homem mais próximo, que caiu de costas na piscina. O segundo homem tentou tornear‑me, mas agarrei‑lhe num braço, virei‑o para mim e atingi‑o com um murro na barriga. Depois desse golpe, tentei esmurrar‑lhe a cara, mas falhei, e o homem recuperou o equilíbrio e conseguiu soltar‑se. Abandonando os seus dois companheiros, fugiu para a praia. O homem que eu empurrara para dentro da piscina já estava a sair da água, do outro lado, e vi que o seu fato‑macaco perdera a cor e estava raiado de preto. Isso e o cheiro pestilento que empestava o ar nocturno fizeram‑me compreender de repente que alguém sujara deliberadamente a piscina com muitas dezenas de litros de óleo. Charles grunhiu repentinamente atrás de mim, e quando me virei , vi que o seu prisioneiro continuava a debater‑se. Corri para junto deles e dei um pontapé com força no estômago do homem.
‑ Puxe‑o para os arbustos! ‑ disse eu.
Os delegados da conferência invadiam os jardins. Eu não queria partilhar com ninguém o meu prisioneiro, porque pretendia arrancar‑lhe algumas informações. Charles arrastou a figura barbuda para a escuridão, para trás da pequena cabana onde guardavam as toalhas de banho do hotel. O prisioneiro fez uma última tentativa desesperada para se soltar, mas eu agarrei‑lhe na barba e bati com força com a cabeça dele na parede da cabana.
‑ Quer que eu o entregue à Polícia? ‑ perguntei‑lhe. O homem não respondeu.,‑ Sabe falar inglês? ‑ perguntei novamente.
Continuou calado. Senti Charles a mexer‑se ao meu lado e o prisioneiro de repente fez um gemido de dor.
‑ Falo inglês ‑ disse precipitadamente o homem, com sotaque americano.
‑ Pertence à Génesis? ‑ perguntei.
‑ Sim ‑ respondeu com dificuldade, porque eu estava a apertar‑lhe o pescoço.
‑ Ouça ‑ disse eu, afrouxando ligeiramente a pressão dos dedos. ‑ Chamo‑me Tim Blackburn. Tenho uma filha chamada Nicole Blackburn. Conhece‑a?
Ele acenou freneticamente com a cabeça.
‑ A Nicole está aqui esta noite? ‑ perguntei insistentemente. Ele gemeu qualquer coisa que eu não percebi. ‑ Está? ‑ repeti.
‑ Não! Não!
‑ Então, onde é que ela está? ‑ insisti.
‑ Não sei!
‑ Mas pertence à Génesis?
‑ Sim! ‑ disse o homem.
‑ Onde é que está a Génesis? ‑ sibilei. ‑ Onde é que é a vossa base de operações? ‑ Ele não respondeu. ‑ Onde raio está a minha filha? ‑ gritei, pois de repente já nem me importava se me ouvissem. ‑ Onde?
‑ Despache‑se! ‑ incitou Charles.
Os raios de luz das lanternas incidiam nos arbustos já muito perto de nós e dentro de poucos segundos seríamos descobertos.
‑ Von Rellsteb esteve aqui esta noite? ‑ perguntei ao nosso prisioneiro.
‑ Esteve.
‑ Quero falar com ele. Diga‑lhe isso. Diga‑lhe que tenho uma notícia importante para dar à Nicole e peça‑lhe para lhe dar esta carta. ‑ Tirei a carta do bolso do casaco e escrevi o número de telefone da casa de hóspedes nas costas do envelope. ‑ Diga a Von Rellsteb para me telefonar para o número que está no envelope. Percebe?
O homem gemeu que sim. Por detrás de nós, o feixe luminoso de uma lanterna perpassou pelos arbustos e uma folha de palmeira a arder voou por cima das nossas cabeças. Lá ao longe, na noite, ouvi o apito de sirenes que se aproximavam. Empurrei o homem da Génesis para longe de mim e disse‑lhe:
‑ Desapareça!
O homem enfiou a carta na algibeira e correu freneticamente para o mar. Agora, era um mensageiro que eu enviava à minha filha e incitei‑o silenciosamente a escapar aos conferencistas irados, que, vendo‑o sair dos arbustos, tinham começado a persegui‑lo. O homem saltou do paredão para a praia e achei que ia ficar submerso na onda de gente que saltou atrás dele, mas quando Charles e eu chegámos à praia, vimos um grande bote de borracha a alguns metros de terra com pessoas lá dentro que gritavam, incitando o nosso homem quando este entrou na água.
A multidão de delegados furiosos correu para o mar atrás do fugitivo, que entretanto começara a nadar. Depois, apareceram mãos estendidas que puxaram o homem por cima da borda do barco de borracha, o motor fora de borda roncou e o bote afastou‑se ruidosamente em direcção ao largo.
‑ Acho que me deve uma bebida ‑ gracejou Charles. ‑ Das grandes. Estraguei um par de calças óptimas por sua causa.
Tinha rasgado as calças de algodão, provavelmente durante a luta com o nosso prisioneiro.
De repente, a praia ficou cheia de polícias no desempenho das suas funções, e por isso fomo‑nos embora antes que nos fizessem perguntas. Ofereci a Charles um whisky bem forte num dos muitos bares que pretendiam ter sido a pátria espiritual de Ernest Hemingway. Mandei vir um whisky irlandês para mim e depois desdobrei e comecei a ler um dos panfletos espalhados pelos activistas da Génesis.
"Aos Traidores do Ambiente", era o simpático começo. "Vocês Abateram e Queimaram as Florestas Tropicais do Mundo, por isso Vamos Abater e Queimar as Vossas Árvores Ornamentais. Vocês Sujaram os Cursos de Água do Mundo com Óleo, por isso Vamos Tirar‑vos a Vossa Piscina de Brincar. Vocês Poluíram os Céus do Mundo com Fumos Tóxicos, por isso Vamos Obrigar‑Vos a Respirar o Mesmo Cheiro Pestilento. Vocês Aliaram‑se ao Inimigo, os Políticos, por isso Não Podem Esperar que Um Verdadeiro Guerreiro do Ecossistema Discurse na Vossa Conferência de Traidores!"
O panfleto continuava neste estilo, acabando com uma ameaça:
"Somos a Génesis. Limpamos, Destruindo os Poluidores."
‑ Parece muito infantil ‑ disse Charles, depois de folhear o panfleto mal escrito.
E era mesmo. óleo e bombas de mau‑cheiro eram armas de crianças traquinas, e não de ecoguerreiros como a Comunidade Génesis pretendia ser. Pelo menos não tinham usado dinamite, pensei para me consolar.
‑ Lamento que as suas calças se tenham estragado ‑ disse a Charles, e paguei‑lhe mais uma bebida, perguntando a mim mesmo se a minha carta iria parar às mãos de Von Rellsteb.
NINGUÉM me telefonou na quinta‑feira, e à noite comecei a desconfiar que não seria contactado. Ao fim e ao cabo, porque é que Von Rellsteb havia de me telefonar? Tivera imenso trabalho para se esconder do mundo, ele e os seus sequazes, e não havia razões para se arriscar a ser descoberto respondendo ao apelo do pai desesperado de um dos seus militantes. Além disso, a carta provavelmente fora destruída pela água do mar.
Mas no sábado de manhã, quando eu já tinha perdido todas as esperanças, o dirigente da Génesis telefonou‑me finalmente.
Eu tinha saido da casa de hóspedes para ir comprar umas lembranças para David e para o pessoal do estaleiro. Charles também saíra, por isso foi um dos criados de cozinha quem recebeu o recado, que dizia apenas que, se eu quisesse ter o encontro que tinha solicitado, devia estar à meia‑noite no fim da estrada principal de terra de Sun Kiss Key. A pessoa que telefonou sublinhou que eu devia ir sozinho.
Bati com o punho fechado na palma da mão, numa manifestação de entusiasmo que Charles, mais cauteloso, não partilhou.
‑ Não pode ir sozinho! ‑ insistiu.
‑ Claro que vou sozinho!
Não podia arriscar‑me a perder notícias de Nicole por desobedecer àquelas ordens misteriosas.
‑ E se for uma armadilha? ‑ perguntou Charles.
Porque raio é que havia de ser uma armadilha?‑ retorqui.
‑ Porque é tudo muito esquisito ‑ disse Charles com um ar infeliz. ‑ Estradas de terra à meia‑noite e sozinho. Não me agrada, desconfio disso.
Explicou‑me que Sun Kiss Key era o nome de um projecto imobiliário localizado a cerca de trinta e cinco quilómetros de Key West. Mas, por enquanto, as casas ainda não tinham sido construídas e limitava‑se a haver uns canais, escavados recentemente para os barcos, e uma rede de estradas de terra. à noite, era um lugar ermo.
‑ E se eu fosse aí uns cem metros atrás de si? ‑ sugeriu Charles. ‑ Talvez eles não reparassem.
‑ Não! ‑ insisti.
‑ Então, leve isto. ‑ Abriu a gaveta de uma secretária e tirou de lá um revólver enfiado num coldre. ‑ Está registado! ‑ acrescentou, como se isso fosse o suficiente para legitimar a posse da arma.
Peguei‑lhe cautelosamente. Era um Ruger de cano comprido, de calibre .22 apenas, mas mesmo assim parecia ser mortífero.
‑ Já alguma vez disparou um revólver? ‑ perguntou‑me Charles.
Assenti com um aceno de cabeça, mas a última vez tinha sido há vinte anos, na tropa.
‑ Tenho a certeza de que não vou precisar dele ‑ disse.
‑ Se não precisar dele, não o mostre.
Charles tirou‑me o revólver da mão e carregou as balas no tambor.
‑ Naturalmente, também quer levar o carro?
‑ Pode ser? ‑ perguntei.
‑ Pode ‑ declarou magnanimamente. ‑ Claro que pode. Mas devolva‑mo inteiro. Você pode ser substituido, mas os Austin Healeys são muito raros.
Passei a tarde a escrever outra carta a Nicole, para o caso de a primeira estar ilegível. Era muito semelhante. Eu dizia à minha filha que gostava muito dela e que queria voltar a vê‑la. Dizia‑lhe que eu não matara o irmão. Depois, fiquei à espera, esperançado e apreensivo.
A PREVISÃO meteorológica anunciava a possibilidade de um temporal nas Keys, por isso pedi emprestada a Charles uma gabardina preta de nylon, que vesti por cima de umas calças pretas e de uma camisa azul‑escura, calçando uns sapatos também pretos.
‑ Por amor de Deus, não ultrapasse o limite de velocidade na estrada ‑ avisou‑me Charles antes de eu sair. ‑ Se a Polícia o descobre com essa arma, vamos meter‑nos ambos em grandes sarilhos.
Por isso, respeitei o limite de velocidade na auto‑estrada construída sobre pilares que ligava as ilhas, passando por cima dos canais. Safra de Key West às 9 horas, pois queria chegar cedo a Sun Kiss Key para descobrir o ponto de encontro. à minha frente, o céu, a norte, estava tapado por nuvens negras de chumbo, como um presságio sombrio, mas as estrelas formavam pontinhos brilhantes sobre a minha cabeça.
Descobri a estrada de terra que saía da estrada principal. Quando abrandei para virar, os faróis do carro iluminaram um grande tapume que anunciava: SUN KISS KEY, A SUA CASA AO SOL! LOTES à BEIRA‑MAR A PARTIR DE $160000! Por detrás do tapume, a estrada de terra era uma fita clara que se estendia pelo meio do mato. à minha esquerda, havia uns pilares enterrados num lote de terra desbravada, mas as obras deviam ter parado, porque os pilares só serviam de suporte a uns ninhos esfarrapados de águias‑pesqueiras. A água dos canais escavados recentemente estava negra e imóvel.
Olhei para o retrovisor. Ninguém me seguia. Estacionei o Austin Healey no fim da estrada, numa mancha de sombra negra como breu. Quando desliguei o motor, a noite pareceu‑me muito silenciosa, mas depois os meus ouvidos sintonizaram o zumbido de miríades de insectos e o ronco surdo do tráfego na estrada lá atrás.
Saí do carro e fui até à beira da água, verificando que era um canal orlado de mangues que comunicava com o mar. Uma cortina de relâmpagos faiscou silenciosamente a norte. "Alguém está a apanhar uma barrigada de mau tempo", pensei. A ideia de temporal suscitou‑me uma imagem de chuva intensa fustigando o mar: a imagem da água fria e transparente a açoitar as velas de um barco e a matràquear no tecto da cabina, e dei comigo a pensar que havia muito tempo que não velejava como deve ser.
Muito tempo, demasiado tempo. De repente, no ar húmido de Sun Kiss Key, tive saudades do oceano. Prometi a mim mesmo que, assim que chegasse a casa, aparelhava um barco, um barco qualquer, atravessava a Mancha e dobrava a ilha de Ouessant, onde as vagas alterosas do golfo da Biscaia rebentariam de encontro à proa do meu barco.
Sorri com a ideia e depois olhei para o relógio. Ainda tinha de esperar duas horas. Tinha sido uma estupidez vir tão cedo.
‑ Boa noite, Mr. Blackburn.
Dei um pulo, voltando‑me na direcção daquela voz inesperada. Reconhecera imediatamente o sotaque alemão de Von Rellsteb. Como é que conseguira aproximar‑se tanto sem que eu o ouvisse?
Agora já o via: uma sombra escura a quinze metros. Teria vindo de barco? Estaria sozinho?
‑ Estou completamente sozinho.
Aproximou‑se e vi que o seu aspecto, tal como a sua voz encantatória, não tinha mudado. Tinha a mesma cara seca como um bode de que eu me lembrava e continuava a usar o cabelo branco preso num rabo‑de‑cavalo que lhe chegava à cintura e uma barba rala e desgrenhada.
‑ Tinha esperanças de que chegasse mais cedo ‑ continuou num tom de voz tranquilo e seguro. ‑ à meia‑noite é uma hora muito fantasmagórica para um encontro, não acha? Na altura em que fiz a combinação, pensava que não conseguiria chegar aqui mais cedo. Mas afinal as coisas resolveram‑se mais depressa. Como está?
Não respondi à sua pergunta amável.
‑ Onde é que está a Nicole?
‑ Está bem e em segurança!
‑ Recebeu a minha carta para ela?
‑ Ficou estragada com a água. O número de telefone estava escrito a esferográfica e está legível, mas o resto ... Acho que a água apagou tudo. Lamento. ‑ Encolheu os ombros, desculpando‑se.
‑ Tenho aqui outra carta para ela. ‑ Tirei a carta da algibeira da camisa e dei‑a a Von Rellsteb, que a enfiou no bolso.
‑ Disse ao George que tinha uma notícia importante para lhe dar?
‑ Queria dizer‑lhe que a mãe morreu.
Perpassou‑lhe na face uma expressão de dor intensa e pensei que, se aquilo de que a Polícia suspeitava era verdade e se tinha sido a Comunidade Génesis que colocara a bomba que matara Joanna, então este homem era um dos melhores actores do Mundo.
‑ Meu caro Mr. Blackburn ‑ disse finalmente. ‑ Lamento muito. Foi de doença?
‑ Não. ‑ Não dei mais explicações.
‑ Coitada da Nicole! ‑ disse Von Rellsteb. ‑ Coitada da Nicole! E coitado de si também. Que tristeza. Não admira que tenha tanta vontade de a ver! ‑ As palavras de simpatia e consolação de Rellsteb pareciam sinceras e comecei a perceber por que razão a minha filha se sentira atraida por este homem esquelético. ‑ Mas tem de compreender que a sua filha está assustada ‑ continuou.
‑ A Nicole? Assustada?
Von Rellsteb fez‑me um sorriso rápido de desculpas.
‑ Ela está assustada porque não lhe escreveu nem falou consigo durante tanto tempo que, com cada dia que passa, é mais difícil para ela arriscar‑se a enfrentar a desilusão que o senhor deve sentir.
‑ Mas eu gosto dela!
‑ Claro que sim. ‑ Sorriu. ‑ Acho que a Nicole sabe isso, mas receia que o senhor esteja zangado com a ausência dela. Até me disse que, se calhar, já a tinha deserdado!
Von Rellsteb encolheu os ombros, como se quisesse reforçar o ridículo desta ideia. Nem sequer me lembrei de que era estranho que ele tivesse falado na herança.
‑ Deserdá‑la? ‑ exclamei. ‑ Claro que não!
‑ Não é que isso interesse ‑ declarou enfaticamente Vou Rellsteb. ‑ Devemos ser superiores a essas preocupações materiais, não é verdade?
‑ Quero vê‑la!
‑ É natural, é natural! ‑ disse Von Rellsteb com modos muito compreensivos. ‑ Mas é difícil, porque tento manter a Comunidade Génesis afastada do Mundo ‑ acrescentou.
‑ Porquê? Julguei que queria salvar o Mundo!
Ele sorriu:
‑ Não estamos afastados do Mundo, só das pessoas que o poluem. ‑ A cara dele foi repentinamente iluminada pela cortina de luz de um relâmpago. ‑ Estou a explicar‑me mal, mas o que eu quero dizer é que nós, na Génesis, renunciámos à família, Mr. Blackburn. É uma prova da seriedade das nossas intenções.
As palavras dele pareceram‑me pretensiosas.
‑ Seriedade? ‑ contestei. ‑ Bombas de mau‑cheiro? Óleo numa piscina?
Ele sorriu perante a minha acusação.
‑ Claro que as bombas de mau‑cheiro foram uma brincadeira, mas aquelas pessoas da conferência eram tão ... como é que hei‑de dizer? Tão complacentes! Elogiam‑se umas às outras pela pureza das suas intenções, mas entretanto os golfinhos continuam a morrer e as florestas continuam a ser abatidas. Queria que os jornalistas presentes na conferência percebessem que é necessário tomar medidas extremas para salvar o Mundo.
‑ Onde é que está a Nicole? ‑ perguntei‑lhe friamente.
‑ No Pacífico.
‑ Mas onde, ao certo?
‑ Isso não lhe digo ‑ respondeu após uma pausa. Levantou a mão num gesto conciliador para calar o meu protesto e depois começou a andar para cá e para lá. ‑ Eu sonhava há muito tempo com uma comunidade que se dedicasse à união com a Terra, vivendo num silêncio que nos deixasse ouvir os ecos da criação e a música da vida. ‑ Fez‑me um sorriso repentino. ‑ E o senhor devia compreender o que eu quero dizer! Sabe o que é estar sozinho num barco pequeno no meio do oceano, durante a noite, e sentir de repente que está a timonar o seu barco no meio das estrelas. E desejar que esse momento de mistério terrível e exaltante dure para sempre! Mas para compreender esse mistério, é preciso viver no centro do silêncio. É o que nós fazemos. ‑ Fez uma pausa. ‑ A nossa regra principal, a nossa regra de ouro, é preservar a nossa privacidade. E é por isso que não podemos dizer a ninguém onde é a nossa base, Mr. Blackburn.
Quase tinha conseguido seduzir‑me com a sua voz tranquila e enfeitiçante, mas uma parte mais terra‑a‑terra da minha pessoa recusou‑se a ser arrastada por aquela visão.
‑ Acha que encher uma piscina de óleo é viver no centro do silêncio?
‑ Que pena! ‑ disse Von Rellsteb, parecendo desiludido comigo. Mas ainda tentou dar‑me mais uma explicação. ‑ A maioria dos membros da comunidade vive afastada do Mundo, mas alguns de nós, como Nicole e eu, temos de sair e abalar as pessoas que querem encher o planeta de ruído, porcaria e rancor. Se eu dissesse às pessoas onde moramos, tenho a certeza de que iam aparecer visitantes, que nos distrairiam e que talvez também nos enfraquecessem.
‑ Não tem muita fé na sua visão, pois não?
‑ Não tenho fé naqueles que não partilham da minha visão - disse Von Rellsteb com firmeza. Depois, riu‑se e começou a afastar‑se. ‑ Eu dou a sua carta à Nicole. Sei que vai sofrer por causa da mãe.
‑ Quero vê‑la!
‑ Se ela quiser vê‑lo a si, hão‑de encontrar‑se. ‑ Afastou‑se mais na escuridão.
Senti que as minhas probabilidades de ver Nicole se estavam a esfumar com a partida de Von Rellsteb.
‑ Diga‑lhe que eu gosto muito dela! ‑ gritei‑lhe.
‑ O Mundo é amor, Mr. Blackburn.
Um novo relâmpago esfaqueou a água, inundando o ar com o seu brilho súbito, e eu captei nessa luz intensa uma imagem fotográfica, a cara de Caspar von Rellsteb. Nesse instante, a sua cara de bode pareceu rir‑se de mim com uma malícia satânica. A sua expressão, que anteriormente me parecera inteligente e consoladora, transformara‑se num esgar de maldade, mas quando os meus olhos se adaptaram novamente à escuridão, Von Rellsteb desaparecera.
‑ Von Rellsteb! ‑ gritei. Mas não obtive resposta. Só o silêncio e a escuridão.
Vim‑me embora. Sentia‑me tonto, como se estivesse embriagado ou hipnotizado pela voz de Von Rellsteb. Estaria ele a fazer troça de mim? A sua vitória dessa noite teria consistido em enganar um homem a quem matara a mulher e seduzira a filha?
Sim, pensei de repente, porque é que Von Rellsteb concordara em encontrar‑se comigo? Com que intenção? Para troçar de mim? E se Nicole tivesse morrido? Se Von Rellsteb a tivesse matado, a ela e à Joanna, e agora me quisesse matar a mim? O polícia, Fletcher, tinha razão quando dissera que o meu pai nos tinha deixado algum dinheiro, a mim e a David, apesar de não sermos ricos; e as heranças sempre tinham sido um dos motivos de homicídio. Porque é que Von Rellsteb teria mencionado a possibilidade de Nicole ter sido deserdada? Meu Deus, pensei, era assim que Von Rellsteb arranjava o dinheiro: fazia que os seus discípulos e discípulas amedrontados o herdassem!
Mas se Von Rellsteb queria que eu morresse para Nicole herdar, a ocasião ideal para me matar era ali, naquele lugar ermo, numa noite de trovoada! Fui invadido de repente pelo medo. Corri para o automóvel, tirei o revólver do coldre, deslizei para o lugar do condutor e tacteei à procura das chaves. O motor começou a roncar e senti‑me mais tranquilo. Sem acender os faróis, desengatei o travão de mão e o carro arrancou aos solavancos. Puxei o Ruger de Charlie mais para junto de mim e fui metendo as mudanças e acelerando, dirigindo‑me para a estrada.
Nenhum cano de arma de fogo cuspiu luz e chamas na escuridão, mas apesar disso um pânico irracional obrigou‑me a manter‑me agachado por detrás do volante de madeira à medida que o pequeno automóvel avançava aos solavancos no piso irregular da estrada de terra. Conduzi durante mais de um quilómetro com os faróis apagados e só depois os acendi e abrandei o andamento. Suava em bica e estava a tremer. Sentia‑me completamente parvo. A minha imaginação tinha exagerado os meus receios, transformando a cara sinistra de Von Rellsteb numa ameaça diabólica.
Quando parei finalmente diante da casa de hóspedes de Charlie, desliguei o motor e fiquei sentado no escuro durante uns segundos, ainda assustado e com o coração a bater desordenadamente no peito. O revólver escorregara do banco. Procurei a arma no chão e saí do automóvel, cansado.
Foi nessa altura que senti o ruído de passos na escuridão do alpendre atrás de mim. Voltei‑me para trás, novamente em pânico. Levantei o Ruger com as duas mãos e apontei‑o para o centro da sombra que avançava na minha direcção.
‑ Não! ‑ Era uma voz de rapariga que gritava em pânico, tão atemorizada como eu. ‑ Não! Por amor de Deus, não! Não!
Era a rapariga da conferência, a rapariga da saia amarela. Por pouco, tinha‑lhe dado um tiro.
‑ DETESTO armas! ‑ gritava a rapariga, ofegante e em pânico. - Detesto armas!
Recuara tão precipitadamente à vista da arma que deixara cair a sua grande carteira, espalhando o conteúdo no chão.
‑ Já guardou a arma? ‑ perguntou em voz assustada.
‑ Já cá não está ‑ respondi.
‑ Credo, detesto armas. E ainda por cima estava apontada para mim! ‑ Pôs‑se de gatas para recuperar a trapalhada de agendas, lápis, cassetes e bâton. Levantou o olhar. ‑ O senhor é Tim Blackbum?
‑ Sou ‑ respondi, baixando‑me para ajudá‑la a apanhar os seus pertences ‑ e peço desculpa de tê‑la assustado.
‑ Não foi o senhor que me assustou, foi a arma. Nunca ninguém me tinha apontado uma arma. Estava à sua espera. Telefonei e disseram‑me que tinha saído, mas que voltava mais tarde.
‑ Porque é que não bateu à porta e não esperou lá dentro?
‑ Não havia luz cá em baixo, por isso achei que já devia estar toda a gente na cama e não queria incomodar. Achei melhor ficar à espera.
‑ Pensei que os jornalistas não se importavam de acordar as pessoas.
Olhou para mim e pestanejou, espantada e contente.
‑ Como é que sabe que sou jornalista?
‑ Reparei em si na conferência ‑ confessei. ‑ Vi que tinha um crachá da imprensa.
‑ Ah! ‑ O seu espanto parecia derivar do facto de alguém ter reparado nela. Recuperou um último lápis caído e levantou‑se. - Chamo‑me Jackie Potten. Molly Tetterman diz que lamenta não ter falado consigo quando o senhor telefonou, mas estava no Maine, porque o filho dela está lá na universidade e ela estava a passar a semana com ele, e só voltou para casa hoje, mas telefonei‑lhe esta noite e
‑ Alto! ‑ Levantei as mãos para conter aquela torrente impetuosa, peguei na chave de casa e abri a porta. ‑ Entre para tomar qualquer coisa.
Ainda não sabia qual era a ligação dela com o Grupo de Apoio aos Pais Génesis ou porque é que ela queria falar comigo, mas a volubilidade incoerente da rapariga atraiu‑me de certo modo.
‑ Não bebo café nem álcool ‑ informou‑me.
‑ Mas entre, mesmo assim ‑ retorqui.
‑ Tim! ‑ gritou Charles lá de cima quando ouviu a porta a abrir‑se.
Estava à minha espera, como eu já calculava, por isso dei‑lhe a notícia que ele queria ouvir, que era que o seu Austin Healey não tinha nem um arranhão.
‑ Julguei que só voltava de madrugada. O que é que aconteceu?
‑ Ele chegou lá mais cedo ‑ respondi, colocando o revólver em cima da mesa. ‑ Não precisei dele, mas de qualquer maneira, obrigado.
Apresentei‑lhe Jackie Potten e levei‑a para a sala, e depois fui ajudá‑lo a fazer café. Assim que chegámos à cozinha, Charles perguntou:
‑ O que é que aconteceu?
‑ Nada de especial. Ele foi mais cedo, nós conversámos, ele levou a carta e desapareceu. Não fiquei a saber mais nada.
‑ E é tudo? ‑ Charles parecia desapontado.
‑ É tudo. ‑ Sentei‑me num banco e abanei a cabeça. ‑ É estranho, Charles, de princípio até simpatizei com aquele estupor, mas depois, no fim, achei que ele estava a fazer troça de mim.
Também lhe disse que pensara que Von Rellsteb me queria ver morto para a Nicole herdar, mas como não houvera nenhuma emboscada, até essa teoria me parecia agora inverosímil.
‑ Não é de café que você precisa‑ disse Charles, reparando no meu ar cansado. ‑ É de uma coisa mais forte. Whisky irlandês?
‑ Se faz favor.
Charles abriu um armário e passou revista às garrafas.
‑ E quem é a rapariga? ‑ Acenou na direcção da sala de estar, onde Jackie Potten nos esperava.
‑ É jornalista e desconfio que está interessada na Comunidade Génesis ‑ expliquei. ‑ Disse‑me que Molly Tetterman lhe tinha falado de mim. A propósito, ela não toma café nem bebidas alcoólicas.
‑ Uma água tónica com gelo, então ‑ decidiu Charles. Levei a água tónica para a sala, onde Jackie se sentara entretanto. Charles foi atrás de mim.
‑ Então, conte‑me lá o que aconteceu ‑ disse‑me ele, como se não tivesse falado comigo na cozinha.
Contei‑lhe, apesar de não haver nada para contar, pois o meu encontro com Von Rellsteb fora muito pouco produtivo.
Jackie Potten tomou um gole da água tónica e depois procurou uma agenda e um lápis na sua grande carteira.
‑ Como é que Von Rellsteb foi lá ter consigo?
‑ Não sei. Apareceu e desapareceu de repente.
‑ Foi numa vassoura ‑ disse Charles jocosamente.
Jackie olhou‑me com uma expressão séria.
‑ Hum ... Na noite da conferência, tinham um barco, por isso devem ter vindo à Florida por mar. Aluguei um barco a motor e procurei por toda a parte, daqui até Marathon Key, mas não os vi.
‑ De que é que estava à procura? ‑ perguntei. ‑ Do Erebus?
‑ Do Erebus? ‑ Franziu a testa. ‑ Ah, o catamará! Mudaram‑lhe o nome para Génesis Um. E, que se saiba, têm mais dois barcos, o Génesis Dois e o Génesis Três. Mas não vi nenhum deles. Já me lembrei que Von Rellsteb e os outros podem ter vindo de avião e que talvez eu pudesse tentar descobrir os nomes deles nos registos das companhias de aviação
Parecia estar a pedir‑me conselho, mas eu não percebia nada do assunto, por isso encolhi os ombros. Gostava de poder ajudar, porque a achava estranhamente atraente. Os olhos eram o seu melhor atributo. Eram grandes e de um verde‑prateado muito curioso, mas talvez fosse só devido ao reflexo dos abat‑jours verde‑mar da sala. à parte isso, não tinha nada de especial. Era muito pálida e extremamente magra. Tinha o cabelo claro todo desgrenhado, apesar dos travessões e dos ganchos com que tentava domá‑lo. Calculei que devia estar a meio, ou um pouco para lá, da casa dos vinte, mas tinha um ar tão inocente que mais parecia uma garota desamparada de catorze anos.
‑ Não se importa de me esclarecer sobre a sua identidade, Miss Potten? ‑ perguntou Charles na sua voz mais encantadora.
‑ Ah, pois! ‑ Ficou toda atrapalhada. ‑ Estou aqui em nome do Grupo de Apoio aos Pais Génesis. Sou a investigadora da Molly.
‑ Investigadora? ‑ perguntei, incrédulo.
‑ Investigo a Génesis ‑ respondeu Jackie, na defensiva.
‑ Julgava que era jornalista ‑ disse Charles.
‑ E sou! Trabalho num jornal de Kalamazoo, mas o director não está muito convencido de que a Comunidade Génesis seja um assunto que interesse ao nosso jornal. Quer dizer, a nossa única ligação com a Génesis é Molly Tetterman, mas o director não gosta lá muito dela. Não é que ela não seja boa pessoa, porque é, mas é muito insistente, está sempre a maçar o Norman, que é o director, por causa da campanha
‑ Jackie! ‑ interrompi‑a. ‑ O que é que estava a fazer na conferência?
‑ Ah! ‑ Pareceu ficar momentaneamente confusa, como se não soubesse de que conferência eu estava a falar. ‑ Fui lá porque esperava conseguir uma entrevista com Caspar von Rellsteb. Deitou‑me um olhar patético. ‑ Fiz a viagem em vão, afinal.
‑ Eu também ‑ observei, como se isso pudesse consolá‑la.
‑ Perguntou a Von Rellsteb onde é que estava instalada a Génesis? ‑ inquiriu Jackie.
Acenei afirmativamente.
‑ Mas ele não me quis dizer. Limitou‑se a impingir‑me uma data de disparates místicos sobre a necessidade que a Génesis tinha de preservar a sua privacidade.
‑ Acho que é no Alasca ‑ continuou Jackie. ‑ A Comunidade Génesis sempre teve a sua base no Pacífico e, quando saíram da Colúmbia Britânica, devem ter querido ficar em qualquer outro lugar da mesma costa. Partes dela são tão inacessíveis que, se lá estivessem, ninguém saberia. E Von Rellsteb sempre se sentiu atraído pelo Alasca.
‑ Mas porquê o Alasca? ‑ insisti.
‑ Encontrei um homem que esteve preso com ele no Texas na mesma cela e que me disse que Von Rellsteb estava sempre a falar no Alasca, que era a nova fronteira e um lugar onde um homem podia...
‑ Preso! ‑ interrompi. ‑ Porque é que ele esteve preso?
‑ Por causa de uma tentativa de assalto ‑ disse Jackie. ‑ Foi há dez anos e ele cumpriu dois anos de uma pena de oito e depois foi libertado e recambiado para o Canadá. Tentou assaltar um carro blindado, daqueles que vão buscar o dinheiro aos bancos e às lojas, sabe? Mas correu tudo mal e ele não roubou nada. Foi tudo uma estupidez, só que ele estava armado. O advogado tentou alegar que Von Rellsteb não estava na posse de todas as suas faculdades e que só queria protestar contra a sociedade.
‑ Chegou a disparar a arma? ‑ perguntou Charles.
Jackie abanou a cabeça.
‑ A Polícia disse que a arma encravou, mas por qualquer razão as provas técnicas relativas à arma não foram aceites.
‑ Mas se essas provas tivessem sido aceites, Von Rellsteb teria sido acusado de tentativa de homicídio? ‑ observei lentamente.
‑ Acho que sim ‑ replicou Jackie, acenando afirmativamente com a cabeça.
‑ Raios! ‑ exclamei.
Charles, visivelmente aborrecido com a falta de novidades excitantes dessa noite, bocejou ruidosamente, e Jackie apressou‑se a dizer que tinha de se ir embora. Voltava de automóvel para o Norte no dia seguinte e combinámos que me daria uma boleia até ao Aeroporto de Miami. Essa viagem de duzentos e cinquenta quilómetros proporcionar‑nos‑ia a oportunidade de tentar extrair um ao outro mais informações sobre a Génesis.
Voltou no dia seguinte, às 10 da manhã, num pequeno automóvel japonês.
‑ É seu? ‑ perguntei.
‑ Claro. Fiz as contas e vi que era mais barato vir de automóvel do que de avião, desde que ficasse em motéis baratos.
Jackie explicou que tinha vindo à conferência à sua própria custa e à de Molly. Pus o meu saco de marinheiro no banco de trás do carro e despedi‑me de Charles. Depois, entrei para o apertado lugar da frente do carro de Jackie, onde um autocolante aplicado no tablier me agradecia que não fumasse e outro me mandava pôr o cinto.
Enganámo‑nos quatro vezes nas nossas tentativas mútuas para descobrirmos a saída da cidade, mas Jackie acabou por ir dar à auto‑estrada, acelerando cautelosamente até aos setenta à hora.
‑ Vai mesmo de automóvel até Kalamazoo? ‑ perguntei.
Ela pensou que eu estava a criticar o automóvel, e não a sua condução nervosa.
‑ Começa a abanar quando se anda muito depressa ‑ disse.
Depois, começou a descrever outros sintomas do carro. Quando esgotou o assunto, perguntei‑lhe o que é que a tinha levado a interessar‑se pela Génesis.
‑ Foi a Berenice ‑ disse Jackie, como se isso explicasse tudo. Mas depois, compreendendo que não explicava nada, entrou precipitadamente nos pormenores da história. ‑ É a filha mais velha da Molly, sabe, e foi‑se embora com o Von Rellsteb há cinco anos, e a Molly acha que ele fez uma lavagem ao cérebro à Berenice, porque ela nunca mais escreveu à mãe e eram muito amigas! A Berenice era a minha melhor amiga, contávamos tudo uma à outra! É por isso que ando a tentar encontrá‑la, porque sei que ela não era capaz de desaparecer assim sem me dizer nada.
‑ Talvez quisesse ter paz e sossego ‑ sugeri maliciosamente.
Jackie fez imediatamente um ar contrito.
‑ Falo demais ‑ admitiu, desolada. ‑ Sei isso muito bem. A minha mãe está sempre a dizer‑me a mesma coisa e a Molly também, e o professor Falk também; era o meu professor de ética Jornalística.
‑ Há ética no jornalismo? ‑ perguntei.
‑ Claro que sim! ‑ Lançou‑me um olhar reprovador.
‑ Então, a Berenice fugiu de casa e você anda à procura dela desde essa altura?
Jackie assentiu com um aceno de cabeça.
‑ Até a visitei na Comunidade Génesis na Colúmbia Britânica, mas ameaçaram que chamavam a Polícia e me mandavam prender por invasão de domicílio! ‑ Franziu a testa. ‑ Mas pelo menos não me apontaram nenhuma arma.
Pensei que estava a repreender‑me por causa do meu comportamento da noite anterior e pedi‑lhe desculpa mais uma vez.
‑ Não é por isso ‑ respondeu precipitadamente. ‑ É que a Génesis é apologista do sobrevivencialismo. Não sabia?
‑ Nem sequer sei o que é o sobrevivencialismo.
‑ Ah! ‑ Mordeu o lábio, procurando uma definição. ‑ Os sobrevivencialistas dizem que o holocausto nuclear é inevitável, mas que estão decididos a sobreviver, percebe? Por isso, vivem em lugares muito remotos e têm grandes arsenais de armas de fogo para se defenderem se outros sobreviventes tentarem roubar‑lhes as mulheres ou as reservas de alimentos.
‑ Que encantadores! ‑ comentei. ‑ E porque é que saíram da Colúmbia Britânica?
Ela abanou a cabeça.
‑ Não sei. Talvez quisessem ir para outro lugar ainda mais remoto. A ilha era bastante primitiva, mas tinha‑lhes sido cedida gratuitamente por um simpatizante e possuia um porto de abrigo para os barcos.
‑ Quem era o simpatizante que lhes emprestou a ilha?
‑ Era uma viúva rica, adepta da Nova Era, não sei se conhece, aquilo dos cristais e outras coisas assim esotéricas? Acho que se encantou pelo Von Rellsteb. Ficou desolada quando ele a deixou sem lhe dizer nada. Achava que ele tinha levado a Génesis para a Europa, mas eu não acredito. Acho que ainda estão no Pacífico Norte.
‑ Com a minha filha ‑ repliquei sombriamente.
Como Jackie quisesse saber o que acontecera à Nicole, passei meia hora a contar‑lhe a história da minha família antes de pararmos para almoçar num café à beira‑mar, onde Jackie mandou vir uma salada de aipo, alface e uma coisa qualquer chamada tofu, que, segundo me explicou, era leite de soja coalhado.
‑ Isso quer dizer que é vegetariana? ‑ perguntei.
‑ Não como carne desde os seis anos ‑ respondeu, tentando suprimir um arrepio perante o enorme bife que estava no meu prato.
Voltando ao tema da Comunidade Génesis, disse‑me que era muito difícil obter a mais pequena informação acerca do grupo.
‑ Nem sequer podemos falar com pessoas que pertenceram à organização, porque, que se saiba, nenhum membro da Génesis abandonou a Comunidade desde que se foram embora da Colúmbia Britânica. Nem um!
Levei uns instantes a compreender o significado implícito da informação de Jackie.
‑ Acha que ele mata os que tentam fugir?
Jackie mostrou‑se relutante em apoiar esta acusação de assassínio, mas disse estar convencida de que era muito provável que alguns dos membros da Comunidade Génesis estivessem retidos contra vontade.
‑ Quando fui à Colúmbia Britânica, nunca passei do cais - disse. ‑ Mas tive uma sensação muito forte de que Von Rellsteb controlava tudo. Que impunha uma disciplina muito severa. Falei disso com um professor de Berkeley e ele disse‑me que muitos grupos de utopistas acabam por substituir o consenso por sistemas de controle, porque os dirigentes não costumam ser muito dados ao compromisso e ao acordo, mas têm um projecto que, segundo eles, só resulta se for cumprido à letra. E muitas vezes conseguem impô‑lo ao grupo e depois aplicam‑no por meio de um sistema de recompensas e castigos. Percebe o que eu quero dizer?
Assenti entusiasmado, porque Jackie estava a confirmar a minha teoria pessoal de que Von Rellsteb exercia um domínio sinistro sobre os seus adeptos. Falei a Jackie da imagem perturbante das três raparigas vestidas com o estranho uniforme verde de Von Rellsteb no dia em que Nicole partira de barco com eles.
‑ Não são só uniformes ‑ disse Jackie. ‑ Esse tal fulano de Berkeley disse que estes grupos criam hierarquias muito estranhas no seu seio. Alguns grupos acabam por se dividir em escravos e senhores, e noutros os inferiores têm de tentar subir na hierarquia agradando aos que estão no topo.
‑ É isso mesmo! ‑ exclamei entusiasticamente. Só com uma metodologia brutal podiam ter domado a minha corajosa Nicole. Percebi de repente que Nicole estava prisioneira, e as minhas suspeitas de que Von Rellsteb se servia dos seus discípulos para enriquecer pareciam estar incontestavelmente confirmadas. ‑ Porque é que o seu director não quer que você escreva sobre a Génesis? - perguntei.
‑ Porque não acredita que a Génesis seja tão má como eu a pinto e porque o jornal não tem dinheiro para me mandar pelos quatro cantos do Mundo para descobrir se tenho razão. E se eu levar a história a um grande jornal, entregam‑na a um dos jornalistas deles, o que significa que,perco a minha grande oportunidade de ganhar um prémio Pulitzer. É por isso que ando a investigar a história sozinha. Com a ajuda da Molly, claro.
‑ Então, acha que pode ganhar um Pulitzer?
‑ Claro, porque não? Depende da história, obviamente ‑ explicou. ‑ Quer dizer, se Von Rellsteb está a reter as pessoas contra a vontade delas, então é uma história que pode ganhar um Pulitzer; se se limita a dirigir mais uma comuna, é uma notícia para a página trinta e dois, ao fundo.
‑ E se você não o encontrar, nem sequer há notícia ‑ comentei.
‑ O que eu gostava de fazer era descobrir onde é que ele arranja o dinheiro. As pessoas não podem desaparecer assim sem mais nem menos. Há sempre registos. A Comunidade Génesis recorre aos serviços de um banco em qualquer parte, e se se servem de um banco, o fisco tem de saber coisas sobre eles.
‑ Eu sei onde é que eles arranjam o dinheiro ‑ declarei, triunfante.
Depois, contei a Jackie a minha suspeita de que Von Rellsteb estava a angariar fundos através das heranças dos seus adeptos intimidados. Afinal, se Joanna e eu tivéssemos morrido, Nicole teria herdado a nossa casa sobre o mar, que valia muito dinheiro, e o nosso estaleiro, e se Nicole era mesmo prisioneira da Comunidade Génesis e sofrera uma lavagem ao cérebro, Von Rellsteb seria o verdadeiro proprietário dessa bela herança. Senão, por que razão teria ele falado na questão da herança de Nicole?
‑ O quê?
Contei a Jackie a estranha preocupação de Von Rellsteb com a possibilidade de Nicole ter sido deserdada, mas ela não ficou convencida com a minha teoria.
‑ Nunca ouvi dizer que outros Pais Génesis tenham desaparecido. E era uma maneira muito complicada de arranjar dinheiro. Tinha de se haver com todos os outros membros da família, para já não falar dos advogados. Claro que sabemos muito pouco sobre a verdadeira personalidade de Von Rellsteb ‑ acrescentou. Via‑se que receava magoar‑me ao negar assim abruptamente a minha teoria e que estava a tentar suavizar essa negação. ‑ Ainda não descobri porque é que ele foi à Europa há quatro anos e meio, e a razão era com certeza muito importante, porque foi depois dessa viagem que toda a Comunidade desapareceu.
Jackie referia‑se à viagem no decurso da qual Von Rellsteb conhecera Nicole.
‑ Se calhar foi à Alemanha ‑ sugeri. ‑ Deve lá ter parentes.
Jackie ficou a olhar para mim e depois pousou lentamente o garfo.
‑ Aposto que foi por isso que foi à Europa! ‑ exclamou num tom de voz que anunciava que lhe estava a ocorrer uma ideia. ‑ Como é que não pensei nisso mais cedo? Claro! Que estúpida que eu fui! Mesmo estúpida! O pai dele!
‑ O pai?
‑ Só a mãe é que emigrou para o Canadá. Em 1949. Não se sabe nada do pai, mas aposto que é isso! ‑ Jackie explicou que sempre pensara que o apelido aristocrático de Von Rellsteb era um pretensiosismo da mãe. ‑ Mas talvez houvesse um Von Rellsteb! ‑ exclamou, excitada. ‑ E talvez tenha sido por isso que Caspar foi à Europa! Para encontrar o seu verdadeiro pai!
‑ E se nós conseguíssemos também encontrá‑lo? ‑ sugeri.
‑ Claro! ‑ Jackie ficou entusiasmada, certa de que, se conseguisse reconstituir o percurso de Von Rellsteb na Europa, poderia seguir‑lhe a pista até ao presente. Mas depois ficou desanimada. - Há só um problema. Tenho de ir à Alemanha e não tenho dinheiro, e a Molly já gastou quase todas as suas economias.
‑ Eu tenho dinheiro ‑ declarei com toda a simplicidade.
De repente, a vida parecia‑me muito simples. Eu ia descobrir o esconderijo de Von Rellsteb e libertar a minha filha. Essa busca exigia dinheiro, mas eu tinha dinheiro e também tinha uma causa.
Ia à caça.
‑ FIZESTE o quê? ‑ perguntou‑me David quando lhe comuniquei os resultados da minha visita à América.
‑ Contratei um investigador para encontrar a Nicole.
Primeiro, pensei que David estava perturbado por causa da minha extravagância, mas depois percebi que era por causa da minha obsessão por Nicole, pois estava convencido de que eu ia ter uma desilusão.
‑ Conta‑me lá isso, meu idiota!
Falei‑lhe de Jackie Potten, e a conversa durou toda a viagem do Aeroporto de Heathrow até à costa, onde parámos para almoçar no Cross and Anchor. Sentámo‑nos à mesa do costume, junto da lareira, onde tive o prazer de voltar a saborear uma boa cerveja e David de fazer troça de mim.
‑ Então vamos comemorar os nossos êxitos, Tim. Deixaste que uma rapariga americana te sacasse mil e seiscentas libras. Parabéns. Tim, muitos parabéns.
Era hora do almoço, mas a depressão que trouxera a ventania e a chuva ao canal da Mancha arrastara também uma massa de nuvens negras que escurecia as janelas do pub como se fosse noite. Tentei defender‑me da troça de David.
‑ Jackie Potten é jornalista e é muito desembaraçada, ‑ insisti tão dignamente quanto me permitia o meu cansaço. ‑ É isso que aprecio nos Americanos. São tão entusiásticos! Não se parecem nada connosco.
- Queres dizer que vão por aí mundo fora a oferecer a sua fortuna à primeira mulher que aparece? - perguntou David com firmeza.
‑ Estou só a financiar a investigação de Jackie ‑ insisti.
‑ Valha‑me Deus - disse o meu irmão, desesperado. Riscou um fósforo na pedra da lareira e depois acendeu cuidadosamente o cachimbo, preparando o ralhete seguinte. ‑ Como é que um homem feito pode ser tão ingénuo? Essa Miss Potten diz‑te umas coisas sem pés nem cabeça sobre a Comunidade Génesis e tu, para a recompensares, enches‑lhe os bolsos de dinheiro. Mas também já não se pode fazer nada para remediar isso ‑ continuou. ‑ Estás em casa, o mal está feito e agora podes deitar mãos à obra.
‑ O que é que isso quer dizer? ‑ perguntei, desconfiado.
‑ Quer dizer que, agora que já satisfizeste os teus caprichos, o teu estaleiro precisa de uma gestão firme. ‑ Geralmente, David olhava pelo estaleiro enquanto eu estava fora. ‑ Não é que Billy não se esforce ‑ acrescentou precipitadamente. ‑ Mas ele não é grande vendedor. E do que tu precisas é de um bom vendedor, Tim! Porque tens de despachar uma parte do inventário do estaleiro antes de o espaço se esgotar completamente! Imagina que o Stornchild está outra vez à venda!
‑ O Stornchild? ‑ perguntei, espantado.
- Parece que aquele advogado pretensioso passou dos limites quando comprou o barco e agora os sócios estão ansiosos por se verem livres dele. Acho que até estão dispostos a perder dinheiro só para resolverem depressa o assunto.
‑ Será que aceitam noventa e cinco mil libras? ‑ perguntei. - Porque, nesse caso, já tenho comprador.
David fitou‑me, espantado e satisfeito.
‑ Tens?
‑ Tenho ‑ respondi. ‑ Sou eu.
David bebeu um longo trago de cerveja e depois fechou os olhos, incrédulo.
‑ Iria jurar que acabaste de dizer que tencionavas comprar o Stornchild. Por amor de Deus, diz‑me que estou enganado.
Em vez de responder, levei os nossos copos ao bar e mandei‑os encher novamente. Quando voltei para a mesa com as cervejas, confirmei as piores suspeitas de David.
‑ Resolvi vender a casa, contratar um director de vendas para o estaleiro e comprar o Stornchild ‑ disse. ‑ Com sorte, vou‑me embora antes do Natal. à tua saúde.
Levantei o copo à saúde de David.
‑ Vai ao Dr. Stilgoe e pede‑lhe que te receite um remédio para os nervos ‑ aconselhou o meu irmão.
‑ Estou a falar a sério, David. Tive muito tempo para pensar na minha vida e não quero continuar neste rame‑rame. Além disso, nunca tive jeito para os negócios; a Joanna é que fazia as contas e eu sou muito melhor marinheiro do que vendedor, por isso vou comprar o Stornchild e vou à procura da Nicole.
‑ Estás doido! ‑ David bufou de desprezo.
Mas eu senti a dúvida na voz do meu irmão, como se ele soubesse que eu tinha razão e tivesse relutância em admiti‑lo.
‑ Não ‑ respondi, muito sério. ‑ Vou fazer uma coisa que tu e eu sempre sonhámos fazer. Vou partir para uma aventura. Tal e qual como nos livros de John Buchan, David, e o mau até tem um nome estrangeiro
‑ ... E até inclui uma flausina também ‑ disse David insultuosamente.
O meu irmão costumava queixar‑se de que já não havia no Mundo aventuras dignas dos heróis de John Buchan. "Os Trinta e Nove Degraus foram vedados e declarados inseguros e o manto verde foi arrumado de vez", costumava queixar‑se.
‑ Não, David ‑ continuei, olhando para o lume. ‑ Não há nenhuma flausina, nenhum tesouro, nem sequer castelos assombrados, tanto quanto sei, mas, apesar disso, continua a ser um romance de aventuras; uma busca em mares longínquos.
‑ Meu caro Tim, o sol da Florida fez‑te mal à cabeça. ‑ Mas falava com uma certa inveja.
‑ Porque é que não vens comigo? ‑ perguntei.
‑ Tenho mais que fazer ‑ respondeu pensativamente, mas percebi que estava tentado a aceitar. ‑ Gostava muito de ir contigo, mas tenho as minhas obrigações.
Lá fora, o vento cinzento açoitava de chuva forte os telhados das casas, trazendo até ao interior do pub o som longínquo do mar bravio e da rebentação na barra. Mas esse som era verdadeira música para os meus ouvidos, pois era o som que me ia levar de volta ao mar, até ao fim do Mundo, e, se Deus quisesse, até junto de Nicole. Num barco chamado Stornchild, "Filho da Tempestade".
RASPEI o casco do Stormchild para tirar os limos e as cracas acumulados durante o ano e depois apliquei‑lhe três demãos de tinta de fundo. Tinha pago 96000 libras pelo barco. Valia o dobro, mas eu convencera os sócios de Miller de que o facto de não terem tratado dele o deteriorara muito, e, como David suspeitava, eles estavam mortos por se verem livres do iate. O meu plano era abastecer o barco e depois partir para oeste, para a América, deixando a David a tarefa de resolver o resto dos meus assuntos.
‑ Nunca mais soubeste nada daquela desgraçada garota americana, claro? ‑ David nunca dizia o nome de Jackie quando falava nela, referindo‑se‑lhe sempre de forma insultuosa. Não era por maldade, mas só porque David receava o desconhecido. Jackie, porque era jovem e estrangeira, representava um perigo para mim.
‑ Nunca mais soube nada ‑ confirmei.
‑ Nada mais fácil do que separar um tolo do seu dinheiro - comentou David.
Tinham passado sete semanas desde o meu regresso da Florida e David estava a ajudar‑me a aparelhar o Stormchild. Tínhamos posto o barco na água na véspera e agora flutuava, solitário e independente, junto do pontão de Inverno.
‑ Pode ser que ainda entre em contacto comigo ‑ comentei, na defensiva.
Mas a verdade é que perdera toda a esperança em Jackie Potten, receando que os seus talentos de investigadora não estivessem à altura de descobrir porque é que Von Rellsteb fizera a viagem à Europa.
‑ Se a desgraçada não aparecer com nenhuma informação, vais andar um pouco às apalpadelas, não? ‑ disse David.
‑ Nem por isso. Acho que o Alasca e a Colúmbia Britânica são os lugares a investigar.
Comprara as cartas do Almirantado dessas costas longínquas, inóspitas e secretas, e quanto mais estudava os mapas, mais me convencia de que Von Rellsteb podia mesmo ter‑se refugiado numa das baias tortuosas do Pacifico Norte. Nessa expectativa, preparara o Stormchild para águas solitárias e geladas; comprara a melhor roupa para o mau tempo que havia no mercado e estava a abastecer a cozinha do Stormchild com o género de comida mais própria para combater a tristeza do Inverno: embalagens de sopa, latas de empadão de carne e de pudim de ameixa.
Mas algumas peças de equipamento de que também necessitava não se vendiam na loja do meu fornecedor de artigos náuticos nem em qualquer outra do mesmo género. Eu ficara alarmado com a descrição que Jackie Potten me fizera da Comunidade Génesis e não queria enfrentar desarmado um grupo tão agressivo. Por isso, passei palavra, discretamente, de que estava à procura de uma boa espingarda automática. Billy, o meu capataz, resolveu o problema, revelando‑me que o pai tinha guardado duas espingardas do Exército Britânico como recordação de guerra.
- Aquele velho maluco não tinha nada que as guardar ‑ disse Billy. ‑ Não estão registadas e ainda me faz um favor se me livrar delas.
Eram duas Lee‑Enflelds .303, modelo número 4 MKl, uma arma robusta, de culatra móvel, perigosa e fácil de usar, com um carregador de dez balas e um alcance máximo de mil e duzentos metros. A Lee‑Enfleld fora em tempos a espingarda standard do Exército Britânico e continuava a ser usada por exércitos que apreciavam as virtudes da sua robustez. As duas espingardas ainda tinham a correia de usar a tiracolo, e as coronhas haviam sido cuidadosamente esfregadas com óleo de linhaça.
David ajudou‑me a esconder as duas espingardas nas entranhas do Stormchild; pusemos uma num compartimento secreto debaixo do gerador, à proa, e escondemos a outra por detrás do apainelado de madeira da entrada da popa.
‑ É muito sensato levar duas ‑ disse David com uma alegria muito pouco cristã. ‑ Se uma delas não funcionar, podes sempre atacar Von Rellsteb com a outra.
‑ Não digas disparates, só levo as espingardas por precaução.
‑ Não deixes que seja ele o primeiro a atirar ‑ avisou‑me David.
Aos olhos do meu irmão, a viagem do Stormchild deixara de ser um disparate para se transformar numa demonstração invejável de absolutos morais, que acabaria com o triunfo do bem sobre o mal. A oposição inicial de David à minha expedição desaparecera quando eu lhe explicara que comunas idealistas como a Comunidade Génesis são muitas vezes contaminadas por uma política totalitária. Para David, Nicole era agora uma donzela indefesa vítima de um malvado. Mas esse malvado devia estar bem armado e era por essa razão que eu pedira a David ‑ que, além de meu irmão, era também o meu melhor amigo ‑ para me acompanhar. Por enquanto, os meus esforços haviam sido vãos.
Tentei por todos os meios convencê‑lo no dia em que, finalmente, saímos com o Stormchild numa viagem experimental ao largo da costa sul.
‑ Gostava imenso de ir contigo ‑ disse David. ‑ Mas é impossível.
‑ A Betty não se importava, pois não?
‑ Não se importava nada! Até diz que me fazia bem.
David ia ao leme do Stormchild. Tínhamos saído do rio muito antes da madrugada e subido a Mancha batidos por um vento leste agreste, que se transformara numa amena brisa ao entardecer. O Stormchild cavalgara com garbo as ondas coroadas por cristas de espuma branca e agora deslizava belo e sereno, aproximando‑se de casa com a enchente.
‑ Anda muito bem ‑ disse David.
‑ Pois anda ‑ concordei. ‑ Mas gostava de levar outro tripulante a bordo.
‑ Seria pura irresponsabilidade. Além disso, sou mais velho do que tu. Acho que já não aguentava a incomodidade de um cruzeiro no mar alto.
‑ Que disparate! E pensa só nas aves do Alasca.
‑ Pois é ‑ respondeu. David era um ornitólogo amador entusiasta e tinha a casa cheia de livros e gravuras de aves.
‑ Anda lá! ‑ incitei‑o.
Abanou a cabeça.
‑ Sou uma criatura de hábitos. As pessoas acham que sou um padre velho e rabugento e é isso mesmo que eu quero ser. Vai tu. Há muito tempo que não dás a volta ao Mundo de barco. Eu fico em casa e rezo por ti. E olho também pelo estaleiro.
‑ Se mudares de ideias, podes sempre meter‑te no avião e ir ter comigo.
‑ Claro, claro.
A esteira do barco era um risco tremeluzente à luz fraca do entardecer, provando que o casco elegante do Stormchild ia aguentar bem o mar. Voltámos para casa no ar frio que prenunciava o Inverno e que era um convite para seguir as aves migratórias aproando ao Sul. à nossa frente, a superfície da água estava cravejada de luzes cintilantes de balizas e à popa o mar vazio era colorido pelo ouro do sol‑poente, que traçava na água um caminho brilhante que nos conduziria aos confins da Terra, onde todas as nossas esperanças e os sonhos mais loucos poderiam concretizar‑se um dia.
MaNDEI fazer a calibração das agulhas do Stornchild por profissionais e depois chamei um técnico para dar uma última revisão ao radar. Há muito nevoeiro na costa do Alasca e portanto o radar é indispensável. Icei à popa, num pau de bandeira curto, a bandeira vermelha do Slip‑Slider, chamuscada pela bomba, que a Marinha retirara das águas da Mancha. Levaria essa bandeira rasgada até ao fim da minha viagem, em memória de Joanna.
O Stormchild fora reaparelhado, pintado e abastecido. Esse trabalho levara‑me oito semanas, mas agora o barco estava pronto. A venda da minha casa estava a correr bem, o estaleiro tinha um novo gerente e agora só precisava de tempo favorável para descer a Mancha e dobrar Ouessant.
O tempo favorável chegou em princípios de Novembro e eu enchi os depósitos de água e combustível do Stormchild, verifiquei novamente os stocks e depois desembarquei para passar a minha última noite em Inglaterra. Fiquei em casa de David e Betty e servi‑me do telefone deles para fazer uma última tentativa de contacto com Jackie Potten. Mas ninguém atendeu o telefone, e quando liguei para casa de Molly Tetterman, foi o gravador de chamadas que atendeu. E pronto, o melhor era não pensar mais nas damas de Kalamazoo; desliguei o telefone e nem sequer deixei recado.
Na manhã seguinte, num dia de chuva fria e vento forte, levei o resto da minha bagagem para o pontão onde o Stormchild me esperava. Alguns amigos tinham vindo despedir‑se de mim e aplaudiram quando Betty partiu uma garrafa de champanhe na proa do Stormchild. David rezou uma oração para abençoar o barco e depois descemos todos para beber o champanhe.
Foi um dia triste e alegre ao mesmo tempo; uma despedida, mas também um princípio. Ia em busca da minha filha e ia também realizar um sonho que teria dado tanta alegria a Joanna: o sonho de viver num iate, de andar ao sabor das grandes ondas e dos ventos quentes.
Ao meio‑dia, quando a maré estava na conta e a coberta começou a ficar escorregadia com a chuva, os meus convidados subiram novamente para o pontão gritando os seus adeuses. David foi o último a sair do barco. Apertou‑me a mão com força e disse:
‑ Boa sorte e que Deus te acompanhe.
Enquanto ele desembarcava, olhei para a colina onde a minha mulher e o meu filho estavam enterrados e fiz a minha pequena oração de despedida.
As pessoas gritavam, dizendo‑me adeus. A maior parte delas riam, mas algumas choravam. Billy desamarrou o cabo da proa e David gritou:
‑ Tudo a postos, Tim?
‑ Larga! ‑ gritei, e David atirou o cabo da popa para o convés.
Engatei o motor à vante. A água remoinhou debaixo da popa do Stormchild, que se afastou do pontão. Próxima escala: Canárias!
‑ Adeus! ‑ gritaram vinte vozes. ‑ Boa sorte, Tim! ‑ Serpentinas voaram sobre a balaustrada do Stornchild e ficaram caídas na faixa de água branco‑acinzentada que se alargava cada vez mais entre o barco e o pontão. ‑ Bon voyage!
Acenei o meu adeus com os olhos marejados de lágrimas.
‑ Adeus! ‑ gritei.
‑ Mr. Blackburn! ‑ gritou uma vozinha firme e obstinada, elevando‑se acima da barulheira.
Olhei para trás, sobre a faixa de água revolvida pela hélice, e ali, numa camisola largueirona e calças sem vincos, estava a dama de Kalamazoo. Afinal, Jackie Potten não me deixara ficar mal. Engatei a marcha à ré e atirei um cabo para terra. Ignominiosamente, poucos segundos depois da partida, o meu barco e eu voltávamos a casa.
JACKIE POTrEN estava ofegante com o esforço da corrida pelo estaleiro, carregada com uma mala e a sua enorme carteira.
‑ Um homem no escritório da marina disse‑me que o senhor estava de partida e vim a correr ‑ explicou. ‑ Mas que grande barco! É seu?
‑ É, é meu.
Levei Jackie para o poço do Stormchild, onde a apresentei a David e a Betty, as duas únicas pessoas daquele grupo de gente espantada que tinham regressado a bordo do iate. O meu irmão, depois de todos os insultos com que mimoseara Jackie, portava‑se agora com requintada galantaria. Jackie nunca se calou durante todo o tempo que levámos a descer até ao salão do iate:
‑ Tentei telefonar‑lhe do Aeroporto de Londres, mas disseram que o seu telefone estava desligado, e depois telefonei para o estaleiro e disseram‑me que se ia embora hoje; já cá devia ter chegado há que tempos, mas os caminhos de ferro ingleses são uma anedota, não são? Andam a brincar aos comboios. Seja como for, acabei por vir de camioneta e foi uma experiência interessante. Isto é que é uma sala! Maior do que o meu apartamento todo!
David, de pé a meu lado, junto da mesa das cartas, observava a rapariga americana enquanto esta explorava o grande salão.
‑ Já estou a ver que fui injusto contigo ‑ disse‑me baixinho.
‑ Sim?
‑ Ela não é propriamente a insinuante Jezabel que eu imaginava.
‑ Contratei‑a apenas porque é boa jornalista ‑ respondi altivamente.
‑ Posso usar isto? ‑ Jackie Potten referia‑se à grande mesa do salão, junto à qual se sentou, espalhando em cima uns papéis sujos e amarrotados. ‑ Tenho de lhe dar contas do seu dinheiro, não é verdade? Não sei bem se separei todas as despesas da Molly na Alemanha das minhas .
‑ Levou Mrs. Tetterman à Alemanha? ‑ interrompi.
‑ Sim! Mas não foi com o seu dinheiro! Juro! ‑ Parecia muito ansiosa.
‑ Palavra de guia? ‑ David, adivinhando imediatamente a inocência da rapariga, não resistia a arreliá‑la.
Jackie franziu a testa.
‑ Guia? Ah, quer dizer de escuteira? Claro, palavra de escuteira. Só que desconfio que misturei algumas facturas e é por isso que temos de ver os dois estes papéis, Mr. Blackburn, porque o senhor não disse para a Molly ir comigo, mas ela insistiu, sabe? E como fala alemão, foi uma grande ajuda levá‑la comigo. Comprámos daqueles bilhetes que são reservados com trinta dias de antecedência, só que o meu foi mais caro porque eu tinha de vir também aqui e a Molly não. Apanhou um voo directo para Detroit. Acho que não fomos nada extravagantes. Ficámos num hotel que era uma espelunca
‑ Calada! ‑ ordenei.
‑ Só estava a explicar ... ‑ Jackie fez uma nova tentativa corajosa para continuar, ao mesmo tempo que David e Betty tentavam reprimir o riso.
Eu esquecera completamente a volubilidade desta rapariga. Pus o dedo nos lábios para a calar e avancei até à mesa do salão.
‑ Descobriu porque é que Caspar von Rellsteb veio à Europa há quatro anos e meio? ‑ perguntei‑lhe finalmente.
‑ Era exactamente isso que eu ia dizer‑lhe! ‑ protestou Jackie, indignada. ‑ Descobri, sim!
‑ Linda menina! ‑ Sentei‑me em frente dela. ‑ Então, agora
‑ Onde é que eu ia? ‑ disse Jackie, franzindo a testa. ‑ Conte‑me tudo.
- Já me perdi. Bom, seja como for, Molly insistiu em ir a Hamburgo porque a mãe de Von Rellsteb era de lá, e a Molly disse que duas cabeças para pensar eram melhor do que uma e foi boa ideia porque descobriu um advogado que nos ajudou muito. Tinha um primo que mora em Detroit
‑ Jackie! ‑ interrompi‑a abruptamente. ‑ Estou‑me nas tintas para onde mora o primo do seu advogado de Hamburgo. Quero saber é de Caspar von Rellsteb!
David engasgava‑se a rir. Jackie, assombrada com a minha repreensão, fitou‑me durante uns segundos com os olhos muito abertos e depois fez um ar arrependido.
‑ Desculpe ‑ disse. ‑ Mas é que o Friedrich, o tal advogado de que eu lhe falei, foi fantástico e não nos levou nem um tostão, era isso que eu lhe estava a querer explicar, porque tem de ver as minhas contas. ‑ Empurrou o monte de papéis amarrotados para defronte de mim. ‑ Sabia tudo sobre a herança Von Rellsteb, porque foi um caso que deu muito que falar, e desenterrou todos os papéis nos arquivos e deu‑me cópias, a mim e à Molly.
David, muito divertido com ela, aproximara‑se da mesa e folheava as contas manuscritas.
‑ Seis marcos e trinta e sete pfennigs em gelados?
‑ Pois é ‑ disse Jackie, corada de vergonha. ‑ Eu disse à Molly que não devíamos ter comprado gelados, mas ela disse que não fazia mal, porque merecíamos uma recompensa pelo nosso trabalho. Mas eu pago‑lhe, prometo que pago.
‑ Eu ofereço‑lhe o gelado ‑ declarei, magnânimo e desesperado. ‑ Mas você tem de me contar tudo o que sabe de Caspar von Rellsteb.
Contou‑me tudo, mas levou mais de meia hora a desvendar o mistério. Disse que o pai de Caspar von Rellsteb tinha morrido num combate aéreo no fim da II Guerra Mundial. Von Rellsteb descobriu a identidade do pai ao examinar os papéis da mãe depois da morte desta. Foi de barco à Alemanha para reclamar a herança considerável do pai, levando consigo uma carta em que o Oberstleutnant Auguste von Rellsteb, pouco antes da sua morte, legara todos os seus bens a Fraulem Eva Felínagel, a mãe de Caspar. Os administradores da herança contestaram a legalidade da carta, mas não havia testamento, e os juizes alemães reconheceram a validade dos últimos desejos de Auguste. Caspar von Rellsteb ganhou a questão.
‑ Quanto é que ele herdou? ‑ perguntou Betty.
‑ É difícil dizer ‑ respondeu Jackie.
Explicou que remontava tudo ao princípio do século XIX, quando um tal Otto von Rellsteb fizera a travessia do Atlântico até à recém‑independente República do Chile. Tal como milhares de alemães esperançados em fazer fortuna, fora comprar terras na América do Sul. Mas como não tinha dinheiro para adquirir as terras agricolamente ricas das pampas argentinas, comprou uma vasta área de terras pobres na costa do Chile, onde implantou a sua finca, a sua exploração agrícola, criando milhares de ovelhas. Descobriu também uma pedreira de calcário com boas possibilidades de exploração e prosperou, ele e os seus descendentes, até à geração do trineto Auguste, que detestava essa costa desolada e assolada pelos temporais e voltou para a Europa, onde se alistou na Luftwaffe, fecundou a prostituta que lhe daria um filho e morreu depois pelo Fúhrer no seu avião em chamas.
Jackie Potten desdobrou cuidadosamente um mapa fotocopiado, que empurrou na minha direcção, em cima da mesa do salão do Stormchild. Nem sequer olhei para o mapa, pois ainda estava atordoado com a notícia inesperada de que a Comunidade Génesis afinal não estava no Alasca, mas sim na Patagónia.
‑ Caspar herdou cerca de cinco mil hectares ‑ disse Jackie.
‑ A terra não deve valer nada ‑ observou David depreciativamente.
‑ Mas é o esconderijo ideal ‑ repliquei.
Puxei para junto de mim o mapa fotocopiado e vi que Otto von Rellsteb implantara a sua finca no arquipélago Sangre de Cristo, na região do estreito de Magalháes, no Chile: a região mais remota onde um homem podia ir procurar os seus inimigos.
Eu SABIA alguma coisa sobre a costa da Patagónia, porque uma vez estivera para comandar uma expedição do Exército Britânico à região. Talvez tivesse sido uma sorte o projecto não ir por diante, pois não há outra costa no Mundo onde o vento e o mar se aliem para manifestar tão intensamente a sua fúria. A Patagónia é a costa do inferno.
Mas, apesar de ser tão inóspita, a costa tem alguns habitantes. Há alguns ranchos aninhados nas ilhas e nas montanhas do continente, existe uma aldeia de pescadores com o nome surpreendente de Puerto Edén e uma das pedreiras de calcário continua em exploração, mas fora iSSO a longa extensão de costa selvagem está abandonada às vagas alterosas e aos ventos do Pacífico, aos cones fumegantes dos vulcões e aos glaciares. Essa costa de pesadelo acaba na Terra do Fogo, no cabo Horn, onde os grandes navios costumavam morrer antes de ter sido aberto o canal do Panamá e onde os mares mais bravos do Mundo continuam a rolar, alterosos, pela estreita passagem de Drake, entre a Terra do Fogo e a extremidade norte da Antárctida. Era essa costa rochosa que eu tinha de explorar para encontrar a minha filha.
‑ Deve ser um lugar muito incómodo para Von Rellsteb e a sua Comunidade Génesis ‑ disse David, espreitando o mapa. ‑ Se é que estão mesmo lá.
‑ Onde é que hão‑de estar?
‑ Mas a Patagónia é uma mudança drástica nos teus planos, Tim, não é? ‑ perguntou David.
‑ Nem por isso ‑ respondi com uma despreocupação que não sentia inteiramente. ‑ Só tenho de voltar à esquerda quando chegar ao Pacífico, em vez de voltar à direita.
‑ Quer dizer ... ‑ interrompeu Jackie Potten, franzindo a testa.
Levantei os olhos para ela.
‑ Desculpe, ainda não lhe disse nada, pois não? Quando chegou, estava mesmo de partida para ir à procura da Comunidade Génesis.
‑ Neste barco? ‑ perguntou, espantada, fazendo um gesto largo que abarcava o espaçoso salão do Stormchild.
‑ É muito mais indicado do que um Honda ‑ respondi com uma cara muito séria.
‑ Uau! ‑ exclamou Jackie. Pareceu‑me que tinha ficado admirada, mas depois foi a vez de ela me espantar. ‑ Posso ir consigo?
O STORMCHJLD saiu com a maré seguinte, logo depois da meia‑noite. Deslizou pelo rio com as luzes de navegação toldadas pela chuva. O vento soprava do sul, mas as previsões meteorológicas anunciavam que ia virar a leste de madrugada e, se se confirmassem, não podia ser melhor para a partida. O vento era forte, mas um barco grande e muito carregado como o Stornchild precisava de ventos fortes para deslocar o seu enorme peso.
Icei as velas na foz do rio, desliguei o motor e arribei para um largo aberto. Passado pouco tempo, o único sinal a guiar o Stormchild era a luz longínqua do farol de Portland.
‑ Mas que frio que está ‑ disse de repente Jackie Potten.
‑ Se vai lamuriar‑se durante toda a travessia do Atlântico, dou meia volta já e deixo‑a em terra ‑ respondi bruscamente.
Fez‑se um silêncio de assombro. Eu próprio fiquei surpreendido com a agressividade da minha voz, que magoara Jackie. Arrependi‑me de ter sido tão brusco com ela, mas também me sentia justificado, porque não tinha a certeza de a querer a bordo do Stornchild. A ideia de Jackie me acompanhar entusiasmara e divertira tanto David e Betty que eles tinham vencido as minhas objecções com esse entusiasmo.
Betty fora às compras com Jackie, tendo voltado com um fornecimento de comida vegetariana e montanhas de equipamento caro para o mau tempo que eu tive de pagar. Atrevera‑me a perguntar à rapariga americana se ela tinha alguma experiência de andar no mar e ela respondeu‑me que uma vez tinha passado uma semana com a mãe a bordo de um navio de cruzeiro de Miami.
‑ Mas sabe cozinhar, não sabe? ‑ perguntou David.
‑ Qualquer coisa. ‑ Jackie parecera ficar embaraçada com a pergunta.
‑ Então não vai ser completamente inútil ‑ disse David com a sua franqueza característica, que atordoou Jackie.
Atordoada ou não, Jackie era a minha única companhia a bordo do Stormchild, o que significava que eu tinha a maçada de partilhar o barco com uma novata completamente inexperiente. E o pior é que talvez enjoasse. Vendo bem as coisas, pensava eu, David e Betty tinham sido muito irresponsáveis incitando‑a assim a embarcar comigo. Mas o meu mal‑estar tinha ainda outra razão mais obscura. Sentia‑me inexplicavelmente atraído por esta estranha rapariguinha desamparada e não queria que esse sentimento irracional fosse alimentado pela intimidade forçada de um espaço reduzido.
‑ Pensava que tinha um emprego lá no seu país ‑ observei maldosamente, como se, ao lembrar a Jackie que tinha um emprego, ela me pedisse de repente para voltar atrás. ‑ Não é a estrela da reportagem da Kalamazoo Gazette?
‑ Despediram‑me ‑ respondeu tristemente.
‑ Porquê? Porque falava demais?
Arrependi‑me imediatamente da minha ironia e pedi‑lhe desculpa.
‑ Despediram‑me porque teimei em ir a Hamburgo. Mandaram‑me escrever uma série de artigos sobre as alunas de liceu violadas quando saíam com rapazes, mas achei que a Comunidade Génesis era uma história melhor e por isso deixei o jornal. E agora tenho esta oportunidade de fazer a travessia do Atlântico, por isso, como vê, tinha razão. A Molly diz que devemos aproveitar as oportunidades que nos surgem na vida, pois de outra maneira podemos perder coisas importantes.
‑ É uma pena você perder coisas importantes como o rosbife - observei maldosamente. ‑ Que porcarias são essas que trouxe para bordo?
‑ Não são porcarias ‑ retorquiu, ofendida. ‑ Põem‑se as sementes em tabuleiros, regam‑se duas vezes ao dia e colhem‑se os rebentos. É uma excelente fonte de proteínas frescas.
Levantei os olhos para a massa pálida da vela grande.
‑ Sabia que Hitler e Mussolini eram ambos vegetarianos?
Houve um intervalo de silêncio e depois Miss Jackie Potten mostrou‑me outra faceta do seu carácter.
‑ Sei que o senhor é que é o comandante deste barco, mas acho que devíamos respeitar‑nos um ao outro, Mr. Blackburn, e que não devíamos fazer troça das convicções um do outro ‑ declarou. - Acho que isso é muito importante.
‑ Tem razão ‑ respondi vivamente. ‑ Desculpe.
E estava a falar a sério. Fora um bruto e Jackie tinha razão em protestar.
‑ Posso fazer alguma coisa para ajudar? ‑ perguntou timidamente.
‑ Pode tratar‑me por Tim ‑ repliquei. ‑ E pode ir lá abaixo arranjar‑me uma caneca de café sem leite nem açúcar e uma sanduíche de carne enlatada com mostarda, mas sem verduras.
‑ Entendido, Tim ‑ respondeu, e foi fazer o seu trabalho.
QUANDO aportámos a Las Palmas, nas ilhas Canárias, crescera em mim uma bela dose de respeito pela frágil Jackie Potten. Aliás, ela já perdera grande parte do seu ar frágil, porque quinhentas milhas marítimas tinham‑lhe colorido as faces e tingido o cabelo de ouro pálido. Desde a primeira noite de viagem, nunca mais se queixara; pelo contrário, mostrara possuir uma tenacidade paciente que se coadunava muito bem com as artes da marinharia e, apesar da sua preferência por uma alimentação que teria matado à fome uma
formiga anoréxica, tinha um estômago que aguentava as vagas mais alterosas.
De princípio, quando o Stormchild enfrentava as grandes ondas cinzentas da Mancha, com as suas cristas brancas espumosas e sibilantes, Jackie ficara nervosa, principalmente quando deixávamos de avistar a terra. Mas a ansiedade fora de pouca dura. Depois, começara a apreciar o desafio e ganhara confiança no barco e na sua própria capacidade para o controlar. Ao fim de dois dias, já ficava de quarto sozinha, primeiro só de dia, mas ao fim de uma semana começou a fazer quartos nocturnos e todos os sinais de nervosismo desapareceram. Tinha alma de marinheiro e, à medida que se foi tornando mais competente, perdeu a timidez e começou a ganhar confiança. Até falava menos, e percebi que a sua volubilidade anterior era só um sintoma de timidez.
Demarcámos os nossos próprios territórios dentro do barco. Jackie escavara um ninho no meio dos mantimentos acumulados no pequeno camarote de estibordo, à proa, onde se aninhava como um animal pequeno, ao passo que eu, quando não estava lá fora, passava a maior parte do tempo na cabina principal, pois quando andava no mar não tinha tempo para desfrutar as amenidades do camarote da popa.
Avistámos as Canárias num domingo de manhã, e a meio da tarde tínhamos despachado as formalidades alfandegárias espanholas em Las Palmas. Jackie estava deslumbrada com a ideia de que fora neste velho porto que Colombo esperara pelos alísios que o levariam para o Ocidente desconhecido.
No outro dia, seguimos para Puerto de Mogán, na costa sul da ilha. Puerto de Mogán, tal como todos os outros portos da ilha, estava apinhado de iates de cruzeiro que esperavam para fazer a travessia do Atlântico.
‑ Quanto tempo temos de esperar pelos alísios? ‑ perguntou Jackie.
Um mês, talvez mais.
Fomos buscar o correio ao pub inglês para onde David, o meu excelente irmão, enviara todas as cartas que existiam da costa da Patagónia. Mandou‑me também informações pormenorizadas sobre os regulamentos do Governo Chileno para barcos estrangeiros, assim como um conselho para falar com um cônsul chileno num sítio qualquer da América Central. "Betty e eu mandamos saudades à Dama de Kalamazoo, se é que vocês ainda se falam!" Estava mesmo a ouvir a risadinha de David ao escrever esta frase.
Levei as cartas para o Stormchild, onde tencionava passar a tarde a estudar essa costa terrível onde a Comunidade Génesis talvez se tivesse refugiado. Estava sozinho no Stornchild, pois Jackie levara a bicicleta portátil para explorar a região e procurar lojas onde pudesse comprar provisões e roupa de Verão.
Estendi as cartas da Patagónia no poço do Stornchild, que tapara previamente com um toldo de algodão branco, e instalei‑me com um grande jarro de Bloody Mary. Descobri que o arquipélago Sangre de Cristo era um grupo de ilhas tortuosas cerca de 320 quilómetros a norte de Puerto Natales, que era onde começavam as povoações da Terra do Fogo.
Passei o dedo pelo mapa, avançando para norte, em direcção a Puerto Natales, por cima de um emaranhado de ilhas, fiordes, canais e glaciares, e reparei na estranha mistura de nomes de lugares. Na maiona, os nomes eram espanhóis, claro; alguns eram ingleses, um legado dos exploradores marítimos dos séculos XVIII e XIX; mas no meio da mistura anglo‑hispânica havia também nomes alemães, e o número desses nomes teutónicos era suficiente para recordar que muitos alemães tinham emigrado para a costa inóspita do Chile em busca de uma vida melhor.
A finca de Von Rellsteb não estava assinalada em nenhum dos mapas, mas só uma das cerca de vinte ilhas que formavam o arquipélago Sangre de Cristo parecia ser suficientemente grande para alojar um rancho. A ilha tinha o nome premonitório de ilha dos Tormentos e perguntei a mim mesmo se não teria sido baptizada com esse nome por marinheiros naufragados. A longa costa da ilha dos Tormentos, do lado do Pacífico, era representada como uma enfiada de gigantescos penhascos interrompida pelo canal Almagro, um único fiorde que penetrava tão profundamente na ilha que parecia cortá‑la ao meio. Do outro lado, a costa era ainda mais acidentada do que os penhascos voltados para o oceano: um autêntico pesadelo para os navegadores, pois era formada por recifes e ilhas separados do continente pelo estreito Desolado, um nome muito elucidativo.
Fui arrancado aos meus pensamentos pela chegada ruidosa de Jackie. Vinha carregada de sacos cheios de papaias, abacates, tomate, alhos‑franceses, ananases, molhos de rabanetes e as saborosas batatas pequenas da ilha. Via‑se que estava encantada com as Canárias.
‑ Meti conversa com uma senhora holandesa que estava num dos barcos atracado junto ao paredão e ela sabia falar espanhol e falou com a senhora da loja, que nos disse que tudo o que vendia era produzido organicamente. Não é formidável, Tim?
‑ É absolutamente, espantosamente maravilhosamente formidável ‑ respondi.
Jackie riu‑se e voltou às suas tarefas. Começou a cantar, mas a voz dela tornou‑se menos audível à medida que se aproximava do seu camarote. Enquanto estávamos no porto, eu tinha‑me instalado no camarote da ré para termos alguma privacidade.
Fez‑se silêncio no barco e deduzi que Jackie estava a descansar depois da excitação de ter descoberto comida orgânica no meio do Atlântico. Continuei a beberricar o meu Bloody Mary e a estudar as cartas. Calculei que, se a finca de Von Rellsteb ficava mesmo na ilha dos Tormentos, devia ter sido construída na costa oriental da ilha, voltada para o estreito Desolado, que era mais abrigada.
- Tim? O que é que acha? ‑ A voz inesperadamente tímida de Jackie distraiu‑me das minhas investigações sonolentas.
Ela saíra pelo albói da proa do Stornchjld para o convés banhado de sol. Levantei os olhos do estreito Desolado, piscando‑os à luz deslumbrante de um dia tropical, para ver uma Jackie Potten muito tímida com um biquini novo.
‑ Não gosta? ‑ perguntou ansiosamente perante o meu meio segundo de silêncio.
‑ Acho que é muito bonito ‑ respondi, atrapalhado. Não estava a pensar no biquini, mas sim na própria Jackie, que se revelava uma figura inesperadamente sinuosa e bem feita. Tive de olhar outra vez para as cartas como se não tivesse visto nada de especial. - Espero que também tenha comprado um bom protector solar.
- Comprei. Imenso. Foi a senhora holandesa que me convenceu a comprar o biquini. Disse que era um disparate andar coberta de roupa nos trópicos. Também comprei uns calções e uma camisa
- acrescentou precipitadamente. ‑ Não faz mal?
‑ Claro que não faz mal ‑ respondi sinceramente. ‑ Fica‑lhe muito bem.
A ideia de que estava a falar verdade pareceu‑me de repente muito embaraçosa, porque Jackie era só um ou dois anos mais velha do que a minha filha Nicole; além disso, percebi que estava a corar, por isso baixei precipitadamente a cabeça para as cartas e tentei imaginar a velocidade do vento encanado no estreito Desolado. Suspirei. Fora um disparate trazer Jackie nesta viagem, mas agora o disparate podia ser ainda maior, porque eu sentia‑me tentado a fazer figura de parvo por causa de uma miúda de Kalamazoo.
Para acalmar, enchi novamente o copo.
FICáMOS à espera dos ventos favoráveis para continuar a nossa viagem. Chegou o dia dos meus anos, e Jackie, que, não sei como, tivera conhecimento dessa data, presenteou‑me solenemente com um livro de poemas de Robert Frost que descobrira por milagre num alfarrabista de Las Palmas.
Sairam muitos barcos, mas eu continuava à espera, porque os ventos em volta da ilha eram desesperadamente fracos e eu não queria ter de levar o pesado Stormchild a motor para sul até onde os alísios sopravam permanentemente no Atlântico. Estava à espera de uma nortada e ia todos os dias ao esplendoroso Gabinete Meteorológico de Puerto de Mogán para estudar as cartas sinópticas deles. Um dos meteorologistas de serviço já me cumprimentava todas as manhãs com um "Já falta pouco, Tim, já falta pouco!"
Jackie interpretava a minha irritabilidade como uma manifestação de impaciência para sair das Canárias. Confessou que também ela começava a estar impaciente, declarando que adquirira um gosto inesperado pela vela.
‑ Dantes, costumava ir ver os iates no lago Michigan, mas nunca pensei que pudesse andar num. Pensava que os iates eram só para os ricos, ou pelo menos para a classe média!
‑ E você não é classe média? ‑ perguntei à toa.
‑ Não, de maneira nenhuma! A minha mãe trabalha numa drogaria. O meu pai deixou‑a quando nós éramos muito pequenos e nunca nos mandou dinheiro, por isso sempre tivemos uma vida difícil. ‑ Jackie falava sem se lamentar. Estava sentada num canto do poço, com os joelhos nus e bronzeados encostados ao queixo. A tarde ia no fim e atrás dela o Sol estava a pôr‑se por cima do paredão do porto, e a sua luz impregnava‑lhe o cabelo despenteado de uma beleza radiante. Riu‑se de repente. ‑ A minha mãe caía para o lado se me visse agora.
‑ Quer isso dizer que ficava satisfeita?
‑ Claro que ficava satisfeita. A minha mãe dizia sempre que eu devia apanhar mais ar, porque quando era pequena estava sempre agarrada aos livros. O meu irmão andava na rua, mas eu era a betinha da família. A minha mãe ficava embasbacada se me visse agora.
‑ É estranho, mas a verdade é que conhecemos muito mal os nossos filhos ‑ disse eu. ‑ Pensamos que os conhecemos, mas estamos enganados. Nunca pensei que Nicole fosse fazer uma estupidez. Mas quando o irmão morreu, ela perdeu completamente a cabeça.
‑ Ela gostava muito do irmão?
Assenti com um gesto de cabeça.
‑ Eram inseparáveis. ‑ Fiquei calado durante uns instantes, pensando na infância de Nicole, revolvendo as cinzas da minha culpabilidade para descobrir se era eu que a tinha tornado infeliz. O problema é que eu andava muito por fora quando eles eram pequenos, a dar a volta ao Mundo, a ganhar fama. E a Joanna tinha sempre muito que fazer, por isso os gémeos ficavam muitas vezes sozinhos. Mas eram felizes. Faziam tudo o que as crianças devem fazer. - Deitei no copo um dedo de whisky. ‑ Eu tinha muito orgulho nela. Era uma miúda difícil, mas sempre achei que era sensata.
Jackie sorriu.
‑ E isso para si é importante, não é, Tim? Ser sensato?
‑ Sem dúvida.
‑ E acha que, quando a Nicole fugiu com o Von Rellsteb, não foi sensata?
‑ Claro que não ‑ declarei com firmeza.
‑ Talvez sim, Tim. ‑ Jackie mexeu os cubos de gelo do copo e depois acrescentou uma porção de coca‑cola de dieta. ‑ Lá porque nós achamos que Caspar von Rellsteb é um tipo esquisito, não quer dizer que o grupo dele não tenha feito coisas boas. Com certeza que têm razão quando tentam impedir a pesca de arrasto e a pesca da baleia, não?
‑ Têm razão, se é só isso que fazem ‑ concordei.
Jackie pressentiu a tensão na minha voz e fitou‑me com um ar muito sério por cima da borda do copo.
‑ Está mesmo convencido de que foi Von Rellsteb quem colocou a bomba que matou Joanna, não está?
Encolhi os ombros.
‑ Não estou a ver quem mais possa tê‑lo feito. ‑ Não era uma prova muito convincente da culpabilidade de Von Rellsteb, mas era a única explicação que me ocorria para a morte de Joanna. ‑ Sabemos que Von Rellsteb recorre à violência e ao crime ... ‑ comecei, justificando as minhas suspeitas.
‑ Uma única vez! ‑ interrompeu‑me Jackie. ‑ Sabemos que cometeu um crime no Texas, Tim, mas isso foi há dez anos e não aconteceu nada a ninguém.
‑ Ouça ‑ declarei peremptoriamente. ‑ Não vou dar meia volta ao Mundo de barco sem ideias preconcebidas. Vou porque estou convencido de que Von Rellsteb é um ecoterrorista. Os fins dele podem ser bons, mas não podemos desculpar os terroristas porque concordamos com os seus objectivos políticos. Essa é a desculpa de todos os terroristas do Mundo! Os inocentes têm de sofrer para unificar a Irlanda, ou para salvar as baleias, ou para destruir Israel, ou para acabar com o apartheid, ou por qualquer outra causa do dia.
Falava com uma fúria venenosa que a conversa não justificava, porque não sabia se Von Rellsteb era ou não um terrorista. Percebi que Jackie ficara desconcertada com a minha fúria e acalmei, pedindo‑lhe desculpa.
Jackie abanou a cabeça para me mostrar que não precisava de me desculpar.
‑ Está a pensar no seu filho, não é verdade?
‑ Claro. E na Joanna.
Ela olhou para o outro lado do porto.
‑ Isto para si é uma cruzada, Tim?
‑ Uma cruzada? ‑ perguntei.
- Sim, quer dizer, já condenou o Von Rellsteb? É por isso que vai ao Chile? Para o castigar?
Era uma pergunta astuta, e quase respondi sem pensar que é claro que queria matá‑lo, mas contive‑me e disse que queria só encontrar a minha filha. Jackie abanou novamente a cabeça perante a minha resposta, mas depois franziu a testa, agitando os cubos de gelo meio derretidos do copo.
‑ E o que é que vai fazer se achar que ele está a reter a Nicole contra vontade? Não vai lutar com ele, pois não? ‑ Ficou à espera, mas eu não respondi. ‑ É melhor não, Tim, porque, como eu já lhe disse, ele era sobrevivencialista e aposto que ainda é, por isso deve estar bem armado. ‑ Arrepiou‑se com a ideia. ‑ Você não tem nenhuma arma, pois não? ‑ Falou com indignação, como se já adivinhasse a resposta.
‑ Não ‑ respondi precipitadamente. Depois, como um cretino, compliquei ainda mais a mentira. ‑ Claro que não tenho nenhuma arma. Sou inglês! Não costumamos andar armados.
‑ Mas em Key West tinha uma arma ‑ disse ela em tom de acusação.
‑ Isso foi por causa do Charles. Queria que eu tomasse bem conta do carro dele.
‑ Detesto armas de fogo. ‑ As suspeitas de Jackie começavam a desvanecer‑se. ‑ As pessoas dizem que as armas são só para defesa, mas claro que não é verdade. Podemos muito bem defender‑nos sem usarmos mecanismos inventados para matar. Não acha?
‑ Claro que sim ‑ respondi para acalmá‑la, porque não queria falar de armas.
Mas depois, porque o Sol já mergulhara atrás do paredão do porto e porque eu comandava um barco à antiga, ou seja só mantinha a bandeira içada durante o dia, passei junto de Jackie e tirei‑a do pau, dobrando respeitosamente aquele pedaço de algodão desbotado e roto.
Na manhã seguinte, incapaz de aguentar a frustração durante mais tempo, mandei um fax ao meu irmão David comunicando‑lhe o nosso destino e a data provável da chegada e depois soltei a amarração do Stormchild. Jackie ficou intrigada com a nossa partida súbita, mas o respeito que lhe inspirava a minha experiência náutica fez que aceitasse a minha explicação vaga de que a nortada ia chegar a todo o momento.
Afastámo‑nos de terra a motor e de repente, a cinco milhas ao largo, e contrariando todas as previsões meteorológicas, começou mesmo a soprar uma nortada forte. Desliguei o motor, icei as velas e arribei para sul. Esse vento inesperado provou a Jackie que eu era um génio, quando eu sabia que não passava de um embuste. Dois dias depois, chegámos à zona dos alísios e virámos a oeste, em direcção à América.
ARRIÁMOS a vela grande, prendemos a retranca a meio e içámos as duas velas gémeas de proa, uma a estibordo e outra a bombordo. O vento vinha da popa, as gémeas puxavam‑nos, o leme automático guiava‑nos, os peixes‑voadores aterravam no convés e o Stornchild ia atravessando o Atlântico.
Jackie e eu navegámos com dias soalheiros e noites fosforescentes. Não vimos outros barcos. Havia centenas de embarcações espalhadas por ali, nas latitudes dos alísios, mas navegámos em aparente solidão, perdidos na imensidade do mar morno e do céu infinito, retomando a nossa rotina dos quartos. Eu fazia o primeiro, da meia‑noite às 4 da manhã, e depois Jackie vinha para cima até às 10 horas. Em seguida, ela dormia até perto das 6 da tarde, hora a que se me juntava no poço para a nossa refeição principal do dia. às 8, eu descia para tentar dormir até à meia‑noite, hora a que Jackie me acordava para o primeiro quarto. Podia sempre chamar‑me em caso de emergência, mas nunca precisou de o fazer; além disso, declarou‑me que nem que tocasse um tambor conseguiria arrancar‑me da cama, tão profundamente eu dormia no mar. Pela primeira vez desde a morte de Joanna, dormia a noite toda sem ser atormentado pela saudade.
Numa manhã, apareceram seis golfinhos a escoltar o Stormchild. Jackie ficou extasiada; há muito tempo que eu não via ninguém com uma alegria tão grande; na verdade, desde o dia em que acordara Nicole exactamente pela mesma razão, há doze anos. A cara deliciada de Nicole mostrara uma expressão doce, pouco habitual nela, e agora o entusiasmo de Jackie reavivava essa recordação.
‑ São tão amorosos, Tim! ‑ exclamou ela, entusiasmada.
‑ E também são muito saborosos.
‑ Ora, cale a boca! ‑ Riu‑se e deu‑me uma sapatada.
Havia alturas em que parecia muito jovem e eu detestava esses momentos. Geralmente, para disfarçar os meus sentimentos, tratava‑a com uma cerimónia exagerada e ela retribuia a minha delicadeza, mas de vez em quando, por exemplo quando viu os golfinhos a saltar, esquecia a sua máscara de boas maneiras e delicadeza e a minha cicatriz reabria. Tentei convencer‑me de que a morte de Joanna me tinha tornado anormalmente vulnerável aos encantos de uma mulher jovem e defendia‑me com um comportamento exageradamente correcto. Num barco pequeno, esse formalismo teria sido impossível, mas o Stornchild era suficientemente grande para podermos ambos esconder os nossos sentimentos.
Continuámos a navegar. Dia a dia, a linha a lápis que representava o avanço do Stornchild estendia‑se mais além na nossa carta. Eu media o nosso avanço com o sextante, um processo que Jackie gostava de confirmar no receptor de satélite. Enquanto esperava que os pequenos algarismos verdes revelassem a posição do barco, habituou‑se gradualmente a confiar mais no Sol do que na caixa inteligente de circuitos gravados em placas de silício, e em breve quis aprender a utilizar também o sextante.
Ensinei‑a e foi uma alegria no dia em que pude felicitá‑la por ter calculado a nossa posição com uma aproximação de cinquenta milhas. Riu‑se, contente com a sua proeza, e depois abriu os braços como se quisesse abranger ao mesmo tempo o Stornchild e a imensidão do céu e do mar.
‑ Era capaz de fazer isto o resto da vida, Tim.
‑ Não há nada que a impeça ‑ - respondi, sentindo o coração a bater mais depressa, numa esperança vã e ridícula.
‑ Claro que há. ‑ Voltou‑me as costas. ‑ O dinheiro, o emprego, todas essas coisas.
‑ Pois ‑ respondi, sem sentir o que estava a dizer.
Continuámos a navegar, milha após milha, na travessia mais perfeita que fizera em toda a minha vida. Só quando nos aproximámos das Caraíbas é que dois aguaceiros fortes encharcaram momentaneamente o barco acima da linha de água. Pouco depois, quando o convés já secava ao sol tropical, vimos finalmente castelos de nuvens brancas amontoando‑se no horizonte, e eu expliquei a Jackie que estavam a formar‑se por cima de terra firme. Nessa noite, uma ave, uma fragata com uma cauda extravagante, pairou sobre o Stornchild e Jackie e eu começámos a ficar nervosos, como costuma acontecer à aproximação de terra. E o nervosismo causado pela relutância em trocar a segurança e a rotina do navio pelos perigos de um porto estranho.
Em breve, estávamos a salvo em English Harbour, na ilha de Antigua, onde felizmente arranjámos lugar no Dockyard Quay. Jackie, para comemorar a sua primeira travessia do Atlântico, insistiu em comprar uma garrafa de champanhe barato, que bebemos ao almoço.
UMA SEMANA depois, com o nosso barco enfeitado com todas as bandeiras que consegui arranjar, festejámos o Natal. Ofereci a Jackie um colar de coral e ela deu‑me um cachecol que tricotara às escondidas.
‑Não tenho mais nada para lhe oferecer e disse‑me que havia frio na Patagónia ‑ desculpou‑se.
- É muito bonito - respondi. ‑ Obrigado.
‑ Não é nada de especial. Comprei a lã nas Canárias.
Tive uma vontade súbita de lhe dar um beijo de agradecimento, mas não tive coragem, ou tive juízo demais, para ceder a esse impulso, e Jackie deve ter percebido que se tinha passado qualquer coisa, porque olhou para mim com uma expressão estranha, mas depois sorriu e disse:
‑ É esquisito um Natal com tanto calor, não é? ‑ Desconfiei que estava a fazer conversa para disfarçar um momento de embaraço mútuo.
Nesse mesmo dia, telefonei a David, mas ninguém atendeu. Estava à espera de uma carta dele com instruções para navegar nas costas do Chile. Resolvi esperar até ao dia de Ano Bom, mas depois diSSO, quer a carta chegasse, quer não, Jackie e eu far‑nos‑íamos ao mar. Jackie conseguiu telefonar à mãe na noite do fim do ano e depois também a Molly Tetterman.
‑ Queria vir connosco ‑ disse‑me depois quando nos encontrámos à porta dos Correios. ‑ Mas nem pensar! Ela não se cala um minuto!
Em seguida, desatou a rir quando se lembrou de que dantes eu também a acusava do mesmo defeito. De repente, com uma naturalidade impulsiva, enfiou o braço no meu quando nos dirigíamos para a doca.
‑ No princípio, tinha tanto medo de si! Não devia ter pedido para vir consigo, foi muito mal‑educado da minha parte, não foi? Mas depois de eu estar a bordo, você foi tão antipático!
‑ Não fui nada.
‑ Foi pois! Eu disse que tinha frio e você deu‑me uma descompostura! Pensei que me ia atirar borda fora!
Ri‑me.
‑ Não quero que você saia do barco ... ‑ Hesitei, sabendo que não devia dizer a palavra seguinte, mas disse‑a na mesma:
- Nunca!
Arrependi‑me logo de a ter pronunciado, pois Jackie tirou o braço do meu. Parecia chocada e eu corei.
‑ Tim? ‑ A voz dela estava repentinamente muito séria.
‑ Ouça. ‑ Comecei a tentar explicar a minha impetuosidade, e Jackie começou a falar ao mesmo tempo, mas depois calámo‑nos ambos para deixar o outro falar, e eu estava a recriminar‑me interiormente por ser tão idiota, tão desajeitado e tão obtuso quando fomos ambos interrompidos por uma voz trovejante que nos gritava do outro lado da rua:
‑ Estás aí, Tim! Que sorte! Óptimo! E Miss Potten também! Esplêndido! Ia agora mesmo para o porto, imagina que sorte encontrar‑vos aqui! ‑ Era o meu irmão David, carregado com dois enormes sacos, que ziguezagueava entre as bicicletas e os táxis para vir ter connosco. ‑ Vim alistar‑me ‑ disse, largando os sacos no chão aos meus pés.
‑ Vieste juntar‑te a nós? ‑ perguntei, horrorizado.
‑ Pois vim, meu rapaz. Concluí que tinhas razão! Precisava de variar. E de descansar. Tirei férias!
‑ A Betty deixou‑te vir?
‑ Mais que isso! Insistiu para que viesse! Deixei no meu lugar um pastor puritano que vai desviar os meus paroquianos do bom caminho, mas não quero saber disso! ‑ David voltou‑se para Jackie com um ar radiante, mas pareceu‑me que ela não tinha ficado muito entusiasmada com a chegada do meu irmão. ‑ Minha cara Miss Potten, está muito diferente!
Jackie fez‑lhe um sorriso forçado.
‑ Olá!
David levantou os sacos do pavimento.
‑ Da última vez que aqui estive, a Estalagem do Almirantado tinha uma cerveja menos má. Ainda existe?
‑ Claro que existe ‑ respondi.
‑ Então, vamos até lá, meu rapaz. Vamos até lá.
O Sol escondeu‑se atrás de uma nuvem.
ARRANJÁMOS uma mesa no pub, mas estávamos pouco à vontade, se bem que David, que vinha cheio de notícias de casa, não parecesse dar por isso. O estaleiro estava a resistir à minha ausência, anunciou. Tinha havido um fogo na loja de ferragens da rua principal da vila, mas não houvera vítimas. O bispo havia partido uma perna numa pista de esqui artificial.
‑ A culpa foi dele ‑ declarou David com uma alegria muito pouco cristã. ‑ Claro que a Igreja tem de acompanhar o ritmo dos tempos modernos, mas para isso não é preciso descer rampas de plástico!
‑ O bispo não se importou que tu tirasses férias? ‑ perguntei a David.
‑ Achou óptimo. Disse que contactar com outras culturas ia alargar os meus horizontes, mas eu respondi‑lhe que não era nada disso, que eu queria era passar um tempo a observar as aves. - David esfregou as mãos, radiante. ‑ Imagina, Tim! Pode ser que aviste um beija‑flor verde e cor de fogo!
‑ Pensei que estavas demasiado velho para aguentar a incomodidade da vida a bordo ‑ recriminei acusadoramente.
‑ Velho, eu? Só tenho cinquenta anos! Só mais três que tu, Tim ‑ disse David, rindo.
Jackie deitou‑me uma olhadela e depois desviou novamente o olhar.
‑ Então, como é que tencionas enfrentar o monstro no seu covil da Patagónia?
Desdobrei um guardanapo de papel, procurei uma caneta e desenhei um mapa tosco da América do Sul.
‑ Largamos para o Panamá o mais depressa possível ‑ disse. ‑ Depois, descrevemos uma curva no Pacífico para evitar a corrente de Humboldt e dirigimo‑nos directamente para a costa sul, talvez para Puerto Montt. ‑ Enterrei a ponta da caneta no meu mapa tosco, algures na costa sul, já muito em baixo.
‑ Estás com muita pressa ‑ observou David, acendendo o cachimbo.
‑ Tanto quanto sei, seria sensato chegar à Patagónia antes do fim de Fevereiro ‑ respondi. ‑ E até lá temos de percorrer quase cinco mil milhas, por isso tenho muita pressa, é verdade. ‑ Fiz uma pausa. ‑ Vai ser uma viagem muito incómoda, David.
David riu‑se.
‑ Ele acha que eu já não estou em condições ‑ confidenciou ele a Jackie, voltando‑se depois para mim. ‑ Estou em tão boa forma como tu, Tim.
‑ Quem é que toma conta do estaleiro enquanto estás fora? - perguntei, alarmado.
‑ O teu novo encarregado. Que, verdade seja dita, é muito bom. Sabe do ofício.
Suspirei. Há três meses implorava ao meu irmão que me acompanhasse, mas agora a sua presença significava que a bolhinha frágil em que eu e Jackie vivíamos tão delicadamente estava prestes a rebentar. Era óbvio que Jackie tinha a mesma sensação de invasão da nossa privacidade, porque quase não tinha dito uma palavra desde que nos sentáramos à mesa do pub, e agora inclinou‑se para mim, franzindo a cara queimada.
‑ Acho que, se calhar, já não precisa de mim, Tim, agora que o seu irmão está aqui.
‑ Claro que preciso de si ‑ retorqui precipitadamente.
‑ Tem de haver um cozinheiro em todos os barcos! ‑ interveio David com a mesma falta de tacto horripilante.
‑ Cala a boca! ‑ repreendi‑o bruscamente, voltando‑me depois para Jackie. ‑ Não pode abandonar o navio agora!
‑ O que eu estava a pensar era que devia ir a casa para ver se está tudo bem por lá ‑ disse ela, ignorando a presença de David na mesa. ‑ Sabe, a minha mãe e o apartamento ... ao fim e ao cabo vim‑me embora sem mais nem menos! Acho que devo ter coisas para resolver.
‑ Está a abandonar a Comunidade Génesis? ‑ perguntei, incrédulo.
‑ Não, tenho de ir a casa, é só isso. E enquanto lá estiver, tento arranjar dinheiro para o avião e vou ter consigo ao Chile. Acho que, se vamos mesmo encontrar a Comunidade Génesis, tenho de estar preparada. Nem sequer trouxe uma máquina fotográfica! Onde é que já se viu um jornalista sem máquina?
‑ Eu tenho uma ‑ declarou David.
Parecia não se ter dado conta do efeito causado pela sua presença. Bom homem, mas pouco intuitivo. Abriu o fecho de correr de um dos seus sacos e tirou de lá uma máquina de trinta e cinco milímetros. Jackie continuou a falar como se o meu irmão não tivesse aberto a boca.
‑ E se for a casa, talvez consiga vender a história a um jornal, Tim. Agora sei muito mais coisas sobre a Génesis do que antes e talvez algum jornal importante se interesse pelo que eu tenho a dizer.
‑ Mas porque é que não faz a reportagem primeiro e depois a vende a um jornal?
‑ Não sei, Tim.
Jackie lançou uma olhadela rápida ao meu irmão, sugerindo‑me assim que a chegada inesperada de David era a verdadeira razão que a levava a ir‑se embora. David, que não era homem para desistir às boas, empurrou a máquina na direcção de Jackie.
‑ Pode ficar com ela, minha filha, com a minha bênção.
‑ Não, de maneira nenhuma ‑ disse Jackie, tentando empurrar a máquina para o lado dele.
‑ Claro que sim ‑ declarou Davidcomo seu sorriso mais benevolente. ‑ Além do mais, você parece‑me muito frágil para se servir de uma daquelas espingardas. Não é que eu ache que vamos precisar delas. ‑ David engrenou outra velocidade mental, fazendo um ar muito sério. ‑ De resto, tenho de falar contigo por causa do que vamos fazer na Patagónia, Tim. Espero que não aches que sou pusilânime, mas estive a pensar que não posso colaborar em actos de violência. Não ficava bem no jornal da paróquia! ‑ Fez um sorriso a Jackie. ‑ E aquelas velhas Lee‑Enfields dão um coice dos diabos, por isso não me parece que você tenha força para as disparar.
‑ Lee‑Enfields? ‑ perguntou Jackie. São armas de fogo, Tim?
-Há duas carabinas automáticas a bordo do Stornchild - disse‑lhe francamente. Escondi‑as antes de vir. - Na altura, pareceu‑me boa ideia.
Jackie olhou‑me friamente.
‑ Quer dizer que durante este tempo todo em que dizia que ia procurar a sua filha para falar com ela, na realidade tencionava recorrer à violência?
‑ Não! ‑ insisti sem convicção, porque estava novamente a mentir. Percebi que Jackie não acreditava na minha negação pouco convicta, por isso tentei apresentar outra justificação mais plausível. ‑ Se fôssemos atacados, tínhamos de conseguir defender‑nos.
Jackie atirou com o guardanapo para cima da mesa.
‑ E eu que estava convencida de que íamos ao Chile fazer uma reportagem! Descobrir a verdade! Não estou disposta a participar num plano idiota para me meter numa guerra! ‑ Tinha os olhos marejados de lágrimas. ‑ Não vou participar minimamente na sua violência inútil, fanática e primitiva! ‑ Lançou um olhar furioso a David. ‑ Nem mesmo como cozinheira!
Empurrou bruscamente a cadeira para trás e afastou‑se por entre as mesas. David gemeu:
‑ Desculpa, Tim.
‑ Trata tu da conta ‑ disse‑lhe eu.
Fui atrás de Jackie, mas ela já tinha saído a correr do pub em direcção ao cais, e quando cheguei à rua, à luz forte do Sol, já saltara para o convés do Stormchild.
‑ Jackie! ‑ gritei quando ela desapareceu pelo albói do iate.
‑ Deixe‑me em paz!
Quando cheguei ao salão do Stormchild, Jackie já estava trancada no seu pequeno camarote da proa.
‑ Não quero que se vá embora! ‑ gritei por detrás da porta.
‑ Não vou participar numa expedição de assassinos! Não foi para isso que eu vim! Queria fazer uma boa reportagem e ajudar os pais dos miúdos que fugiram com Von Rellsteb, mais nada! Por isso, de agora em diante vou tratar da minha vida sozinha!
Percebi pelo seu tom de voz que estava quase a chorar.
‑ Jackie! Saia daí e fale comigo! ‑ disse. ‑ Por favor!
‑ Só se atirar as carabinas pela borda fora.
‑ Talvez eu faça isso se você sair daí e falar comigo ‑ respondi.
Mas esta cedência pouco entusiástica só mereceu o silêncio de Jackie, ou melhor, o barulho que uma rapariga faz quando está a enfiar a roupa num saco de marinheiro.
‑ Jackie! ‑ Abanei a porta trancada do camarote.
‑ Deixe‑me em paz!
‑ Desculpe ‑ pedi eu. ‑ Vou fazer um chá e depois converSamOS. Está bem? ‑ Não obtive resposta. Bati com mais força. - Jackie!
Silêncio total. Corri novamente para o salão e subi para o convés do Stormchild, onde verifiquei que o albói da proa estava aberto e que o pássaro tinha escapado. Apanhei um táxi e fui a toda a pressa até ao pequeno aeroporto da ilha, mas não a encontrei.
‑ HÁ UMA EXPLICAÇÃO óbvia para o comportamento da rapariga ‑ disse‑me David uma semana depois.
Fora uma semana difícil. Falávamos de assuntos neutros, como a navegação e os quartos, mas nenhum de nós mencionara a partida abrupta de Jackie. David, percebendo que se comportara em Antigua com a subtileza de um pedregulho despenhando‑se por uma encosta, parecia envergonhado por ter desencadeado aquela explosão de emoções, e eu sentia‑me só e muito infeliz. Mas agora, quando o Stornchild caía de chapa na cava de uma onda maior do que as outras, o meu irmão tentou finalmente lancetar o abcesso de silêncio que se criara tão dolorosamente entre nós.
‑ Explica lá o que é assim tão óbvio ‑ pedi‑lhe finalmente.
‑ A rapariga estava apaixonada por ti.
‑ Obrigado, David ‑ retorqui causticamente. ‑ E agora cala‑te.
Eu esperara durante três dias que Jackie voltasse para o Stornchild, mas ela não aparecera e ninguém atendia o telefone da sua casa. Finalmente, convencido de que a acção seria melhor do que a cólera, saí para o mar, içando todas as velas para atravessar no grande iate o mar das Caraíbas como se o Diabo em pessoa viesse atrás de nós. Agora, passadas quatro noites sobre a nossa largada de English Harbour, David e eu partilhávamos o quarto do pôr do Sol enquanto ele timonava o Stormchild, que se aproximava rapidamente do canal do Panamá. Olhei para o mar tumultuoso e agitado, para lá da capota de temporal, que escorria água.
‑ Não era ela que estava apaixonada por mim, David ‑ comentei após uma longa pausa. ‑ Eu é que estava apaixonado por ela.
David sorriu, como se eu tivesse dito uma coisa muito engraçada, mas depois percebeu de repente que talvez estivesse a dizer a verdade e ficou horrorizado.
‑ Mas a rapariga tem idade para ser tua filha!
‑ E achas que eu não sei isso? ‑ explodi.
‑ A culpa foi minha ‑ disse David com uma expressão de nobreza abnegada. ‑ Eu é que a entusiasmei a ir contigo. Mas era só para te poupar o trabalho de cozinhar e de lavar a roupa. Nunca julguei que fosses fazer figura de tolo!
‑ Mas agora está feito ‑ respondi amargamente. ‑ Por isso, o melhor é não falarmos mais no assunto.
‑ Tu tens idade para ser pai dela, Tim! ‑ David renunciara completamente ao tacto e tentava agora animar‑me fazendo troça de mim.
‑ Cala a boca!
Continuámos a navegar em silêncio, e o fumo do cachimbo de David formava um rasto na direcção do vento. O meu irmão parecia muito satisfeito consigo mesmo por me ter dito algumas verdades. Eu devia estar a fazer uma cara muito infeliz. Não conseguia esquecer Jackie, e a minha ideia fixa era a esperança desesperada de que ela estivesse à nossa espera no porto de Colón, à entrada do canal do Panamá.
Chegámos a Colón duas semanas depois, mas não havia nenhum recado para nós no Iate Clube do Canal do Panamá, nem depois, no Iate Clube Balboa, onde o grande canal desembocava no Pacífico. Por isso, David e eu continuámos o nosso caminho com um vento húmido e um mar cinzento.
ENTRÁMOS na zona das calmarias desesperantes e das correntes contrárias, contra as quais tivemos de lutar para avançar lentamente, palmo a palmo e dia após dia, na vastidão solitária do Pacífico, até que, uma semana depois de termos saído do Panamá, um vento forte nos arrancou finalmente à nossa letargia, inclinando as velas do Stornchild.
O vento levou‑nos para o ar mais frio que a corrente de Humboldt empurrava para norte. Dez dias após termos saído do Panamá, guardei os calções e tirei para fora as calças compridas, e três dias depois fui buscar ao paiol do Stornchild o meu anorak.
Quanto mais avançávamos para sul, mais o tempo piorava. Parecíamos ter entrado numa região de nuvens perpétuas, mas eu sabia que nos aproximávamos finalmente de uma costa invisível devido ao número crescente de petréis, gaivotas‑cinzentas, andorinhas‑do‑mar e procelárias que se acercavam do Stornchild. Um dia, quando medimos a temperatura da água, o termómetro registou seis graus, o que significava que estávamos mesmo no coração da gelada corrente de Humboldt.
Até à data, nas nove mil milhas da viagem do Stornchild, tínhamos escapado a grandes temporais, mas nessa noite, quase como se a Comunidade Génesis soubesse da nossa chegada iminente e tivesse invocado os espíritos das profundezas para nos deter, começou a soprar um vento terrível de nordeste e o barómetro veio por aí abaixo.
David, arrancado do beliche, ajudou‑me a rizar as velas. Ambos envergávamos anoraks e botas de borracha e tínhamos os cabos dos arneses presos ao chão do poço. O vento tornou‑se cada vez mais forte e à meia‑noite tínhamos arriado todas as velas menos o estai de tempo, que nos arrastava a toda a velocidade pelo turbilhão do mar bravio e do vento uivante. Mas o Stormchild aguentou muito bem o temporal.
Uma vez, à luz cintilante de um relâmpago que rasgou o céu, vi que David estava a rezar. Instantes depois, ele foi corajosamente lá abaixo e conseguiu aquecer uma sopa, que trouxe para cima em equilíbrio precário. Poucas vezes tinha comido qualquer coisa que me soubesse melhor.
Os primeiros alvores da madrugada mostraram‑nos um mar furioso desfeito em espuma branca pela fúria do temporal, mas a ira dos elementos já estava a acalmar e daí a pouco, quando nasceu o dia cinzento, pudemos finalmente içar as velas de proa e virar na direcção da costa, ainda invisível.
‑ Se o que ouvi dizer da Patagónia é verdade, esta brisa não passa de uma amostra do que está para vir ‑ disse David, premonitório.
‑ Sem dúvida.
‑ Mas o barco merece bem o seu nome ‑ observou com satisfação.
E era verdade. O Stornchild tinha resistido à fúria do vento com facilidade e segurança.
Nessa tarde, enquanto saboreávamos um whisky e o Stornchild deixava atrás de si uma esteira rápida, espumosa e sibilante na ondulação larga do Pacífico, os picos distantes do Chile apareceram no horizonte, a leste, semelhantes a nuvens esfarrapadas. Finalmente, avistávamos terra, as altas montanhas cobertas de neve dos Andes erguendo‑se atrás da costa da Patagónia. David observou as montanhas com o binóculo e depois levantou o copo de plástico numa homenagem sentida aos meus dotes de navegador.
‑ Muito bem, maninho, muito bem!
Primeiro, não respondi. Fiquei a olhar para as faíscas de luz rosada reflectidas pela neve à distância e lembrei‑me de que Jackie teria ficado encantada quando avistasse terra.
‑ A vida é muito estranha ‑ comentei finalmente, levantando o copo em resposta ao elogio do meu irmão.
Ficámos de capa, pois não queríamos chegar de noite a uma costa desconhecida. O Stormchild, como se estivesse impaciente com a nossa cautela, agitou‑se toda a noite nas ondas curtas e cavadas, até que a aurora insidiosa recortou no horizonte as silhuetas dos picos longínquos, e finalmente, à sombra do vulto sombrio das montanhas, desferrámos as velas do Stormchild, soltámos o leme e aproámos a terra.
LUTÁMOS durante horas contra ventos contrários e um mar hostil, tentando não só avançar como também resistir à malevolência de um oceano que nos atacava de todos os lados com as suas ondas em cristas sucessivas.
Jackie Potten não estava à minha espera em Puerto Montt. Atrevera‑me a alimentar essa esperança, mas sabia que sofreria uma desilusão.
‑ Não estás ainda com saudades da rapariga, pois não? ‑ perguntou‑me David ironicamente.
‑ Isso não é da tua conta.
‑ Ora, desculpa se te incomodo ‑ respondeu‑me, ofendido.
A nossa amizade estava em crise. Ambos o sabíamos, mas nenhum de nós sabia como é que podíamos salvá‑la. David queria que eu esquecesse Jackie, que a expulsasse da minha mente como se ela nunca tivesse existido, mas eu continuava a sentir a falta dela. Ao mesmo tempo, porém, o meu entusiasmo crescia, porque de dia para dia aproximávamo‑nos mais de Nicole.
Ao fim de uma semana, estávamos 400 milhas a sul de Puerto Montt e, com a vela grande rizada, tentávamos dobrar o cabo Raper, o ponto mais ocidental do continente chileno. Dado que era a única parte dessa costa selvagem onde não havia nenhum canal interior, éramos obrigados a dobrar o cabo por mar. Depois de o termos ultrapassado, poderíamos novamente tirar partido dos canais abrigados que ficavam por detrás das ilhas da barreira.
David, que alternava os quartos comigo, estava agarrado com força à balaustrada. O seu olhar tinha uma expressão desconfiada, como se aquele mar vasto e ventoso fosse uma manifestação da ira do seu Deus. Estávamos ambos estafados, com as palmas das mãos esfoladas e doridas dos cabos, mas pelo menos o Stormchild navegava em segurança, apesar do cansaço da tripulação.
O nosso último momento de verdadeiro descanso fora em Puerto Montt, onde tínhamos cumprido as formalidades alfandegárias e recebido os nossos vistos para noventa dias. Depois, obedecendo aos regulamentos de navegação do Chile, tínhamos pedido uma licença de navegação à Armada Chilena.
‑ Em princípio, devem comunicar‑nos todos os dias pelo rádio a vossa posição ‑ disse‑nos num inglês perfeito um oficial da Armada fardado de preto, o comandante Hernandez. ‑ Mas se eu fosse aos senhores, não me dava a esse trabalho, porque na verdade ninguém quer saber para onde é que vão. A propósito, para onde é que vão?
Por momentos, pensei em dissimular porque a Comunidade Génesis podia ter contactos na Armada, mas os modos amigáveis de Hernandez levaram‑me imediatamente a considerar que a ideia era ridícula e por isso falei‑lhe dos nossos planos de exploração do arquipélago Sangre de Cristo.
‑ Mas para quê, meu Deus?
‑ Para observar as aves ‑ menti‑lhe, pois não me pareceu sensato admitir que nos arriscávamos a entrar em confronto armado com um grupo de ecologistas sobrevivencialistas que, segundo me parecia, tinham matado a minha mulher e estavam a reter a minha filha contra vontade.
‑ Viemos observar o beija‑flor verde e cor de fogo ‑ declarou convictamente David, reforçando a minha mentira.
‑ Não sou lá muito entendido nisso ‑ observou Hernandez, que não parecia estranhar a ideia de haver homens dispostos a percorrer milhares de milhas marítimas para observar uma ave. ‑ Mas acho que talvez tivessem melhor sorte mais para sul.
Enquanto o comandante Hernandez preparava os nossos documentos oficiais, fui até à parede que ficava do outro lado da secretária dele para estudar as cartas de grande escala coladas umas às outras, formando um mapa continuo. Examinei de perto a ilha dos Tormentos e vi que alguém tinha assinalado com um quadradinho feito a tinta um ponto exacto da costa da ilha onde me parecera provável que uma comunidade se pudesse instalar. Voltei‑me para Hernandez, tentando não manifestar o menor interesse.
‑ Há alguma aldeia de pescadores nas ilhas? Algum sítio onde se possa comprar provisões?
Hernandez carimbou a nossa licença com o seu selo de borracha e depois abanou a cabeça numa negação.
‑ Não há nenhuma aldeia de pescadores num raio de cem milhas; só uma comunidade de hippies em Tormentos. São uma gente muito estranha. Metem‑se nos barcos e vão implicar com os Japoneses, mas a nós não nos aborrecem. Nenhum pássaro suja o próprio ninho, não é verdade?
‑ Claro.
Hernandez atravessou o compartimento em direcção à parede dos mapas e apontou com o dedo para a marca desenhada a tinta, confirmando assim as minhas suspeitas relativamente ao esconderijo da Comunidade Génesis.
‑ De resto, duvido muito que os hippies possam ajudá‑lo se esgotar as suas provisões ‑ disse com desprezo. ‑ Vivem miseravelmente. Até pode ser que já tenham morrido todos. Os invernos ali são muito duros. Muito duros.
Estendeu‑me cerimoniosamente a licença de navegação do Stornchild e desejou‑nos felicidades.
Uma semana depois, estávamos a ser sacudidos pelas ondas alterosas e encharcados pela chuva, lutando contra um vento contrário para dobrar o cabo Raper e chegar ao golfo de Penas. Depois de termos atravessado o golfo, descobriríamos se os hippies miseráveis continuavam vivos. Estava a aproximar‑me de Nicole.
Ao ATRAVESSARMOS o golfo de Penas, o vento e o mar tornaram‑se terríveis. Refregas sucessivas revolviam as águas e o vento nunca abrandou para menos de força sete nem nunca se desviou do sul, por isso levámos três dias à bolina cerrada para avançar para sul, atravessando o canal que nos conduziria ao estreito Desolado.
Escapámos às grandes ondas oceânicas enfiando por uma rede de canais delimitados por rochedos negros e abruptos de mais de cento e vinte metros de altura. Esses grandes penedos mergulhavam os canais estreitos numa escuridão perpétua onde se levantavam cortinas de água que caíam depois novamente. às vezes, chovia tanto que era difícil perceber onde começavam as cortinas de água e acabava o céu, e pairava sempre um nevoeiro cerrado que impregnava o Stornchild.
Mas as águas da Patagónia também tinham as suas compensações. Na quarta noite que passámos nos canais, o mau tempo começou finalmente a abrandar. Ao crepúsculo, o nevoeiro baixo levantou, permitindo‑nos avistar a cerca de quatrocentos metros de distância uma encosta arborizada. Ouvimos qualquer coisa a chapinhar e, quando nos voltámos nessa direcção, vimos um bando de lontras‑marinhas a brincarem no nosso rasto, ao mesmo tempo que, à proa, umas vinte tartarugas revolviam as águas, agitando as barbatanas. Em terra havia colónias de pinguins saltitando nas rochas, enquanto por cima das nossas cabeças milhares de painhos cor de fuligem, vindos do mar alto, voavam em revoada na direcção dos seus abrigos. Imediatamente antes do anoitecer, avistámos dois leões‑marinhos perseguindo peixe. Estas visões demonstravam‑nos que navegávamos numa das últimas grandes regiões verdadeiramente selvagens do Mundo, onde não se viam barcos nem outros sinais da presença humana.
Quando acordámos na manhã seguinte, vimos que o tempo tinha melhorado mesmo. A aurora trouxera o Sol e um céu limpo e transparente. O vento amainara e à nossa volta havia o brilho repentino da luz reflectida na água, um milhão de aves marinhas e um cenário tão majestoso que David e eu ficámos com um nó na garganta. è‑nos dado viver muito poucos momentos assim nesta terra: momentos em que nos é concedida uma visão do Mundo tal como ele devia ser no instante glorioso da Criação.
‑ "Deus, vendo toda a Sua obra, considerou‑a muito boa." - David, que, tal como eu, deixara crescer a barba, citou do Livro do Génesis.
Levantámos ferro e pusemos o motor do Stormchild a trabalhar. O som do motor pareceu‑nos uma afronta à beleza dos canais. Os penhascos erguiam‑se da água verde e brilhante, e lá muito ao longe, avistados por entre as ilhas dispersas, os picos cobertos de neve dos Andes eram o espinhaço de um continente. Cisnes de pescoço negro saíram nadando de um riacho, remando no nosso rasto. A única nota discordante era uma das nossas duas carabinas encostada à amurada, pois David, sabendo que tínhamos penetrado por entre as ilhas exteriores do arquipélago Sangre de Cristo, insistira em ir buscá‑la ao esconderijo.
‑ Se bem que duvide muito que vá ser precisa ‑ declarou. - Acho que aquele oficial de Puerto Montt tinha razão quando disse que a Comunidade Génesis não ia sujar o próprio ninho. ‑ David abriu a culatra da carabina e foi buscar um frasco de óleo de limpeza. ‑ Rezo para que as armas não sejam necessárias, mas acho que isso vai depender da nossa reacção se formos recebidos com hostilidade ‑ disse fervorosamente.
Encolhi os ombros, como se achasse que isso não tinha importância, mas a verdade é que essa questão me obcecava cada vez mais à medida que a quilha do Stormchild engolia as milhas marítimas. Partira de Inglaterra com um único objectivo bem definido: encontrar e salvar Nicole, mas, como David sugerira, a realização desse objectivo simples dependia da recepção que a Comunidade Génesis fizesse ao Stornchild.
‑ Estás a sugerir que devo oferecer a outra face? ‑ perguntei-lhe.
David enfiava um quadrado de flanela pelo cano da carabina.
‑ Acho que, se formos recebidos com violência, temos de retirar ‑ disse lentamente. ‑ Talvez seja necessário disparar em legítima defesa, mas fora isso temos de nos comportar com a maior circunspecção. ‑ Fez‑me um meio‑sorriso. ‑ Claro que não é assim que acontece nos romances, Tim, mas acho que não podemos arriscar‑nos a ferir ou matar alguém.
Eu sabia que David tinha razão, mas não queria admiti‑lo. Não atravessara o Atlântico até ao hemisfério sul para me render ao primeiro sinal de hostilidade de Von Rellsteb.
‑ Se conseguir provar que Von Rellsteb matou Joanna, eu mato‑o a ele ‑ declarei finalmente a David. ‑ Com a tua ajuda ou sem ela.
‑ Não matas nada ‑ replicou pacientemente David. ‑ Se descobrirmos as provas de um crime, chamamos as autoridades, e se as autoridades não fizerem nada, pedimos ajuda à Embaixada Britânica de Santiago. Se o embaixador insistir com as autoridades chilenas em que a Comunidade Génesis é um antro de criminosos, a Armada manda logo um barco‑patrulha para estas águas.
Encolhi os ombros, rendendo‑me aos seus argumentos.
‑ Está bem, não nos metemos em heroismos ‑ disse. ‑ Vamos fazer um reconhecimento e batemos em retirada ao primeiro sinal de hostilidade. ‑ Falava com azedume, mas sabia que David tinha razão. Não éramos personagens de uma saga de John Buchan, mas sim dois irmãos de meia‑idade.
David sorriu perante o meu desapontamento, tentando consolar‑me:
‑ Se tivermos sorte, encontramos a Nicole sem mais complicações. Afinal, temos Deus do nosso lado.
Foi assim que, com Deus do nosso lado e armados de um bom‑senso cauteloso, prosseguimos viagem naquele paraíso límpido e sereno. David desceu para fazer o almoço e eu, impaciente e cheio de vontade de chegar depressa, pus o motor do Stornchild a trabalhar.
Depois do almoço, a maré deixou de ser a favor e o Stornchild começou a lutar com uma corrente de água que penetrava por entre dois promontórios escuros que, se a minha carta estava certa, assinalavam a nossa entrada no estreito Desolado.
‑ Agora já falta pouco ‑ disse nervosamente.
Não havia sinais da presença da Comunidade Génesis; pelo contrário, parecia que David e eu éramos as duas primeiras pessoas a invadir esta região selvagem. Passámos por entre os dois promontórios e o canal alargou novamente. David apontou repentinamente para uma faixa de terreno acidentado e arborizado que se estendia para lá de um promontório rochoso baixo e disse que lhe parecia que aqueles picos ficavam na ilha dos Tormentos.
Fitei, extasiado, os picos que se recortavam de encontro ao céu e pensei em Nicole com um surto de alegria súbita e inesperada. Estava prestes a salvar a minha filha e certamente que o amor intenso que existia antigamente entre nós ressuscitaria quando nos encontrássemos. Tinha o coração tão cheio de amor e de esperança que não me atrevia a falar com medo de começar a chorar. Desafiara o carrasco de Nicole, Von Rellsteb, dera a volta ao Mundo para a encontrar e agora ela estava ali muito perto. Adivinhando os meus sentimentos, David disse:
‑ Vai ser bom voltar a ver Nicole.
‑ Vai ficar espantada quando nos vir! ‑ retorqui.
A nossa conversa era forçada, porque nenhum de nós era capaz de exprimir por palavras a apreensão que sentíamos.
‑ Talvez devêssemos arriar as velas ‑ aventei para disfarçar a nossa perturbação.
Enrolámos o pano. Eu ia ficando cada vez mais nervoso à medida que nos aproximávamos da baía assinalada nas cartas do gabinete do comandante Hernandez como sendo o local onde estava instalada a Comunidade Génesis.
SEMPRE imaginara uma grande casa de quinta de estilo vitoriano, com beirais entalhados, torreões e grandes varandas, e por isso, quando vi finalmente a quinta, sofri uma desilusão imediata, pois mais parecia um amontoado de barracões degradados.
A feia casa e os seus anexos estavam abrigados por um semicírculo de colinas e situavam‑se no topo de um relvado que descia até à praia de calhaus da baía. A casa, voltada para o mar, era muito comprida e desproporcionadamente baixa, com dezasseis janelas em cada um dos seus dois andares. Uma dúzia de chaminés de pedra sobressaía do telhado de chapa ondulada e duas delas deitavam fiapos de fumo que traíam a presença de habitantes.
A casa tinha duas alas térreas, de cerca de dezoito metros cada uma, que deviam delimitar um pátio nas traseiras. As duas alas eram de pedra esbranquiçada, tal como o corpo principal, e tinham o mesmo feio telhado de chapa metálica. A única construção que se parecia com o que eu esperara era um mirante de ferro forjado que se erguia em frente da casa e que oferecia a quem se sentasse nesse abrigo uma vista desafogada do estreito Desolado. Os edifícios estavam rodeados por hortas que, mesmo naquele lindo dia de sol, tinham um aspecto desolado e improdutivo, e numa encosta abrupta, a cerca de oitocentos metros, erguia‑se uma antena de rádio alta e esguia, fortemente escorada para resistir aos ventos selvagens da ilha.
‑ Que lugar desolador! ‑ exclamou David, horrorizado.
Os edifícios pareciam desertos, mas do lado esquerdo da baía, atracado a um velho cais de pedra, estava um barco de pesca de aspecto igualmente decrépito pintado de verde‑veneno. A bandeira do arrastão era um trapo verde desbotado. Os únicos barcos que se viam além desse eram alguns caiaques puxados para a praia.
Desacelerei o motor do Stornchild, pois a sonda acusava o declive acentuado do fundo da baía.
‑ Vou ancorar e remar até terra. Ficas aqui?
‑ Com todo o prazer. Não se pode dizer que seja um lugar lá muito simpático, não achas? ‑ David teve um arrepio perante o aspecto pouco convidativo da colónia.
Quando a sonda indicou que a profundidade da água eram nove metros, David largou ferro. Estávamos a cinquenta metros de terra e a casa ficava a cem metros da pequena praia. Desamarrei o bote e atirei‑o por cima da popa do Stornchild, saltando lá para dentro com uns remos e umas forquetas. Levei também um rádio VHF portátil que David monitorizaria com o rádio grande do Stormchild. Perguntou‑me se queria levar também a segunda carabina, mas abanei a cabeça.
‑ Não quero antagonizá‑los.
‑ "Homem branco vir em paz", não é? ‑ disse David com uma jocosidade que pretendia disfarçar o seu nervosismo.
‑ Deseja‑me sorte ‑ respondi, empurrando com o remo o casco do Stornchild para me afastar.
O barco era a minha carapaça, a minha segurança, e, ao remar para longe do casco maltratado pelo mar, sentia‑me inquieto. Quando cheguei perto da praia de calhaus, tinha o coração a bater com força. Tive uma tentação tímida de voltar imediatamente para o Stormchild, mas em vez disso remei com força, até sentir a proa do bote a raspar nas pedras. Saí do bote e puxei‑o para a praia, até acima da linha da maré, para ficar em segurança. A praia era delimitada por um talude pedregoso de cerca de dois metros de altura onde havia sido construída uma escada de degraus de madeira. Subi os degraus e comecei a atravessar a relva baixa e esponjosa.
Dirigi‑me para a porta principal da casa, emoldurada por uma latada, um toque decorativo tão estranho como o mirante. Não me apareceu ninguém ao caminho, e de resto o sossego do dia não era perturbado pelo menor ruído humano. Mas nesse momento a porta dupla da casa abriu‑se de par em par e dois homens barbudos, vestidos com fatos verdes iguais, irromperam para a luz do Sol. Ficámos a olhar uns para os outros durante um momento. De repente, fiquei muito feliz. Ia ver Nicole.
‑ Olá! ‑ saudei‑os.
‑ Vá‑se embora ‑ disse um dos homens.
Pareciam ter uns trinta e tal anos. O homem que falara tinha uma barba preta cerrada, ao passo que a do seu companheiro era castanha, com madeixas grisalhas. Nenhum deles parecia estar armado, o que era tranquilizador.
Comecei a andar na direcção deles e uma mão invisível bateu imediatamente com as portas da casa, fechando‑as. Ouvi correr o ferrolho.
‑ Vá‑se embora! ‑ repetiu o homem da barba preta.
‑ Ouça ‑ repliquei cordialmente. ‑ Acabo de percorrer dez mil milhas de barco para ver a minha filha e não me vou embora só porque a si não lhe apetece ter visitas. Chamo‑me Tim Blackburn. Como está? ‑ Estendi‑lhe a mão. ‑ Venho à procura de Nicole Blackburn. Ela está aqui?
Ignoraram a minha mão estendida. Ficaram em frente de mim, de braços caídos, desafiando‑me a avançar.
‑ Não me ouviram bem? ‑ perguntei delicadamente. - Chamo‑me Tim Blackburn e vim ver a minha filha Nicole. ‑ Tentei passar ao lado deles e o homem da barba grisalha levantou a mão para me empurrar para trás. ‑ Atreva‑se a tocar‑me ‑ disse eu e racho‑lhe o crânio.
A minha hostilidade súbita fê‑lo desviar‑se do meu caminho como um coelho assustado. Passei por ele e espreitei pela janela que ficava mais perto da porta. Vi através dos vidros sujíssimos um compartimento vazio onde só havia uma mesa montada em cavaletes.
‑ Tim? Aqui Stormchild, escuto.
O rádio portátil falou subitamente de dentro da algibeira do meu anorak.
‑ David? Aqui Tim, escuto.
‑ Tim. Acabo de ver um tipo de fato verde a correr para os montes atrás da casa. Parecia levar uma arma. ‑ A voz de David tinha um tom ansioso. ‑ Estás a ouvir‑me? Escuto.
‑ Estou a ouvir‑te e vou ter cuidado ‑ respondi.
‑ Lembra‑te da nossa combinação! Se houver sarilhos, batemos em retirada!
‑ Talvez o tipo só tenha ido caçar patos ‑ respondi.
Enfiei o rádio na algibeira e sorri aos dois homens barbudos, que se tinham aproximado para ouvir a minha conversa.
Ignorando os homens, avancei pela lama até à ala direita da casa. Esse prolongamento térreo não tinha janelas, mas haviam sido escavadas aberturas irregulares nos blocos de calcário. Os meus dois companheiros barbudos seguiram-me a uma dúzia de passos de distância quando eu dei volta à casa até às traseiras, verificando que as duas alas delimitavam realmente um pátio aberto. Tirei o rádio da algibeira e carreguei no botão de transmissão.
‑ David? Há um pátio nas traseiras da casa. Vou dar uma vista de olhos por aqui. Estes dois diabos não querem falar comigo e a casa está fechada, por isso não sei se a Nicole está aqui ou não. Provavelmente, vamos perder o contacto por rádio quando eu estiver no pátio, mas se eu não te contactar dentro de um quarto de hora, o melhor é vocês pegarem nas armas e virem buscar‑me. Terminado.
Achei boa ideia os meus companheiros mudos e hostis pensarem que o Stornchild estava a abarrotar de homens armados. Entrei no pátio húmido e vazio.
‑ Tem de se ir embora. ‑ Era evidente que o homem da barba preta estava cada vez mais inquieto com a minha bisbilhotice atrevida.
‑ Onde está a Nicole? ‑ perguntei‑lhe alegremente, mas mais uma vez ele não me deu resposta. ‑ O Caspar está cá? ‑ perguntei novamente, mas com o mesmo resultado.
Fui até à porta das traseiras da casa, que também estava aferrolhada, como era de prever. Espreitei por uma janela gradeada e vi estantes cheias de armas.
Depois, explorei a outra ala. Havia galinhas em dois compartimentos, que pareciam antigas cavalariças, mas fora isso não vi nenhum ser vivo, além de um gato assanhado que bufou lá do alto do telhado de chapa raiada de ferrugem. Parei numa das esquinas do edifício para olhar para a crista da escarpa onde estava instalada a antena de rádio, mas não vi o atirador referido por David.
Dirigi‑me para a ala esquerda do edifício e, uma vez lá chegado, parei, assombrado, quando vi uma dúzia de jovens de fatos‑macaco cinzentos desbotados que se aproximavam das casas empurrando penosamente um grande carrinho de mão carregado com uma pilha de troncos cortados recentemente. Este grupo de trabalhadores, que compreendia várias crianças, era escoltado por dois homens barbudos que, tal como os dois guardas que continuavam a seguir‑me Os passos, vestiam calças e casacos verdes.
Os lenhadores, que estavam ainda a uns cem passos das casas, imobilizaram-se quando me viram.
‑ Olá! ‑ gritei, dirigindo-me para eles.
‑ Vá‑se embora! ‑ Um dos homens vestidos de verde empunhou um machado que estava no carro da lenha e avançou para mim.
Parei a cinquenta passos da carroça.
‑ Chamo‑me Tim Blackburn ‑ gritei. ‑ Vim ver a minha filha, Nicole. Alguém sabe onde posso encontrá‑la?
Nenhum dos membros do grupo me deu resposta. As mulheres de uniforme cinzento estavam muito juntas e pareciam tremer com um medo colectivo da minha pessoa. O homem do machado, que tinha uma barba ruiva, avançou decididamente para mim.
‑ Caspar von Rellsteb está cá? ‑ perguntei‑lhe.
‑ Tem de se ir embora. ‑ O homem do machado tinha pronúncia americana.
‑ Estou farto de vocês todos ‑ declarei resolutamente, e tentei aproximar‑me das mulheres assustadas.
O homem da barba ruiva balançou imediatamente o machado na minha direcção. Foi um golpe violento, mas que falhou completamente o alvo. Mais que isso, ele desequilibrou‑se com a força da investida e recuou, vacilando. Dei dois passos rápidos em frente e enfiei‑lhe com toda a força na virilha a biqueira da bota de borracha.
Ele abriu muito os olhos, largou o machado, que caiu na lama, e depois caiu ele também com um grito súbito e lancinante. Os outros homens barbudos fizeram um ar aterrado. Peguei na arma caída no chão.
‑ Onde está a Nicole?
‑ Vá‑se embora. ‑ O homem da barba preta parecia assustado.
O homem que eu agredira estava deitado no chão a gemer e a soluçar. David, que já me via do poço do Stormchild, exigia insistentemente que eu o informasse do que estava a passar‑se, mas a única resposta que lhe dei foi um alegre aceno de mão. Depois, atendendo a que os homens de verde estavam obviamente derrotados, atirei o machado para o chão e dirigi‑me para as mulheres. Mas antes de lhes poder dar uma só palavra, um dos homens gritou:
‑ Fujam! Depressa! Vá! ‑ Abanou as mãos como se estivesse a espantar galinhas, e as mulheres, lançando‑me um último olhar, fugiram para os montes, com as crianças agarradas às mães a correrem e a chorarem.
Ouviu‑se um tiro. O atirador, que devia estar escondido na crista da escarpa, disparara, e a bala bateu no chão com um ruído surdo a cinco passos de mim. àquela distância, a pontaria era muito boa e calculei que devia ter sido um tiro de aviso, destinado a fazer‑me parar. E se assim era, resultou. Parei.
‑ Tim! Responde! ‑ guinchou a voz de David no rádio. - Sugiro que retires, Tim. Já fizemos o que era possível.
‑ Não fizemos nada. ‑ Estava obstinado, estupidamente obstinado.
Enfiei novamente o rádio na algibeira e olhei, resoluto, para o homem da barba preta.
‑ Fiz mais de dez mil milhas para ver a minha filha e não me vou embora sem falar com ela. Onde é que ela está?
A única resposta que obtive foi uma rajada de arma automática que revolveu um bocado de terra próximo de mim. Os tiros estavam tão próximos que torci instintivamente o corpo e quase caí.
David, convencido de que a minha queda indicava que eu fora ferido, respondeu ao tiro. A velha carabina do Exército Britânico era muito mais ruidosa do que a espingarda‑metralhadora do atirador escondido, e ainda antes de o eco do primeiro tiro se ter desvanecido na baía, David disparou novamente.
O efeito foi extraordinário. Os três homens barbudos que me enfrentavam voltaram costas e fugiram. O atirador que estava nos montes começou a disparar tiros isolados muito perto de mim. A pontaria dele mostrava que, se quisesse, já me tinha matado. Mas a Comunidade Génesis pretendia apenas expulsar‑me, e, estimulado pela pontaria certeira do atirador, dei meia volta e dirigi‑me para a praia. O atirador escondido cessou imediatamente o tiroteio. Peguei no rádio sem parar.
‑ Não consegui nada ‑ informei David.
‑ Volta mas é para o barco ‑ disse ele, e a sua voz traía nervosismo.
Cheguei ao talude acima da praia, parei e hesitei durante uns segundos, voltando‑me para trás para lançar um olhar de desafio em direcção à feia casa.
Desci os degraus e comecei a puxar o bote para a água, mas entretanto o atirador da Génesis começou novamente a atirar com fúria. David respondeu do poço do Stormchild.
Larguei o bote, subi os degraus a correr até meio da escada e espreitei cautelosamente sobre a borda para ver o que é que estava na origem daquele tiroteio. Uma figura vestida com um fato‑macaco cinzento desbotado corria freneticamente para a praia. Era uma mulher jovem e, por instantes, tive esperanças de que fosse Nicole, mas depois vi que a rapariga tinha cabelo preto como a noite enquanto Nicole era loura. A fugitiva tropeçou e caiu, levantou‑se novamente a custo e depois desceu o talude aos rebolões e correu para mim. Empurrei o bote para a água.
‑ O ferro! ‑ gritei para David. ‑ Iça o ferro!
A rapariga, com os olhos esbugalhados numa expressão de terror, avançou, vacilante, pelas ondas na água pouco funda e depois trepou desajeitadamente sobre a proa do bote. Subi atrás dela, peguei nos remos e remei com força em direcção ao lado de lá do Stormchild.
‑ Suba para bordo! ‑ disse eu à rapariga depois de termos dado a volta à popa do iate.
Ela içou‑se obedientemente, agarrada aos embornais do Stornchild, e depois, rastejou até ao poço. Ouvi um tilintar estranho e percebi finalmente porque é que ela corria tão desajeitadamente na sua fuga. Estava agrilhoada.
Subi a bordo atrás dela, prendendo o cabo do bote ao balaústre mais próximo do Stornchild.
‑ O ferro está em cima! ‑ gritou David. Já tinha posto o motor do Stormchild a trabalhar e por isso só era preciso engatá‑lo. Quando o Stormchild já estava a ganhar velocidade, David disse: - Eu sabia que isto ia acabar mal!
‑ Ainda não acabou! ‑ repliquei.
Depois, baixei‑me quando uma saraivada de balas disparadas de uma distância excessiva silvaram por cima da minha cabeça. Desconfiei que o bando de homens armados que corria para o velho arrastão era muito mais perigoso.
‑ Eles vão perseguir‑nos de certeza ‑ disse eu a David. Leva a nossa hóspede para baixo. Tenta serrar as correntes e dá‑lhe de comer.
‑ As correntes? ‑ Ele abriu muito os olhos quando viu as grilhetas.
David levou a rapariga para o salão, ao mesmo tempo que uma última rajada desesperada vinda dos montes silvava por cima das nossas cabeças. Depois, ficámos escondidos do atirador quando o Stormchild dobrou a ponta do promontório arborizado e fomos arrastados pela corrente, que nos pôs a salvo. Estávamos a afastar‑nos rapidamente do arrastão, cuja chaminé cuspia uma pluma de fumo escuro e gorduroso, indicando que o seu velho motor estava a trabalhar à força máxima.
Dispararam um tiro do arrastão e a bala fez ricochete no painel da popa do Stormchild. Uma segunda bala fez saltar uma lasca de teca da antepara. Tinham boa pontaria, boa demais, por isso agarrei na carabina que David largara e disparei dois tiros contra os nossos perseguidores.
‑ Por amor de Deus! O que é isto? ‑ Os tiros faziam que David se sentisse cada vez mais ameaçado pelo escândalo: um servidor de Deus que travava uma guerra privada no Chile.
‑ Estou a meter medo aos infiéis.
Disparei novamente e depois voltei para o leme do Stornchild.
O nosso barco era muito mais rápido do que o deles, e os tiros dos nossos inimigos ou já não nos alcançavam ou falhavam o alvo.
Cinco minutos depois, o ronco do motor diesel do arrastão atenuou‑se e a embarcação feia e malcheirosa deu meia volta, desistindo da perseguição. Estávamos salvos. Tínhamos passado por maus momentos, mas, tanto quanto me parecia, nenhum dos membros da Génesis ficara ferido, e nós e a nossa passageira estávamos também em segurança.
Desci para o salão e vi que David serrara as grilhetas da rapariga, que estava agora sentada em frente do calorífero, enrolada num dos nossos cobertores. Parecia ter uns vinte e tal anos e estava pálida, trémula e aterrorizada.
‑ Olá ‑ cumprimentei o mais animadamente que me foi possível.
Ela deitou‑me um olhar assustado, mas não disse nada. David encolheu os ombros desamparadamente, como se quisesse dizer que a rapariga tinha perdido o juízo.
‑ Dá‑lhe uma refeição quente ‑ sugeri. ‑ Quando eu puder, volto cá abaixo.
Ao crepúsculo, estávamos trinta milhas a norte da ilha dos Tormentos. Quando o sol começou a projectar uma sombra púrpura nas ravinas, entrei com o Stornchild numa baía abrigada e larguei ferro. Depois de ter inspeccionado o casco para detectar os estragos feitos pelas balas e descoberto que estava milagrosamente ileso, desci para investigar o que é que a nossa passageira sabia acerca da minha filha, se é que sabia alguma coisa. Quando me sentei junto dela, a rapariga encolheu‑se, quase como se julgasse que eu ia bater‑lhe.
‑ Não tenha medo ‑ entoei delicadamente. ‑ Não tenha medo. Não vou fazer‑lhe mal nenhum.
Ela acalmou um pouco e eu continuei a falar‑lhe o mais docemente que era capaz para a sossegar. Era uma rapariga de olhos escuros e cabelo preto que devia ter sido bonita, mas que agora tinha uma cara magra e assustada, de pele baça e com olheiras. Tinha o cabelo escorrido e despenteado e umas feridas com mau aspecto nos tornozelos, que estavam em carne viva nos sítios onde as grilhetas lhe haviam arranhado a pele.
‑ Como é que se chama? ‑ perguntei‑lhe.
Ela ia abrir a boca para responder, mas só conseguiu emitir um gemido patético. Tive de a acalmar e ameigar durante mais dez minutos bem contados até que ela recuperasse a voz, surpreendendo‑me com a sua resposta.
‑ Berenice ‑ disse. ‑ Chamo‑me Berenice.
‑ Berenice. ‑ Repeti o nome e depois lembrei‑me de que a amiga de Jackie Potten se chamava Berenice Tetterman. ‑ Você chama‑se Berenice Tetterman e é de Kalamazoo, no Michigan. Conheço a sua amiga Jackie. Ela tem andado à sua procura. E a sua mãe também.
As minhas palavras provocaram uma nova torrente de lágrimas, mas finalmente ela conseguiu fazer uma pergunta que parecia considerar muito importante.
‑ Algum de vocês está doente?
‑ Não, claro que não ‑ respondi no tom em que falamos para tranquilizar uma criança que imagina que estão monstros escondidos debaixo da cama.
Ela recuou para me olhar bem de frente.
‑ Jura?
‑ Juro por tudo o que há de mais sagrado ‑ declarei solenemente.
‑ E porque ele diz que as pessoas estão a morrer em toda a parte. Diz que o vírus da sida é como a peste negra. ‑ Berenice falava com os olhos muito abertos e uma expressão de terror e depois recomeçou a chorar.
David desceu pelo albói.
‑ Tudo calmo lá fora ‑ anunciou.
Acendeu a luz da cozinha e começou a preparar uma refeição.
Eu continuei a afagar o cabelo de Berenice e lentamente, muito lentamente, consegui extrair uma história das profundezas do seu terror.
Caspar von Rellsteb persuadira os seus adeptos de que o mundo exterior fora tão gravemente atingido pelo vírus da sida que a vida normal se tornara quase impossível. Convencera assim os seus discípulos de que a sua única salvação era permanecerem naquela ilha desértica. Sem dúvida que era um meio de controle extraordinariamente eficaz.
Descobri uma revista noticiosa que tinha enfiado numa gaveta para evitar que os talheres chocalhassem.
‑ Leia isso ‑ disse‑lhe. ‑ Vai ver que corre tudo normalmente no Mundo.
A rapariga folheou as páginas manchadas da revista, que falavam de guerras, reféns e terroristas, mas não de um flagelo mundial tão terrível como as pestes que assolavam a Europa medieval. O seu olhar de medo transformou‑se a pouco e pouco numa expressão de assombro.
‑ Caspar não nos deixa ler revistas nem jornais, porque não nos devemos deixar contaminar pelas coisas do exterior. Temos de permanecer puros, diz ele, porque vamos mudar o Mundo. Alguns de nós queriam ir‑se embora, mas ele não deixou.
‑ Conhece Nicole Blackburn? ‑ perguntei ansiosamente. Berenice acenou afirmativamente, mas não adiantou nada. ‑ Ela estava hoje na aldeia? ‑ perguntei.
Berenice abanou a cabeça, mas não respondeu, e eu percebi que as minhas perguntas insistentes a assustavam. Tentei tranquilizá‑la novamente.
‑ Sou o pai de Nicole e vim à procura dela. Sabe onde é que ela está?
‑ Se não estiver no mar, está na mina ‑ disse finalmente Berenice. Depois, lançou‑se numa explicação, dizendo que ela e os outros não estavam autorizados a ir à mina. ‑ Mas fui lá uma vez porque nos mandaram limpar um barco ‑ acrescentou. ‑ Não é uma mina de verdade, é uma pedreira de calcário, mas há lá umas casas velhas.
‑ A Nicole mora na mina? ‑ perguntei.
‑ As tripulações não moram lá ‑ respondeu Berenice, franzindo a cara no seu esforço para se explicar. ‑ Mas a Nicole mora. A maioria das tripulações ficam na colónia quando estão em terra, mas Nicole não. Fica nos barcos, percebe, e abrigam‑se na mina porque na colónia tiveram problemas graves com o vento sul e o ancoradouro da mina é muito mais seguro. Nicole é o mestre de um dos barcos, percebe. Dizem que é melhor marinheiro do que os outros todos, ainda melhor do que Caspar.
David trouxe uma malga de sopa e um naco de pão quente com manteiga para cada um de nós, e Berenice devorou tudo como se não comesse há semanas.
Enquanto mastigava, foi‑nos contando que havia uma grande diferença entre os tripulantes dos iates da Génesis, que vestiam de verde, e os trabalhadores da colónia, que usavam uniformes cinzentos. Os trabalhadores, tal como adivinhara Jackie Potten, eram autênticos escravos dos privilegiados, os membros das tripulações.
Começou a falar‑nos das tarefas diárias da colónia, mas eu já não a ouvia. Estava a assimilar a verdade desagradável de que Nicole não era uma das vítimas de Von Rellsteb, mas sim um dos tripulantes privilegiados. Não era uma prisioneira; tinha o seu próprio barco e podia ir para onde quisesse, mas nunca me quisera procurar.
David, percebendo que me era muito difícil aceitar a notícia dada por Berenice, encarregou‑se da continuação do interrogatório, perguntando quantas pessoas havia na Génesis.
‑ Na colónia, somos trinta e um e penso que os das tripulações são pelo menos trinta. E há catorze crianças.
‑ Nicole tem algum filho? ‑ perguntei.
‑ Acho que não. ‑ Engoliu mais uns tragos de sopa. ‑ Mas a Lisi teve um.
‑ Quem é a Lisi? ‑ perguntei.
‑ É a namorada do Caspar ‑ disse Berenice. ‑ Tambem é alemã. Foi ela que me obrigou a andar acorrentada.
‑ Foi um castigo? ‑ perguntou David.
‑ Foi. Deixei queimar um guisado ‑ disse Berenice, parecendo estar muito arrependida desse crime terrível.
‑ Quer dizer que você é a cozinheira do grupo? ‑ perguntei.
‑ Eu faço de tudo. Trabalho na terra, limpo as casas, curto as peles
‑ As peles? ‑ interrompeu David.
‑ Caçam lontras‑marinhas e vendem as peles na Terra do Fogo ‑ explicou Berenice. ‑ De princípio, as peles eram só para nós, porque fazia muito frio, mas agora também as vendem.
‑ Belos ecologistas! ‑ exclamei, indignado.
‑ E porque é que decidiu fugir hoje? ‑ perguntou David a Berenice.
A rapariga apresentou uma série de razões: os horrores da vida na colónia, o frio e a humidade constantes e o facto de todos os luxos estarem reservados para as tripulações da Génesis, esses membros especiais do grupo vestidos de verde. Depois, vira o Stormchild ancorado ao largo.
‑ O vosso barco foi o primeiro desconhecido que vi aqui na baía ‑ disse com uma expressão maravilhada que era comovente.
‑ A Armada Chilena nunca aqui vem? ‑ perguntou David.
‑ De princípio, apareciam, mas não vejo nenhuma vedeta há mais de dois anos. ‑ Berenice hesitou. ‑ Mas acho que esteve lá outro barco.
‑ Conte lá ‑ incitei‑a.
‑ Não o vi ‑ respondeu, na defensiva. ‑ Foi Paul quem me falou nisso. É um dos tripulantes. O mais simpático. ‑ Calou‑se, mas depois resolveu‑se a dizer tudo. ‑ Paul disse que apareceu um iate australiano no princípio do Verão, com três pessoas a bordo, mas que tinham todos sida. Quando adoeceram, puseram‑nos de quarentena e eles morreram.
Olhou para a cara de David, que tinha uma expressão céptica, e depois para a minha.
‑ Como é que se chamava o barco australiano? ‑ perguntou David baixinho.
‑ Naiad ‑ disse Berenice. ‑ Era um catamarã. Agora é da Nicole e chama‑se Génesis Quatro. Até ficámos surpreendidos quando ela escolheu esse nome, porque estava zangada com Caspar.
‑ Zangada? ‑ perguntei.
‑ Foi depois de os australianos terem morrido. ‑ Berenice franziu a cara, tentando lembrar‑se dos pormenores da história, mas depois encolheu os ombros, desistindo. ‑ É por isso que Nicole mora na mina, e não na colónia. Paul disse‑me que Caspar tem medo de Nicole, mas não sei se isso é verdade.
‑ Onde é que fica a mina, Berenice? ‑ perguntei.
David, adivinhando o objectivo da minha pergunta, fez um ar de desaprovação.
‑ É mesmo na ponta do estreito Desolado, mas não podem lá ir, não podem! ‑ O terror que irrompia da sua voz era autêntico. ‑ Se lá forem, eles apanham‑me e castigam‑me. Levem‑me para fora daqui, por amor de Deus!
Começou novamente a tremer, sacudida por grandes soluços, por isso deitei‑a e tapei‑a com outro cobertor. Depois, livre do encargo de a tranquilizar, levantei‑me e espreguicei‑me.
‑ Acho que temos provas mais do que suficientes de actividades criminosas para exigir a intervenção das autoridades chilenas ‑ disse David.
‑ Actividades criminosas? ‑ repeti, troçando de David, que era juiz de paz e gostava de usar termos jurídicos. ‑ Achas que andei dez mil milhas no mar para descobrir provas de actividades criminosas?
‑ Sim! ‑ exclamou severamente. ‑ Foi o nosso acordo, Tim! Concordámos em fazer um reconhecimento. E já o fizemos! Até conseguimos arranjar uma testemunha de primeira. O que é que podemos fazer mais? A nossa obrigação agora é ir buscar ajuda competente.
‑ O que tu vais fazer é lá contigo ‑ repliquei. ‑ Mas eu vou fazer o meu quarto.
Peguei na carabina, que estava encostada ao primeiro degrau da entrada, e subi até lá acima, onde um milhão de estrelas brilhava sobre aquela região selvagem.
Fiquei sentado no poço do Stornchjld, com a carabina atravessada em cima dos joelhos, e meditei na facilidade com que o Mundo se divide em exploradores e explorados e em como essa divisão simplista se reflectia nos uniformes verdes e cinzentos da Génesis. E Nicole, a minha adorada Nicole, andava de verde. Confiavam nela, estava autorizada a navegar em águas distantes. Provavelmente, sabia dos assassínios e de coisas piores, e, apesar de ser muito difícil para mim encarar esta última suspeita, pelo menos sabia que Nicole não era vítima. Era exploradora.
Continuava sentado no poço do Stormchild, de olhos secos e cheio de amargura, quando ouvi os passos de David, que subia pelo albói.
‑ Não conseguia dormir ‑ explicou bruscamente. ‑ Trouxe‑te um café. ‑ Pousou a caneca junto de mim e depois instalou‑se no banco do lado oposto. ‑ Lamento.
‑ Lamentas o quê? ‑ perguntei.
‑ Estavas a pensar na Nicole, não era?
‑ É carne da minha carne, David!
‑ É por isso que lamento.
Ficou calado durante muito tempo. A água marulhava de encontro ao casco e o ar estava tão frio que o nosso hálito deitava vapor.
‑ Tomei algumas decisões, Tim ‑ continuou o meu irmão finalmente.
‑ Optimo. Esplêndido.
Eu não estava a facilitar‑lhe a tarefa.
‑ O que nós temos de fazer é ir até Santiago e recrutar ajudas como deve ser. ‑ Falava com o entusiasmo forçado do comandante de um grupo de escuteiros que tem de convencer um miúdo renitente. ‑ Não tenho dúvidas de que a nossa embaixada nos vai dar ouvidos e tenho a certeza de que o Governo Australiano vai estar interessado na história que a rapariga nos contou ontem. Por isso, acho que amanhã logo de manhã devíamos levantar ferro e navegar para norte.
‑ E o que é que tencionas fazer em relação a Nicole?
‑ Vai ter de arcar com as consequências, tal como os outros respondeu David, embaraçado. ‑ Tenho a certeza de que não fez nada de mal e que por isso não tem nada a temer da parte das autoridades.
Tal como eu, David estava a tornear a questão da culpabilidade de Nicole. Fiquei calado uns instantes, contemplando o brilho frio das estrelas.
‑ Não acredito que ela seja uma assassina‑ disse finalmente. ‑ Acho que Von Rellsteb é, mas Nicole não.
‑Segundo essa ordem de ideias, não faz mal chamarmos as autoridades, pois não?
‑ Mas quero saber ao certo o que é que ela é ‑ continuei, como se David não tivesse falado. ‑ Quero vê‑la antes de lhe largar os cães à perna.
Um luar pálido iluminava a névoa esbranquiçada que se levantava das águas negras, por isso o Stormchild parecia flutuar no vapor sob o dossel da luz silenciosa das estrelas.
‑ Como é que está o barómetro? ‑ perguntei de repente.
‑ Continua a subir. Acho que vamos ter pelo menos mais um dia de bom tempo.
‑ Se quiséssemos mesmo ir até Santiago, David, já era tarde demais.
‑ Claro que não...
Interrompi‑o friamente:
‑ Para chegar a Santiago, tínhamos de ir primeiro até Valparaíso, o que significa que era preciso dobrar o cabo Raper. Já estamos metidos nesta baía há nove horas, o que significa que os barcos da Génesis nos levam muito avanço. Sabem perfeitamente que temos de dobrar o cabo, por isso vão lá estar à nossa espera.
‑ Não podemos ter a certeza disso ‑ respondeu ele teimosamente.
Voltei a cabeça para o olhar de frente.
‑ Queres apostar a tua vida nessa incerteza? ‑ Ele não me deu resposta. ‑ Da colónia já entraram em contacto com a mina por rádio e os barcos que lá estavam já saíram para nos perseguir. Sabem que o catamarã deles é mais rápido do que o Stormchild e por isso esperam apanhar‑nos muito antes da madrugada. Mas o que eles não sabem é que nós estamos aqui escondidos e que por isso já passaram por nós.
‑ Ah! ‑ exclamou David, mais animado. ‑ Estás a sugerir que devemos ir para sul, para Puerto Natales? Boa ideia! Podemos telefonar de lá para a embaixada.
‑ Não ‑ disse eu. ‑ Estou a propor irmos à mina.
Fez‑se silêncio e depois David explodiu num protesto.
‑ Não estás bom da cabeça, Tim! Nem sequer sabemos se Nicole lá está! E de qualquer maneira a mina fica na ponta do estreito, e quando lá chegássemos, ficávamos encurralados como um rato dentro de uma bota de borracha! Meu caro Tim, compreendo a tua preocupação, mas temos de ser sensatos.
‑ Não estava a pensar ir pelo estreito Desolado ‑ repliquei mansamente. ‑ A minha ideia era tentar entrar pelo canal Almagro.
‑ Perdeste a cabeça! ‑ O protesto de David foi tão veemente que acordou as aves marinhas nos seus ninhos.
O canal Almagro era o fiorde profundo e sinuoso que começava na costa do Pacífico e quase cortava em dois a ilha dos Tormentos. Na carta, o fiorde parecia ir até a um local apenas a três ou quatro quilómetros da pedreira de calcário e portanto muito perto do covil da Comunidade Génesis, mas era uma passagem muito perigosa. A entrada do fiorde era estreita, orlada de rochedos e completamente exposta ao impacte dos vagalhões do Pacífico. Com mau tempo, era impraticável, mas essa entrada perigosa talvez fosse navegável se o bom tempo se mantivesse. E era um risco que me parecia valer a pena correr se eu queria descobrir mais coisas sobre a minha filha.
LEVEI o Stormchild para fora do seu refúgio antes do romper do dia. Icei as velas e, quando o barco entrou no oceano, fomos empurrados pelo vento, que nos levou rapidamente para o local onde as grandes ondas se levantavam e rebentavam de encontro aos penhascos abruptos da costa das ilhas exteriores. Desliguei o motor, cacei as velas e senti o exultar do marinheiro que sai de canais rodeados de rochas e entra no mar alto.
David cozinhou ovos com bacon enquanto Berenice, que vestira o fato de oleado de Jackie, subia ao poço e contemplava o céu e o mar, absorta e maravilhada. Pareceu ficar aterrada com a ideia de voltar para a ilha, mas expliquei‑lhe que ela não tinha de ir a terra.
‑ Eu vou a pé até à mina e você pode ficar com David ‑ disse‑lhe. ‑ Demoro pouco tempo.
‑ Vai procurar Nicole? ‑ perguntou‑me timidamente.
Fiquei um momento calado enquanto virava de bordo e depois olhei outra vez para Berenice.
‑ Vou. Você não gosta da Nicole, pois não? ‑ Percebera‑o na noite anterior pela hesitação com que Berenice falara dela.
‑ É muito brava ‑ disse Berenice.
‑ Sempre foi ‑ respondi calmamente. ‑ E muito competente e não tem paciência para as pessoas que não são tão desembaraçadas como ela. Não me admira que tenha brigado com Caspar von Rellsteb. Foi por causa do catamará australiano?
Não esperava resposta, mas, com grande surpresa minha, Berenice mostrou‑se de repente muito loquaz.
‑ Não foi por causa disso ‑ respondeu. ‑ Foi porque Nicole acha que devíamos ser mais activos. Diz que é contraproducente estarmos isolados na América do Sul. Acha que devia haver Comunidades Génesis em todo o Mundo.
‑ Isso são mesmo coisas dela, sempre pronta para mandar na vida de toda a gente e para conquistar o Mundo ‑ comentei.
Depois, num acesso de franqueza, Berenice confessou que muitos membros da Comunidade achavam que Nicole tinha razão e que o sonho de Von Rellsteb falhara.
‑ Mas porque diabo é que não fugiu mais cedo? Porque é que não protestou?
- Porque quando tentávamos fazer essas coisas éramos castigados. Não pela Nicole, porque ela anda quase sempre embarcada - acrescentou em meu benefício. ‑ Quer dizer, se há alguém que está a fazer qualquer coisa útil, é Nicole.
Ora aí estava pelo menos uma boa notícia acerca da minha filha que me levou a pensar que talvez me tivesse deixado embalar, sem razão, pelas minhas suspeitas.
A meio da manhã, o vento soprava com mais força e virara a sul e a pesada proa do Stormchild batia nas ondas com um estremeção perceptível. David estava francamente pessimista relativamente à possibilidade de entrarmos no canal Almagro, porque a ondulação era forte e essas grandes ondas podiam ser fatais quando rebentavam de encontro aos rochedos das ilhas da barreira. Se bem que eu tencionasse entrar no canal a motor, tinha de se ser muito bom marinheiro para levar a cabo essa proeza difícil.
Depois de entrarmos no fiorde, esperava‑nos ainda uma viagem de quinze milhas antes de podermos ancorar para a noite. Eu tencionava desembarcar na escuridão, fazer o meu reconhecimento antes do amanhecer e regressar ao barco sem ser visto nem ouvido pela gente da Génesis.
‑ Ali está! ‑ disse David ao princípio da tarde.
Passou‑me o binóculo e vi na grande linha dos penhascos um ponto onde a espuma era atirada a grande altura pelo vento forte. Por detrás dessa cortina de espuma dispersa e brilhante havia uma fenda escura nos rochedos. Estava diante da costa oeste da ilha dos Tormentos e dessa fenda terrivelmente estreita que me poderia conduzir até ao covil da minha filha. Accionei o motor de arranque do Stormchild.
‑ Vamos, força! ‑ murmurei para o grande motor diesel quando o motor de arranque começou a fazê‑lo roncar.
Eu sabia que David queria voltar para trás, mas que o seu orgulho não lhe permitia fazer essa confissão. Fechou os olhos e começou a falar com Deus. Berenice, com os nós dos dedos brancos da força que fazia, estava agarrada às pegas por baixo da capota de temporal.
Eu estava de pé ao leme, com as pernas bem escoradas para aguentar o balanço forte do barco, e tentava compreender a batalha titânica das ondas que nos barravam a entrada na boca do fiorde. As grandes vagas, nascidas nas profundezas do Pacífico, percorriam milhares de quilómetros para virem martelar de encontro às rochas da Patagónia. Quando uma dessas ondas maciças batia nos rochedos, grande parte da sua energia era refractada sob a forma de uma onda reflexa que ia chocar de frente com o vagalhão trovejante que se seguia. Quando as ondas reflexas chocavam com a onda que avançava, produziam grandes erupções de espuma, semelhantes às explosões de gigantescos obuses de artilharia.
‑ Volta para trás! Por amor de Deus, Tim! ‑ gritou David, dando finalmente largas ao medo. ‑ Disseste que não íamos correr riscos! Anda, volta para trás!
Uma grande onda levantou a popa do Stornchild, e eu senti toda a força bruta do grande oceano a empurrar‑nos para a frente. Acelerei ao máximo o motor, numa tentativa de manter a velocidade do barco. A boca do fiorde era negra como as portas estreitas do Inferno. Vi a superfície molhada do rochedo a bombordo e instintivamente fiz guinar o barco para estibordo, mas exagerei. Berenice deu um grito, pois parecia que eu estava a virar o barco direito aos recifes serrilhados que ficavam a estibordo, à proa. Rodei o leme para o outro lado, mas de repente deixei de ter de fazer força e percebi que estávamos a ser guiados pelas ondas e que o grande leme de aço do Stormchild já não fazia nada. Éramos um míssil de aço projectado por uma força maciça de encontro a uma escarpa rochosa. Berenice agachou‑se, David abriu muito os olhos e eu senti o leme a tremer nas minhas mãos.
Durante uns instantes, fomos arrastados pelo remoinho. De repente, apareceu a bombordo um grande buraco negro na base de uma onda que revelou um rochedo escuro coberto de algas e mexilhões. Ouvi Berenice gritar de terror e depois, de repente, os rochedos estavam à nossa direita e à nossa esquerda, sentimos a ondulação a passar regularmente por debaixo de nós e vimos um turbilhão de espuma lá atrás. Tínhamos passado!
‑ Foi canja ‑ disse eu. Mas ao mesmo tempo parecia‑me que nunca mais ia conseguir abrir os dedos gelados, colados à roda do leme.
‑ Facílimo ‑ respondeu David, mas a voz dele tremia tanto como a minha.
Acelerei novamente o motor. Atrás de nós, as ondas rebentavam estrondosamente na entrada do fiorde, tentando agarrar‑nos, mas nós tínhamos escapado à sua fúria.
Berenice ficava cada vez mais nervosa à medida que íamos penetrando mais profundamente no fiorde. Fiz o possível por tranquilizá‑la, mas ela parecia paralisada de medo enquanto o Stormchild avançava direito ao coração da ilha.
A meu pedido, David fora buscar a segunda carabina ao esconderijo da proa do Stormchild e agora vigiava nervosamente a sonda. Observou que o barómetro continuava a descer. Se se levantasse de repente muito vento, arriscávamo‑nos a que o Stormchild ficasse preso no interior do fiorde. Combinámos portanto que, no caso de o tempo piorar enquanto eu estivesse a fazer o meu reconhecimento na mina, David levava o barco de volta para o mar e esperava depois por uma mensagem do rádio VHF portátil que eu ia levar comigo para terra.
Só quase ao crepúsculo é que o Stormchild chegou ao fim do fiorde, onde o mar formava um grande lago de águas agitadas pelo vento. As praias de calhaus estavam orladas de cinturas arborizadas, onde os fetos, o musgo e as fúcsias‑bravas formavam maciços verdes emaranhados por debaixo das faias enfezadas. Um pica‑peixe voou como um raio de luz sobre as águas cinzentas quando a âncora do Stormchild desceu com um chocalhar de correntes até ao fundo da lagoa. Esperei no convés que o brilho avermelhado do sol‑poente se extinguisse e depois desci para o interior do barco. David ficaria de quarto durante as horas mais escuras da noite, até que rompessem os primeiros alvores da madrugada e eu partisse para a jornada final.
ANDAVA no mar há tempo demais. Tinha muita força na parte de cima do corpo, de lutar com o leme do Stormchild e de puxar os cabos, mas a minha resistência e os músculos das minhas pernas pareciam atrofiados pelas longas semanas que passara confinado ao barco.
Já amanhecera e eu subia a encosta muito inclinada por detrás das árvores que orlavam a praia. Levava uma das carabinas do Stormchild e um saco com munições, a minha faca de marinheiro, uma lanterna eléctrica, um binóculo, o rádio portátil, um termo de chá e um grande pedaço de bolo inglês. Também enrolara doze metros de cabo de nylon de doze milímetros à volta do tronco, porque Berenice me avisara de que havia lugares na ilha que eram inacessíveis sem uma corda de alpinista.
Atrás de mim, lá em baixo, via o Stormchild na névoa cinzenta que se evaporava da superfície tranquila do mar. Acordara e tomara o pequeno‑almoço no escuro, trocara as minhas botas de borracha por umas de marcha, enfiara duas camisolas e um velho casaco de caça de algodão impermeabilizado e depois David levara‑me a terra no barco a remos. Revistámos a praia até encontrarmos uma pedra do tamanho e da forma de um prato raso e combinámos que David me deixaria um bilhete escondido debaixo-dessa pedra se fosse obrigado a sair para o mar com o Stormchild. Caso contrário, encontrar‑nos‑íamos novamente ao pôr do Sol. David tinha‑me dado muitas instruções prudentes e complicadas, e depois apertara‑me cerimoniosamente a mão, desejando‑me boa sorte.
‑ Mas nada de heroismos, Tim!
‑ Nada de heroismos ‑ concordei.
‑ Eu rezo por ti! ‑ disse ele com tanta convicção que me senti genuinamente reconfortado.
Levei mais de uma hora a chegar à crista do monte. Quando lá cheguei, parei, suado e ofegante, e tirei do saco o pequeno rádio portátil. O aparelho estava sintonizado para o canal 37, uma frequência VHF que mais ninguém, além de David, devia estar a monitorizar nestes confins da Patagónia.
‑ Estou na tua linha do horizonte ‑ disse‑lhe.
David respondeu imediatamente.
‑ Terra, terra, aqui Stormchild. Levaste bastante tempo a subir o monte, hem? Vês alguma coisa? Escuto. ‑ O meu irmão servia‑se sempre do rádio de acordo com todas as regras, mesmo que só eu e ele estivéssemos no ar.
‑ Nada.
à minha frente não havia, como eu esperara, uma encosta comprida e inclinada descendo para a mina, mas sim uma depressão larga e desértica com um ar suspeitamente pantanoso.
‑ Como é que está o barómetro? ‑ perguntei a David.
‑ Terra, terra, aqui Stormchild. O barómetro continua a descer. Já vai nos mil e trinta e três milibares. Escuto.
‑ Se continuar a descer dessa maneira, o melhor é fazeres‑te ao mar ‑ aconselhei a David.
‑ Terra, terra, aqui Stormchild. Concordo. Daqui a uma hora, faço outra leitura e depois decido. E agora sugiro que poupes as pilhas. Terminado.
Desliguei o pequeno rádio, enfiei‑o no saco e continuei a minha caminhada.
A depressão era mesmo um pântano de água gelada que me sugava as botas e que esgotou completamente o resto das minhas forças. Começara a chuviscar, mas os chuviscos em breve se transformaram num dilúvio que escondeu completamente o horizonte. De acordo com as informações de Berenice, as instalações da mina ficavam logo depois da crista montanhosa que delimitava a depressão do outro lado e que não ficava a mais de quilómetro e meio de distância, mas já tinham sido necessárias duas horas de uma marcha lenta e penosa, feita à chuva, para eu conseguir atravessar o pântano até ali.
Finalmente, o terreno começou a ser mais firme e a subida mais íngreme, sinal de que estava a chegar ao outro lado da depressão. à minha esquerda, via um pico rochoso muito semelhante aos penhascos de granito de algumas regiões de Inglaterra, ao passo que à minha frente a linha do horizonte parecia estar obstruída por uma muralha de blocos de gelo. Só quando já me encontrava a poucos passos de distância dos blocos, é que vi que eram grandes pedras calcárias esbranquiçadas espalhadas ao longo da crista da montanha por cima da pedreira. Ofegante, dorido e cansado, atirei‑me para a turfa molhada e olhei para leste.
Por baixo de mim, estavam as instalações da pedreira de calcário. A pedreira propriamente dita era uma vasta ferida que devia ter uns oitocentos metros de largo e uns cento e oitenta de comprido. Os buracos escuros dos lados da pedreira eram os restos de antigos poços escavados horizontalmente na montanha. à minha esquerda, para lá da grande pedreira, vi outra muito mais pequena.
No fundo da pedreira maior, havia um grupo de barracões feios e ferrugentos que examinei com o binóculo. O maior parecia ser suficientemente grande para abrigar um avião. Levantei ligeiramente o binóculo para examinar uma rampa de carga coberta que descia para um cais de pedra que se projectava pelo estreito Desolado.
A pedreira de calcário parecia estar abandonada há anos. Mas eu prometera a David que seria muito cuidadoso e queria cumprir a minha promessa, por isso, antes de tomar qualquer iniciativa, fiquei de vigia à pedreira durante bem uma hora e meia, procurando sinais de vida. Mas estava cada vez mais certo de que os edifícios se encontravam desertos e portanto peguei na minha arma e no meu saco e desci pela encosta da direita da pedreira.
Parei a cerca de quatrocentos metros dos barracões enferrujados e examinei‑os novamente com o binóculo, mas não vi nada que me parecesse perigoso. Portanto, esquecendo toda a prudência e na certeza de que nenhum dos atiradores da Génesis me estava a ver, atravessei a chapinhar os charcos de água branca como o leite, devido ao pó do calcário, e empurrei a porta mais próxima.
Entrei numa velha cavalariça que lembrava que estas pedreiras de calcário deviam ter usado em tempos a tracção animal de cavalos ou mulas. Passei pelas velhas baías com as suas manjedouras, sob o ruído metálico produzido pelo telhado de chapa, abanado pelo vento que começava a levantar‑se.
Ao lado das cavalariças, e igualmente degradados, ficavam os quartos onde os trabalhadores da pedreira dormiam em beliches. As janelas estavam partidas, e o velho soalho de madeira estava podre e coberto de dejectos de pássaro. Havia um calendário desbotado pregado numa parede. Vi que era do mês de Dezembro de 1931.
Avancei cautelosamente por um corredor para onde abriam vários pequenos quartos à minha direita. Nalguns dos quartos ainda se viam as armações metálicas enferrujadas de velhas camas de campanha. As janelas tinham uma bela vista para a extremidade fechada do estreito Desolado, onde o canal alargava formando um enorme lago abrigado em que um navio grande podia perfeitamente dar a volta antes de acostar ao cais da pedreira. O ancoradouro estava deserto, à excepção de um batelão ferrugento e meio afundado que se encontrava ao fundo do velho cais.
A ausência de barcos desiludiu‑me, porque queria dizer certamente que Nicole não estava ali, mas, por outro lado, significava também que os meus inimigos tinham partido para norte, perseguindo o Stormchild, ignorando que o meu barco me trouxera até ao seu reduto interior.
Passei por outra porta e parei, assombrado. Estava numa plataforma de madeira periclitante a grande altura e lá em baixo havia uma oficina. As tábuas estalaram perigosamente por debaixo dos meus pés, como se bastasse mais um passo para a madeira velha se partir e eu me despenhar de uma altura de doze metros. Estava no maior edifício da pedreira, que, percebia agora, fora construído em redor e sobre um poço. Era nesse grande poço de pedra que estavam instaladas as velhas máquinas da pedreira. Essas máquinas gigantescas e silenciosas, que outrora trituravam grandes pedregulhos, reduzindo‑os a entulho e a pó, ainda eram impressionantes: uma prova da determinação com que o século XIX se lançara à conquista do Mundo e das suas riquezas.
Desci cuidadosamente as escadas decrépitas. Foi com bastante alívio que cheguei ao chão, começando a andar por entre as grandes máquinas silenciosas, agora ferrugentas e inúteis. Quando dei um pontapé com a bota direita num parafuso enferrujado, o eco ressoou desoladamente naquele grande espaço húmido.
‑ Foi muito inteligente em conseguir encontrar‑nos, Mr. Blackburn ‑ disse uma voz quando o último eco se extinguiu.
‑ Valha‑me Deus! ‑ exclamei, atirando‑me para o chão e abrigando‑me por detrás do canto de uma máquina enferrujada para empunhar a carabina que trazia a tiracolo.
O meu coração batia como um martelo pneumático descontrolado. Não via a pessoa que estava a falar, e o eco do grande compartimento tornava difícil perceber de onde vinha a voz, mas reconheci‑a logo.
‑ Von Rellsteb! ‑ gritei.
‑ Com certeza! Quem é que esperava encontrar aqui? O Pai Natal?
Fez uma pausa e, apesar de eu olhar freneticamente a toda a volta, continuava a não o ver. Von Rellsteb, como se adivinhasse o meu pânico, riu‑se. Introduzi uma bala na câmara da Lee‑Enfield. A culatra móvel da carabina produziu um ruído forte que ecoou ameaçadoramente.
Ouvi os passos de Von Rellsteb a rasparem perto de mim, mas a acústica de pesadelo do barracão tornava praticamente impossível detectar a sua posição exacta. Ele suspirou.
‑ A sua cautela não tem razão de ser, Mr. Blackburn. Apareça! Estou completamente sozinho e não estou armado. Mas acho que tenho de lhe pedir desculpa! A minha gente foi muito estúpida disparando sobre si quando visitou a colónia. Foi uma reacção de puro medo. A nossa pequena comunidade vive uma vida muito resguardada e as incursões do mundo exterior perturbam‑nos. ‑ Destravei a arma e dei cuidadosamente a volta à britadeira que me abrigava. Continuava a não ver Von Rellsteb. ‑ Bom dia! ‑ disse uma voz atrás de mim.
Voltei rapidamente a carabina nessa direcção e vi Von Rellsteb, de pé, a dez metros de distância. Ele Sorriu e estendeu as mãos vazias para mostrar que estava desarmado. Vestia um anorak, botas de borracha e tinha o cabelo branco comprido enfiado num gorro de lã. Parecia divertido com a minha inspecção desconfiada.
‑ Se eu tencionasse matá‑lo, já o teria feito ‑ disse ele. ‑ Por favor, baixe a arma. Acho que Berenice lhe deve ter enchido a cabeça de disparates ‑ continuou, como se o meu silêncio fosse uma manifestação de concordância com as observações dele. ‑ Veio ver Nicole, claro. Ela está encantada com a sua visita! Foi muita pena ela não se encontrar na colónia quando o senhor lá foi, mas agora está lá à sua espera.
‑ Seu miserável aldrabão! ‑ exclamei.
‑ Ora, Mr. Blackburn! ‑ A cara expressiva de Von Rellsteb tinha um ar de tristeza ofendida. ‑ O que é que Berenice lhe contou? Que Nicole e eu discutimos? Que Nicole se refugiou aqui, ao passo que nós vivemos na colónia? Que disparate. Berenice tem muita imaginação, não acha? ‑ Von Rellsteb olhou para o relógio de pulso. ‑ Se nos despacharmos, podemos ir tomar chá com ela. Nicole gosta muito do chá das cinco. É um costume tipicamente inglês e metemo‑nos muitas vezes com ela por causa disso.
Apontei‑lhe a carabina à cabeça.
‑ Reze as suas orações, seu maldito!
‑ Prefere que eu traga aqui a Nicole? ‑ perguntou Von rellsteb. ‑ Claro que também posso fazer isso, se o senhor quiser, só que vai levar pelo menos cinco ou seis horas.
‑ Comunique por rádio com a colónia ‑ ordenei‑lhe. Estava a olhar para ele pela alça da mira da minha carabina.
‑ Ah, infelizmente, eu não trouxe o rádio ‑ replicou com um sorriso.
‑ Mas eu tenho um ‑ declarei.
‑ Esplêndido! Mas receio que seja impossível emitir daqui deste poço de rocha! ‑ Von Rellsteb gesticulou, apontando para as paredes altas do barracão das máquinas. ‑ Mas se quiser subir até ao telhado pelas escadas exteriores, pode falar para a colónia. Eles estão no canal dezasseis. Por favor.
Deu um passo atrás e convidou‑me delicadamente a avançar até às escadas. Continuei imóvel e não movi a carabina, mas, para dizer a verdade, Von Rellsteb tinha abalado as minhas suspeitas. Berenice teria mesmo inventado as coisas que nos contara, a mim e a David? Comecei a sentir que as minhas defesas contra Von Rellsteb enfraqueciam.
Ele apontou para a escada, mas de repente, como se a ideia só lhe tivesse ocorrido nesse momento, bateu com as mãos uma na outra.
‑ Mas que disparate, Mr. Blackburn! O seu barco deve estar aqui perto, por isso porque é que não vai nele até à colónia? Esta velha mina é um lugar demasiado incómodo para uma reunião de família.
‑ O meu barco não está no estreito ‑ respondi. O meu braço esquerdo, que segurava o cano da Lee‑Enfield, começava a doer‑me.
Von Rellsteb fitou‑me com uma expressão de incredulidade que se transformou lentamente em verdadeira admiração.
‑ Está ancorado no canal Almagro? ‑ Abanou a cabeça. Não! Não pode ser! É impossível! Nunca me arrisquei a fazê‑lo e Nicole também não, e olhe que há poucas coisas que ela não seja capaz de fazer com um barco! Não pode ter mais de um metro e meio de água à entrada.
‑ São mais de quinze! ‑ declarei com desprezo, indicando assim o paradeiro do Stormchild ao inimigo.
‑ Obrigado, Mr. Blackburn. ‑ Von Rellsteb sorriu e depois abrigou‑se de repente atrás da britadeira mais próxima, ao mesmo tempo que dava ordens às suas tropas escondidas. ‑ Ele está no canal Almagro! Johnny! Vem comigo. LisI? Ele tem uma carabina, por isso cuidado!
Von Rellsteb continuava a gritar as suas instruções enquanto fugia a correr, mas agora falava em alemão e eu levei algum tempo a fazer a transição mental. Pareceu‑me que ele tinha dito a LisI para acabar comigo e depois ir ter com ele à colónia.
Eu perseguira Von Rellsteb até à esquina da britadeira, tencionando cortar‑lhe a retirada, mas de repente ecoou no barracão o barulho assustador do tiroteio de armas automáticas. Atirei‑me para o chão molhado, arrastando‑me em pânico para me abrigar por detrás da máquina, enquanto o ar ressoava a toda a minha volta com o ricochete das balas e eu ouvia alguém a rir lá em cima nas escadas. Avistei o atirador que disparava contra mim, mas depois vi que não era um homem, mas sim uma rapariga ruiva com uma cara comprida e maldosa. Devia ser Lisi, a amante de Caspar. Tentei apontar‑lhe a carabina, mas ela viu o movimento e começou a disparar na minha direcção.
Arrastei‑me desesperadamente até ficar abrigado. Uma segunda arma começou a disparar da direita, mas as balas passavam por cima da minha cabeça e o atirador suspendeu o tiroteio quase imediatamente. Ouvi gritos. Pareceu‑me identificar três vozes: uma era a de Lisi e as outras duas eram vozes de homem. Tinham‑me enganado! Queriam descobrir onde é que estava escondido o Stormchild e agora iam atacar o barco, e eu não podia fazer nada para impedi‑los porque estava ali encurralado na velha fábrica. E também não podia ficar onde estava, porque dentro de instantes os meus inimigos iam cercar‑me. Tinha de fugir! Mas o terror paralisava‑me as pernas cansadas.
Ouvi passos muito ao longe, à minha direita, e depois, lá fora, o ronco do motor de motocicletas. Praguejei. Até aqui pensara que tinha uma hipótese, claro que muito remota, de fugir deste lugar e de chegar ao Stornchild antes dos meus inimigos, mas agora essa esperança fora bruscamente aniquilada pelos estampidos de escape barulhentos que se desvaneciam aos poucos no meio do ruído do vento e da chuva.
Para já, tinha de esquecer o Stormchjld. Agora, o mais urgente era fugir. Espreitei pelos raios do grande volante da máquina mais próxima e avistei Lisi diante da porta lá de cima. Levantei a carabina, mas ela viu o movimento e abriu fogo. Atirei‑me para a esquerda, bati na máquina e corri na direcção oposta. Atravessei o espaço desprotegido. LisI continuava a voltar o cano da arma na minha direcção, fazendo chover as balas no grande compartimento, mas era muito lenta e eu abriguei‑me novamente.
Agachei‑me, ofegante e aterrado, espreitando para a extremidade oriental do barracão, onde uma cortina de luz e chuva me indicava a rampa de descarga, a única saída desta armadilha mortal. Depois, vi um homem atravessar a correr essa mancha de luz e apertei o gatilho, tarde demais porém: ouvi a bala a ricochetear numa superfície metálica e a acertar numa viga do tecto.
Dei outra corrida, e Lisi desta vez também só me viu com um segundo de atraso. As balas silvaram e ecoaram no barracão. Abriguei‑me atrás de uma máquina, uma massa de peças enferrujadas por debaixo das quais havia espaço para eu rastejar. Esse espaço húmido não tinha mais de trinta centímetros de altura, mas dava‑me uma hipótese de rastejar às escondidas até outro corredor, numa zona diferente da oficina. Atei o saco à volta do pescoço, respirei fundo e enfiei‑me por debaixo da gigantesca máquina. Percorri facilmente os primeiros metros, apesar de sentir a água mal‑cheirosa a encharcar‑me as calças, mas quando cheguei perto do meio do grande mecanismo, o cabo que tinha enrolado à cintura prendeu‑se nuns parafusos da parte de baixo da máquina. Comecei a rastejar para trás e para diante, tentando libertar‑me. Lisi, preocupada com o meu silêncio, disparou uns tiros para a armação de ferro por cima de mim.
Parei, espreitando para a passagem por onde ia sair. Não vi ninguém. Rebolei cá para fora, levantei‑me e corri para a rampa de descarga, desesperado e em pânico. Os meus inimigos só me viram ao fim de um ou dois segundos e levaram mais dois ou três a reagir. Depois, Lisi abriu fogo e eu mergulhei, abrigando‑me atrás de uma parede de pedra.
‑ Onde é que ele está? ‑ perguntou um dos homens.
‑ Na última tremonha! Deste lado! ‑ gritou LisI. Mas depois a sua voz de sotaque alemão começou bruscamente a trair o pânico:
‑ Deste lado, já disse! Deste lado!
O pânico dela justificava‑se porque o homem não percebera as instruções e avançara a descoberto até alguns passos de distância, de costas voltadas para mim. O pânico na voz de Lisi fê‑lo voltar‑se de repente e escancarou os olhos de terror quando me viu. Era um homem de ombros largos, barba comprida e encaracolada. De repente, tive esperanças de que tivesse o bom‑senso de se esconder para eu não ser obrigado a atirar sobre ele, mas em vez disso levantou as mãos e vi que tinha uma pistola‑metralhadora. O homem franziu a cara, como se receasse o ruído da sua própria arma, e percebi que só me restava mais um segundo de vida. Por isso, carreguei no gatilho. O meu adversário disparou ao mesmo tempo, mas o meu tiro falhou e o dele também.
O homem disparara antes de tempo e as balas perderam‑se à minha esquerda. Levantei novamente a Lee‑Enfield, apontando melhor do que da outra vez, e disparei. O meu adversário saltou para trás como se tivesse sido arrastado por um cabo de aço escondido e depois fez‑se subitamente silêncio.
‑ Chris está ferido! ‑ exclamou LisI em voz chocada.
‑ Onde é que ele está? ‑ perguntou uma outra voz.
O homem que se chamava Chris berrou de repente. Foi um berro horrível. Eu tive a sensação de que ia vomitar. Comecei a correr, subindo os degraus que conduziam à grande rampa que descia até ao cais e ao mar. Ao lado da enorme caleira metálica que levava antigamente o calcário triturado até aos navios que esperavam lá em baixo havia uma escada de madeira. Mas eu atirei‑me para o revestimento metálico da caleira e rebolei e escorreguei até ao fundo, ao pavimento de lajes do velho cais.
Olhei para cima e vi um outro homem barbudo que descia as
escadas a correr com uma arma na mão. Fiz pontaria, disparei e
falhei. O homem percebeu de repente que estava muito exposto e voltou para trás. Disparei novamente, mas estava muito longe e o homem fugiu rapidamente para a sombra.
Corri pelo cais. A chuva que caía com força levantava uma cortina de salpicos quando batia nas lajes. Lá em baixo, numa pequena praia de calhaus, estavam quatro caiaques de fibra de vidro abrigados do mar por uma plataforma rochosa. Saltei para a praia e passei diante das proas afiadas, disparando sobre os cascos para me certificar de que os barcos não poderiam ser usados numa emergência, mas os tiros indicaram o meu paradeiro aos meus inimigos e de repente as balas começaram a açoitar a beira do cais, fazendo saltar lascas de pedra à minha volta.
Olhei para a direita e vi que podia avançar ao abrigo do cais até a um aglomerado de rochedos negros que ficavam na base de uma escarpa de contornos irregulares. Abriguei‑me aí em segurança e parei para descansar e planear os meus actos seguintes. Estava desesperado comigo mesmo. Prometera a David que não me arriscaria, mas apesar disso, por bravata, quebrara essa promessa e ferira um homem a tiro. Não era assim que eu queria que as coisas se passassem. O suor e a chuva escorriam‑me pela cara enquanto eu recarregava a Lee‑Enfield. Tinha os dedos frios e mexia‑os com dificuldade. Aquela gente não hesitava perante nada e ia perseguir‑me. Sabia que tinha de fazer qualquer coisa. Tinha de pensar, mas sempre que tentava congeminar um plano lógico, o pânico e a adrenalina perturbavam‑me.
Estava certo de que os barcos da Génesis se haviam dirigido para norte em perseguição do Stornchild. Mas Von Rellsteb sabia que eu ia voltar atrás à procura da minha filha, sabia que Berenice me tinha dito que podia encontrar Nicole na pedreira de calcário e eu, como um idiota, comportara‑me tal e qual como ele previra. O que significava que neste preciso momento, a menos que David tivesse oferecido grande resistência ou se tivesse já feito ao mar, o Stormchild já fora capturado, David e Berenice já deviam ter morrido e o meu barco estava perdido ‑ mas não me podia pôr a pensar em todas essas calamidades possíveis, principalmente porque estava na iminência de me acontecer uma calamidade diferente a mim. Estava na altura de fazer frente a Von Rellsteb. Estava na altura de esquecer todos os conselhos prudentes de David e de enfrentar as consequências. Estava na altura de replicar e ir à luta, com a ajuda de Deus.
LEVEI quase dez minutos a dar‑me conta de que me tinha encurralado a mim próprio entre uma mulher‑diabo e a água gelada do mar. A maré subia rapidamente no estreito e a água em breve me obrigaria a abandonar o meu esconderijo e a aparecer na mira de Lisi e dos seus atiradores.
De repente, o vento arrefeceu muito. Soprava cada vez com mais força, quase um temporal, e levantava carneirinhos brancos na água. O facto de o tempo estar a piorar tão rapidamente deu‑me esperanças de que David tivesse decidido sair com o Stormchild do fiorde, levando o barco para a segurança do vasto oceano, onde esperava os meus sinais de rádio. Saquei do pequeno rádio portátil, que, para meu grande alívio, estava intacto, apesar da descida perigosa pela velha caleira de descarga. Esperando contra toda a esperança, liguei o rádio e sintonizei‑o para o canal 37.
‑ Stormchild, Stormchild! Aqui Tim, Tim. Diga se me ouve. Escuto.
Larguei o botão de transmissão, mas não ouvi nada para além do silvo do altifalante. Uma luzinha vermelha brilhava, indicando‑me que a pilha ainda estava para durar, mas não valia a pena gastar energia em vão tentando contactar o Stormchild, por isso desliguei o rádio e arrumei‑o novamente no saco. Comi um bocado do bolo inglês que tinha trazido, regando‑o com chá, porque a enchente já me lambia os pés e eu sabia que tinha de sair depressa dali. Espreitei por cima das rochas para a pedreira de calcário. Não vi nada a mexer, mas isso não significava que os meus inimigos não estivessem a observar a costa, tentando descobrir‑me. Pus o saco e a carabina a tiracolo e gatinhei até à base da escarpa, ao abrigo dos rochedos. Descobrira uma saída alternativa para a posição difícil em que me encontrava e essa saída era para cima.
Quando era miúdo e andava na escola, costumava escalar rochedos e não me saía mal. Não era um craque, mas desembaraçava‑me. Mais tarde, quando participei numa expedição militar em que fui obrigado a escalar os montes Dolomitas, tive um ataque de vertigens que me levou a trocar os rochedos pelo mar. Naquele momento, detestava a ideia de ter de fazer aquela escalada, mas a escarpa que se erguia sobre a costa rochosa oferecia‑me uma evasão segura e aparentemente desimpedida. Não tinha outro remédio senão engolir o medo.
Apesar de a escarpa escorrer água por causa da chuva, a escalada não era difícil; na realidade, era mesmo uma brincadeira. Nos meus tempos de alpinista, teria desprezado esta encosta, que poderia ser escalada com uma perna às costas por uma vaca doente, mas agora sentia um nó nas entranhas à medida que ia subindo lentamente pela rocha escorregadia, cada vez mais longe das vistas dos atiradores emboscados nos velhos edifícios da pedreira. Tencionava chegar à crista que ficava por cima da pedreira e procurar depois um refúgio seguro onde pudesse planear as acções seguintes. Na dúvida, um bom soldado refugia‑se sempre num lugar alto.
Só que essa mesma ideia ocorrera também aos meus inimigos, que dispunham de um caminho mais fácil para atingir esse lugar alto. O primeiro indício de que tinham chegado ao alto da escarpa antes de mim foi uma chuva de pedras e de terra que rolaram pela rocha à minha esquerda. Imobilizei‑me: eles estavam por cima de mim. À minha direita, estava a pedreira mais pequena, que eu avistara primeiro da crista da montanha, acima da pedreira principal. Esta escavação mais pequena tinha cerca de trinta metros de profundidade e talvez metade dessa largura. Resolvi tentar atingir uma plataforma estreita que contornava a parede da pedreira como uma varanda. Era suficientemente larga para sustentar um denso dossel de vegetação, oferecendo‑me assim um esconderijo perfeito. Olhei para cima, não vi os meus perseguidores e por isso arrisquei‑me a dar uma corrida rápida na superfície encharcada da rocha.
Um grito lá em cima indicou‑me que fora visto. Ouvi uma exclamação de triunfo de Lisi e uma bala silvou na chuva perto da minha orelha direita. Praguejei em pânico e depois trepei pelo rebordo da plataforma e enfiei‑me pelo meio do mato.
Apesar de não me poderem ver lá de cima, os meus inimigos sabiam mais ou menos onde é que eu estava e que me tinham encurralado. Começaram a disparar para a verdura densa da borda da plataforma, numa tentativa de me obrigarem a sair do esconderijo. Eu estava temporariamente a salvo, porque um pequeno afloramento rochoso mais acima me protegia. Nesse dia, até parecia que estava a fazer de propósito para me colocar em terreno baixo com um inimigo por cima de mim, mas já tinha escapado antes e teria de escapar novamente. Resolvi que o segredo desta nova fuga seria convencer Lisi e o seu companheiro de que me haviam matado.
Eu estava sentado com os joelhos encostados à boca para ficar completamente escondido na plataforma. Sem alterar essa posição incómoda, desenrolei muito lentamente o cabo de flylOfl que tinha à volta do corpo e passei‑o em volta do tronéo sólido de uma faia. Depois, enrolei as duas pontas do cabo em volta da cintura e atei‑as, escondendo os nós por debaixo do casaco. O êxito do meu plano dependia de os meus inimigos não verem esse arnês que me salvaria a vida.
Deslizei na direcção do rebordo da pequena plataforma, abaixo do qual eu ficaria escondido da vista de quem estivesse no alto da escarpa. Para já, o grande perigo era que os meus inimigos vissem as folhas e os arbustos a mexer, denunciando a minha deslocação, mas chovia a cântaros e eu avançava com a maior cautela.
Quando cheguei ao rebordo da plataforma, espreitei para baixo e vi uma outra plataforma, oblíqua e de recorte irregular, dois metros mais abaixo, a que se seguia uma queda abrupta de dez ou quinze metros.
Devagar, muito devagar, levantei a cara até ver as cabeças dos meus inimigos. Pareciam estar os dois deitados ao comprido na borda da escarpa, espreitando a pedreira. Reconheci Lisi pela cabeleira ruiva, e o seu companheiro tinha uma barba preta desgrenhada e um lenço de algodão amarelo‑vivo atado à volta da cabeça. Estavam vinte metros acima de mim e uns quinze para a minha direita. Ergui a carabina e comecei a levantar‑me. Estava mesmo na borda da plataforma, com o abismo a dois dedos do calcanhar das botas. Ao mesmo tempo que me levantava, torci o corpo para a direita para poder apontar às duas cabeças, recortadas de encontro ao céu cor de chumbo.
«Deus dos marinheiros», rezei, «ajuda‑me», e depois disparei, fazendo saltar uma lasca de rocha do rebordo da escarpa a alguns centímetros da barba do homem, que recuou bruscamente. Comecei a disparar à toa para o lugar onde as duas cabeças tinham desaparecido. Fui assaltado pelo pânico. E se os meus inimigos resolvessem aproximar‑se mais antes de responderem ao tiro? Felizmente para mim, empurraram os canos das respectivas espingardas‑metralhadoras por cima da borda da escarpa e despejaram dois carregadores ao acaso na minha direcção.
Deus estava mesmo a ajudar‑me, porque as balas, disparadas sem apontar, passaram muito acima da minha cabeça. Esperei até que o último cartucho ejectado brilhasse na luz cinzenta daquele dia e depois gritei. Gritei como se o demónio me estivesse a arrancar a alma das entranhas, e, ao mesmo tempo que soltava aquele berro horrível para o céu, continuava a olhar para o cimo da escarpa, onde o lenço amarelo apareceu subitamente, como eu esperava, com a cara de Lisi ao lado. Eu já tinha levantado os braços, largando a carabina, que caiu para o abismo. Atirei‑me atrás dela, sempre a gritar, e quem estivesse a olhar devia pensar que eu fora atingido por uma bala e que estava agora a cair de braços abertos nas profundezas da pedreira.
Assim que fiquei fora da vista dos meus inimigos, tentei agarrar‑me ao cabo que tinha enrolado à cintura para amortecer o esticão e torci também o corpo para apanhar a força do esticão na barriga, e não nas costas. O puxão do cabo na minha barriga foi tão forte que me tirou fôlego, cortando abruptamente o meu grito de agonia de uma forma muito convincente.
A carabina despenhou‑se e foi ressaltando até ao fundo da pedreira no silêncio súbito. Eu bati na escarpa, depois choquei novamente de encontro à rocha e fiquei pendurado, imóvel. Baloiçava como um peso morto, fisgado pela barriga. Mas estava vivo e doía‑me tudo. Tinha a sensação de que o cabo me havia rasgado os músculos do estômago. Doía‑me o pulso, que tinha batido na rocha, e o meu dispendioso relógio suíço estava partido.
Mas depois, lá em cima, o homem do lenço amarelo soltou um grito de triunfo.
‑ Viste o que lhe aconteceu? O palerma aprendeu a voar.
O palerma estava a tentar firmar‑se na parede da escarpa. Tacteei com as biqueiras das botas até encontrar a plataforma irregular que estava por baixo e, fazendo força com os pés, consegui aliviar a pressão do cabo. Consegui firmar também a mão esquerda e desatei o nó de uma das pontas do cabo. Agora, não estava seguro, e uma escorregadela na rocha molhada desempenharia a tarefa que os meus inimigos pensavam ter já levado a cabo. Tentei não pensar no abismo, lá em baixo, e, muito lentamente e a custo, desci‑me até poder agarrar‑me à plataforma com a mão direita. Depois, de novo lentamente, muito lentamente, puxei o cabo para o soltar da árvore lá em cima, para o caso de os meus inimigos resolverem jogar pelo seguro, explorando a plataforma.
A ponta do cabo caiu a meu lado. Deixei‑a ficar pendurada da cintura e fui descendo muito devagar, só com as pontas dos dedos dos pés e das mãos a tocarem na parede. A rocha estava coberta por um lençol de água e eu já nem sentia os dedos.
Olhei para baixo, piscando os olhos para ver melhor, e avistei a minha carabina junto de um arbusto. Se tivesse caído mais um metro para a direita, tinha ido parar dentro de um charco. O resto da pedreira estava coberto de vegetação rasteira e a minha preocupação mais imediata era chegar a esse abrigo seguro.
Olhei para a esquerda e vi, a cerca de um metro de distância, uma saliência rochosa, semelhante a um algeroz torto, encostada à superfície da pedreira. Dei um mergulho desesperado, arriscando‑me a cair no vazio, e sem saber como lá consegui agarrar‑me à saliência, escorregando por ela até à base da parede. Ofegando, larguei a rocha e rebolei para cima de um monte de pedras cobertas de mato denso.
Fiquei deitado no chão como morto. Estava sem respiração, ferido e magoado, mas mantinha‑me imóvel e completamente silencioso. Rebolavam pedras pela escarpa, deslocadas sem dúvida pelos meus perseguidores, que desciam até à plataforma para verificar se eu estava mesmo morto. Fiquei à espera. Depois, as pedras deixaram de rebolar e de cair. Finalmente, ouvi a voz de Lisi, lá muito em cima.
‑ Aquilo ali é a carabina dele?
‑ É.
‑ Achas que ele caiu no charco?
O homem das barbas riu‑se.
‑ O palerma não sabia voar e de certeza que não ia nadar depois de uma queda daquelas.
Contei até passar um minuto, depois outro e outro. Contei até aos vinte minutos, sempre completamente imóvel. Com certeza que já me tinham dado por morto. Mesmo assim, ainda continuei à espera. A chuva caía inexoravelmente e eu fiquei exposto ao frio durante mais uma hora talvez, molhado, gelado e dorido, antes de me rebolar lentamente no chão para olhar para cima. Não se via ninguém na linha do horizonte.
Levantei‑me. Continuava a ter um cinturão de dor intensa à volta do estômago. A dor atenuava‑se quando eu me dobrava, por isso, rastejando como Quasímodo, avancei pelo mato para recuperar a minha carabina do lugar onde tinha caído. Parecia estar funcional, mas não me atrevi a experimentá‑la. No lado da pedreira mais próximo do mar havia uma pequena parede rochosa com uns seis metros de altura que formava a parede exterior da escavação mais pequena. Subi a custo por essa parede e finalmente olhei para o estreito Desolado.
O arrastão que perseguira em vão o Stonnchild dois dias antes estava atracado ao cais, com os caiaques esburacados empilhados na coberta. Um catamará estava atracado ao arrastão e ao centro do estreito baloiçava um velho barco à vela todo às manchas. Saquei do binóculo e descobri que o óculo da direita estava inutilizado, por isso foquei os barcos com a única lente intacta. O barco à vela virou quando eu estava a olhar e, levantando um turbilhão de água à popa, começou a avançar a motor pelo estreito, dirigindo‑se para a colónia. Deduzi que as tripulações da Génesis estavam a retirar para avaliar os prejuízos causados pela visita do Stonnchild. Se Von Rellsteb tinha capturado o meu barco, esses prejuízos seriam mínimos, mas se David continuava livre, podendo assim comunicar às autoridades o testemunho de Berenice, Von Rellsteb precisava urgentemente de partir em sua perseguição.
Foquei o binóculo no catamarã, na esperança de que fosse o barco de Nicole, mas vi que se tratava do velho catamará em que Von Rellsteb aportara ao meu rio inglês há tanto tempo. Não reconheci nenhum dos homens que estavam a bordo, que soltavam agora o catamarã do arrastão para ir atrás do outro barco.
Só ficava o arrastão. Lisi estava no cais, junto à prancha de embarque, olhando para a rampa de descarga por onde eu rebolara. Era evidente que esperava por alguma coisa ou por alguém. Fiquei a olhar para Lisi, que batia com os pés no chão para se aquecer, e depois, focando para a direita o meu binóculo partido, vi do que é que ela estava à espera. Dois homens aproximavam‑se do arrastão, carregando o corpo do atirador que eu atingira. Depois de o terem levado para bordo, Lisi soltou os cabos da amarração e a decrépita embarcação afastou‑se pelo estreito.
Foi NUNS edifícios baixos de pedra, encastrados na encosta junto ao cais, que encontrei os primeiros sinais de Nicole. Lá dentro havia uma casa primitiva e incómoda, tão alegre como uma caserna. Descobri uma pequena cozinha equipada com um fogão de lenha, um armário que só continha embalagens de guisado liofilizado e uma bacia de esmalte amolgada. Havia também uma mesa e seis cadeiras e uma parede coberta de filas de fotografias encaracoladas.
Acabava de encontrar Nicole.
Senti um aperto na garganta e subiram‑me as lágrimas aos olhos, pois vi a cara da minha filha no meio das tripulações da Génesis.
‑ Nicole. ‑ Murmurei alto o nome dela, como se fosse uma palavra mágica. ‑ Nicole, Nicole.
De repente, senti que tudo valera a pena ‑ a viagem, o frio, a dor e o medo ‑, porque tinha encontrado a minha filha.
Nalgumas das fotografias, os militantes da Génesis estavam a atacar redes de pesca com instrumentos cortantes, noutra um grupo num barco de borracha desafiava uma vedeta da Marinha Francesa. Eram fotografias de amadores, semelhantes a instantâneos de férias, que davam a ideia de que os ecoterroristas da Génesis eram um grupo de jovens despreocupados gozando umas férias inocentes e felizes. Nicole figurava numa dúzia de fotografias, e em todas, menos numa, ria ou sorria. Aparecia muitas vezes ao lado de um rapaz magro, de cabelo muito louro e feições marcadas, que se parecia espantosamente com o meu falecido filho.
Contemplei as fotografias durante muito tempo, perguntando a mim mesmo que sonhos e que pensamentos motivavam a minha filha na sua nova vida. A fotografia em que Nicole não ria, tirada num barco de borracha baloiçando num mar agitado sob um céu ameaçador, era elucidativa sob esse ponto de vista. Nicole estava sentada à proa e voltara a cara para o fotógrafo; tinha uma expressão tensa e inflexível que me recordou a descrição que Berenice fizera da minha filha, dizendo que ela era brava. Tive a sensação horrível de que essa expressão inflexível era a verdadeira cara de Nicole, uma cara que recusava o perdão e o amor, para mal dos meus pecados.
Há duas horas, após a emboscada de Von Rellsteb, eu estava decidido a vingar‑me destes bandidos, mas agora sentia um enorme desespero. De repente, vi tudo claro e percebi que não viera vingar a morte de Joanna, apesar de a ideia de vingança não me desagradar, e que também não viera só para encontrar Nicole ‑ viera em busca de amor. Viera para ouvir a minha filha dizer que eu não era culpado da morte do irmão. Viera para lhe enxugar as lágrimas. Viera para abraçar e ser abraçado, para amar e ser amado. Mas agora, olhando para a cara da minha filha, percebi que perdera o meu tempo. Eu tinha tão pouco significado para Nicole como um quebra‑gelo no deserto. Sabia que o melhor que podia fazer era ir‑me embora, desistir da minha caçada. Já não queria saber a verdade, porque a verdade seria demasiado dura.
Subi o monte até aos edifícios da mina onde Von Rellsteb me armara a emboscada. Estavam desertos e não me revelariam mais nada, por isso, de carabina a tiracolo, trepei pela encosta norte da pedreira. Uma pequena ave de rapina negra e agressiva piou na plataforma onde fizera o ninho quando comecei a escalar lentamente a encosta encharcada.
Olhei para trás uma ou duas vezes, mas o estreito Desolado continuava deserto. As tripulações da Génesis perseguiam o Stormchild ou comemoravam a sua captura, e eu estava sozinho, condenado a uma longa marcha Solitária e molhada à luz fraca do fim do dia. A minha busca acabara, estava cansado e tinha fome.
No alto da encosta havia uma outra encosta pedregosa, a maior e a mais inclinada que vi em toda a minha vida, e fui obrigado a fazer um longo desvio para a direita. Agora, estendia‑se à minha frente a selva de pedra que identifiquei ao fim de algum tempo como o estranho pico que ainda nessa manhã me lembrara tão distintamente os penhascos de granito do meu país. Grandes pedregulhos barravam‑me o caminho para oeste. Descansei durante algum tempo na sua base, sentado no chão e encostado às pedras, olhando para o estreito Desolado, que ficava agora tão longe lá em baixo que farrapos soltos de nuvens me escondiam parcialmente a água agitada pelo vento.
Finalmente, resistindo à tentação de continuar abrigado junto à grande muralha de pedra, tentei contorná‑la, mas para norte havia uma outra encosta pedregosa quase tão inclinada como a que ficava para sul, por isso continuei a subir lentamente até ao cimo do montão de pedregulhos, açoitado pelo vento e pela chuva. Fui‑me arrastando pela crista, batendo com a coronha da carabina nas pedras à medida que avançava, mas depois fiquei paralisado. Por instantes, julguei que estava a sonhar. Depois, durante mais uns instantes, desejei estar a sonhar. Porque estava a olhar para um cadáver aninhado na concavidade de uma rocha.
O único objecto que não se encontrava em decomposição era um saco impermeável que continuava preso nos ossos das mãos do esqueleto.
Puxei pelo saco para o arrancar das mãos do cadáver. A primeira coisa que encontrei no interior foi um passaporte australiano verde que indicava o nome do cadáver, Maureen Delaney, e a idade, vinte e três anos. A fotografia do passaporte mostrava uma cara redonda de rapariga sorrindo para o mundo. Folheei‑o até encontrar umas letras desbotadas, escritas a lápis numa folha em branco, que formavam a palavra «Naiad». Por debaixo do nome do barco havia uma mensagem breve e patética: «Mataram John e Mark. Eram quatro, dois alemães, um americano e uma rapariga inglesa. Deixaram outros violarem‑me.» As palavras estavam mal escritas, mas eram muito eloquentes, tão eloquentes como as de uma voz falando de além‑túmulo. «Estamos em Novembro», continuava a mensagem de Maureen Delaney. «Dizem que vão matar‑me. As raparigas não me ajudam.» Voltei a página do passaporte e encontrei umas palavras dirigidas à mãe dela.
Fechei os olhos, como se conseguisse conter as lágrimas. Tentei convencer‑me de que talvez houvesse outra rapariga inglesa na Comunidade Génesis, mas já me enganara a mim próprio durante demasiado tempo. Os companheiros de Maureen Delaney tinham sido assassinados e ela fora empurrada para esta morte fria e solitária. E a minha filha participara no crime. Porquê? Por causa de um barco, provavelmente pela posse do Naiad. Enfiei o passaporte da rapariga assassinada na algibeira; teria de o entregar na Embaixada Australiana.
Despejei o conteúdo do saco e encontrei uma caixa de fósforos e provas de que Maureen Delaney tencionava vingar‑se dos seus carrascos. No fundo do saco, havia dois paus de dinamite embrulhados separadamente em folhas de papel velho, cor‑de‑rosa e engordurado, com o nome de marca Nobel. Mas Maureen Delaney não tinha chegado a vingar‑se; depois de ter fugido dos edifícios do cais, onde devia ter roubado as cargas de explosivo, caíra e morrera naquelas alturas.
Rezei uma oração pela sua alma. Não era suficiente, mas aquilo que ia fazer em memória de Maureen era mais importante do que a oração, portanto meti os paus de dinamite no meu saco. Não tinha conseguido sair da ilha dos Tormentos no consolo da ignorância. Por isso, agora só me restava ser um bom ecologista à minha maneira: ia limpar a porcaria.
Atravessei o pântano ao crepúsculo e, quando cheguei finalmente à crista que se erguia sobre o fiorde, olhei para o outro lado da longa encosta encharcada e vi que o Stormchild já não estava onde eu o deixara.
Deslizei pelo monte até chegar à praia molhada pela chuva e procurei a pedra esbranquiçada e achatada por debaixo da qual tínhamos combinado que David me deixaria uma mensagem. Levantei a pedra e, com grande alívio meu, vi um bocado de cartão branco que David enfiara num plástico transparente para proteger da chuva.
A mensagem do meu irmão estava escrita a tinta, em maiúsculas, e começava com a indicação exacta da hora, o que era muito típico dele.
08.46 HORAS. O BARÓMETRO CONTINUA A DESCER DE MODO ALARMANTE, POR ISSO TENCIONO APROVEITAR A VAZANTE E SAIR COM O STORMCHJLD PARA O MAR. PARA POUPARES AS PILHAS DO TEU RÁDIO, fiCO à ESCUTA DAS TUAS TRANSMISSÕES à HORA CERTA, DE HORA A HORA, DURANTE PRECISAMENTE CINCO minUTOS, NO CANAL COMBINADO. SE NÃO houVER NOTÍCIAS TUAS NAS PRÓXIMAS SETENTA E DUAS HORAS, VOU PARA NORTE PEDIR AUXÍLIO. ENTRETANTO, DEIXEI‑TE UMA RESERVA DE PROVISÕES ÚTEIS ESCONDIDA NO BOSQUE. ENCONTRARÁS O ESCONDERIJO ONZE PASSOS PARA LESTE DESTA PEDRA. DEUS TE ABENÇOE, D.
A reserva de David consistia em dez latas de feijão cozido, dez latas de carne, seis barras de chocolate, um pequeno fogão portátil, uma caixa de saquetas de chá Earl Grey, um contentor impermeável com fósforos, um abre‑latas, um pano impermeável e um saco‑cama, tudo enfiado numa mochila. Os mantimentos tinham sido bem pensados, mas desejei que ele se tivesse lembrado de meter um dos relógios de quartzo baratos que eu tinha armazenado a bordo do Stormchild, para o caso de o meu dispendioso cronómetro suíço se estragar. O meu relógio não funcionava e por isso não podia saber a hora certa.
Mas pelo menos tinha comida saborosa. Abri uma lata de feijão e devorei avidamente o seu conteúdo sem sequer me dar ao trabalho de o aquecer.
Caiu a noite numa fúria de vento e de chuva. Brilhavam relâmpagos a sul. Agachei‑me entre as árvores como um animal. Sentia‑me sujo, encharcado, cansado, ferido e muito perigoso.
Adormeci com o legado de dinamite da rapariga australiana a meu lado e acordei muito antes da madrugada. Tentei contactar o Stormchild pelo rádio, mas não obtive resposta e não me atrevi a esgotar a pilha, deixando o pequeno aparelho ligado na esperança de captar possíveis transmissões de David. Por isso, coloquei a mochila às costas, peguei na carabina e no meu saco e pus‑me a caminho.
LEVEI quase todo o dia a atravessar a ilha dos Tormentos e cheguei à escarpa sobranceira à colónia da Génesis quase ao anoitecer. Os últimos quilómetros do percurso foram árduos, pois tive de atravessar uma paisagem de pedras, pequenas gargantas e lagos frios e negros, com a antena de rádio improvisada da colónia a servir‑me de referência, indicando‑me o caminho.
Ao pôr do Sol, encontrei um esconderijo, uma fenda profunda por debaixo do pico rochoso onde estava erigido o mastro da antena. Preparei um jantar de feijão frio e carne enlatada e revistei a baía com o meu meio binóculo. Só lá estava o arrastão decrépito, o que sugeria que o catamará e o barco à vela tinham seguido mesmo para norte para interceptar o Stonnchild. Iam ter algumas dificuldades, devido ao vento que açoitava raivosamente a minha rocha e à chuva fria que mantinha a Comunidade Génesis dentro de casa. Imediatamente antes do cair da noite, vi duas mulheres que corriam para uma das dependências transportando sacas, mas depois disso não avistei mais ninguém.
Caiu a noite e fiquei a olhar para a luz das velas que tremia por detrás das janelas da casa grande, até que essa luz desapareceu e a colónia foi tragada pela noite agreste da Patagónia. Contei os segundos e durante uma hora e um quarto liguei o rádio de minuto a minuto e enviei uma mensagem de identificação ao Stonnchild, mas não obtive resposta. Talvez David e o Stormchild estivessem demasiado longe ou então as montanhas da ilha bloqueavam o meu sinal. Desisti finalmente e, abrigado da chuva pelas toneladas de rocha amontoadas por cima de mim, esforcei‑me por adormecer.
Antes da madrugada, tentei novamente entrar em contacto com David, mas mais uma vez não consegui. Não tencionava abrir as hostilidades nessa manhã. Precisava de mais descanso e planeava passar o dia a tentar contactar David pelo rádio, mas afinal, à luz cinzenta da manhã, aconteceu algo que transtornou os meus planos. Logo depois do alvorecer, um som espantosamente triste ecoou como um lamento trágico na vastidão cinzenta da água açoitada pelo vento.
Era uma sirene de nevoeiro.
Minutos depois, apareceu um navio, como uma nave espacial fantasmagórica vinda de outro mundo. Saquei do meu meio binóculo e avistei o nome San Rafael pintado na proa. Era uma pequena embarcação costeira de cerca de sessenta metros de comprimento, mas naquela pequena baía o San Rafael assumia dimensões monstruosas. Era um belo navio, muito bem pintado de azul‑escuro e cinzento, com a bandeira colorida do Chile pintada na chaminé. Percebi, pelos guinchos montados na coberta de proa, que era um navio de abastecimento das plataformas petrolíferas e de extracção de gás natural que orlavam a Terra do Fogo.
A chegada do San Rafael lançara a confusão no seio da Comunidade Génesis. As poucas mulheres vestidas de cinzento que tinham começado a trabalhar nas hortas fugiram em pânico para dentro de casa, e um homem de verde contemplava em estado de choque o barco que atravancava a baía.
Voltei o meu binóculo improvisado para o San Rafael e vi que a tripulação descia uma lancha motorizada de cinco metros de comprimento. A lancha acelerou, afastando‑se do casco do San Rafael, para transportar dois passageiros até à praia. Os passageiros, envoltos em fatos de oleado amarelos, estavam sentados muito juntos no banco central do barco. Eu não via a cara do passageiro sentado a bombordo, mas reconheci imediatamente a do de estibordo, e o meu coração deu um pulo de alegria súbita e inesperada.
Jackie Potten chegara ao Chile para ganhar o seu Prémio Pulitzer.
Liguei o meu pequeno rádio e sintonizei o canal 16, a frequência que o San Rafael devia usar. Mas já alguém ocupava esse canal. Ouvi uma voz de homem discursando ao San Rafael num espanhol rápido e agitado, e não precisava de saber espanhol para perceber o que ele dizia: o homem tentava convencer o navio a levar embora os visitantes. Mas, apesar dos seus protestos frenéticos, a pequena lancha continuou a avançar obstinadamente para a praia. Desisti de contactar o San Rafael por rádio, pois da colónia também deviam estar a controlar o canal 16.
Dois homens da Génesis vestidos de verde tinham corrido para o talude acima da praia e gesticulavam vigorosamente para a lancha, tentando convencê‑la a dar meia volta. Um terceiro homem, armado E com uma espingarda‑metralhadora, começou a correr para os montes onde eu estava abrigado, e quando principiou a trepar pelas encostas mais baixas, percebi que, caso mantivesse a mesma direcção, ia colocar‑se em posição de tiro a vinte ou trinta metros de mim. O homem tinha um lenço amarelo atado à cabeça e uma barba preta espessa e calculei que fosse o mesmo que tentara matar‑me na véspera na pedreira de calcário.
Finalmente, arranjou o que considerou uma boa posição de tiro, empoleirado num grande pedregulho achatado, cerca de vinte metros à minha direita.
Olhei novamente para a praia e verifiquei que a lancha do San Rafael já chegara à praia de calhaus. Os dois homens de verde tentavam empurrar o barco para a água, mas a companheira de Jackie, que parecia ser uma mulher muito corpulenta, atirou‑se literalmente para cima deles, obrigando‑os a recuar.
Jackie saltou para terra. O timoneiro da lancha atirou duas mochilas para a praia e depois, com um aceno de despedida, afastou‑se em marcha à ré. Por momentos, o talude escondeu‑me o confronto entre os visitantes e os homens barbudos, mas depois a mulher mais velha apareceu à vista. Os dois homens barbudos, estavam a tentar mantê‑la afastada da casa, mas a mulher resistia a essa interferência. Empurrou um dos homens para o lado com um encontrão digno de um jogador de râguebi e obrigou o segundo a recuar com uma pancada da pesada mochila. Jackie correu para a acompanhar, enquanto ela avançava em passo decidido em direcção à casa, ultrapassando o mirante. Vi perfeitamente a cara de Jackie com o binóculo. Conhecia bem aquela expressão, um misto de ansiedade e decisão. Depois, ela, a sua companheira e os dois homens barbudos ficaram escondidos da minha vista pela própria casa.
Deitei a cabeça nos braços. Julgava que já tinha recuperado daquela paixão, mas a visão da cara de Jackie foi suficiente para despertar uma saudade intensa no meu coração. Ainda estava apaixonado, apesar de ter tentado esquecê‑la, acicatado pelo desprezo de David. David. Quando me lembrei dele, liguei o rádio para o canal 37.
‑ Tim chama Stonnchild ‑ sibilei para o microfone, mas não obtive resposta.
A luzinha vermelha da pilha começou a piscar alarmantemente, por isso, para poupar o resto da energia, desliguei o rádio.
Jackie e a sua companheira deviam ter verificado que a porta principal estava fechada à chave, por isso agora contornavam o edifício. Os dois homens barbudos seguiam‑nas, desesperados. A mulher mais velha atravessou resolutamente o pátio em direcção à porta das traseiras. Fiquei a olhar pelo meu meio binóculo, esperando vê‑la tentar abrir a porta e verificar que estava fechada à chave, mas em vez disso a porta abriu‑se de repente e saiu cá para fora uma multidão de membros da Génesis, todos vestidos de verde, com Lisi à frente, formando um cordão. A mulher mais velha hesitou, e Jackie, que estava um ou dois passos atrás dela, pareceu compreender melhor o perigo. Deu uma reviravolta mesmo na altura em que os dois homens que tinham vindo atrás delas desde a praia tentavam agarrá‑la.
A casa baixa e comprida escondia este pequeno drama das vistas de quem estivesse a observar de bordo do San Rafael, mas eu podia acompanhar todos os acontecimentos com a minha lente. Jackie libertou‑se, atirando a pesada mochila para cima do seu atacante mais próximo. A mochila acertou no peito do homem, obrigando‑o a recuar, e Jackie começou a fugir. A companheira era tão pesada que a sua corrida não passava de uma marcha vacilante. Depois de ter corrido alguns metros, Jackie voltou‑se para trás para animá‑la; porém, a Outra mulher já tinha sido dominada por uma massa de corpos vestidos de verde. Jackie hesitou; mas depois, no momento em que eu lhe gritava interiormente para continuar a fugir, voltou‑se novamente e começou a correr para os montes como uma lebre assustada. Dois dos homens barbudos perseguiram‑na, mas Jackie era muito mais rápida e estava em muito melhor forma física do que os seus perseguidores. Ziguezagueou pelo meio das hortas, saltou por cima de uma vala de irrigação e depois largou à desfilada pelo sopé da encosta acima.
A companheira de Jackie estava a ser arrastada para a ala esquerda da casa, onde iam certamente fechá‑la numa das antigas cavalariças, e Lisi, que devia ter sido encarregada por Von Rellsteb de chefiar a colónia na sua ausência, observava a perseguição a Jackie. O San Rafael, ignorando o drama, estava a sair da baía.
Jackie olhou para trás, viu que os seus perseguidores estavam a perder terreno e abrandou. Desviou‑se para a direita, saltou por cima de uma pequena conduta que transportava água para a casa e depois começou a trepar pela escarpa em direcção ao mastro da antena. Não o sabia, mas ia direita ao homem do lenço amarelo.
Empurrei a espingarda para a frente, pronto a disparar se o homem apontasse para Jackie, que, pensando estar a salvo, enveredara por um caminho pedregoso que conduzia directamente à grande pedra achatada onde o atirador estava empoleirado.
O atirador armou‑lhe uma emboscada. Largou a espingarda‑metralhadora, porque o tiroteio poderia levar o San Rafael a voltar atrás, e saltou para cima de Jackie, tentando derrubá‑la.
Esta deve ter pressentido qualquer coisa, porque de repente deu uma corrida e o homem estatelou‑se no chão atrás dela. Mas levantou‑se imediatamente e atirou‑se a ela, conseguindo agarrá‑la pelo tornozelo direito. Ouvi‑a dar um grito quando caiu.
‑ Apanhei‑a! ‑ gritou triunfantemente o homem.
‑ Trá‑la cá para baixo! ‑ disse um dos dois que tinham desistido da perseguição.
Mas depois, quando não teve resposta, gritou novamente:
‑ Stephen! Stephen! Estás bem?
‑ Já a levo para aí! Apanhei‑a! Não se preocupem!
Certos de que Stephen tinha a fugitiva sob controle, os dois homens voltaram costas e desceram novamente a escarpa. Entretanto, Stephen, o homem do lenço amarelo, obrigara Jackie a ajoelhar‑se. Estava de pé em frente dela, de costas para mim, por isso não me viu sair da fenda.
Jackie, voltada para mim, estava tão aterrada que não via nada além do seu captor, que a agarrava pelo cabelo com uma das mãos. Torceu‑se violentamente, tentando libertar‑se, mas o homem esmurrou‑lhe o lado da cabeça com a outra mão. Jackie deu um grito de dor. Eu já estava só a vinte metros deles. Quando me preparei para o ataque, o homem ouviu as minhas botas raspar nas pedras e voltou‑se. Escancarou os olhos de terror.
Vira‑me dar uma queda mortal no dia anterior e agora eu renascia dos mortos como uma aparição de pesadelo. Tropeçava nas pedras, mas o homem não via a minha dificuldade em andar, só a minha cara, e também deve ter visto a minha espingarda, lembrando‑se de que a dele estava a trinta metros de distância e não lhe valia de nada.
Tentou fugir, mas Jackie passou‑lhe uma rasteira. Andou mais dois passos aos tropeções, mas nessa altura já eu tinha ultrapassado Jackie, assombrada, e a minha bota disparou direita à base das costas dele. O homem berrou de dor e caiu para a frente, batendo com a cabeça na pedra. Contorceu‑se e tentou fechar o punho para me esmurrar, mas ficou paralisado quando viu que tinha a boca do cano da Lee‑Enfleld a um centímetro da cara.
‑ Experimenta, Stephen! Experimenta! ‑ disse eu. Ele abanou ligeirissimamente a cabeça para mostrar que não ia tentar fugir. ‑ Lembras‑te de mim? Sou o palerma que não sabia voar e que também não sabia nadar. Mas sei fazer coisas muito mais inteligentes, Stephen. Sou capaz de ressuscitar dos mortos.
‑ Não! Não, por amor de Deus! ‑ implorou.
Escorria‑lhe da contusão da têmpora esquerda, que inchava a olhos vistos, um fio de sangue, logo diluído pela chuva. Soltei dos ombros o cabo de nylon e atei‑lhe rapidamente os tornozelos. Finalmente, enrolei‑lhe várias vezes a ponta solta do cabo em volta do corpo até ficar tão bem atado como uma peça de carne para ir ao forno.
‑ Olá, Jackie ‑ disse eu, voltando‑me para lhe sorrir.
Ela continuava ajoelhada no caminho, fitando‑me com os olhos muito abertos. Desatou a chorar. Estava encharcada e toda salpicada de lama, mas pareceu‑me linda.
‑ Tim? ‑ perguntou, como se não quisesse acreditar nos seus olhos.
‑ Sou eu. ‑ Baixei‑me para sentar Stephen e depois icei‑o para os meus ombros com alguma dificuldade. ‑ A propósito, gosto muito de a ver.
Ela recomeçou imediatamente a chorar.
Foram precisos dez minutos para eu carregar Stephen até à fenda da rocha. Empurrei‑o lá bem para o fundo, por debaixo da cortina ameaçadora de rocha molhada, e depois fui buscar a espingarda‑metralhadora M‑J6 dele. Enfiei‑me novamente dentro da fenda.
‑ Eles já devem estar a pensar que Stephen está a levar demasiado tempo para levá‑la ‑ disse eu a Jackie. ‑ Dentro em pouco, vão perceber que aconteceu alguma coisa e começam a procurá‑lo. Mas acho que aqui estamos em segurança, desde que fiquemos bem escondidos.
‑ Tim! ‑ exclamou Jackie. Continuava a chorar.
‑ Queria pedir‑lhe desculpa ‑ disse eu, porque resolvera que o melhor era fazê‑lo quanto antes. ‑ Devia ter‑lhe dito que tínhamos armas a bordo do Stormchild. Foi uma estupidez não dizer nada. Lamento, pode crer que lamento.
‑ Não foram as armas ‑ disse Jackie, e depois fungou.
‑ Ah! ‑ respondi, atrapalhado. Sabia que tinha de me desculpar de outras coisas mais embaraçosas. Respirei fundo. ‑ Desculpe também aquilo que lhe disse em Antigua, que gostava que ficasse comigo. Não queria aborrecê‑la e peço desculpa. ‑ Jackie fitou‑me solenemente. ‑ Foi uma estupidez dizer aquilo, porque o único resultado que teve foi afastá‑la de mim e lamento muito ‑ acrescentei.
Estava tão embaraçado que me voltei para o outro lado enquanto falava com ela e vi Lisi e dois homens barbudos que se aproximavam da escarpa. Estavam todos armados com espingardas.
‑ Mas mesmo assim gosto muito de a ver ‑ continuei eu. - Tinha saudades suas.
‑ Eu também tinha saudades suas ‑ respondeu ela.
O coração deu‑me um pulo no peito, mas eu estava decidido a não fazer outra vez figura de parvo, por isso não respondi às palavras dela, que não passavam certamente de uma prova de delicadeza.
‑ Parece que ando com azar, estou sempre a perder as pessoas - observei. ‑ David levou o Stonnchild para o mar e, se eu não conseguir contactar com ele pelo rádio, ele vai buscar ajuda. Leva a sua amiga Berenice a bordo.
‑ Berenice Tetterman? ‑ perguntou Jackie, assombrada.
‑ Essa mesma. Fugiu. Os malvados dispararam contra ela, mas falharam, por isso recolhemo‑la a bordo.
‑ Mas era a mãe dela que vinha comigo! ‑ Jackie calou‑se uns instantes para recuperar o fôlego. ‑ Molly veio porque eu não consegui convencer nenhum jornal a pagar‑me a viagem, por isso ela vendeu o carro e com esse dinheiro comprámos bilhetes de avião para Santiago e depois tivemos de arranjar maneira de chegar aqui e...
‑ Chiu! ‑ disse eu.
‑ Estou a falar demais ‑ replicou ela com uma expressão de arrependimento.
‑ Não. ‑ Apontei para Lisi e os seus dois companheiros, que trepavam pela escarpa na nossa direcção. ‑ Se estivermos calados, não nos encontram ‑ disse. ‑ Depois, logo à noite vamos salvar a Molly, se ela ainda estiver viva.
‑ Viva? ‑ perguntou Jackie. ‑ Quer dizer ... ‑ Não foi capaz de continuar.
‑ Quero dizer que eles são um bando de assassinos, mas acho que não vão matar a Molly porque sabem que o San Rafael virá mais tarde buscá‑las. Mas são uns assassinos. Tenho provas disso. E Nicole também é.
‑ Nicole? ‑ Jackie fitou‑me com os seus grandes olhos. - Encontrou‑a?
Abanei a cabeça.
‑ Anda no mar ‑ respondi sombriamente.
‑ Talvez ela não seja como os outros ‑ disse Jackie timidamente.
‑ É ‑ respondi. ‑ E talvez seja mesmo das piores.
‑ Lamento, Tim. Pode crer que lamento muito. ‑ Encostou a cabeça ao braço e pensei que estava a rezar, mas depois ela disse em voz abafada: ‑ Lamento tudo o que aconteceu, Tim. Lamento muito.
‑ Agora esteja calada ‑ adverti‑a. Apontei para Lisi, que subira até ao caminho pedregoso e estava a menos de quarenta metros do nosso esconderijo.
‑ Stephen! ‑ gritou Lisi, espreitando no meio da chuva à procura do atirador desaparecido. ‑ Stephen! ‑ gritou novamente quando os seus dois companheiros chegaram junto dela.
‑ Se fizeres o mais pequeno ruído, Stephen, arranco‑te os olhos com um saca‑rolhas ‑ disse eu em voz baixa.
Stephen, que nos espreitava lá do fundo da caverna, emitiu um som abafado que eu interpretei como de pronto assentimento ao meu pedido de silêncio.
‑ És um bom rapaz ‑ disse‑lhe para o animar.
Lisi estava já tão perto de nós que ouvi o estalido quando ela engatilhou a arma. Levantou‑a e disparou um carregador inteiro para o ar, ficando depois à espera de uma resposta do desaparecido Stephen.
A chuva escorria pela escarpa, mas não houve resposta aos tiros de Lisi, que praguejou e regressou pelo caminho da casa.
‑ Vais abandoná‑lo? ‑ perguntou‑lhe um dos homens.
‑ Ora, Paul! Ele está armado! Há‑de aparecer com a rapariga quando quiser. Vamos embora.
Começaram os três a descer o monte, e Jackie deu um longo suspiro de alívio.
‑ Isto está mau porque eles têm muitas armas ‑ expliquei eu a Jackie. ‑ Mas tem de compreender que eu próprio já não estaria vivo se não tivesse trazido também uma arma. Sei que não está de acordo, mas
‑ Por amor de Deus, Tim, não diga mais nada. ‑ Jackie parecia estar muito cansada, por isso calei‑me e fiquei a olhar para a casa, pensando que a minha vida afinal ia ser muito solitária. ‑ Já lhe disse que não foi por causa das espingardas que me fui embora
‑ continuou ela.
‑ Eu sei ‑ respondi tristemente. ‑ Foi por causa de eu ter dito que queria que ficasse comigo, não foi?
‑ Foi, foi isso mesmo. Fiquei assustada, percebe? ‑ disse Jackie tão baixinho que quase não a ouvi. Voltei‑me para ela e vi que estava outra vez a chorar. ‑ Porque queria dizer que sim - continuou.
‑ Queria dizer ... ‑ Comecei a repetir as palavras de Jackie, mas ela interrompeu‑me, abanando a cabeça para mostrar que, se parasse, perdia o fio à meada.
‑ Queria dizer que sim, mas estava aterrada, Tim ‑ prosseguiu em voz mais forte. ‑ Achava que não devia apressar‑me a tomar uma decisão assim tão importante. Por isso, achei que o melhor era afastar‑me de si para me distanciar. Mas não fui capaz de lhe explicar isso.
Eu queria dizer qualquer coisa, mas não encontrava as palavras certas.
‑ Foi por isso que fugi, porque era tudo tão confuso, principalmente porque o seu irmão também lá estava ‑ continuou ela.
Fitou‑me com um ar muito sério e os olhos a brilharem, e eu pensei que nunca na vida duas pessoas se tinham apaixonado numa situação mais estranha, e de repente atrevi‑me a pensar que estávamos mesmo apaixonados.
‑ Devia ter‑lhe explicado tudo em Antigua, mas achei que, se calhar, até ia ficar satisfeito por se ver livre de mim ‑ continuou Jackie. ‑ Sabe, pensei que estava só a querer ser simpático comigo e que, quando pensasse melhor, mudava de ideias...
Jackie Pus um dedo nos lábios para se calar.
deve ter pensado que estávamos em perigo, porque me fitou com um olhar muito assustado. Beijei‑a e disse:
‑ Amo‑te.
Acho que eu também estava quase a chorar, só que desta vez era de felicidade, por isso beijei‑a novamente, passei‑lhe um braço por cima dos ombros e apertei‑a de encontro a mim.
‑ Oh, Tim ‑ disse Jackie, respirando fundo.
‑ Isso quer dizer que agora estamos os dois no mesmo barco? - perguntei.
‑ Acho que sim ‑ respondeu timidamente.
‑ Hupi! ‑ exclamei baixinho. Só esperava que fosse possível recuperar o barco.
E de repente, um dia que começara com um ataque de melancolia destrutiva levava‑me aos píncaros da felicidade. Mas as tarefas árduas desse dia ainda não estavam terminadas e portanto, puxando Jackie bem para junto de mim, esperei pela noite.
No DIA seguinte, ao meio‑dia, a preocupação da colónia pelo desaparecimento de Stephen tornou‑se suficientemente grave para mandarem dois homens fazer uma busca no interior da ilha nas motos todo‑o‑terreno, provavelmente considerando que Stephen fora obrigado a perseguir Jackie na região selvagem que se estendia até ao oceano distante. Outros quatro homens revistaram as ravinas do planalto. Os dois grupos passaram um mau bocado, pois a chuva não parava.
Abrigados na nossa brecha, contei a Jackie tudo o que descobrira acerca da Comunidade Génesis através de Berenice e da minha própria exploração da pedreira de calcário. Falei‑lhe do barco australiano e do cadáver que encontrara. Depois, tirei a mordaça a Stephen para verificar se ele sabia alguma coisa sobre a morte da rapariga australiana. Stephen começou por se queixar que lhe doíam os músculos dos maxilares, depois choramingou um bocado, mas finalmente resolveu‑se a falar. Aquilo que nos disse do barco australiano confirmava a história de Berenice. O catamará Naiad tinha chegado inesperadamente à colónia, e Von Rellsteb, que estava ansioso por arranjar um quarto iate, convidou os três australianos para jantarem na mina. Uma vez lá chegados, os homens foram abatidos a tiro e a rapariga fechada numa arrecadação.
‑ Fala‑me da Nicole ‑ ordenei‑lhe.
Na altura da chegada do Naiad, Nicole era o navegador da tripulação do Génesis Dois e Stephen pertencia a essa mesma tripulação. Disse que Nicole não só era melhor marinheiro do que o patrão do barco, como também era mais enérgica e resoluta. Estava ansiosa por comandar o Génesis Dois, e a chegada do grande catamarã australiano fora uma sorte para Von Rellsteb, que só assim pudera evitar um motim. Foi por isso que se apoderaram do Naiad e o deram a Nicole.
‑ E quem é que matou os dois australianos? ‑ perguntei eu a Stephen.
‑ Foi ela. ‑ Proferiu a acusação quase num murmúrio. ‑ Os outros hesitaram, por isso ela apoderou‑se da arma.
‑ Valha‑me Deus ‑ murmurou Jackie, horrorizada.
Eu tinha vontade de matar Stephen por ter sido o portador daquelas noticias, mas depois resolvi que ia esvaziar a taça da amargura até às últimas gotas e perguntei‑lhe se o Génesis Dois tinha ido à Europa há dois anos. Ele acenou afirmativamente.
‑ E a Nicole foi com vocês? ‑ perguntei imperiosamente. - Ele acenou novamente. ‑ E puseram uma bomba no meu barco?
‑Não fui eu! ‑desculpou‑se ele, cheio de medo. ‑Foi a Nicole e o amante dela. ‑ Falava pelos cotovelos, ansioso por provar que queria colaborar comigo, ansioso pela minha aprovação, ansioso por salvar a vida.
‑ O amante dela? ‑ Lembrei‑me das fotografias do compartimento de rádio da mina, onde se via Nicole ao lado de um rapaz alto e louro.
Stephen acenou com a cabeça.
‑ Chama‑se Dominic e agora é o navegador dela. Achavam que, se você morresse, herdavam o seu estaleiro e podiam fundar um grupo só deles na Europa. Caspar não se importou, porque sempre teve problemas com a Nicole. Disse‑lhes que podiam levar o Génesis Dois para a Europa na condição de o novo grupo também se chamar Génesis e de o reconhecer como fundador. Estivemos quase para desistir, porque chegámos um dia atrasados e pensámos que você já se teria ido embora, mas Nicole insistiu.
Fiquei a olhar com ódio para a cara aterrorizada de Stephen. Eu tentara convencer‑me de que Nicole fora enganada por Von rellsteb, mas sabia que não era verdade. Nicole nunca fora manipulada por ninguém. Fora Nicole quem matara a mãe e tentara matar‑me a mim para provar que era capaz de chefiar um grupo de ecoterroristas melhor do que o de Caspar. E eu conhecia‑a suficientemente bem para saber desde o princípio que era assim que as coisas se tinham passado.
Quando pensei em Nicole, agachada no pontão do estaleiro, a entrar no barco, a minha imaginação recusou‑se a continuar. Como é que ela podia ter feito aquilo? Julgaria que seria possível penitenciar‑se do assassínio dos próprios pais salvando focas e tentando impedir a realização de testes nucleares? Que sentimentos descontrolados de ódio, inveja ou paixão podiam tê‑la levado a cometer um tal acto?
‑ Não fui eu que pus a bomba! ‑ exclamou Stephen.
‑ Ora, cala a boca! ‑ disse eu. Ele também lá estava, estava no barco que subira furtivamente o rio para cometer um assassínio. - Vai para o diabo - concluí, desanimado.
Depois, fiquei à escuta enquanto Jackie o interrogava sobre a Comunidade Génesis, extraindo‑lhe uma história triste, mas muito comum, de idealismo transviado e de esperanças fracassadas. Na maioria, os militantes da Génesis, tal como o próprio Stephen, tinham aderido à organização de Von Rellsteb no Canadá ou na Costa Oeste dos Estados Unidos, aliciados pela sua doutrina venenosa sobre a necessidade de tomar medidas radicais para salvar um mundo poluído. Mas quando se deram conta de que estavam a fazer exactamente o mesmo que centenas de outros grupos, os discípulos de Von Rellsteb foram facilmente persuadidos de que a sua contribuição para a cruzada ecológica seria fundar, numa região inóspita, uma comunidade que seria a precursora de um mundo ideal e ecologicamente puro. A Comunidade Génesis viveria em paz e harmonia orgânica, sem fazer mal às árvores nem aos animais e num clima de amor.
A Patagónia fora a região escolhida para a fundação do novo Eden, mas o frio, a chuva, o vento e a fome abalaram o idealismo entusiástico da comunidade, que degenerou num inferno autoritário. A paz era mantida com castigos, as árvores abatidas para lenha, os animais, pelas suas peles, e o amor livre transformou‑se em violação institucionalizada; mas, apesar disso, os dirigentes da comunidade recusavam‑se a admitir o fracasso.
‑ Nicole não vai desistir nunca ‑ acrescentou Stephen num tom de admiração relutante.
Confessou que era fraco demais para entrar para o bando de Nicole, pois ela só admitia no seu barco os mais duros e os mais fanáticos. Ela e a sua tripulação tinham‑se separado de Von Rellsteb, tentando preservar o fanatismo e o entusiasmo do sonho primitivo.
Escutei aquela história desesperada e, quando Stephen já não tinha mais respostas a dar, cortei uma tira de pano do blusão dele e amordacei‑o novamente.
O relógio de Jackie indicava que faltavam três minutos para a hora certa. Trepei até ao alto da rocha e peguei no meu rádio portátil. Ignorando a mensagem do pisca‑pisca da luz da pilha, sintonizei o canal 37 e depois carreguei no botão de transmissão.
‑ Stormchild, Stormchild ‑ disse. ‑ Aqui Tim, aqui Tim. Escuto.
Fiquei à espera. A luz vermelha continuava a piscar, mas parecia estar mais fraca, e deduzi que cada uma daquelas malditas piscadelas gastava ainda mais pilha, que já estava em baixo. A chuva escorria‑me para dentro da gola.
‑ Por amor de Deus, David, fala! ‑ exclamei, traindo a tensão em que me encontrava.
A voz de David respondeu de repente.
‑ Aqui Stonnchild, aqui Stonnchild. Temos estado à escuta no rádio, Tim, mas tivemos de nos afastar muito de terra por causa do mau tempo.
‑ David! Preciso de ti na colónia. Não é na mina, é na colónia. Vem já. O rádio já está a piscar. Não posso transmitir durante muito mais tempo. Vem depressa! Entendido? Escuto.
A única resposta que tive foi um silvo e o som indistinto da voz de David, depois o som calou‑se e carreguei no botão de transmissão.
‑ David! Vem para aqui! Para a colónia!
Nessa altura, a luz vermelha apagou‑se de vez e, quando larguei o botão de transmissão, o pequeno altifalante do rádio ficou silencioso. Só me restava rezar para que o aparelho tivesse transmitido a preciosa mensagem.
Voltei para o meu esconderijo e, quando começou a escurecer, sem que a chuva parasse, abri uma lata de feijão para Jackie e uma lata de carne para mim. Os nossos inimigos enviaram para as rochas mais dois grupos de busca encharcados, que também não encontraram nada. Por essa altura, pensei, Lisi devia estar a entrar em pânico: o Stormchild continuava à solta, uma visitante indesejável vagueava pela ilha e ela perdera um homem. Eu esperava que ela já estivesse com os nervos em franja.
Antes de escurecer completamente, levei Jackie para a plataforma abrigada da rocha, sorri‑lhe e depois disse‑lhe que estava na altura de ela aprender a atirar. Abriu muito os olhos e começou a falar em voz firme:
‑ Não!
‑ Jackie, cala a boca! ‑ interrompi‑a eu ainda com mais firmeza.
Depois, mostrei‑lhe como é que se engatilhava a espingarda‑metralhadora M‑16, onde é que ficava a patilha de segurança e como é que se disparavam tiros isolados e se seleccionava o tiro automático.
‑ Nem sou capaz de lhe tocar! ‑ exclamou ela, olhando com horror para a arma pousada na rocha entre nós.
Até parecia que eu lhe tinha pedido para comer um bife.
‑ Ouve! ‑ expliquei. ‑ Eu vou descer até à colónia esta noite e quero que eles estejam a olhar para o outro lado. Quero que os distraias.
‑ Não sou capaz, Tim!
‑ Não te peço para matares ninguém! Só quero que apontes essa maldita coisa para as estrelas e que dispares! Só tens de fazer barulho.
Ela estendeu timidamente um dedo e tocou na espingarda, que não lhe mordeu.
‑ Basta fazer barulho? ‑ perguntou. Acenei afirmativamente e ela lá fez um esforço e pegou na arma. ‑ Não me importo de fazer barulho com ela, mas não a aponto a ninguém!
Quando tive a certeza de que ela tinha percebido como é que se disparava a arma, aproveitei o resto da luz do dia para fabricar uma estranha engenhoca utilizando as peças do rádio inutilizado, as pilhas da lanterna e as cinco latas de feijão. Jackie observava‑me, intrigada.
- Oqueéisso?
‑ Uma bomba completamente vegetariana e inofensiva ‑ expliquei‑lhe.
Enfiei a engenhoca no saco juntamente com os dois paus de dinamite da rapariga australiana.
O Sol pôs‑se por detrás das nuvens e, quando a escuridão cinzenta do dia se transformou na escuridão ainda mais negra de uma noite de chuva, rastejei para fora da fenda da rocha. Jackie não me acompanharia. Ficava em segurança ali em cima, onde, exactamente dentro de uma hora, criaria uma diversão, disparando a espingarda para o ar.
Jackie deu‑me um beijo e eu prometi‑lhe que voltava. Depois, armado e perigoso, fui fazer maldades.
A PRIMEIRA foi fácil. Trepei até ao alto do pico rochoso e serrei os cabos que amparavam a antena improvisada. O vento forte fez o resto. Depois, só para ter a certeza de que a antena derrubada estava mesmo inutilizada, cortei o cabo de transmissão. Acontecesse o que acontecesse, a colónia já não podia falar com Von Rellsteb nessa noite.
Em seguida, desci da rocha e deslizei pela encosta abrupta da escarpa. Levava a Lee‑Enfleld, a minha faca de marinheiro, alguns dos fósforos à prova de água de David e dois paus de dinamite. Deixara a Jackie instruções severas para fugir para norte, caso eu não voltasse dentro de três horas, e para procurar outro esconderijo junto à costa, servindo‑se depois da espingarda para fazer sinal a David quando o Stormchild passasse ou, se este não aparecesse, para alertar o San Rafael quando regressasse.
Cheguei ao sopé da escarpa e caminhei penosamente pelo meio das hortas encharcadas até ao cais de pedra onde o arrastão da Génesis estava atracado. Era espantoso, mas não havia ninguém a guardar o arrastão. Parecia que a Comunidade Génesis se retirara para o refúgio seguro da casa grande e por isso, por enquanto, a noite estava por minha conta.
Servi‑me da faca de marinheiro para cortar os quatro cabos de amarração do arrastão. Podia contentar‑me em deixar que a maré arrastasse o velho barco para longe, mas queria arrasar os nervos da Comunidade Génesis, por isso tirei da algibeira um dos paus de dinamite e ajoelhei‑me para acender desajeitadamente um fósforo na chuva que caía a cântaros. Por debaixo da aba do casaco, cheguei a chama vermelha ao rastilho até começarem a saltar faíscas brilhantes. Depois, voltei‑me, calculei a distância até ao arrastão à deriva e atirei a dinamite. Vi o rastilho a descrever um arco na escuridão e a cair exactamente onde eu queria, para lá da amurada do arrastão. Ouvi a dinamite bater no convés e deitei‑me ao comprido nas pedras molhadas do cais, fechei os olhos com força e fiquei à espera.
Não aconteceu nada e achei que a dinamite estava velha e inutilizada por ter estado exposta ao mau tempo, o que era uma pena, porque eu confiara na eficácia do invento de Alfred Nobel para espalhar a confusão. Desapontado, levantei a cabeça para olhar a sombra escura do velho arrastão à deriva na noite.
Nessa altura, o barco explodiu.
«Dêem um prémio ao senhor Nobel», pensei; a velha carga de explosivo tinha funcionado. A explosão repercutiu‑se para o exterior com uma força espantosa e depois uma chama rasgou o ar. Outra chama mais escura cintilou no meio do fumo que se elevava em turbilhões do convés do arrastão e alastrou repentinamente, recortando a fogo os contornos dos brandais revestidos a alcatrão. O mar ficou iluminado num raio de vinte metros.
A colónia entrou em tumulto. Apareceram luzes de velas em quase todas as janelas. Os feixes luminosos de algumas lanternas fortes dançaram na relva em frente da casa quando os militantes da Génesis, acordados pelo estrondo, correram para as margens da baía para ver o que tinha acontecido ao seu precioso barco.
Mas não podiam fazer nada. Calculei que os seus lamentos em breve se transformassem em pedidos de socorro emitidos pelo rádio, mas eu silenciara a colónia, destruindo a antena. Estavam encurralados e eu ainda só começara a brincar.
DEPOIS de o arrastão ter ardido e quando aquela noite agitada recaiu numa escuridão impenetrável, tirei do saco o outro pau de dinamite, deslizei ao longo da parede da frontaria da casa e fiquei à espera.
Ao fim de menos de cinco minutos, ouviu‑se o estrondo de um tiro. Jackie disparara a espingarda tão apontada para o céu que o tiro devia ter cortado a asa de um anjo. Depois, disparou outra vez e eu, certo de que os meus inimigos tinham sido atraidos para as traseiras da casa, acendi um fósforo, peguei fogo ao rastilho e fiz rebolar a dinamite até à porta principal do edifício, correndo depois para a relva para me afastar o mais possível da explosão.
‑ Calados! ‑ gritou a voz de Lisi, porque o tiroteio tinha provocado um rumor de vozes excitadas. ‑ Procurem o clarão da boca do cano! ‑ ordenou.
Eu ouvia o rastilho da minha dinamite a crepitar furiosamente, mas não via nada, porque tinha os olhos fechados e a cara encostada à terra húmida.
A dinamite explodiu e eu fui abalado pela onda de choque da explosão, que me cortou a respiração, e bombardeado por bocados de terra. Quando levantei a cabeça, vi que o alpendre com a latada tinha desaparecido e que os dois batentes da porta principal eram agora um grande buraco negro fumegante. Accionei a culatra móvel da Lee‑Enfield, colocando uma bala na câmara.
‑ Por aqui! ‑ gritou uma voz.
A luz de uma lanterna trespassou a noite escura e chuvosa na minha direcção. Corri para a casa. A ombreira da porta estava desfeita e fumegava, dando passagem directa para o corredor. Abri caminho através da porta principal e descobri a cozinha. Ardia lenha nas duas fornalhas do comprido fogão e o grande compartimento estava maravilhosamente quente. Encontrei uma vela em cima da mesa, acendi‑a à chama do fogão e deitei mãos à obra para tornar o compartimento inabitável.
Comecei por pendurar o meu saco, com a bomba vegetariana lá dentro, numa viga próxima da porta da cozinha. Arrumei cuidadosamente o conteúdo do saco e depois extingui a preciosa fonte de calor e de água quente da colónia, deitando água nas duas fornalhas. Já inutilizara o rádio da colónia e agora ia privá‑la de calor e comida quente. Nada poderia contribuir mais para abater o moral neste local desconfortável.
Depois de ter apagado o lume, arrombei as janelas e em seguida abri um armário e comecei a destruir os preciosos mantimentos da colónia.
A intervalos de segundos parava para ver se ouvia passos anunciando o contra‑ataque da gente da Génesis, mas o grupo estava tão desorganizado que eu já quase tinha acabado de destruir a cozinha quando ouvi finalmente o som de passos nas escadas. Imobilizei‑me e depois recuei silenciosamente para uma grande copa.
Entraram duas pessoas pela porta da cozinha. Uma era um homem barbudo vestido com um fato verde desbotado e armado com uma espingarda, e a outra era uma rapariga magra, de ar assustado, com um camisolão cinzento e umas calças cinzentas largueironas. Nenhum deles me viu escondido num canto escuro da copa.
‑ Larga a arma ou és um homem morto ‑ disse eu.
O homem barbudo voltou‑se para mim e eu disparei.
Não fiz pontaria para matar. Limitei‑me a fazer ecoar no compartimento o estrondo aterrador da Lee‑Enfleld, enquanto a minha bala se enterrava inofensivamente na parede oposta. A rapariga gritou e o homem barbudo largou a espingarda.
Saí da copa para a cozinha.
‑ Chamo‑me Tim Blackburn e vim aqui há uns dias saber noticias da minha filha, Nicole. ‑ Apontei a espingarda para o homem. ‑ Ninguém teve a delicadeza de me dar essas notícias, por isso voltei para descobrir por mim próprio. ‑ O homem barbudo, de mãos no ar, fitava‑me com um olhar aterrorizado. A rapariga estava encolhida ao pé da porta. ‑ Levanta a aba do saco que está por cima da tua cabeça. Muito devagar, sem deslocar o saco. Vá, rápido!
O homem estendeu a mão a medo e levantou a aba do meu velho saco de pesca de lona. Ficou aterrado com o que viu. A minha engenhoca era constituída pelas duas pilhas da lanterna e por uma das placas de circuitos que tirara do rádio portátil inutilizado. Também tinha arrancado alguns fios eléctricos e conseguira fixá‑los às pilhas, que, tal como a placa de circuitos, sobressaíam, aterradoras, da boca do saco. A outra ponta dos fios estava presa às latas de feijão dentro do saco. A engenhoca era completamente inofensiva, mas tinha um aspecto tão diabólico como uma bomba feita por um terrorista.
‑ Vai explodir não tarda nada ‑ declarei com uma imprecisão deliberada. ‑ E quando isso acontecer, esta casa desaparece. Perceberam? ‑ O homem emitiu um som estrangulado e depois acenou com a cabeça. ‑ Por isso, vais lá acima e mandas sair toda a gente para a praia ‑ continuei. ‑ O saco está recheado de semtex e equipei‑o com um sensor de movimento, por isso nem eu o posso tirar e desarmar a bomba. Agora, vai lá acima e diz à Lisi para mandar sair toda a gente da casa! Depressa!
Fugiram os dois a correr, e eu peguei na M‑16 que o homem largara. De repente, soaram gritos e um tropel súbito de passos por cima da minha cabeça, provando que a ameaça da bomba surtira efeito. Fui até à porta da cozinha e vi um bando de pessoas a correrem escada abaixo, saindo para a noite escura e chuvosa. As crianças iam passar um mau bocado, pensei, mas mais valiam essas horas de sofrimento ao frio e à chuva do que uma vida inteira de escravidão sob a tirania de Von Rellsteb.
Lisi foi a última a fugir. Lançou‑me um olhar frio, mas não ofereceu resistência. Esperei até que ela saísse e a casa ficasse deserta. Eu tinha conquistado o santuário de Von Rellsteb e, com as duas espingardas a tiracolo, fui explorá‑lo.
Passei ao lado da porta principal estilhaçada e chamuscada e subi as escadas. Do patamar superior saía um corredor grande e escuro que se estendia para a esquerda e para a direita. Percorri lentamente o corredor da direita, empurrando as portas para espreitar para dentro dos quartos abandonados. Alguns ainda estavam iluminados por velas e o desconforto das instalações lembrou‑me os dormitórios do colégio interno da minha juventude. Os quartos não tinham praticamente mobília para além de divãs metálicos cobertos com enxergas finas. Um compartimento maior era o quarto das crianças e lá dentro havia dois sofás decrépitos e alguns brinquedos de fabrico artesanal, mas, apesar dessas tentativas de criação de um ambiente familiar, os quartos eram desolados.
A minha vela estava quase completamente derretida, mas a chama dava luz suficiente para me mostrar que o corredor mais curto que ficava para sul acabava numa bela porta de mogno. Empurrei o puxador para baixo, mas a porta estava fechada à chave.
Desenfiei a correia da Lee‑Enfleld do ombro, apontei ao fecho e disparei. A porta de mogno abriu‑se.
Foi como se passasse de um bairro de lata para um palácio. Os quartos estavam guarnecidos com todos os luxos e confortos que podiam mitigar os rigores daquele lugar terrível. O chão estava coberto por uma profusão de tapetes orientais desbotados que davam aos quartos um aspecto opulento. O papel de parede desaparecia debaixo de quadros pendurados muito juntos, representando paisagens alemãs românticas, carregadas de penhascos e de castelos com torreões. Suspeitei que, tal como os candeeiros de petróleo colocados em cima das mesas por encerar, deviam ter sido trazidos para a Patagónia pelo primeiro Von Rellsteb. Os velhos sofás e poltronas de crina estavam cuidadosamente protegidos por panos de renda. Os quartos eram confortáveis, com camas de colchões tão altos que mais pareciam medas de feno. O último quarto era de longe o mais luxuoso de todos. Tinha janelas voltadas para leste, para o mar, e para sul, para os pântanos, e pelo luxo do mobiliário calculei que fosse o quarto onde dormiam Von Rellsteb e Lisi. O quarto era dominado por uma grande cama de madeira entalhada, sobre a qual flutuava como uma nuvem um edredão branco sujo.
Pus a minha vela num elegante castiçal de latão que estava na mesa‑de‑cabeceira e depois parei para escutar. Não ouvi nada que me alarmasse, por isso pendurei a M‑16 ao ombro, atirei a Lee‑Enfleld para cima da cama, onde foi tragada pelas pregas fofas do grande edredão, e depois comecei a passar busca ao grande compartimento. Mas não encontrei quase nada. Numa das gavetas de um toucador havia um álbum de recortes de jornal narrando os triunfos da Génesis sobre os seus inimigos e numa das mesas‑de‑cabeceira estava escondido um pequeno tesouro de moedas e jóias que mais parecia o espólio brilhante de um pirata.
Uma espingarda disparou três tiros decididos lá fora na noite. Não consegui perceber se tinha sido Jackie ou alguém da Génesis, por isso aproximei‑me da janela voltada para leste e olhei para o escuro. A princípio, não vi nada, mas depois tive um choque quando avistei uma luzinha a brilhar na baía. A minha primeira ideia foi que o Stonnchild regressara e que o que eu via era a luz da cabina do barco. Mas depois senti qualquer coisa pesada a bater no chão do quarto, atrás de mim. Voltei‑me em pânico e vi uma lata de feijão a rebolar pelo tapete na minha direcção.
‑ Pum! ‑ disse Von Rellsteb, e riu‑se.
Estava encostado à ombreira da porta, vestido com um fato de oleado molhado, com uma expressão divertida na cara magra. Tinha uma espingarda, tal como Lisi, que estava junto dele. Ela também trazia a minha velha mochila de pesca, que atirou para o chão com desprezo, fazendo rebolar outra lata de feijão lá de dentro. Depois, com um sorriso nos lábios, o alemão apontou‑me o cano da sua espingarda.
‑ Pouse a arma ‑ ordenou. ‑ Devagar! ‑ Desenfiei muito lentamente a correia da M‑J6 do ombro e coloquei a arma no chão.
‑ Empurre‑a para aqui ‑ continuou Von Rellsteb.
Empurrei a espingarda‑metralhadora com o pé e ela bateu no tapete e desapareceu debaixo da cama. A Lee‑Enfleld, em cima da cama, estava escondida pelas dobras do edredão, mas eu encontrava‑me tão longe que não me servia de nada. Von Rellsteb estava em vantagem, e eu não via como é que podia inverter a situação.
‑ Devia tê‑lo matado na Florida ‑ disse ele numa voz estranhamente cordial. ‑ A sua filha ficou furiosa por eu não o ter feito. Queria herdar o seu estaleiro, está a perceber. Ainda quer, apesar de eu lhe ter dito que você entretanto devia ter alterado o testamento. Mesmo assim, ela tinha razão. Devia tê‑lo matado nessa altura.
Recusei‑me a morder a isca.
‑ Não vale a pena matar‑me, porque as autoridades sabem que estou aqui ‑ respondi calmamente.
‑ Ai, meu Deus! Estou tão assustado! ‑ Von Rellsteb riu‑se. - As autoridades! Estás a ouvir, Lisi? Talvez seja melhor rendermo‑nos!
‑ O meu barco já deve estar em Puerto Natales. ‑ Era a minha vez de ser irónico. ‑ Se calhar pensou que tinha ido para norte? - Sorri, como se lamentasse o erro dele.
Von Rellsteb riu‑se.
‑ Mr. Blackburn, que canal VHF controlaria se soubesse que estava a lidar com o proprietário de um estaleiro inglês? ‑ Abanou a cabeça, como se estivesse desapontado com a minha estupidez. - Estou a controlar o canal trinta e sete desde que o senhor entrou pela primeira vez nas nossas águas! Ouvi o seu amigo responder à sua transmissão na noite passada. Neste momento, ele aproxima‑se inocentemente de nós e garanto‑lhe que vamos preparar‑lhe uma recepção condigna. Nessa altura, já o senhor deve estar morto! Mas primeiro diga‑me uma coisa: como é que fugiu da pedreira?
‑ Voei ‑ respondi displicentemente.
Lisi disparou uma salva de três ou quatro tiros a rasar o meu ombro direito.
‑ Como é que fugiu? ‑ perguntou asperamente.
‑ Quando me viram cair, tinha um cabo atado à cintura ‑ confessei. ‑ Depois, desci até ao fundo da pedreira e esperei que se fossem embora.
‑ Nicole herdou a sua astúcia ‑ comentou Von Rellsteb em tom de genuína admiração. ‑ E talvez também a sua ousadia. Ela está a chegar. Falei com ela pelo rádio há menos de três horas e disse‑lhe que o senhor estava aqui. Gostava de esperar por ela?
‑ Sim! ‑ implorei.
Tinha o coração a bater com força e um aperto no estômago, pois sabia que estava derrotado.
‑ É melhor não ‑ declarou Von Rellsteb, contrariando com
prazer as minhas esperanças. ‑ A minha gente está lá fora à espera, à chuva, e gostava que pudessem vir para dentro para se aquecerem, o que significa que tenho de o matar antes de eles voltarem. Alguns deles ainda são suficientemente ingénuos para se escandalizarem com assassínios.
Apontou a espingarda para a minha cara e vi LisI sorrir antecipadamente com o prazer da minha morte, mas depois Jackie apareceu à porta, ordenando a Von Rellsteb para pousar a arma. Von Rellsteb inteiriçou‑se com o choque e Lisi, assombrada, voltou‑se para essa ameaça súbita.
‑ Larguem as armas! ‑ gritou Jackie numa voz histérica. - Senão, disparo!
Von Rellsteb apercebeu‑se do desespero da ameaça e deve ter compreendido que Jackie estava quase paralisada de nervosismo. Voltou os olhos para mim e percebi que estava a pensar que podia sair da linha de mira de Jackie e depois disparar sobre mim. Mas, se o fizesse, Lisi ficaria exposta.
‑ Dispara se ele mexer nem que seja um dedo! - gritei a Jackie, mas sabia que era tão provável ela puxar o gatilho como comer uma costeleta de porco.
‑ Mr. Blackburn, acho que, se a sua nervosa salvadora tencionasse matar‑me, já tinha disparado a estas horas ‑ disse Von Rellsteb em voz de troça. Fez uma pausa, certificando‑se de que eu estava directamente na mira da sua arma. ‑ Passe bem, Mr. Blackburn, passe bem.
Ouvi um tiro.
Jackie deu um grito horrível. Atirei‑me para trás, fugindo instintivamente das balas que estavam para vir. Bati na parede e fui projectado na direcção de LisI. As balas despedaçavam as molduras douradas e reduziam o estuque das paredes a pó e entulho. Os vidros dos quadros despedaçavam‑se e misturavam‑se com o sangue que empapava o chão.
Era o sangue de Von Rellsteb, porque fora Jackie quem disparara. Tinha a metralhadora regulada para automático e, mais por sorte do que por desejo, a pontaria dela fora perfeita. E continuava a gritar de horror.
LisI voltava‑se nesse momento, apontando a arma a Jackie, no mesmo instante em que a espingarda‑metralhadora desta última se esvaziou subitamente. Atirei‑me para a frente. Doíam‑me as articulações e eu movia‑me com dificuldade, como se estivesse a nadar debaixo de água.
Lisi viu o meu movimento e começou a voltar a arma para mim.
Ouvi Jackie gritar outra vez e a espingarda de Lisi virou‑se novamente para ela. Eu estava estiraçado no edredão espesso e macio da cama, tentando agarrar a Lee‑Enfleld. LisI ignorava‑me, apontando para Jackie; quando empunhei finalmente a pesada espingarda, apontando e puxando o gatilho, a boca do cano continuava presa no edredão e a bala provocou uma explosão de penas de pato. Armei novamente a espingarda e disparei outra vez. A cabeça de Lisi saltou para trás e ela caiu sentada no chão.
Jackie soluçava descontroladamente. Fiz avançar outra bala para a câmara da Lee‑Enfield. Havia mais atiradores da Génesis à solta e eu já tinha sido suficientemente parvo para cair numa emboscada. Escorreguei para fora da cama e levantei‑me.
‑ Ai, meu Deus ‑ balbuciou Jackie, que entretanto recuperara o fôlego. ‑ Tentei avisar‑te de que eles estavam a chegar, porque vi o barco, e por isso disparei uma data de vezes para o ar. Ai, meu Deus!
Disse estas palavras ofegando, como uma rapariguinha que tem de dar um recado importante que não percebe muito bem, e depois desmaiou. Peguei‑lhe ao colo.
Ao NASCER do dia, os infelizes sobreviventes da Génesis estavam de volta à sua casa em ruínas. Sem Von Rellsteb, tinham perdido a combatividade. Mas se ele me dissera a verdade, Nicole vinha aí no seu barco para se vingar.
Outro barco voltara com Von Rellsteb e estava agora ancorado na baía ao lado do seu catamarã. O que significava que andavam mais dois barcos da Génesis no mar: o catamará de Nicole e o outro barco à vela. O operador de rádio de Von Rellsteb, um californiano taciturno, confirmou que contactara com o barco de Nicole com o seu aparelho de radioamador e confessou relutantemente que o catamará estava ainda a três ou quatro dias de terra.
Na madrugada chuvosa, inutilizei os dois iates da Génesis, cortando‑lhes as amarrações e esvaziando o óleo dos motores. Depois, pus os motores a trabalhar até griparem e deixei‑os à deriva até darem à praia perto do arrastão queimado.
Jackie foi até à beira‑mar logo de madrugada e ficou lá sentada durante muito tempo, com a cabeça apoiada nas mãos. Pensei que talvez estivesse a rezar; quando acabou as suas orações, ou a sua meditação, veio até junto de mim e abraçou‑me com força. Não disse nada, e quando tentei falar, ela fez‑me sinal para me calar. Só queria que eu a abraçasse.
Molly Tetterman, libertada da sua prisão, assumiu a tarefa da reorganização dos desanimados sobreviventes da Génesis. Para Molly, organizar outras pessoas era como, para uma abelha, fazer mel. Encetou uma distribuição de vestuário quente do guarda‑roupa de Von Rellsteb.
Eu atravessei as hortas a coxear, dirigindo‑me para a escarpa. Lembrei‑me de que Stephen continuava preso na fenda. Jackie veio comigo e, enquanto trepávamos até à fenda, contei‑lhe os meus planos. Assim que David chegasse, tencionava contactar as autoridades chilenas pelo rádio do Stonchild e informá‑las do assassínio dos australianos e da morte de Von Rellsteb e Lisi. Mas eles não me iam encontrar ali, porque, como expliquei a Jackie, tencionava embarcar no Stormchild e interceptar Nicole na sua viagem de volta.
Quando chegámos ao alto da escarpa, libertei Stephen, que estava enregelado dentro da fenda da rocha. Ficou pateticamente grato, mas menos quando o empurrei a pontapé monte abaixo até à colónia. Já não podia ser perigoso, porque eu afundara todas as armas da Comunidade Génesis na baía, à excepção das duas espingardas que trazia a tiracolo.
Jackie e eu estávamos no pico varrido pelo vento junto aos destroços do mastro da antena.
‑ E se os outros barcos da Génesis chegam aqui antes das autoridades? ‑ perguntou Jackie nervosamente.
‑ Vou deixar‑te estas duas armas. Pessoalmente, duvido de que venhas a precisar delas, porque desconfio que Nicole vai atrás de mim e os do outro barco sabem que está tudo acabado. Não vão dar luta.
Jackie estava tão cansada que só ao fim de uns instantes percebeu que eu tencionava partir sem ela.
‑ Não queres que eu vá contigo?
‑ Mais do que tudo no Mundo ‑ respondi sinceramente. - não podes vir. A Nicole não é como o resto da Génesis. É uma lutadora e a tripulação do barco dela são os sequazes mais duros e mais fanáticos de Von Rellsteb. Não vai ceder sem luta. ‑ Calei‑me por momentos. ‑ Espero estar enganado, mas desconfio de que neste momento ela é capaz de ser muito perigosa.
‑ Mas então, porque é que tu vais atrás dela? ‑ perguntou Jackie.
‑ Porque ela é minha filha. E porque não há mais ninguém para ajudá‑la.
Jackie fitou‑me, preocupada.
‑ Mas não podes ir sozinho no Stonnchild num mar como este.
‑ Claro que posso ‑ disse eu com uma segurança que não sentia.
No exacto momento em que disse estas palavras, o Stonnchild apareceu no estreito Desolado, com as suas grandes velas brancas como a inocência. David trouxe o Stonnchild a motor até à amarração do arrastão queimado. Parecia exausto, e estava realmente tão cansado que mal teve forças para atracar o iate como deve ser. Depois de ter fixado a última defensa, para proteger o casco do cais de pedra, desembarcou penosamente.
Berenice Tetterman já saltara para fora do barco e corria para a mãe, que, por seu turno, se dirigia apressadamente para a filha. Encontraram‑se, abraçaram‑se, choraram, e vieram‑me também as lágrimas aos olhos ao lembrar‑me de que naturalmente nunca mais ia abraçar a minha filha. Molly tinha muita sorte, pensei.
David, que ficava sempre embaraçado com cenas emotivas, voltou‑se para olhar para o arrastão queimado, os iates que tinham dado à praia e a fachada chamuscada da casa.
‑ O que é que aconteceu aqui? ‑ perguntou finalmente.
Descrevi‑lhe os acontecimentos da noite enquanto nos dirigíamos para a casa. Fez uma careta quando lhe falei do regresso de Jackie Potten e estremeceu quando lhe comuniquei que tencionava casar com ela. Arrepiou‑se quando declarei que tinha abatido Von Rellsteb e Lisi.
‑ Deves calcular que as autoridades vão com certeza fazer uma série de perguntas incómodas ‑ observou David quando acabei o meu relato.
‑ Mas eu não lhes vou dar resposta ‑ retorqui. ‑ Vou‑me embora daqui e só tenciono chamá‑las quando estiver bem longe da costa.
David, que caminhava a meu lado em direcção à casa, parou bruscamente.
‑ Já vêm a caminho, Tim. Chamei‑as na noite passada.
Fiquei a olhar para ele, horrorizado.
‑ Fizeste o quê?
‑ Chamei a Armada na noite passada. O que é que querias que eu fizesse? Mandaste‑me vir aqui numa mensagem de rádio que era praticamente inaudível! Não podia saber se não era uma armadilha! Por isso, claro que participei o caso às autoridades. A Armada deve aqui chegar ainda hoje.
‑ Valha‑me Deus!
‑ Faz algum mal? ‑ perguntou David.
‑ Claro que faz mal! ‑ retorqui colericamente. ‑ Porque assim que as autoridades chegarem, ficamos de pés e mãos atados durante dias por causa da burocracia chilena, o que significa que não posso interceptar a Nicole. Tenho de ir já!
‑ Onde é que tu vais? ‑ gritou David, pois eu tinha começado a correr para o cais.
‑ Vou procurar a Nicole porque quero falar com ela antes de ser presa ‑ expliquei‑lhe, voltando‑me para trás. ‑ Não vim até aqui para fugir dela, seja o que for que ela tenha feito.
‑ O que é que isso quer dizer? ‑ perguntou David, que entretanto viera atrás de mim.
‑ Quer dizer que Nicole é uma assassina ‑ respondi. ‑ Foi ela quem pôs a bomba no Slip‑Slider, David, não foi Von Rellsteb. Foi tudo a Nicole.
‑ Nicole! Não pode ser!
David ficou abalado. Pôs‑se muito branco.
‑ Por isso, eu tenho de ir à procura dela ‑ continuei, afastando‑me.
‑ Não! ‑ David puxou‑me para trás. ‑ Já fizeste o suficiente, Tim. Não precisas de fazer mais nada. Não precisas de te arriscar mais.
Abanei a cabeça, exasperado.
‑ Não percebes, David. Nicole está no inferno e só uma pessoa a pode salvar. Eu. Gosto muito dela e posso oferecer‑lhe a salvação, de certo modo, e principalmente não posso de maneira nenhuma voltar‑lhe as costas.
‑ Queres que eu vá contigo, não queres? ‑ perguntou apenas David.
Sorri.
‑ Não quero que corras riscos desnecessários, David. Quero que fiques aqui. ‑ Dirigi‑me desalentadamente para o Stonnchild. - Ainda anda outro barco da Génesis no mar e pode ser que chegue aqui antes das autoridades, por isso talvez não fosse má ideia ficares aqui para defender o forte. Molly Tetterman parece ser uma mulher muito competente, mas desconfio que tu, com uma arma na mão, és mais intimidante.
Fiz‑lhe um sorriso e saltei para o convés do Stormchild. Fomos ambos até ao salão e ajudei David a juntar e embalar as suas coisas. Ele lidava com a Armada Chilena e depois devia ir a Santiago participar à Embaixada da Austrália o acto de pirataria de que o Naiad fora vítima. Entreguei‑lhe o passaporte de Maureen Delaney.
‑ Jackie ajuda‑te a lidar com a imprensa ‑ disse‑lhe. ‑ Vai ser a hora de glória dela. Todos os jornais presumidos que não quiseram saber dela vão agora implorar que lhes ceda a história.
‑ Se me encontrarem ‑ disse Jackie. Viera para bordo do Stormchild e estava no albói. ‑ Vou contigo, Tim.
‑ Não! ‑ insisti.
Jackie esboçou um sorriso e depois exibiu uma das espingardas que eu tinha deixado no poço. Regulou‑a para tiro automático e apontou para o painel de instrumentos montado por cima da mesa das cartas. Se puxasse o gatilho, o Stormchild ficava sem rádio, barquinha, sonda, SatNav e cronómetro.
‑ Vou contigo, Tim, ou então não vais a lado nenhum ‑ declarou Jackie.
Suspirei e disse aquilo que tinha querido dizer durante todo o dia.
‑ Querida Jackie, por favor, vem comigo.
LARGÁMOS logo após o meio‑dia, passando ao lado do arrastão queimado e saindo para os remoinhos do estreito Desolado. Eu tinha deixado as nossas armas a David, pois a outra Lee‑Enfleld estava guardada num paiol do poço, e depois de Molly ter beijado Jackie, recomendando‑me para tomar bem conta dela, soltámos as amarras.
Esforcei ao máximo o grande motor na minha pressa de sair para o mar alto antes da chegada da Armada. A meio da tarde, descobri um canal estreito que, de acordo com a carta, conduzia até ao oceano e meti‑me por ele.
Entreguei o leme a Jackie, desci e tirei finalmente as botas, desenfiando as meias incrustadas de sangue seco. Tomei um duche, fiz a barba, tratei dos pés, vesti roupa lavada e depois aqueci uma lata de empadão de carne para mim e fiz uma omeleta para Jackie. Levei a comida para o poço, onde devorei o empadão e emborquei duas garrafas de cerveja. Mas continuava esfaimado, por isso, depois de ter engolido mais duas sanduíches de queijo e uma lata de pêssegos, fiz um bule de chá a escaldar, tão forte que teria arrancado as cracas do fundo de um vaso de guerra.
‑ Ah, que bem que me soube ‑ declarei no fim.
Ao fim da tarde, a proa do Stonchild chegou a mar aberto. A primeira grande onda gelada rebentou na proa do barco e a água verde escorreu pelos embomais. A bombordo e a estibordo, as vagas maciças rebentavam de encontro aos rochedos negros sob uma chuva constante. Jackie pegou no leme e eu icei as velas do Stormchild; o iate inclinou‑se imediatamente e adaptou‑se ao ritmo regular do oceano.
Eu tivera conhecimento do horário de transmissão da Génesis pelo operador de rádio de Von Rellsteb, por isso sabia em que canais e a que horas o Génesis Quatro estaria à escuta; ao cair da noite, desci e liguei o grande rádio do Stomchild. Jackie, ao leme, espreitou ansiosamente pelo albói quando sintonizei o rádio e carreguei no botão de transmissão.
‑ Stormchild chama Génesis Quatro. Stormchild chama Génesis Quatro. Diga se me ouve. Escuto.
‑ Estamos a ouvi‑lo ‑ disse uma voz no altifalante.
Só estas três palavras: «Estamos a ouvi‑lo.» Mas era a voz da minha filha, brusca e impessoal, e eu fiquei a olhar para o rádio como se este tivesse acabado de transmitir a palavra de Deus.
‑ Nicole? ‑ perguntei, maravilhado. ‑ Nicole?
Mas não obtive resposta e percebi que, se bem que a minha filha estivesse talvez disposta a ouvir‑me, não tinha nada a dizer‑me. Fechei os olhos, carreguei no botão e falei.
Comecei por dizer que gostava muito dela. Soou‑me forçado, por isso repeti a frase e depois disse‑lhe que sabia o que ela tinha feito não só à mãe, como também à tripulação australiana do Naiad, e que as provas desses actos tinham sido entregues ao tio David, que ia tomar medidas para que os pormenores fossem comunicados às autoridades. Depois, expliquei‑lhe que a Comunidade Génesis deixara de existir; os seus dirigentes estavam mortos e a colónia fora praticamente destruída.
‑ Podes voltar para lá agora e encontrar a Polícia e a Armada Chilenas à tua espera ou encontrares‑te comigo para voltarmos juntos, ou irmos até às Falkland. Não estou a oferecer‑te a liberdade, apenas uma escolha entre a justiça chilena e a britânica. Também gostava de me encontrar contigo e de te dizer que continuo a gostar muito de ti, apesar de detestar o que tu fizeste. ‑ As minhas palavras continuavam a parecer forçadas, mas muitas vezes custa dizer a verdade em certos momentos. ‑ Estou a navegar para sul - continuei. ‑ Vou dobrar o cabo Horn dentro de seis ou sete dias. Se vieres ter comigo, acompanho‑te até onde tu quiseres e faço o possível por te arranjar um advogado competente e honesto. ‑ Fiz uma pausa. ‑ E gosto muito de ti, Nicole.
Fiquei à espera, mas não houve resposta. Se Nicole ia aceitar a minha proposta, fá‑lo‑ia em silêncio. Voltei para o poço.
‑ Ela não disse nada? ‑ perguntou Jackie.
‑ Só que estava a ouvir‑me.
Jackie mordeu o lábio e depois lançou‑me um olhar decidido e comentou:
‑ Estive a pensar, Tim, e tenho a certeza de que não vai haver problemas. A Nicole não é parva. Se calhar, nem sequer nos vai procurar. Quer dizer, a única escolha que lhe ofereceste foi entre uma cadeia britânica e uma chilena, por isso é muito mais provável que ela se dirija para oeste, não te parece? Para tentar desaparecer no Pacífico?
‑ Talvez ‑ admiti. ‑ É muito possível.
Mas, sem saber porquê, tinha a certeza de que Nicole não conseguiria resistir a este confronto final.
HÁ MUITOS mares terríveis no Mundo, mas nenhum deles pode rivalizar com a fama assustadora do cabo Horn.
Agora, correndo para sul com a vela grande nos segundos rizes, Jackie e eu já tínhamos entrado na corrente do cabo. Muito para lá da nossa linha do horizonte, para leste, a extremidade da América do Sul curvava‑se cada vez mais bruscamente para o Atlântico, formando o lado norte da boca de um funil que comprimia e dilacerava as grandes vagas do Pacífico, guiando‑as para a passagem estreita entre o cabo Horn e a Antárctida, a passagem de Drake ‑ o canal de águas mais frias, mais inóspitas e mais bravas do Mundo.
Todas as madrugadas frias eu inspeccionava o mar em busca de uma vela, mas durante toda essa semana em que o Stormchild se aproximou do cabo Horn navegámos sempre sozinhos. O vento era frio e implacável, o mar gigantesco e negro e o horizonte continuava deserto.
Depois, na madrugada do sétimo dia, quando começava já a pensar que Nicole tinha desprezado a minha proposta de ajuda, vi ao longe, para sul, uma mancha pálida recortada de encontro à água escura e às nuvens negras ameaçadoras. Peguei no binóculo e apontei‑o para a frente, mas não conseguia distinguir os pormenores do barco longínquo.
Jackie, que tinha os olhos de um falcão esfomeado, subiu da cozinha e tirou‑me o binóculo.
‑ É um catamará! ‑ disse, passados momentos. Depois, agarrou‑se desesperadamente a um brandal quando uma onda brava trovejou e espumou debaixo do painel de popa do barco.
O Génesis Quatro, se é que dele se tratava, navegava para noroeste, na nossa direcção, e meia hora depois de ter avistado pela primeira vez a vela consegui distinguir os dois cascos voando sobre a crista das ondas e levantando um duplo leque de espuma branca. O barco longínquo era rápido como um raio e mudo como uma tumba. Tentei falar com o catamará pelo VHF, mas não obtive resposta. Voltei para cima e esforcei‑me por acalmar a excitação que ardia no meu peito. Naquela altura não sabia se devia estar contente ou triste, apenas que a minha filha estava perto e eu sentia‑me cheio de alegria e perdão.
O mar encapelado estava a piorar. O vento virara a oeste, trazendo aguaceiros raivosos de chuva escura que, quando caíam, escondiam da nossa vista o catamará distante. O barómetro descia, o que significava que o tempo ia certamente piorar.
‑ Rizamos mais a vela? ‑ perguntou Jackie.
‑ Vou arriar totalmente a vela grande! ‑ gritei‑lhe.
Devia ter rizado meia hora antes, mas agora decidi arriar a vela grande e contar com o estai número três para atravessar a passagem de Drake. Jackie pegou no leme, enquanto eu, preso com dois cabos de segurança, lutava com o pano.
‑ Há vinte minutos que não vejo o catamarã! ‑ gritou Jackie quando voltei ao poço.
O barco desconhecido tinha realmente desaparecido na ressaca e na chuva.
‑ Vira para um‑cinco‑zero! ‑ gritei‑lhe.
Estava a rumar novamente a sueste, o rumo que seguíamos quando o catamarã nos vira pela primeira vez. Por instantes, tive a tentação de recorrer ao radar do Stormchild, mas sabia que o mar tempestuoso ia obscurecer o ecrã e esconder o catamarã num caos de ecos confusos, reflectidos pela crista das grandes ondas. Perguntei a mim mesmo se Nicole e eu iríamos desencontrar‑nos agora por causa deste temporal que varria o mar e que transformava os declives de barlavento das ondas em turbilhões de espuma e água branca. Isto caso o catamará que tínhamos avistado fosse mesmo o de Nicole, e não qualquer outro navegando nesta costa solitária. Ao fim de uma hora, decidi que a vela desconhecida devia ser de qualquer outro viajante oceânico, e não de Nicole.
Substitui Jackie ao leme, mas ela ficou comigo no poço, desprezando a possibilidade de descer para se abrigar do sopro gelado do vento. Eu recolhera a capota de oleado para não ser destruída pela fúria do vento, por isso tínhamos os olhos a arder da água salgada enquanto espreitávamos pelo meio da espuma para tentar avistar novamente o catamará. A temperatura descera bastante e a chuva gelada misturava‑se agora com a água do mar. Eu tinha os músculos rígidos e tensos, os meus processos mentais estavam paralisados e as minhas correcções ao leme do Stormchild eram lentas e desajei tadas.
Jackie gritou qualquer coisa. O vento levou o som das palavras dela e tive de fazer um grande esforço para voltar a cabeça, fitando‑a com uma expressão de incompreensão. Ela olhava para a frente de boca aberta e olhos esbugalhados. Voltei‑me na direcção do seu olhar e depois praguejei ‑ porque o catamarã, como um tubarão rasgando as ondas ao ataque ou como uma arma apontada ao nosso coração, subia o flanco da onda em cuja crista baloiçava o Stormchild. Estava tão próximo que eu conseguia ler o nome Naiad, que continuava a transparecer em letras fantasmas por debaixo da tinta verde‑clara do casco. Depois, o catamarã virou de repente para norte, passando junto ao costado do Stormchild, e eu avistei quatro figuras no poço.
‑ Nicole! ‑ gritei, acenando como um louco. ‑ Nicole! Mas a minha voz perdeu‑se no meio do ruído do vento, do mar e do drapejar das velas.
‑ Meu Deus! ‑ berrou Jackie.
Percebi de repente que o som do drapejar das velas afinal eram balas.
Fiquei imóvel. Fitava a figura que estava ao leme do catamarã e que de repente puxou para trás o capuz do seu anorak, revelando um cabelo louro como trigo e uns olhos azuis.
‑ Nicole! ‑ gritei quando o catamarã desapareceu atrás de nós.
Jackie martelou‑me no braço.
‑ Estavam dois deles a atirar contra nós!
Eu nem reparara nos atiradores, só em Nicole. Porque é que disparavam sobre nós, porquê? Eu era a sua única esperança num mundo que ia odiá‑los e apesar disso queriam matar‑me?
‑ Tim! ‑ gritou Jackie, tentando arrancar‑me aos meus sonhos.
‑ Vai lá abaixo ‑ disse eu. ‑ Tenta contactá‑los pelo VHF, no canal trinta e sete. Diz‑lhe que viemos ajudá‑la! Diz‑lhe que gosto muito dela!
E gostava mesmo; de repente, a minha memória registou o facto de que Nicole me sorrira quando o catamarã deslizara junto ao Stormchild.
‑ Meu Deus ‑ comecei a rezar alto.
Mas não consegui acabar a oração. Tremia. O sorriso de Nicole fora de reconhecimento, quase de prazer. Eu pensara que podia encontrar‑me com ela e ir até qualquer lado onde pudéssemos conversar, mas a minha filha não tinha tempo para remorsos. Queria ver‑me morto e eu nem sequer sabia porquê. Só sabia que estava no mar mais perigoso do Mundo perseguido pela loucura.
Olhei para trás mesmo a tempo de ver a ameaça vingativa das duas proas do Génesis Quatro, afiadas como lanças, que rasgavam a crista da onda atrás de nós, descendo depois na esteira do Stormchild. Ouvi um estalido e levantei os olhos para ver uma outra fila de buracos irregulares rasgarem o estai do Stormchild. Jackie e eu morreríamos dentro de minutos se eu não fizesse nada. O catamarã era duas vezes mais rápido do que o Stormchild e tinha o dobro das armas. Não valia a pena apelar ao sentimento agora, tinha de ripostar. Atei o leme, rastejei pelo poço e levantei a tampa do paiol para tirar a espingarda. Voltei‑me, accionei a culatra móvel da arma, fiz pontaria ao casco mais próximo do catamarã e disparei.
Nicole estava quase à altura do flanco de estibordo do Stormchild. Quando respondi ao tiro e accionei a culatra móvel da espingarda para disparar outra vez, a minha filha teve um laivo de bom‑senso e desviou‑se repentinamente do Stormchild.
‑ Não estão a responder pelo rádio! ‑ berrou Jackie.
Depois, deu um grito involuntário quando uma bala rasgou o tecto da cabina. Havia dois atiradores no poço do Génesis Quatro. Reconheci um deles, Dominic, o louro amante de Nicole, que parecia sorrir ao abrir novamente fogo contra nós. Respondi ao tiro, mas a Lee‑Enfield era uma arma lenta e desajeitada em comparação com as espingardas-metralhadoras do barco de Nicole. E eu também não atirava a matar, só queria afugentá‑los.
O Stormchild rasgou a crista de outra onda. O Génesis Quatro ultrapassara‑nos entretanto e estava já muito à frente de nós. Os dois atiradores suspenderam o tiro e eu sabia que ia ter sossego durante uns instantes, porque Nicole não se atreveria a cambar em roda com aquele vento, teria de virar por d'avante para voltar até junto de nós. Calculei que não a tornaríamos a ver antes de um quarto de hora.
Desci. Fazia mais escuro do que o costume dentro da cabina por causa das tábuas de protecção das vigias, mas havia três raios de luz nessa escuridão desusada vindos dos pontos onde as balas tinham perfurado o casco. De repente, fiquei aterrorizado com a ideia de que Jackie talvez estivesse ferida. Voltei‑me e vi‑a debruçada sobre as consolas de rádio. Estava de auscultadores para ouvir melhor no meio do ruído do temporal.
‑ Não respondem ‑ disse, tirando os auscultadores.
‑ Não voltamos a vê‑los nestes dez minutos mais próximos, porque a Nicole não é tão doida que vá cambar com este tempo - garanti a Jackie.
Peguei no microfone e carreguei no botão de transmissão.
‑ Nicole! gritei. ‑ Nicole! Por amor de Deus, sou o teu pai! Quero ajudar‑te! ‑ Nada. Silêncio. ‑ Nicole! ‑ implorei para o rádio.
Mas ela não estava a ouvir, ou talvez se recusasse só a falar comigo, e eu sabia que só tinha dez minutos para tocar nalguma velha corda sentimental da minha filha, senão ela voltava, matava‑nos e depois ia‑se embora, tentando a sorte.
‑ Nicole! ‑ disse‑lhe. ‑ Gosto muito de ti, gosto muito de ti, gosto
Calei‑me porque um terrível ruído de percussão invadiu o Stormchild. Assombrado, vi abrirem‑se mais buracos do outro lado do salão. Percebi que Nicole tinha feito o inimaginável, que cambara no meio do temporal.
Uma bala fez ricochete na cozinha. Outra bateu na chaminé de aço inoxidável do fogão. Jackie gritou.
Corri para cima e prendi o meu cabo de segurança. Accionei a culatra móvel da espingarda, mas a Lee‑Enfleld era inofensiva contra o tiro automático do nosso inimigo. O casco lento do Stormchild não podia competir com a velocidade do catamarã da minha filha e eu também não era tão bom marinheiro como ela. Fiquei a olhar para o barco que se aproximava e vi Nicole, de cabeça descoberta e com uma expressão de êxtase, direita, ao leme, por debaixo da estranha bandeira verde da Génesis.
O Génesis Quatro deslizava na nossa direcção na crista de uma onda. íamos encontrar‑nos na cava. Jackie, aterrada com o estrépito das balas lá em baixo, viera agachar‑se a meu lado.
‑ Agarra‑te bem! ‑ gritei‑lhe, pois resolvera desafiar a minha filha.
Pus‑me de pé ao leme, sem me importar com as balas dos atiradores, e olhei para Nicole. Com os dedos dormentes do frio, soltei o leme do Stormchild.
Jackie estava agarrada ao meu braço e eu sentia‑a a tremer. O que não era de espantar, pois o catamará estava a menos de quarenta metros de distância. Nicole, escorada ao leme, timonava de modo que o casco de estibordo do barco dela passasse a poucos centímetros da nossa amurada de estibordo, e a essa distância, apesar do mar agitado, os últimos atiradores da Comunidade Génesis não podiam falhar.
Mas havia outra solução. E optei por ela.
Quando o Génesis Quatro estava só a vinte metros de distância, fiz girar a roda do leme de modo que todas as toneladas de aço do Stormchild fossem direitas ao catamarã, que avançava a toda a velocidade.
Vi Nicole abrir muito os olhos, alarmada. Deu um grito de raiva e agarrou‑se ao leme para se desviar, mas já não foi a tempo. Os dois atiradores agarraram‑se à balaustrada e uma das armas caiu ao mar.
O Stormchild embateu no catamará. Abalroámos o casco de estibordo, que rasgámos em estilhas de fibra de vidro. A vela grande do catamarã endoideceu, atroando os ares já muito ruidosos com o estrondo do pano a bater loucamente, e depois o mastro começou a dobrar‑se. O Stormchild continuava a rasgar as entranhas do catamarã como um grande machado. Ouvi o rangido arrepiante de aço contra aço quando a nossa proa afiada embateu na viga mestra que ligava os dois cascos do catamarã. Desequilibrei‑me com o choque e Jackie agarrou‑se ainda com mais força ao meu braço, com os dedos fechados como garras. O mar varreu os conveses, arrastando equipamento pelos embornais do Génesis Quatro e enchendo o poço do Stormchild com um turbilhão de água gelada. A nossa proa continuava a embater violentamente nos destroços do catamará.
Ficámos atravessados ao mar bravo, com a popa a apontar para leste e a proa presa nos cascos destroçados do catamarã, que já tinha o poço inundado e o casco de estibordo debaixo de água.
‑ As bóias! ‑ gritei para Jackie. ‑ Via dois corpos de colete de salvação amarelo agarrados aos destroços do catamará e uma terceira pessoa nas águas revoltas e coroadas de espuma mais adiante. Mas não avistava Nicole.
‑ Nicole! ‑ gritei, atirando duas bóias para os destroços.
Cortei com a faca as cintas que prendiam a jangada salva‑vidas do Stormchild e Jackie ajudou‑me a empurrar o grande volume para o mar. Outra vaga alterosa rebentou estrondosamente de encontro aos dois barcos e, depois de ter passado, vi que os dois homens agarrados aos destroços tinham desaparecido. Puxei pelo cordão de insuflação da jangada salva‑vidas e, depois de ela estar cheia, cortei o cabo que a prendia ao Stormchild.
Outra onda alterosa desabou como uma avalancha sobre o nosso costado. A proa amolgada do Stormchild continuava enterrada nos destroços do Génesis Quatro, mas um golpe de mar soltou‑a, libertando‑nos. Depois, o vento pegou no nosso estai e o barco arribou bruscamente.
Liguei o motor e ouvi‑o pegar e arrancar por cima do ronco das bombas automáticas, que esgotavam a água que penetrara pelos buracos das balas. Engatei o motor e fui aos tropeções até ao leme para voltar para junto dos destroços, mas o mar encapelado atirou‑nos para trás e quase nos fez virar.
O vento e o mar afastaram‑nos ainda mais dos destroços do Génesis Quatro, que desapareceu quase completamente no inferno branco da espuma e das ondas atrás de nós. Acelerei o motor ao máximo e atirei o Stormchild para a garganta malévola do cabo Horn.
Levámos uma hora para voltar a encontrar os destroços do Génesis Quatro e só descobrimos uns restos: um remo que ainda tinha o nome Naiad gravado a fogo na pá, uma garrafa de plástico, um saco de marinheiro. Encontrámos a jangada salva‑vidas do Stormchild, mas não estava ninguém a bordo. Demos a volta a esses destroços patéticos, mas não descobrimos Nicole nem nenhum membro da sua tripulação. A minha filha morrera afogada. Desaparecera nas águas purificadoras e fora eu quem a matara.
E também fui eu que a chorei. Em pequena, Nicole era graciosa. Com a idade, tornara‑se obstinada, mas Joanna e eu tínhamos orgulho nela, gostávamos dela. Depois, o irmão fora morto por terroristas e a própria Nicole transformara-se numa terrorista, como que para se desforrar.
Finalmente, afastei o Stormchild do local onde Nicole fora morta. Uma nova refrega de vento, acompanhada de chuva e granizo, escureceu o céu e varreu as águas revoltas, empurrando‑nos para leste. Icei o estai de tempo e depois atravessámos os mares perigosos do cabo Horn no meio do temporal. A escuridão era total quando fomos batidos pelas primeiras ondas do Atlântico e aproámos o casco danificado do Stormchild às ilhas Falkland. Jackie acompanhou-me no quarto da noite, muito encostada a mim no poço, sem falar, contemplando as águas agitadas.
Pela madrugada, o vento amainou e vimos que o mar chorava.
Bernard Cornwell
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