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Series & Trilogias Literarias
Capítulo VII
As novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
- Não vim falar de estratégia militar - retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
- Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
- Para ver meu amigo - Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. - Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
- Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
- Para caçar - o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. - Suas florestas são bem mais ricas em caça
do que as que rodeiam Camelot.
- A localização de Camelot foi sua escolha - Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar,
e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os
dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto
ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que
os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão.
Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro
de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava
morte e destruição em seu rastro.
- Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira - Connor continuou. Era preciso fazer planos. - Vamos falar da verdadeira razão que o
traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões
de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
- Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade - disse ela, jogando os braços para o alto. - Connor não descansará quando deveria,
de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. - Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso
salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
- Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino - Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg.
- Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
- Sim - concordou Connor, com um sorriso. - Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram
àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se
soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir
da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a
cabeça de incredulidade.
- Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos
de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores
de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza
fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio
principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne
da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
- Lady Rianne de Monmouth - Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos
na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições
também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
- Seu filho de uma vadia! - berrou para Tristão. - Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
- Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
- Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço
remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
- Quem é você? - Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles
olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
- Ah... Então há esperança, afinal - Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora
todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
- Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
- E qual é a primeira? - Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
- Um banho - Merlin anunciou em voz alta. - Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
- Um só será ótimo - ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
- Serei o juiz desse assunto.
- Por que não me contou? - indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. - Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter
sido informada imediatamente! - Parou de andar e fez meia-volta. - Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... - Sua voz falhou.-Eu havia perdido a esperança.
Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
- Ela não foi ferida de alguma forma, foi? - perguntou, ansiosa.
- Está bastante bem-respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
- E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez
que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
- É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? - A menção do nome do marido, seus planos mudaram. -
Não, seria bastante cansativo para ele. - Então, cedeu ao próximo pensamento. - Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor?
E os olhos?
- São azuis - informou Merlin. - Tem os olhos da mãe.
- É sensitiva?
- Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. - Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação
de Meg.
- Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
- Dannelore e John não voltaram-disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais
um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
- Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para
conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza,
protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era
agora. Uma jovem bem diferente da imagem
que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
- Sim - Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
- O que foi que eu fiz, irmão? - murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
- Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
- O que ela deve pensar?
- Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
- Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos
encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
- Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um
vocabulário bastante incomum.
- Uma combinação imprevisível - Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. - Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
- Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
- Sugiro um banho.
- O que estão fazendo? - Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente
praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros
murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas
pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão
de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma
mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
- Vá, se é isso o que deseja - ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. - Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por
sir Tristão, você
parece estar em conflito com ele. - Erguera a mão num sinal de silêncio. - Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. - Dera
uma risadinha. - Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
- Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... - Fizera uma pausa
para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne - haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
- E se eu quiser ir embora? - Rianne indagara.
- Pode ir assim que escolher - Merlin lhe assegurara.
- Sem truques?
- Sem truques.
- Muito bem - ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. - Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. - Estremecera.
- E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta,
de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava
o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda
a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram
mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de
seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo
que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários
pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água
na boca.
- Venha, menina - a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. - Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer
vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de
suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
- Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma
de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
- Não preciso dessas coisas - Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
- Ah, vai precisar! - exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. - Suas roupas foram queimadas.
- Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram
minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
- Ora, tudo bem - concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo
vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
- Onde está o resto?
- O resto? - A bonita senhora a olhou, confusa.
- Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
- Não há nenhuma calça, pequena.
- O que usam por baixo?
- Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
- Claro que há - insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do
traje. - O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
- E não vou usar aquilo - Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. - Não vou enregelar meus pés também.
- Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
- Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? - perguntou. - Mestre Merlin a espera.
- Está bem - Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como
se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady
Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto
mãos gentis trancavam
fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para
que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo
que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
- Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
- Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora - a mulher disse com doçura. - Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia
saber à época.
- Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
- Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
- Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin - anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos
passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros,
e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram
para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
- Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
- Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
- Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. - Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara - era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando
fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes,
os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar
qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador,
sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O
mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria
recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com
Merlin.
- É assim que se faz - a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. - Eu não sabia sua altura
para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido
em si.
- Nunca tive algo tão fino. - Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. - Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
- Obrigada - a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um
homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que
pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava
a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes
gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios
de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
- Sua vida não foi fácil - a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a
devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. - Sinto muito por isso.
- Não é nenhum problema seu - Rianne retrucou, e pensou em Kari. - Existe gente que sofreu muito mais.
- Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento
e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
- Lorde Connor e a esposa estarão lá? - perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
- Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
- Nunca conheci um rei antes - Rianne declarou. - Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo
para a sela - Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. - E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer
que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
- Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
- Ele a avisou? - Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
- Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
- Lembre-se de uma coisa - disse. - Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E - sorriu - eu tenho autoridade para dizer que ele prefere
as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
- Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada - a mulher explicou. - Estão aqui para sua proteção também.
- Prefiro cuidar da minha própria proteção - retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem
nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada
e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele
como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse
ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele - feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem.
A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem
bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
- Não é verdade, você sabe - disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
- O que não é verdade?
- Eu não roubo almas. - Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. - Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de
mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
- Posso ler - ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
- Há muito mais à sua espera, Rianne - disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. - Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e
viesse. Aquela
gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam
com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas.
Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
- Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre
sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava
a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo
tempo, contudo,
era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara,
tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas.
Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
- Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada
mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se
estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer
isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
- Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço - Tristão murmurou no ouvido dela. - E depois quebrarei
seu pescoço - emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela
mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido,
a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros - que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas,
e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no
queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu
braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
- Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
- Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade - ela continuou. - Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas.
Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento
tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
- A refeição da noite está sendo servida - Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos,
o colocaram numa cadeira.
- O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a
pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
- O que há de errado com ele? - Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do
aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
- O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
- E nada pode ser feito?
- Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você - Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão
reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito
perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito
ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
- Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
- Tudo que poderia ser feito já foi tentado - Tristão assegurou. - Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. - Seu pai
está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg
à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem
casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
- Tome cuidado - Tristão avisou ao se inclinar para mais
perto. - Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe
a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
- Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias
que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um
novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida
às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais
difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
- Use sua mão esquerda - Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. - Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na
vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela
conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
- Você é canhota - ele explicou com um sorriso. - Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. - Fechou os
dedos de Rianne em torno do cabo. - Relaxe a pressão - Tristão sugeriu -, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
- Obrigada - murmurou.
- O que disse?
- Obrigada - ela repetiu, um pouquinho mais alto.
- Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
- Que pena, sir Tristão-ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem -, não percebi que era tão velho. - E depois, ainda mais alto, emendou,
com um sorriso largo: - Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo
se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos
a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
- Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade - o cavaleiro saudou seu rei. - Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
- Junte-se a nós, sir Longinus - Arthur convidou o cavaleiro. - Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
- Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à
mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
- Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
- Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
- Cheguei em segurança - Rianne respondeu.
- Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais
distante da mesa.
- Não gosto desse sujeito - Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
- Você não gosta de ninguém - Tristão ponderou.
- É verdade - concordou Grendel, e deu de ombros. - Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo
com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
- Talvez devesse dizer a ele - Tristão sugeriu.
- Talvez algum dia eu diga - o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder
novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou
os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado
a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
- Você acabou de retornar do País do Norte. - Arthur dirigiu a atenção a Rianne. - O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
- Não penso nisso, milorde - ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: - É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando
se tem fome.
Arthur concordou.
- Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
- Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
- Não foi tão difícil - continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
- Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
- Como você caçava?
- Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
-Um arco? - lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas
elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
- Prefere um arco em particular em relação aos demais? - Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
- Prefiro o arco longo galês - Rianne respondeu. - É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
- Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
- Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
- Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo - Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
- Oh, não, milorde - Rianne retrucou. - A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
Capítulo VIII
- Lorde Connor! - exclamou lorde Standford. - Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. - Voltou-se para ela. - E que jogos, digamos
assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente,
era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores,
quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la
com a mão em seu pulso.
- Tenho alguma experiência com dados - respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento
aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
- Ah, um jogo de azar - comentou lorde Standford.
- Não existe essa coisa de azar - retrucou Rianne. - É uma questão de habilidade.
- E você é habilidosa com os dados?-Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam
um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida,
mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento
era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
- Sim, milorde.
- Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
- Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem
mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
- Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. - Standford
aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: - O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento.
E era evidente que lady Meg fazia objeções.
- Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford - lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
-Fique de sobreaviso - emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. - A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante
parecida com a mãe.
- Talvez - retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. - Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma
palavra poderia conseguir.
- Não tenho nenhuma objeção.
- E irá garantir as perdas dela?
- Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta
que ela fechara havia muito tempo.
- Então, vamos ao jogo - Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada
face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
- Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário
de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
- Eu gostaria muito de derrotá-lo - ela retrucou.
Merlin concordou.
- Gostaria muito de ver isso acontecer.
- Não interfira - Rianne pediu com veemência. - Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor
deve me deixar agir a meu modo.
- E se você perder?
- Não pretendo perder.
- Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia - Merlin disse, a título de último conselho.
- Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao
redor.
- Não tenho como apostar! - Rianne exclamou.
- Há alguém que apostará por lady Rianne? - Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao
encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
- Eu cubro a aposta.
- Ah... o jovem guerreiro. - Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. - Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou
e murmurou-lhe no ouvido:
- É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. - Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. - Você pode derrotá-lo, não pode?
- Darei o melhor de mim.
- Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
- Há algo mais que deseja dizer, milorde? - Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
- Está muito linda esta noite, milady - ele murmurou, para depois acrescentar: - É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque
ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada
jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não
eram os mesmos com os quais jogara no início.
- Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados.
Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a
reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para
Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade
substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada,
impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
- Parece que é a sua vez com os dados, milady - disse ele, ao jogar os cubos para ela.
- Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde - Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois
os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram
para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
- Ah-ah! - Standford exclamou ao recuperar os dados. - Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho
escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
- Jogada bastante infeliz - disse ela, e depois emendou: - Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna
em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa
que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar
as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas
pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul
brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse
a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora,
era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade.
Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias
saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra
a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
- Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? - perguntou.
- É mesmo! - Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. - É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós
a conhece.
- Não posso imaginar quem faria algo assim! - Standford exclamou. - É um complô para me desacreditar. - Voltou-se
para Rianne: - Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
- O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
- Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford
diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
- Concordo com uma revanche, milorde. - Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. - Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem
de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
- É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
- Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur,
sugeriu essa possibilidade.
- Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
- Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido - Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
- Mas é evidente quem foi que adulterou os dados - argumentou Rianne.
- A culpa vai recair sobre outro - Merlin explicou. - Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
- O escolhido para a punição será demitido, é claro - Connor acrescentou. - Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o
braço.
- Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula
das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
- Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos - disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar
o fôlego. Depois, prosseguiu: - Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. - Pararam outra vez quando ele
apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali
com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir
e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que
amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém
não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois
vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava
da morte. Por enquanto.
- Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado
e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as
velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra.
Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz
e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía
um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
- Sei que estes anos todos não foram fáceis para você - ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. - Soube que quer ir embora. Aceitarei
sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e
coragem. - Inclinou-se e beijou-a na testa. - Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se
postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
- Venha, meu esposo - disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. - É tarde, e você sabe muito bem que não
consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
- Mulher tola - ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. - Você dormiu sem mim durante as guerras.
- Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora - Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e
roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas
e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar
em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta
reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus
braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
- Por favor, me abrace - murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne
o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas,
sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de
fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas
vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia
os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne
seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que
vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo
que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a
lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo
que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações
e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava
impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse
os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o
oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira
vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
- Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o
coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne
ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão
que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes
e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
- Pelos Anciãos! - o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. - Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta,
resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre.
Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num
padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou
na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do
herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra
a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos
ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam
como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha
de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento
em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
- Saiu-se mal e falhou na lição, hein? - ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir
a palavra!
- O que está fazendo aqui? - Rianne perguntou. - Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando
a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
- Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
- Coisa sem importância.
- Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? - Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus
cabelos e flutuaram até o chão. - A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
- Teria de ser - Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
- Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
- Alguma vez você tomou um pouco por engano? - Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
- Fui assim tão horrorosa?
- Pior.
- Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma
galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! - ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais.
Encarou-o e emendou: - Terá de tirar sua túnica.
- Maus-tratos? - Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. - Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei...
E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
- Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
- Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que
haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. - De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de
vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto
que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
- Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas - Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do
guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
- Ou empunhar uma espada? - ele sugeriu. Rianne sorriu.
- Talvez.
- O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
- Lady Meg mandou fazer para mim. - Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela
bem torneada. - É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
- Calcinhas? - Tristão arqueou as sobrancelhas.
- Oh, sim - Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. - Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em
seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas
da fortaleza.
- Como está se saindo? - indagou com fingida seriedade.
- Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
- Fez progressos, então.
- Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de
couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher.
Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente
fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
- Como se feriu?
- Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
- Seu próprio companheiro?
- Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
- Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
- Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
- E Longinus?
- Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
- Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas
passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme
trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma
flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de
espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora,
dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os
pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de
cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula
ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas
possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme
se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão,
como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo
sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava
como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto
seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar
do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos
antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam
em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar.
Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira
da entrada.
- O que você quer? - Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se
atreveria a deixar de cumpri-la.
- Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora - informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava
zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
- Ele insiste em vê-la agora mesmo - o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. - Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava
as entranhas e o dilacerava.
- A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare - Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
- O garoto dos estábulos mudará para mim - Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando
incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás
dele.
- Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra
o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
- Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo,
quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
- Acho que vou transformar você num sapo - anunciou.
- Não! - Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. - Tenha piedade, senhora! - berrou, o rosto contorcido de horror.
Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. - Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
- Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria
os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Capítulo IX
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa,
e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro
em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte,
somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor - o baú entalhado contra a parede, a prateleira com
a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com
grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza - era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía
uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que
Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais
próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era
fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se
interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia
de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez,
poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto - o aposento em
si - estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no
cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
- Keflech! - praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença
vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário,
quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas
de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre
os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara
várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas
ocorrências, que haviam
sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder
ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu
da única maneira possível sem ser vista - do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
- Alguma coisa errada? - sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em
suas cabeças.
- Não é nada - respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista.
Imaginação.
- Este é o mapa de que lhe falei - explicou ao esticá-lo sobre a mesa. - Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
- Alguma coisa errada, Tristão?
- Não, não é nada - foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava
falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos.
Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender
com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava,
uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias
também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando
até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin
sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que
não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia
questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com
o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência
fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes,
quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de
Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza.
Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne
surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
- Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava
furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago
focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
- O que há de errado, caro irmão? - Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
- Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
- Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução.
O que o deixou tão zangado?
- O quê? - Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: - O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério.
Tudo é um jogo para ela.
- Como assim? - Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
- Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância
de suas habilidades. Ela...
- Está enganado, irmão - Meg o interrompeu com firmeza. - Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não
permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
- Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe
disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também
uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
- De qualquer maneira - continuou Meg -, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
- Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
-É suficiente por um dia - Meg o contrariou. - Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar
consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder
impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
- A senhora mentiu! - Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
- Não menti - disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada
vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia
que pareciam compartilhar. - Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
- Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
- Num certo sentido, estava - retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: - Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que
a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. - Então, o ar de malícia voltou.
- E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
- Vou me lembrar disso - Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. - Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências
terríveis.
- E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los
com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio
por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
- Você encontrará um dia - Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. - Senti o jeito com que Tristão olha para você.
- Não tenho tanta certeza - Rianne murmurou, pensativa. - Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
- Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil.
O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha
dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a
criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança
precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e
a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando
ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo.
Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha
humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que
a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de
amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
- Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. - Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. - Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira
e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro,
tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
- É linda! - Rianne exclamou. - Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras
pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela
chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como
se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem
dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do
fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma
importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
- Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! - exclamou. - É lindo. Pensei que poderíamos jogar... - Sua voz se calou quando olhou
para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses,
não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma
das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
- Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou
a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme
a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia
das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença
de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra
a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o
chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham
sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe
explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais
acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram,
tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
- A senhora precisa descansar - dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de
ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
- Quero me recordar - Meg protestara com doçura. - Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. - E com olhos que reluziam de lágrimas,
dissera, com uma tristeza de partir o coração: - Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
- Você também precisa de descanso, menina - disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. - Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
- Ela ficará bem?
- Sim - ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. - Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência
durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela
julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se
ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez
o primeiro lance.
- Que movimento faria, papai? - perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: - Ah, sim, compreendo. - E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa
forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
- Continuaremos mais tarde. - Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. - E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia
agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas
vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles
lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois,
já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de
Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes
ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor
pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos
passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade,
e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia
se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido,
Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma
suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele
a deixasse naquele momento.
- Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas
emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam
as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
- Você não sabe o que está dizendo - Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se
recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
- Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez
estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição
ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para
que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais
para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e
o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua
túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada,
o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre
o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas
a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos
a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
Capítulo X
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto
de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera.
A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela
a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha - como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas
pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro
extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera
mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto.
E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com
todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar
tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer,
enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o
homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples
pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a
madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com
o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os
cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além
do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida.
Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada
que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo
que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração.
Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente
nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria
o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra
e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado,
antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos
pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho - vilas, cabanas e fazendas -, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou
por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua
mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via
não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
- Está amanhecendo - disse ele ao roçar os lábios pelos
cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. - Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
- Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo - o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o
na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória,
e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos
do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe
encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos
tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se
dera?
- Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha
nessa questão? - Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu
de ombros.
- Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados
nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo
cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
- Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
- Sempre é possível. - E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: - Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
- Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama - na cama dela, na verdade -,
ele faria o "seu dever"!
- Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei - Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. - Mas existem remédios
que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. - Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse
pelo braço.
- Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
- Eu não disse isso. - A raiva borbulhava dentro de Rianne. - Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito
da sua ajuda. E - emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos - seria meu filho.
- Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! - Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. - Esqueceu tão depressa
quem o gerou?
- Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar
disso? - Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha
interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
- Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
- Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão
querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão
não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do
amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado
por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades
que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum,
afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão
se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças,
à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor
sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na
cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a
óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando
encontraram os de Tristão.
- Milorde?
- Ande - ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
- Não, milorde - Rianne murmurou, o queixo erguido. - É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem
escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
- Tome cuidado - avisou -, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
- Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
- Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade
desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
- Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria - e era precisamente isso que pretendia -, não haveria perdedores. Só ganhadores.
A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção
diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos
por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
- Deite-se de costas na cama - Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
- Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
- Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto.
Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo,
era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente
daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
- Continue de olhos fechados - disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não!
Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou
pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta
de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. - O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam
nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha
que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar...
A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
- Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
- Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito
e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem
da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a
primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir
de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada
em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não
conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície
não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o
reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação:
o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém
sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por
um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal.
Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar,
como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento.
Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para
a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam
ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira
a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse
distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
- Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias - Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. - Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara,
homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a
preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
- O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta
grossa de pele.
- Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
- Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
- Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
- Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
- Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne
não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
- Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa
acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele?
Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
- Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? - Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos,
apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
- Sim, e piores - retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. - Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
- Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
- Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio
inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
- Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne,
a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria
apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
- Estarei esperando por você - ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia.
Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se
para a ante-sala.
- Paciência é uma virtude. E vem com o tempo - ela comentou ao sentir as aflições da filha. - Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai - disse com voz
calma. - O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
- Como suportou isso?
- Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
- A espera não fica mais fácil? - perguntou.
- Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A
cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de
Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
- Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das
sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que
Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai
e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia
aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora,
e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes,
nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor
e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme
erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias,
o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
- Perdoe-me. Não queria machucá-la - murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
- Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
- Oh, não... - Tristão gemeu. - Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
- E depois terá mais energia? - Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
- Certamente - ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível
a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
- Não pergunte - ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. - Jamais pergunte o que aconteceu.
Capítulo XI
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição;
de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram,
o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão
tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra
ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor
fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço
de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar
Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
- Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... - disse.
- O que jaz além da morte? - Rianne indagou.
- É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
- A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja
algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
- Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste
mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
- Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado
o amor que compartilhamos.
- Será o mesmo para mim? - perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
- Não sei - Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. - Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava
em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma
vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
- Receio que já tenha feito - respondeu Rianne. - E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
- É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
- Então, não há como evitar?
- Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia
extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não
era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam
nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que
pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam
em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava,
liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes
em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma
familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
- Senhora? - Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
- Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
- Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
- Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu
poderia ter perdido minha cabeça.
- Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
- Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
- Realmente, deveria - ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
- Parece que seu acompanhante a abandonou - observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. - Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez,
e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter
seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado,
tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e - mais difícil de tudo - não falar sem ser
instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe
a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
- Lorde Standford chegou faz vários dias - informou-a. - Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
- O jogo foi escolha dele.
- Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
- Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
- Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
- Claro! - Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. - Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
- Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne
era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala
vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos
cavaleiros do guerreiro, embora - a mulher acrescentara com um sorriso malicioso - raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa
de lorde Standford.
- Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos - Meg lhe dissera
- Ele a ama?
- Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
- De que tipo está falando?
- Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava
em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
- Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
- São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? - Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles
braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
- São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
- E depois, o que acontece?
- O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
- E o que acontece depois?
- Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
- Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão - Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais
solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
- Ah... - Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. - Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
- Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou
outra vez.
- Mais tarde - murmurou.
- Agora - ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
- Em breve - Tristão prometeu.
- Quando?
- Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
- Hoje à noite.
- O rei dará uma festa em sua honra.
- Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
- Você será minha ruína.
- É isso o que pretendo, sr. Dragão.
- Prometi a lady Meg.
- Arruinar-me? - Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
- Prometi que lhe mostraria Camelot.
- Já vi Camelot.
- Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
- Quando? - Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
- Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam
em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos
em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam,
com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas
peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
- A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
- Como vê, não tenho dinheiro.
- Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
- Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum
de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
- Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua
mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer
que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. - A senhora viajou de
muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu - Os
olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos - em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de
coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
- Onde é esse lugar?
- Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que
queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar
do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto,
e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
- É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava
em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade
de resistir.
- A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão.
Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha
fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e
da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos,
a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
- O que foi? - perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
- Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
- Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
- Por favor! Preciso voltar, agora!
- Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do
rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele
vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
- A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade
brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
- Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
- Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso.
E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
- No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
- Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir,
quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A
única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de
Rianne, a chama
ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e
os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus
ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão
principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as
usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe
um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne
aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de
jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
- Em outra ocasião - disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto
ele sorvia um longo gole de vinho. - Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou
feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um
homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
- Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
- Venci com justiça - ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
- Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
- Política - Rianne resumiu numa única palavra.
- Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
- É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
- Já basta! - ele ameaçou.
- Sim - bufou Rianne. - É mais que o suficiente. - Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra
a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
- Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar - disse e retornou à mesa do jantar.
- Meus parabéns, milady - Longinus a cumprimentou. - Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade
de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
- Prefiro um desafio.
- O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? - sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois
pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
- Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso - intrometeu-se. - Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
- É verdade - respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
- Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
- Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady
Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
- Por acaso roubava jóias?
- Eu roubava comida - Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
- Roubava outras coisas? - indagou Alyce.
- Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
- Moedas de ouro, talvez? - Alyce insistiu.
- Moedas de ouro não tinham utilidade para mim - retrucou Rianne. - Não se pode comê-las.
- Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
- É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
- Em um bolso?
- Pode ser-respondeu Rianne.-Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
- É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha
lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra
de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários
ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
- Roubando ovos, milady? - Arthur comentou. - Eu não sabia que andavam escassos.
- Poderia tentar cozinhá-los primeiro - Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então,
saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
- Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
-Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para
com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
- Como um porco-espinho - retrucou Rianne. - Espi-nhento e mal-humorado.
- Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia
lhe contar...
- Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do
invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras
com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas
diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um
só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Capítulo XII
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a
sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a
camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
- Conheço este homem - disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. - É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
- Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
- Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou
a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um
chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
- Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
- Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que
tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
- Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir
para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot
até que outra legião retornasse
da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com
ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava
para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia
que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia,
preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem
ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
- Tem um amuleto, senhora? - perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. - Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
- Uma fita bonita, então... - disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. - Eu a terei em alta
estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
- Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais
ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se
despediu de Rianne, mas de lady Meg.
- Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
- Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça
numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
- Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da
manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
- Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu
pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para
o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
- Talvez esteja procurando por Longinus.
- Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde - Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía
de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não
a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto.
E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
- Aonde vai? - Grendel indagou fitando-a com suspeita.
- Ao mercado - Rianne respondeu por fim, num tom casual. - Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
- A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
- Talvez ela me deixe ir junto - Rianne murmurou. - Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o
íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
- Você viu? - indagou Grendel. - Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! - Não obtendo resposta, fez meia-volta. - Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de
calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
- Estou procurando uma cigana que lê a sorte - Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a
mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
- O que quer com a mulher? - um deles quis saber.
- Falar com ela. É importante.
- Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou
para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem
sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido
por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu
que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o
castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do
grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos,
do outro lado do jardim interno.
- Entre, filha - lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. - Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
- Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
- Onde ouviu isso?
- De uma cigana que lia a sorte no mercado.
- Uma cigana? - Meg riu, com ar divertido. - Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
- A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
- Transformou-se num jaspe sangüíneo - Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
- A senhora viu?
- Sim - ela respondeu, com tristeza. - Vi.
- O que significa?
- Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
- Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem
que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
- Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se
importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
- Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz - Rianne ponderou. - Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que
Merlin?
- Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles
está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
- Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito - Rianne concluiu.
- Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança
Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas
não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
- A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
- Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca
em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo,
mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições
ocultas pelas sombras.
- Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu- explicou lady Meg.
- E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
- Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la,
porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
- Não gosto disso - Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. - Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem
notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e
lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram
à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a
pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que
Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa
muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores
encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam
tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos.
Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão
na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que
aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe
o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a
recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar
o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando
para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto.
Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara
com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
- Você é um oponente de peso - Longinus o cumprimentou. - Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento
causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
- Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão.
Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com
uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não
era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta,
quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até
a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina
de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos
como se fosse seu mesmo.
Capítulo XIII
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava
morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser.
Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara
lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em
ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria.
Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não
a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos
quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto.
E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder,
Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até
a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava
o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura
como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas
de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas
pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada
de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença,
débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava
o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
- O que aconteceu? Onde está minha mãe?
- Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
- Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera:
a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas
a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara
com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois
, quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles
olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele
momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo
para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
- Obrigada, amiguinho - Rianne murmurou. - Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora
procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
- Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg
mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe,
vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia
que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado
o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as
muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo
de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou
mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles - e todos, até
mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo,
soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos
para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo.
Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava
além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido,
como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões,
apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria
presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras
correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos.
Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava
por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido
atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de
fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava
era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
- Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
- Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne
recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
- Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe
acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
- Onde está ela?
- Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua
direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva
do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
- Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
- Você não é Tristão.
- Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? - ele perguntou. - Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras
noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
- Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza
de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
- Está enganado - ela o desafiou. - Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha
acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão,
à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
- Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa
de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
- Longinus - Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele
quem atacara Monmouth;
e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada
a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E
ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não
questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo
de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
- Tentei lutar com ele - ela murmurou quando o irmão a abraçou. - Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para
atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
- Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
- Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. - Tristão deu um sorriso enviesado. - Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
- Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um
longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas
um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor
tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também.
Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas
trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um
homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
- Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida
contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu
atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
- Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que
caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
- Não é possível! - ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. - Você está morto. Eu vi.
- Estou vivo. Tome minha mão! - ele implorou. - Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
- Existe apenas um jeito de descobrir - aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. - Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam,
recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um
dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles
fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas
como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder
com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e
terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada
a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
- Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada
no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
Epílogo
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças
quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos
escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como
a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente
Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas
as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara
uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente
para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça
da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido
pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo
da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha
e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados
por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta,
estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha
delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas
faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo
de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo - um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo
de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre
os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Capítulo VII
as novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
- Não vim falar de estratégia militar - retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
- Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
- Para ver meu amigo - Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. - Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
- Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
- Para caçar - o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. - Suas florestas são bem mais ricas em caça
do que as que rodeiam Camelot.
- A localização de Camelot foi sua escolha - Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar,
e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os
dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto
ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que
os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão.
Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro
de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava
morte e destruição em seu rastro.
- Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira - Connor continuou. Era preciso fazer planos. - Vamos falar da verdadeira razão que o
traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões
de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
- Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade - disse ela, jogando os braços para o alto. - Connor não descansará quando deveria,
de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. - Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso
salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
- Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino - Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg.
- Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
- Sim - concordou Connor, com um sorriso. - Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram
àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se
soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir
da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a
cabeça de incredulidade.
- Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos
de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores
de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza
fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio
principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne
da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
- Lady Rianne de Monmouth - Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos
na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições
também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
- Seu filho de uma vadia! - berrou para Tristão. - Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
- Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
- Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço
remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
- Quem é você? - Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles
olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
- Ah... Então há esperança, afinal - Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora
todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
- Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
- E qual é a primeira? - Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
- Um banho - Merlin anunciou em voz alta. - Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
- Um só será ótimo - ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
- Serei o juiz desse assunto.
- Por que não me contou? - indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. - Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter
sido informada imediatamente! - Parou de andar e fez meia-volta. - Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... - Sua voz falhou.-Eu havia perdido a esperança.
Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
- Ela não foi ferida de alguma forma, foi? - perguntou, ansiosa.
- Está bastante bem-respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
- E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez
que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
- É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? - A menção do nome do marido, seus planos mudaram. -
Não, seria bastante cansativo para ele. - Então, cedeu ao próximo pensamento. - Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor?
E os olhos?
- São azuis - informou Merlin. - Tem os olhos da mãe.
- É sensitiva?
- Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. - Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação
de Meg.
- Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
- Dannelore e John não voltaram-disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais
um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
- Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para
conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza,
protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era
agora. Uma jovem bem diferente da imagem
que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
- Sim - Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
- O que foi que eu fiz, irmão? - murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
- Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
- O que ela deve pensar?
- Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
- Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos
encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
- Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um
vocabulário bastante incomum.
- Uma combinação imprevisível - Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. - Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
- Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
- Sugiro um banho.
- O que estão fazendo? - Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente
praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros
murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas
pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão
de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma
mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
- Vá, se é isso o que deseja - ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. - Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por
sir Tristão, você
parece estar em conflito com ele. - Erguera a mão num sinal de silêncio. - Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. - Dera
uma risadinha. - Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
- Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... - Fizera uma pausa
para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne - haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
- E se eu quiser ir embora? - Rianne indagara.
- Pode ir assim que escolher - Merlin lhe assegurara.
- Sem truques?
- Sem truques.
- Muito bem - ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. - Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. - Estremecera.
- E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta,
de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava
o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda
a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram
mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de
seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo
que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários
pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água
na boca.
- Venha, menina - a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. - Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer
vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de
suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
- Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma
de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
- Não preciso dessas coisas - Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
- Ah, vai precisar! - exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. - Suas roupas foram queimadas.
- Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram
minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
- Ora, tudo bem - concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo
vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
- Onde está o resto?
- O resto? - A bonita senhora a olhou, confusa.
- Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
- Não há nenhuma calça, pequena.
- O que usam por baixo?
- Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
- Claro que há - insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do
traje. - O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
- E não vou usar aquilo - Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. - Não vou enregelar meus pés também.
- Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
- Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? - perguntou. - Mestre Merlin a espera.
- Está bem - Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como
se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady
Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto
mãos gentis trancavam
fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para
que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo
que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
- Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
- Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora - a mulher disse com doçura. - Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia
saber à época.
- Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
- Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
- Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin - anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos
passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros,
e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram
para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
- Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
- Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
- Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. - Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara - era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando
fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes,
os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar
qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador,
sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O
mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria
recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com
Merlin.
- É assim que se faz - a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. - Eu não sabia sua altura
para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido
em si.
- Nunca tive algo tão fino. - Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. - Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
- Obrigada - a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um
homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que
pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava
a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes
gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios
de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
- Sua vida não foi fácil - a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a
devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. - Sinto muito por isso.
- Não é nenhum problema seu - Rianne retrucou, e pensou em Kari. - Existe gente que sofreu muito mais.
- Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento
e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
- Lorde Connor e a esposa estarão lá? - perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
- Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
- Nunca conheci um rei antes - Rianne declarou. - Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo
para a sela - Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. - E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer
que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
- Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
- Ele a avisou? - Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
- Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
- Lembre-se de uma coisa - disse. - Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E - sorriu - eu tenho autoridade para dizer que ele prefere
as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
- Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada - a mulher explicou. - Estão aqui para sua proteção também.
- Prefiro cuidar da minha própria proteção - retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem
nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada
e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele
como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse
ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele - feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem.
A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem
bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
- Não é verdade, você sabe - disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
- O que não é verdade?
- Eu não roubo almas. - Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. - Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de
mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
- Posso ler - ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
- Há muito mais à sua espera, Rianne - disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. - Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e
viesse. Aquela
gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam
com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas.
Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
- Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre
sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava
a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo
tempo, contudo,
era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara,
tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas.
Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
- Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada
mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se
estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer
isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
- Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço - Tristão murmurou no ouvido dela. - E depois quebrarei
seu pescoço - emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela
mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido,
a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros - que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas,
e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no
queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu
braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
- Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
- Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade - ela continuou. - Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas.
Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento
tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
- A refeição da noite está sendo servida - Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos,
o colocaram numa cadeira.
- O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a
pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
- O que há de errado com ele? - Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do
aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
- O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
- E nada pode ser feito?
- Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você - Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão
reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito
perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito
ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
- Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
- Tudo que poderia ser feito já foi tentado - Tristão assegurou. - Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. - Seu pai
está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg
à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem
casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
- Tome cuidado - Tristão avisou ao se inclinar para mais
perto. - Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe
a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
- Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias
que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um
novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida
às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais
difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
- Use sua mão esquerda - Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. - Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na
vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela
conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
- Você é canhota - ele explicou com um sorriso. - Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. - Fechou os
dedos de Rianne em torno do cabo. - Relaxe a pressão - Tristão sugeriu -, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
- Obrigada - murmurou.
- O que disse?
- Obrigada - ela repetiu, um pouquinho mais alto.
- Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
- Que pena, sir Tristão-ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem -, não percebi que era tão velho. - E depois, ainda mais alto, emendou,
com um sorriso largo: - Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo
se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos
a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
- Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade - o cavaleiro saudou seu rei. - Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
- Junte-se a nós, sir Longinus - Arthur convidou o cavaleiro. - Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
- Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à
mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
- Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
- Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
- Cheguei em segurança - Rianne respondeu.
- Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais
distante da mesa.
- Não gosto desse sujeito - Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
- Você não gosta de ninguém - Tristão ponderou.
- É verdade - concordou Grendel, e deu de ombros. - Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo
com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
- Talvez devesse dizer a ele - Tristão sugeriu.
- Talvez algum dia eu diga - o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder
novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou
os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado
a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
- Você acabou de retornar do País do Norte. - Arthur dirigiu a atenção a Rianne. - O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
- Não penso nisso, milorde - ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: - É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando
se tem fome.
Arthur concordou.
- Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
- Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
- Não foi tão difícil - continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
- Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
- Como você caçava?
- Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
-Um arco? - lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas
elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
- Prefere um arco em particular em relação aos demais? - Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
- Prefiro o arco longo galês - Rianne respondeu. - É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
- Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
- Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
- Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo - Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
- Oh, não, milorde - Rianne retrucou. - A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
Capítulo VIII
- Lorde Connor! - exclamou lorde Standford. - Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. - Voltou-se para ela. - E que jogos, digamos
assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente,
era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores,
quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la
com a mão em seu pulso.
- Tenho alguma experiência com dados - respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento
aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
- Ah, um jogo de azar - comentou lorde Standford.
- Não existe essa coisa de azar - retrucou Rianne. - É uma questão de habilidade.
- E você é habilidosa com os dados?-Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam
um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida,
mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento
era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
- Sim, milorde.
- Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
- Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem
mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
- Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. - Standford
aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: - O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento.
E era evidente que lady Meg fazia objeções.
- Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford - lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
-Fique de sobreaviso - emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. - A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante
parecida com a mãe.
- Talvez - retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. - Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma
palavra poderia conseguir.
- Não tenho nenhuma objeção.
- E irá garantir as perdas dela?
- Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta
que ela fechara havia muito tempo.
- Então, vamos ao jogo - Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada
face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
- Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário
de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
- Eu gostaria muito de derrotá-lo - ela retrucou.
Merlin concordou.
- Gostaria muito de ver isso acontecer.
- Não interfira - Rianne pediu com veemência. - Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor
deve me deixar agir a meu modo.
- E se você perder?
- Não pretendo perder.
- Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia - Merlin disse, a título de último conselho.
- Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao
redor.
- Não tenho como apostar! - Rianne exclamou.
- Há alguém que apostará por lady Rianne? - Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao
encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
- Eu cubro a aposta.
- Ah... o jovem guerreiro. - Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. - Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou
e murmurou-lhe no ouvido:
- É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. - Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. - Você pode derrotá-lo, não pode?
- Darei o melhor de mim.
- Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
- Há algo mais que deseja dizer, milorde? - Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
- Está muito linda esta noite, milady - ele murmurou, para depois acrescentar: - É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque
ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada
jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não
eram os mesmos com os quais jogara no início.
- Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados.
Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a
reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para
Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade
substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada,
impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
- Parece que é a sua vez com os dados, milady - disse ele, ao jogar os cubos para ela.
- Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde - Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois
os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram
para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
- Ah-ah! - Standford exclamou ao recuperar os dados. - Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho
escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
- Jogada bastante infeliz - disse ela, e depois emendou: - Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna
em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa
que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar
as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas
pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul
brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse
a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora,
era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade.
Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias
saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra
a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
- Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? - perguntou.
- É mesmo! - Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. - É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós
a conhece.
- Não posso imaginar quem faria algo assim! - Standford exclamou. - É um complô para me desacreditar. - Voltou-se
para Rianne: - Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
- O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
- Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford
diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
- Concordo com uma revanche, milorde. - Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. - Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem
de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
- É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
- Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur,
sugeriu essa possibilidade.
- Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
- Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido - Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
- Mas é evidente quem foi que adulterou os dados - argumentou Rianne.
- A culpa vai recair sobre outro - Merlin explicou. - Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
- O escolhido para a punição será demitido, é claro - Connor acrescentou. - Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o
braço.
- Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula
das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
- Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos - disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar
o fôlego. Depois, prosseguiu: - Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. - Pararam outra vez quando ele
apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali
com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir
e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que
amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém
não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois
vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava
da morte. Por enquanto.
- Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado
e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as
velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra.
Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz
e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía
um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
- Sei que estes anos todos não foram fáceis para você - ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. - Soube que quer ir embora. Aceitarei
sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e
coragem. - Inclinou-se e beijou-a na testa. - Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se
postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
- Venha, meu esposo - disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. - É tarde, e você sabe muito bem que não
consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
- Mulher tola - ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. - Você dormiu sem mim durante as guerras.
- Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora - Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e
roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas
e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar
em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta
reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus
braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
- Por favor, me abrace - murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne
o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas,
sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de
fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas
vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia
os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne
seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que
vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo
que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a
lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo
que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações
e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava
impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse
os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o
oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira
vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
- Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o
coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne
ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão
que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes
e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
- Pelos Anciãos! - o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. - Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta,
resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre.
Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num
padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou
na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do
herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra
a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos
ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam
como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha
de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento
em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
- Saiu-se mal e falhou na lição, hein? - ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir
a palavra!
- O que está fazendo aqui? - Rianne perguntou. - Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando
a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
- Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
- Coisa sem importância.
- Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? - Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus
cabelos e flutuaram até o chão. - A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
- Teria de ser - Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
- Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
- Alguma vez você tomou um pouco por engano? - Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
- Fui assim tão horrorosa?
- Pior.
- Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma
galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! - ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais.
Encarou-o e emendou: - Terá de tirar sua túnica.
- Maus-tratos? - Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. - Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei...
E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
- Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
- Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que
haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. - De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de
vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto
que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
- Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas - Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do
guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
- Ou empunhar uma espada? - ele sugeriu. Rianne sorriu.
- Talvez.
- O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
- Lady Meg mandou fazer para mim. - Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela
bem torneada. - É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
- Calcinhas? - Tristão arqueou as sobrancelhas.
- Oh, sim - Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. - Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em
seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas
da fortaleza.
- Como está se saindo? - indagou com fingida seriedade.
- Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
- Fez progressos, então.
- Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de
couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher.
Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente
fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
- Como se feriu?
- Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
- Seu próprio companheiro?
- Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
- Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
- Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
- E Longinus?
- Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
- Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas
passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme
trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma
flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de
espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora,
dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os
pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de
cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula
ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas
possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme
se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão,
como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo
sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava
como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto
seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar
do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos
antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam
em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar.
Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira
da entrada.
- O que você quer? - Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se
atreveria a deixar de cumpri-la.
- Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora - informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava
zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
- Ele insiste em vê-la agora mesmo - o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. - Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava
as entranhas e o dilacerava.
- A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare - Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
- O garoto dos estábulos mudará para mim - Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando
incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás
dele.
- Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra
o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
- Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo,
quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
- Acho que vou transformar você num sapo - anunciou.
- Não! - Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. - Tenha piedade, senhora! - berrou, o rosto contorcido de horror.
Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. - Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
- Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria
os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Capítulo IX
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa,
e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro
em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte,
somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor - o baú entalhado contra a parede, a prateleira com
a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com
grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza - era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía
uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que
Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais
próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era
fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se
interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia
de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez,
poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto - o aposento em
si - estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no
cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
- Keflech! - praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença
vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário,
quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas
de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre
os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara
várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas
ocorrências, que haviam
sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder
ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu
da única maneira possível sem ser vista - do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
- Alguma coisa errada? - sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em
suas cabeças.
- Não é nada - respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista.
Imaginação.
- Este é o mapa de que lhe falei - explicou ao esticá-lo sobre a mesa. - Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
- Alguma coisa errada, Tristão?
- Não, não é nada - foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava
falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos.
Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender
com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava,
uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias
também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando
até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin
sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que
não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia
questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com
o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência
fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes,
quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de
Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza.
Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne
surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
- Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava
furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago
focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
- O que há de errado, caro irmão? - Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
- Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
- Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução.
O que o deixou tão zangado?
- O quê? - Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: - O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério.
Tudo é um jogo para ela.
- Como assim? - Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
- Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância
de suas habilidades. Ela...
- Está enganado, irmão - Meg o interrompeu com firmeza. - Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não
permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
- Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe
disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também
uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
- De qualquer maneira - continuou Meg -, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
- Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
-É suficiente por um dia - Meg o contrariou. - Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar
consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder
impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
- A senhora mentiu! - Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
- Não menti - disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada
vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia
que pareciam compartilhar. - Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
- Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
- Num certo sentido, estava - retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: - Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que
a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. - Então, o ar de malícia voltou.
- E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
- Vou me lembrar disso - Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. - Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências
terríveis.
- E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los
com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio
por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
- Você encontrará um dia - Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. - Senti o jeito com que Tristão olha para você.
- Não tenho tanta certeza - Rianne murmurou, pensativa. - Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
- Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil.
O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha
dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a
criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança
precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e
a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando
ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo.
Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha
humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que
a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de
amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
- Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. - Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. - Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira
e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro,
tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
- É linda! - Rianne exclamou. - Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras
pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela
chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como
se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem
dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do
fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma
importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
- Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! - exclamou. - É lindo. Pensei que poderíamos jogar... - Sua voz se calou quando olhou
para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses,
não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma
das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
- Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou
a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme
a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia
das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença
de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra
a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o
chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham
sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe
explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais
acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram,
tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
- A senhora precisa descansar - dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de
ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
- Quero me recordar - Meg protestara com doçura. - Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. - E com olhos que reluziam de lágrimas,
dissera, com uma tristeza de partir o coração: - Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
- Você também precisa de descanso, menina - disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. - Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
- Ela ficará bem?
- Sim - ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. - Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência
durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela
julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se
ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez
o primeiro lance.
- Que movimento faria, papai? - perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: - Ah, sim, compreendo. - E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa
forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
- Continuaremos mais tarde. - Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. - E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia
agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas
vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles
lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois,
já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de
Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes
ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor
pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos
passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade,
e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia
se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido,
Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma
suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele
a deixasse naquele momento.
- Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas
emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam
as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
- Você não sabe o que está dizendo - Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se
recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
- Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez
estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição
ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para
que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais
para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e
o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua
túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada,
o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre
o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas
a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos
a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
Capítulo X
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto
de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera.
A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela
a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha - como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas
pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro
extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera
mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto.
E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com
todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar
tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer,
enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o
homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples
pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a
madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com
o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os
cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além
do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida.
Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada
que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo
que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração.
Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente
nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria
o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra
e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado,
antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos
pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho - vilas, cabanas e fazendas -, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou
por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua
mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via
não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
- Está amanhecendo - disse ele ao roçar os lábios pelos
cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. - Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
- Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo - o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o
na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória,
e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos
do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe
encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos
tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se
dera?
- Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha
nessa questão? - Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu
de ombros.
- Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados
nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo
cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
- Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
- Sempre é possível. - E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: - Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
- Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama - na cama dela, na verdade -,
ele faria o "seu dever"!
- Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei - Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. - Mas existem remédios
que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. - Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse
pelo braço.
- Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
- Eu não disse isso. - A raiva borbulhava dentro de Rianne. - Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito
da sua ajuda. E - emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos - seria meu filho.
- Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! - Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. - Esqueceu tão depressa
quem o gerou?
- Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar
disso? - Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha
interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
- Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
- Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão
querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão
não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do
amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado
por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades
que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum,
afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão
se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças,
à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor
sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na
cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a
óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando
encontraram os de Tristão.
- Milorde?
- Ande - ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
- Não, milorde - Rianne murmurou, o queixo erguido. - É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem
escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
- Tome cuidado - avisou -, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
- Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
- Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade
desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
- Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria - e era precisamente isso que pretendia -, não haveria perdedores. Só ganhadores.
A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção
diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos
por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
- Deite-se de costas na cama - Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
- Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
- Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto.
Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo,
era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente
daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
- Continue de olhos fechados - disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não!
Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou
pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta
de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. - O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam
nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha
que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar...
A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
- Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
- Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito
e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem
da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a
primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir
de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada
em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não
conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície
não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o
reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação:
o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém
sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por
um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal.
Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar,
como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento.
Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para
a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam
ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira
a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse
distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
- Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias - Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. - Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara,
homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a
preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
- O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta
grossa de pele.
- Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
- Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
- Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
- Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
- Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne
não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
- Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa
acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele?
Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
- Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? - Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos,
apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
- Sim, e piores - retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. - Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
- Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
- Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio
inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
- Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne,
a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria
apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
- Estarei esperando por você - ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia.
Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se
para a ante-sala.
- Paciência é uma virtude. E vem com o tempo - ela comentou ao sentir as aflições da filha. - Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai - disse com voz
calma. - O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
- Como suportou isso?
- Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
- A espera não fica mais fácil? - perguntou.
- Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A
cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de
Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
- Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das
sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que
Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai
e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia
aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora,
e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes,
nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor
e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme
erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias,
o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
- Perdoe-me. Não queria machucá-la - murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
- Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
- Oh, não... - Tristão gemeu. - Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
- E depois terá mais energia? - Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
- Certamente - ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível
a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
- Não pergunte - ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. - Jamais pergunte o que aconteceu.
Capítulo XI
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição;
de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram,
o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão
tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra
ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor
fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço
de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar
Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
- Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... - disse.
- O que jaz além da morte? - Rianne indagou.
- É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
- A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja
algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
- Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste
mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
- Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado
o amor que compartilhamos.
- Será o mesmo para mim? - perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
- Não sei - Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. - Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava
em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma
vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
- Receio que já tenha feito - respondeu Rianne. - E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
- É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
- Então, não há como evitar?
- Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia
extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não
era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam
nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que
pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam
em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava,
liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes
em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma
familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
- Senhora? - Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
- Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
- Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
- Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu
poderia ter perdido minha cabeça.
- Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
- Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
- Realmente, deveria - ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
- Parece que seu acompanhante a abandonou - observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. - Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez,
e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter
seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado,
tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e - mais difícil de tudo - não falar sem ser
instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe
a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
- Lorde Standford chegou faz vários dias - informou-a. - Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
- O jogo foi escolha dele.
- Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
- Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
- Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
- Claro! - Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. - Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
- Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne
era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala
vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos
cavaleiros do guerreiro, embora - a mulher acrescentara com um sorriso malicioso - raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa
de lorde Standford.
- Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos - Meg lhe dissera
- Ele a ama?
- Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
- De que tipo está falando?
- Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava
em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
- Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
- São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? - Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles
braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
- São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
- E depois, o que acontece?
- O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
- E o que acontece depois?
- Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
- Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão - Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais
solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
- Ah... - Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. - Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
- Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou
outra vez.
- Mais tarde - murmurou.
- Agora - ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
- Em breve - Tristão prometeu.
- Quando?
- Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
- Hoje à noite.
- O rei dará uma festa em sua honra.
- Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
- Você será minha ruína.
- É isso o que pretendo, sr. Dragão.
- Prometi a lady Meg.
- Arruinar-me? - Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
- Prometi que lhe mostraria Camelot.
- Já vi Camelot.
- Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
- Quando? - Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
- Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam
em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos
em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam,
com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas
peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
- A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
- Como vê, não tenho dinheiro.
- Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
- Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum
de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
- Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua
mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer
que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. - A senhora viajou de
muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu - Os
olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos - em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de
coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
- Onde é esse lugar?
- Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que
queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar
do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto,
e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
- É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava
em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade
de resistir.
- A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão.
Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha
fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e
da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos,
a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
- O que foi? - perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
- Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
- Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
- Por favor! Preciso voltar, agora!
- Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do
rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele
vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
- A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade
brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
- Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
- Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso.
E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
- No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
- Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir,
quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A
única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de
Rianne, a chama
ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e
os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus
ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão
principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as
usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe
um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne
aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de
jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
- Em outra ocasião - disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto
ele sorvia um longo gole de vinho. - Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou
feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um
homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
- Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
- Venci com justiça - ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
- Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
- Política - Rianne resumiu numa única palavra.
- Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
- É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
- Já basta! - ele ameaçou.
- Sim - bufou Rianne. - É mais que o suficiente. - Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra
a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
- Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar - disse e retornou à mesa do jantar.
- Meus parabéns, milady - Longinus a cumprimentou. - Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade
de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
- Prefiro um desafio.
- O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? - sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois
pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
- Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso - intrometeu-se. - Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
- É verdade - respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
- Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
- Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady
Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
- Por acaso roubava jóias?
- Eu roubava comida - Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
- Roubava outras coisas? - indagou Alyce.
- Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
- Moedas de ouro, talvez? - Alyce insistiu.
- Moedas de ouro não tinham utilidade para mim - retrucou Rianne. - Não se pode comê-las.
- Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
- É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
- Em um bolso?
- Pode ser-respondeu Rianne.-Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
- É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha
lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra
de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários
ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
- Roubando ovos, milady? - Arthur comentou. - Eu não sabia que andavam escassos.
- Poderia tentar cozinhá-los primeiro - Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então,
saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
- Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
-Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para
com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
- Como um porco-espinho - retrucou Rianne. - Espi-nhento e mal-humorado.
- Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia
lhe contar...
- Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do
invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras
com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas
diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um
só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Capítulo XII
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a
sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a
camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
- Conheço este homem - disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. - É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
- Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
- Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou
a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um
chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
- Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
- Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que
tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
- Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir
para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot
até que outra legião retornasse
da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com
ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava
para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia
que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia,
preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem
ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
- Tem um amuleto, senhora? - perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. - Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
- Uma fita bonita, então... - disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. - Eu a terei em alta
estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
- Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais
ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se
despediu de Rianne, mas de lady Meg.
- Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
- Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça
numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
- Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da
manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
- Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu
pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para
o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
- Talvez esteja procurando por Longinus.
- Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde - Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía
de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não
a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto.
E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
- Aonde vai? - Grendel indagou fitando-a com suspeita.
- Ao mercado - Rianne respondeu por fim, num tom casual. - Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
- A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
- Talvez ela me deixe ir junto - Rianne murmurou. - Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o
íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
- Você viu? - indagou Grendel. - Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! - Não obtendo resposta, fez meia-volta. - Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de
calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
- Estou procurando uma cigana que lê a sorte - Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a
mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
- O que quer com a mulher? - um deles quis saber.
- Falar com ela. É importante.
- Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou
para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem
sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido
por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu
que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o
castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do
grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos,
do outro lado do jardim interno.
- Entre, filha - lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. - Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
- Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
- Onde ouviu isso?
- De uma cigana que lia a sorte no mercado.
- Uma cigana? - Meg riu, com ar divertido. - Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
- A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
- Transformou-se num jaspe sangüíneo - Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
- A senhora viu?
- Sim - ela respondeu, com tristeza. - Vi.
- O que significa?
- Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
- Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem
que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
- Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se
importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
- Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz - Rianne ponderou. - Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que
Merlin?
- Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles
está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
- Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito - Rianne concluiu.
- Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança
Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas
não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
- A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
- Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca
em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo,
mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições
ocultas pelas sombras.
- Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu- explicou lady Meg.
- E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
- Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la,
porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
- Não gosto disso - Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. - Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem
notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e
lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram
à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a
pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que
Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa
muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores
encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam
tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos.
Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão
na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que
aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe
o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a
recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar
o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando
para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto.
Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara
com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
- Você é um oponente de peso - Longinus o cumprimentou. - Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento
causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
- Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão.
Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com
uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não
era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta,
quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até
a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina
de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos
como se fosse seu mesmo.
Capítulo XIII
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava
morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser.
Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara
lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em
ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria.
Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não
a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos
quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto.
E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder,
Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até
a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava
o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura
como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas
de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas
pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada
de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença,
débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava
o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
- O que aconteceu? Onde está minha mãe?
- Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
- Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera:
a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas
a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara
com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois
, quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles
olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele
momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo
para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
- Obrigada, amiguinho - Rianne murmurou. - Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora
procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
- Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg
mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe,
vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia
que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado
o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as
muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo
de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou
mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles - e todos, até
mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo,
soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos
para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo.
Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava
além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido,
como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões,
apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria
presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras
correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos.
Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava
por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido
atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de
fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava
era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
- Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
- Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne
recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
- Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe
acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
- Onde está ela?
- Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua
direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva
do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
- Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
- Você não é Tristão.
- Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? - ele perguntou. - Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras
noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
- Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza
de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
- Está enganado - ela o desafiou. - Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha
acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão,
à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
- Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa
de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
- Longinus - Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele
quem atacara Monmouth;
e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada
a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E
ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não
questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo
de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
- Tentei lutar com ele - ela murmurou quando o irmão a abraçou. - Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para
atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
- Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
- Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. - Tristão deu um sorriso enviesado. - Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
- Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um
longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas
um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor
tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também.
Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas
trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um
homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
- Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida
contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu
atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
- Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que
caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
- Não é possível! - ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. - Você está morto. Eu vi.
- Estou vivo. Tome minha mão! - ele implorou. - Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
- Existe apenas um jeito de descobrir - aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. - Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam,
recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um
dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles
fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas
como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder
com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e
terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada
a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
- Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada
no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
Epílogo
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças
quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos
escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como
a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente
Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas
as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara
uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente
para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça
da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido
pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo
da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha
e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados
por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta,
estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha
delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas
faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo
de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo - um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo
de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre
os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Capítulo VII
as novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
- Não vim falar de estratégia militar - retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
- Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
- Para ver meu amigo - Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. - Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
- Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
- Para caçar - o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. - Suas florestas são bem mais ricas em caça
do que as que rodeiam Camelot.
- A localização de Camelot foi sua escolha - Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar,
e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os
dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto
ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que
os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão.
Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro
de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava
morte e destruição em seu rastro.
- Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira - Connor continuou. Era preciso fazer planos. - Vamos falar da verdadeira razão que o
traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões
de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
- Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade - disse ela, jogando os braços para o alto. - Connor não descansará quando deveria,
de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. - Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso
salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
- Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino - Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg.
- Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
- Sim - concordou Connor, com um sorriso. - Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram
àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se
soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir
da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a
cabeça de incredulidade.
- Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos
de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores
de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza
fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio
principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne
da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
- Lady Rianne de Monmouth - Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos
na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições
também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
- Seu filho de uma vadia! - berrou para Tristão. - Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
- Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
- Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço
remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
- Quem é você? - Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles
olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
- Ah... Então há esperança, afinal - Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora
todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
- Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
- E qual é a primeira? - Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
- Um banho - Merlin anunciou em voz alta. - Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
- Um só será ótimo - ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
- Serei o juiz desse assunto.
- Por que não me contou? - indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. - Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter
sido informada imediatamente! - Parou de andar e fez meia-volta. - Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... - Sua voz falhou.-Eu havia perdido a esperança.
Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
- Ela não foi ferida de alguma forma, foi? - perguntou, ansiosa.
- Está bastante bem-respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
- E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez
que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
- É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? - A menção do nome do marido, seus planos mudaram. -
Não, seria bastante cansativo para ele. - Então, cedeu ao próximo pensamento. - Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor?
E os olhos?
- São azuis - informou Merlin. - Tem os olhos da mãe.
- É sensitiva?
- Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. - Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação
de Meg.
- Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
- Dannelore e John não voltaram-disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais
um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
- Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para
conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza,
protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era
agora. Uma jovem bem diferente da imagem
que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
- Sim - Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
- O que foi que eu fiz, irmão? - murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
- Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
- O que ela deve pensar?
- Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
- Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos
encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
- Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um
vocabulário bastante incomum.
- Uma combinação imprevisível - Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. - Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
- Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
- Sugiro um banho.
- O que estão fazendo? - Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente
praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros
murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas
pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão
de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma
mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
- Vá, se é isso o que deseja - ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. - Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por
sir Tristão, você
parece estar em conflito com ele. - Erguera a mão num sinal de silêncio. - Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. - Dera
uma risadinha. - Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
- Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... - Fizera uma pausa
para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne - haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
- E se eu quiser ir embora? - Rianne indagara.
- Pode ir assim que escolher - Merlin lhe assegurara.
- Sem truques?
- Sem truques.
- Muito bem - ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. - Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. - Estremecera.
- E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta,
de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava
o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda
a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram
mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de
seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo
que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários
pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água
na boca.
- Venha, menina - a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. - Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer
vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de
suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
- Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma
de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
- Não preciso dessas coisas - Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
- Ah, vai precisar! - exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. - Suas roupas foram queimadas.
- Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram
minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
- Ora, tudo bem - concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo
vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
- Onde está o resto?
- O resto? - A bonita senhora a olhou, confusa.
- Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
- Não há nenhuma calça, pequena.
- O que usam por baixo?
- Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
- Claro que há - insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do
traje. - O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
- E não vou usar aquilo - Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. - Não vou enregelar meus pés também.
- Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
- Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? - perguntou. - Mestre Merlin a espera.
- Está bem - Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como
se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady
Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto
mãos gentis trancavam
fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para
que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo
que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
- Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
- Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora - a mulher disse com doçura. - Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia
saber à época.
- Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
- Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
- Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin - anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos
passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros,
e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram
para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
- Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
- Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
- Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. - Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara - era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando
fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes,
os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar
qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador,
sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O
mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria
recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com
Merlin.
- É assim que se faz - a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. - Eu não sabia sua altura
para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido
em si.
- Nunca tive algo tão fino. - Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. - Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
- Obrigada - a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um
homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que
pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava
a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes
gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios
de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
- Sua vida não foi fácil - a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a
devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. - Sinto muito por isso.
- Não é nenhum problema seu - Rianne retrucou, e pensou em Kari. - Existe gente que sofreu muito mais.
- Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento
e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
- Lorde Connor e a esposa estarão lá? - perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
- Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
- Nunca conheci um rei antes - Rianne declarou. - Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo
para a sela - Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. - E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer
que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
- Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
- Ele a avisou? - Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
- Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
- Lembre-se de uma coisa - disse. - Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E - sorriu - eu tenho autoridade para dizer que ele prefere
as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
- Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada - a mulher explicou. - Estão aqui para sua proteção também.
- Prefiro cuidar da minha própria proteção - retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem
nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada
e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele
como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse
ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele - feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem.
A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem
bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
- Não é verdade, você sabe - disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
- O que não é verdade?
- Eu não roubo almas. - Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. - Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de
mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
- Posso ler - ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
- Há muito mais à sua espera, Rianne - disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. - Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e
viesse. Aquela
gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam
com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas.
Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
- Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre
sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava
a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo
tempo, contudo,
era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara,
tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas.
Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
- Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada
mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se
estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer
isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
- Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço - Tristão murmurou no ouvido dela. - E depois quebrarei
seu pescoço - emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela
mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido,
a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros - que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas,
e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no
queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu
braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
- Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
- Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade - ela continuou. - Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas.
Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento
tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
- A refeição da noite está sendo servida - Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos,
o colocaram numa cadeira.
- O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a
pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
- O que há de errado com ele? - Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do
aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
- O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
- E nada pode ser feito?
- Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você - Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão
reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito
perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito
ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
- Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
- Tudo que poderia ser feito já foi tentado - Tristão assegurou. - Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. - Seu pai
está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg
à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem
casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
- Tome cuidado - Tristão avisou ao se inclinar para mais
perto. - Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe
a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
- Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias
que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um
novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida
às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais
difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
- Use sua mão esquerda - Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. - Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na
vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela
conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
- Você é canhota - ele explicou com um sorriso. - Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. - Fechou os
dedos de Rianne em torno do cabo. - Relaxe a pressão - Tristão sugeriu -, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
- Obrigada - murmurou.
- O que disse?
- Obrigada - ela repetiu, um pouquinho mais alto.
- Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
- Que pena, sir Tristão-ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem -, não percebi que era tão velho. - E depois, ainda mais alto, emendou,
com um sorriso largo: - Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo
se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos
a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
- Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade - o cavaleiro saudou seu rei. - Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
- Junte-se a nós, sir Longinus - Arthur convidou o cavaleiro. - Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
- Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à
mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
- Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
- Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
- Cheguei em segurança - Rianne respondeu.
- Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais
distante da mesa.
- Não gosto desse sujeito - Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
- Você não gosta de ninguém - Tristão ponderou.
- É verdade - concordou Grendel, e deu de ombros. - Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo
com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
- Talvez devesse dizer a ele - Tristão sugeriu.
- Talvez algum dia eu diga - o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder
novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou
os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado
a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
- Você acabou de retornar do País do Norte. - Arthur dirigiu a atenção a Rianne. - O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
- Não penso nisso, milorde - ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: - É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando
se tem fome.
Arthur concordou.
- Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
- Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
- Não foi tão difícil - continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
- Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
- Como você caçava?
- Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
-Um arco? - lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas
elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
- Prefere um arco em particular em relação aos demais? - Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
- Prefiro o arco longo galês - Rianne respondeu. - É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
- Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
- Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
- Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo - Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
- Oh, não, milorde - Rianne retrucou. - A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
Capítulo VIII
- Lorde Connor! - exclamou lorde Standford. - Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. - Voltou-se para ela. - E que jogos, digamos
assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente,
era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores,
quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la
com a mão em seu pulso.
- Tenho alguma experiência com dados - respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento
aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
- Ah, um jogo de azar - comentou lorde Standford.
- Não existe essa coisa de azar - retrucou Rianne. - É uma questão de habilidade.
- E você é habilidosa com os dados?-Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam
um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida,
mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento
era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
- Sim, milorde.
- Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
- Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem
mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
- Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. - Standford
aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: - O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento.
E era evidente que lady Meg fazia objeções.
- Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford - lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
-Fique de sobreaviso - emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. - A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante
parecida com a mãe.
- Talvez - retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. - Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma
palavra poderia conseguir.
- Não tenho nenhuma objeção.
- E irá garantir as perdas dela?
- Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta
que ela fechara havia muito tempo.
- Então, vamos ao jogo - Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada
face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
- Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário
de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
- Eu gostaria muito de derrotá-lo - ela retrucou.
Merlin concordou.
- Gostaria muito de ver isso acontecer.
- Não interfira - Rianne pediu com veemência. - Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor
deve me deixar agir a meu modo.
- E se você perder?
- Não pretendo perder.
- Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia - Merlin disse, a título de último conselho.
- Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao
redor.
- Não tenho como apostar! - Rianne exclamou.
- Há alguém que apostará por lady Rianne? - Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao
encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
- Eu cubro a aposta.
- Ah... o jovem guerreiro. - Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. - Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou
e murmurou-lhe no ouvido:
- É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. - Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. - Você pode derrotá-lo, não pode?
- Darei o melhor de mim.
- Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
- Há algo mais que deseja dizer, milorde? - Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
- Está muito linda esta noite, milady - ele murmurou, para depois acrescentar: - É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque
ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada
jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não
eram os mesmos com os quais jogara no início.
- Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados.
Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a
reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para
Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade
substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada,
impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
- Parece que é a sua vez com os dados, milady - disse ele, ao jogar os cubos para ela.
- Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde - Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois
os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram
para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
- Ah-ah! - Standford exclamou ao recuperar os dados. - Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho
escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
- Jogada bastante infeliz - disse ela, e depois emendou: - Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna
em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa
que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar
as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas
pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul
brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse
a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora,
era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade.
Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias
saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra
a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
- Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? - perguntou.
- É mesmo! - Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. - É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós
a conhece.
- Não posso imaginar quem faria algo assim! - Standford exclamou. - É um complô para me desacreditar. - Voltou-se
para Rianne: - Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
- O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
- Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford
diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
- Concordo com uma revanche, milorde. - Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. - Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem
de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
- É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
- Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur,
sugeriu essa possibilidade.
- Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
- Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido - Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
- Mas é evidente quem foi que adulterou os dados - argumentou Rianne.
- A culpa vai recair sobre outro - Merlin explicou. - Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
- O escolhido para a punição será demitido, é claro - Connor acrescentou. - Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o
braço.
- Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula
das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
- Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos - disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar
o fôlego. Depois, prosseguiu: - Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. - Pararam outra vez quando ele
apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali
com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir
e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que
amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém
não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois
vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava
da morte. Por enquanto.
- Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado
e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as
velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra.
Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz
e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía
um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
- Sei que estes anos todos não foram fáceis para você - ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. - Soube que quer ir embora. Aceitarei
sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e
coragem. - Inclinou-se e beijou-a na testa. - Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se
postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
- Venha, meu esposo - disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. - É tarde, e você sabe muito bem que não
consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
- Mulher tola - ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. - Você dormiu sem mim durante as guerras.
- Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora - Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e
roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas
e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar
em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta
reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus
braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
- Por favor, me abrace - murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne
o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas,
sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de
fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas
vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia
os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne
seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que
vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo
que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a
lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo
que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações
e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava
impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse
os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o
oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira
vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
- Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o
coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne
ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão
que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes
e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
- Pelos Anciãos! - o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. - Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta,
resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre.
Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num
padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou
na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do
herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra
a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos
ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam
como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha
de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento
em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
- Saiu-se mal e falhou na lição, hein? - ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir
a palavra!
- O que está fazendo aqui? - Rianne perguntou. - Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando
a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
- Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
- Coisa sem importância.
- Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? - Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus
cabelos e flutuaram até o chão. - A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
- Teria de ser - Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
- Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
- Alguma vez você tomou um pouco por engano? - Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
- Fui assim tão horrorosa?
- Pior.
- Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma
galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! - ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais.
Encarou-o e emendou: - Terá de tirar sua túnica.
- Maus-tratos? - Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. - Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei...
E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
- Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
- Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que
haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. - De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de
vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto
que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
- Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas - Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do
guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
- Ou empunhar uma espada? - ele sugeriu. Rianne sorriu.
- Talvez.
- O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
- Lady Meg mandou fazer para mim. - Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela
bem torneada. - É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
- Calcinhas? - Tristão arqueou as sobrancelhas.
- Oh, sim - Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. - Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em
seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas
da fortaleza.
- Como está se saindo? - indagou com fingida seriedade.
- Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
- Fez progressos, então.
- Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de
couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher.
Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente
fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
- Como se feriu?
- Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
- Seu próprio companheiro?
- Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
- Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
- Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
- E Longinus?
- Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
- Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas
passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme
trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma
flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de
espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora,
dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os
pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de
cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula
ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas
possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme
se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão,
como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo
sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava
como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto
seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar
do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos
antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam
em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar.
Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira
da entrada.
- O que você quer? - Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se
atreveria a deixar de cumpri-la.
- Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora - informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava
zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
- Ele insiste em vê-la agora mesmo - o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. - Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava
as entranhas e o dilacerava.
- A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare - Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
- O garoto dos estábulos mudará para mim - Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando
incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás
dele.
- Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra
o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
- Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo,
quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
- Acho que vou transformar você num sapo - anunciou.
- Não! - Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. - Tenha piedade, senhora! - berrou, o rosto contorcido de horror.
Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. - Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
- Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria
os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Capítulo IX
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa,
e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro
em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte,
somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor - o baú entalhado contra a parede, a prateleira com
a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com
grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza - era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía
uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que
Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais
próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era
fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se
interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia
de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez,
poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto - o aposento em
si - estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no
cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
- Keflech! - praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença
vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário,
quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas
de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre
os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara
várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas
ocorrências, que haviam
sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder
ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu
da única maneira possível sem ser vista - do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
- Alguma coisa errada? - sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em
suas cabeças.
- Não é nada - respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista.
Imaginação.
- Este é o mapa de que lhe falei - explicou ao esticá-lo sobre a mesa. - Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
- Alguma coisa errada, Tristão?
- Não, não é nada - foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava
falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos.
Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender
com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava,
uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias
também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando
até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin
sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que
não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia
questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com
o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência
fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes,
quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de
Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza.
Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne
surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
- Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava
furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago
focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
- O que há de errado, caro irmão? - Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
- Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
- Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução.
O que o deixou tão zangado?
- O quê? - Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: - O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério.
Tudo é um jogo para ela.
- Como assim? - Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
- Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância
de suas habilidades. Ela...
- Está enganado, irmão - Meg o interrompeu com firmeza. - Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não
permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
- Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe
disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também
uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
- De qualquer maneira - continuou Meg -, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
- Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
-É suficiente por um dia - Meg o contrariou. - Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar
consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder
impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
- A senhora mentiu! - Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
- Não menti - disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada
vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia
que pareciam compartilhar. - Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
- Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
- Num certo sentido, estava - retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: - Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que
a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. - Então, o ar de malícia voltou.
- E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
- Vou me lembrar disso - Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. - Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências
terríveis.
- E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los
com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio
por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
- Você encontrará um dia - Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. - Senti o jeito com que Tristão olha para você.
- Não tenho tanta certeza - Rianne murmurou, pensativa. - Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
- Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil.
O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha
dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a
criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança
precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e
a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando
ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo.
Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha
humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que
a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de
amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
- Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. - Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. - Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira
e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro,
tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
- É linda! - Rianne exclamou. - Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras
pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela
chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como
se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem
dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do
fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma
importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
- Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! - exclamou. - É lindo. Pensei que poderíamos jogar... - Sua voz se calou quando olhou
para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses,
não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma
das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
- Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou
a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme
a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia
das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença
de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra
a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o
chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham
sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe
explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais
acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram,
tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
- A senhora precisa descansar - dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de
ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
- Quero me recordar - Meg protestara com doçura. - Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. - E com olhos que reluziam de lágrimas,
dissera, com uma tristeza de partir o coração: - Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
- Você também precisa de descanso, menina - disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. - Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
- Ela ficará bem?
- Sim - ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. - Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência
durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela
julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se
ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez
o primeiro lance.
- Que movimento faria, papai? - perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: - Ah, sim, compreendo. - E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa
forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
- Continuaremos mais tarde. - Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. - E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia
agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas
vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles
lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois,
já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de
Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes
ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor
pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos
passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade,
e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia
se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido,
Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma
suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele
a deixasse naquele momento.
- Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas
emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam
as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
- Você não sabe o que está dizendo - Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se
recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
- Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez
estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição
ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para
que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais
para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e
o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua
túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada,
o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre
o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas
a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos
a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
Capítulo X
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto
de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera.
A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela
a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha - como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas
pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro
extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera
mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto.
E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com
todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar
tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer,
enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o
homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples
pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a
madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com
o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os
cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além
do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida.
Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada
que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo
que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração.
Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente
nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria
o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra
e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado,
antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos
pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho - vilas, cabanas e fazendas -, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou
por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua
mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via
não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
- Está amanhecendo - disse ele ao roçar os lábios pelos
cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. - Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
- Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo - o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o
na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória,
e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos
do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe
encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos
tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se
dera?
- Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha
nessa questão? - Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu
de ombros.
- Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados
nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo
cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
- Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
- Sempre é possível. - E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: - Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
- Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama - na cama dela, na verdade -,
ele faria o "seu dever"!
- Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei - Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. - Mas existem remédios
que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. - Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse
pelo braço.
- Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
- Eu não disse isso. - A raiva borbulhava dentro de Rianne. - Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito
da sua ajuda. E - emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos - seria meu filho.
- Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! - Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. - Esqueceu tão depressa
quem o gerou?
- Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar
disso? - Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha
interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
- Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
- Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão
querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão
não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do
amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado
por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades
que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum,
afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão
se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças,
à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor
sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na
cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a
óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando
encontraram os de Tristão.
- Milorde?
- Ande - ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
- Não, milorde - Rianne murmurou, o queixo erguido. - É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem
escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
- Tome cuidado - avisou -, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
- Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
- Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade
desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
- Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria - e era precisamente isso que pretendia -, não haveria perdedores. Só ganhadores.
A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção
diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos
por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
- Deite-se de costas na cama - Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
- Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
- Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto.
Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo,
era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente
daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
- Continue de olhos fechados - disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não!
Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou
pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta
de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. - O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam
nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha
que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar...
A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
- Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
- Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito
e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem
da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a
primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir
de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada
em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não
conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície
não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o
reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação:
o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém
sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por
um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal.
Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar,
como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento.
Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para
a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam
ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira
a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse
distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
- Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias - Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. - Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara,
homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a
preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
- O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta
grossa de pele.
- Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
- Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
- Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
- Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
- Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne
não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
- Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa
acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele?
Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
- Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? - Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos,
apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
- Sim, e piores - retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. - Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
- Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
- Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio
inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
- Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne,
a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria
apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
- Estarei esperando por você - ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia.
Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se
para a ante-sala.
- Paciência é uma virtude. E vem com o tempo - ela comentou ao sentir as aflições da filha. - Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai - disse com voz
calma. - O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
- Como suportou isso?
- Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
- A espera não fica mais fácil? - perguntou.
- Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A
cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de
Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
- Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das
sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que
Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai
e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia
aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora,
e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes,
nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor
e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme
erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias,
o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
- Perdoe-me. Não queria machucá-la - murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
- Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
- Oh, não... - Tristão gemeu. - Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
- E depois terá mais energia? - Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
- Certamente - ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível
a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
- Não pergunte - ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. - Jamais pergunte o que aconteceu.
Capítulo XI
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição;
de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram,
o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão
tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra
ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor
fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço
de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar
Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
- Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... - disse.
- O que jaz além da morte? - Rianne indagou.
- É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
- A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja
algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
- Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste
mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
- Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado
o amor que compartilhamos.
- Será o mesmo para mim? - perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
- Não sei - Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. - Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava
em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma
vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
- Receio que já tenha feito - respondeu Rianne. - E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
- É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
- Então, não há como evitar?
- Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia
extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não
era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam
nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que
pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam
em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava,
liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes
em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma
familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
- Senhora? - Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
- Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
- Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
- Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu
poderia ter perdido minha cabeça.
- Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
- Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
- Realmente, deveria - ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
- Parece que seu acompanhante a abandonou - observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. - Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez,
e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter
seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado,
tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e - mais difícil de tudo - não falar sem ser
instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe
a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
- Lorde Standford chegou faz vários dias - informou-a. - Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
- O jogo foi escolha dele.
- Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
- Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
- Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
- Claro! - Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. - Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
- Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne
era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala
vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos
cavaleiros do guerreiro, embora - a mulher acrescentara com um sorriso malicioso - raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa
de lorde Standford.
- Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos - Meg lhe dissera
- Ele a ama?
- Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
- De que tipo está falando?
- Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava
em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
- Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
- São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? - Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles
braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
- São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
- E depois, o que acontece?
- O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
- E o que acontece depois?
- Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
- Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão - Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais
solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
- Ah... - Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. - Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
- Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou
outra vez.
- Mais tarde - murmurou.
- Agora - ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
- Em breve - Tristão prometeu.
- Quando?
- Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
- Hoje à noite.
- O rei dará uma festa em sua honra.
- Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
- Você será minha ruína.
- É isso o que pretendo, sr. Dragão.
- Prometi a lady Meg.
- Arruinar-me? - Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
- Prometi que lhe mostraria Camelot.
- Já vi Camelot.
- Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
- Quando? - Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
- Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam
em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos
em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam,
com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas
peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
- A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
- Como vê, não tenho dinheiro.
- Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
- Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum
de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
- Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua
mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer
que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. - A senhora viajou de
muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu - Os
olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos - em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de
coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
- Onde é esse lugar?
- Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que
queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar
do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto,
e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
- É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava
em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade
de resistir.
- A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão.
Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha
fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e
da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos,
a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
- O que foi? - perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
- Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
- Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
- Por favor! Preciso voltar, agora!
- Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do
rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele
vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
- A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade
brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
- Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
- Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso.
E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
- No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
- Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir,
quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A
única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de
Rianne, a chama
ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e
os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus
ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão
principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as
usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe
um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne
aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de
jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
- Em outra ocasião - disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto
ele sorvia um longo gole de vinho. - Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou
feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um
homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
- Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
- Venci com justiça - ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
- Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
- Política - Rianne resumiu numa única palavra.
- Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
- É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
- Já basta! - ele ameaçou.
- Sim - bufou Rianne. - É mais que o suficiente. - Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra
a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
- Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar - disse e retornou à mesa do jantar.
- Meus parabéns, milady - Longinus a cumprimentou. - Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade
de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
- Prefiro um desafio.
- O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? - sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois
pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
- Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso - intrometeu-se. - Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
- É verdade - respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
- Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
- Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady
Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
- Por acaso roubava jóias?
- Eu roubava comida - Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
- Roubava outras coisas? - indagou Alyce.
- Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
- Moedas de ouro, talvez? - Alyce insistiu.
- Moedas de ouro não tinham utilidade para mim - retrucou Rianne. - Não se pode comê-las.
- Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
- É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
- Em um bolso?
- Pode ser-respondeu Rianne.-Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
- É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha
lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra
de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários
ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
- Roubando ovos, milady? - Arthur comentou. - Eu não sabia que andavam escassos.
- Poderia tentar cozinhá-los primeiro - Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então,
saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
- Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
-Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para
com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
- Como um porco-espinho - retrucou Rianne. - Espi-nhento e mal-humorado.
- Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia
lhe contar...
- Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do
invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras
com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas
diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um
só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Capítulo XII
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a
sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a
camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
- Conheço este homem - disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. - É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
- Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
- Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou
a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um
chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
- Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
- Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que
tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
- Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir
para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot
até que outra legião retornasse
da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com
ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava
para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia
que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia,
preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem
ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
- Tem um amuleto, senhora? - perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. - Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
- Uma fita bonita, então... - disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. - Eu a terei em alta
estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
- Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais
ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se
despediu de Rianne, mas de lady Meg.
- Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
- Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça
numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
- Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da
manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
- Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu
pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para
o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
- Talvez esteja procurando por Longinus.
- Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde - Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía
de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não
a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto.
E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
- Aonde vai? - Grendel indagou fitando-a com suspeita.
- Ao mercado - Rianne respondeu por fim, num tom casual. - Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
- A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
- Talvez ela me deixe ir junto - Rianne murmurou. - Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o
íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
- Você viu? - indagou Grendel. - Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! - Não obtendo resposta, fez meia-volta. - Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de
calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
- Estou procurando uma cigana que lê a sorte - Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a
mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
- O que quer com a mulher? - um deles quis saber.
- Falar com ela. É importante.
- Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou
para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem
sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido
por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu
que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o
castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do
grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos,
do outro lado do jardim interno.
- Entre, filha - lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. - Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
- Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
- Onde ouviu isso?
- De uma cigana que lia a sorte no mercado.
- Uma cigana? - Meg riu, com ar divertido. - Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
- A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
- Transformou-se num jaspe sangüíneo - Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
- A senhora viu?
- Sim - ela respondeu, com tristeza. - Vi.
- O que significa?
- Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
- Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem
que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
- Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se
importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
- Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz - Rianne ponderou. - Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que
Merlin?
- Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles
está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
- Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito - Rianne concluiu.
- Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança
Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas
não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
- A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
- Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca
em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo,
mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições
ocultas pelas sombras.
- Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu- explicou lady Meg.
- E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
- Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la,
porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
- Não gosto disso - Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. - Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem
notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e
lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram
à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a
pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que
Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa
muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores
encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam
tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos.
Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão
na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que
aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe
o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a
recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar
o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando
para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto.
Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara
com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
- Você é um oponente de peso - Longinus o cumprimentou. - Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento
causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
- Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão.
Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com
uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não
era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta,
quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até
a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina
de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos
como se fosse seu mesmo.
Capítulo XIII
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava
morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser.
Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara
lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em
ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria.
Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não
a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos
quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto.
E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder,
Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até
a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava
o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura
como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas
de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas
pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada
de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença,
débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava
o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
- O que aconteceu? Onde está minha mãe?
- Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
- Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera:
a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas
a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara
com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois
, quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles
olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele
momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo
para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
- Obrigada, amiguinho - Rianne murmurou. - Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora
procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
- Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg
mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe,
vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia
que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado
o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as
muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo
de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou
mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles - e todos, até
mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo,
soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos
para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo.
Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava
além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido,
como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões,
apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria
presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras
correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos.
Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava
por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido
atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de
fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava
era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
- Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
- Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne
recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
- Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe
acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
- Onde está ela?
- Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua
direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva
do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
- Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
- Você não é Tristão.
- Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? - ele perguntou. - Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras
noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
- Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza
de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
- Está enganado - ela o desafiou. - Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha
acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão,
à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
- Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa
de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
- Longinus - Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele
quem atacara Monmouth;
e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada
a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E
ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não
questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo
de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
- Tentei lutar com ele - ela murmurou quando o irmão a abraçou. - Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para
atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
- Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
- Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. - Tristão deu um sorriso enviesado. - Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
- Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um
longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas
um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor
tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também.
Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas
trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um
homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
- Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida
contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu
atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
- Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que
caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
- Não é possível! - ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. - Você está morto. Eu vi.
- Estou vivo. Tome minha mão! - ele implorou. - Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
- Existe apenas um jeito de descobrir - aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. - Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam,
recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um
dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles
fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas
como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder
com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e
terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada
a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
- Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada
no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
Epílogo
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças
quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos
escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como
a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente
Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas
as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara
uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente
para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça
da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido
pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo
da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha
e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados
por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta,
estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha
delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas
faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo
de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo - um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo
de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre
os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Capítulo VII
as novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
- Não vim falar de estratégia militar - retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
- Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
- Para ver meu amigo - Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. - Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
- Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
- Para caçar - o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. - Suas florestas são bem mais ricas em caça
do que as que rodeiam Camelot.
- A localização de Camelot foi sua escolha - Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar,
e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os
dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto
ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que
os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão.
Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro
de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava
morte e destruição em seu rastro.
- Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira - Connor continuou. Era preciso fazer planos. - Vamos falar da verdadeira razão que o
traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões
de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
- Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade - disse ela, jogando os braços para o alto. - Connor não descansará quando deveria,
de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. - Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso
salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
- Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino - Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg.
- Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
- Sim - concordou Connor, com um sorriso. - Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram
àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se
soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir
da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a
cabeça de incredulidade.
- Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos
de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores
de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza
fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio
principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne
da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
- Lady Rianne de Monmouth - Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos
na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições
também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
- Seu filho de uma vadia! - berrou para Tristão. - Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
- Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
- Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço
remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
- Quem é você? - Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles
olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
- Ah... Então há esperança, afinal - Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora
todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
- Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
- E qual é a primeira? - Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
- Um banho - Merlin anunciou em voz alta. - Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
- Um só será ótimo - ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
- Serei o juiz desse assunto.
- Por que não me contou? - indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. - Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter
sido informada imediatamente! - Parou de andar e fez meia-volta. - Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... - Sua voz falhou.-Eu havia perdido a esperança.
Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
- Ela não foi ferida de alguma forma, foi? - perguntou, ansiosa.
- Está bastante bem-respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
- E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez
que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
- É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? - A menção do nome do marido, seus planos mudaram. -
Não, seria bastante cansativo para ele. - Então, cedeu ao próximo pensamento. - Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor?
E os olhos?
- São azuis - informou Merlin. - Tem os olhos da mãe.
- É sensitiva?
- Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. - Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação
de Meg.
- Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
- Dannelore e John não voltaram-disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais
um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
- Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para
conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza,
protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era
agora. Uma jovem bem diferente da imagem
que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
- Sim - Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
- O que foi que eu fiz, irmão? - murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
- Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
- O que ela deve pensar?
- Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
- Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos
encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
- Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um
vocabulário bastante incomum.
- Uma combinação imprevisível - Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. - Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
- Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
- Sugiro um banho.
- O que estão fazendo? - Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente
praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros
murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas
pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão
de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma
mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
- Vá, se é isso o que deseja - ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. - Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por
sir Tristão, você
parece estar em conflito com ele. - Erguera a mão num sinal de silêncio. - Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. - Dera
uma risadinha. - Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
- Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... - Fizera uma pausa
para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne - haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
- E se eu quiser ir embora? - Rianne indagara.
- Pode ir assim que escolher - Merlin lhe assegurara.
- Sem truques?
- Sem truques.
- Muito bem - ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. - Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. - Estremecera.
- E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta,
de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava
o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda
a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram
mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de
seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo
que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários
pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água
na boca.
- Venha, menina - a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. - Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer
vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de
suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
- Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma
de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
- Não preciso dessas coisas - Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
- Ah, vai precisar! - exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. - Suas roupas foram queimadas.
- Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram
minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
- Ora, tudo bem - concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo
vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
- Onde está o resto?
- O resto? - A bonita senhora a olhou, confusa.
- Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
- Não há nenhuma calça, pequena.
- O que usam por baixo?
- Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
- Claro que há - insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do
traje. - O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
- E não vou usar aquilo - Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. - Não vou enregelar meus pés também.
- Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
- Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? - perguntou. - Mestre Merlin a espera.
- Está bem - Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como
se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady
Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto
mãos gentis trancavam
fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para
que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo
que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
- Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
- Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora - a mulher disse com doçura. - Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia
saber à época.
- Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
- Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
- Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin - anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos
passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros,
e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram
para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
- Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
- Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
- Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. - Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara - era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando
fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes,
os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar
qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador,
sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O
mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria
recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com
Merlin.
- É assim que se faz - a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. - Eu não sabia sua altura
para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido
em si.
- Nunca tive algo tão fino. - Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. - Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
- Obrigada - a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um
homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que
pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava
a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes
gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios
de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
- Sua vida não foi fácil - a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a
devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. - Sinto muito por isso.
- Não é nenhum problema seu - Rianne retrucou, e pensou em Kari. - Existe gente que sofreu muito mais.
- Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento
e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
- Lorde Connor e a esposa estarão lá? - perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
- Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
- Nunca conheci um rei antes - Rianne declarou. - Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo
para a sela - Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. - E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer
que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
- Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
- Ele a avisou? - Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
- Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
- Lembre-se de uma coisa - disse. - Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E - sorriu - eu tenho autoridade para dizer que ele prefere
as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
- Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada - a mulher explicou. - Estão aqui para sua proteção também.
- Prefiro cuidar da minha própria proteção - retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem
nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada
e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele
como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse
ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele - feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem.
A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem
bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
- Não é verdade, você sabe - disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
- O que não é verdade?
- Eu não roubo almas. - Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. - Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de
mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
- Posso ler - ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
- Há muito mais à sua espera, Rianne - disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. - Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e
viesse. Aquela
gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam
com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas.
Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
- Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre
sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava
a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo
tempo, contudo,
era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara,
tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas.
Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
- Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada
mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se
estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer
isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
- Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço - Tristão murmurou no ouvido dela. - E depois quebrarei
seu pescoço - emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela
mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido,
a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros - que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas,
e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no
queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu
braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
- Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
- Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade - ela continuou. - Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas.
Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento
tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
- A refeição da noite está sendo servida - Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos,
o colocaram numa cadeira.
- O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a
pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
- O que há de errado com ele? - Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do
aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
- O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
- E nada pode ser feito?
- Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você - Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão
reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito
perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito
ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
- Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
- Tudo que poderia ser feito já foi tentado - Tristão assegurou. - Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. - Seu pai
está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg
à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem
casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
- Tome cuidado - Tristão avisou ao se inclinar para mais
perto. - Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe
a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
- Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias
que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um
novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida
às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais
difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
- Use sua mão esquerda - Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. - Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na
vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela
conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
- Você é canhota - ele explicou com um sorriso. - Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. - Fechou os
dedos de Rianne em torno do cabo. - Relaxe a pressão - Tristão sugeriu -, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
- Obrigada - murmurou.
- O que disse?
- Obrigada - ela repetiu, um pouquinho mais alto.
- Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
- Que pena, sir Tristão-ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem -, não percebi que era tão velho. - E depois, ainda mais alto, emendou,
com um sorriso largo: - Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo
se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos
a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
- Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade - o cavaleiro saudou seu rei. - Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
- Junte-se a nós, sir Longinus - Arthur convidou o cavaleiro. - Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
- Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à
mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
- Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
- Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
- Cheguei em segurança - Rianne respondeu.
- Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais
distante da mesa.
- Não gosto desse sujeito - Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
- Você não gosta de ninguém - Tristão ponderou.
- É verdade - concordou Grendel, e deu de ombros. - Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo
com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
- Talvez devesse dizer a ele - Tristão sugeriu.
- Talvez algum dia eu diga - o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder
novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou
os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado
a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
- Você acabou de retornar do País do Norte. - Arthur dirigiu a atenção a Rianne. - O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
- Não penso nisso, milorde - ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: - É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando
se tem fome.
Arthur concordou.
- Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
- Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
- Não foi tão difícil - continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
- Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
- Como você caçava?
- Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
-Um arco? - lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas
elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
- Prefere um arco em particular em relação aos demais? - Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
- Prefiro o arco longo galês - Rianne respondeu. - É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
- Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
- Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
- Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo - Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
- Oh, não, milorde - Rianne retrucou. - A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
Capítulo VIII
- Lorde Connor! - exclamou lorde Standford. - Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. - Voltou-se para ela. - E que jogos, digamos
assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente,
era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores,
quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la
com a mão em seu pulso.
- Tenho alguma experiência com dados - respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento
aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
- Ah, um jogo de azar - comentou lorde Standford.
- Não existe essa coisa de azar - retrucou Rianne. - É uma questão de habilidade.
- E você é habilidosa com os dados?-Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam
um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida,
mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento
era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
- Sim, milorde.
- Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
- Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem
mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
- Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. - Standford
aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: - O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento.
E era evidente que lady Meg fazia objeções.
- Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford - lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
-Fique de sobreaviso - emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. - A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante
parecida com a mãe.
- Talvez - retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. - Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma
palavra poderia conseguir.
- Não tenho nenhuma objeção.
- E irá garantir as perdas dela?
- Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta
que ela fechara havia muito tempo.
- Então, vamos ao jogo - Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada
face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
- Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário
de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
- Eu gostaria muito de derrotá-lo - ela retrucou.
Merlin concordou.
- Gostaria muito de ver isso acontecer.
- Não interfira - Rianne pediu com veemência. - Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor
deve me deixar agir a meu modo.
- E se você perder?
- Não pretendo perder.
- Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia - Merlin disse, a título de último conselho.
- Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao
redor.
- Não tenho como apostar! - Rianne exclamou.
- Há alguém que apostará por lady Rianne? - Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao
encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
- Eu cubro a aposta.
- Ah... o jovem guerreiro. - Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. - Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou
e murmurou-lhe no ouvido:
- É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. - Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. - Você pode derrotá-lo, não pode?
- Darei o melhor de mim.
- Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
- Há algo mais que deseja dizer, milorde? - Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
- Está muito linda esta noite, milady - ele murmurou, para depois acrescentar: - É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque
ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada
jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não
eram os mesmos com os quais jogara no início.
- Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados.
Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a
reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para
Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade
substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada,
impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
- Parece que é a sua vez com os dados, milady - disse ele, ao jogar os cubos para ela.
- Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde - Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois
os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram
para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
- Ah-ah! - Standford exclamou ao recuperar os dados. - Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho
escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
- Jogada bastante infeliz - disse ela, e depois emendou: - Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna
em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa
que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar
as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas
pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul
brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse
a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora,
era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade.
Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias
saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra
a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
- Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? - perguntou.
- É mesmo! - Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. - É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós
a conhece.
- Não posso imaginar quem faria algo assim! - Standford exclamou. - É um complô para me desacreditar. - Voltou-se
para Rianne: - Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
- O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
- Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford
diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
- Concordo com uma revanche, milorde. - Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. - Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem
de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
- É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
- Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur,
sugeriu essa possibilidade.
- Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
- Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido - Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
- Mas é evidente quem foi que adulterou os dados - argumentou Rianne.
- A culpa vai recair sobre outro - Merlin explicou. - Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
- O escolhido para a punição será demitido, é claro - Connor acrescentou. - Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o
braço.
- Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula
das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
- Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos - disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar
o fôlego. Depois, prosseguiu: - Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. - Pararam outra vez quando ele
apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali
com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir
e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que
amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém
não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois
vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava
da morte. Por enquanto.
- Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado
e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as
velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra.
Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz
e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía
um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
- Sei que estes anos todos não foram fáceis para você - ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. - Soube que quer ir embora. Aceitarei
sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e
coragem. - Inclinou-se e beijou-a na testa. - Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se
postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
- Venha, meu esposo - disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. - É tarde, e você sabe muito bem que não
consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
- Mulher tola - ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. - Você dormiu sem mim durante as guerras.
- Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora - Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e
roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas
e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar
em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta
reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus
braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
- Por favor, me abrace - murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne
o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas,
sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de
fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas
vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia
os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne
seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que
vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo
que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a
lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo
que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações
e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava
impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse
os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o
oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira
vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
- Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o
coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne
ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão
que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes
e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
- Pelos Anciãos! - o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. - Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta,
resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre.
Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num
padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou
na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do
herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra
a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos
ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam
como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha
de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento
em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
- Saiu-se mal e falhou na lição, hein? - ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir
a palavra!
- O que está fazendo aqui? - Rianne perguntou. - Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando
a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
- Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
- Coisa sem importância.
- Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? - Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus
cabelos e flutuaram até o chão. - A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
- Teria de ser - Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
- Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
- Alguma vez você tomou um pouco por engano? - Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
- Fui assim tão horrorosa?
- Pior.
- Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma
galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! - ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais.
Encarou-o e emendou: - Terá de tirar sua túnica.
- Maus-tratos? - Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. - Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei...
E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
- Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
- Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que
haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. - De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de
vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto
que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
- Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas - Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do
guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
- Ou empunhar uma espada? - ele sugeriu. Rianne sorriu.
- Talvez.
- O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
- Lady Meg mandou fazer para mim. - Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela
bem torneada. - É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
- Calcinhas? - Tristão arqueou as sobrancelhas.
- Oh, sim - Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. - Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em
seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas
da fortaleza.
- Como está se saindo? - indagou com fingida seriedade.
- Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
- Fez progressos, então.
- Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de
couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher.
Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente
fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
- Como se feriu?
- Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
- Seu próprio companheiro?
- Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
- Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
- Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
- E Longinus?
- Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
- Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas
passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme
trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma
flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de
espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora,
dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os
pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de
cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula
ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas
possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme
se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão,
como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo
sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava
como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto
seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar
do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos
antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam
em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar.
Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira
da entrada.
- O que você quer? - Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se
atreveria a deixar de cumpri-la.
- Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora - informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava
zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
- Ele insiste em vê-la agora mesmo - o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. - Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava
as entranhas e o dilacerava.
- A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare - Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
- O garoto dos estábulos mudará para mim - Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando
incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás
dele.
- Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra
o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
- Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo,
quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
- Acho que vou transformar você num sapo - anunciou.
- Não! - Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. - Tenha piedade, senhora! - berrou, o rosto contorcido de horror.
Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. - Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
- Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria
os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Capítulo IX
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa,
e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro
em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte,
somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor - o baú entalhado contra a parede, a prateleira com
a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com
grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza - era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía
uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que
Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais
próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era
fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se
interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia
de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez,
poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto - o aposento em
si - estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no
cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
- Keflech! - praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença
vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário,
quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas
de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre
os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara
várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas
ocorrências, que haviam
sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder
ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu
da única maneira possível sem ser vista - do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
- Alguma coisa errada? - sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em
suas cabeças.
- Não é nada - respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista.
Imaginação.
- Este é o mapa de que lhe falei - explicou ao esticá-lo sobre a mesa. - Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
- Alguma coisa errada, Tristão?
- Não, não é nada - foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava
falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos.
Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender
com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava,
uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias
também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando
até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin
sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que
não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia
questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com
o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência
fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes,
quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de
Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza.
Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne
surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
- Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava
furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago
focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
- O que há de errado, caro irmão? - Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
- Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
- Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução.
O que o deixou tão zangado?
- O quê? - Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: - O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério.
Tudo é um jogo para ela.
- Como assim? - Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
- Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância
de suas habilidades. Ela...
- Está enganado, irmão - Meg o interrompeu com firmeza. - Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não
permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
- Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe
disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também
uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
- De qualquer maneira - continuou Meg -, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
- Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
-É suficiente por um dia - Meg o contrariou. - Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar
consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder
impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
- A senhora mentiu! - Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
- Não menti - disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada
vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia
que pareciam compartilhar. - Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
- Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
- Num certo sentido, estava - retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: - Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que
a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. - Então, o ar de malícia voltou.
- E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
- Vou me lembrar disso - Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. - Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências
terríveis.
- E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los
com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio
por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
- Você encontrará um dia - Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. - Senti o jeito com que Tristão olha para você.
- Não tenho tanta certeza - Rianne murmurou, pensativa. - Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
- Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil.
O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha
dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a
criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança
precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e
a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando
ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo.
Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha
humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que
a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de
amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
- Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. - Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. - Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira
e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro,
tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
- É linda! - Rianne exclamou. - Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras
pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela
chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como
se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem
dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do
fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma
importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
- Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! - exclamou. - É lindo. Pensei que poderíamos jogar... - Sua voz se calou quando olhou
para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses,
não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma
das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
- Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou
a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme
a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia
das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença
de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra
a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o
chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham
sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe
explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais
acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram,
tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
- A senhora precisa descansar - dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de
ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
- Quero me recordar - Meg protestara com doçura. - Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. - E com olhos que reluziam de lágrimas,
dissera, com uma tristeza de partir o coração: - Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
- Você também precisa de descanso, menina - disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. - Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
- Ela ficará bem?
- Sim - ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. - Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência
durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela
julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se
ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez
o primeiro lance.
- Que movimento faria, papai? - perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: - Ah, sim, compreendo. - E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa
forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
- Continuaremos mais tarde. - Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. - E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia
agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas
vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles
lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois,
já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de
Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes
ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor
pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos
passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade,
e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia
se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido,
Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma
suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele
a deixasse naquele momento.
- Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas
emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam
as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
- Você não sabe o que está dizendo - Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se
recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
- Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez
estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição
ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para
que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais
para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e
o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua
túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada,
o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre
o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas
a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos
a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
Capítulo X
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto
de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera.
A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela
a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha - como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas
pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro
extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera
mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto.
E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com
todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar
tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer,
enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o
homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples
pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a
madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com
o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os
cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além
do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida.
Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada
que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo
que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração.
Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente
nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria
o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra
e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado,
antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos
pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho - vilas, cabanas e fazendas -, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou
por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua
mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via
não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
- Está amanhecendo - disse ele ao roçar os lábios pelos
cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. - Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
- Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo - o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o
na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória,
e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos
do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe
encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos
tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se
dera?
- Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha
nessa questão? - Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu
de ombros.
- Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados
nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo
cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
- Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
- Sempre é possível. - E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: - Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
- Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama - na cama dela, na verdade -,
ele faria o "seu dever"!
- Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei - Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. - Mas existem remédios
que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. - Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse
pelo braço.
- Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
- Eu não disse isso. - A raiva borbulhava dentro de Rianne. - Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito
da sua ajuda. E - emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos - seria meu filho.
- Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! - Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. - Esqueceu tão depressa
quem o gerou?
- Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar
disso? - Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha
interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
- Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
- Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão
querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão
não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do
amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado
por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades
que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum,
afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão
se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças,
à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor
sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na
cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a
óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando
encontraram os de Tristão.
- Milorde?
- Ande - ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
- Não, milorde - Rianne murmurou, o queixo erguido. - É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem
escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
- Tome cuidado - avisou -, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
- Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
- Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade
desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
- Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria - e era precisamente isso que pretendia -, não haveria perdedores. Só ganhadores.
A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção
diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos
por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
- Deite-se de costas na cama - Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
- Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
- Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto.
Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo,
era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente
daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
- Continue de olhos fechados - disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não!
Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou
pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta
de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. - O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam
nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha
que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar...
A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
- Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
- Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito
e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem
da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a
primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir
de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada
em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não
conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície
não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o
reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação:
o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém
sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por
um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal.
Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar,
como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento.
Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para
a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam
ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira
a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse
distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
- Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias - Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. - Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara,
homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a
preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
- O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta
grossa de pele.
- Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
- Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
- Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
- Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
- Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne
não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
- Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa
acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele?
Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
- Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? - Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos,
apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
- Sim, e piores - retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. - Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
- Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
- Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio
inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
- Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne,
a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria
apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
- Estarei esperando por você - ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia.
Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se
para a ante-sala.
- Paciência é uma virtude. E vem com o tempo - ela comentou ao sentir as aflições da filha. - Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai - disse com voz
calma. - O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
- Como suportou isso?
- Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
- A espera não fica mais fácil? - perguntou.
- Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A
cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de
Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
- Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das
sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que
Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai
e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia
aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora,
e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes,
nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor
e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme
erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias,
o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
- Perdoe-me. Não queria machucá-la - murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
- Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
- Oh, não... - Tristão gemeu. - Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
- E depois terá mais energia? - Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
- Certamente - ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível
a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
- Não pergunte - ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. - Jamais pergunte o que aconteceu.
Capítulo XI
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição;
de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram,
o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão
tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra
ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor
fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço
de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar
Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
- Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... - disse.
- O que jaz além da morte? - Rianne indagou.
- É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
- A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja
algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
- Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste
mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
- Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado
o amor que compartilhamos.
- Será o mesmo para mim? - perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
- Não sei - Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. - Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava
em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma
vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
- Receio que já tenha feito - respondeu Rianne. - E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
- É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
- Então, não há como evitar?
- Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia
extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não
era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam
nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que
pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam
em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava,
liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes
em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma
familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
- Senhora? - Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
- Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
- Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
- Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu
poderia ter perdido minha cabeça.
- Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
- Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
- Realmente, deveria - ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
- Parece que seu acompanhante a abandonou - observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. - Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez,
e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter
seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado,
tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e - mais difícil de tudo - não falar sem ser
instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe
a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
- Lorde Standford chegou faz vários dias - informou-a. - Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
- O jogo foi escolha dele.
- Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
- Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
- Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
- Claro! - Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. - Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
- Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne
era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala
vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos
cavaleiros do guerreiro, embora - a mulher acrescentara com um sorriso malicioso - raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa
de lorde Standford.
- Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos - Meg lhe dissera
- Ele a ama?
- Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
- De que tipo está falando?
- Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava
em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
- Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
- São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? - Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles
braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
- São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
- E depois, o que acontece?
- O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
- E o que acontece depois?
- Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
- Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão - Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais
solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
- Ah... - Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. - Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
- Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou
outra vez.
- Mais tarde - murmurou.
- Agora - ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
- Em breve - Tristão prometeu.
- Quando?
- Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
- Hoje à noite.
- O rei dará uma festa em sua honra.
- Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
- Você será minha ruína.
- É isso o que pretendo, sr. Dragão.
- Prometi a lady Meg.
- Arruinar-me? - Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
- Prometi que lhe mostraria Camelot.
- Já vi Camelot.
- Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
- Quando? - Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
- Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam
em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos
em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam,
com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas
peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
- A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
- Como vê, não tenho dinheiro.
- Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
- Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum
de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
- Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua
mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer
que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. - A senhora viajou de
muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu - Os
olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos - em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de
coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
- Onde é esse lugar?
- Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que
queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar
do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto,
e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
- É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava
em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade
de resistir.
- A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão.
Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha
fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e
da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos,
a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
- O que foi? - perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
- Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
- Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
- Por favor! Preciso voltar, agora!
- Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do
rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele
vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
- A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade
brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
- Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
- Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso.
E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
- No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
- Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir,
quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A
única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de
Rianne, a chama
ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e
os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus
ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão
principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as
usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe
um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne
aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de
jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
- Em outra ocasião - disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto
ele sorvia um longo gole de vinho. - Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou
feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um
homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
- Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
- Venci com justiça - ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
- Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
- Política - Rianne resumiu numa única palavra.
- Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
- É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
- Já basta! - ele ameaçou.
- Sim - bufou Rianne. - É mais que o suficiente. - Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra
a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
- Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar - disse e retornou à mesa do jantar.
- Meus parabéns, milady - Longinus a cumprimentou. - Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade
de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
- Prefiro um desafio.
- O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? - sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois
pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
- Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso - intrometeu-se. - Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
- É verdade - respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
- Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
- Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady
Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
- Por acaso roubava jóias?
- Eu roubava comida - Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
- Roubava outras coisas? - indagou Alyce.
- Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
- Moedas de ouro, talvez? - Alyce insistiu.
- Moedas de ouro não tinham utilidade para mim - retrucou Rianne. - Não se pode comê-las.
- Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
- É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
- Em um bolso?
- Pode ser-respondeu Rianne.-Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
- É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha
lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra
de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários
ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
- Roubando ovos, milady? - Arthur comentou. - Eu não sabia que andavam escassos.
- Poderia tentar cozinhá-los primeiro - Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então,
saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
- Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
-Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para
com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
- Como um porco-espinho - retrucou Rianne. - Espi-nhento e mal-humorado.
- Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia
lhe contar...
- Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do
invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras
com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas
diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um
só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Capítulo XII
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a
sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a
camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
- Conheço este homem - disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. - É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
- Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
- Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou
a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um
chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
- Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
- Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que
tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
- Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir
para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot
até que outra legião retornasse
da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com
ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava
para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia
que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia,
preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem
ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
- Tem um amuleto, senhora? - perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. - Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
- Uma fita bonita, então... - disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. - Eu a terei em alta
estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
- Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais
ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se
despediu de Rianne, mas de lady Meg.
- Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
- Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça
numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
- Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da
manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
- Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu
pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para
o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
- Talvez esteja procurando por Longinus.
- Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde - Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía
de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não
a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto.
E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
- Aonde vai? - Grendel indagou fitando-a com suspeita.
- Ao mercado - Rianne respondeu por fim, num tom casual. - Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
- A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
- Talvez ela me deixe ir junto - Rianne murmurou. - Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o
íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
- Você viu? - indagou Grendel. - Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! - Não obtendo resposta, fez meia-volta. - Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de
calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
- Estou procurando uma cigana que lê a sorte - Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a
mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
- O que quer com a mulher? - um deles quis saber.
- Falar com ela. É importante.
- Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou
para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem
sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido
por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu
que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o
castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do
grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos,
do outro lado do jardim interno.
- Entre, filha - lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. - Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
- Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
- Onde ouviu isso?
- De uma cigana que lia a sorte no mercado.
- Uma cigana? - Meg riu, com ar divertido. - Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
- A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
- Transformou-se num jaspe sangüíneo - Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
- A senhora viu?
- Sim - ela respondeu, com tristeza. - Vi.
- O que significa?
- Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
- Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem
que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
- Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se
importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
- Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz - Rianne ponderou. - Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que
Merlin?
- Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles
está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
- Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito - Rianne concluiu.
- Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança
Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas
não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
- A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
- Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca
em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo,
mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições
ocultas pelas sombras.
- Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu- explicou lady Meg.
- E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
- Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la,
porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
- Não gosto disso - Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. - Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem
notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e
lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram
à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a
pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que
Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa
muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores
encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam
tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos.
Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão
na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que
aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe
o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a
recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar
o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando
para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto.
Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara
com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
- Você é um oponente de peso - Longinus o cumprimentou. - Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento
causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
- Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão.
Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com
uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não
era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta,
quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até
a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina
de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos
como se fosse seu mesmo.
Capítulo XIII
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava
morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser.
Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara
lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em
ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria.
Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não
a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos
quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto.
E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder,
Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até
a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava
o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura
como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas
de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas
pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada
de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença,
débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava
o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
- O que aconteceu? Onde está minha mãe?
- Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
- Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera:
a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas
a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara
com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois
, quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles
olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele
momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo
para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
- Obrigada, amiguinho - Rianne murmurou. - Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora
procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
- Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg
mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe,
vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia
que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado
o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as
muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo
de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou
mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles - e todos, até
mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo,
soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos
para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo.
Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava
além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido,
como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões,
apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria
presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras
correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos.
Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava
por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido
atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de
fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava
era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
- Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
- Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne
recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
- Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe
acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
- Onde está ela?
- Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua
direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva
do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
- Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
- Você não é Tristão.
- Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? - ele perguntou. - Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras
noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
- Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza
de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
- Está enganado - ela o desafiou. - Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha
acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão,
à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
- Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa
de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
- Longinus - Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele
quem atacara Monmouth;
e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada
a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E
ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não
questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo
de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
- Tentei lutar com ele - ela murmurou quando o irmão a abraçou. - Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para
atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
- Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
- Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. - Tristão deu um sorriso enviesado. - Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
- Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um
longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas
um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor
tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também.
Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas
trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um
homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
- Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida
contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu
atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
- Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que
caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
- Não é possível! - ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. - Você está morto. Eu vi.
- Estou vivo. Tome minha mão! - ele implorou. - Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
- Existe apenas um jeito de descobrir - aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. - Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam,
recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um
dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles
fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas
como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder
com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e
terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada
a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
- Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada
no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
Epílogo
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças
quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos
escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como
a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente
Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas
as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara
uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente
para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça
da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido
pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo
da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha
e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados
por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta,
estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha
delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas
faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo
de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo - um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo
de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre
os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Capítulo VII
as novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
- Não vim falar de estratégia militar - retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
- Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
- Para ver meu amigo - Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. - Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
- Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
- Para caçar - o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. - Suas florestas são bem mais ricas em caça
do que as que rodeiam Camelot.
- A localização de Camelot foi sua escolha - Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar,
e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os
dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto
ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que
os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão.
Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro
de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava
morte e destruição em seu rastro.
- Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira - Connor continuou. Era preciso fazer planos. - Vamos falar da verdadeira razão que o
traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões
de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
- Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade - disse ela, jogando os braços para o alto. - Connor não descansará quando deveria,
de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. - Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso
salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
- Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino - Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg.
- Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
- Sim - concordou Connor, com um sorriso. - Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram
àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se
soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir
da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a
cabeça de incredulidade.
- Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos
de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores
de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza
fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio
principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne
da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
- Lady Rianne de Monmouth - Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos
na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições
também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
- Seu filho de uma vadia! - berrou para Tristão. - Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
- Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
- Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço
remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
- Quem é você? - Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles
olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
- Ah... Então há esperança, afinal - Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora
todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
- Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
- E qual é a primeira? - Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
- Um banho - Merlin anunciou em voz alta. - Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
- Um só será ótimo - ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
- Serei o juiz desse assunto.
- Por que não me contou? - indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. - Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter
sido informada imediatamente! - Parou de andar e fez meia-volta. - Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... - Sua voz falhou.-Eu havia perdido a esperança.
Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
- Ela não foi ferida de alguma forma, foi? - perguntou, ansiosa.
- Está bastante bem-respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
- E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez
que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
- É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? - A menção do nome do marido, seus planos mudaram. -
Não, seria bastante cansativo para ele. - Então, cedeu ao próximo pensamento. - Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor?
E os olhos?
- São azuis - informou Merlin. - Tem os olhos da mãe.
- É sensitiva?
- Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. - Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação
de Meg.
- Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
- Dannelore e John não voltaram-disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais
um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
- Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para
conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza,
protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era
agora. Uma jovem bem diferente da imagem
que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
- Sim - Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
- O que foi que eu fiz, irmão? - murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
- Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
- O que ela deve pensar?
- Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
- Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos
encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
- Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um
vocabulário bastante incomum.
- Uma combinação imprevisível - Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. - Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
- Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
- Sugiro um banho.
- O que estão fazendo? - Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente
praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros
murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas
pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão
de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma
mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
- Vá, se é isso o que deseja - ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. - Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por
sir Tristão, você
parece estar em conflito com ele. - Erguera a mão num sinal de silêncio. - Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. - Dera
uma risadinha. - Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
- Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... - Fizera uma pausa
para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne - haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
- E se eu quiser ir embora? - Rianne indagara.
- Pode ir assim que escolher - Merlin lhe assegurara.
- Sem truques?
- Sem truques.
- Muito bem - ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. - Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. - Estremecera.
- E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta,
de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava
o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda
a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram
mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de
seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo
que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários
pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água
na boca.
- Venha, menina - a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. - Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer
vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de
suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
- Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma
de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
- Não preciso dessas coisas - Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
- Ah, vai precisar! - exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. - Suas roupas foram queimadas.
- Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram
minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
- Ora, tudo bem - concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo
vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
- Onde está o resto?
- O resto? - A bonita senhora a olhou, confusa.
- Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
- Não há nenhuma calça, pequena.
- O que usam por baixo?
- Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
- Claro que há - insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do
traje. - O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
- E não vou usar aquilo - Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. - Não vou enregelar meus pés também.
- Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
- Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? - perguntou. - Mestre Merlin a espera.
- Está bem - Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como
se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady
Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto
mãos gentis trancavam
fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para
que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo
que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
- Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
- Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora - a mulher disse com doçura. - Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia
saber à época.
- Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
- Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
- Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin - anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos
passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros,
e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram
para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
- Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
- Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
- Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. - Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara - era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando
fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes,
os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar
qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador,
sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O
mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria
recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com
Merlin.
- É assim que se faz - a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. - Eu não sabia sua altura
para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido
em si.
- Nunca tive algo tão fino. - Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. - Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
- Obrigada - a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um
homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que
pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava
a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes
gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios
de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
- Sua vida não foi fácil - a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a
devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. - Sinto muito por isso.
- Não é nenhum problema seu - Rianne retrucou, e pensou em Kari. - Existe gente que sofreu muito mais.
- Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento
e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
- Lorde Connor e a esposa estarão lá? - perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
- Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
- Nunca conheci um rei antes - Rianne declarou. - Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo
para a sela - Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. - E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer
que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
- Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
- Ele a avisou? - Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
- Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
- Lembre-se de uma coisa - disse. - Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E - sorriu - eu tenho autoridade para dizer que ele prefere
as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
- Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada - a mulher explicou. - Estão aqui para sua proteção também.
- Prefiro cuidar da minha própria proteção - retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem
nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada
e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele
como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse
ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele - feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem.
A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem
bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
- Não é verdade, você sabe - disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
- O que não é verdade?
- Eu não roubo almas. - Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. - Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de
mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
- Posso ler - ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
- Há muito mais à sua espera, Rianne - disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. - Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e
viesse. Aquela
gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam
com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas.
Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
- Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre
sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava
a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo
tempo, contudo,
era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara,
tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas.
Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
- Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada
mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se
estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer
isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma
coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
- Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço - Tristão murmurou no ouvido dela. - E depois quebrarei
seu pescoço - emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela
mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido,
a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros - que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas,
e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no
queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu
braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
- Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
- Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade - ela continuou. - Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas.
Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento
tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
- A refeição da noite está sendo servida - Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos,
o colocaram numa cadeira.
- O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a
pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
- O que há de errado com ele? - Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do
aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
- O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
- E nada pode ser feito?
- Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você - Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão
reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito
perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito
ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
- Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
- Tudo que poderia ser feito já foi tentado - Tristão assegurou. - Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. - Seu pai
está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg
à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem
casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
- Tome cuidado - Tristão avisou ao se inclinar para mais
perto. - Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe
a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
- Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias
que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um
novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida
às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais
difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
- Use sua mão esquerda - Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. - Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na
vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela
conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
- Você é canhota - ele explicou com um sorriso. - Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. - Fechou os
dedos de Rianne em torno do cabo. - Relaxe a pressão - Tristão sugeriu -, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
- Obrigada - murmurou.
- O que disse?
- Obrigada - ela repetiu, um pouquinho mais alto.
- Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
- Que pena, sir Tristão-ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem -, não percebi que era tão velho. - E depois, ainda mais alto, emendou,
com um sorriso largo: - Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo
se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos
a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
- Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade - o cavaleiro saudou seu rei. - Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
- Junte-se a nós, sir Longinus - Arthur convidou o cavaleiro. - Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
- Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à
mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
- Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
- Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
- Cheguei em segurança - Rianne respondeu.
- Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais
distante da mesa.
- Não gosto desse sujeito - Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
- Você não gosta de ninguém - Tristão ponderou.
- É verdade - concordou Grendel, e deu de ombros. - Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo
com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
- Talvez devesse dizer a ele - Tristão sugeriu.
- Talvez algum dia eu diga - o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder
novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou
os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado
a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
- Você acabou de retornar do País do Norte. - Arthur dirigiu a atenção a Rianne. - O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
- Não penso nisso, milorde - ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: - É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando
se tem fome.
Arthur concordou.
- Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
- Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
- Não foi tão difícil - continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
- Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
- Como você caçava?
- Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
-Um arco? - lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas
elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
- Prefere um arco em particular em relação aos demais? - Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
- Prefiro o arco longo galês - Rianne respondeu. - É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
- Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
- Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
- Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo - Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
- Oh, não, milorde - Rianne retrucou. - A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
Capítulo VIII
- Lorde Connor! - exclamou lorde Standford. - Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. - Voltou-se para ela. - E que jogos, digamos
assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente,
era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores,
quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la
com a mão em seu pulso.
- Tenho alguma experiência com dados - respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento
aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
- Ah, um jogo de azar - comentou lorde Standford.
- Não existe essa coisa de azar - retrucou Rianne. - É uma questão de habilidade.
- E você é habilidosa com os dados?-Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam
um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida,
mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento
era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
- Sim, milorde.
- Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
- Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem
mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
- Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. - Standford
aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: - O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento.
E era evidente que lady Meg fazia objeções.
- Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford - lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
-Fique de sobreaviso - emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. - A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante
parecida com a mãe.
- Talvez - retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. - Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma
palavra poderia conseguir.
- Não tenho nenhuma objeção.
- E irá garantir as perdas dela?
- Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta
que ela fechara havia muito tempo.
- Então, vamos ao jogo - Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada
face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
- Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário
de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
- Eu gostaria muito de derrotá-lo - ela retrucou.
Merlin concordou.
- Gostaria muito de ver isso acontecer.
- Não interfira - Rianne pediu com veemência. - Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor
deve me deixar agir a meu modo.
- E se você perder?
- Não pretendo perder.
- Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia - Merlin disse, a título de último conselho.
- Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao
redor.
- Não tenho como apostar! - Rianne exclamou.
- Há alguém que apostará por lady Rianne? - Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao
encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
- Eu cubro a aposta.
- Ah... o jovem guerreiro. - Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. - Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou
e murmurou-lhe no ouvido:
- É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. - Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. - Você pode derrotá-lo, não pode?
- Darei o melhor de mim.
- Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
- Há algo mais que deseja dizer, milorde? - Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
- Está muito linda esta noite, milady - ele murmurou, para depois acrescentar: - É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque
ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada
jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não
eram os mesmos com os quais jogara no início.
- Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados.
Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a
reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para
Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade
substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada,
impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
- Parece que é a sua vez com os dados, milady - disse ele, ao jogar os cubos para ela.
- Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde - Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois
os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram
para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
- Ah-ah! - Standford exclamou ao recuperar os dados. - Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho
escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
- Jogada bastante infeliz - disse ela, e depois emendou: - Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna
em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa
que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar
as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas
pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul
brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse
a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora,
era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade.
Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias
saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra
a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
- Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? - perguntou.
- É mesmo! - Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. - É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós
a conhece.
- Não posso imaginar quem faria algo assim! - Standford exclamou. - É um complô para me desacreditar. - Voltou-se
para Rianne: - Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
- O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
- Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford
diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
- Concordo com uma revanche, milorde. - Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. - Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem
de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
- É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
- Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur,
sugeriu essa possibilidade.
- Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
- Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido - Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
- Mas é evidente quem foi que adulterou os dados - argumentou Rianne.
- A culpa vai recair sobre outro - Merlin explicou. - Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
- O escolhido para a punição será demitido, é claro - Connor acrescentou. - Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o
braço.
- Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula
das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
- Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos - disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar
o fôlego. Depois, prosseguiu: - Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. - Pararam outra vez quando ele
apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali
com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir
e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que
amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém
não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois
vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava
da morte. Por enquanto.
- Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado
e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as
velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra.
Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz
e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía
um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
- Sei que estes anos todos não foram fáceis para você - ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. - Soube que quer ir embora. Aceitarei
sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e
coragem. - Inclinou-se e beijou-a na testa. - Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se
postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
- Venha, meu esposo - disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. - É tarde, e você sabe muito bem que não
consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
- Mulher tola - ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. - Você dormiu sem mim durante as guerras.
- Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora - Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e
roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas
e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar
em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta
reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus
braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
- Por favor, me abrace - murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne
o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas,
sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de
fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas
vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia
os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne
seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que
vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo
que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a
lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo
que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações
e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava
impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse
os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o
oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira
vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
- Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o
coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne
ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão
que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes
e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
- Pelos Anciãos! - o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. - Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta,
resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre.
Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num
padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou
na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do
herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra
a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos
ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam
como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha
de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento
em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
- Saiu-se mal e falhou na lição, hein? - ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir
a palavra!
- O que está fazendo aqui? - Rianne perguntou. - Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando
a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
- Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
- Coisa sem importância.
- Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? - Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus
cabelos e flutuaram até o chão. - A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
- Teria de ser - Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
- Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
- Alguma vez você tomou um pouco por engano? - Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
- Fui assim tão horrorosa?
- Pior.
- Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma
galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! - ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais.
Encarou-o e emendou: - Terá de tirar sua túnica.
- Maus-tratos? - Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. - Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei...
E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
- Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
- Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que
haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. - De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de
vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto
que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
- Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas - Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do
guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
- Ou empunhar uma espada? - ele sugeriu. Rianne sorriu.
- Talvez.
- O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
- Lady Meg mandou fazer para mim. - Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela
bem torneada. - É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
- Calcinhas? - Tristão arqueou as sobrancelhas.
- Oh, sim - Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. - Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em
seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas
da fortaleza.
- Como está se saindo? - indagou com fingida seriedade.
- Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
- Fez progressos, então.
- Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de
couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher.
Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente
fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
- Como se feriu?
- Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
- Seu próprio companheiro?
- Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
- Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
- Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
- E Longinus?
- Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
- Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas
passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme
trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma
flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de
espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora,
dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os
pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de
cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula
ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas
possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme
se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão,
como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo
sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava
como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto
seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar
do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos
antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam
em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar.
Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira
da entrada.
- O que você quer? - Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se
atreveria a deixar de cumpri-la.
- Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora - informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava
zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
- Ele insiste em vê-la agora mesmo - o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. - Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava
as entranhas e o dilacerava.
- A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare - Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
- O garoto dos estábulos mudará para mim - Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando
incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás
dele.
- Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra
o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
- Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo,
quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
- Acho que vou transformar você num sapo - anunciou.
- Não! - Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. - Tenha piedade, senhora! - berrou, o rosto contorcido de horror.
Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. - Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
- Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria
os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Capítulo IX
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa,
e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro
em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte,
somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor - o baú entalhado contra a parede, a prateleira com
a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com
grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza - era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía
uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que
Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais
próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era
fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se
interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia
de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez,
poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto - o aposento em
si - estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no
cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
- Keflech! - praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença
vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário,
quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas
de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre
os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara
várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas
ocorrências, que haviam
sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder
ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu
da única maneira possível sem ser vista - do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
- Alguma coisa errada? - sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em
suas cabeças.
- Não é nada - respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista.
Imaginação.
- Este é o mapa de que lhe falei - explicou ao esticá-lo sobre a mesa. - Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
- Alguma coisa errada, Tristão?
- Não, não é nada - foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava
falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos.
Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender
com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava,
uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias
também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando
até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin
sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que
não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia
questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com
o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência
fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes,
quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de
Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza.
Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne
surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
- Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava
furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago
focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
- O que há de errado, caro irmão? - Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
- Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
- Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução.
O que o deixou tão zangado?
- O quê? - Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: - O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério.
Tudo é um jogo para ela.
- Como assim? - Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
- Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância
de suas habilidades. Ela...
- Está enganado, irmão - Meg o interrompeu com firmeza. - Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não
permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
- Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe
disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também
uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
- De qualquer maneira - continuou Meg -, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
- Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
-É suficiente por um dia - Meg o contrariou. - Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar
consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder
impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
- A senhora mentiu! - Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
- Não menti - disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada
vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia
que pareciam compartilhar. - Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
- Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
- Num certo sentido, estava - retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: - Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que
a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. - Então, o ar de malícia voltou.
- E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
- Vou me lembrar disso - Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. - Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências
terríveis.
- E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los
com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio
por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
- Você encontrará um dia - Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. - Senti o jeito com que Tristão olha para você.
- Não tenho tanta certeza - Rianne murmurou, pensativa. - Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
- Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil.
O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha
dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a
criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança
precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e
a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando
ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo.
Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha
humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que
a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de
amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
- Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. - Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. - Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira
e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro,
tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
- É linda! - Rianne exclamou. - Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras
pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela
chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como
se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem
dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do
fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma
importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
- Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! - exclamou. - É lindo. Pensei que poderíamos jogar... - Sua voz se calou quando olhou
para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses,
não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma
das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
- Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou
a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme
a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia
das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença
de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra
a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o
chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham
sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe
explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais
acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram,
tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
- A senhora precisa descansar - dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de
ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
- Quero me recordar - Meg protestara com doçura. - Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. - E com olhos que reluziam de lágrimas,
dissera, com uma tristeza de partir o coração: - Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
- Você também precisa de descanso, menina - disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. - Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
- Ela ficará bem?
- Sim - ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. - Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência
durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela
julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se
ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez
o primeiro lance.
- Que movimento faria, papai? - perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: - Ah, sim, compreendo. - E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa
forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
- Continuaremos mais tarde. - Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. - E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia
agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas
vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles
lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois,
já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de
Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes
ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor
pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos
passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade,
e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia
se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido,
Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma
suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele
a deixasse naquele momento.
- Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas
emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam
as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
- Você não sabe o que está dizendo - Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se
recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
- Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez
estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição
ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para
que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais
para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e
o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua
túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada,
o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre
o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas
a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos
a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
Capítulo X
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto
de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera.
A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela
a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha - como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas
pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro
extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera
mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto.
E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com
todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar
tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer,
enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o
homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples
pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a
madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com
o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os
cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além
do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida.
Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada
que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo
que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração.
Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente
nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria
o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra
e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado,
antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos
pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho - vilas, cabanas e fazendas -, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou
por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua
mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via
não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
- Está amanhecendo - disse ele ao roçar os lábios pelos
cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. - Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
- Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo - o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o
na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória,
e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos
do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe
encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos
tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se
dera?
- Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha
nessa questão? - Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu
de ombros.
- Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados
nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo
cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
- Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
- Sempre é possível. - E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: - Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
- Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama - na cama dela, na verdade -,
ele faria o "seu dever"!
- Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei - Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. - Mas existem remédios
que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. - Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse
pelo braço.
- Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
- Eu não disse isso. - A raiva borbulhava dentro de Rianne. - Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito
da sua ajuda. E - emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos - seria meu filho.
- Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! - Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. - Esqueceu tão depressa
quem o gerou?
- Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar
disso? - Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha
interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
- Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
- Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão
querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão
não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do
amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado
por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades
que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum,
afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão
se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças,
à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor
sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na
cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a
óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando
encontraram os de Tristão.
- Milorde?
- Ande - ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
- Não, milorde - Rianne murmurou, o queixo erguido. - É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem
escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
- Tome cuidado - avisou -, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
- Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
- Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade
desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
- Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria - e era precisamente isso que pretendia -, não haveria perdedores. Só ganhadores.
A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção
diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos
por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
- Deite-se de costas na cama - Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
- Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
- Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto.
Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo,
era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente
daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
- Continue de olhos fechados - disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não!
Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou
pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta
de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. - O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam
nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha
que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar...
A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
- Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
- Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito
e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem
da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a
primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir
de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada
em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não
conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície
não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o
reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação:
o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém
sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por
um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal.
Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar,
como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento.
Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para
a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam
ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira
a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse
distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
- Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias - Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. - Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara,
homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a
preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
- O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta
grossa de pele.
- Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
- Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
- Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
- Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
- Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne
não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
- Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa
acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele?
Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
- Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? - Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos,
apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
- Sim, e piores - retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. - Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
- Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
- Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio
inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
- Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne,
a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria
apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
- Estarei esperando por você - ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia.
Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se
para a ante-sala.
- Paciência é uma virtude. E vem com o tempo - ela comentou ao sentir as aflições da filha. - Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai - disse com voz
calma. - O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
- Como suportou isso?
- Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
- A espera não fica mais fácil? - perguntou.
- Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A
cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de
Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
- Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das
sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que
Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai
e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia
aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora,
e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes,
nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor
e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme
erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias,
o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
- Perdoe-me. Não queria machucá-la - murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
- Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
- Oh, não... - Tristão gemeu. - Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
- E depois terá mais energia? - Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
- Certamente - ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível
a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
- Não pergunte - ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. - Jamais pergunte o que aconteceu.
Capítulo XI
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição;
de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram,
o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão
tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra
ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor
fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço
de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar
Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
- Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... - disse.
- O que jaz além da morte? - Rianne indagou.
- É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
- A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja
algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
- Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste
mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
- Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado
o amor que compartilhamos.
- Será o mesmo para mim? - perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
- Não sei - Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. - Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava
em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma
vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
- Receio que já tenha feito - respondeu Rianne. - E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
- É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
- Então, não há como evitar?
- Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia
extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não
era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam
nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que
pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam
em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava,
liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes
em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma
familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
- Senhora? - Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
- Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
- Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
- Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu
poderia ter perdido minha cabeça.
- Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
- Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
- Realmente, deveria - ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
- Parece que seu acompanhante a abandonou - observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. - Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez,
e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter
seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado,
tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e - mais difícil de tudo - não falar sem ser
instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe
a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
- Lorde Standford chegou faz vários dias - informou-a. - Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
- O jogo foi escolha dele.
- Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
- Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
- Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
- Claro! - Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. - Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
- Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne
era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala
vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos
cavaleiros do guerreiro, embora - a mulher acrescentara com um sorriso malicioso - raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa
de lorde Standford.
- Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos - Meg lhe dissera
- Ele a ama?
- Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
- De que tipo está falando?
- Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava
em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
- Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
- São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? - Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles
braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
- São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
- E depois, o que acontece?
- O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
- E o que acontece depois?
- Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
- Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão - Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais
solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
- Ah... - Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. - Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
- Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou
outra vez.
- Mais tarde - murmurou.
- Agora - ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
- Em breve - Tristão prometeu.
- Quando?
- Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
- Hoje à noite.
- O rei dará uma festa em sua honra.
- Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
- Você será minha ruína.
- É isso o que pretendo, sr. Dragão.
- Prometi a lady Meg.
- Arruinar-me? - Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
- Prometi que lhe mostraria Camelot.
- Já vi Camelot.
- Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
- Quando? - Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
- Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam
em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos
em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam,
com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas
peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
- A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
- Como vê, não tenho dinheiro.
- Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
- Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum
de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
- Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua
mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer
que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. - A senhora viajou de
muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu - Os
olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos - em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de
coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
- Onde é esse lugar?
- Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que
queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar
do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto,
e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
- É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava
em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade
de resistir.
- A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão.
Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha
fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e
da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos,
a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
- O que foi? - perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
- Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
- Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
- Por favor! Preciso voltar, agora!
- Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do
rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele
vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
- A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade
brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
- Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
- Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso.
E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
- No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
- Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir,
quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A
única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de
Rianne, a chama
ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e
os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus
ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão
principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as
usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe
um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne
aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de
jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
- Em outra ocasião - disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto
ele sorvia um longo gole de vinho. - Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou
feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um
homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
- Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
- Venci com justiça - ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
- Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
- Política - Rianne resumiu numa única palavra.
- Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
- É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
- Já basta! - ele ameaçou.
- Sim - bufou Rianne. - É mais que o suficiente. - Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra
a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
- Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar - disse e retornou à mesa do jantar.
- Meus parabéns, milady - Longinus a cumprimentou. - Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade
de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
- Prefiro um desafio.
- O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? - sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois
pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
- Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso - intrometeu-se. - Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
- É verdade - respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
- Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
- Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady
Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
- Por acaso roubava jóias?
- Eu roubava comida - Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
- Roubava outras coisas? - indagou Alyce.
- Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
- Moedas de ouro, talvez? - Alyce insistiu.
- Moedas de ouro não tinham utilidade para mim - retrucou Rianne. - Não se pode comê-las.
- Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
- É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
- Em um bolso?
- Pode ser-respondeu Rianne.-Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
- É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha
lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra
de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários
ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
- Roubando ovos, milady? - Arthur comentou. - Eu não sabia que andavam escassos.
- Poderia tentar cozinhá-los primeiro - Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então,
saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
- Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
-Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para
com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
- Como um porco-espinho - retrucou Rianne. - Espi-nhento e mal-humorado.
- Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia
lhe contar...
- Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do
invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras
com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas
diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um
só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Capítulo XII
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a
sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a
camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
- Conheço este homem - disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. - É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
- Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
- Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou
a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um
chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
- Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
- Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que
tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
- Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir
para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot
até que outra legião retornasse
da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com
ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava
para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia
que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia,
preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem
ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
- Tem um amuleto, senhora? - perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. - Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
- Uma fita bonita, então... - disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. - Eu a terei em alta
estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
- Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais
ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se
despediu de Rianne, mas de lady Meg.
- Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
- Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça
numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
- Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da
manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
- Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu
pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para
o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
- Talvez esteja procurando por Longinus.
- Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde - Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía
de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não
a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto.
E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
- Aonde vai? - Grendel indagou fitando-a com suspeita.
- Ao mercado - Rianne respondeu por fim, num tom casual. - Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
- A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
- Talvez ela me deixe ir junto - Rianne murmurou. - Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o
íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
- Você viu? - indagou Grendel. - Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! - Não obtendo resposta, fez meia-volta. - Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de
calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
- Estou procurando uma cigana que lê a sorte - Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a
mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
- O que quer com a mulher? - um deles quis saber.
- Falar com ela. É importante.
- Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou
para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem
sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido
por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu
que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o
castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do
grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos,
do outro lado do jardim interno.
- Entre, filha - lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. - Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
- Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
- Onde ouviu isso?
- De uma cigana que lia a sorte no mercado.
- Uma cigana? - Meg riu, com ar divertido. - Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
- A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
- Transformou-se num jaspe sangüíneo - Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
- A senhora viu?
- Sim - ela respondeu, com tristeza. - Vi.
- O que significa?
- Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
- Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem
que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
- Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se
importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
- Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz - Rianne ponderou. - Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que
Merlin?
- Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles
está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
- Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito - Rianne concluiu.
- Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança
Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas
não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
- A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
- Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca
em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo,
mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições
ocultas pelas sombras.
- Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu- explicou lady Meg.
- E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
- Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la,
porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
- Não gosto disso - Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. - Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem
notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e
lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram
à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a
pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que
Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa
muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores
encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam
tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos.
Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão
na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que
aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe
o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a
recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar
o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando
para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto.
Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara
com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
- Você é um oponente de peso - Longinus o cumprimentou. - Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento
causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
- Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão.
Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com
uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não
era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta,
quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até
a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina
de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos
como se fosse seu mesmo.
Capítulo XIII
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava
morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser.
Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara
lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em
ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria.
Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não
a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos
quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto.
E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder,
Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até
a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava
o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura
como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas
de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas
pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada
de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença,
débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava
o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
- O que aconteceu? Onde está minha mãe?
- Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
- Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera:
a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas
a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara
com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois
, quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles
olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele
momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo
para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
- Obrigada, amiguinho - Rianne murmurou. - Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora
procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
- Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg
mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe,
vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia
que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado
o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as
muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo
de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou
mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles - e todos, até
mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo,
soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos
para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo.
Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava
além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido,
como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões,
apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria
presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras
correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos.
Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava
por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido
atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de
fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava
era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
- Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
- Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne
recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
- Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe
acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
- Onde está ela?
- Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua
direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva
do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
- Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
- Você não é Tristão.
- Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? - ele perguntou. - Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras
noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
- Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza
de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
- Está enganado - ela o desafiou. - Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha
acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão,
à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
- Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa
de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
- Longinus - Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele
quem atacara Monmouth;
e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada
a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E
ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não
questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo
de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
- Tentei lutar com ele - ela murmurou quando o irmão a abraçou. - Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para
atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
- Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
- Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. - Tristão deu um sorriso enviesado. - Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
- Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um
longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas
um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor
tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também.
Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas
trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um
homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
- Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida
contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu
atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
- Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que
caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
- Não é possível! - ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. - Você está morto. Eu vi.
- Estou vivo. Tome minha mão! - ele implorou. - Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
- Existe apenas um jeito de descobrir - aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. - Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam,
recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um
dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles
fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas
como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder
com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e
terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada
a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
- Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada
no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
Epílogo
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças
quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos
escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como
a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente
Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas
as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara
uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente
para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça
da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido
pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo
da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha
e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados
por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta,
estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha
delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas
faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo
de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo - um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo
de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre
os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Quin Taylor Evans
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