Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Sexto livro da série O Legado de Merlim
FILHA DE CAMELOT
Da bruma entre as trevas da noite e a luz da aurora, a irmã de Merlin emergiu de seu refúgio em Avalon para uma Bretanha devastada por batalhas e onde um corajoso guerreiro cativaria para sempre a sua alma e o seu coração!
Inglaterra, Século XI
Órfã da única mãe que conhecera, Rianne cresceu fora dos limites de Camelot, sem saber que era herdeira de um legado de magia forjado nas brumas de Avalon. Até que um jovem e belo cavaleiro chegou à sua procura, despertando nela anseios e desejos desconhecidos...
Tristão estava preparado para enfrentar em combate o guerreiro inimigo que ameaçava a paz de Camelot. Atendendo ao pedido da mulher que o criara, Tristão partiu em busca da menina que ela enviara para longe de Avalon anos atrás... e o que ele encontrou foi uma jovem linda e apaixonada, cujos poderes imortais determinariam o destino de Camelot e de seu próprio coração!...
Camelot
A despeito da cegueira, a curandeira seguiu seu caminho sem hesitação pelos corredores do castelo do rei Arthur.
Não precisava da luz do sol que, durante o dia, se espalhava pelas paredes de pedras de arenito pálido, ou da iluminação brilhante das lamparinas de óleo, à noite, para guiá-la. Em vez disso, era conduzida pela visão interior, que a servia bem melhor, uma percepção de tudo em torno de si que os mortais não conseguiam enxergar.
Seus pensamentos estavam em outro lugar, pois se sentia preocupada com os sonhos perturbadores da noite. Não dormira bem.
Os sonhos assombravam suas noites insones desde que partira de Monmouth, sonhos de sangue e morte em nuvens de bruma, amortalhados em trevas e maldade.
— Se partirmos logo cedo, estaremos em Monmouth ao cair da noite — disse ela, mais para si mesma do que para Grendel.
E se sentiu reconfortada com o fato de que apenas em poucas horas estaria em casa, com Connor.
Grendel estremeceu. Detestava cavalos. Nunca se acostumaria a eles. Arrepiou-se como um galo de briga pronto para o combate.
— É uma viagem de meio dia pelas piores estradas de toda a Bretanha. Só estamos aqui faz quatro dias; meu traseiro ainda está preto e azulado. E já se esqueceu? Temos uma celebração esta noite, em honra do noivado do rei com lady Guinevere. Não podemos partir, seria inconcebível.
Meg não o escutava. Só ouvia ou sentia o sussurro através de seu sangue e a mão gelada que se apertava em torno de seu coração — algo que não escutava ou pressentia fazia tanto tempo que até quase se esquecera.
Parou e fez meia-volta. O olhar sem vida percorreu a parede de um lado do corredor. Seus sentidos imortais captavam algo — uma sombra de Maldade que tentava obstruir a luz do sol, invisível à visão humana. Sentiam a presença do mal encarnado como naquele dia, longo tempo antes, em meio ao anel de pedras eretas.
Morgana.
Fora apenas uma ilusão? O que será que a fazia pensar em Morgana agora, quando não pensara nela em todos aqueles anos?
Morgana lhe roubara a vista. Mas Morgana estava morta, e seus poderes, emanados das Trevas, destruídos. Mesmo assim, a lembrança fez Meg sentir um presságio maligno naqueles sonhos, e no frio que agora penetrava através de seu sangue, tal como acontecera naquele dia, longo tempo antes.
— Quero voltar para casa. O mais depressa possível. Encontre Tristão. Mande que prepare tudo. Diga a ele que partiremos tão logo eu tenha terminado meu trabalho na enfermaria. Tenho um mau pressentimento...
Tristão e diversos cavaleiros da guarda de Monmouth tinham acompanhado Meg até Camelot. Ele era como um filho para Meg e Connor, um órfão cuja família fora assassinada pelos guerreiros de Maelgwyn naqueles longos anos de terror. Depois disso, quando Arthur se tornara rei, Tristão fora viver com Meg e Connor em Monmouth. Preenchera o vácuo doloroso quando ela perdera seus próprios bebês. E era um filho digno de orgulho.
Meg pouco o vira desde a chegada a Camelot, mas não tinha dúvida de onde poderia ser encontrado. A filha de um dos nobres era sua nova conquista. Ninguém era capaz de resistir à combinação letal de beleza, intensidade de alma e humor adolescentes que poderiam fascinar qualquer moça e fazê-la tirar o vestido para ele.
Meg estava encantada com a garota. Era inteligente, rápida para aprender e não fraquejava diante de um ferimento feio ou carne putrefata.
— Este é o pior de todos — Cynwin a informou, ao tirar a atadura manchada do pé de um menino — O pai não achou que o ferimento fosse sério. A mãe o trouxe esta manhã quando a carne começou a descolorir.
Meg reconheceu o rapazinho como um dos meninos dos estábulos. Postou-se ao lado de Cynwin com a facilidade de quem enxerga e examinou o pé inchado com um toque suave. Sentiu os ossos quebrados, assim como os tendões e ligamentos rompidos.
Na simples conexão de seu toque com o pé esmagado, Meg aliviou a dor e o medo do garoto. E usou o dom com que nascera para soldar os ossos fraturados. Depois, fechou o ferimento, e Cynwin o enfaixou.
— Os ossos precisam de tempo para se consolidar e ficar fortes; e a atadura deve ser trocada diariamente — disse à mãe do menino.
Por fim, os dois saíram e Meg enfiou ambas as mãos dentro da bacia. A água se revolveu sob a ponta de seus dedos como se agitada por mão invisível. Imagens se remexeram no fundo, mudaram e depois, gradualmente, tomaram forma.
Meg as sentiu, percebeu-as, enxergou-as do jeito antigo — imagens de sangue e morte, de um escarlate brilhante a se revolver na água e a lhe cobrir as mãos, e depois a deslizar por seus dedos como a areia numa ampulheta; como a vida, precisa e cara para ela, que Meg não poderia reter. Dentro daquela visão de sangue e morte, uma única imagem tomou forma, tão clara como se ela a enxergasse — Connor.
Meg soltou um grito de dor quando uma pontada lancinante, semelhante à de uma faca retorcida dentro dela, a invadiu. E enquanto a visão se aguçava e se tornava mais clara, parecia que era seu sangue que escorria e redemoinhava na bacia.
— O que foi, senhora? — Cynwin perguntou, alarmada. Então, viu o sangue que turvava a água. — A senhora se feriu!
Pegou um pano grosso e tentou enxugar o sangue das mãos de Meg. Mas o pano logo se encharcou. Cynwin ergueu os olhos e encarou Meg com um pavor crescente.
— Não consigo parar a hemorragia! A senhora precisa me dizer o que fazer.
Nem Meg poderia contê-la. Não havia nenhum ferimento e, contudo, o sangue fluía sem parar. Grendel estava a seu lado no mesmo instante. O susto retorcia suas feições, fazendo-o parecer ainda mais um gnomo enrugado.
— Diga-me o que deve ser feito.
Meg acalmou os medos de Cynwin enquanto seus pensamentos alcançavam a mente de Grendel com apenas uma palavra: Monmouth. E naquela palavra concentrava-se todo o seu medo não vocalizado: há perigo em Monmouth.
— Ache Tristão — ela murmurou. — Precisamos voltar sem demora.
A distância normalmente percorrida em meio dia foi feita em pouco mais de duas horas. Então, avistaram a espiral de fumaça dos incêndios antes que entrassem no vale de Monmouth.
Mesmo assim, Meg rezou para que não tivesse acontecido o que vira na água revolta da bacia. E quando sentiu que as torres de vigia de Monmouth surgiam à vista, amortalhadas na fumaça, ela ainda manteve a esperança e recusou-se a aceitar as imagens que atormentavam seus pensamentos.
Sabia, porém, que acontecera, com tanta certeza como se tivesse presenciado. Sentiu a violência da batalha que ainda perdurava no ar, junto com a fumaça dos incêndios; tal como sentira o presságio de sangue e morte, na visão dentro da bacia.
Chegou aos portões apenas umas poucas passadas adiante de Tristão e seus homens. Saltou sozinha da sela. Nenhum guarda gritou no alto para anunciar seu retorno. Não havia guarda algum, e os portões estavam abertos.
Meg tropeçou e abriu caminho entre os restos da destruição daquilo que fora seu lar. A despeito do grito de aviso de Tristão, ela seguiu pelo pátio em direção ao átrio interno e aos jardins murados, como fizera milhares de vezes no passado.
Ao tropeçar em um corpo, encolheu-se instintivamente ao cair. Então, levantou-se e, com o dom da visão interior e um único pensamento, enxergou — não era Connor!
Viu tudo como tinha visto na primeira vez em que Connor a trouxera ali, havia tantos anos. Antes de seu encontro com Morgana.
Fora ali que se tornaram amantes. E fora para ali que haviam voltado quando ela deixara o mundo imortal pela última vez para ficar com Connor.
Em todos aqueles anos, Meg aprendera a conhecer cada pedra, cada degrau, cada lugar dentro do jardim que ela plantara, onde um beijo pudesse ser roubado e o prazer, usufruído.
Era naquele lugar que Connor muitas vezes a encontrava a cuidar das flores e das ervas; um local especial, escondido entre as árvores e as sebes perfumadas e floridas, onde se refugiavam nas noites quentes de verão e desfrutavam o prazer em lentos beijos e carícias igualmente demoradas. No mesmo lugar onde contara a Connor que carregava o filho dele. Um filho que não era para ser.
Encontrou-o não muito longe dali, onde enfrentara os atacantes num sangrento confronto, dentro dos muros do jardim. Seus homens tinham lutado a seu lado. Meg tropeçou em seus corpos para chegar a Connor. O sangue encheu-lhe as mãos e escorreu por seus dedos, quando ela o alcançou, como as visões de sangue e morte que vira em seus sonhos.
— Você precisa fazer alguma coisa!
A voz de Meg elevou-se no ar gelado da madrugada que enchia o quarto em Monmouth. Do outro lado da cama, o olhar sombrio de Merlin encontrou o dela.
— Fiz tudo que podia.
Meg rodeou a cama e parou diante dele.
— Não é o bastante! Cure os ferimentos — ela exigiu, com a voz tremendo de desespero. — Use seu poder. — Agarrou-o pela frente da túnica. — Você pode fazê-lo. — Suas mãos se fecharam em punhos de impotência e raiva. Incapaz de atacar um inimigo desconhecido, Meg o agrediu.
— Presenciei isso milhares de vezes! Faça, irmão! Cure-o, agora!
Os socos tinham pouco efeito e, no entanto, Merlin sentiu cada um no fundo da alma, pois o sofrimento de Meg era o seu sofrimento. Suas mãos se fecharam gentilmente sobre as dela, e suas palavras foram igualmente gentis.
— Os ferimentos são profundos e houve muita perda de sangue.
O olhar sem vida de Meg procurou o dele. Captou-lhe os pensamentos e as palavras não pronunciadas.
— Não!
Merlin puxou-a para dentro dos braços e segurou-a com firmeza, enquanto ela se entregava à raiva e à impotência. Depois, continuou a abraçá-la quando a irmã mergulhou num desespero devastador e, por fim, quando não conseguia mais chorar.
— Eu queria mais tempo — Meg murmurou contra o peito do irmão. — Deveríamos ter mais tempo.
— O tempo é nosso inimigo — Merlin a relembrou. — Para aqueles como nós, o tempo joga um jogo cruel. Você sabia que seria assim. Fique grata pelo tempo que teve. — Merlin acariciou-lhe docemente os cabelos — É bem mais que muitos de nós conheceremos um dia.
Ela ouviu a tristeza e o sofrimento em sua voz, e algo mais impronunciado, uma preocupação bem mais profunda. E medo.
— O que é?
— Algo que eu não sentia fazia muito tempo.
Meg captou um pensamento logo escondido, entrelaçado ao medo. Uma lembrança partilhada da filha que ela dera à luz e as escolhas feitas para mantê-la a salvo.
Agora, Connor estava morrendo. E a filha que haviam gerado com tanto amor não mais estava em segurança.
As sombras se alongaram conforme a noite chegou, a se mesclarem pela paisagem não familiar e a tornar difícil de distinguir o marco de pedra da antiga estrada romana.
Fazia cinco dias que percorriam aquela estrada e atravessavam agora a região desolada e desconhecida além das fronteiras do reino de Arthur.
O vento uivou, a alertá-los para a tempestade que os acompanhara durante toda tarde. O gnomo estremeceu no lombo do cavalo, os olhos escuros mal visíveis acima da borda do grosso manto de lã em que se enrolara.
— O que acha? — perguntou, mal-humorado.
Os olhos de Tristão se estreitaram num ar de desagrado.
— Está perguntando a mim? Você é que deveria conhecer o caminho.
— Conheço o caminho, ora — Grendel retrucou, num murmúrio abafado. — Mas faz um longo tempo e não sei ler latim. É uma língua difícil e complicada. Ler os pensamentos de alguém é mais simples.
— Então, leia os meus. — Tristão bufou de desgosto. — E o que me diz desse cheiro?
O gnomo sorriu com satisfação irônica.
— É uma infusão protetora para afastar os outros, caso contrário ficariam muito curiosos a nosso respeito, ao nos encontrarem nestas longínquas paragens do norte.
Tristão saltou do cavalo ao se aproximar do marco de pedra, para enxergá-lo mais claramente à luz que findava.
— É forte o bastante para afastar o próprio demo.
— Não é o demo que você deveria temer, menino — Gren-del retrucou. — Existem outras forças e poderes em ação aqui.
Seu olhar sombrio esquadrinhou o horizonte onde a última luz do dia se demorava, antes de se render às trevas, como se tivesse medo que aquelas forças desabassem sobre eles apenas por serem mencionadas. Estremeceu.
— E então, menino? — perguntou. — Decifrou as letras? Ou descobriu que deveria ter passado mais tempo com suas lições e menos com essa espada?
Tristão saltou para a sela e encolheu-se com outra lufada cortante de vento.
— Neste momento, a espada me serve muito melhor. — Fez a montaria dar meia-volta. — Deixaremos a estrada a partir daqui e continuaremos rumo norte. E não me chame de menino!
— A tempestade logo virá sobre nós. Estamos perto da floresta de Bedwyn. Vamos procurar abrigo para a noite? — o gnomo perguntou, esperançoso.
— Não — Tristão o informou com satisfação. — Quanto mais depressa encontrarmos o lugar, mais cedo voltaremos a Monmouth. Mantenha distância — retrucou, ao se colocar contra o vento. — Talvez seu cheiro horrível nos ofereça alguma proteção, afinal.
Seus pensamentos voltaram a Monmouth. Como os demais ataques à região, aquele fora bem calculado. E, diferentemente dos outros, não tinha sido contra uma vila distante ou uma aldeia, mas se abatera sobre Monmouth, quando muitos de seus homens estavam longe. E ele também.
Normalmente Connor acompanhava lady Meg até Camelot. Porém Tristão o convencera a ficar e seguira com Meg, ansioso por rever a srta. Alyce, que possuía mais encantos que juízo. E enquanto se deitava com ela, Monmouth fora atacada; e o homem a quem Tristão considerava como pai, gravemente ferido.
Naquele exato momento, cinco dias desde o ataque, Connor poderia estar morto e frio na sepultura, e ele fora mandado naquela missão idiota na companhia de outro idiota! Mas quando lady Meg insistira que não poderia confiar em ninguém mais, Tristão não pudera se recusar.
A pressa o tornou incauto. Não viu a árvore que de repente assomou diante de si na escuridão. Não houve tempo para frear o passo do cavalo. Um galho baixo o atingiu. O golpe arrancou o ar de seus pulmões, arrancou-o do lombo do cavalo e lançou-o ao chão.
Grendel sorriu, enquanto Tristão ofegava para recuperar a respiração e lutava contra a dor.
— Quem é o idiota agora? — perguntou, com ar satisfeito. Tristão o encarava com uma fúria muda, sabendo que o gnomo lera seus pensamentos. — Vamos acampar para a noite agora? Ou gostaria de cavalgar um pouco mais?
Quando, finalmente, conseguiu encher de ar os pulmões, Tristão murmurou um "sim" gutural. Foi tudo que pôde dizer no momento, e soou mais como uma ameaça.
— Bem, suponho que tudo ficará bem — retrucou Grendel ao passar por onde Tristão jazia. — A favor do vento, claro.
— E sem tentar esconder o sorriso de prazer ou procurar ajudar o rapaz.
— O que temos aí? — Grendel indagou, algum tempo depois, quando já tinham acampado e Tristão retornava com uma galinha-d'angola que caçara no mato e trouxera para o jantar.
O guerreiro ainda estava dolorido do tombo e seu humor não era dos melhores.
— Tem penas — retrucou. — Voa e bota ovo. Pai do céu! — exclamou, com enorme ironia — Deve ser uma ave!
O gnomo soltou uma praga.
— Posso ver muito bem por mim mesmo. Apenas fico preocupado se era realmente uma ave ou um mutante.
— Um parente seu, talvez? — Tristão comentou com satisfação ao erguer a caça. Então, emendou, com um sorriso malicioso: — Tome cuidado para não acabar do mesmo jeito. E faça algo de útil, homenzinho. Prepare a comida.
— Homenzinho? — Grendel resmungou para si mesmo ao se aproximar cautelosamente da ave morta. — Chegará o dia, menino, em que descobrirá que "tamanho não é o que importa".
— Pergunte à bela Alyce — retrucou Tristão, com um sorriso de malícia.
A galinha-d'angola foi assada com perfeição. Tristão engoliu um bocado de comida, pensativo. Tentou entender a mudança daquilo em que sempre acreditara: que a criança a que lady Meg dera à luz tantos anos antes morrera logo depois do parto e estava enterrada no pátio da capela em Monmouth, diante do que soubera havia apenas poucos dias.
— Do que você se lembra quanto à criança? Grendel comia, agachado no chão diante do fogo, enrolado no grosso manto de lã.
— O que há para lembrar? Era um bebê naquele tempo. Pequeno, barulhento e fedorento.
Tristão arqueou uma sobrancelha.
— Ah, um espírito afim. Parece que vocês têm muito em comum.
— Sim, um espírito afim! — esbravejou o gnomo. — E muito mais. E é melhor que se lembre disso. — Então, reclamou: — Maldição, mas que frio!
— Por quê? — Tristão perguntou.
— É noite de inverno! — Grendel retrucou, como se não tivesse entendido. — É normal nesta época do ano.
— Por quê? — Tristão repetiu. — Lady Megwin mentiu sobre a morte da criança?
Tinham cruzado metade da Bretanha durante cinco dias porque Meg assim pedira. Por respeito e amor, ele não questionara. A devoção de Tristão para com os pais adotivos era mais forte que os laços de sangue. Uma devoção de coração e alma.
Agora queria saber a razão e tinha intenção de descobrir. Mas Grendel deu de ombros.
— Ela não mente. Não pode mentir. E você sabe bem disso. Tristão percebeu que não seria fácil. Era óbvio que o gnomo optara por revelar tão pouco quanto possível a respeito daquela missão que lhes fora confiada. Porém, assim como lady Meg era incapaz de mentir, também o gnomo não podia, e Tristão aprendera, muito tempo antes, que a melhor maneira de arrancar algo do homenzinho era encurralá-lo com a verdade.
— Ela devia ser deformada de alguma maneira — concluiu, tomando um longo gole de vinho com água.
— Não era deformada coisa nenhuma! — Grendel berrou, indignado. — Era perfeita em todos os sentidos.
— Então, devia ter verrugas por todo o corpo e o nariz pendurado até o queixo. Sim, esta é a razão pela qual lady Meg a mandou embora.
— O nariz era muito bem-feito, e ela era linda como a mãe, sem nenhuma marca! — Os olhos do gnomo se estreitaram em fendas faiscantes de fúria. — Conheço seu jogo, menino! E você não vai arrancar outra palavra de mim.
— Então, não seguiremos por mais outro quilômetro nesta jornada — Tristão o informou. — Ou me conta a verdade agora, tudo, tudo, ou não irei em frente.
— Tudo bem, não vá — Grendel o desafiou. — Não preciso de você para encontrar o lugar. Lembre-se, sou eu quem sabe onde fica.
— Sim, sabe tão bem que não consegue nem mesmo se recordar dos marcos da estrada — Tristão reclamou. Levantou-se e se encolheu com dor nas costelas.—Encontre sozinho, se puder. Voltarei a Monmouth, onde precisam de mim.
— Esta noite?! — Grendel exclamou. — Mas, está escuro...
— Sim, muito escuro. E frio. — Tristão pegou a manta, a espada e o embornal e rumou para os cavalos.
— É tolice partir no escuro — Grendel ponderou, e o seguiu. — Lembre-se do que aconteceu quando agiu impulsivamente antes. Terá hematomas durante dias com a experiência.
— É, terei — reconheceu Tristão, e depois emendou: — Mas nada parecido com a irritação de ter de agüentar você! — Jogou a manta no lombo do cavalo preto e preparou-se para selá-lo.
Grendel torceu as mãos. Detestava o frio e detestava o escuro. Mais do que tudo, porém, detestava ser deixado sozinho num lugar estranho e distante.
— Ora, muito bem! — concordou, incerto se Tristão cumpriria ou não a ameaça. Mortais não eram práticos ou lógicos, e sim bastante imprevisíveis. — Mas não há muito a contar.
Tristão encostou-se no cavalo, descansando o braço na sela, mas sem fazer menção de voltar ao acampamento.
— Conte-me o que sabe. Tudo, ou eu o abandonarei nesta floresta e deixarei que os trolls o peguem.
Sorriu ao ver o pequenino encolher-se diante da ameaça. Grendel tinha horror aos trolls, e embora Tristão jamais tivesse visto um, ou até duvidasse de sua existência, não hesitava em ameaçar o gnomo para obter o que queria.
— Keflech! — Grendel praguejou, no dialeto antigo, uma palavra que não era usada no mundo mortal fazia mais de mil anos. Trolls eram criaturas vulgares, nojentas. Soltou um suspiro de resignação. — Não há muita coisa a dizer — disse, hesitante.
Sem uma palavra, Tristão enfiou o pé no estribo e saltou para a sela.
Grendel olhou, assustado, para os lados, com a certeza de que era espionado por trás de cada árvore e arbusto que os rodeavam.
— Está bem! Está bem! Vou lhe contar o que eu sei! Tristão não desmontou.
— Lady Meg teve uma visão quando a filha tinha apenas semanas de vida. Uma visão das Trevas.
O interesse de Tristão aguçou-se, como sempre acontecia diante da menção dos poderes das Trevas. Crescera com as histórias das grandes batalhas entre o Bem e o Mal, de dragões, trolls, gnomos e feiticeiros. E, quando criança, acreditava em todas elas, talvez porque precisasse de algo em que crer depois da morte de sua família.
Mas isso fora um longo tempo atrás, e ele perdera a inocência de criança e, junto com ela, a vontade de acreditar ingenuamente em mitos e lendas.
— Depois de todos esses anos, você ainda não acredita — murmurou Grendel. — O que acha que roubou a visão de lady Meg? E quanto às pedras em pé? Julga que apenas acontece de estarem ali, embora não existam outras daquele tamanho em toda a região?
— O que me importam as pedras? É só uma história.
— Só uma história! — exclamou Grendel, cheio de frustração. — Está esgotando minha paciência, menino. Esta é a verdade que você queria. É covarde para ouvi-la agora?
— Não sou covarde — Tristão retrucou, num tom baixo mas firme, e, em seguida, avisou: — E não me chame de menino.
— Ora, não vejo nenhum homem aqui à minha frente, pois é preciso ser homem como lorde Connor para acreditar naquilo diante do que outros mortais mostram apenas medo, agarran-do-se aos seus crucifixos e rezando a seu Deus por salvação.
Tristão saltou da sela. Amarrou o cavalo, porém não tirou os arreios.
— Conte-me.
Mais uma vez, sentaram-se diante da fogueira, um na frente do outro, e Grendel contou sua história, Do direito de nascimento de lady Meg como filha da Luz, sua jornada através do portal que separava os mundos mortal e sobrenatural, a batalha de vida e morte que travara com os poderes das Trevas, e a troca que fizera depois, para viver no mundo da matéria com lorde Connor.
— Você não passava de uma criança — Grendel o recordou. — Arthur ainda não era rei. Os poderes das Trevas eram fortes pela Terra. Muita coisa estava em risco.
Jogaram mais lenha na fogueira. Uma chuva de fagulhas voou, como um enxame de insetos brilhantes da cor das chamas.
— O círculo de pedras nem sempre esteve lá. Um dia, havia ali apenas uma planície. — Grendel pensou em Morgana, a meia-irmã de Arthur, disposta a vender a própria alma para conquistar o que queria. Mesmo naquele momento, ele podia sentir aquele frio do mal nas profundezas de seu ser.
— Foi dentro do círculo de pedras que lady Meg se confrontou com os poderes das Trevas, e foi lá que os derrotou. Porém a vitória teve um preço. Ela ficou cega no confronto.
Tristão crescera ouvindo as histórias do círculo de pedras e dos acontecimentos incomuns que supostamente ocorriam ali.
— Lembro-me de quando a criança nasceu — ele murmurou ao se recordar daquela noite distante.
— No Samhuin, all-hollow-eve, ou halloween, como dizem outros — Grendel disse, referindo-se à noite de 31 de outubro, quando os celtas e druidas acreditavam que as forças das Trevas e da Luz estavam mais intimamente alinhadas dentro do antigo universo.
— A região se iluminou com o brilho das fogueiras. Lorde Connor ficou muito contente — recordou-se Tristão.
— Sim. — Grendel lembrava-se muito bem daquela noite. — Tão feliz como qualquer novo pai.
— Disseram que a criança tinha adoecido e morrido.
— Foi o que contaram a todo mundo.
— O que aconteceu? Grendel suspirou.
— Uma noite, a senhora levantou-se para dar de mamar à criança e encontrou suas mantas ensopadas de sangue. Não havia nenhum ferimento. Na verdade, lorde Connor não viu nada quando acordou com os berros apavorados de lady Meg. Só uma outra pessoa viu o sangue que encharcava a criança, embora estivesse longe, em Camelot.
O olhar do gnomo encontrou o de Tristão através da fogueira, e o jovem guerreiro soube exatamente quem era que vira a terrível cena numa visão.
— Merlin.
— Sim — concordou Grendel. — Ele chegou a Monmouth dentro de um curto espaço de tempo.
Tristão ouvira muitas histórias sobre os poderes de Merlin. Em metade delas ele acreditava, mas em outras...
— Leva-se meio dia de viagem entre Monmouth e Camelot, no cavalo mais veloz...
— Sim, para um homem montado num daqueles animais horríveis. — Grendel deu de ombros e apontou para o cavalo amarrado. — Mas não para alguém como ele.
— Todos esses anos eu pensei que a criança tivesse morrido. Grendelconcordou.
— Era mais fácil deixar que todos pensassem assim. Desse jeito, a criança poderia ficar escondida em segurança. Se a mandassem para longe e ninguém soubesse, nem mesmo eles, de seu paradeiro, os poderes das Trevas não poderiam usar tal conhecimento para encontrar a menina. Lady Meg confiou o bebê a Dannelore, que havia sido sua criada, e ao marido dela, John. Os dois juraram que criariam a criança como se fosse deles, sem que ela soubesse de seu direito de nascença.
Tristão franziu a testa ao se recordar daqueles anos, quando vira e entendera as coisas com os olhos de uma criança. E comparou com aquilo que agora sabia ser a verdade.
— Pareceu estranho que tivessem partido tão de repente sem se despedirem. John tinha prometido me ajudar a domar um potro.
Grendel suspirou fundo.
— Não houve tempo para despedidas. Lady Meg teve medo de que qualquer atraso pusesse em perigo a criança. Tudo foi feito sob o manto da escuridão. Foi lorde Connor que deixou que se espalhasse a notícia de que a filha tinha morrido.
Tristão pensou naquele dia triste e nos dias que se seguiram. Fora colocada uma lápide no chão da capela em Monmouth. O padre rezara. Lorde Connor pedira que Tristão não falasse sobre a criança por causa da tristeza que isso provocava.
— A criança era apenas recém-nascida quando deixou Monmouth. Como você irá reconhecê-la? — perguntou a Grendel.
— Eu a reconhecerei. E ela tem nome. Chama-se Rianne.
— Uma pessoa muda com o passar dos anos — murmurou Tristão, ao pensar na própria infância que tivera um profundo efeito em sua vida. Mesmo agora, anos mais tarde, ele ainda sonhava com a noite em que sua família fora assassinada e sua casa queimada até o chão. Tanto tempo depois, ainda acordava ensopado de suor e gritando por seu pai e pelos irmãos.
— A menina tinha a beleza da mãe e os mesmos olhos azuis. Também descendia dos Anciãos — Grendel emendou, confiante. — Eu a reconhecerei.
— E se ela não quiser vir conosco? Pensou nisso, homenzi-nho? Ela tem uma vida com aqueles que acredita ser a sua família. Pode não entender isso facilmente e não desejar deixá-los.
— Ela compreenderá — afirmou Grendel, convicto.
— Eu não entenderia se minha família tivesse me dado para outros, não importa a razão.
— Claro que não. Você é mortal e muito ilógico!
— Ela é metade mortal — Tristão o relembrou, satisfeito com o olhar furioso que recebeu em resposta.
— Sim, a parte que tem do pai — Grendel retrucou, com claro desdém. — Mas lorde Connor é bastante lógico... para um mortal.
Tristão sorriu no íntimo.
— Ela é criança e mulher. Criaturas imprevisíveis. E você não conhece seu temperamento. Pode ter sido muito mimada e ser absolutamente desagradável.
— Impossível! Ela era um bebê de bom gênio! — esbravejou Grendel. — Sem dúvida cresceu e se transformou numa garotinha amável. E não quero mais discutir sobre isso!
— Veremos — Tristão resmungou ao se levantar para tirar a sela do cavalo.
Quando voltou, encontrou Grendel enrolado e aninhado entre as mantas como uma pulga enfiada no pêlo de um cachorro. Dormira depressa e soltava roncos sonoros. Se houvesse alguém por perto, saberia que estavam ali.
Tristão colocou a espada ao alcance da mão. Uma faca menor ficou escondida dentro do pelego. Encontravam-se nos extremos do reino de Arthur, e o poder de suas leis se estendia apenas até ali. Ladrões perambulavam livremente por aquelas paragens e não pensavam duas vezes para cortar a garganta de um homem, fosse por uma espada bem-feita que carregasse, ou pelos cavalos, que poderiam ser negociados por canecas de cerveja, comida e uma mulher na próxima hospedaria. Quanto mais se soubessem que o viajante trazia moedas de ouro na bolsa de couro, no cinto.
O sono demorou a vir, apesar do cansaço do longo dia de cavalgada. Quando, porém, finalmente veio, foi invadido por sonhos que se transformaram em imagens vívidas e familiares de sangue e morte.
Naqueles sonhos, Tristão era um garotinho outra vez, que acordava de outros devaneios de aventuras com seus irmãos com os sons de batalha e morte ao redor.
Um suor frio banhou-lhe o corpo diante daquelas imagens de repente arrancadas do passado, como se ele as revivesse de novo — os gritos apavorados de sua mãe e irmãs, o brilho do machado de guerra, o brado de guerra de seu pai de súbito silenciado. E depois, em meio às chamas e à fumaça, o cheiro de morte, conforme ele rastejava entre os corpos de sua família.
Estava banhado em sangue, e os olhos sem vida de seus entes queridos o encaravam. Tal como fizera naquele dia, longo tempo antes, ele cambaleou pelas ruínas de seu lar enquanto ia de um corpo sem vida para outro, seu pai e seus irmãos, todos mortos, sua mãe e irmãs brutalmente estupradas e, em seguida, assassinadas. No pátio, enfiou o rosto na água gelada da antiga fonte onde suas irmãs, um dia, haviam brincado.
A água lavou o sangue e as lágrimas, mas não as lembranças, que ficariam para sempre gravadas em sua mente. Então, a água ficara imóvel e calma mais uma vez. Mas, no sonho, a imagem que o fitava da superfície da água não era a de seu rosto, e sim a imagem fugidia de uma jovem.
Era linda, com feições delicadas, exóticas, e olhos de um raro azul. Chamas a rodeavam, mas ela não parecia sentir seu calor intenso. E o encarava com uma profunda tristeza que parecia um reflexo da própria tristeza que ele sentia.
Tristão pensou que, ao se virar, a encontraria de pé, a seu lado. Era outra pessoa que, como ele, conseguira sobreviver ao massacre. Mas ninguém se encontrava ali. Estava sozinho.
Ao olhar de novo para a água na fonte, viu outra vez aquelas feições estranhamente belas, e aqueles olhos vívidos e brilhantes que o fitavam com uma tristeza imensa. Então, a jovem se virou. E parecia que as chamas que a rodeavam a consumiam.
Quando Tristão acordou daqueles sonhos, ela se fora.
A hospedaria estava cheia de fumaça que vinha do fogão e impregnada do cheiro de comida azeda, cerveja derramada e um lodaçal da pior escória de humanidade jamais reunida em um só lugar. Iam até ali para beber, fornicar e tentar a sorte no jogo.
Garidor dirigia o andar térreo da estalagem perto do rio Wye. Provia as necessidades de vida dos peregrinos que viajavam pela estrada da floresta, dos habitantes locais, que levavam uma existência miserável, caçando na floresta e depois vendendo as peles dos sitiantes e de todo tipo de clientes perigosos e de reputação duvidosa cujas atividades eram bem conhecidas.
Ocasionalmente um viajante com ouro nos bolsos se aventurava a entrar na hospedaria para uma refeição quente, uma caneca de cerveja e um quarto. Nem o viajante nem seu ouro eram vistos de novo.
Mab estava a cargo da administração do andar superior da hospedaria, onde outro tipo de conforto poderia ser encontrado pelo preço de uma pele de raposa, uma peça de prata ou trocado por mercadoria. Era uma mulher corpulenta e alta, tinha a disposição de um porco do mato e a aparência similar.
Alguns diziam que era casada com Garidor. Outros, que eles tinham apenas um arranjo de negócios. E o negócio era bom, fornecido pela jovem Kari, dona de feições etéreas de um anjo, o corpo de uma garota e a alma ferida de alguém bem mais velho.
Ninguém sabia de onde Kari viera. Havia rumores de que era filha de Mab, embora nada indicasse isso na aparência. Outros boatos insinuavam que Garidor a recebera em troca de uma dívida, da qual cobrava juros regularmente no andar de cima, em um dos quartos.
Depois, havia Touro, assim chamado porque era tão apaler-mado quanto um, e emitia sons muito semelhantes a esse animal também. Era alto como um carvalho e mantinha a ordem na hospedaria quando os clientes se tornavam muito exaltados ou quando estouravam discussões a respeito de Kari ou dos jogos de azar dirigidos pelo moleque. Ninguém discutia com Touro.
O moleque era o mais novo membro da pequena "família" de Garidor. Miúdo e magro, com a aparência de um mendigo, usava roupas rasgadas uma sobre as outras, mesmo com o calor do verão; e as faces manchadas de sujeira sempre davam a impressão de que precisava urgentemente de um banho. E tal observação era feita por Mab, para quem banho nada mais era que uma ocorrência sazonal, contanto que o clima estivesse agradável e temperado.
Mas aqueles trapos de mendigo e a aparência suja do moleque eram para despistar, pois, debaixo das camadas de imun-dície, havia o agudo instinto de um sobrevivente de espantosos olhos azuis que enxergavam tudo que acontecia na taverna.
O menino parecia ter surgido do nada. Num minuto não havia ninguém ali, no próximo ele estava agachado no canto, com três copos de madeira de boca para baixo e dispostos em fila, com igual número de fregueses de Garidor a apostar em qual estava escondido o pequeno cristal reluzente com aquelas marcas estranhas. Se um deles acertasse três vezes seguidas, ganhava não apenas todas as apostas feitas, mas também o cristal faiscante.
Depois, fora o jogo de dados, ainda mais apreciado entre os freqüentadores. Os dados, na verdade, eram cubos entalhados nas presas de um porco selvagem. Cada um tinha seis faces. Em cada face havia marcas diferentes.
Os três dados eram colocados num copo, sacudidos com grande entusiasmo e depois jogados sobre a mesa de madeira em torno da qual os participantes se reuniam. Um par dava o direito de continuar com o dinheiro da aposta e fazer outro lançamento. Três faces diferentes, e o jogador era forçado a entregar os dados e a aposta ao menino. Se alguém conseguisse três dados com a mesma marcação, ganhava três vezes o que apostara.
Até o momento, o cristal ainda pertencia ao garoto, e ele acumulara uma incrível quantidade de badulaques, peças de prata e bugigangas.
Em pouco tempo, Garidor percebera a vantagem de ter o moleque como parte de sua família. Quanto mais os clientes jogavam, mais cerveja consumiam; quanto mais cerveja consumiam, mais jogavam. Fez uma barganha por uma participação nos lucros em troca da permissão de o menino ter acesso aos fregueses.
Era uma barganha justa, sobretudo quando se considerava quanto os fregueses perdiam — o bastante para encher a pequena bolsa que o garoto usava no cinto na maioria das noites, porém não o suficiente para afugentar a clientela.
A parte de Garidor era satisfatória, mas ele sabia que a do garoto era ainda mais. Por diversas vezes, tentara descobrir onde o menino guardava seu pequeno tesouro, porém cada vez que Touro o seguia quando ia embora, depois de um dia de jogatina, o menino dava um jeito de enganá-lo.
Na verdade, Garidor não saberia dizer com certeza onde o garoto vivia, pois ninguém o vira em outro lugar, a não ser na hospedaria. Era bem provável que morasse na floresta.
Pensou em mandar a garota Kari descobrir o local da boca do moleque, pois parecia existir um relacionamento especial entre ambos. Desde o momento em que ele chegara, Kari se mostrara particularmente atraída pelo menino. Sempre que não havia ninguém que desejasse sua companhia, ela poderia ser encontrada junto com o moleque, a observar os jogos de copos ou de dados, ou a conversar.
Era a única que trocava mais de uma palavra de passagem com ele. Ou melhor, parecia que era a única que falava. Talvez o moleque fosse mudo, pensou Garidor, numa inspiração repentina. Isso tornaria tudo muito mais fácil quando por fim descobrisse o local onde o moleque guardava os lucros do jogo.
Não haveria gritos para chamar atenção, embora, provavelmente, não fosse aparecer ninguém para ajudá-lo.
Garidor beneficiava-se muito com as habilidades daquele menino. Mas o inverno estava próximo e, quando a neve cobrisse a floresta, haveria poucos fregueses para apostar moedas, bugigangas ou peles num jogo.
Os tempos eram difíceis. A cada inverno havia alguém que não sobrevivia para voltar à hospedaria na primavera. Mas Garidor era um sobrevivente e assim continuaria, especialmente quando encontrasse o tesouro escondido do menino.
Compraria um novo cavalo de tração para transportar sua própria cerveja, e — seus olhos luziram — quem sabe um vestido novo para Kari. Considerava tanto o cavalo como o vestido novo um investimento, pois tinha planos para expandir os negócios. Garidor era um homem muito empreendedor.
Garidor era um porco, o moleque pensou ao ver de relance o olhar lúbrico que o homem lançava sobre Kari. Não era a primeira vez que o menino imaginava Garidor de outra maneira, atado e amarrado a um espeto, com as chamas de uma fogueira a lhe lamberem a carne. Será que esgoelaria como um porco também?
Ainda não. Espere o momento. Havia ainda muito a arrancar dos fregueses. E a menina, Kari. O moleque não poderia deixá-la ali quando chegasse a hora de partir.
Seu olhar percorreu a hospedaria cheia de fumaça. Acostumara-se ao odor horrível daquele lugar, da comida requentada que ficava no caldeirão por vários dias flutuando numa massa nojenta, de tantos corpos sem lavar amontoados no pequeno recinto. E o cheiro acre das tochas encharcadas de banha, de cerveja azeda e da fumaça do fogão que pairava no ar e ardia nos olhos e nos pulmões.
— Eu lhe trouxe algo de comer — Kari disse, naquela sua voz suave e doce, assustando o moleque.
Normalmente, ele não era tão descuidado a ponto de permitir que alguém, mesmo ela, se aproximasse sem aviso. Mas havia algo diferente naquela noite, algo que parecia pairar no ar em meio à fumaça e ao cheiro de podridão humana que o distraíra.
— Você precisa comer — ela insistiu, com os olhos como os de um anjo ferido a espiar por entre a onda de pálidos cabelos loiros que quase lhe encobria as feições. — Ele fica com parte de seus ganhos, quer você coma, quer não — ponderou e olhou para a tigela, ainda mais triste. — Não é grande coisa, mas você já se acostumou com isso. Fácil de suportar quando não há mais nada para comer.
Kari queria tanto agradá-lo, seu único amigo, com aqueles olhos azuis incomuns, um jeito doce e um toque igualmente gentil, como o de uma menina.
Então, a expressão nos olhos de Kari de repente mudou para uma de terror. Antes que o menino pudesse reagir, a cabeça da garota foi jogada para trás com um soco que a esparramou na sujeira do chão. Garidor postou-se sobre ela.
Ele deveria tê-lo pressentido chegar. Melhor que ninguém, conhecia o animal inferior que era Garidor. Nem por um momento se devia dar as costas a ele. Contudo, fora o que fizera. E Kari pagara o preço.
— Para cima! — Garidor berrou, postado sobre ela. — Há fregueses pagantes à espera.
Kari se ergueu devagar do chão. Abaixou a cabeça para esconder a marca roxa que já se destacava na face inchada, deu a volta cautelosamente em torno de Garidor e rumou para as escadas, obediente.
— E então, moleque? O que está olhando? Quem sabe esteja pensando que gostaria de ter um pequeno pedaço daquilo lá, hein? — debochou Garidor. — Acha que é homem o bastante, hein? Ou prefere os rapazes?
Garidor aproximou-se e pousou a mão no ombro do garoto; seu hálito empesteava o ar.
— Vou lhe dizer uma coisa, rapaz. Eu a darei de graça. Sem custo, por conta de sermos sócios. Vai gostar quando a pegar gemendo debaixo de você. — Apertou o ombro do garoto, sem se dar conta do punhal que escorregara para a mão do menino, escondido dentro da manga da túnica suja que ele usava. — O que acha? — perguntou Garidor, como se falasse com uma criança. — É hora de ter sua primeira experiência. Isso fará de você um homem, e juro que não existe pedaço mais doce que aquela uma.
Seu olhar vagou para as escadas onde Kari desaparecera, a expressão de luxúria a lhe toldar os olhos ao pensar no corpo esguio, nos quadris quase de criança e nos pequenos seios duros.
— Isso fará de você um homem, Garidor? — Mab perguntou, com uma risada ainda mais maliciosa, atraindo a atenção do sujeito.
— Cale a boca, megera! — Garidor berrou, com ódio. Mas Touro apareceu e se postou atrás de Mab como uma sombra enorme e silenciosa, muito maior que Garidor e vários anos mais novo.
— E agora?! — exclamou Mab, a se alargar de prazer; sorria, mostrando todas as falhas nos dentes.
Garidor se retirou para o canto da hospedaria, onde foi servir cerveja aos fregueses.
— Há clientes pagantes à espera para tentar a sorte nos dados, menino! — Mab berrou, agarrando o garoto pelo ombro. Touro assomou por trás da velha com uma expressão ameaçadora. — Vá logo — ela resmungou, ao soltá-lo com um duro empurrão.
Com um olhar para as escadas, o menino voltou para seu canto. Tirou os dados da bolsa e jogou-os dentro do copo de madeira quando o próximo cliente colocou a aposta sobre a mesa.
No decorrer da hora que se seguiu, os dados foram jogados muitas vezes. Alguns clientes ganharam, mas a maioria perdeu. E o moleque aguardou.
Quando Garidor, finalmente, desabou em sua costumeira embriaguez e Mab e Touro cochilavam num canto, a roncar, ele se esgueirou pela hospedaria e subiu as escadas.
Encontrou Kari encolhida no canto do quarto. O teto vazava em dezenas de lugares e a água se empoçava pelo chão. O lugar estava gelado de doer os ossos. Ela se curvara numa bola apertada, sofrida, os hematomas visíveis entre a massa emaranhada dos cabelos. Encolheu-se quando o menino pousou a mão gentilmente em seu ombro. Seus olhos, que refletiam toda sua imensa infelicidade, gradualmente se iluminaram e o fitaram com uma tristeza de condoer a alma.
— Eu o matarei se ele a tocar outra vez — o menino murmurou, a lhe afagar os cabelos, afastando-os do rosto machucado.
— Não deve dizer uma coisa dessas. Garidor é meu dono. Pode fazer o que quiser comigo.
— Então, eu a comprarei dele.
— Me comprar? Como?
— Deixe que eu me preocupo com isso — retrucou o menino, ao acariciar o rosto inchado.
Kari pendeu a cabeça e pousou a testa no ombro do garoto.
— Não me deixe — implorou. — Por favor, não me deixe.
— Durma agora — o menino murmurou e enlaçou-a pelos ombros. — Não a deixarei e, prometo, ninguém nunca mais vai machucá-la outra vez.
A tensão esvaiu-se daquele corpo dolorosamente magro, e a cabeça de Kari pesou em seu ombro. Não havia nada no quarto desnudo que oferecesse algum calor contra o frio. Nenhuma manta ou pelego e, no entanto, ele a aqueceu.
O moleque não dormiu, mas ficou acordado a noite toda, a proteger e vigiar a garota. Uma raiva silenciosa o requeimava dentro da alma, e seus dedos se fecharam sobre o cabo do punhal. Caso Garidor acordasse e voltasse...
— Quanto falta? — Tristão indagou.
Chovia desde o amanhecer. Agora, horas mais tarde, ele estava cansado, com frio, ensopado, e tinha uma suspeita crescente de que estavam perdidos.
Grendel, enfiado dentro do casulo encharcado da manta, deu de ombros.
— Um pouco.
A túnica grudava-se no corpo de Tristão como a pele de um cão molhado. E fedia como um. Era impossível saber quem cheirava pior, ele ou o gnomo.
— Disse isso quatro horas atrás — Tristão resmungou. E, quando não houve resposta, voltou-se na sela e cravou os olhos furiosos no homenzinho. — Estamos perdidos! — concluiu com desgosto.
— Não estamos, não — insistiu Grendel, indignado.
— Sabe onde estamos? — perguntou Tristão, nada satisfeito em passar a noite ao ar livre, perdido.
— Não exatamente — Grendel respondeu, com o olhar a esquadrinhar os arredores em busca de uma paisagem familiar.
— Um palpite, então. — E como o gnomo o ignorasse, disse:
— Tem alguma idéia de onde estamos?
— Na floresta — retrucou o gnomo, os pensamentos concentrados em algo distante e, ao mesmo tempo, muito próximo.
— Árvores, samambaias, musgo... — Tristão deu um tapa na testa como se tomado por uma súbita inspiração. — Por Deus! Estamos na floresta.
Grendel o encarou, furioso, mas não disse nada. Estava ocupado demais, concentrado naquela percepção fugidia.
Estavam muito próximo. O tempo e a distância percorridos eram exatamente os mesmos e na mesma direção que antes e, contudo, não havia nenhuma cabana.
— Não compreendo por que não consigo encontrar o local
— ele resmungou, frustrado.
— Foi há vários anos — Tristão ponderou. — As coisas mudam.
— Tem de ser aqui — o gnomo insistiu. — Não irei embora até que encontre.
Tristão saltou da sela. Os cavalos estavam cansados, e ele, exausto. Cumprira a promessa feita a lady Meg. Tinham se empenhado naquela busca tola porque ela pedira, embora Tristão sentisse que deveriam permanecer em Monmouth.
— Aonde vai? — Grendel indagou, tomado de pânico. — Não podemos partir quando estamos tão perto.
Tristão amarrou o cavalo a uma árvore ali perto.
— Preciso urinar.
— Oh... — Grendel murmurou, com a surpresa de alguém que não é perturbado por tais necessidades. — Por favor. Não quero atrapalhar.
— Obrigado — retrucou Tristão.
O berro do homenzinho, momentos depois, interrompeu qualquer outra necessidade biológica. Empunhando a espada, Tristão voltou à pequena clareira onde deixara o gnomo com os cavalos. As montarias encontravam-se ali, mas o homenzinho sumira. Então, um grito ecoou de novo, mais distinto dessa vez e apenas a uma curta distância.
Tristão seguiu o som e encontrou o gnomo ao lado de um muro de pedra quase completamente escondido por samam-baias e trepadeiras emaranhadas, que ele tentava afastar de lado com gestos frenéticos.
— Eu sabia que era aqui! É este o lugar! Este muro corria ao lado da cabana para evitar que os bichos da floresta chegassem à horta que Dannelore pretendia plantar. Encontramos! — anunciou, triunfante.
Mas o que haviam encontrado?, Tristão se perguntou, ao ajudar o companheiro a limpar o mato que crescera com o abandono.
Onde estavam Dannelore e John? E, mais importante, onde estava a filha de Meg?
Tristão seguiu o muro até onde terminava, à beira de uma horta — horta que não mais existia porque a floresta a reclamara.
Pouco além, mal era visível a cabana de pedras com seu teto de palha. As trepadeiras tinham escalado as paredes e pendiam dos beirais, fazendo-a parecer parte da floresta. Nunca a teriam encontrado se Grendel não tivesse tropeçado naquele muro.
Ouvia-se apenas o som da chuva em meio à quietude. Nenhuma voz nem ruído de atividade. Aberturas das janelas os fitavam como olhos cegos, e a porta empenada pendia num ângulo precário por uma única dobradiça.
— Não há ninguém aqui faz tempo — observou Tristão. — Talvez haja outra cabana nas redondezas.
Grendel meneou a cabeça, a expressão mais enrugada do que seria possível.
— O lugar é aqui.
— Como pode ter certeza depois de todos esses anos?
O gnomo parou, mantendo a cabeça ligeiramente inclinada e o rosto erguido, como um cão a farejar um coelho. E a percepção lhe chegou em murmúrios. Um som saído do passado que ainda pairava naquele local solitário e abandonado. Um som de angústia e perda, sofrimento e desespero, tão breve e tão fugidio que ele poderia julgar que não o captara, afinal. Um calor repentino emanou da bolsa que pendia de seu cinto. A mão morena, semelhante a uma garra, fechou-se em torno da bolsa.
— Sim, você esteve aqui — ele murmurou. — Faz tempo, mas posso sentir.
Tristão sacou o punhal da bainha no cinto e aproximou-se lentamente da cabana. Espiou lá dentro.
Afastou a cortina de teias de aranha que fechava a porta. Estava escuro lá dentro, a não ser pela luz acinzentada que se filtrava por aquelas aberturas escancaradas das janelas.
A cabana tinha o cheiro indisfarçável de negligência e decadência, e, por toda parte, a friagem vazia de lugares abandonados. No fogão, uma camada de cinza tinha endurecido até parecer pedra. Fazia tempo que um fogo não queimava ali.
Sujeira e gordura cobriam tudo. Se já houvera alguma mobília, esta sumira; ou fora levada embora pelos antigos habitantes, ou roubada.
Um rato, sem dúvida um morador atual, o encarou com os olhos de conta. Tristão chutou-o com a ponta da bota e lançou-o para fora da cabana.
Alguma coisa se mexeu nas sombras, num canto ao fundo. Tristão fez meia-volta e ergueu a espada, concentrando cada sentido naquele movimento, ao perceber o vulto muito maior que de um rato.
— Tenha piedade! — uma voz trêmula e fina implorou das sombras. — Não faria mal a uma velha, faria, milorde?
Milorde? Ele não era tratado assim havia muito tempo.
— Apareça! — Tristão exclamou, e quando a velha saiu das sombras, emendou: — Devagar.
— Não me faça mal — disse a mulher, numa voz débil e tremida. — Sou só e indefesa. — Abriu os braços magros e mostrou que não tinha arma.
Tristão olhou para o canto, atrás da velha. Não havia outra porta. Ela não poderia ter entrado depois dele. Como não a vira ali?
A mulher era frágil e curvada pela idade, os ombros derrubados e com uma corcunda nas costas. E horrivelmente magra. Parecia que seus ossos saltariam pela lã rústica do vestido. Os cabelos eram entremeados de prata e branco, e pendiam num emaranhado de mechas. E a pele era como pergaminho, quase translúcida, coberta de rugas. Mas, a despeito da idade, seus olhos escuros conservavam uma intensidade cortante e o encaravam com uma calma perturbadora. E Tristão não conseguiu se livrar da sensação de que a vira em algum lugar, antes.
— Há quanto tempo está escondida aqui? — indagou, tomado por um arrepio de alerta. Contudo era evidente que nada tinha a temer de uma velha cujos ossos pareciam poder quebrar a qualquer momento.
— Não estava escondida, milorde. Certamente não se pode negar a uma velha o conforto do lar num dia tão desagradável.
Tristão ficou aturdido. Lar? Mas não poderia ser. Grendel tinha certeza de que aquele era o lugar que procuravam. E mesmo que achasse difícil acreditar que a filha de Connor pudesse viver num lugar assim, o homenzinho nunca se enganava.
Como se adivinhasse seus pensamentos, a velha emendou:
— E, como pode ver, milorde, estou absolutamente sozinha.
— Talvez conheça as pessoas que procuramos. John Moore e sua esposa, Dannelore, e uma criança.
A velha sacudiu um ombro ossudo ao passar por ele e ir até o fogão e colocar um caldeirão enferrujado sobre a grade fria. Tristão franziu a testa quando ela remexeu as cinzas onde um fogo não queimava fazia muito tempo.
— Não conheço ninguém com esses nomes — ela murmurou, e depois indagou: — Poderia ajudar uma velha a fazer fogo?
Umas poucas e míseras achas de lenha, cobertas de teias de aranha, estavam empilhadas ao lado do fogão. Quando Tristão as colocou sobre a grade, a velha o agarrou com a mão ossuda pelo pulso. O aperto era forte e incomum para alguém tão frágil, e a mão era fria ao toque, mais fria que a cabana, mais fria mesmo que o ar lá fora. E, por um momento, Tristão julgou ter visto algo de relance naqueles sombrios olhos escuros. Alguma coisa igualmente fria que virá em algum lugar antes. Novamente foi assaltado pelo pensamento de que conhecia aquela mulher.
— Já nos encontramos antes?
Aquele olhar afiado como navalha se cravou nele. Um ar divertido e uma outra emoção luziram nas profundezas dos olhos sombrios.
— Eu me lembraria se tivesse encontrado um guerreiro tão belo antes. — E então, apontando para a pilha de lenha, a velha murmurou: — Umas poucas achas mais, milorde. Para manter o fogo aceso durante a noite.
Tristão colocou mais lenha no fogão. Mas continuava a sentir a friagem do toque, um frio semelhante à morte.
— Talvez você e seu companheiro queiram passar a noite — ela sugeriu ao empilhar a lenha. — Vai fazer muito frio e resta pouca luz lá fora.
A idéia pareceu penetrar no cérebro de Tristão como se fosse sua própria. Ele relanceou os olhos para a porta aberta e para a escuridão crescente da noite.
— Sim, talvez. — Por alguma razão, hesitou em aceitar o oferecimento.
— Pergunte ao seu companheiro. Um fogo traz mais conforto que dormir num chão duro e frio.
A idéia continuou a martelar em sua cabeça quando Tristão saiu da cabana.
Encontrou Grendel num lugar afastado da cabana e da horta. O gnomo estava ajoelhado no chão, debaixo dos galhos nus de uma árvore. Tinha os braços esticados, os dedos a alisar a terra lamacenta.
Não ergueu os olhos nem deu qualquer demonstração de que percebera que Tristão se aproximava.
— Eles estão aqui — disse o gnomo. Debruçou-se sobre a terra.
— Uma velha vive aqui. E não sabe nada sobre John e Dannelore.
Mas Grendel insistiu:
— Eles estão aqui.
Tristão sempre julgara o gnomo incapaz de sentir emoções. Mas, naquele momento, sua expressão era de tristeza e pesar.
— Estão mortos.
Foi quando Tristão viu a mão morena, apertada em punho, e o sangue que pingava dos dedos.
— Você se machucou! — exclamou, com mais preocupação do que gostaria de admitir. Ao forçar os dedos a se abrirem para enrolar o ferimento, algo caiu da palma do gnomo.
O pequeno objeto brilhou com a luz que definhava. Ao cair do chão lamacento, o brilho tornou-se de repente mais intenso, e depois, lentamente, se extinguiu como uma chama que morre.
Tristão pegou o objeto e virou-o entre os dedos. Sob a luz que se apagava, as marcas esculpidas no cristal polido emitiam um tênue brilho.
— Já vi isto aqui antes — disse, com certeza, a apertar a runa de cristal entre os dedos.
Embora a chama tivesse se apagado, o calor permanecia, como uma lembrança do fogo. Espalhou-se através de seu corpo, afastando o frio que se instalara dentro dele com o toque da velha. Seus pensamentos se aclararam.
— Pertence a lady Meg.
— Sim, um dos vários que ela guardou durante todos estes anos — o gnomo concordou —, enviado para os guiar até este lugar.
— E o ferimento na sua mão?
— Como pode ver — Grendel murmurou, ao virar a mão para cima, sob a luz que findava —, não há ferimento algum. O sangue que viu era deles. — Novamente seu olhar cravou-se na terra, e o gnomo repetiu: — Eles estão aqui. O que vi foi a essência da encantada, que se juntou ao poder da Luz dentro do cristal. Foi o sangue da morte deles que apareceu na minha mão.
Certa vez lady Meg mostrara a Tristão os cristais reluzentes. A luz do fogo arrancava faíscas das pedras claras, e o padrão se refletia num desenho luminoso que brincava pelo teto do quarto. E Tristão ficara fascinado.
— As runas contam uma história — ela lhe dissera então. Explicara as marcas de cada cristal, esculpidas pela mão dos antigos, longo tempo antes. O dom que possuía lhe dava a capacidade de ler a mensagem que os cristais transmitiam. Estendera-lhe um dos cristais.
— O cristal o protegerá.
Tristão pegara o cristal. Confiante do poder da pedra em seu bolso e cheio de coragem, ele enfrentara um dos moleques que sempre o humilhavam.
Uma bravata estúpida. Depois, com o lábio partido, o olho inchado e coberto de sangue, sentara-se quieto enquanto lady Meg lavava e cuidava dos ferimentos.
— Eu tinha a runa de cristal. A senhora disse que me protegeria.
— É esta a runa de que fala? — ela perguntara, tirando o cristal do próprio bolso.
Tristão quase engasgara e, em seguida, revirara o bolso fre-neticamente. Estava vazio. Lady Meg lhe pregara uma peça.
— Sim. — Meg parecia ter lido seus pensamentos. — Porque eu sabia que você só precisava lembrar-se do cristal e ter um pouco de coragem.
Desde então, ele sempre imaginava aquela runa de cristal enfiada em seu bolso quando se defrontava com uma tarefa particularmente difícil.
— E quanto à criança? Grendel meneou a cabeça.
— Não sinto nada. — Ao se virar, seu olhar cravou-se em Tristão. — Ela se foi.
— Faz quanto tempo?
— Muitas estações atrás — respondeu Grendel, enquanto segurava a runa entre as mãos e fechava os olhos.
— Como aconteceu?
— Só a criança pode nos contar.
— Onde ela está agora?
— Não tenho como lhe dizer isso.
Com uma expressão séria, Tristão pegou a espada e virou-se para a cabana.
— Talvez a velha possa nos informar.
— Não faça isso! — Grendel advertiu, seguindo-o com a rapidez que suas pernas curtas permitiam.
Tristão sentiu a friagem nos ossos antes mesmo de chegar à cabana. Estendia-se como uma mão invisível e o tocava tal como a velha o tocara. Mas quando entrou na cabana, encontrou-a vazia. A velha sumira.
— Vamos embora — Grendel insistiu. — Precisamos ir agora.
— Ela estava aqui. Eu a vi. Falei com ela.
— Acredito em você, mas devemos ir embora agora. — Grendel puxou-o pela manga. — Temos de sair deste lugar.
O frio pareceu fechar-se em torno de Tristão, envolvê-lo, espremer-lhe o ar dos pulmões. Ele mal conseguia respirar. Recuou e saiu pela porta da cabana, com a espada em riste.
— Sim.
A tempestade estava sobre eles quando chegaram aos cavalos, na beira da clareira. A neve que ameaçara cair durante todo o dia desabou em longas cortinas que cobriam as árvores e abafavam os sons da floresta.
Tristão voltou-se na sela quando deixaram a clareira. Parecia que a escuridão crescente e a neve se fechavam em torno da cabana, tornando tudo invisível. Era como se não estivesse ali. Não viu a figura solitária que se postava à porta, com a neve a cair ao redor, mas sem tocá-la, nem os olhos negros que o espreitavam, frios como a morte.
— Alguma notícia? — Grendel perguntou, ansioso, quando Tristão voltou. Mas antes que ele respondesse, o gnomo pressentiu a resposta, a mesma para cada vila e aldeia nas últimas semanas: ninguém vira a criança ou a conhecia.
Um ferreiro, num vilarejo pelo qual tinham passado dias antes, recordara-se de um homem dotado de um jeito especial com cavalos. Mas haviam se passado cinco invernos desde que ele trouxera sua montaria para trocar a ferradura, e o ferreiro nada sabia de uma criança.
— E quanto a Dannelore? — indagou Grendel. — Alguém se lembrou de uma mulher com habilidades de cura que poderia ter aparecido na vila?
Tristão estava faminto, com frio, e não dormia em chão seco fazia uma quinzena. E detestava quando o homenzinho agia daquele jeito, lendo seus pensamentos como se sua mente não tivesse dono.
— Ninguém sabia nada sobre John ou Dannelore.
— Perguntou à curandeira local? Dannelore pode ter procurado alguém para comprar medicamentos. E quanto ao padre? Eles costumam conhecer todos que passam por suas vilas. E o mercador de que nos falaram? Você o encontrou?
Com a paciência esgotada, Tristão respondeu de lábios apertados:
— Se tem tão pouca confiança em mim, homenzinho, sinta-se à vontade para entrar na vila e perguntar por si mesmo.
Grendel empalideceu.
— Não! Não posso. Você sabe muito bem que as pessoas não gostam de gnomos.
— Então, se transforme em alguma outra coisa — sugeriu Tristão, e pensou: preferivelmente em alguém que não fale sem parar nem seja tão fedorento.
Os olhos de Grendel se arregalaram ao captar a próxima idéia do rapaz.
— Uma hospedaria perto do rio? Você sabe que não posso ir a um lugar assim.
— Que pena. Pode congelar o traseiro na neve, se quiser. Eu não tenho intenção alguma de fazer isso. Quero uma comida quente, um banho demorado e uma cama seca. E uma mulher, se tiverem uma com todos os dentes e que cheire melhor que um gnomo.
— Bolas! — esbravejou Grendel. — Tudo em que você pensa é em comida e em fornicar. Não vamos ficar na hospedaria. É muito perigoso. Há toda sorte de tipos maus por perto.
— Todos os dias viajantes chegam e partem de tais lugares — reclamou Tristão e, ao ver a reação do gnomo, emendou:
— Alguém lá pode saber alguma coisa sobre a criança.
— Você vai me deixar aqui? Sozinho? — O pânico era claro na voz de Grendel. — Existem lobos por aí. Posso ser devorado.
— De jeito nenhum — escarneceu Tristão. — Não, se o lobo tiver bom senso. — E, sem olhar para trás, instigou o garanhão negro para o declive rumo ao rio.
Grendel ficou parado no meio da estrada, com a respiração a subir num penacho com o ar frio da tarde. A noite prometia ser ainda mais gelada.
— Keflech! — resmungou. — Por que sou obrigado a suportar o fardo de um mortal numa tal viagem? Por que a senhora não me acompanhou?
Sabia, porém, a resposta. Meg não deixaria lorde Connor tão gravemente ferido. E, assim, confiara nele, Grendel, com toda a esperança e fé, para cumprir a jornada.
— Ah, senhora... Poderia ter escolhido um companheiro mais decente. Esse menino que me mandou pensa apenas em comida e mulheres.
Dentro de sua mão, a runa de cristal reluziu com um súbito calor, como se em resposta.
— Sim, sim, eu sei — resmungou Grendel. — Devo confiar nele. Mas ele não deveria também confiar em mim, e não agir tão impulsivamente ou de forma tão pouco precavida? Pode me dizer?
Não houve resposta. O cristal esfriou mais uma vez em sua mão. Ou talvez a resposta fosse o silêncio. Grendel pegou as rédeas do cavalo e puxou o vagaroso animal atrás de si.
— O mínimo que você pode fazer é cooperar — reclamou por sobre o ombro.
— Este é o lugar mais reles que já vi! — Grendel exclamou, com desgosto, ao se esgueirar pelas sombras ao lado de Tristão. Conseguira alcançá-lo com surpreendente rapidez.
O cheiro de comida cozinhando se misturava ao de cerveja, ao calor do fogo e a um barulho desagradável. Por toda parte havia fumaça e sujeira. O lugar estava cheio de fregueses rudes, malcheirosos, servidos por uma mulher corpulenta, de sorriso desdentado, que era sem dúvida a esposa do estalajadeiro.
— Neste momento, eu aceito, contente, qualquer coisa reles em lugar de outra noite ao relento — Tristão anunciou e entrou na hospedaria.
Grendel não teve outra opção a não ser segui-lo. Foi empurrado para o lado por um homem grosseiro, com uma cicatriz feia do lado do rosto, que passou em busca de uma caneca de cerveja em troca de várias peles lançadas sobre o balcão do bar. Grendel se encolheu como se os bichos sem vida o encarassem.
Tristão riu.
— Alguém que você conhece? Um primo ou um tio, quem sabe...
Grendel o encarou, furioso.
— Não! Graças aos Anciãos. Mas eu teria preferido partilhar a companhia das criaturas da floresta à desses mortais, num lugar como este. Não gosto daqui!
— Então, fique lá fora — sugeriu Tristão, e viu o gnomo engolir em seco.
— De jeito nenhum.
Passaram por cima de corpos de fregueses embriagados e esparramados no chão, de fardos com peles de animais e de todo tipo estranho de criaturas inferiores. Grendel grudou-se em Tristão, mantendo-se fora do caminho dos clientes.
— Quer jogar? — um menino gritou do canto, quando passaram. — Qualquer aposta que quiser fazer, senhor. — Olhou para o punhal no cinto de Tristão. — O pote está recheado esta noite. Tudo pode ser seu. Ou tem medo de tentar a sorte? — Jogou os dados de uma das mãos para a outra.
— É outra diversão que eu procuro esta noite, menino.
— Aonde vai?! — Grendel exclamou.
— Procurar uma comida quente.
Tristão seguiu para o bar, onde as canecas de cerveja eram enchidas pela enorme mulher desdentada.
— Ótimo! maravilhoso! Ele vai em busca de comida enquanto sou obrigado a me esconder. Como iremos descobrir alguma coisa sobre a criança? — resmungou Grendel ao saltar por sobre outro corpo prostrado e seguir até o canto onde o menino jogava os dados.
Os fregueses mal notaram quando o gnomo se esgueirou entre eles e se aproximou do canto onde os dados estalavam num convite irresistível.
Ninguém o superava com os dados. Grendel nunca trapaceava; isso era para humanos. Porém sabia manipular o resultado de um jogo de vez em quando. Era divertido ver a cara dos desafiantes, sempre tão fanfarrões, quando perdiam as últimas economias.
Tristão sorriu ao ver Grendel se aproximar do barril. Depois, bateu a caneca vazia sobre a mesa. A mulher se aproximou com incrível agilidade. Mab era seu nome, de acordo com os berros que lhe dirigiam os fregueses rudes.
— Tem de pagar adiantado — disse ela, quando Tristão empurrou a caneca vazia em sua direção. — Não tem conversa, nem mesmo para um rapaz bonito como você. — Com uma piscadela e um sorriso malicioso que revelava as gengivas sem dentes, ela estendeu a mão sebosa e lhe apertou o braço.
Tristão jogou uma moeda de ouro no balcão. E imediatamente tornou-se um alvo para todo ladrão de meia-tigela e bandido assassino. Mas também mandou o recado de que poderia haver mais de onde aquele dinheiro viera. Os olhos de Mab se iluminaram de cobiça.
— Pouca gente anda com moedas assim — ela comentou, correndo a língua pelos lábios. — Pode comprar um bocado de coisas.
— O que eu gostaria — retrucou Tristão — é de comida que não tenha ficado nesse caldeirão a semana inteira, esta caneca cheia de cerveja, um banho quente em água em que ninguém tenha urinado, uma cama limpa para passar a noite e alguma jovem gentil para me aquecer.
Mab alargou o sorriso e deu-lhe um tapa no braço.
— O que haveria de querer com uma mocinha? Não sou boa para você?
Para provar sua teoria, empalmou o seio enorme e depen-durado na mão gorda e o sacudiu, para aprovação do rapaz. Não era uma visão agradável.
— Não vai achar melhor do que isto.
— Ah, Mab — Tristão deu uma piscadela para a mulher, dividido entre a incredulidade e o riso —, não creio que eu esteja ao nível de alguém como você. Preciso de uma pessoa um pouco menos qualificada.
Ela bufou.
— Parece que tem queda por magricelas. — Debruçou-se sobre o balcão. — Pode ser um bocado difícil encontrar o que você quer. — Depois emendou, pensativa: — Tem a garota, é claro.
Com um gesto de cabeça na direção da ponta da mesa sobre cavaletes, onde vários fregueses bebiam, indicou uma jovem que se esquivava da atenção indesejável de um cliente.
— Ela tem pouca carne nos ossos — disse Mab, julgando que o rapaz acharia os dotes da moça menos atraentes do que aqueles que ela lhe oferecera. — Mas, se gosta do tipo, posso mandá-la para o quarto no alto da escada.
Tristão achou a garota dolorosamente magra, mas esse era o menor dos problemas. Os cabelos de um loiro pálido escondiam parcialmente suas feições. Aquilo que ele conseguia ver mostrava um feio hematoma, sem dúvida provocado pelo último freguês que escolhera outra coisa, sem ser Mab. Havia também um machucado grande no ombro, exposto onde a manga do vestido estava rasgada e pendia, aberta.
Ela parecia não ser mais que uma criança, e Tristão ficou a imaginar que má sorte a trouxera até aquele lugar. Era óbvio que ninguém na taverna poderia alegar algum parentesco, mesmo que distante, com a garota.
— Qual é o nome dela? — ele perguntou, quando lhe veio um pensamento. A jovem tinha quase a mesma idade daquela que procuravam.
— Chama a si mesma de Kari.
— Como veio parar aqui? A mulher deu de ombros.
— Garidor a encontrou na vila. Não tinha ninguém nem lugar para ir nem comida e nenhuma roupa. Nós a recolhemos, lhe demos comida, teto e um trabalho — disse Mab, como se fosse algo de que se orgulhasse.
— Muito generoso de sua parte.
— Gosta dela, não é? — a mulher perguntou, com um sorriso. — Vai custar uma moeda. Por uma hora. Acha que pode demorar isso tudo? — Lançou um olhar para um homem marcado de bexigas, sentado ao lado do fogo.
Tristão conhecera homens como Garidor a vida toda. Eram como fuinhas e o que não tinham em tamanho excediam em crueldade. O que explicava os hematomas no rosto da mocinha. Não desejava deitar-se com ela, mas queria conversar. Se vivera nas ruas da vila, talvez soubesse alguma coisa sobre a garota que estavam procurando. Colocou outra moeda sobre a mesa.
— Mande-a levar a comida até o quarto.
Mab apanhou a moeda com a mão ensebada e sorriu de orelha a orelha.
— Por isto aqui, pode ficar com ela a noite toda.
A atenção de Grendel estava cravada no jogo de dados e no menino que jogava com tamanha perícia e esperteza que somente alguém de igual habilidade poderia reconhecer ou apreciar.
Era difícil dizer a idade do garoto ou mesmo distinguir suas feições com a roupa folgada que usava. O capuz caía sobre sua face. Ocasionalmente, a luz de uma tocha iluminava-lhe parte do rosto, revelando a pele cheia de sujeira que não precisava ainda de uma navalha.
Conforme a noite avançava e mais cerveja era consumida, mais os ganhos do menino aumentavam. Grendel começou a suspeitar de que aquilo nada tinha a ver com sorte ou habilidade, mas com esperteza. Grendel era um jogador experiente. Conhecera todos os tipos de gente, inclusive aqueles trapaceiros que colocavam um pedaço de metal no núcleo dos dados. O metal fazia os dados rolarem com a face oposta para cima. Quando a jogada podia ser controlada dessa forma, era difícil não ganhar.
A princípio, ele julgara que o menino jogava com dados viciados, tão grande era sua habilidade e o número de vezes que ganhava. Mas, conforme observava, percebeu que não havia um padrão nas combinações vencedoras. Não havia face que ficava constantemente para cima. Não conseguiu ver nenhuma razão lógica para tanta sorte.
Nem o adversário, que ostentava uma funda cicatriz na face.
Tome cuidado, Grendel avisou o menino em pensamento. O jogo prosseguiu e o arrogante Cicatriz foi perdendo. E ficando cada vez mais quieto. Entornava canecas de cerveja uma atrás da outra, enquanto observava a pilha de suas moedas diminuir.
— Ninguém tem tanta sorte assim! — esbravejou. — Você está trapaceando!
— Pode lançar os dados — o moleque disse ao homem. — Assim, ninguém poderá dizer que eu trapaceei.
Cicatriz apanhou os dados e sacudiu-os na mão. Vários outros fregueses se aproximaram e apostaram contra o menino, certos de que Cicatriz não poderia perder.
Cheio de confiança, o homem lançou os dados pelo tampo do barril. Eles deslizaram e pararam contra a borda. Os espectadores esbugalharam os olhos de incredulidade. Cicatriz jogara os dados e perdera.
Grendel não conseguia acreditar. Era como se os dados tivessem vontade própria. Um deles batera contra a borda e ficara equilibrada numa aresta. Então, como se empurrado por uma mão invisível, rolara do outro lado, mudando completamente o resultado.
— Você trapaceou! — Cicatriz espumou de raiva. Bateu o punho fechado contra o tampo do barril, fazendo os dados saltarem, e atraiu a atenção de todos, inclusive de Mab e Garidor.
— Isso é o rendimento do meu trabalho da estação inteira. Perdi tudo. Agora não sobrou nada para o inverno.
— Quer apostar de novo, então? — propôs o moleque. — O que acha de uma chance de recuperar o que perdeu?
Era uma proposta generosa, mas Cicatriz não era do tipo que quisesse parte de alguma coisa.
— Posso simplesmente tomar tudo de volta de você, moleque! — esbravejou. — Quem vai me impedir?
Garidor abriu caminho entre a multidão. Touro o seguia. Olhou para as moedas que o menino ganhara. Empurrou uma caneca de cerveja para Cicatriz. O sujeito a pegou, enxugou o conteúdo de uma só vez e bateu a caneca vazia no tampo do barril.
— Parece uma oferta justa — disse Garidor. — A chance de recuperar metade do que você perdeu. — Um sorriso mortal se espalhou por seu rosto. — Assim, Touro não vai precisar lhe arrebentar as fuças.
Como o animal, Touro parecia uma força irremovível ao lado de Garidor. E era evidente que possuía uma reputação que nem mesmo Cicatriz tinha coragem de desafiar.
O homem não ficou contente, porém não era nenhum tolo. Concordou. As moedas foram contadas, e as apostas, feitas. Garidor entregou os dados a Cicatriz, que os pegou e os sacudiu na mão. Até mesmo Mab veio juntar-se aos espectadores, com a mão nos quadris. Cicatriz lançou os dados.
Todos pareceram conter o fôlego, com medo do resultado. Os dados bateram contra a borda do barril e depois tombaram para trás. Um se equilibrou precariamente e, em seguida, caiu de lado. O silêncio dominava a hospedaria. Então, ouviu-se um suspiro de alívio. Cicatriz ganhara.
— Venha cá — disse Mab, com um tapa nas costas do homem. — Vou encher a sua caneca. E não vai custar nada.
Cicatriz ganhara de volta metade de seu dinheiro e uma caneca de cerveja. Com um grunhido, recolheu os ganhos, enfiou-os na bolsa que pendia do cinto e seguiu Mab até o balcão. Touro foi atrás como uma sombra. Mas Garidor continuou ao lado do barril.
— Metade — exigiu.
Conforme a multidão se dispersava, Grendel viu quando o menino despejou o conteúdo da bolsa sobre o barril e separou metade para Garidor. Isso explicava o interesse do homem no resultado do jogo.
Se houvesse uma briga, tudo poderia ter se perdido no meio da palha e da sujeira do chão, recolhido por quem quer que achasse as moedas. Mas se Cicatriz se conformasse com uma parte, que homem não se conformaria, depois de perder tudo?, então a briga seria evitada. E Garidor recolhia seu quinhão conforme o acordo anterior feito com o menino.
Não era nenhuma prática incomum. Com a partilha, o garoto tinha permissão para o jogo, sem medo de represália dos fregueses descontentes. Tanto o dono da hospedaria como o moleque saíam ganhando com o acordo.
O que não tinha explicação era a quantia que o menino tirara da bolsa. A parte que dividira com Garidor era bem menor que metade dos ganhos da última hora, portanto muito menor que os da noite toda. O respeito de Grendel pelo menino aumentou. E, contudo, era um jogo perigoso, esse com Garidor. E onde estava o resto do dinheiro, se não se encontrava na bolsa?
Conforme a multidão diminuía, Grendel aproximou-se cautelosamente e colocou uma moeda de pouco valor sobre o barril.
A melhor maneira de descobrir como o menino agia era jogar.
— Aquilo foi muito corajoso — comentou, enquanto observava as mãos do garoto para ver se fizera alguma troca de dados.
— O sujeito foi muito estúpido. É fácil ganhar quando as pessoas se comportam como idiotas. Ele mereceu perder.
— Ah, mas você teria perdido muito mais caso ele não recuperasse uma parte do dinheiro na última jogada. O sujeito é muito perigoso.
— Não gosto de perder. E não perderia se Garidor não tivesse interferido.
— Confiança é uma qualidade admirável. É bom ter confiança. Torna todas as coisas possíveis. Com um pouco de sorte.
— Sorte? — A expressão da boca do menino era de ligeira zombaria.
Grendel deu de ombros.
— Muita gente acredita em sorte. Novamente surgiu aquele sorriso zombeteiro.
— Tudo bem, homenzinho. Se é nisso que quer acreditar...
Os olhos de Grendel se estreitaram de suspeita. Não conseguira descobrir nada que pudesse determinar o resultado. Então, pegou os dados.
O garoto não deu mostras de preocupação. Inclinou a cabeça com um gesto de concordância. Grendel rolou os dados e, quando um deles se inclinou contra a borda do barril, o fez virar com um poderoso pensamento.
Não era pelo dinheiro. Tais coisas não tinham valor ou significado para Grendel. Estava curioso para ver qual seria a reação do garoto. Jogou várias vezes mais, e perdeu os poucos ganhos conforme continuava. Por fim, todas as moedas tinham acabado.
— Sem moedas, sem jogo! — o garoto exclamou, e recolheu os dados.
— Não tenho nada de valor. — Grendel, então, pegou a runa de cristal da bolsa do cinto. — Apenas isto. Certamente vale pelo menos uma jogada — disse.
— E se você perder? — perguntou o menino.
— Se eu perder, o cristal será seu. Mas, e se eu vencer?
O menino jogou três moedas sobre o barril, daquelas que tomara de Cicatriz.
— O cristal vale mais que isso.
— Talvez para você. Mas não vale nada para mim.
— É um cristal mágico. Veja como brilha.
— É apenas um reflexo.
— Brilha no escuro, como uma lanterna, para mostrar o caminho.
O garoto examinou o cristal com um ar de ceticismo.
— Como vou saber que você diz a verdade?
Grendel pegou o cristal, cobriu-o com a outra mão e mostrou um vislumbre do brilho que ainda permanecia. O garoto acrescentou mais três moedas às outras.
— Dez — exigiu Grendel. — Nada feito por menos.
O garoto bufou de frustração ou de raiva ao jogar mais quatro moedas no topo do barril. Grendel esboçou um sorriso.
— Agora podemos jogar.
O jogo foi rápido e furioso. Grendel ganhou a primeira rodada apenas por sorte, poupando o cristal. O menino venceu as duas seguintes. Na terceira, Grendel percebeu que estava com problemas.
Keflech! O garoto era bom. Melhor que bom. Grendel nunca vira ninguém, mortal ou não, que pudesse se comparar ao menino em perícia. Então, na rodada seguinte, o garoto pareceu perder a concentração e perdeu.
Grendel seguiu-lhe o olhar até o pé das escadas, onde Mab conversava com a menina de cabelos claros. Era magra de uma forma quase dolorosa, com um feio hematoma numa das faces. Ela sacudiu a cabeça com ar obediente, pegou a travessa de comida que Mab lhe entregou e, depois, lentamente, subiu as escadas. Não era preciso nenhum dom especial para perceber a posição inferior da jovem. Por umas poucas moedas estava ali para agradar aos fregueses. Sem dúvida era essa a razão de ter sido mandada escada acima.
O menino continuou a acompanhá-la com o olhar. E recolheu os dados.
— Não pode ir embora — Grendel protestou. — E o jogo? Vários fregueses tinham se reunido ao redor, ansiosos para jogar. O garoto entregou os dados para Grendel.
— Pode jogar. O que ganhar é seu — anunciou. — O acordo com Garidor continua de pé.
Então, virou-se para as pessoas à sua volta e anunciou que poderiam tentar a sorte com seu aprendiz. E, antes que Grendel pudesse reclamar, o garoto esgueirou-se pelas sombras e desapareceu.
O menino rumou para a escada com os olhos cravados em Garidor. Se fosse visto, haveria problemas, pois Garidor dava valor, acima de tudo, à parte que conseguia todas as noites nos ganhos do jogo. E criaria confusão se descobrisse que outro jogava os dados no lugar do garoto.
Garidor se julgava um homem de negócios com vários empreendimentos. A hospedaria era um deles. Peles e bugigangas eram comercializadas ali. Kari, a garota, também era um dos empreendimentos de Garidor. Ficara órfã, tal como o menino, e fora tirada das ruas com a promessa de comida, alojamento e uma moeda de vez em quando em troca de seu trabalho. Mas era jovem, bonita e inocente; comparada a Mab, representava um atrativo bem maior para os negócios.
Garidor a tomara, a primeira vez, na despensa atrás das barricas de cerveja. A menina ficara apavorada, sem saber o que esperar. Fora algo brutal e degradante. Como conseqüência, ela sangrara durante dias. Por fim, os machucados sumiram, apenas para serem substituídos por outros. Marcas físicas. Outras, piores, psicológicas, nunca haveriam de desaparecer, visíveis em seu olhar e ouvidas nas lágrimas que derramava, tarde da noite.
Ela queria morrer, mas o menino a convencera de que não deveria desistir. Prometera que a levaria dali quando tivesse juntado dinheiro suficiente. E era uma promessa que ele haveria de cumprir.
Depois daquela primeira vez, sempre que Garidor a queria, a menina era mandada para encontrá-lo no quarto no alto da escada. E tinha de fazer dinheiro com aqueles que freqüentavam a hospedaria. Nunca recebia uma moeda por isso; Garidor ficava atento. E lhe dizia que tinha sorte por ter uma roupa no corpo e uma refeição quente por dia.
A habilidade do garoto no jogo era outro dos empreendimentos de Garidor. Encontrara o menino na vila, depois de notar que muitos de seus fregueses trocavam suas moedas ou mercadorias por uma chance de tentar a sorte. Quando chegavam à hospedaria, estavam como patos depenados.
Com Touro ao lado, Garidor propusera ao menino uma parceria, arranjaria um canto na hospedaria onde o garoto poderia jogar em segurança em troca de uma parte dos ganhos de cada noite. O que não fora dito, mas estava implícito, era que se o garoto não concordasse, não viveria para ver outro dia.
O garoto conhecia aquele tipo de gente. Garidor era ganancioso, imundo e cruel. E quando chegasse a hora de encerrar a parceria, o moleque simplesmente sumiria. E levaria Kari junto.
O menino chegou às escadas e, com a habilidade aprendida em sobreviver, esgueirou-se para cima sem ser notado.
Havia dois quartos no segundo andar da hospedaria. Garidor e Mab partilhavam o maior no final do pequeno corredor. Um segundo quarto, menor, ficava sob as vigas da cumeeira do teto de palha.
Na maioria das vezes, o quarto era alugado para quem quisesse passar a noite. Kari dormia com freqüência no quartinho menor, onde fazia uma barricada na porta para impedir a entrada do estalajadeiro em suas andanças noturnas. Nas noites em que ambos os quartos estavam ocupados, ela dormia na despensa com o menino. Era nessas ocasiões que faziam os planos para fugir, quando o garoto tivesse conseguido dinheiro suficiente.
Naquela noite, o quarto menor fora ocupado pelo desconhecido alto e magro que portava aquele estranho punhal no cinto e a espada enrolada em couro, nas costas. E Kari fora mandada até ele.
O desconhecido bebera muitas canecas de cerveja. Além disso, pedira um banho quente, o que ajudaria a aumentar sua letargia. Com um pouco de sorte, logo dormiria de bêbado, e Kari poderia sair sem ser abusada. Senão...
A mão do menino fechou-se sobre o cabo do punhal que tirou do cano da bota. Se as coisas dessem errado, os dois seriam forçados a fugir da hospedaria naquela noite.
A porta estava entreaberta. O garoto empurrou-a com a ponta do pé. O vapor subia da tina cheia de água quente. O menino ouviu o chapinhar da água e a voz do estranho, que chamava por Kari.
— Venha cá, menina. E traga mais água. Vou precisar de uma porção de baldes para me livrar desta sujeira e do fedor.
O garoto viu que o homem estava mergulhado até o peito na tina. A mão descansava na borda e os cabelos pretos caíam molhados por sobre a beirada. Tinha os olhos fechados. Os braços pendiam do lado da tina, o corpo submerso na água.
Com passos silenciosos, o garoto entrou. Kari ergueu os olhos, assustada. Mas não disse nada ao ver que o menino levava o dedo aos lábios, pedindo silêncio.
— E a água quente? — reclamou o estranho.
— Já vai, senhor — Kari respondeu depressa e despejou o balde d'água na tina.
O desconhecido suspirou, e sua boca se curvava num sorriso de prazer.
— Traga o esfregão. Tenho sujeira até em lugares que não sabia que existiam.
Kari começou a tremer violentamente. Ficava apavorada por estar tão perto de um homem, depois das coisas que Garidor lhe fizera. Mas, se recusasse, o estranho poderia reclamar, e seria muito pior.
O garoto fez um gesto para que Kari se afastasse do sujeito. Depois, pegou o pano de ensaboar e se aproximou devagar da tina.
— E me dê aquele sabão de cinzas que sua patroa mandou —Tristão disse, de olhos ainda fechados. — Vale a pena perder um pouco de pele para me livrar desta sujeira.
— Sim, senhor. — A voz de Kari tremeu enquanto ela trocava um olhar preocupado com o garoto.
O menino pegou o pedaço de sabão de lixívia e o pano e ia jogá-los na água quando Tristão emendou:
— Me dê uma ajuda, garota. A água está ficando fria e não tenho vontade de congelar meu traseiro. Ou qualquer outra parte. — Sorriu, sentindo que ela estava de pé, atrás dele. — Não quero privá-la desse prazer.
Kari deixou escapar um pequeno gemido estrangulado. O garoto relanceou os olhos para a túnica e as calças do homem, jogadas sobre a cadeira. Vira o brilho da moeda de ouro que ele dera a Mab. Poderia haver mais. Permitiria que fugissem naquela própria noite. Fez um gesto na direção das roupas do estranho, e Kari moveu-se para elas.
— Ensaboe esse pano, garota — disse o estranho. — E ande depressa com isso.
O menino percebeu que o homem queria que Kari o lavasse. Olhou para ela. Tinha de lhe dar tempo para procurar o ouro nas roupas. Cerrou os dentes e começou a ensaboar o pano.
— Não seja tímida. — Tristão sentiu a hesitação da garota. Era muito recatada. Ele não tinha a intenção de deitar-se com ela, mas um banho não faria mal. Depois, a mandaria embora com algumas moedas a respeito das quais a velha megera não precisaria saber.
A garota começou a esfregar-lhe o ombro em movimentos hesitantes, circulares, mas sem se aventurar a ir mais além.
— Você pode fazer melhor do que isso! — Tristão exclamou. Pegou-a pelo pulso e puxou a mão para baixo, enquanto emendava, com um sorriso malicioso: — Prometo não morder. Pelo menos, não muito forte. E você pode gostar.
Escorregadio como uma enguia, o menino escapou do aperto do estranho. Com a outra mão, empurrou-o com força, fazendo com que afundasse a cabeça na água.
Quando Tristão conseguiu emergir em meio a uma confusão de braços e pernas e palavrões cuspidos, confrontou-se não com a tímida garota, mas com o brilho ameaçador de um punhal apontado para seu pescoço.
— Por nada deste mundo! — o rapazinho esbravejou.
Tristão olhou para a extensão mortal daquela lâmina e depois para o feroz olhar azul que o encarava da proteção do capuz que o assaltante usava.
Seus olhos se estreitaram. Reconheceu a túnica grande demais, usada sobre camadas de roupas e presa na cintura com uma corda, as calças muito compridas enfiadas nas botas pequenas, e as mãos que exibiam destreza e agilidade surpreendente na mesa de jogo.
Seu atacante era o menino que vira antes na taverna, que jogava com notável esperteza e perícia para alguém tão jovem, limpando os fregueses de suas moedas. Agora, o impedia de desfrutar o prazer de um banho.
Pelo fogo do inferno, que danação!, pensou ao encostar a cabeça na borda da tina. O vapor que subia da água ainda cheirava vagamente ao ensopado que fora cozido ali. Sem dúvida, teria o mesmo destino se ele continuasse na água.
— Faz semanas que só tomo banho frio em riachos — começou, quase num tom de conversa, a cabeça ainda encostada na borda da tina. Fechou os olhos e suspirou. — A última refeição quente que comi foi um mês atrás. — Abriu os olhos lentamente e encarou o garoto. — Não consigo me lembrar da última vez em que dormi em alguma coisa diferente do chão duro e frio. Isso aí não é brincadeira para criança. — Apontou para o punhal. — Alguém pode se machucar. Volte para o colo de sua mãe. Sem dúvida está procurando por você. O garoto bufou.
— Sim, alguém pode se ferir — disse com ar de riso. Então, sua voz endureceu. Os olhos azuis se estreitaram. — Mas não precisa se preocupar com minha mãe; ela não se importou comigo desde o dia em que nasci.
As palavras soaram impregnadas de ódio e desprezo. Tristão tocara fundo numa velha ferida, uma ferida muito dolorosa e antiga para alguém tão jovem. E, em algum lugar dentro do ódio e do desprezo, percebeu um anseio pela mãe e pela família que perdera, quaisquer que fossem as circunstâncias. Era algo que Tristão compreendia bem.
Havia dezenas de crianças como aquele garoto, vitimadas pela guerra e a pobreza, mesmo naqueles tempos de paz e prosperidade, desde que Arthur se tornara rei. Tinham visto conforme viajavam para o norte, morando às margens das cidades, vilas e aldeias. Sobreviviam como podiam, mendigando, revirando o lixo e furtando. Tal como aquele garoto pretendia roubá-lo.
O olhar do moleque desviou-se para a bolsa que estava entre as roupas, numa silenciosa comunicação com a jovem criada. A menina pegou-a e enfiou-a no bolso da frente da saia. O garoto, então, fez um gesto para que ela se afastasse até uma distância segura.
— Existem lugares — comentou Tristão — em que na primeira vez que um ladrão é pego, ele perde uma das mãos. Se for pego roubando uma segunda vez, perde a outra.
— Só se for pego — o garoto retrucou com demasiada confiança.
— Sim — concordou Tristão, muito sério. — Só se for pego. — E, de repente, saltou fora d'água.
O garoto não esperava por aquilo. Tristão pôde ver pela expressão em seu rosto. Mas recuperou-se depressa e, com aqueles reflexos ágeis que Tristão vira na mesa de jogo, desviou-se e investiu com o punhal, cortando o peito do guerreiro.
Tristão não tinha certeza de quem estava mais surpreso, se ele próprio, a garota, Kari, que começou a berrar diante da visão de um homem nu, ou o menino, cujos olhos se arregalaram.
O ferimento não foi profundo; ele recebera piores nos pátios de treinamento em Camelot, durante simulações de batalha com outros cavaleiros de Arthur. Mais grave que qualquer outra coisa era ter sido surpreendido por um mero garoto. Além disso, fazia frio no quarto e ele estava nu e pingando de molhado.
Os olhos redondos se estreitaram ao examinar a extensão do corpo do guerreiro com um interesse ávido que fez o estômago de Tristão se encolher.
— Faça outro movimento e eu arrancarei fora algo vital — ameaçou o moleque, olhando bem abaixo do ventre de Tristão.
— Por Deus, já chega! — praguejou o guerreiro e, num gesto que era bem mais experiente e mais rápido, arrancou o punhal dos dedos do moleque, fechou a mão em torno do pulso esguio e depois dobrou o braço do menino para trás. Ergueu-o do chão, a outra mão a apertá-lo pelo pescoço.
O moleque jogou a cabeça para trás com tanta força que o capuz escorregou para os ombros, revelando uma expressão assustada no rosto sujo e uma cascata de fartos cabelos dourados que desabou pelas costas.
Kari soltou um grito de susto.
— Você não é um menino! É uma moça!
Tristão olhou com incredulidade para as feições imundas emolduradas pela radiante massa de cabelos loiros.
Deu uma boa esquadrinhada no semblante do menino sob a luz das lamparinas. Tinha as feições muito delicadas: o ângulo das maçãs do rosto, o nariz bem-feito acima da boca recurvada, o formato suave do queixo pequeno, agora erguido em desafio. E havia curvas debaixo de todas aquelas camadas de roupa que escondiam as formas da estranha mocinha. A raiva luzia nos olhos azuis da cor do coração de uma labareda. Porém, junto com a raiva e o ar desafiador, havia uma porção igual de pasmo.
Pega de surpresa, amarrada e impotente. Não eram sensações de que gostasse. Isso a tornava vulnerável. E ela jurara nunca mais ficar vulnerável outra vez. Somado a isso, havia a indignação por ser agarrada e depois prensada contra um homem nu.
Seus dedos formigavam de vontade de ter o punhal na mão. Mas o estranho o tirara dela. Estava no chão, a vários centímetros de distância e sem utilidade. Não podia contar com Kari para ajudar. A pobre criatura estava abobada diante do que via. Tão perfeito fora seu disfarce que ninguém, nem mesmo a garota de quem se tornara amiga, tinha qualquer idéia de que ela fosse outra pessoa além daquilo que queria que acreditassem.
Contudo, se sobreviver por conta própria durante todos aqueles anos lhe ensinara alguma coisa, fora a de ser cheia de recursos. E ela era uma sobrevivente.
Com as mãos prensadas contra as costas, pouco podia fazer. Quanto mais se debatia, mais forte o estranho a apertava. Assim, em vez de lutar para se libertar, atacou, enterrando os dentes no ombro do estranho.
O gosto a surpreendeu, uma combinação do forte sabão de cinzas, o sabor metálico de sangue e algo mais que se demorou em sua boca.
Recobrou-se depressa enquanto ele gritava de dor e, surpresa, percebeu que o aperto momentaneamente tinha afrouxado. Então, ergueu um joelho com violência.
O golpe apanhou Tristão na virilha, não com muita força, mas o suficiente para fazê-lo soltar a moça completamente.
Escorregadia como uma enguia, ela caiu ao chão e rastejou até o punhal. Tristão soltou uma praga, a única palavra que conseguiu pronunciar entre os lábios apertados de dor e fúria.
Aquela criaturinha poderia ter acabado com ele se tivesse mirado melhor. Contudo, como um animal ferido, ele ainda estava vivo e era ainda mais perigoso.
A garota sentiu a mão do estranho na nuca. Então, se viu girada e jogada contra a parede do quarto.
— Faça um movimento e vou separar sua cabeça dos ombros.
Sem fôlego, humilhada, a garota se encolheu contra a parede, furiosa. Mas não era tola. Tirou as mechas de cabelos dos olhos e ficou imóvel, de olhos cravados na extensão da espada reluzente que o estranho empunhava.
O sangue minava do corte que ela abrira num dos ombros do guerreiro. Um círculo perfeito de marcas de dentes porejava sangue do outro ombro. Seu olhar desviou-se para baixo para ver o próximo ferimento. Mas recuou depressa para o território mais seguro do rosto.
Sim, ela pensou com crescente certeza, ciente do calor que lhe queimava as bochechas. Uma bela marca na face iria mudar aquelas feições bonitas e fechadas. Ou talvez um sorriso... cortado de orelha a orelha!
Teria de pensar como conseguir isso num momento mais oportuno, quando não houvesse a ponta daquela espada contra sua garganta.
— Keflech! — exclamou Grendel, do vão da porta, ao olhar para o quarto em desordem. — O que aconteceu?
A pequena mesa estava virada de pernas para o ar, a caneca e a travessa de comida, caídas no chão, e o conteúdo, espalhado. A cadeira se chocara contra o braseiro, que virara, lançando as brasas pela madeira coberta de palha do assoalho. Só não acontecera um desastre porque a tina fora sacudida e a água transbordara e apagara as chamas que haviam se iniciado entre a palha.
Aqui e ali, pequenos focos de incêndio fumegavam na palha molhada. O ar cheirava a sabão de lixívia, mato queimado, e havia um odor acre de lã chamuscada. O menino que Grendel seguira pelas escadas não se encontrava em lugar algum à vista. Kari mantinha-se agachada a um canto. Impressionante mesmo era o guerreiro, Tristão de Marc.
Estava nu como no dia em que nascera, um pé ainda plantado na água do banho, o outro no chão, por sobre a borda da tina. Sua altura era ainda mais notável sem a pesada túnica almofa-dada, as vestes e as calças. E os músculos enxutos se flexionavam e encordoavam pelos ombros e braços conforme ele empunhava a espada pronta para investir. Escorria sangue de um corte num dos ombros. Os cabelos molhados grudavam-se à cabeça e às costas. Tinha o maxilar cerrado e a expressão de seus olhos era fria como a morte.
Mesmo nu, quando muitos mortais se sentiriam mais vulneráveis, ele era uma visão formidável. Parecia completamente esquecido da nudez, ali, de pé, com a espada nivelada ao pescoço da jovem encolhida contra a parede, em meio à palha fumegante, à mobília revirada e à comida dispersa.
O peito da garota arfava a cada respiração que puxava para os pulmões. Os cabelos emaranhados emolduravam as feições ruborizadas, onde olhos azuis luziam, desafiadores.
Mas, e o garoto?
Grendel o seguira pela escada. Aquele era o único lugar onde poderia estar. Seu olhar voltou à garota furiosa e desafiadora. Examinou-lhe as roupas, a inclinação da cabeça, as mãos sujas que procuravam alcançar o punhal que jazia a vários centímetros de distância.
As roupas eram as mesmas. As mãos também. Vira aquelas mãos rápidas como um relâmpago na mesa de jogo. E tinha o mesmo jeito de inclinar a cabeça.
Impossível, os instintos mortais lhe disseram. Não poderia ser o menino. Mas a evidência estava lá, o resto facilmente escondido debaixo daquela camada de roupas amarradas na cintura. Mas por que se disfarçar?
A resposta veio-lhe com o próximo pensamento. Não era seguro para uma moça permanecer sozinha num lugar como aquele. Mesmo Dannelore e John não tinham ficado a salvo. Então, algo mais se infiltrou em seus sentidos à maneira antiga; quase irreconhecível, tantos anos fazia desde que o sentira. Como algo esquecido e longo tempo depois relembrado. O reconhecimento de um espírito afim.
— Mantenha os olhos na outra — Tristão resmungou. — Ladras, as duas, e atuam juntas. Esta aqui tentou arrancar meu coração.
— Estava mirando sua garganta! — a garota sibilou.
— Então, tem que praticar mais.
— Com todo o prazer!
— Precisa de uma lição, eu creio! — Tristão exclamou e inclinou a espada sob o queixo da jovem.
Grendel sentiu a raiva da moça, e outras emoções que lhe assaltaram os sentidos: o profundo laço de amizade com a garota, Kari; o senso de proteção que sentia, capaz de arriscar a própria vida pela outra. E outras emoções: a dor de uma grande perda, o ódio amargo, e um vislumbre da criança magoada no íntimo. Então, tudo foi oculto sob o destemor que a ajudara a sobreviver.
— Pare! — Grendel gritou a Tristão. — Não pode fazer isso.
Com um único pensamento, Grendel concentrou toda sua energia e, ao estender a mão, deslocou a espada para o lado. Furioso, Tristão o confrontou:
— O que está fazendo? Ela tentou me matar.
A interrupção era tudo de que a jovem precisava. Lançou-se sobre o punhal e saltou de novo de pé. A lâmina luziu em sua mão.
Tristão levou a espada para cima, num gesto defensivo. Em vez de se enterrar no peito dele, como a garota pretendia, o punhal resvalou pelo antebraço do guerreiro. Tristão agarrou a jovem pelo pulso e o torceu para trás.
— Talvez fosse bom que você perdesse um dedo ou dois — ameaçou, mantendo o rosto apenas a poucos centímetros do dela.
Só uma vez antes, Grendel vira tamanha força e coragem em face de tão grande disparidade. Apenas uma vez, naqueles muitos anos em que vivia entre os mortais.
A verdade sussurrou em sua mente. Uma verdade vislumbrada naquela indisfarçável coragem... Algo visto de relance naqueles brilhantes olhos azuis.
— Pare! Não faça isso! Você não compreende!
Não o escutaram. Grendel viu o punho de Tristão erguer a espada. Então, com surpreendente agilidade, o gnomo jogou-se para a frente, chocou-se contra os joelhos da garota e rolou com ela pelo chão e para longe do perigo.
— Maldição! Seu pequeno fuinha! — Tristão explodiu de raiva.
O punhal, caído no chão, estava ao alcance da garota que, num gesto rápido e ágil, estendeu a mão para recuperá-lo. Mas Grendel foi mais veloz. Não lutou para disputar a arma. Em vez disso, agarrou a jovem pelo braço.
Uma sensação de formigamento se espalhou por todo o braço da jovem. Então, o homenzinho tocou-a no pescoço. Um calor estranho percorreu-a, a lhe aquecer a pele e o sangue. A escuridão toldou-lhe a visão. Ela tentou lutar, focar a imagem do guerreiro, mas não conseguiu. Percebia-se caindo. Esforçou-se por dominar o torpor. Então, sentiu apenas aquela escuridão envolvente.
Tombou no chão, aos pés de Grendel.
— Que diabo você está fazendo? — esbravejou Tristão.
— Impedindo você de sofrer um ferimento mais grave — Grendel retrucou.
— Eu tinha tudo sob controle. Ia fazer a ladrazinha perder um dedo ou dois por tentar cortar minha garganta. Sem dúvida ela trapaceia no jogo também.
— Sim, trapaceia — Grendel concordou, bastante admirado de não ter se dado conta disso antes. — Mas poderia não ser bom para você lhe cortar um dedo ou dois.
— Do que está falando?
Tristão estava furioso. Seu banho e o jantar estavam arruinados, suas roupas, molhadas. Pelo cheiro acre no quarto, o fogo queimara bem mais que um pouco de palha. Os ferimentos em seu ombro e peito latejavam, para não mencionar uma parte mais sensível de sua anatomia que aquela ladra atingira com o joelho.
Pensou em lady Alyce e imaginou se poderia agradá-la novamente, pois a dor se espalhava por seu ventre, dando-lhe náuseas. Apontou a espada para Grendel.
— Do que está falando? — resmungou de novo por entre os dentes cerrados.
O gnomo lançou um olhar para a garota amontoada no chão.
— Estou falando da filha de lady Meg.
—Está maluco! — Tristão exclamou. — Esta...—enfatizou a palavra ao apontar a ponta da espada na direção na garota inconsciente — não é a filha de Meg.
— Não tenho tempo para discutir com você — retrucou Grendel. Ergueu a cabeça, como um cão a farejar o perigo, e franziu a testa. — Precisamos deixar este lugar. Agora. — Encarou Tristão. — Sugiro que vista suas roupas.
— Minhas roupas estão molhadas — resmungou Tristão. — E, pelo cheiro neste quarto, é bem provável que estejam queimadas também.
Grendel deu de ombros e se inclinou para a garota imóvel.
— A escolha é sua, é claro.
— Você não pode ter certeza de que esta é a garota.
Um lampejo de dúvida perpassou pela expressão do gnomo. Deveria ter sentido mais cedo, no entanto não percebera nada. Só quando as emoções da jovem tinham ficado expostas e vulneráveis é que ele captara a verdade. Será que ela possuía tão pouco dos poderes da mãe que ele não pudera detectá-los? Ou havia algo mais?
— Onde estão seus poderes, se ela é filha de Meg? — Tristão indagou, quase como se lesse os pensamentos do homenzinho.
— Por que ela não sabia quem éramos? Pode responder?
— Não posso. Mas tenho certeza de que é a filha de Meg.
— Era verdade. — Vamos levá-la conosco.
— Como propõe que façamos isso, pequenino? Vai enfiá-la no seu bolso?
— Você vai me ajudar.
— E se eu recusar?
— Eu poderia transformá-lo num sapo, ou numa lombriga no traseiro daquele sujeito enorme que chamam de Touro — ameaçou Grendel.
— Isso não funcionava quando eu tinha dez anos. Não é agora que vai funcionar.
— Não me tente a paciência, menino!
Um ruído que vinha das escadas atraiu-lhes a atenção.
— É Garidor! — Kari gritou. Até então, parecia paralisada, encolhida num canto. — Vai me matar com certeza.
Os olhos de Grendel se cravaram em Tristão.
— O que vai ser?
Tristão olhou para a apavorada garota. Ela era propriedade de Garidor. Ele poderia culpá-la pelo que acontecera e certamente a puniria. Pela aparência do rosto machucado, talvez não sobrevivesse ao próximo castigo.
Tristão apanhou as roupas no chão e ordenou à garota:
— Passe a trava na porta.
Ela hesitou, como se incerta de onde haveria mais perigo, no quarto ou com Garidor.
— Barre a porta! — Tristão repetiu, num berro. A garota saltou de pé e passou a tramela na porta.
As calças e a túnica estavam molhadas, e a manta de pele, ligeiramente chamuscada, mas Tristão vestiu-as mesmo assim. Depois, calçou rapidamente as botas e enfiou, na frente da túnica, a bolsa com as moedas que a garota tentara roubar. Em seguida, embainhou a espada e colocou-a nas costas. Pegou o punhal do chão e enfiou-o no cinto, enquanto seguia para a janela. Abriu as venezianas.
Estava um frio de doer lá fora. A garoa se transformara em granizo. Nevaria pela manhã. Tristão bufou de desgosto ao pensar no braseiro quente, num bom jantar e até mesmo numa cama vazia, que seria bem preferível ao que os aguardava fora da estalagem.
— Ajude-me a amarrar estes lençóis! — exclamou Grendel. — É uma longa queda até o chão.
Amarraram dois lençóis, mas não foi o suficiente. Kari aproximou-se, hesitante. Tirou o pesado xale de lã dos ombros e entregou-o a Tristão.
— Não terá nada para se aquecer — ele disse, gentilmente.
— Prefiro passar frio — ela murmurou, tímida. E deu um Pulo de susto quando a porta estremeceu com os murros do lado de fora.
Tristão amarrou o xale na ponta do lençol e jogou a outra ponta pela janela.
— Terá de dar certo — disse ao olhar para Grendel. — Você vai primeiro. Baixarei a garota depois.
Os olhos de Grendel se estreitaram.
— Tenha certeza do que vai fazer — ameaçou o gnomo, ao saltar o parapeito e agarrar-se nos panos pendurados.
Tristão praguejou baixinho, conforme descia o gnomo devagar até o chão.
Puxou os lençóis de volta e fez um arnês com o xale. Enfiou-o pelos ombros da garota desmaiada. Não era nenhuma criança, pensou, quando suas mãos roçaram a suavidade de um seio sob as roupas com que ela se disfarçava. E a despeito da aparência suja, seus cabelos eram limpos e cheiravam a mato molhado.
Os cílios, de um dourado-escuro, ocultavam os olhos que o tinham encarado com tanto ódio. Os lábios estavam entreabertos, a respiração, curta.
Será que era a filha de Meg?
Achou difícil acreditar; no entanto, a prova poderia ser aquele loiro suave dos cabelos, o arrebitado do narizinho e os olhos notáveis que luziam com um fogo azulado. Mas o queixo forte, o arco das sobrancelhas e aquela coragem inquieta o faziam lembrar-se de outra pessoa: do homem que via como pai, irmão, amigo e muito mais. O homem a quem entregara sua vida.
Desceu a garota suavemente pela abertura da janela, enquanto as batidas na porta mudavam para o som característico de um machado contra a madeira. Logo, Garidor abriria passagem.
Tristão apanhou o pedaço de pão do chão e passou as pernas pela beirada da janela. Com o pão preso entre os dentes, desceu pela corda de lençóis. Era toda a comida que poderiam ter no futuro próximo.
— E quanto a Kari? — perguntou Grendel, quando o rapaz chegou ao chão e enfiou o pedaço de pão na frente da túnica. — Não pode pensar em deixá-la. Sabe o que aquele homem fará com ela.
— Talvez quisesse levar a velha megera junto, para cozinhar para nós — Tristão sugeriu, com a boca apertada. — E quanto ao caçador de peles? Poderia nos ser útil. Por que não anunciar a todos na hospedaria que podem vir conosco também?
Grendel suspirou. Nunca se acostumava com os mortais e seu senso de humor.
— Não podemos deixá-la! — exclamou, indignado.
— Temos dois cavalos — Tristão ponderou. — Como pretende viajar se somos quatro?
— Você tinha intenção de comprar outro cavalo quando encontrássemos a filha de Meg. Simplesmente terá de comprar dois.
Pelo barulho que vinha do quarto no alto, não havia mais tempo para discutir o assunto. Grendel soltou um assobio agudo.
Kari apareceu na abertura da janela. O gnomo fez um gesto a ela para que descesse. A garota hesitou. Mas então a porta cedeu, e ela tomou a decisão. Subiu no parapeito. Era uma descida precária até o chão. A jovem escorregou pelos lençóis até a metade do caminho e depois se soltou e saltou para o solo.
Grendel desamarrou o xale e enrolou-o nos ombros da garota.
— Você precisa vir conosco — disse a ela. E quando a menina relanceou os olhos para o guerreiro, emendou: - Foi idéia dele. Está decidido a levá-la.
Tinham amarrado os cavalos no abrigo das árvores próximas. Montaram: a filha de Meg, ainda desacordada, na sela com Tristão, e a jovem Kari com Grendel. Cavalgaram até que não puderam ir mais longe, tão exaustos estavam os animais. A tempestade se fechava no alto, e o granizo se transformou em nevasca que os cegava.
Buscaram abrigo numa choça de pastor que encontraram. Era pequena e o frio penetrava pelos vãos das paredes esburacadas. Mas tinha um teto que os protegia da neve e do vento cortante.
— Que cheiro maravilhoso! — Tristão comentou, referindo-se ao o fedor das ovelhas que se abrigavam na cabana. Acalmou o cavalo inquieto. — E pensar que eu poderia estar numa cama quente e com a barriga cheia de comida.
— Sim — concordou Grendel, que amarrava a montaria exausta. — E, sem dúvida, com uma faca nas costas também.
Estava escuro como uma tumba dentro da choça. Grendel remexeu na bolsa que carregava e encontrou o cristal. Comprimiu-o com força entre as palmas e fechou os olhos, concentrando seus poderes.
O cristal começou a aquecer-se em suas mãos. Quando o gnomo as abriu, a pedra brilhava com uma luz que se espalhou pela cabana.
— Ohhh! — Kari exclamou, ao saltar do cavalo e se aproximar com cautela para ver. — Como fez isso?
Tristão bufou.
— Ele é um gnomo. Lança encantos com poções malcheirosas e palavras mágicas.
Grendel olhou, furioso, para o guerreiro, enquanto Kari recuava e não se atrevia a se aproximar mais.
— Ele é fraco da cabeça — o homenzinho explicou em voz baixa, e tocou a têmpora para indicar que Tristão era abobado. — Não ligue para ele.
— E você fala demais para quem é tão pequeno — resmungou Tristão, ao tirar a garota inconsciente do lombo do cavalo e colocá-la sem muita gentileza sobre a palha que forrava o chão.
— Tome cuidado, seu estúpido! — advertiu Grendel. — Não a machuque.
— Ora essa. É uma criatura tão delicada, tão frágil, não é mesmo? Sua mãe e seu pai ficarão orgulhosos. Se realmente ela é quem você diz...
— Eu lhe digo, ela é Rianne — insistiu o gnomo. — Não cometo erros com coisas assim.
— Por que não percebeu mais cedo?
Aquela mesma pergunta incomodara Grendel durante as longas horas desde que haviam fugido da hospedaria. Não tinha resposta.
— É a filha de lady Meg. Você vai ver.
Tristão removeu a sela e os arreios do cavalo e colocou-os sobre a palha. Com um ligeiro sorriso, dirigiu-se a Kari.
— Não o deixe zangado. Esse aí tem um temperamento horrível. É conhecido por transformar as pessoas em sapos quando o aborrecem.
Sem saber se era verdade ou brincadeira, a moça deu um passo para trás. Grendel encarou Tristão, furioso.
— Eu deveria mesmo transformar você num sapo.
Então, voltou-se e prendeu o cristal num gancho que havia numa tábua ali perto. O brilho iluminava a choça e se refletia nos olhos sonolentos das ovelhas amontoadas para se aquecer. O homenzinho se debruçou sobre a jovem inconsciente. As roupas a haviam protegido do frio, mas tinha as mãos geladas. O frio não deveria tê-la afetado. Seria possível que estivesse enganado?
As feições eram as de Meg, mas nada mais havia que sugerisse a herança especial com que ela nascera. Pousou a mão com gentileza no rosto da garota. Nunca mais a vira desde que era um bebê. Contou mentalmente os anos. Ela não era mais uma criança, e sim uma jovem mulher adulta.
O que acontecera a Dannelore e John? Havia quanto tempo a garota vivia por conta própria? O que acontecera a ela nesse intervalo de tempo? E o que sabia do legado com que nascera? Sentiu o poder dentro da jovem, como uma chama em repouso, hesitante e incerto.
Kari aproximou-se, e olhou incerta para a garota inconsciente encolhida sobre a palha.
— Ela vai ficar bem? — perguntou com timidez.
Como o próprio gnomo, Kari ainda tentava se acostumar ao fato de que o menino que conhecera não era um menino, afinal.
— Sim, estará bem pela manhã. Mas é melhor deixá-la dormir por enquanto. — Olhou para Tristão, que se aproximava, e franziu a testa quando o guerreiro passou por ele e se debruçou sobre a garota adormecida. — O que está fazendo?
Tristão pegou um pedaço de couro e amarrou os pulsos da jovem com firmeza.
— Tomando precauções — resmungou. Firmou o nó. A garota não se mexeu. — Contra um punhal nas minhas costas. Mesmo que seja a filha de Meg, você não sabe com certeza o que ela pode fazer. Não sabe nada sobre ela. E, é evidente, ela também nada sabe de você.
O gnomo o encarou, indignado.
Tristão levantou-se. Estendeu a manta sobre a palha a alguma distância.
O gnomo ficou a resmungar consigo mesmo.
— Que praga, por que a senhora não mandou um verdadeiro cavaleiro para me acompanhar? Não, manda um idiota!
Inclinou-se sobre a garota inconsciente e colocou-lhe a manta em torno dos ombros. E então, numa atitude inusitada para uma criatura de seu mundo, fez uma prece silenciosa por aquilo que estava por vir pela manhã.
Rianne sonhou velhos sonhos; de lugares que vira e outros que desconhecia; com rostos de pessoas das quais não conseguia se recordar; e com uma voz que a chamava, vinda da bruma. Sonhou com fogo, sangue e morte. Viu-se dentro das chamas. Viu os mortos a jazer a seu redor por todos os lados. Sentiu um calor repentino nas mãos. Quando baixou o olhar, estavam cobertas de sangue.
— Você não pode escapar — a voz murmurava em seus sonhos. — O destino aguarda.
Era sempre o mesmo. Ela estendeu as mãos diante de si, conforme as palavras a alcançavam através da neblina. O sangue escorria por seus dedos. Julgou que pudesse ter se ferido, não sentia dor. Havia apenas aquela voz e o sangue, que lentamente desapareceu até que tudo que restava era uma única gota. Rianne a fitou e viu-a transformar-se aos poucos numa pedra suavemente polida e incrustada num grosso anel em seu dedo. E, ao fitá-lo, tornou-se consciente da imagem de alguém que caminhava em sua direção através da bruma.
Era um homem, e no entanto não era. Era alto, com longos cabelos negros esvoaçantes. A bruma rodopiou em torno dele, e o homem pareceu desaparecer. Então, a névoa se dispersou mais uma vez e ele estava muito mais próximo. Tão próximo que ela podia ver-lhe os olhos.
Eram de um azul brilhante como o coração de uma chama e pareciam enxergar o âmago de sua alma. Então, era a si própria que fitava, seus olhos que a encaravam de volta, e era ela que se aproximava através da névoa...
Rianne acordou num sobressalto.
Lentamente, como a bruma que se dissipa sob o calor do sol da manhã, o sonho recuou, e as imagem se recolheram às sombras do sono.
Aos poucos, ela tomou consciência dos arredores: o cheiro de terra úmida, o estalar seco de palha debaixo de seu rosto, o cheiro pungente de animais, a textura áspera da manta de lã, e a respiração profunda daqueles que dormiam perto.
Seus olhos se ajustaram gradualmente ao ambiente. Através da escuridão reinante, Rianne notou a claridade acinzentada que penetrava pelas paredes e por um canto do teto, no alto.
Estava frio. Sua respiração fumegava em meio às sombras. E o cheiro de neve recém-caída era agudo no ar. Tinha as mãos geladas. Tentou esfregá-las e sentiu de imediato a restrição dos laços de couro.
Onde estava? O que acontecera?
Lembranças da noite anterior na hospedaria vieram-lhe à mente; o estranho alto, o ouro que ele entregara a Mab. Ela lhe interrompera o banho. Pensara em feri-lo e pegar o ouro. Fora rápida com o punhal. Mas ele fora ainda mais rápido.
Saltara da água como um demônio e pulara sobre ela. Mesmo agora, ainda conseguia enxergá-lo, completamente nu, reluzente de molhado, espantoso, apavorante, fascinante.
Vira homens sem túnicas antes, mas nunca um com absolutamente nada. Ele parecia alheio ao fato, do jeito com que se postava, orgulhosamente nu.
Lembrou-se dos músculos rijos que corriam como cordas sob a pele dourada dos braços, conforme ele empunhava a espada com mortal facilidade; da extensão dura e lisa do estômago como se fosse moldada em ferro, e da forma cheia da musculatura do peito.
Recordou-se de como ele não recuara quando o ferira, nem mesmo depois, quando o sangue pingara do corte. E se recordou do gosto dele, daquela estranha essência máscula e perturbadora.
Expulsou as lembranças da mente e concentrou-se nos laços, nos pulsos. Livrou-se deles facilmente e continuou a ouvir os sons em torno de si enquanto esfregava as mãos para aquecer os dedos entorpecidos.
Ficou deitada por algum tempo enquanto a sensação gradualmente lhe voltava às mãos. Duas outras pessoas dormiam ali perto. Ela ouvia o ressonar profundo e ritmado. Tinha certeza de que um era o homenzinho que acompanhara o guerreiro até a hospedaria. Se ele estava ali, então o companheiro não poderia estar longe.
A pessoa que dormia mais perto dela era dolosamente magra, enovelada debaixo de um grosso xale. Cabelos lisos e pálidos se espalhavam pelas beiradas do agasalho. Seu coração se apertou. Aqueles homens também tinham prendido Kari. Pelo menos estavam juntas e longe de Garidor. Mas qual seria agora o destino de Kari?
Quem eram aqueles estranhos? E por que ela e Kari tinham sido feitas cativas? Seriam mercadores? Ou feitores de escravos, talvez? Mesmo no reino de Arthur, tais coisas existiam. Especialmente ali, naquelas regiões frias do norte, onde cada homem fazia suas próprias leis.
Agachou-se nas sombras. Dentro da choça, Rianne divisou os contornos das ovelhas abrigadas ali. Um dos animais se remexeu e depois se acomodou com um profundo suspiro. No canto ao fundo, ela distinguiu as formas mais altas de dois cavalos.
Só dois? Onde estava o estranho alto? Sem dúvida dormia com os cavalos. Deixara o homenzinho para tomar conta dela e de Kari.
Rianne não conseguia se lembrar de nada depois que aquele pequenino a tocara, na hospedaria. Será que a golpeara? Só se recordava da ligeira pressão da mão dele em seu ombro e depois aquela escuridão envolvente que desabara sobre si.
Silenciosamente, aproximou-se de Kari e colocou a mão sobre a boca da garota adormecida.
Kari acordou de imediato, os olhos arregalados de medo. Então, arqueou as sobrancelhas num gesto de reconhecimento. Rianne viu a confusão e as perguntas que surgiam no olhar da garota. Comprimiu um dedo contra os lábios, pedindo-lhe silêncio.
Fez um gesto para a abertura da choça. Kari meneou a cabeça em sinal de entendimento. Assim que a garota se levantou, Rianne percebeu, surpresa, que Kari não estava amarrada como ela ficara. Pegou-a pelo pulso e puxou-a para a abertura da cabana.
Lá fora, a neve cobria o chão como um tapete, sob o céu de um cinzento perolado. A respiração de Rianne subiu como uma pluma pelo ar frígido da manhã. Não tinham provisões nem armas, só a bolsa de moedas e as bugigangas que ganhara no jogo, escondidas dentro da túnica. Franziu a testa, incapaz de compreender a atitude dos captores, que não tinham lhe tirado a bolsa enquanto estava inconsciente.
A neve recente era macia sob os pés e abafava os passos. As duas se esgueiravam pelas sombras. Havia um curral atrás da choça, sem dúvida onde o pastor prendia o rebanho durante a estação da tosa. Depois, uma suave sucessão de colinas ondulantes. O terreno declinava numa estreita faixa onde a vegetação nua era mesclada com pinheiros até a beira da floresta.
Rianne muitas vezes buscara abrigo nas florestas em vez de em vilas ou aldeias. Seria quase impossível para alguém encontrá-las até que estivessem bem longe. Fez um gesto a Kari para que mantivesse o silêncio.
Seguiram pela faixa coberta de neve rumo à linha das árvores. As roupas de Rianne eram bastante quentes, e as botas que usava mantinham seus pés secos. Mas as vestes de Kari eram de um tecido ralo e ela calçava apenas chinelos. Bem depressa estaria ensopada, batendo os dentes entre os lábios arroxeados.
Tinham quase alcançado a cobertura da mata quando Kari ergueu os olhos, cravou-os adiante com um ar de espanto e arquejou.
— O que é?
A expressão do rosto de Kari estava congelada de terror. Rianne girou ao redor para ver o que a assustara tanto e deu de cara com seu captor.
Sob a luz fria da manhã, postado entre elas e a liberdade, o guerreiro parecia mais formidável, mais impressionante e até mesmo assustador, ali, recostado contra o tronco de uma árvore, as botas cruzadas nos tornozelos, os braços cruzados no peito, os olhos acastanhados luzindo com divertida satisfação.
— Bom dia — disse. — O que estão fazendo aqui?
Rianne não viu razão para mentir. E certamente não pretendia deixar-se intimidar. Conhecera vários outros bem piores que aquele estranho.
— Estamos fugindo — anunciou calmamente. E então, perguntou com rispidez: — O que você faz aqui?
— Estava me aliviando — Tristão respondeu, num tom igualmente calmo.
Olhou para Kari, que tremia da cabeça aos pés, agachada atrás de Rianne. Seus lábios já estavam arroxeados. Magra como uma vara, tinha uma palidez pouco saudável no rosto. Desprotegida, com apenas aquele vestido fino, não sobreviveria por muito tempo.
— Está frio aqui fora — comentou Tristão. — E há outra tempestade a caminho — emendou, num tom nada agressivo. — Voltem para a cabana e se aqueçam.
Kari hesitou e agarrou-se no braço de Rianne, incerta do que fazer.
— Vá — Rianne lhe disse, por fim, sabendo que não havia esperança de fuga. Pelo menos, por enquanto. — Tudo ficará bem — afirmou.
Observou quando Kari retornou à cabana, a relancear os olhos para trás, e depois entrou.
— Amarrei a corda com firmeza — comentou Tristão, quando ficaram sozinhos. — Nenhum homem poderia escapar. Você é muito habilidosa.
Não havia medo nos olhos da jovem, apenas desafio e coragem.
— É preciso ser habilidosa quando se trata de sobrevivência. — Seu olhar desceu para o punhal preso ao cinto do guerreiro; o mesmo punhal com que ela o cortara na hospedaria.
— Gostaria de ter isto de volta, não? — Tristão perguntou, a mão pousada ligeiramente no cabo do punhal e observando a reação da garota.
Com aquela mesma ousadia e candor, ela retrucou:
— Gostaria de arrancar seu coração.
Tristão jogou a cabeça para trás e caiu na risada. Riu até as lágrimas encherem seus olhos e ameaçarem rolar por suas faces.
Na fria madrugada antes do alvorecer, com os longos cabelos loiros espalhados pelos ombros e uma expressão assassina no rosto adorável, a jovem o encarava como alguma corajosa princesa guerreira das histórias que seu avô lhe contava, quando Tristão era criança. Céus, não pensava nelas fazia um longo tempo. A única coisa que faltava era um escudo preso numa das mãos e uma espada na outra.
Não era essa exatamente a reação que Rianne esperava ou pretendia. No mínimo, julgara que seria surrada e depois arrastada de volta para a cabana, na ponta da espada, e amarrada e amordaçada. Mas aquela risada a pegou desprevenida e a confundiu. Que tipo de captor era ele?
— Pare, milorde! Não se zangue! — berrou Grendel, alarmado, ao se lançar pela neve na direção dos dois. — Isso não passa de um simples engano. A garota não pretendia lhe fazer mal algum. O gnomo acordara um pouco antes, despertado por uma premonição, e se vira sozinho na choça, apenas com a companhia das ovelhas e dos dois cavalos.
Não ficara muito surpreso que Rianne tivesse fugido. Para alguém tão habilidosa com as mãos como ela e com poderes desconhecidos, escapar dos laços era brincadeira de criança. O que o surpreendera fora não ter sentido sua partida.
Eram espíritos afins. Uma afinidade que permitia, às criaturas como eles, reconhecer o vínculo no outro. Não sentira tal vínculo quando a haviam encontrado pela primeira vez na hospedaria. Não houvera essa sensação de conexão.
Agora, ela tentara fugir e fora capturada. Poderia ser quase divertido se não fosse a expressão perigosa no semblante de sir Tristão.
— Não há engano algum, homenzinho — Tristão retrucou calmamente. — Ela pretendia escapar e teria conseguido caso eu não a pegasse no ato.
— Que sorte que você as encontrou. — Grendel tentou minimizar a tentativa de fuga. — Como aconteceu de surpreendê-las?
— Ele estava se aliviando — Rianne informou, com rude franqueza.
— E isso não é tudo — Tristão a interrompeu. — Ela gostaria muito de arrancar meu coração. — Seus olhos se estreitaram. — A mãe ficaria muito orgulhosa. Isto é, se ela for quem você diz que é.
Grendel empalideceu. As coisas não caminhavam como ele desejara. Primeiro, a descoberta de que John e Dannelore estavam mortos fazia muitos anos, e a filha de Meg desaparecera. Depois, encontrá-la naquele lugar pavoroso, disfarçada de menino, vivendo como uma mendiga. Ou talvez ladrão fosse o termo mais apropriado.
A jovem não era nada daquilo que ele esperava ou imaginava. Não era recatada ou bem-educada, nem aparentava ter consciência do legado com que nascera. Em vez disso, sobrevivera num buraco infernal, convivendo com os piores elementos nos limites do reino de Arthur, tinha os modos e o temperamento de um porco-espinho, para não mencionar a franqueza e a crueza de palavras que poderia se rivalizar com qualquer homem.
Se fosse a filha de Meg...
— Do que ele está falando? — Rianne indagou. — O que sabe sobre minha mãe?
Grendel sentiu-lhe a raiva crescente e tentou tranqüilizá-la.
— Tudo em seu devido tempo. Venha, vamos voltar para a cabana. Está muito mais quente lá.
Rianne não se moveu.
— Não estou com frio.
— Você pode querer ficar aqui e discutir, mas eu, não — Tristão declarou. — Está frio e você vai voltar para a cabana.
— E se eu não for?
Ele nivelou a espada à altura do pescoço da jovem.
— Então, serei forçado a cortar fora algo importante. Com a lembrança do confronto anterior e o resultado ainda vívido em sua mente, Rianne concluiu que, no momento, a prudência era melhor que a raiva e a teimosia.
— Um dia eu creio que terminaremos essa pendência, mi-lorde — ela jurou, entre os dentes cerrados.
— Espero ansioso por essa hora, milady. Mas, por enquanto, você vai voltar para a cabana.
Rianne não teve outra escolha a não ser obedecer.
Kari estava sentada no canto dos fundos, com as pernas dobradas, os braços passados em volta do corpo, tentando se aquecer. Ergueu os olhos, e o alívio perpassou por sua expressão ao ver Rianne.
O vento da tempestade que se avizinhava penetrava como faca pelos vãos das paredes. Rianne tirou a túnica e estendeu-a à garota. Era debruada de pele de carneiro e, embora manchada de lama e gordura, tratava-se de um agasalho bastante quente.
— Tome. Não tem sentido você ficar enregelada até a morte, quando eu tenho mais que o suficiente para me manter aquecida.
Kari pegou a túnica e enfiou-a pela cabeça. Era enorme, caía pelos ombros e as pontas das mangas iam muito além dos dedos.
— Ninguém nunca se importou que eu passasse frio antes — disse a menina, hesitante. — Obrigada.
— Não precisa me agradecer. É minha culpa que você esteja nesta situação. Se não fosse por mim, você estaria...
— Com Garidor, na hospedaria — retrucou Kari. Sua voz falhou e ela não disse mais nada, como se pronunciar o nome daquele homem fosse mais doloroso do que poderia suportar. Enrolou-se na túnica e baixou os olhos.
Rianne encontrou, entre a palha do chão, a tira de couro com a qual o guerreiro a prendera. Passou a tira pela cintura de Kari, prendendo as dobras da túnica para que se ajustasse melhor. A garota a encarou com ar magoado.
— Você mentiu para mim — disse com voz sumida e desapontada, como se não acreditasse na transformação que vira.
— Não menti para ninguém. Você acreditou naquilo que quis, só isso.
Rianne suspirou, exasperada, tomada por um estranho sentimento de culpa. Por tanto tempo vivera por conta própria que não estava acostumada a se sentir obrigada a dar satisfação de seus atos. Desde pequena, só contava consigo mesma. Sentimentos de amizade por alguém eram novos e difíceis de lidar. Mas não tão difíceis como a confusão e a mágoa que via em Kari.
— Eu era muito pequena quando perdi minha família — explicou. — Estava sozinha e não tinha ninguém em quem me apoiar. Nas semanas e meses que se seguiram, vi coisas que nunca esquecerei. A vida é dura para as crianças, mais dura ainda para uma criança sem alguém para protegê-la. — Viu o olhar de simpatia na expressão magoada da garota. — É costume considerar uma menina sem valor algum até que chegue a uma certa idade — murmurou ao se recordar de outras coisas.
— E ser forçada a cumprir as ordens de quem quer que seja que pense que é dono dela — Kari emendou, dizendo palavras cheias de amargura.
Rianne concordou.
— Disfarçada de garoto, tornei-me invisível para os outros. Ninguém prestava atenção em mim. Eu era capaz de ir aonde me agradasse, sem medo de ser machucada por alguém. Estava segura. — Como sempre, afastou as lembranças dolorosas.
— E sua habilidade com os jogos? — perguntou Kari. Rianne sorriu.
— Era muito mais seguro que roubar.
— Mas Garidor tomava metade de tudo.
— Isso é o que ele pensava. — Os olhos azuis reluziram com malícia. — Não tinha como saber quanto eu ganhava nos jogos, e os fregueses não costumavam se vangloriar de suas perdas. Kari riu, deliciada.
— Você mentiu para ele!
— Nunca. Eu o enganei. Ele acreditou no que quis. A quantia que eu pagava a Garidor era uma ninharia perto do valor que escondia.
Kari ficou espantada.
— E se fosse pega?
— Não tinha intenção de me fazer apanhar por Garidor. Kari relanceou os olhos na direção do guerreiro, que fora cuidar dos cavalos.
— O que vai acontecer com a gente agora? Eles certamente irão nos matar.
Rianne meneou a cabeça.
— Se fosse esse o propósito, já o teriam feito.
Rianne começou a trançar os cabelos, enquanto olhava o guerreiro, que cuidava do cavalo inquieto amarrado a um canto da cabana. O estranho tinha a espada ao alcance da mão e o punhal que tomara dela preso no cinto. Rianne precisava encontrar um jeito de recuperá-lo. Levantou-se e limpou a palha das calças. Jogou a trança para trás.
— Não sei, mas vou descobrir.
Tristão viu-as conversando baixinho. As duas tinham se amontoado num canto, a trocar murmúrios. Suspeitava de que a principal preocupação era escapar, e não ficou surpreso quando a jovem que Grendel insistia ser a filha de Meg se aproximou.
O que teria de agüentar?, pensou. Lágrimas ou ameaças?
Ah, as mulheres... Jovens damas, de alta ou baixa estirpe, usavam as duas artimanhas com a esperança de obter o que queriam.
Nem uma coisa, nem outra. Rianne chegou perto do cavalo, sem medo, e estendeu a mão para a crina sedosa.
— O último que tentou perdeu três dedos — Tristão avisou, esperando que ela puxasse o braço.
O garanhão inclinou a cabeça, os olhos escuros fitaram-na com intenso interesse. Tristão ficou a observar, igualmente interessado. A jovem não se retraiu e chegou mais perto. Pousou a mão no pescoço do animal e afagou-o gentilmente. Em vez de mostrar os dentes e reagir, agitado, Frisian esfregou o foci-nho no ombro de Rianne.
O garanhão preto era um animal magnífico. Ela nunca vira uma criatura tão elegante como aquele corcel negro. Correu a mão pelo lombo acetinado e sentiu o calor do sangue e os músculos que estremeciam sob seu toque. Havia pequenos arranhões e cortes na pele macia, mas, para sua surpresa, os pequenos ferimentos estavam limpos e nenhum infeccionado, sem dúvida devido ao cuidado do homenzinho, que ainda não retornara. Era uma criatura estranha, aquele pequeno. Difícil determinar se se tratava de um criado ou de um igual ao guerreiro.
— Óleo de milefólio vai curar as feridas mais depressa e sem deixar cicatriz — disse Rianne ao deslizar a mão pela perna dianteira do animal.
— Difícil de achar enterrado debaixo de montes de neve — Tristão retrucou.
— Não se souber onde procurar. Não pensei que alguém que empunhasse uma espada com tanta perícia tivesse conhecimento de ervas e remédios.
— Nem sempre fui perito com a espada — admitiu Tristão
- As as lições mais dolorosas são aquelas que nunca esquecemos. Aprendi cedo os benefícios do óleo de milefólio.
.— Realmente — Rianne murmurou, com a recordação dos velhos sonhos a emergirem —, as lições mais dolorosas a gente não esquece.
Algo de inexplicavelmente vulnerável e não-intencional deu a Tristão um vislumbre que ele não previra a respeito daquela jovem. Então, desapareceu por trás da aparência fria daqueles olhos.
— Tenho algumas moedas de ouro e prata escondidas! — Rianne exclamou. — Qual é seu preço para soltar a mim e a outra garota?
Ora, ora, nem lágrimas nem ameaças nem chantagem emocional, mas uma transação de negócios. Dinheiro em troca de liberdade. Tristão espantou-se do mesmo jeito de quando descobrira que ela não era um menino, mas uma mulher de tirar o fôlego de tão linda, mesmo suja e vestida de trapos.
— Não é uma questão de ouro, milady — ele respondeu. — É uma questão de honra e dever.
Ela o encarou com ar incrédulo.
— O que sabe você de dever e honra? Não passa de um ladrão, de uma pessoa sem princípios.
Tristão mordeu o lábio para impedir a gargalhada que lhe subiu à garganta.
— O que é isso? O roto falando do esfarrapado? Rianne foi pega de surpresa pelo insulto que ele lhe devolveu.
— Faça seu preço — ela repetiu, certa de que alguém como Tristão não saberia contar, muito menos pensar em nada, além de umas poucas moedas para comprar cerveja e a próxima mulher.
— Gostaria que houvesse um preço — ele afirmou. — De bom grado eu diria e acabaria com isso. Mas não posso.
— Por que não? É um assunto simples.
— Porque o homenzinho ali resolveu de outro jeito. — Olhou para Grendel, que se aproximava.
— Ele?! — Rianne exclamou, incrédula. — Será que você é também um covarde?
— Não sou nenhum covarde, milady. Mas aprendi que existem coisas neste mundo que devem ser respeitadas e observadas com atenção, principalmente quando vêm em pacotes pequenos.
— Podia ouvir os dois discutindo da beira da floresta — Grendel reclamou ao descarregar alguns odres de água que recolhera no riacho. Sua expressão era séria. — Precisamos deixar este lugar. Não é prudente ficar tão perto da vila.
— Tem razão — concordou Tristão. — Quando a tempestade passar.
— Agora! — insistiu Grendel. — Tenho um mau pressentimento.
— O que é? — indagou Tristão, os sentidos em alerta. — Viu alguma coisa no riacho?
O gnomo sacudiu a cabeça com ar sombrio. Tirou uma pena da manga.
— Além do riacho.
A transformação exigira toda sua perícia e concentração. Tais coisas estavam quase fora do alcance de seus poderes limitados. Mas fora necessário, depois do que sentira na cabana no coração da floresta. E ao voltar como um pássaro e ver as ruínas fumegantes da hospedaria de Garidor. Apertou a mão no cristal, escondido na bolsa em seu cinto, e sentiu o calor reconfortante.
— Precisamos ir embora.
Parou de nevar logo depois do meio-dia. O grupo não interrompeu a viagem, mas apressou os cavalos. Rianne cavalgava com Tristão no corcel negro, enquanto Kari seguia com o homenzinho na velha montaria. Grendel não entrara em detalhes sobre aquilo que vira quando se transformara em pássaro, mas Tristão sentira que, fosse o que fosse, era muito sério.
— Podemos parar agora? — Rianne perguntou, por entre os dentes cerrados, na tentativa de manter o controle da bexiga, que ameaçava estourar.
— Ainda não — respondeu Tristão com secura. — Restam umas poucas horas de luz. Precisamos cobrir a maior distância possível.
— Temos de parar agora! — insistiu Rianne.
— Ainda não., Vamos parar quando houver abrigo suficiente para a noite.
A garota puxou as rédeas que Tristão segurava com as mãos enluvadas.
— Temos de parar agora ou eu vou urinar nas calças!
— Quer nos matar? — berrou Tristão.
Assustado, o cavalo refugou, mordendo a brida. Enquanto Tristão lutava para mantê-los nas sela, Rianne escapou de seu braço e saltou no chão. Caiu, mas logo ficou de pé e correu Pela neve na direção da folhagem espessa dos pinheiros.
Tristão desmontou, prendeu o cavalo numa árvore próxima e lançou-se pelo pinheiral atrás de Rianne. Grendel também saltou ao solo. Não estava preocupado que Kari tentasse fugir. Estava preocupado com Rianne.
Rianne poderia facilmente esquivar-se dos perseguidores. Porém não tinha comida nem cavalo e muito menos noção de onde se encontrava.
Não era a primeira vez que estava por conta própria. Sobreviveria, disso tinha certeza. Sobrevivera antes. Contudo pensou em Kari.
Prometera levar Kari para a abadia, em Glastonbury, onde, ouvira dizer, a garota poderia ficar bem distante de gente como Garidor. E pretendia cumprir a promessa.
Tristão irrompeu por entre as árvores, espada na mão, uma sucessão de palavrões a anunciar sua chegada.
— Que diabo você está fazendo? — berrou. Então, parou, quase caindo sobre a moita atrás da qual a jovem se agachara.
Ela o encarou com fria compostura e exclamou, sem um pingo de constrangimento:
— Aliviando minha bexiga!
Ele poderia facilmente estrangulá-la. Em vez disso virou-se, embaraçado, talvez pela primeira vez na vida.
—Você poderia ter matado a nós dois—Tristão a informou, por entre os dentes.
— Já disse isso — Rianne retrucou, ao se levantar e erguer as calças. Passou por ele ao sair do mato. — Sempre se repete? — indagou. E voltou na direção de onde haviam deixado os cavalos.
Vigie as moças — Tristão resmungou, ao enfiar uma perdiz que caçara num pedaço de galho verde e colocá-la para assar sobre o fogo. — Estão planejando como escapar.
— Estão conversando sobre a necessidade de roupas mais quentes e... — o gnomo declarou, com um olhar de soslaio para o guerreiro — a imensa aversão de Rianne por você.
— Como pode essa moça ser filha de Meg e lorde Connor? É mal-educada, desavergonhada e completamente sem modos ou escrúpulos. E uma arrematada ladra!
— Está sozinha faz muito tempo — Grendel ponderou. — Não teve ninguém em quem confiar a não ser em si mesma. Parece que me lembro de outro que tinha o mesmo jeito inculto e poderia ter terminado da mesma maneira se não fosse tomado como um filho por um senhor gentil e sua esposa. — Relanceou o olhar para o rapaz.
— Como é que ela não sabe nada sobre os pais? — indagou Tristão. — E os poderes? Deveria ter algo de lady Meg nela. E, no entanto, não vimos nada nessa moça que indique ao menos um elo com lady Meg, além de uma remota semelhança de feições.
Grendel ficou pensativo. Quanto a jovem sabia de seu passado? Afinal, Dannelore tivera algum tempo para contar a ela a respeito das coisas que precisava saber? Do legado dos poderes da Luz que a ligavam ao mundo além da morte? Daqueles que haviam ido antes? Dos Anciãos? Do conselho dos Instruídos? Ou de Merlin, que era o filho do passado e o guardião do futuro?
A garota parecia nada saber dessas coisas. Tinha apenas aquela habilidade incomum nos jogos, o que poderia ser algo que simplesmente aprendera para sobreviver, e a cor rara dos olhos.
E Grendel não poderia voltar a Monmouth, com lorde Connor à beira da morte, sem ter certeza de que a jovem era, de fato, a filha de Meg. Não poderia falhar com sua senhora.
Rianne sentiu aquele olhar pensativo sobre si através do fogo e relanceou os olhos para o homenzinho. Várias vezes o pegara a observá-la assim e ficara a imaginar o que ele pensava por trás da expressão meditativa.
Ele a chamara de Rianne. A palavra parecia ter saído dos murmúrios dos sonhos que assombravam o seu sono. Ninguém a chamava por algum nome fazia um longo tempo e, no entanto, instintivamente, ela sabia que aquele era o seu nome. Era como abrir as portas do passado, ouvir o som de seu nome de repente gritado num tom de aviso, e os guinchos de alguma criatura selvagem a se misturar aos berros dos agonizantes.
Grendel viu aquelas mesmas imagens na conexão telepática que de súbito se estabeleceu entre os dois. Havia apenas fragmentos, dolorosos e cruéis em sua crueza, em fugidios relances que o aturdiam. E então, também de repente, sumiram, e tudo que restou foram lágrimas silenciosas, vertidas a sós na escuridão.
Grendel não era inclinado a emoções mortais, nem era afetado por elas. Era uma criatura de um outro mundo, e tais coisas não faziam parte dele. Contudo, naquele momento, experimentou pela garota uma tristeza e um sofrimento de dilacerar o coração, tão intensos que lágrimas inundavam seus próprios olhos.
— Estou aqui, menina — seu pensamento murmurou a ela.
Rianne ergueu os olhos. Era como se alguém tivesse lhe dito alguma coisa. No entanto, a seu lado, Kari comia em silêncio uma das frutinhas que o homenzinho encontrara. Do outro lado
do acampamento, o guerreiro estava acocorado diante do fogo e atiçava as brasas sob a perdiz no espeto, perdido nos próprios pensamentos. Apenas Grendel a observava.
Ele meneou a cabeça em assentimento e pareceu que murmurara em sua mente: Você não está sozinha.
Com um gesto brusco, Rianne se levantou, inquieta e desassossegada. Tristão também se ergueu, com a mão no punhal. Grendel pousou a mão no braço do guerreiro.
— Deixe-a ir.
Tristão encarou-o, incrédulo.
— Está louco? Ela vai fugir!
— Deixe-a ir.
Rianne olhou de um para o outro. Nenhum deles fez qualquer tentativa de impedi-la de se afastar.
— Traga a manta e a comida — disse para Kari.
A garota olhou-a com ar confuso e depois obedeceu depressa, recolhendo as frutinhas e as nozes na dobra do xale.
Rianne pegou um odre de água. Sem dizer palavra, recuou até o limite do acampamento, levando Kari consigo. Ao ultrapassarem o alcance da luz da fogueira, ela voltou-se e empurrou Kari para a frente, na direção da escuridão da floresta.
A garota estava apavorada. Rianne podia perceber pela respiração arquejante. E sentiu o medo como se fosse seu.
Nunca sentira medo. Não, desde aquela noite, longo tempo no passado. E, mesmo então, não fora medo o que sentira. Fora raiva e ódio ao ver aqueles que amava mortos diante de seus olhos. Bloqueou as imagens que passavam de relance por sua mente mais uma vez, e concentrou-se unicamente na trilha que jazia adiante.
Parou de repente. Kari agarrou-se a ela, e seus soluços de pavor misturavam-se aos arquejos em busca de ar. Rianne sentiu os pensamentos atraídos de volta para a clareira, tão claramente como se o gnomo a chamasse. Pegou Kari pela mão e fez meia-volta.
Tristão ergueu os olhos. Não teriam apostado num retorno. Kari acomodou-se ao lado de fogo, tremendo, as mãos estendidas para se aquecer. Aceitou de bom grado uma perna da perdiz assada e mastigou-a com avidez. Rianne acocorou-se a alguma distância. Seu olhar encontrou o de Grendel.
— Quem é você?
O fogo morria e o frio instalou-se ao redor. Tristão colocou mais lenha sobre as brasas. Kari caíra adormecida fazia algum tempo, encolhida sob o calor da manta que Rianne lhe dera. Nem Grendel, nem Rianne pareciam notar o frio da noite.
O gnomo contou tudo àquela que julgava ser a filha de Meg. Falou de Merlin, de sua amizade com Arthur, e dos poderes das Trevas e da Luz. Contou do portal que ligava o mundo a que pertenciam ao mundo mortal, a jornada que Meg fizera longo tempo no passado, e o preço que pagara por permanecer no mundo humano com o pai de Rianne.
Explicou os poderes que Meg um dia possuíra; que ela não era uma criatura mortal, mas um ser imortal que se transformara para poder ingressar no habitat humano. Falou das visões que abriam uma janela para o futuro, de seu poder de cura, e de sua capacidade de convocar as forças da natureza: terra, vento, água e fogo.
Então, falou sobre a criança que nascera do amor de Meg e lorde Connor. Uma menina de rara e incrível beleza que se parecia com a mãe, mas que também possuía o espírito do pai. Uma criança de poderes e habilidades desconhecidos.
Falou também da visão terrificante que Meg tivera quando a filha estava apenas com algumas semanas de vida. Um horror de sangue e morte que alcançava a criança, e a decisão difícil, que lhe partira o coração, de mandar a filha para longe, para um lugar seguro, aos cuidados de uma amiga confiável.
Finalmente, contou-lhe do ataque a Monmouth, semanas antes, dos ferimentos que lorde Connor recebera, e da resolução de Meg de que a filha deveria ser trazida para casa antes que fosse tarde demais.
— Minha senhora mandou isto — disse, tirando a runa de cristal da bolsa no cinto.
A pedra captou a luz do fogo, e as chamas cintilavam nas facetas do cristal, como se queimassem lá dentro.
Grendel relanceou um olhar para a garota. Rianne fitava o cristal como se estivesse em transe; as chamas brilhantes refletiam-se no azul de suas pupilas. E, por um momento, Grendel teve certeza de que sentia uma conexão abrindo-se — uma janela para o passado.
Algo no íntimo de Rianne queria acreditar naquilo que Grendel contara; a criança solitária que havia em seu âmago estava ansiosa por encontrar um elo com a família e o lar. Mas havia outra parte que se recusava a aceitar, porque aquela alma machucada estivera sozinha por muito tempo e aprendera a confiar apenas em si mesma.
A conexão se perdeu quando a janela foi fechada com firmeza. O único som era o uivar do vento nas árvores e o estalar do fogo a consumir a seiva da madeira.
— Essas coisas de que falou — disse ela, depois de algum tempo —, os poderes das Trevas e da Luz... Transformação? Visões do futuro? — Meneou a cabeça. — São histórias para criança dormir. Não existem.
— A dúvida pertence ao ser mortal que há em você. Precisa entender com a parte que não é mortal.
A jovem sacudiu a cabeça; a expressão do rosto estava igualmente fechada.
— As coisas de que fala são impressionantes — murmurou. — Pense no que eu poderia fazer se possuísse tais poderes. — Sorriu. — Eu poderia conjurar um sortilégio e ter tudo que quisesse. Precisa me mostrar como funciona. Existe uma poção mágica que eu possa usar contra meus inimigos? — Esfregou as mãos com um ar maroto. — Talvez eu transforme a todos em sapos. Não! Já sei. Vou transformá-los em sapos de duas cabeças! Com verrugas!
Pegou uma vara da beira do fogo e levantou-se, fazendo pose.
— Acho que arranjarei uma aflição para Garidor. Algo bem pavoroso. Uma corcunda, talvez. Ou duas. Não! Já sei. Pústulas!
Os olhos de Kari se arregalaram. Grendel meneou a cabeça. Estaria equivocado?
— Pústulas enormes, doloridas, inflamadas — Rianne continuou, acalentando a idéia. — Por toda parte. E, para Mab... Acho que vou transformá-la numa porca, assim ela pode fuçar na sujeira e na lama em busca de comida, e imaginar se será a próxima refeição na mesa de alguém.
Tristão ocultou um sorriso com a mão ao observar a cena, enquanto, ao lado, o gnomo olhava como se tivesse algo entalado da garganta.
— Basta! — explodiu Grendel. — Não quero ouvir mais nada! Você tem razão — disse para Tristão. — Não pode ser aquela por quem procuro. É mal-educada, grosseira e completamente sem nenhuma qualidade superior. Para não mencionar que parece uma mendiga e cheira igual a uma também. Eu não a levaria nem uma légua para perto do castelo de Monmouth! Keflech!
Aos resmungos, enrolou-se na manta ao pé do fogo. Deitou-se todo embolado, ainda praguejando baixinho.
Rianne fitou Tristão com os olhos arregalados e ar inocente.
— Foi alguma coisa que eu disse? Ele a olhou, pensativo.
— Possivelmente várias coisas que você disse — retrucou, ao desenrolar o pelego e estendê-lo perto da fogueira com um gesto de desgosto só de pensar em passar outra noite no chão duro e frio. — Acho que Grendel acreditou em tudo que você disse.
— Então, não há razão para nos manter presas — ela ponderou, para surpresa de Tristão. Aproximou-se da outra garota e estendeu ao lado a manta que ele lhe dera. — Eu e Kari partiremos pela manhã — anunciou, depois puxou a coberta até os ombros e virou-se para o calor do fogo.
Seu olhar encontrou o de Tristão através do reluzente brilho das brasas. E, por um instante, pareceu que as chamas queimavam nas profundezas azuis. Então, os olhos se fecharam e Rianne mergulhou no sono.
Era alvorada quando Tristão acordou, com os primeiros raios prateados a se filtrarem pelas árvores. Não nevava mais. O sol aparecia no horizonte, aquecendo a terra, fazendo a neblina subir das encostas com o ar frígido da manhã.
Ele jogou de lado o pesado pelego e levantou-se. Espregui-çou-se, esticando cada músculo dolorido. Agachou-se depois diante das brasas, que eram tudo que restava da fogueira. Alimentou-a com mais gravetos, folhas e pinhas e atiçou as chamas até que cresceram mais fortes e a fumaça pungente se ergueu.
Do outro lado, o gnomo continuava a dormir, curvado numa bola dentro da manta grossa, como uma fuinha em sua toca. Então, o olhar de Tristão percorreu o acampamento. Levantou-se de um salto. As moças tinham sumido.
Pegou a espada e atravessou a clareira. Ajoelhou-se na neve macia e encontrou rastros frescos. Não podiam ter ido longe. Seguiu as pegadas na neve rumo a um lago que ele vira de relance no dia anterior, bem perto do acampamento.
Os rastros seguiam uma trilha pelas árvores até a beira do lago. Ali, desapareciam completamente na margem. Tristão olhou primeiro numa direção e depois na outra. E seus olhos se arregalaram de incredulidade.
Rianne estava de pé na beira da água, onde uma ponta de terra se estendia para o lago e depois se curvava, criando uma pequena piscina de águas rasas. Tirara a túnica de lã e as várias camadas de roupa, que pendurara num galho próximo. Vestia apenas as calças, as botas e uma camisa sem mangas de tecido fino. A ponta da camisa estava enfiada nas calças. O tecido não oferecia nenhuma proteção contra o frio, mas ela não parecia se importar.
Então, ajoelhou-se na beira do lago e mergulhou um pano na água gelada. Esfregou os braços, o pescoço, as mãos e o rosto.
Tristão aproximou-se silenciosamente enquanto ela continuava a banhar-se. A pele de Rianne parecia luzir em tons dourados com o sol nascente. Os raios a emolduravam e acariciavam a curva do queixo voluntarioso, o arco da garganta, as maçãs altas do rosto, e depois explodiam em faíscas no cetim dos cabelos, soltos da trança.
Como uma criatura selvagem e livre, ela sacudiu a cabeça, a cascata reluzente de fios de ouro a escorrer por seus ombros, caindo até a cintura, parecia que se integrava ao sol — uma figura dourada, de fogo sedoso.
Tristão percebeu o instante em que Rianne soube que ele se encontrava ali. Viu na rigidez repentina de sua postura, na mudança da respiração, no ligeiro inclinar da cabeça. Então, naqueles olhos de um azul incomum quando ela se virou e o encarou.
A camisa era tão fina que ele podia ver o dourado da pele por baixo, o contorno dos seios e o tom mais escuro dos mamilos, que se comprimiam contra o tecido.
Quando Tristão se aproximou, não notou qualquer sinal de timidez ou vergonha nela, nem a modéstia estudada das mulheres que ele conhecera. Não se virou ou fugiu. Em vez disso, encarou-o sem culpa, sem falsidade ou o menor constrangimento.
— Sempre se banha quando há neve no chão e gelo na beira da água?—Tristão perguntou ao afastar uma mecha de cabelos dos ombros de Rianne e sentir a textura sedosa entre o indicador e o polegar.
Ela puxou os cabelos com um ligeiro sacudir da cabeça.
— Se me der vontade, e particularmente se sou acusada de cheirar como uma mendiga.
Ela não cheirava como uma mendiga. Tinha o aroma do mato banhado pelo sol depois da chuva, o perfume do vento num dia de verão, que traz consigo o cheiro de terra e de flores. Do tempo em suspenso, como a carícia terna da bruma quando se ergue, lânguida, ao surgir da aurora.
Nem parecia uma mendiga. Os dedos de Tristão deslizaram pela curva do ombro e escorregavam para a corrente de ouro, para pegar o pequeno cristal que pendia do pescoço de Rianne.
— Isto se parece muito com a runa de cristal que Grendel carrega com ele — comentou.
A respiração da jovem tornou-se lenta e contida. Mas a pulsação em sua garganta se acelerara. Ela puxou o cristal, seus dedos a se fecharem em torno dele. Seus olhos se desviaram de Tristão.
—Não passa de uma bugiganga que eu encontrei — a jovem respondeu.
— Onde?
— Não me lembro.
Um grito de pavor quebrou a calma da manhã.
— Kari — Rianne arquejou.
Ela saiu correndo na direção do som. A superfície macia do gelo se rompera, expondo o lago cinzento abaixo e a garota apavorada que se debatia na água gelada. Kari se aventurara a caminhar sobre o gelo, e este cedera sob seus pés.
Grendel, que também percebera o sumiço das jovens e fora procurá-las, correu para à beira da água.
— Uma corda! — gritou para Tristão. Precisamos de uma corda!
— Não há tempo!
Tristão escorregou pela margem e se aproximou da superfície gelada, numa tentativa desesperada de alcançar Kari. Sabia que a morte poderia acontecer em questão de minutos. Deitou-se pela extensão do gelo, que estalou devido ao seu peso, e enfiou a mão pela abertura. Roçou a de Kari uma vez e, então, a jovem afundou. O gelo começou a se partir sob o corpo do guerreiro.
— Você precisa fazer alguma coisa! — Rianne gritou, agarrando o braço de Grendel. — Ela vai morrer!
O gnomo cravou os olhos nela. Sabia que estava assumindo um grande risco. Porém tinha de saber. Não podia crer que tivesse se enganado. E com a ajuda dos Anciãos, Kari não morreria.
— Não posso — disse, abrindo os braços num gesto de impotência. — Não sei nadar. Mas você pode salvá-la. Tem o poder dentro de si.
— Está louco! Eu não posso! É impossível! —- Porém, enquanto discutia com ele, mais a vida de Kari se esvaía.
Tristão estava encharcado, a respiração ofegante. Enfiou a cabeça pela abertura, a procurar abaixo da superfície por algum sinal da garota. Mas ela sumira.
— Não posso — murmurou Rianne, a garganta fechando-se com as lágrimas não derramadas.
Tristão arrancou a túnica e as botas e preparou-se para escorregar pelo buraco no gelo.
Rianne o encarou, incrédula. Entre aqueles que conhecia, a vida alheia valia muito pouco. Ninguém nunca se dispusera a pôr em risco a própria vida pelo outro.
Grendel soube o instante em que ela se decidiu. Foi como se finalmente os pensamentos da jovem se abrissem para ele e, naqueles pensamentos, o gnomo visse de relance tudo que ela era e vivenciara: o sofrimento do passado, a perda, a solidão, a parte que era mortal, com emoções muito humanas, e a criança interior — a parte que Rianne negava, mas que a tinha conduzido por todos os anos de solidão —, o legado com que nascera, o poder da Luz que lhe era inerente como o sangue que corria por suas veias e o coração que batia em seu peito. Contudo ela continuou a negar, mesmo enquanto arrancava as botas.
— Se você estiver enganado, homenzinho, então terá a morte de nós duas em suas mãos. E juro que o assombrarei até que você se torne pó.
Antes que Tristão pudesse impedi-la, Rianne estava na água. Então, sumiu sob a superfície.
O frio a retalhou como uma faca que lhe arrancou o ar dos pulmões. Cada instinto a impedia a bater os pés e voltar à superfície.
Você pode fazê-lo. Está dentro de você. Eu vi.
As palavras surgiram em sua mente sem ser desejadas.
Abra seus pensamentos, abra seus sentidos. Livre-se daquilo em que acredita. Aceite o que está dentro de você.
Mesmo que ela quisesse afastá-las, as palavras a dominavam.
Busque a Luz em seu íntimo. Deixe-a guiá-la. É parte de você.
Você não sente o frio. Não precisa de ar dentro dos pulmões. Abra seus olhos. Tente alcançar. A força está aí. Use a força. Use o poder da Luz.
Rianne bateu os pés com força, nadando para o fundo da água escura.
— Seu idiota! — Tristão gritou para Grendel. — Tudo isso é sua culpa, seu arrematado tolo! Simplesmente não pôde aceitar que ela não seja a filha de Meg!
Estava furioso. De todas as coisas que o gnomo tinha feito, nada justificava aquilo: sacrificar a garota para provar algo que não existia.
Empurrou o gnomo de lado e correu para o acampamento. Puxou o corcel negro pela rédea e voltou com ele com toda a pressa até a beira da água. Em seguida, desenrolou uma corda e amarrou-a com firmeza em torno de uma pedra. Se houvesse alguma chance de salvar as jovens, era aquela.
Prendeu a outra ponta da corda no pescoço do cavalo e preparou-se para jogar a pedra pela abertura no gelo. O peso da rocha iria esticar a corda até o fundo do lago e oferecer uma linha de guia até a superfície. Segurou a corda numa das mãos e preparou-se para mergulhar na água.
Bem abaixo da superfície do lago, Rianne concentrou-se no brilho que começara a se expandir de um pequeno ponto de luz. O calor espalhou-se como fogo líquido através de seu sangue, expulsando o frio e aliviando a dor que lhe comprimia os pulmões.
Você tem o poder dentro de si. É parte de você. Aceite-o. Aposse-se dele. Torne-se una com a Luz.
As palavras a guiaram, levando-a de volta no tempo, para dentro de um mundo em seus primórdios, através de um portal para outra dimensão que existira havia muitos anos, quando Rianne e aqueles como ela iniciaram a existência, primeiro ao sentir o fogo a queimar dentro de si, depois ao se apoderarem do poder da Luz e tornarem-se unos com ele.
Era como caminhar através da bruma fria. Um passo, depois outro, a buscar além da escuridão e além da névoa. Então, viu Kari.
Estava apenas a alguns centímetros adiante, sem se mover, suspensa na água gelada, olhos fechados, braços abertos, como se nos últimos momentos tivesse lutado para chegar à superfície e as forças lhe faltassem.
Rianne a alcançou. A mão, depois o braço. Prendeu Kari pelo torso e, em seguida, rumou para o alto com fortes golpes dos pés, a puxá-la consigo.
Encontrou a corda que cortava a água, agarrou-se nela e seguiu-a até a superfície. Então, mãos fortes a alcançaram, fechando-se em torno de Kari e puxando-a para fora.
O gelo quebrou-se e desabou sob o peso dos dois quando Tristão agarrou a garota inanimada. Com a outra mão, ele segurou-se na corda e gritou ordens ao garanhão negro, que recuou para longe da beira da água, com Grendel a puxá-lo fre-neticamente pelos arreios. Tristão sentiu a superfície dura sob os ombros; então, em suas costas, e finalmente se viu arrastado para terreno seguro.
Soltou Kari e olhou para trás, à procura de Rianne. Ela se agarrava com ambas as mãos na corda, ainda na água. Ao chegar à abertura no gelo, Tristão quase caiu ao escorregar na superfície lisa.
— Pegue minha mão!
A mão que segurou a dele estava surpreendentemente quente.
— Não vou soltá-la — Tristão disse ao agarrá-la pelo pulso e puxá-la com toda a força.
Rianne uniu suas energias às dele. Lutou contra o peso da água gelada que a arrastava para baixo e conseguiu rastejar para fora da abertura. Em seguida, os dois se arrastaram na direção da margem.
Grendel enrolara Kari na manta grossa de pele e lhe esfregava as mãos e os braços com gestos aflitos, tentando aquecer os membros congelados. Os lábios da jovem estavam arroxeados, assim como as pálpebras. Não se percebia o bater do coração nas veias do pescoço.
— Maldito seja você! — Tristão praguejou. — Poderia ter matado as duas.
— Não há tempo para isso agora! — o homenzinho esbravejou, a olhar ansioso para Rianne. — Você ainda pode salvá-la. Tem o poder da Luz. Use-o.
— Não sei como! — exclamou Rianne. — Não tenho conhecimento ou capacidade!
— Está dentro de você. Faz parte da sua natureza, tal como respirar. Atraia o poder da Luz como fez quando foi resgatá-la — disse Grendel. — Deixe que o poder a guie. Precisa apenas expulsar suas dúvidas. Está aqui! — Tomou-lhe a mão e vi-rou-a para cima, entre as suas. — Em seu toque. Precisa somente alcançar aquela fagulha de vida dentro de Kari, conec-tar-se com ela, dar-lhe sua força, energizá-la com as batidas de seu coração. Imagine isso, menina, e acontecerá.
Preciosos segundos se escoavam. Se Rianne não fizesse nada, Kari morreria.
Imagine e acontecerá. Ela debruçou-se sobre Kari, dividida pela dúvida. Você precisa apenas expulsar suas dúvidas. Está em seu poder, em seu toque... Rianne abriu a mão e pousou-a sobre o coração de Kari.
Dê-lhe sua força. Dê-lhe a batida de seu coração. Imagine, e acontecerá.
As palavras mesclavam-se a seus pensamentos conforme Rianne fechou os olhos e imaginou — o lago de luz que reluzia dentro de si, o brilho que se expandia através da conexão de sua mão, o som débil e quase imperceptível que deu lugar a um pulsar e, em seguida, às batidas constantes de um coração, ao calor do sangue que fluía pelas veias enregeladas e àquele primeiro arquejo trêmulo, seguido por uma golfada de água expulsa por entre os lábios de Kari.
Kari iria sobreviver. Diante da fogueira, enrolada no manto grosso de pele, recobrava as forças, com pouca lembrança de qualquer coisa depois que caíra pela fenda no gelo. Se pelo menos Rianne não se recordasse... Porém, lembrava-se de tudo, em vívidos e terríveis detalhes.
Quem era? Uma bruxa? Feiticeira? Maga? Encantada? Eram palavras que não tinham sentido a não ser em histórias na hora de dormir para assustar criancinhas.
Seria verdade? Por muito tempo ela se fizera aquelas mesmas perguntas, mas não havia respostas. Estavam perdidas nas imagens de fogo, sangue e morte, quando perdera seus guardiões — aqueles a quem chamava de John e Dannelore.
Rianne se fechara a essas lembranças junto com o sofrimento daquela perda, recusando-se a pensar nisso. Agora a porta para o passado se abrira ao ser forçada a salvar Kari.
Era como abrir uma represa com as lembranças que ela bloqueara e se recusara a ver, exceto nos sonhos, quando surgiam sem ser convidadas.
E ela se recordou de tudo; da inquietação incomum dos cães naquela noite, do desassossego de Dannelore evidenciado em pequenos gestos — no jeito em que inclinava a cabeça, como se procurasse escutar alguma coisa, os olhares apreensivos para a porta —, no vento repentino além das janelas fechadas e, então, finalmente, na decisão de Dannelore de mandar Rianne para o local secreto onde colhiam ervas na floresta.
Ela não queria ir. Não tinha medo. Medo não era algo que compreendesse. Mas Dannelore insistira. E, assim, Rianne saíra, seguindo as instruções de Dannelore de que não deveria olhar para trás, não importava o que acontecesse, não importava o que ouvisse; e não deveria tirar a runa de cristal do pescoço, de maneira alguma.
Sempre a usara. Dannelore lhe dissera que aquilo a protegia, e Rianne acreditava nisso com a inocência confiante de uma criança. Fora com aquela mesma inocência confiante que ela deixara a cabana naquela noite, com a runa de cristal pendurada no pescoço para mantê-la segura, e as estranhas palavras de partida de Dannelore nos pensamentos.
Sentira instintivamente que não deveria desobedecer. Mas, enquanto se agachava naquele lugar secreto, ouvira os sons que jamais haveria de esquecer, os gritos de terror e de agonia. Depois, as chamas iluminaram o céu da noite, e ela sentira medo pela primeira vez na vida, medo por aqueles que amava.
A despeito do aviso de Dannelore, Rianne correra de volta à cabana, mas, ao chegar, era tarde demais. John e os cães estavam mortos na horta. Dannelore jazia morta dentro da cabana. E não havia nada que ela pudesse fazer para ajudá-los.
O vento uivava em torno da cabana, chicoteando o telhado de palha. As chamas lambiam a casa e o manto escuro daquele que se postava à beira do fogo, a observar.
Rianne não conseguira ver sua face. Estava escondida pelo capuz que lhe cobria a cabeça. Mas, das profundezas das sombras dentro do capuz, enxergara aqueles olhos mortiços, como restos de estrelas explodidas — desolados, vazios de qualquer luz, vazios de qualquer vida.
Ele não a vira. Por fim, se voltara, o manto negro a ondular sob a luz fantasmagórica lançada pelas chamas que consumiam tudo, e desaparecera como se nunca houvesse estado ali.
Algum tempo depois, de pé, sozinha, cheia de dor com a perda, Rianne sentira algo quente na mão. Quando olhara para baixo, vira sangue.
Sua mão estava coberta de sangue. Pingava de seus dedos. Com gestos frenéticos, tentara retirá-lo, mas ele reaparecia. Então, de repente, o sangue recuara, deslizando por entre seus dedos e pelo dorso da mão, coagulando-se num único ponto, numa única gota que se transformara numa pedra de um brilhante escarlate a reluzir em seu dedo anular.
Traumatizada, Rianne julgara imaginar coisas. Aquilo era algo que aparecia apenas em seus sonhos, uma fantasia de criança tirada do pesadelo da morte.
— Você não imaginou — disse Grendel, ao se aproximar por detrás dela, os pensamentos conectados aos de Rianne. Sentiu-a se afastar do passado e retornar ao presente. — Foi uma visão do futuro — explicou. — Sem dúvida, você teve outras e não as reconheceu, mas o fará com facilidade no futuro, tal como descobriu outras habilidades esta tarde. Eu sabia que você tinha esse poder dentro de si. Sabia que não poderia ter me enganado. Mas você precisava se dar conta por si mesma.
Revirou os olhos para o alto. Sorriu com satisfação.
— O pessoal da sua família é de uma teimosia incomum que eu não consigo entender. Mas tudo transcorreu muito bem. Muito bem realmente.
Rianne virou-se para ele, furiosa. A ira era uma força invisível e poderosa. Com um soco, golpeou Grendel e o fez rolar de costas pelo acampamento, até que se amontoou numa pilha de galhos de pinheiro.
— Seu miserável vermezinho! Você me enganou! Grendel apalpou a cabeça, que latejava. Havia um galo enorme no cocuruto. Levantou-se devagar.
Miserável vermezinho?
— Foi um pequeno logro. Mas necessário — explicou, bastante racionalmente, a tirar as agulhas das roupas e do cabelo. Fez uma careta ao descobrir que havia várias em seu traseiro.
— Necessário? Você arriscou deliberadamente a vida de Kari!
Grendel sentiu a hostilidade, uma coisa perigosa em alguém que era detentora de poderes como os dela, absolutamente indisciplinados. Perigosíssima, na verdade, pensou ao se recordar de outro espírito inquieto e insubordinado: a mãe de Rianne.
— Não havia nenhum perigo de verdade — apressou-se a explicar. Não gostava da expressão daquele olhar. Sentiu que seria mais prudente encontrar um lugar bem mais seguro.
Rianne aproximou-se, percebendo a jogada.
— Nenhum perigo de verdade? Devo supor que não havia nenhum perigo real quando Kari caiu através do gelo e poderia ter se congelado até a morte?
— Quase nenhum — Grendel retrucou, nervoso.
Na pequena clareira, pouco mais longe, Tristão ouviu a discussão e aproximou-se, curioso. Ficou observando-os em silêncio. Dessa vez, Grendel encontrara quem fosse páreo para ele. E, mais do que isso, parecia que a jovem era, realmente, filha de Meg. Mesmo furiosa, Rianne, sem dúvida, era a mais bela criatura que ele já vira.
— E devo supor que não havia perigo quando ela afundou na água? — Rianne avançou sobre Grendel. — Seu miserável! Kari poderia ter morrido! Como ousa brincar com a vida de alguém como se isso fosse um jogo?
— Eu não deixaria que acontecesse nenhum mal a ela! — ele exclamou, indignado. — Kari nunca esteve em real perigo.
— Você não fez nada para ajudá-la.
— Claro que fiz — Grendel retrucou depressa. Lançou um olhar para Tristão, com a esperança de que ele pudesse intervir. Esperança infundada, percebeu. O guerreiro se divertia com sua desgraça.
— E se você estivesse errado? — indagou Rianne, e a força da raiva empurrava o homenzinho para trás. — E se eu não tivesse a capacidade de salvá-la?
Grendel despertara um poder até pouco tempo desconhecido que agora se voltava contra ele. Tropeçou num galho e caiu.
— Mas eu não estava errado. Tudo transcorreu bem, como você pode ver.
— Você manipulou todos por causa de seus próprios objetivos.
— Era preciso. Não tive escolha.
— Assim como eu não tenho escolha agora — Rianne murmurou.
Lançou uma pinha na direção do gnomo. O fruto espinhoso circulou pela clareira no alto, como um míssil fatal a procurar o alvo. E o alvo era Grendel.
Se ele mudava de direção, a pinha também mudava. Quando ele se abaixou sob um galho baixo, ela o seguiu.
— Você tentou me acertar.
Outra pinha em vôo rasante jogou Grendel de barriga no chão. Ele cobriu a cabeça com os braços para se proteger.
— Um pouco mais alto e para a direita — disse Tristão ao se aproximar por trás de Rianne e indicar o ângulo da mira.
— De que lado você está? — Grendel exclamou, indignado.
— Um pouco mais à esquerda — indicou Tristão.
— Protesto! Isso é absolutamente injusto!
— Agora — Tristão disse para Rianne.
A pinha voou pela clareira e quase acertou o gnomo, que se encolheu para se proteger. Ao se levantar, tinha musgo preso nos cabelos e nas roupas.
Foi longe demais, senhora!, Grendel esbravejou em pensamento e foi forçado a mergulhar no chão outra vez, quando outra pinha cortou o ar para acertá-lo.
— Pare com isso! — o gnomo berrou da pilha de galhos, folhas e lama onde aterrissara. — Está achando graça em me torturar. O que sua mãe haveria de pensar disso?
Por experiência, sabia exatamente que Meg riria da semelhança incrível entre mãe e filha, pois era conhecida por tais molecagens quando pequena.
Rianne não pôde deixar de sorrir, a despeito de sua raiva. Não queria machucar o homenzinho; simplesmente dar-lhe uma lição. Alvo das manipulações de alguém, não parecia gostar nada disso.
— Você poderia pensar em lhe poupar a vida — sugeriu Tristão.
Rianne o olhou de soslaio. Sua boca curvou-se num sorriso malicioso.
— Dê-me uma boa razão.
— Posso lhe dar duas boas razões.
— Qual é a primeira?
— Dizem que essas criaturas fazem uma bagunça horrível, como uma pilha de estrume de bode.
— E a segunda?
— Fedem como um monte de estérco de bode também. Ela ponderou sobre o assunto com um ar muito sério.
— Duas ótimas razões. Afinal, eu não haveria de querer ter a morte dele em minhas costas.
Viu quando o gnomo relaxou a guarda, confiante de que Rianne resolvera poupá-lo. O homenzinho se levantou, arrumou a túnica e depois se inclinou para tirar a sujeira das calças.
— Contudo — ela emendou, com ar travesso — acho que uma pinha a mais vale a pena. — E, com um simples pensamento, lançou a pinha pela clareira numa velocidade espantosa. O fruto espinhoso atingiu o gnomo de lado e o derrubou no chão.
A raiva de Rianne evaporou-se ao ver Grendel rolar pelo chão e se levantar depressa, correndo para se esconder, a sacudir as mãos sobre a cabeça para impedir algum novo ataque.
— Você é realmente muito parecida com sua mãe — disse Tristão, quando Rianne espalhou o resto das pinhas com o pé.
Ela o encarou com uma expressão sombria.
— Acredita nas coisas que Grendel diz? — perguntou. — Nos poderes da Luz e das Trevas? Transformação? Outro mundo que jaz além de um portal?
Rianne valorizava a opinião de Tristão. Afinal, era um guerreiro, um cavaleiro do rei Arthur. Sem dúvida se vira muitas vezes confrontado com questões de vida e morte. Um homem assim não abrigaria noções fantasiosas em que o homenzinho acreditava.
— Quando eu tinha dez anos, tive um encontro com uma criatura que jamais esquecerei. — Ele voltou até aquele dia fatídico, na lembrança. — Uma criatura de tamanha maldade que eu descobri que as Trevas existem. Era um demônio que procurou destruir tudo que é bom e verdadeiro neste mundo, deixando para trás apenas a morte e a ruína em sua busca por poder. Também encontrei uma criatura de inacreditável bondade, honradez e amor. Alguém que estava disposto a dar sua vida para que os outros pudessem viver num mundo livre desse mal. Ela trouxe imensa felicidade e alegria àqueles a seu redor. E possuía a capacidade de curar tanto o corpo como o espírito com o toque de sua mão.
Correu o dedo, pensativo, pela cicatriz no queixo, um gesto que Rianne já observara antes.
— E ela teve realmente a paciência de uma santa com um garotinho que se metia em mais confusões que dez moleques juntos. Ajudou-o a curar as dolorosas feridas da perda com seu espírito generoso e sua coragem. — Sua expressão suavizou-se. — Sim, eu creio em tais coisas, pois as vi. Não posso explicar o que vi, mas sei que é real.
Rianne sabia que ele falava de Meg. Sua mãe. Uma criatura de magia e grande poder, muito semelhante a Merlin, conselheiro do rei. Se alguém acreditava em tais coisas, como poderia ela não acreditar? Em toda sua vida tivera consciência de que era diferente.
Ouvia coisas que os outros não podiam ouvir; sentia coisas que os outros não percebiam. E havia os incidentes inexplicáveis durante sua infância — a primeira vez que descobrira que conseguia mover objetos sem tocá-los, o fato de que não se importava nem com o calor nem com o frio. E muitos coisas mais que Dannelore prometera lhe explicar quando chegasse a hora. Mas, infelizmente, ela morrera antes que pudesse lhe transmitir esse conhecimento.
— Seu pai está morrendo — Tristão disse, gentilmente, o peito a se constranger ao pensamento de perder o homem que tinha como um pai, irmão e amigo. — Certamente você deseja vê-lo antes que seja tarde demais.
Não havia emoção no olhar que encontrou o dele.
— Os laços de que fala são feitos de lembranças. Eu não tenho nenhuma. O homem de quem lembro como pai morreu faz muito tempo. Não conheço o homem de quem você fala, nem a mulher, Meg.
Passou por ele e ia voltar ao acampamento. Tristão a segurou pelo braço, com um gesto gentil, porém forte. Seu olhar procurou o dela. Havia uma ternura em sua voz que a surpreendeu e se infiltrou pelas defesas de Rianne, tocando-lhe algo vulnerável no íntimo.
— Não compreendo completamente as escolhas que tiveram de ser feitas, muitos anos atrás. Mas entendo o que é perder uma família. Vi minha família massacrada quando criança e sofri essa dor e essa perda todos os dias de minha vida, desde então. Mas a sua família está viva. Você tem a oportunidade de recuperar o que foi perdido. Não há um dia que passe em que eu não queira uma tal oportunidade.
Rianne captou as emoções que Tristão sentia. E aquilo a pegou desprevenida e conectou-a aos próprios sentimentos profundos de pesar pela perda e solidão que sofrera. Mas não conhecia as pessoas de quem ele falava. Não significavam nada para ela.
— Minha família me mandou embora—Rianne o recordou.
— Para protegê-la.
— Sim, para proteger-me.
A voz de Rianne era cheia de amargura. Aquela escolha parecia ridícula agora, à luz do resultado.
— Há algo que eu possa dizer para convencê-la a voltar para Monmouth?
— Não, milorde. Não há. Prometi levar Kari a Glastonbury. Pretendo cumprir minha promessa.
— Muito bem.
Tristão aceitou a decisão. Por enquanto.
— Mas nós a acompanharemos. Monmouth fica na mesma direção, e será mais seguro se vocês não viajarem sozinhas.
A fumaça espiralava pelo teto da hospedaria. Um freguês encontrava-se caído no chão, aparentemente bêbado. Seus olhos estavam esbugalhados, com uma expressão horrorizada, a boca aberta num grito mudo que ninguém ouviria.
Dentro da hospedaria, Garidor jazia onde fora brutalmente assassinado. Touro estava amontoado contra a parede do fundo, o sangue do ferimento aberto em sua garganta a lhe manchar a frente da túnica. Mab achava-se deitada sobre a mesa, os olhos arregalados de incredulidade naqueles últimos instantes antes da morte, certa de que poderia ser poupada quando contasse ao estranho aquilo que ele queria saber. Então, percebera tarde demais que seu destino seria o mesmo dos outros. Os rolos cinzentos de fumaça escapavam pela porta e se curvavam pela janela do segundo andar, conforme o fogo se espalhava e consumia tudo. O estranho observava tudo das sombras das árvores próximas. Via o incêndio da hospedaria com olhos tão frios como a morte, das profundezas do capuz que sombreava suas feições.
Gritos de alarme se ouviram na vila próxima quando as pessoas se levantaram de suas camas e descobriram a hospedaria em chamas. O estranho ficou a observar os esforços inúteis e desesperados daquela gente para combater o fogo. Então, conforme a alvorada se erguia sobre a vila, ele se voltou e desapareceu entre as nuvens de bruma.
— Manco e estropiado — disse Tristão ao bater no pescoço do exausto cavalo.
— Keflech! — resmungou Grendel. — O que vamos fazer
agora?
— Caminhar — declarou Rianne ao escorregar do dorso do garanhão negro. Parecia uma questão simples para ela, e uma a que estava acostumada.
— Detesto caminhar — reclamou o gnomo. — É vagaroso e problemático, e este não é um lugar para se demorar por aqui.
— Então não caminhe! — exclamou Rianne. — Fique aqui, se quiser. Embora haja boatos de que os trolls vivem nesta parte da floresta.
— Trolls? — Grendel estremeceu. Lançou olhares furtivos por sobre o ombro, ao puxar as rédeas do cavalo, incitando o animal machucado a apressar o passo.
— Trolls? — Tristão sorriu.
Rianne fez um gesto de descaso, sem encará-lo, mas sua boca se torceu num sorriso disfarçado.
— Pareceu o meio mais provável de evitar uma discussão. Grendel é muito birrento. E isso não é exatamente uma mentira. O povo acredita que todo tipo de criaturas vive nestas matas.
Tinham estabelecido uma trégua nos últimos dias, desde a quase morte da garota no lago. Rianne estava determinada a seguir até Glastonbury. Tristão, resolvido a levá-la a Monmouth.
— Tome cuidado para que ele não suspeite de que você o está enganando — ele avisou. — Grendel tem um modo inco-mum de conhecer os pensamentos de alguém. E um temperamento horrível.
— Não é com os pensamentos dele que eu deveria tomar cuidado — Rianne retrucou ao encará-lo de uma forma tão direta que fez Tristão pensar que ela sabia exatamente o que ele planejava.
— O que é que vamos fazer agora? — resmungou o gnomo. — Estamos ainda a quatro dias de viagem até Monmouth e, a Pé, será mais que o dobro.
— A cidade de Bath não está longe — disse Tristão ao se recordar da estrada que haviam percorrido semanas antes. — Encontraremos cavalos lá.
Grendel franziu a testa.
— Não gosto de lugares assim. Atraem todo tipo de estranhos, criaturas sem escrúpulos. É um local perigoso.
Bath era uma cidade bastante antiga. Suas origens remontavam aos celtas, bretões e romanos, com influência de todas as três culturas encontradas em edifícios de pedras talhadas que decoravam as casas, salões públicos e prédios do centro da cidade, situados em várias ruas que convergiam como os eixos de uma roda.
Ali, podiam-se encontrar artesãos, mercadores e malfeitores a oferecer suas mercadorias ou artesanatos durante o dia. À noite, nas hospedarias, antigas casas de prazeres, os rostos mudavam ao longo dos séculos, mas o comércio era o mesmo.
No mercado, vendia-se todo tipo de comidas, ferramentas ou utensílios, trazidos pelo rio Tamar do porto marítimo de Bristol. Havia especiarias exóticas, tecidos e alimentos, porcos, galinhas e ovelhas para troca e venda.
Era um lugar fervühante de vida, com ursos dançantes e acrobatas, mímicos e artistas que faziam truques mágicos.
Tristão fez várias compras conforme caminhavam pelo mercado, e deu a cada uma das jovens uma túnica bastante larga com um capuz, que escondia perfeitamente suas feições.
— Não tire o capuz — ordenou a Rianne. — Não queremos chamar a atenção. — É mais seguro que pensem que somos simples peregrinos a caminho do País do Oeste.
— Se estivermos em perigo, será importante que você me devolva o punhal — Rianne ponderou.
Em resposta, Tristão puxou a borda do capuz para baixo, sobre o rosto da jovem.
— E não diga nada. Só eu falarei.
Mantiveram-se pelas ruas laterais, passando por uma antiga construção de pedra com um largo pórtico, colunas, de edificação romana, de onde um leve cheiro sulfúrico emanava e permeava o ar.
— Que cheiro é esse? — reclamou Grendel.
— Os banhos romanos — explicou Tristão, com saudades dos vários dias que passara ali com uma criatura particularmente atraente que fazia qualquer coisa por um determinado preço.
Por fim, encontraram os estábulos perto dos limites do mercado. Entraram e prenderam as próprias montadas.
Um jovem raquítico, marcado de bexigas, veio atendê-los.
O rapaz os encarava com uma intensidade aguda que desmentia a expressão parva em seu rosto. Disse que o pai estava numa casa de jogos ali perto. Rianne encontrara muitos como ele. Empurrou Kari para trás de si conforme a curiosidade do rapaz aumentava.
O guerreiro dirigiu-se ao jovem.
— Leve-me até seu pai. Se eu acertar negócio com ele, há uma moeda de ouro para você também. Vocês — Voltou-se para os companheiros —, esperem minha volta.
Os olhos do rapaz se iluminaram, e os traços de ignorância desapareceram, substituídos pela sagacidade da ganância.
— Fique aqui — Rianne murmurou a Kari, depois que os dois se afastaram. — Estará a salvo.
— Aonde vai? — protestou Grendel.
— Ver um homem a respeito de um cavalo — disse ela ao afagar o pescoço luzidio do corcel negro.
— Ah, não! — Grendel exclamou, dando a volta por trás do garanhão e apontando um dedo para ela como se fosse uma criança mal-comportada. — Eu a proíbo. Não é seguro. Vamos ficar juntos até o retorno de lorde Tristão.
Conforme ele se aproximou com expressão determinada e passos firmes, Rianne empurrou o traseiro do animal com um toque de mão.
— Você não deve! — o gnomo gritou. Todos os demais protestos foram abafados quando o garanhão o comprimiu contra a parede do estábulo.
A rua lá fora fervilhava de gente, carroças e animais. Em meio ao ruído, Rianne finalmente percebeu o rumo que Tristão e o rapaz tinham tomado e seguiu atrás deles.
A noite descia sobre a cidade. Em alguns estabelecimentos, lamparinas a óleo eram acesas nas fachadas. Pelas portas abertas, um ruído ensurdecedor se espalhava para a rua: palavrões, conversas de bêbados, a risada aguda de uma mulher. E apostas em algum jogo.
A espada estava na bainha nas costas de Tristão, ao alcance da mão, e os dedos seguravam o cabo do punhal no cinto, enquanto ele observava os arredores, atento a qualquer indicação de que o rapaz o conduzisse para alguma armadilha.
Então, o jovem rumou para um prédio e subiu as escadas do estabelecimento. O painel pintado do lado de fora era de uma raposa e uma lebre, indicando que lá dentro havia tanto uma mesa de jogo como refeições.
Era um local não muito diferente de muitos em que Tristão estivera, inclusive a hospedaria onde encontrara a filha de Meg.
A não ser pelo tipo de clientes. A fumaça dos fogões permeava o ar, em meio ao cheiro acre das tochas, da cerveja e do vinho. Comentários rudes e explosões de gargalhadas misturavam-se ao cocorocó de um galo conforme as apostas eram feitas para a próxima briga.
Tristão seguiu o rapaz até uma mesa comprida onde um novo jogo de dados começava e vários jogadores faziam apostas. O jovem esgueirou-se para trás de um homem gordo, aco-corado, com a frente da túnica manchada de restos de comida.
— O que está fazendo aqui? Devia estar cuidando do estábulo — o sujeito resmungou. Então se virou e olhou para Tristão, conforme o rapaz se abaixava e lhe murmurava algo no ouvido. — Vá embora. Não tenho tempo para negócios agora.
— Um jogo, então — sugeriu Tristão.
— O que vai apostar, estranho?
Tristão tirou a bolsa de moedas do cinto. Colocou-a sobre a mesa com um baque surdo. Os olhos se estreitaram no rosto gordo e um sorriso matreiro se espalhou em meio às papadas.
Rianne abriu caminho por entre o povo até a mesa onde Tristão conversava com um freguês de olhos meio vesgos cravados na bolsa sobre a mesa.
— Sim, um jogo, por que não? Qual é sua aposta? Tristão sentou-se no banco vago. Abriu a bolsa e despejou o conteúdo sobre a mesa. Ouro e prata reluziam entre moedas de metal inferior. Ele pegou uma das de prata, e o jogo começou.
— Regras da casa — berrou o dono do estábulo, e tirou uma faca do cinto e enterrou a ponta na superfície da mesa.
— Concordo — disse Tristão.
Rianne ficou a observar, fascinada, conforme descobria que o guerreiro era bastante habilidoso no jogo e abençoado com uma certa porção de sorte. Ganhou as primeiras duas rodadas.
Uma multidão se reunira ao redor. Uma criada trouxe uma jarra e começou a encher as canecas de cerveja. Demorou ao se debruçar sobre a mesa para encher a caneca de Tristão, e o tecido macio do corpete abriu-se para mostrar os seios fartos e roliços.
Sua boca se curvou num sorriso doce ao murmurar algo a ele, enquanto os cabelos soltos e o decote do vestido que escorregava pelos ombros eram um convite explícito ao sexo. Rianne observou, com crescente curiosidade, quando a mulher encostou-se mais ainda, enfiou a mão por trás do pescoço do guerreiro e o beijou.
Aquele não era igual aos beijos roubados que ela testemunhara entre os garotos e meninas que conhecera. Nem aos beijos molhados e rudes que Kari fora forçada a suportar de Garidor. Era diferente. Fora lento, profundo e saboreado tanto pela mulher como por Tristão.
Com algumas palavras que ela não conseguiu ouvir, Tristão mandou a mulher embora. A criada se afastou, mas sem deixar de enviar um claro recado ao esfregar os seios fartos pelo braço dele.
Os homens eram todos iguais, Rianne pensou, com desgosto. E ela acreditara que Tristão fosse diferente, pois mostrara tanta gentileza e preocupação por Kari...
Que fossem para o inferno!
Pensou em voltar para os estábulos e ir embora sozinha com Kari. Não duvidava que pudessem seguir até Glastonbury. Porém, as poucas moedas que conseguira esconder estavam também naquela bolsa. Tristão fora esperto e as tomara. Como garantia, dissera, para que ela não fugisse no meio da noite.
Aquele pequeno pecúlio era tudo que Rianne possuía no mundo. Sem ele, seria impossível chegar a Glastonbury. E poderiam muito bem ir parar num lugar muito parecido com aquele da outra vez. Aproximou-se.
Ao observar o prosseguimento do jogo, Rianne começou a perceber a fonte da boa fortuna do dono do estábulo, que parecia ter mudado drasticamente. Sentiu que a única explicação, sem dúvida, era o uso de dados viciados, que garantiam um resultado previsível. O sujeito, provavelmente, os trocara depois de deixar Tristão ganhar algumas rodadas. Os dados originais deviam estar escondidos em suas mangas, na túnica, ou num bolso das calças.
Tristão era um jogador habilidoso e também pareceu sentir que a sorte se voltara contra ele. Para evitar suspeitas, o dono do estábulo deveria perder algumas jogadas de vez em quando. Mas a ganância se sobrepôs à prudência.
— Você só ficou com duas moedas! — exclamou ao indicar as duas moedas de ouro que luziam sobre a mesa na frente de Tristão, as últimas de sua fortuna.
— Uma última rodada — o guerreiro sugeriu.
Tristão não era nem impulsivo nem tolo. Mas Rianne surpreendeu-se quando ele tirou uma corrente de prata do pescoço. Um anel pendia da corrente. Era também de prata, com uma pedra azul incrustada no meio.
— As moedas de ouro e isto contra tudo nessa bolsa e dois dos melhores cavalos em seu estábulo.
Ele devia estar maluco. Apostar tudo, quando tinha de saber que o homem trapaceava, era mais que loucura. A menos que pretendesse expor o sujeito como trapaceiro.
Mesmo assim, uma atitude perigosa e imprudente. Num tal lugar, era difícil saber onde estavam as simpatias. Ninguém sabia disso melhor do que ela.
O sorriso desdentado se alargou conforme os olhos cobiçosos de porco se estreitaram.
— Claro — concordou o dono do estábulo, que entornou mais uma caneca de cerveja e depois enxugou a boca nas mangas. — Só espero que a sorte continue comigo.
Rianne percebeu, pelo canto dos olhos, uma sombra que se movia nos limites da multidão. Via a face marcada de pústulas colocar-se atrás de Tristão, uma garantia a mais de que o dono do estábulo não perderia.
Os dados foram lançados. Sem nenhuma surpresa, o resultado foi o mesmo que antes. Mas, no instante em que o dono do estábulo estendeu o braço para recolher seus ganhos, Tristão debruçou-se sobre a mesa.
— O que é isto? — perguntou.
Num gesto rápido, puxara o punhal do cinto e cortara a frente da túnica do adversário. Uma pequena bolsa caiu sobre a mesa, atraindo a atenção dos espectadores.
— Meus ganhos — explicou o homem, e levou a mão para apanhar a bolsa.
Rianne, contudo, foi mais rápida. Pegou a bolsa e virou-a sobre a mesa. Cinco dados feitos de presa de javali rolaram para fora.
Um dos assistentes pegou um dos dados do jogo da mesa e sacudiu-o nas mãos. Em seguida, pegou uma caneca de metal e bateu-a sobre o dado.
A pedra se partiu em vários pedaços, expondo a bola de metal que havia dentro.
Gritos de indignação ecoaram de todas as bocas, em meio a uma chuva de acusações. Então, o caos se instalou. O dono do estábulo agarrou Rianne pela túnica e arrancou-lhe o capuz da cabeça. Por um momento, todos ficaram em silêncio, tomados de um espanto quase tão grande quanto o de Tristão, ao descobrir que ela o seguira. Mas não teve tempo de dizer nada, pois o filho do trapaceiro o atacou.
— Cadela! — o dono do estábulo berrou, furioso com quem o desmascarara. Agarrou Rianne pela garganta.
A mão dela fechou-se em torno do cabo da faca que ele cravara no tampo da mesa. Arrancou-a da madeira e golpeou-o na outra mão. A faca transpassou a carne e se enterrou na mesa. O homem soltou um grito de dor e soltou-a no mesmo instante.
As moedas que haviam se esparramado quando a luta começara reluziam no chão, debaixo da mesa. Rianne as recolheu depressa e as enfiou dentro da túnica. Seu punhal também caíra no chão, quando Tristão fora atacado pelo filho do trapaceiro. Ela o pegou.
Tristão ainda tinha a espada na bainha, pendurada nas costas. O rapaz, um magricela, não constituía páreo para ele. Poderia derrotá-lo só com os punhos. Contudo o oponente era perigoso. Sacou uma faca e investiu contra o guerreiro.
— Vou lhe arrancar o coração! — disse para Tristão. — E assá-lo num espeto.
Tristão esquadrinhava a hospedaria e os fregueses que brigavam pelas moedas espalhadas pelo chão, em meio à cerveja derramada. Onde estava Rianne?
A distração foi suficiente para dar ao rapaz uma vantage momentânea. Ele investiu com a faca e cortou o braço de Tristão. E conseguiu a plena atenção do guerreiro.
O dono do estábulo deixou escapar um urro de dor ao arrancar a faca da madeira. Com um berro de raiva, lançou-se atrás de Rianne.
Keflech, ela pensou, e correu na direção do rapaz que ferira Tristão. Com um golpe, cortou-lhe a corda da cintura. As calças enormes, que sem dúvida ele herdara do pai, escorregaram por seus quadris magros, revelando a pele clara, um tufo de pêlos escuros, os joelhos nodosos, um traseiro nu e pouco mais. Bem pouco mais.
O rapaz soltou um grito de humilhação. Deixou cair a faca e puxou as calças para cima.
Tristão agarrou Rianne pelo braço e empurrou-a para a porta da hospedaria. Logo, estavam do lado de fora e correndo pela rua escura. Berros os seguiam, conforme vários fregueses saíram atrás dos dois, inclusive o dono do estábulo e o filho, que segurava as calças para não caírem.
Tinham de voltar aos estábulos, mas Rianne não imaginava onde ficava. Tristão empurrou-a para outra rua, por um pátio e por uma passagem que levava a vários degraus e para dentro de um grande aposento pouco iluminado. O cheiro de enxofre e o calor úmido do ar a envolveram. Então, Rianne ouviu o som de água corrente.
— Que lugar é este?
— Os antigos banhos romanos. Foram construídos séculos atrás.
Ela arquejou quando saíram da construção antiga e o ar frio da noite a envolveu. Depois do ar quente e sulfuroso dos banhos, era como mergulhar no fundo gelado de um lago. Seus olhos lacrimejaram.
Tristão empurrou-a para uma passagem estreita. Ouviram vozes próximas. A luz de várias tochas infiltrou-se pela abertura, e os dois se comprimiram lá dentro. Tristão ocultou-a com o próprio corpo, colocando a espada entre eles para que não refletisse a luz das tochas e denunciasse sua presença.
O hálito de Tristão roçava quente contra a têmpora de Rian-ne. O corpo também era quente contra o dela. E como naquele dia no lago, quando tinham lutado para salvar Kari, Rianne teve a repentina consciência de que havia passado por uma transformação — não era mais a menina que se disfarçava em trajes de homem. Naquele dia, recordara-se de que mesmo que usasse roupas de menino, não era um. E, na hospedaria, quando a mulher beijara o guerreiro, sua curiosidade não fora a curiosidade de um garoto, mas a de uma mulher por algo que nunca experimentara.
— Ir até lá foi muito perigoso — disse Tristão, a respiração a provocar comichões no rosto de Rianne.
— Sim — ela concordou. — Você poderia ter ficado gravemente ferido.
Tristão não sabia se retrucava ou se lhe dava umas palmadas. Rianne resolveu o dilema. Beijou-o.
Rianne deslizou a mão por trás da nuca de Tristão, puxou-lhe a cabeça para baixo e comprimiu a boca contra a dele tal como vira ser feito.
Ficou surpresa. O guerreiro tinha gosto de cerveja, do ar frio da noite e de algo misterioso, fugidio e poderoso.
Instintivamente, recostou-se contra ele, a abraçá-lo, a procurar por alguma coisa mais. Seu corpo se ajustou a todos os ângulos duros e rijos e às formas de Tristão; sua boca encaixou-se na inclinação brusca daqueles lábios firmes, suas mãos acariciavam de leve as bordas rijas das maçãs do rosto e a textura áspera da barba sobre o contorno másculo do queixo. E ela fechou os olhos ao encontrar aquele algo mais.
A boca de Tristão deslizou contra a sua com um súbito calor, uma energia e uma necessidade misteriosa; feito mel quente, doce e fugidio por sua língua, como mão forte a tocar fundo em seu âmago, a despertar anseios desconhecidos dentro dela. Então, ele a empurrou. Rianne sentiu a raiva e a viu nas feições de Tristão, conforme a luz de tochas que passavam incidiu pelos planos da expressão dura, como uma máscara de pedra.
Ele praguejou, num tom rude que pareceu um chicote a atingi-la. Mas era mais que raiva. Havia uma pontada de sofrimento, um amargo desapontamento e um ódio que era pior do que se o guerreiro a agredisse.
— Vai continuar com seus joguinhos idiotas, milady?
A cor fugiu do rosto e depois retornou para queimar a pele de Rianne. Seus olhos faiscaram com um fogo azulado, de mágoa. E de orgulho.
— Estava simplesmente curiosa, pois nunca fui beijada antes. Mas, na verdade, acho exagerado o que dizem a respeito.
— Exagerado?
— Deve despertar interesse em certas mulheres — ela retrucou entre os dentes.
— Mas não em você?
— Nem um pouco.
Passou por ele na direção da abertura da passagem. Porém, Tristão a puxou de volta, conforme a luz de outra tocha brilhou pelas paredes do lado de fora.
Vários homens passaram. A busca continuava. Assim que a luz gradualmente desapareceu, Rianne se livrou com um safanão e esgueirou-se para a rua. Tristão a seguiu, soltando uma Praga.
— Espero que não tenham se apressado por nossa causa — Grendel comentou com ironia, quando os dois voltaram ao es-tábulo e entraram às escondidas. Kari remexeu-se e se sentou, os olhos enevoados de sono.
— Levaremos dois cavalos — Tristão murmurou, ignorando a observação provocativa do homenzinho. — Vamos partir agora mesmo.
— Vai roubá-los?—Grendel indagou, de olhos arregalados.
— Vamos dizer que negociei o preço com o dono do estábulo — respondeu Tristão, pegando a sela e jogando-a no lombo do garanhão preto.
Apertou a cilha no lugar com rudeza, o que fez o cavalo empinar e relinchar de desaprovação.
Grendel olhou do guerreiro para Rianne, que pegou uma sela com modos empertigados. Era óbvio que a raiva pairava entre os dois, porém ele não conseguira sentir a causa.
— Você cavalgará comigo — Tristão a informou, como se desse ordens a seus homens.
Ela se recusou a responder, recolhida num silêncio teimoso e atenta à tarefa de selar outro cavalo. Tristão arrancou-lhe os arreios das mãos. Rianne ergueu a cabeça, os olhos a faiscar de uma fúria azulada que fez Grendel recuar.
— Vai cavalgar comigo, ou eu a amarrei atravessada na sela!
— Vários homens se aproximam! — Grendel avisou. — Precisamos ir embora de uma vez! — Pendurou-se no estribo e esforçou-se para se acomodar no lombo da montaria. Kari já estava na sela de um dos cavalos do dono do estábulo.
Rianne prometera ver Kari segura em Glastonbury. Não quebraria a promessa simplesmente porque no momento gostaria de ver Tristão de Monmouth sendo assado num espeto. Pegou as rédeas do garanhão negro e, com uma eficiência que surpreendeu até a si mesma, saltou para a sela. Olhou para baixo de cara feia.
— Está perdendo tempo.
Tristão montou atrás dela. O garanhão relinchou com reprovação e virou a cabeça para o lado. Repuxou o beiço e mordeu a brida com os dentes fortes.
— Silêncio, sua besta irritadiça, ou vou oferecê-lo como comida aos corvos! — Tristão gritou. Puxou Rianne com força contra si e incitou o cavalo em disparada para fora do estábulo.
Grendel apressou-se a acompanhá-los, puxando o cavalo reserva pela rédea. Tinha um pressentimento ruim quanto à jornada ainda pela frente.
Cavalgaram por várias horas, com a lua a guiá-los, enquanto nuvens de uma tempestade que se avizinhava corriam pelo céu. Pararam algum tempo depois da meia-noite. Montaram acampamento sem fogo, numa área de vegetação densa onde a folhagem oferecia esconderijo e abrigo contra a tormenta que se aproximava.
Rianne amontoou-se com Kari debaixo de uma manta grossa de pele no abrigo de uma árvore caída, enquanto Grendel se curvava numa bola ali perto. Tristão ficou com os cavalos.
Parecia que havia dormido fazia pouco quando o guerreiro os acordou. Quase não houve tempo nem para as necessidades e já estavam de novo no lombo dos cavalos.
— Tenho de parar — Rianne avisou, com os dentes cerrados, horas mais tarde. Tinha as costas rígidas para que seus corpos pouco se tocassem.
Era quase meio-dia. Haviam cavalgado sem parar desde antes da alvorada, e matado a sede com os odres de água que carregavam nas selas. Suas costas doíam, as pernas pareciam entorpecidas, para não mencionar o fato de que cada passada ameaçava estourar sua bexiga, com conseqüências desastrosas.
— Mais tarde. — Com a mão firme nos quadris de Rianne, Tristão a puxou de volta contra o próprio corpo.
Ela rilhou os dentes de frustração. E tentou usar de diplomacia. Afinal, ele era um cavaleiro do rei.
— Por favor — murmurou, quase se engasgando com a palavra.
Aquilo sem dúvida custara muito a Rianne, Tristão pensou. Não tinha desejo de ser a causa de mais problemas para a garota.
— Vamos parar dentro de alguns minutos. Há um bosque pouco adiante, que oferece abrigo e caça. Faremos acampamento lá para a noite.
Quando Tristão puxou as rédeas e finalmente parou, Rianne escorregou da sela com cuidado, tendo os movimentos travados pelas muitas horas de cavalgada. Estavam todos exaustos, especialmente os cavalos.
— Quanto falta para Glastonbury? — ela perguntou.
— Dois dias, talvez três.
Montaram acampamento nos limites da floresta de Bodmin. Kari era a que mais se ressentira com a viagem. E Rianne preocupava-se com ela. Fora por tanto tempo maltratada por Garidor que estava magra demais, só pele e ossos. Além disso, quase morrera no lago.
— Você não tem de se culpar pelas circunstâncias da vida de Kari — disse Grendel, a fitá-la como se lesse os pensamentos de Rianne. —Existem outros que devem suportar esse fardo.
— Talvez — Rianne ponderou, enquanto ela e o gnomo catavam lenha para a fogueira e Tristão procurava caça. — Mas Kari me deu sua amizade quando eu não tinha ninguém.
O mínimo que posso fazer é manter minha promessa. Ela ficará segura em Glastonbury. E quem sabe eu deva ficar lá também. A vida pacata da abadia tem um certo encanto...
Quando voltaram ao acampamento, Rianne observou, divertida, Grendel esforçar-se em volta da fogueira, a resmungar toda sorte de encantamentos incoerentes, intercalados com uma praga ocasional. Bufava e assoprava na tentativa de acender a chama de um carvão que soltava um fino penacho de fumaça.
— A lenha está molhada. Isso acontece depois da chuva. O gnomo a olhou de cara feia.
— Obrigado, dona, por essa esclarecedora informação. Então seu olhar se aguçou. A única fraqueza de Rianne era a garota, Kari. Talvez pudesse ser convencida a explorar os outros poderes se julgasse que a mocinha se beneficiaria com isso.
Meneou a cabeça como se lamentasse profundamente.
— Sem uma fogueira, não haverá comida para nós. Rianne percebeu o jogo. De soslaio, vira a expressão do rosto de Grendel. Agachou-se ao lado da fogueira e, com um sorriso, bateu a pedra chata que carregava na bolsa contra outra pedra escura.
Uma faísca saltou e caiu entre as folhas mortas e os pedaços de casca de pinheiro. Logo, uma pequena chama surgiu. Espalhou-se pelos gravetos e pinhas, consumindo-os depressa, e depois se estendeu em labaredas para o alto, para a lenha mais grossa.
— Não é tão difícil quando se sabe o jeito. Grendel franziu a testa.
— Qualquer um pode fazer isso.
— Aparentemente, não — Rianne retrucou, com um olhar enviesado para ele.
O gnomo resmungou baixinho e jogou mais lenha no fogo, frustrado.
A fogueira continuou a queimar firme enquanto a noite descia sobre o acampamento. Tudo que restara da perdiz caçada por Tristão eram alguns ossos espalhados.
Rianne preparou uma infusão de cerejas secas e ervas que carregava na bolsa do cinto e deu-a a Kari. Logo, a garota deixou a cabeça pender para frente, e a caneca de madeira escapou-lhe dos dedos.
— Você tem um conhecimento surpreendente de remédios — Grendel comentou, pensando que o elogio poderia ter sucesso onde os outros planos tinham falhado.
— Não é grande coisa. Nada mais do que a necessidade de aprender tais coisas para sobreviver.
Grendel sorriu no íntimo. A dedicação de Rianne para com a garota era muito parecida com a de outra pessoa. Meg possuía aquela mesma qualidade, aquele mesmo espírito protetor e terno.
— Não é pouca coisa nas mãos de uma curandeira tal como minha patroa. Ela também tem o toque curativo.
Tristão ergueu os olhos ao compreender o intuito da conversa do gnomo.
— Embora ela fosse capaz de fazer pouca coisa com respeito à triste disposição do nosso amiguinho — comentou ao se juntar à conversa.
— Não preciso ouvir uma coisa dessas — Grendel retrucou.
— Estava apenas tentando ser útil, e é isso que ganho por meu esforço: ter de conviver com uma imitação de cavaleiro que só pensa com a cabeça que tem entre as pernas, e com uma criança ingrata com o temperamento de um porco-espinho. Bem, não terão Grendel para sempre para desrespeitarem.
Enquanto atiçava o fogo, alimentando-o com pedaços maiores de lenha, ficou soltando imprecações contra aqueles que faziam piadas à custa dos outros.
As chamas cresceram ao encontrar veios de seiva e resina de pinheiro, e depois explodiram numa chuva de fagulhas e carvões em brasa que envolveram Grendel, pego de surpresa.
Tristão pegou uma manta para abafar as labaredas, mas Rianne alcançou o gnomo primeiro.
Agarrou-o pelo braço, abafou as chamas e curou a carne queimada.
Tristão arrancou a túnica chamuscada e olhou para o pequeno braço musculoso de Grendel. Não havia bolhas ou marcas. Na verdade, a pele só tinha os pêlos eriçados pelo frio. Então, pegou a mão de Rianne e virou-a para cima.
— Você não se queimou.
— Sorte.
Tristão tomou-lhe a outra mão e também a virou. Não havia nenhuma marca na pele clara, embora ele tivesse visto Rianne tocar o fogo com as mãos nuas. A cicatriz em seu queixo formigou diante da lembrança de outra pessoa que possuía a capacidade de curar com o toque gentil da mão.
— Muita sorte, realmente.
Ciente de que Grendel observava a cena com vívido interesse, Rianne libertou as mãos com um gesto brusco.
— Terei mais cuidado no futuro — retrucou e voltou para o leito de pelegos que arrumara ao lado de Kari.
Rianne saiu de mansinho de dentro dos pelegos quentes. O céu clareava as copas das árvores, conforme a alvorada irrompia sobre o acampamento. Kari remexeu-se ao lado, esfregando os olhos.
— Alguma coisa errada?
— Não é nada. Volte a dormir.
Kari pegou-a pelo braço. Naquele aperto exageradamente forte, Rianne sentiu a preocupação da amiga.
— Não vou me demorar.
Mas a garota não a soltou. Rianne consentiu em esperá-la em vez de discutir e se arriscar a acordar os outros. Em silêncio, as duas se esgueiraram para fora do acampamento.
Seu estoque de ervas medicinais escasseara drasticamente e ela esperava encontrar mais na floresta para reabastecê-lo. E precisava de tempo para pensar e tomar uma decisão sobre o próprio futuro, conforme se aproximavam de Glastonbury.
Tristão acordou num sobressalto. O dia nascera. O fogo queimava baixo. Só as brasas restavam. A névoa cobria o acampamento.
Tudo estava quieto; nada se mexia. Apenas o gnomo jazia curvado no sono diante da fogueira, a ressonar. E imediatamente o guerreiro se pôs de pé. Rianne e a garota haviam sumido.
Encontrou as pegadas leves no solo argiloso à beira do acampamento. Tirou a espada da bainha às suas costas. E enquanto o céu se tornava mais claro, ele seguiu os rastros que adentravam a floresta.
Rianne achou centáurias perto da beira da água, crescidas ao abrigo de algumas pedras. Quando fervidas, as folhas produziam um tônico contra a febre. Apanhou vários punhados e colocou-os dentro da bolsa no cinto. A serpentária não era facilmente encontrada.
Era eficiente contra febre e ajudava a estimular o apetite. Quando tivessem oportunidade, ela faria um chá para Kari, pois a garota estava muito magra.
Kari seguia logo atrás, cantarolando, a recolher pinhas e nozes e colocá-las na barra do vestido. Apesar do rigor da viagem, parecia mais tranqüila a cada quilômetro distante de Garidor.
Rianne sabia que estava certa na decisão de levar Kari para Glastonbury. Lá, ela encontraria um pouco da paz que sempre faltara em sua vida.
Achou um pequeno pé de serpentária perto dos limites da clareira. Kari parou atrás dela. E seus olhos se arregalaram ao ver a faca que a amiga tinha na mão.
— Onde arranjou isso?
— Com Grendel. Para alguém que supostamente é dotado de poderes incomuns, falta a ele o bom senso. Tirei-a do seu cinto.
— Tristão ficará aborrecido.
— Ele não precisa saber. Sinto-me mais segura com ela. Não diga nada — disse à garota. — Será nosso segredo.
— Você se arrisca muito — Kari choramingou. — Tristão tem um temperamento horrível.
— Ora! — bufou Rianne. — Cão que late não morde. Ele não me assusta.
Procurava por confrei, que normalmente crescia em abundância em tais lugares.
— Acredita naquilo que o homenzinho diz da sua família? — perguntou Kari.
—Eu não tenho família—retrucou Rianne.—Estão mortos para mim. — Seus olhos se iluminaram ao avistar as folhas acinzentadas. — Ali está! — exclamou.
Quando criança, ela e Dannelore colhiam ervas suficientes para atravessar o inverno. Hidratadas, as folhas secas, sementes e talos que colhiam durante a primavera e o verão produziam uma variedade de elixires que curavam febres, machucados e outras queixas.
Mas isso fora muitos anos antes, na cabana da floresta, perfumada da fragrância pungente das ervas que pendiam em fardos amarrados das vigas do teto.
Alguma coisa do outro lado da clareira chamou-lhe a atenção. A princípio, Rianne pensou que fosse uma ilusão de ótica, ou sua imaginação, embora seus sentidos se aguçassem e lhe dissessem que não era.
Então, a névoa rodopiou em torno de uma figura solitária. A criatura parecia não ter substância alguma. Logo depois, lentamente, tomou forma e pairou sobre o solo conforme chegava mais perto. Rianne percebeu que as sombras ondulantes eram as dobras do manto que a criatura usava, as bordas a flutuar naquelas correntes de ar, o capuz caído sobre a face, as feições escondidas.
Atrás, Kari parou de cantar e se aproximou de Rianne. Esta sentiu o medo da garota no mesmo instante, e ele se tornou seu próprio temor no gosto metálico que subiu por sua garganta. Vozes murmuravam como se brotassem de antigos sonhos. As ervas que colhera caíram de seus dedos. Com a faca na mão, fez um gesto para Kari, enquanto recuava devagar.
— Vá embora! — murmurou com veemência. — Volte! Rianne empurrou a garota para longe.
— Corra! Não olhe para trás, não importa o que ouça.
As palavras soaram tão enérgicas como tinham sido as de Dannelore, naquela noite, havia muito tempo, quando a mandara fugir da cabana.
Kari voltou-se e fugiu da clareira.
— A criança se tornou mulher — disse a criatura, a voz sem corpo, humana, e, no entanto, sobrenatural, no murmúrio baixo e rascante que chegou até Rianne como um vento gelado.
— Quem é você? O que quer?
As feições se aclararam e a criatura tomou a forma de uma mulher. Seus cabelos eram longos e negros. E os olhos que fitavam Rianne eram os olhos da morte.
— Você sabe quem eu sou. Já nos encontramos antes.
— Não a conheço.
Olhos tão frios e sombrios reluziram ao se cravarem em Rianne.
— Ah, mas você me conhece, sim.
Rianne se viu menina, parada ao lado das ruínas de sua casa, as chamas a saltarem para o céu da noite, a fumaça a se misturar às nuvens de névoa ondulante. O cheiro travou-lhe a garganta. E, novamente, ela sentiu o sangue nas mãos.
Kari, quase histérica, agarrou-se na frente da túnica de Tristão, que quase alcançara a clareira.
— Você precisa ajudá-la! Ela vai ser morta! Ele se desvencilhou das mãos da garota.
— Volte para o acampamento!
Tristão avistou Rianne nos limites da clareira.
— Precisa matá-la! — ela exclamou ao vê-lo. Ele esquadrinhou a clareira e não viu nada.
— Não há nada lá.
— Está lá! Eu vi! Precisamos matá-la!
Tristão não tinha idéia do que Rianne vira. Fosse o que fosse, sumira.
— Não há nada lá!
—Você tem de ter visto! — Rianne tremia, furiosa, os olhos a faiscar de raiva.
Tristão já presenciara as mudanças de humor de Rianne, e também seus disfarces. Não era nem uma coisa nem outra. O medo e a raiva eram reais. Ela vira... bem, alguma coisa. Kari também vira. A garota ficara aterrorizada. Mas fosse o que fosse que tivessem visto, sumira.
— Não vi nada. Contudo tomaremos mais cuidado. Por essa razão eu não queria que você fosse embora por conta própria.
Ela resmungou, frustrada e impotente.
— Estava ali. Eu vi. Ainda está por aí.
— O que ainda está por aí? — Grendel indagou, quando finalmente chegou à clareira.
— Nada! — Rianne bufou. — Não há nada!
Passou por ele, seus pensamentos agora direcionados a Kari. A garota estava apavorada e voltara sozinha para o acampamento.
— Quer, por favor, me dizer o que se passa? — inquiriu Grendel.
— Nada! — Tristão esbravejou ao retornar ao acampamento.
Estavam prontos para partir e o sol já subia no horizonte. O garanhão negro parecia ter sentido o mau humor do dono. Sacudiu a cabeça quando Rianne ia montá-lo, o focinho arrega-nhado sobre os dentes brancos. Jogou a cabeça para trás e retesou-se contra a brida, mas não tentou mordê-la.
Tristão saltou atrás de Rianne, e quase sorriu quando ela se encolheu para o mais longe possível. Seus longos braços a puxaram contra o próprio peito, tornando impossível escapar. Para onde quer que ela se virasse, a cada movimento, ficava em contato íntimo com o guerreiro.
— O que viu na clareira? — ele perguntou.
— Pensei ter visto alguém. A princípio julguei que fosse um homem, mas depois... Havia muita sombra. Estava escuro. Não posso ter certeza.
— Se não era homem, então o que era?
— Uma mulher.
Tristão não disse nada por um longo tempo. Então indagou:
— Como ela era?
— Não era muito alta, embora o homem fosse alto.
— Era homem ou mulher?
— Não sei... Vi ambos.
— E ao mesmo tempo?
— Não. Primeiro, o homem. Então as feições mudaram e vi a velha.
— Você o conhecia?
— Eu o vejo nos meus sonhos... — ela murmurou, hesitante. — Está cercado de sangue e de morte... — Estremeceu conforme as imagens terríveis retornavam. — Ele é o sangue e a morte.
— E a mulher? Está em seus sonhos também?
— Não, porém eu a conheço. Não sei como, mas conheço. Tem longos cabelos negros e olhos frios e mortiços.
Grendel a encarou quando sua montaria se aproximou do garanhão preto. Estremeceu ao penetrar os pensamentos de Rianne.
Uma mulher com longos cabelos negros e olhos frios e mor-tiços...
Dois dias depois chegaram a Glastonbury. A luz da torre do monastério os guiava pela chuva torrencial enquanto a noite caía. Estavam com frio, molhados, exaustos e cobertos de lama.
Após desmontarem no pátio do convento, Rianne cambaleou, insegura, e teria caído se as mãos fortes do guerreiro não a amparassem. Molhada, com lama pela face e os cabelos grudados na cabeça, ela parecia um gato afogado. E fez Tristão recordar-se de que os gatos tinham garras, ao fitar aqueles olhos azuis como duas chamas em meio à sujeira.
— Precisamos repetir esse passeio mais vezes — ele brincou.
— Nem por nada na vida, Tristão de Monmouth. Chegue perto de mim com esse cavalo outra vez e juro que vou des-tripá-lo como um bacalhau.
— Ora, ora. — ele retrucou. Estava preocupado que Rianne tivesse ficado doente. — Não é de seu feitio dizer uma palavra decente, quando pode usar uma mais agressiva.
Ela ia soltar uma fieira de palavrões quando um jovem monge se aproximou. Embora não tivesse sentimentos devotos, Rianne respeitava os dos outros.
— Estávamos esperando vocês. — Irmão Timothy os cumprimentou.
Tristão perguntou:
— Notícias de Monmouth?
Rianne não conseguiu ouvir a resposta, conforme ela e Kari eram acompanhadas para outra parte da abadia. Mas não foi preciso. Viu as feições sombrias de Tristão.
— Venha, homenzinho — padre Dunstan insistiu com Grendel. — Não precisa espreitar pelos corredores. Todos são bem-vindos na casa de Deus.
Grendel finalmente entrou nos aposentos privativos do abade.
— E feche a porta atrás de si! — padre Dunstan exclamou. — As correntes de vento estão de enregelar os ossos nesta noite terrível.
Grendel empoleirou-se no canto, de onde poderia observar sem ser notado e ouvir as conversas e os pensamentos não verbalizados. E, além disso, era o mesmo canto em que um fogo queimava agradavelmente num braseiro.
— Recebemos a notícia de que deveriam passar por aqui e os esperamos pelo dia todo — padre Dunstan disse a Tristão, enquanto servia uma dose reforçada de vinho quente para ambos.
Não ofereceu nada ao companheiro, sabendo que o homenzinho não bebia. Depois, o abade acomodou-se em sua cadeira; o vinho brilhava no cálice preso nas mãos.
— Demorou em voltar.
— A viagem não correu como esperado — informou Tristão. Falou da descoberta da cabana abandonada e que Rianne ficara sozinha por longo tempo. Não disse nada a respeito do encontro inusitado com a velha na cabana.
Padre Dunstan meneou a cabeça com tristeza quando Tristão terminou o relato.
— O que você acha? A garota é a filha de lorde Connor?
— Grendel acredita que seja. E há a semelhança das feições.
— Como ela se saiu nesses anos todos? É educada?
De uma certa forma, pensou Tristão, recordando-se da extraordinária perícia de Rianne no jogo. Remexeu-se ligeiramente ao dourar a verdade.
— É engenhosa e muito habilidosa com as mãos. E há a questão da outra garota que viajou conosco. Uma órfã infeliz que procura o abrigo da Igreja. Sofreu muito e foi tristemente maltratada. Mas tem um coração generoso e uma boa cabeça. Rianne esperava que a garota pudesse ser acolhida no santuário.
— Ah... Então, nossa pequena Rianne tem um coração generoso e benevolente também. Agrada-me muito ouvir isso. A garota é bem-vinda — o abade assegurou. — Encontraremos um lugar para ela. Será um conforto para Rianne ter a amiga tão perto.
Os pensamentos de Tristão se voltaram para seu lar.
— Que notícias tem de Monmouth?
O abade franziu a testa, a expressão muito séria.
— Muito graves, eu receio. A despeito dos melhores esforços de Meg e lorde Merlin, os ferimentos de lorde Connor não sararam e ele se mostra muito desgastado pela febre. Estou profundamente preocupado que você possa não voltar a tempo. Meu coração está pesado por lorde Connor e a sra. Meg. A volta da filha será um conforto para eles, com certeza.
Tristão desejou sinceramente compartilhar a fé do abade.
— A que distância acha que nos afastamos? — perguntou Kari, a voz a ecoar suavemente pelas paredes de pedra, no quarto mobiliado com simplicidade e que ficava ao lado da capela. A cada dia que se afastavam da hospedaria e de Garidor, Kari fazia a mesma pergunta.
— O bastante — Rianne lhe disse; e uma das mulheres que as levara até o quarto voltou com uma bandeja de comida, uma bacia de água e roupas limpas. — Você está a salvo — garantiu. — Ninguém irá machucá-la outra vez.
Como não houve resposta, virou-se e descobriu que Kari caíra adormecida enquanto conversavam, ficando a comida à sua frente intocada e a cabeça aninhada no braço dobrado.
— Você está segura — repetiu, baixinho, enquanto a garota dormia placidamente, talvez pela primeira vez na vida.
Rianne tirou as roupas molhadas e as botas de Kari, e carregou a menina para uma das camas. Cobriu-a com uma manta grossa. Depois, deitou-se ali perto. Mas o sono demorou a vir.
Não podia ficar em Glastonbury. Tristão estava resolvido a levá-la a Monmouth, e ela igualmente determinada a não ir.
Não havia nada para ela lá. Aquela gente não significava nada em sua vida. O vínculo, se de fato alguma vez existira, fora cortado fazia longo tempo. Descobrira a verdadeira amizade e uma lealdade mais profunda com Kari, muito mais do que com aqueles com quem supostamente compartilhava um laço de sangue.
Sua promessa à garota fora mantida e, por mais que lamentasse a perda daquela amizade, sentia consolo com o fato de que Kari se encontrava agora em segurança. Garidor nunca a machucaria outra vez. E, quando a manhã chegasse, Rianne estaria bem longe de Glastonbury.
Levantou-se antes do alvorecer. Enviou à amiga adormecida um gesto de adeus e, em seguida, seguiu pelos corredores até o pátio. Passou por vários monges em suas preces matinais, porém eles não prestaram atenção a ela. Assim que estava do lado de fora, seguiu para os estábulos.
Imporia mais distância entre si e Tristão se estivesse a cavalo. Quando não precisasse mais do animal, poderia vendê-lo.
Os cavalos a farejaram assim que Rianne entrou no estábulo. Uma cabeça escura apareceu de repente na grade da baia, com os olhos negros e inquisidores cravados nela. Rianne procurou pelo dócil ruão que Kari montara.
O garanhão negro relinchou da baia vizinha.
— Ninguém pediu sua opinião! — ela exclamou, como se conversassem em algum idioma antigo. — E não preciso da sua permissão.
O cavalo negro sacudiu a cabeça como se estivesse profundamente desgostoso.
— Nem ninguém pediu minha opinião ou minha permissão. Rianne fez meia-volta e deu de cara com Tristão. Braços cruzados no peito, ele cravou os olhos nela. Qual seria a desculpa?, pensou. Uma mentira? Ou uma história triste? Não mentiria se fosse a filha de Meg.
— Não preciso da sua opinião ou permissão! — Rianne exclamou, e puxou o ruão para fora da baia.
— Ah, precisa, sim, Rianne — ele asseverou. — Foi confiada aos meus cuidados. Não pode partir sem a minha permissão.
— Por quem? — ela indagou, com as mãos plantadas nos quadris.
— Seu pai e sua mãe.
— Não tenho pai nem mãe. Estão mortos.
— Estão bem vivos — Tristão afirmou. — E não se engane quanto a isso, você vai para Monmouth.
— Não pode me obrigar a ir com você! — ela exclamou.
— E não mudarei de idéia. Esta é minha escolha. Não sua nem a de gente de quem não me recordo, que não precisa de mim a não ser para seus próprios propósitos.
Rianne recusava-se a se sentir intimidada. Ou que lhe dissessem o que poderia ou não fazer. Não obstante o jeito com que Tristão erguia o queixo, sugeria que ela talvez tivesse exagerado. Um aviso instintivo perpassou-lhe os sentidos.
Tristão suspirou fundo. Aproximou-se devagar.
— Fique longe de mim — Rianne avisou, firmando os pés no chão com um ar de desafio.
Ele a encarou. Havia algo naquela raiva, teimosia e impe-tuosidade em face de uma disparidade absoluta que fazia Tristão recordar-se de lorde Connor. Mais uma razão para que ele a levasse a Monmouth.
— Você tem duas escolhas, Rianne. Ou monta aquele cavalo, ou vai atravessada como um saco de grãos. Mas — assegurou —, vai para Monmouth.
Rianne teve vontade de rir. Tristão com certeza estava brincando. Ela aprendera muito desde que o guerreiro e o gnomo tinham entrado em sua vida.
Concentrou os pensamentos e, numa explosão de energia, dirigiu-a contra ele. Sua intenção era mandá-lo se esparramar na palha, como fizera com Grendel na clareira da floresta. Mas aprendeu de imediato outra valiosa lição que dizia respeito a tamanho e peso.
Tristão era mais alto e bem mais pesado que o homenzinho. Em vez de mandá-lo ao chão de costas e conseguir uma oportunidade de escapar, o golpe atingiu-o no queixo, pouco mais que um soco bem desferido.
— Você não me deixa escolha, milady. — Como uma raposa a perseguir uma lebre, ele se atirou sobre Rianne.
O impulso os jogou em uma baia aberta. Antes que Rianne pudesse reagir, Tristão estava sobre ela, que caíra de bruços, o rosto enterrado na palha. Então, sentiu os joelhos do guerreiro em suas costas enquanto seus braços eram puxados para trás e amarrados.
Assim que Tristão se levantou, Rianne virou-se de costas. Cuspiu a palha da boca e outros palavrões medonhos, muitos que ele já ouvira e vários que nem conhecia.
— O que foi que disse, milady? — ele comentou, o sorriso a se transformar numa careta. — Não precisa me agradecer. Você é bem-vinda. Afinal, eu não gostaria que você se machucasse na viagem para Monmouth.
— Seu desgraçado! — ela gritou, erguendo-se para poder encará-lo. — Seu porco! Miserável filho de uma...
Tristão entrou na baia ao lado, pegou a sela e jogou-a no dorso do garanhão negro.
Rianne cuspiu mais palha e berrou, o ar ondulando com o ardor de sua fúria.
— Recuso-me a ir a Monmouth!
— Isso dificilmente parece digno de discussão no presente momento — Tristão retrucou, ao amarrar a cilha no lugar e conduzir o garanhão para fora da baia.
— O que é isso? — Grendel indagou ao entrar no estábulo e olhar de Tristão para a baia onde Rianne encontrava-se sentada sobre um monte de palha. — Aconteceu alguma coisa?
Rianne estava suja e com ar patético. Os olhos luziam como poças gêmeas de fogo azulado.
— Vou lhe arrancar o coração! — ela ameaçou Tristão. — Mas, primeiro, acho que começarei por cortar sua garganta.
— Já ouvi isso antes.
— Talvez seja melhor ser gentil, milorde — Grendel sugeriu. Embora os poderes da jovem fossem descontrolados, isso apenas a tornava ainda mais perigosa.
Ignorando o olhar fulminante que Rianne lhe endereçava, Tristão pegou-a pelos ombros e colocou-a de pé.
— Esquentar seu traseiro seria muito interessante no momento.
— Não se quiser manter seus colhões! — ela esbravejou.
— Jesus amado! — Tristão exclamou, assombrado. — Você tem uma boca que faria qualquer guerreiro do exército de Arthur passar vergonha.
— Solte-me e não terá de ouvir outra palavra — Rianne barganhou.
Era tentador. Uma boa surra também era. Em vez disso, ele a puxou pelos ombros e a beijou. Não por uma mera experiência, como ela o beijara, mas completa e profundamente, sem nenhuma ternura.
O beijo a deixou aturdida. Queimou o corpo de Rianne como fogo sem controle, chamuscando cada terminação nervosa... incendiando-a. Seus dedos se curvaram em punhos cerrados onde estavam amarrados às costas. E, de repente, ansiou por tocar Tristão, apoderar-se daquele calor até que a consumisse.
Ele a afastou. Levantou-a como um saco de farinha e jogou-a atravessada na frente da sela.
Aquele pouco ar que restara foi arrancado de seus pulmões quando Rianne pendeu de cabeça para baixo, deitada de bruços sobre a sela. Então, o guerreiro montou atrás, o joelho a bater em suas costelas.
Ela arqueou as costas na tentativa de se jogar no chão, e recebeu um tapa ardido no traseiro. Gritou de dor, frustração e raiva. Virou a cabeça e o encarou com um olhar assassino, quase se esquecendo do beijo.
— A escolha é sua, milady — Tristão avisou, numa voz sedosa, com a mão pousada na nádega redonda, e um sorriso maldoso nos lábios.
Rianne fechou a boca bem apertada, mas a expressão em seu olhar era mortífera.
— Escolha excelente, milady — ele a cumprimentou, conforme enterrava os calcanhares no lombo da montaria e incitava o garanhão negro a sair do estábulo num trote de quebrar os ossos que impedia qualquer outra palavra.
Grendel ficou a observá-los, horrorizado. Então, um sorriso lento e malicioso espalhou-se por sua face.
Tirou o ruão do estábulo, subiu na cerca como se fosse uma escada e depois saltou para a sela. A simples idéia de cavalgar um cavalo novamente depois das últimas semanas era suficiente para fazê-lo estremecer. Porém, não podia esperar para ver o próximo espetáculo!
As novidades do exército oriental?
Connor lutou contra a dor, que era uma presença constante, sentindo a pele úmida de um suor frio que o banhava.
— Não vim falar de estratégia militar — retrucou Arthur, da cadeira oposta.
Estavam sentados diante do fogo no quarto menor do lado de fora do grande salão. Meg ocupava a cadeira ao lado do marido. E Merlin olhava pensativo pela janela.
— Então, por que veio?
A doença devastadora dos ferimentos que ele recebera várias semanas antes não embaraçava aqueles olhos aguçados.
— Para ver meu amigo — Arthur disse, com honestidade, escolhendo as palavras com cuidado. — Já que você está muito ocupado para ir a Camelot.
— Veio ver se eu ainda estou vivo? Meg voltou-se para ele com preocupação.
— Para caçar — o rei contra-atacou secamente, com a tranqüila camaradagem que haviam partilhado desde a juventude. — Suas florestas são bem mais ricas em caça do que as que rodeiam Camelot.
— A localização de Camelot foi sua escolha — Connor ponderou.
Apreciava a companhia do amigo, que falava com palavras cruas e dizia verdades simples, e não deixava o quarto a chorar, como outros faziam.
A morte era parte da vida. Todo homem que carregava uma espada em batalha aceitava que sua vida poderia terminar a qualquer momento. Tinha apenas um pesar, e seu olhar suavizou-se ao procurar e encontrar a esguia criatura com quem compartilhara a existência e a paixão durante todos aqueles anos.
Os anos não a tinham mudado. Meg era ainda mais bela agora. Não havia sinal do sofrimento e da tristeza que ela suportara com a perda da filha amada que os dois haviam sido forçados a mandar para longe, nem da verdade que agora partilhavam com a morte tão próxima.
Aquela verdade sempre estivera ali, pois Meg não era vinculada à lei do mundo mortal como Connor. Chegaria o dia em que ele ficaria velho e morreria, enquanto ela, não.
O amor que nutriam um pelo outro perduraria enquanto um deles estivesse vivo para se recordar.
Meg o encarou ao lhe captar os pensamentos. Connor sentiu o amor da esposa alcançá-lo, e o seu a envolvê-la. Sempre fora assim, não importava a distância que os separava. Tudo que era preciso era um pensamento terno que se estendia pelo tempo e espaço entre os dois. E assim seria para sempre.
Porém havia uma apreensão também. Connor a viu nos olhos de Meg. A cegueira que lhe roubara a visão não podia ocultar as emoções. E ele conhecia aquela apreensão. Outro dia se passara e ainda não havia notícias de Tristão.
O ataque a Monmouth, semanas antes, fora apenas o primeiro de muitos outros. A paz duramente conquistada do reino de Arthur fora destroçada por um inimigo desconhecido que se movia com a rapidez de um raio e deixava morte e destruição em seu rastro.
— Aconteceram pelo menos uma vintena de ataques ao longo da fronteira — Connor continuou. Era preciso fazer planos. — Vamos falar da verdadeira razão que o traz a Monmouth?
Arthur lançou um olhar para lady Meg. Tinha um profundo respeito por ela e valorizava sua amizade, e, não obstante o fato de que era rei, não guardava ilusões de que exercesse qualquer poder sem aquela fortaleza. Como se sentisse seus pensamentos, Meg meneou a cabeça.
— Não hesite por minha causa. Se desejar falar de guerra, fique à vontade — disse ela, jogando os braços para o alto. — Connor não descansará quando deveria, de qualquer forma. Levantou-se e jogou o trabalho de tecelagem na cesta a seus pés com incrível previsão. — Ele é meu marido, mas sempre será o general do rei.
Com a mesma habilidade que a guiava a despeito da cegueira, Meg rumou para a porta. Bateu-a atrás de si, fazendo o som ecoar pelas paredes de pedra no imenso salão, e sentiu um pequeno alívio na raiva e sensação de impotência.
— Se eu tivesse uma legião de guerreiros tais como ela, não haveria ameaças ao meu reino — Arthur resmungou, pensativo, diante da partida apressada de Meg. — Você é um homem feliz por ter uma criatura tão leal e resoluta em sua vida.
— Sim — concordou Connor, com um sorriso. — Meg é uma mulher apaixonada.
Merlin deixou o quarto assim que a conversa voltou-se para questões de estratégia e guerra, e seus pensamentos retornaram àquela presença incomum que sentira quando estava de pé diante da janela.
Cada osso no corpo de Rianne doía. A beira da sela se enfiava entre suas costelas, e os músculos de sua perna repuxavam de cãibras. Seus cabelos tinham se soltado, cegando-a e sufocando-a ao mesmo tempo. E a cada passada da montaria, sua cabeça batia contra uma coxa dura e musculosa.
Ela ultrapassara o ponto da raiva, da humilhação e da indignação. Mas não da vontade de praguejar. Com os dentes cerrados para impedir que batessem com o sacudir da cabeça, Rianne xingou e disse exatamente a Tristão o que pensava dele, da família e do rei. E recebeu um tapa ardido no traseiro outra vez, que a fez erguer a cabeça de incredulidade.
— Toque em mim outra vez...
Um segundo tapa acertou-lhe a nádega. Lágrimas de humilhação a cegaram. E ela resolveu concentrar-se em sobreviver.
Monmouth ficava a meio dia de viagem, a oeste de Glastonbury, pela antiga estrada romana. Chegaram em menos da metade do tempo cortando pelos campos cobertos de lama da neve derretida, cruzando vários riachos e se embrenhando por florestas densas e coberta de vegetação rasteira.
Quando passaram pelo cume da colina que dominava Monmouth e o pequeno vale abaixo, Tristão avistou os estandartes que flutuavam na torre mais alta. As cores de Arthur se agitavam ao lado das do duque de Monmouth. Rezou para que tivessem chegado a tempo ao incitar o corcel negro num galope pela encosta, rumo à fortaleza fortemente guarnecida.
Os portões principais estavam abertos quando ele se aproximou. Ao entrar, Tristão saudou o mestre da guarda. O pátio principal estava lotado de cavalos, guerreiros e a infantaria montada.
Ele puxou as rédeas e desmontou. Um garoto que cuidava dos estábulos se aproximou e tomou as rédeas da montaria. Como um saco de grãos, Tristão pegou Rianne da sela e jogou-a em seu ombro. Ela deu um gemido abafado, que confirmou que ainda estava viva.
Guardas olharam quando ele atravessou o pátio e subiu os degraus. Ao chegar ao último, a porta do salão principal se abriu.
Sem cerimônia e gentileza, Tristão tirou o fardo leve do ombro e depositou-a aos pés do homem imponente que se postara ali.
— Lady Rianne de Monmouth — Tristão anunciou ao apresentar o monte descabelado que jazia aos pés de Merlin.
Rianne ergueu-se sobre um dos cotovelos. Estava machucada, exausta e furiosa, e usou das poucas forças que lhe restavam para se sentar ereta. Soprou os cabelos na tentativa de afastá-los dos olhos. Estavam molhados, embaraçados e cheios de lama.
Ela também estava molhada e suja. Suas roupas tinham lama, carrapichos e espinhos que cresciam entre Monmouth e Glastonbury. Sacudiu a cabeça, revelando feições também manchadas de lama, sujeira e outros elementos suspeitos. Era uma triste visão e tinha um cheiro bem pior.
— Seu filho de uma vadia! — berrou para Tristão. — Seu porco! Seu monte de estérco de bode!
Tristão sorriu para Merlin com satisfação irônica.
— Ela é toda sua. Desejo-lhe boa sorte, senhor. Vai precisar.
— Deixou-a ali, a praguejar para todos os habitantes de Monmouth ouvirem.
Merlin poderia tê-la calado com um único pensamento. Porém estava fascinado pela criatura que se debatia com fúria a seus pés.
Sentira sua aproximação, mas nada dissera à irmã porque queria ter certeza de que aquela que retornava tratava-se, de fato, da filha de Meg e Connor.
Era quase impossível dizer com base na aparência. Não havia absolutamente nada naquela criatura imunda, barulhenta, malcriada, que sugerisse até mesmo um laço remoto ou com Meg ou com Connor. Estava vestida como uma pedinte comum e tinha o comportamento de uma víbora. Acima de tudo, fedia como o chão de um estábulo.
— Quem é você? — Rianne perguntou, furiosa, a encará-lo, o que revelou olhos tão brilhantes como chamas azuis em meio à sujeira e ao cheiro ruim. Então, aqueles olhos de um azul incomum se arregalaram, e ela se calou.
— Ah... Então há esperança, afinal — Merlin comentou em voz alta, quando seus pensamentos se ligaram aos de Rianne. Descobrira o laço familiar, muito embora todas as aparências exteriores dissessem o contrário.
Ela possuía o dom. Os poderes da Luz eram fortes dentro da jovem, apesar de não serem refinados e controlados, e de estarem à mercê de suas emoções.
— Tive receio, pois você não é exatamente o que eu esperava, mas teremos de nos contentar. Sua educação será a segunda coisa na lista.
Educação?
— E qual é a primeira? — Rianne indagou, os pensamentos a responder instintivamente a ele, apesar da cautela e da raiva.
— Um banho — Merlin anunciou em voz alta. — Talvez vários. O que for necessário para livrá-la dessa sujeira e desse fedor.
— Um só será ótimo — ela o informou, e sua habilidade se aprimorava a cada instante.
E Merlin respondeu com firmeza:
— Serei o juiz desse assunto.
— Por que não me contou? — indagou Meg, andando de um lado para outro do quarto. — Era necessário saber pelos guardas que minha filha voltou? Eu deveria ter sido informada imediatamente! — Parou de andar e fez meia-volta. — Onde está ela? Quero vê-la. Há tanta coisa a dizer... — Sua voz falhou.—Eu havia perdido a esperança. Não tinha sonhos nem visões que me falassem disso. Por quê?
Então, o medo fechou-se em torno de seu coração. A viagem fora longa e talvez perigosa. Depois daquilo que acontecera a Monmouth...
— Ela não foi ferida de alguma forma, foi? — perguntou, ansiosa.
— Está bastante bem—respondeu Merlin ao fechar a mente para as outras coisas que contaria a Meg em breve.
— E quanto a Tristão e Grendel? Por que não a trouxeram diretamente a mim? Onde estão John e Dannelore? Voltaram também? Faz tanto tempo desde a última vez que os vi...
Afastou-se de Merlin, as mãos entrelaçadas, as faces coradas de uma empolgação e felicidade que ele não via fazia um longo tempo.
— É preciso preparar uma refeição especial. Iremos celebrar. Isso não será muito difícil para Connor? — A menção do nome do marido, seus planos mudaram. — Não, seria bastante cansativo para ele. — Então, cedeu ao próximo pensamento. — Fale sobre ela. Como é? De que cor são seus cabelos? É loira ou morena como Connor? E os olhos?
— São azuis — informou Merlin. — Tem os olhos da mãe.
— É sensitiva?
— Possui certas habilidades. Porém é cedo demais para saber quantas. Afinal, é metade mortal. — Merlin fez uma pausa e percebeu que não escondera sua preocupação de Meg.
— Existe alguma coisa que você não está me contando. O que é? O que aconteceu?
Ela precisava saber, pois logo seria informada, e Merlin queria aliviar o choque.
— Dannelore e John não voltaram—disse, procurando uma maneira gentil de explicar a situação. Sempre julgara as emoções mortais difíceis e desagradáveis, mais um estorvo que uma vantagem. Principalmente depois dos meses passados.
— Aconteceu alguma coisa a eles.
Merlin percebeu que Meg captara seus pensamentos, as imagens obtidas no encontro com Rianne. Quando penetrara na mente da jovem em busca de sua essência para conhecê-la, também soubera da tragédia da morte dos guardiões, os anos solitários de desespero que se seguiram, e a vida que ela vivera.
Eram somente fragmentos de imagens. Mas apenas um vislumbre fora o suficiente para lhe dizer que Rianne sofrera muito. Não tinha sido criada com gentileza, protegida e abrigada. Fora deixada ao deus-dará, para sobreviver à própria custa, extraindo forças de suas partes mortal e imortal, e se tornara a jovem que era agora. Uma jovem bem diferente da imagem que a irmã guardava no coração e pensamentos durante todos aqueles anos.
— Sim — Merlin murmurou com doçura ao abrir os pensamentos completamente para deixar que Meg visse qual fora a vida que a filha levara.
Meg afundou na cadeira. Tudo que sentia era sofrimento e tristeza.
— O que foi que eu fiz, irmão? — murmurou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto.
Ele pousou a mão reconfortante em seu ombro e tentou consolá-la.
— Fez a única escolha que poderia fazer. Não tinha como saber o que o futuro reservava.
— O que ela deve pensar?
— Está zangada. Suportou muita coisa e aprendeu a esconder os sentimentos. Não confia facilmente.
— Muito parecida com alguém que conheci tanto tempo atrás, que aprendeu a confiar e a amar. Se existe o suficiente de Connor dentro dela, então talvez possamos encontrar um jeito de abrir seu coração para nós.
— Acaso eu também mencionei que ela é extremamente teimosa, cabeça-dura, altamente inteligente, deveras racional e muitíssimo emocional? Ah... e dona de um vocabulário bastante incomum.
— Uma combinação imprevisível — Meg comentou com um sorriso suave. Talvez houvesse algo dela própria na filha, afinal. — Falta tão pouco tempo...
Sua voz tornou-se tristonha ao pensar nas forças de Connor, que se esvaíam mais e mais.
— Como chegaremos até ela? Como iremos curar o sofrimento do passado? Por onde começar?
— Sugiro um banho.
— O que estão fazendo? — Rianne perguntou, com ar de suspeita, quando as duas mulheres avançaram em sua direção.
Não havia como escapar da pequena antecâmara perto da cozinha, a não ser pela porta atrás das mulheres. Rianne pensou na promessa de Merlin, e imediatamente praguejou por haver acreditado nele, quando dissera que ela poderia ir embora assim que desejasse.
Merlin. O nome conjurou pensamentos de uma miríade de histórias que ela ouvira sobre o conselheiro do rei. Bruxo, alguns o chamavam. Feiticeiro, mago, outros murmuravam.
Alguns diziam que era capaz de se transformar em diferentes criaturas. Outras, que ele era uma cria do demo. Era preciso admitir: tais histórias eram contadas pelos inimigos de Arthur. Mas nada a preparara para o homem que se postara diante dela quando finalmente conseguira afastar os cabelos do rosto.
Era alto, com feições belas e enxutas, e longos cabelos negros que flutuavam até seus ombros. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca curvada numa expressão de desagrado quando a fitara com aqueles olhos azuis.
Rianne não ficara com medo. Não era uma questão de medo. Era uma questão de conexão, como Grendel tinha ligado os pensamentos aos dela, só que de uma forma mais intensa.
Merlin tirara a corda de seus pulsos. O primeiro instinto de Rianne fora de fugir.
— Vá, se é isso o que deseja — ele dissera, com uma indiferença que a deixara cheia de suspeitas. — Os guardas não a impedirão. Embora eu não possa falar por sir Tristão, você parece estar em conflito com ele. — Erguera a mão num sinal de silêncio. — Sim, eu sei. Não há necessidade de berrar todos aqueles nomes outra vez. — Dera uma risadinha. — Muito pitoresco, realmente. Não é o que eu esperava. Nem o que sir Tristão esperava também. Sua expressão mudara.
— Mas você deveria ficar, há comida e conforto. E segurança. Esta é a sua casa, afinal. Levará algum tempo para se acostumar. A menos que... — Fizera uma pausa para um exame demorado dos trajes medonhos de Rianne — haja algo melhor à sua espera em algum outro lugar.
Não havia, claro, e ele sabia disso.
— E se eu quiser ir embora? — Rianne indagara.
— Pode ir assim que escolher — Merlin lhe assegurara.
— Sem truques?
— Sem truques.
— Muito bem — ela concordara, sem vontade de estar no lombo de um cavalo naquele mesmo dia. — Ficarei por esta noite. Mas pretendo partir pela manhã. — Estremecera. — E precisarei de um cavalo.
O que estava acontecendo agora não fazia parte da barganha, e Merlin não se encontrava ali para discutir a questão.
Foram necessários dois banhos para livrar Rianne de toda a sujeira que acumulara na viagem desde Glastonbury.
A água quente era uma experiência incrível. Ainda mais incrível era o sabão de ervas de aroma extremamente agradável. Tinha cheiro de pinheiro da floresta, de folhas perfumadas esmagadas e, o mais estranho, de botões de rosa.
Disseram-lhe que lady Meg, a senhora de Monmouth, preparava o sabão de ervas e todos os medicamentos que eram usados em Monmouth e na fortaleza do rei.
Lady Meg... sua mãe.
O pensamento trouxe de volta todos aqueles sentimentos de traição e abandono, de perguntas sem respostas, de solidão e incerteza. Também trouxe de volta toda a saudade da infância.
Era apenas um bebê quando a tinham mandado para longe. Dannelore explicara que isso acontecera para a sua própria segurança. Mas, no fim, aqueles que lhe eram mais queridos haviam sido brutalmente assassinados.
Limpa e perfumada, Rianne sentou-se diante do fogo para secar os cabelos. Pensar em seus pais trouxera vagas imagens que jaziam no mais profundo íntimo de seu ser. Não mentira quando dissera a Tristão que eles estavam mortos. Para ela, era como se estivessem mortos.
A mulher de nome Hedda saiu, e outra entrou silenciosamente no quarto. Movimentava-se com uma graça tranqüila. Suas roupas eram de talhe elegante, sugerindo que talvez fosse de alta posição entre os membros da equipe de criadas. Trouxera comida simples, porém farta, em vez de oferecer a Rianne coisas extravagantes: vários pedaços de um pernil de veado, pão quente, ovos aferventados e pêssegos com mel. Depois de viver de perdiz esturricada e crostas duras de pão, aquilo lhe deu água na boca.
— Venha, menina — a criada disse ao ver Rianne devorar o último pêssego com mel. — Precisa se vestir, e depois eu trançarei seus cabelos. Mestre Merlin quer vê-la.
Rianne fez uma careta. Estava começando a repensar a barganha que fizera. Contudo ele seria forçado a manter sua parte no acordo. Olhou ao redor em busca de suas roupas, empilhadas num monte imundo enquanto se banhava. Tinham sumido.
Fez meia-volta.
— Minhas roupas...
Então, viu o vestido e a túnica que a mulher segurava diante dela.
O vestido era azul-claro, e o tecido, macio, com suaves pregas em torno do pescoço e nas beiradas das mangas. Rianne nunca vira algo tão fino. Parecia pluma de ganso. A túnica era feita de pano mais pesado, para ser usada sobre o vestido. Tinha um bordado nas bordas, nas mangas e na abertura da frente.
— Não preciso dessas coisas — Rianne anunciou, pensando onde estava o resto de suas roupas. Como as calças.
— Ah, vai precisar! — exclamou a mulher, com um sorriso gentil que se refletiu em seus olhos azuis muito claros. — Suas roupas foram queimadas.
— Queimadas?
Como ousaram fazer isso? Eram minhas roupas! Mesmo que estivessem um pouco sujas. Bem, realmente havia mais que só um pouco de sujeira. Mas, ainda assim, eram minhas.
Tinha duas opções no momento: poderia usar a toalha ou os trajes que a criada oferecia.
Resolveu que as roupas oferecidas eram decididamente mais confortáveis que a fina toalha molhada.
— Ora, tudo bem — concordou. Mas teria uma conversa com Mestre Merlin a respeito de algum traje mais apropriado. Não havia nada adequado ou prático no belo vestido azul e naquela túnica.
Vestiu-se e se julgou muito exposta. A elevação dos seios ficava discretamente acima da linha do decote. Começou a puxar o tecido.
— Onde está o resto?
— O resto? — A bonita senhora a olhou, confusa.
— Sim, as calças. Onde estão as calças? A mulher sorriu gentilmente.
— Não há nenhuma calça, pequena.
— O que usam por baixo?
— Não há necessidade de usar qualquer coisa por baixo.
— Claro que há — insistiu Rianne, a sacudir a barra da saia de um lado para outro conforme caminhava pelo quarto, tentando acostumar-se a arrastar o peso do traje. — O ar frio sobe e congela o meu traseiro.
A pobre criada engasgou de repente e começou a tossir.
— E não vou usar aquilo — Rianne apontou para os pequenos chinelos de couro. — Não vou enregelar meus pés também.
— Verei o que posso fazer a respeito de um par de botas. A mulher limpou as lágrimas, ainda lutando para não rir.
Pelos Anciãos, pensou. A garota era uma moça incomum e muito espirituosa.
— Agora, vai me permitir trançar seus cabelos? — perguntou. — Mestre Merlin a espera.
— Está bem — Rianne murmurou, com um suspiro resignado.
A criada era gentil, de mãos seguras, e trançou cuidadosamente as mechas fartas dos cabelos de Rianne, enquanto falava de coisas a respeito de Monmouth como se a jovem tivesse interesse nelas.
Eram coisas triviais; uma história engraçada sobre a cozinheira, um novo potro que nascera, a visita do rei, e os rumores de que ele pretendia cortejar lady Guinevere de Lyonesse.
Aquilo teve um efeito estranho e tranqüilizador em Rianne. Como se tivesse se sentado assim uma centena de vezes antes, a ouvir aquela voz suave e terna, enquanto mãos gentis trancavam fitas em seus cabelos. Ou talvez tivesse desejado que assim fosse.
Então, a mulher se pôs a falar acerca da alegria de lorde Connor e lady Meg, agora que a filha retornara; da saudade que tinham dela e de quanto ansiavam para que aquele dia chegasse; o que significava para eles ter a menina em casa mais uma vez, com lorde Connor tão doente.
Rianne percebeu que as mãos da mulher se imobilizaram e pousavam de leve em seus ombros. Era uma sensação agradável, não tão diferente de ser abraçada. Algo que não experimentava fazia um longo tempo.
Então, expulsou as lembranças indesejáveis para um canto escuro da memória.
— Se meu pai e minha mãe me amassem, nunca teria me mandado para longe.
Sentiu que as mãos se enrijeciam em seus ombros.
— Não seja tão dura em seus julgamentos, jovem senhora — a mulher disse com doçura. — Talvez haja coisas que lhe sejam desconhecidas. Razões que não poderia saber à época.
— Uma das mãos esguias estendeu-se e lhe acariciou os cabelos.
— Mas saiba que eles a amam muitíssimo.
Rianne levantou-se abruptamente da cadeira, as emoções de repente em torvelinho.
— Estou pronta para conhecer lorde Connor e lady Megwin — anunciou, agarrando-se à raiva e ao sofrimento que haviam protegido seus sentimentos durante os anos passados. E pensou, julgando que ninguém ouvia:
E, pela manhã, terei ido embora.
Tristão derramou a água da barrica sobre a cabeça e ombros, e estremeceu com o ar de inverno, enquanto se livrava da sujeira e do suor.
Depois de deixar Rianne no salão principal, ele mandara avisar que queria ver Connor. Cumprira a promessa feita a lady Meg. E seus pensamentos se voltaram para questões mais importantes que o tinham preocupado durante o tempo inteiro em que se ausentara.
Connor não estava melhor. Informações do pessoal da casa davam conta de que ele enfraquecia a cada dia que passava. Murmuravam que a morte era iminente.
Era essa a razão, então, para a presença de Arthur ali?
— Deveria ter esperado por mim!
A reclamação de Grendel arrancou-o do devaneio e o trouxe de volta ao presente. O gnomo parecia incrédulo.
— Você a jogou aos pés de Mestre Merlin? Keflech! Eu gostaria de ter visto isso.
Grendel chegara fazia pouco, a pé e coberto de espinhos de urze. Tinha um galo feio na cabeça. O cavalo não estava em parte alguma à vista.
Tristão sacudiu a água dos cabelos e os recolheu para trás com a mão em concha.
— Terá sua chance. Lorde Connor nos convocou para o salão principal, sem dúvida para anunciar a volta da filha. — Seu olhar estreitou-se sobre o gnomo.
Pegou o homenzinho pelo corpo forte, ergueu-o e o enfiou de cabeça na barrica de água.
Mais vários mergulhos e uma bela esfregada, em meio às muitas pragas e horríveis ameaças, e o gnomo finalmente cheirava melhor.
Rianne vira pouca coisa de Monmouth logo que chegara — era difícil, jogada sobre o lombo de um cavalo, e pendurada dos lados. E não pudera ver muito mais quando fora levada até o pequeno quarto privativo de banho do lado de fora da cozinha. Agora, conforme era conduzida para se reunir a Merlin, olhou para as imponentes paredes, os arcos, as passagens e os amplos ambientes de Monmouth.
Sabia pouco a respeito de lugares assim, só aquilo que ouvira em conversas em tavernas e hospedarias. Diziam que Camelot era grandioso. Ela não conseguia imaginar qualquer coisa mais imponente que Monmouth.
Sua lembrança de um lar era a cabana onde vivera com Dannelore e John. Desde então, morara em estábulos, em des-pensas, numa choça abandonada de lavrador, sobre pilhas de feno ou debaixo do céu aberto.
Ficara algum tempo na carroça de um mercador. Fora lá que usara pela primeira vez o disfarce de menino, tentara a sorte no jogo e descobrira seu talento. O mercador vira nisso um jeito de engordar a bolsa. E Rianne resolvera que não havia razão para que ele guardasse todo o dinheiro que ela ganhava, enquanto ela própria recebia apenas uma fina fatia de pão. Depois disso, lar era qualquer lugar que lhe desse abrigo da chuva e da neve.
A saia pesada da túnica continuou a se enrolar em suas pernas. Tropeçou. Sentiu que sua paciência se esgotava. Teria de repensar a barganha que fizera com Merlin.
— É assim que se faz — a mulher lhe disse e mostrou como Rianne deveria erguer a saia alguns centímetros para evitar pisar na barra. — Eu não sabia sua altura para mandar ajustar na medida exata.
Foi quando Rianne percebeu que a mulher confeccionara o vestido e a túnica. E a idéia de que alguém fizesse algo por ela era tão pouco familiar como o vestido em si.
— Nunca tive algo tão fino. — Falou com a franqueza e a sinceridade que lhe eram inerentes. — Vai demorar só um pouco até eu me acostumar.
— Obrigada — a mulher murmurou com ligeira surpresa. Obviamente, não esperava que o presente fosse apreciado.
Atravessaram o salão principal e Rianne parou, admirada com o tamanho. Seu olhar foi de imediato atraído para a imensa lareira. Era larga o bastante para um homem caminhar por ela, e as toras que queimavam ali tinham o tamanho de troncos de árvores. Então, seu olhar se ergueu para o estandarte de cores brilhantes que pendia na parede, no alto.
Havia um desenho nele no formato de um enorme pássaro dourado com as asas abertas, em um campo de um azul profundo. Uma criatura de aparência feroz que passava a impressão de poder e força.
Várias criadas apareceram conforme os preparativos para a refeição da noite eram feitos. Travessas de comida eram colocadas sobre a mesa, junto com grandes gamelas e tigelas com caldo fumegante. O estômago de Rianne roncou com o aroma delicioso e diante de tanta abundância e variedade.
Aquilo também era completamente desconhecido para ela, que sobrevivera de míseras côdeas de pão, um pedaço de queijo e um copo de leite quando tinha meios de comprá-los, ou de furtá-los, se não podia comprar. Muitas vezes passara sem nada para comer.
— Sua vida não foi fácil — a mulher comentou, causando espanto em Rianne, como se tivesse percebido a fome que a devorava por dentro, apesar da refeição que fizera. — Sinto muito por isso.
— Não é nenhum problema seu — Rianne retrucou, e pensou em Kari. — Existe gente que sofreu muito mais.
— Sim, cada um à sua própria maneira...
Aquela mulher tinha um encanto especial e, contudo, havia uma tristeza de cortar o coração em sua expressão que tocava fundo em Rianne; uma conexão de sofrimento e perda tão intensa e dolorosa que ela sentiu necessidade de confortá-la.
Foi um pequeno gesto, apenas um toque breve em sua mão, mas a mulher ergueu o olhar ao contato, com os olhos marejados de lágrimas.
Instintivamente, Rianne recuou, constrangida.
— Lorde Connor e a esposa estarão lá? — perguntou.
A expressão da senhora mudou, embora as feições se mostrassem pálidas e frágeis.
— Sim, e o rei também. Não quer conhecê-los?
— Nunca conheci um rei antes — Rianne declarou. — Soube que ele é corpulento e alto e que não pode nem mesmo montar seu cavalo, seus cavaleiros precisam içá-lo para a sela — Rianne repetiu o que ouvira na hospedaria de Garidor. — E depois, o pobre animal fica tão sobrecarregado que seus joelhos dobram. Também ouvi dizer que é careca e usa uma peruca feita do rabo de um cavalo para parecer que tem cabelos. E a razão de não ter uma rainha é porque prefere rapazes.
A senhora pareceu sufocar uma gargalhada.
— Pelos Anciãos! Bem que Tristão me avisou...
— Ele a avisou? — Rianne perguntou, cautelosa. Teria cometido um erro grave?
— Disse que você era muito... franca e direta. Chegou mais perto e pousou a mão no braço de Rianne.
— Lembre-se de uma coisa — disse. — Arthur é muito sagaz. Não se tornou rei por ser gordo ou tolo. E — sorriu — eu tenho autoridade para dizer que ele prefere as damas.
Guardas se postavam à porta da antecâmara. Passavam uma impressão que intimidava.
— Uma necessidade, desde que Monmouth foi atacada — a mulher explicou. — Estão aqui para sua proteção também.
— Prefiro cuidar da minha própria proteção — retrucou Rianne, e pensou: e o diabo que carregue a barganha que fiz com Merlin!
Maldito Tristão! Se não fosse por ele, agora não estaria ali. Aquela gente não significava nada para ela. Eram estranhos. Vivera a vida entre estranhos, sem nenhum vínculo nem qualquer necessidade de um. A não ser talvez pela amizade que sentia por Kari.
A mulher abriu a pesada porta e pareceu fundir-se com as sombras nos limites do aposento. Rianne sentiu a gentil pressão da mão na sua. Então, a criada desapareceu.
Ela se viu o foco dos olhares das pessoas. E, naquele vestido e túnica com os laços apertados, sentiu-se como uma perdiz, toda amarrada e pronta par ser transpassada e assada num espeto.
Corra! Vá para tão longe quanto for possível, antes que seja tarde demais! Pensou, mas já era muito tarde. Merlin se aproximou.
Ele sorriu ao captar os pensamentos de Rianne. Parecia que aquele falcão vibrante possuía o coração de uma pomba. Então, a mente de Rianne fechou-se para ele como uma porta na sua cara.
O sorriso de Merlin era enigmático, como se ele soubesse ou sentisse algo, e ela se recordou de todas as coisas que ouvira dizer sobre ele — feiticeiro, mago, bruxo. Não parecia diferente de qualquer outro homem. A não ser pelos olhos. Eram de um profundo azul, imperscrutáveis, perpassados de sombras e luz, de segredos e risos que chegavam até Rianne como se a enxergassem bem fundo em seu íntimo.
Estaria lhe roubando a mente? E a alma também? Ouvira dizer tais coisas a respeito de Merlin.
Contudo, era um ser de carne e osso quando a mão se estendeu para as dela, e Merlin puxou-a para dentro do quarto.
— Não é verdade, você sabe — disse ele, inclinando a cabeça e falando-lhe no ouvido.
— O que não é verdade?
— Eu não roubo almas. — Merlin piscou para Rianne quando seu olhar espantado encontrou o dele. — Eu acharia muito embaraçoso carregá-las todas em torno de mim. Desisti disso faz longo tempo.
Rianne não sabia se ria ou se o levava a sério. Era óbvio que Merlin tinha a faculdade de ler seus pensamentos.
— Posso ler — ele disse, e terminou com uma mensagem telepática: apenas se você permitir. E você tem a faculdade de ler os meus.
Agora Rianne tinha certeza de que Merlin brincava com ela. Lembrou-se de Grendel e seus truques.
— Há muito mais à sua espera, Rianne — disse Merlin ao acompanhá-la pelo aposento. — Se você permitir.
O que ele queria dizer com aquilo? Mas não houve oportunidade de perguntar, pois se aproximavam das demais pessoas. Rianne tomou coragem para o que desse e viesse. Aquela gente não significava nada para ela. Manteria a promessa feita a Merlin e encerraria o assunto.
Havia um homem sentado numa das cadeiras de espaldar alto diante da lareira, enquanto outro de altura imponente estava de pé do lado oposto. Ambos a observavam com intensidade. Um deles era seu pai.
Rianne sabia de seus ferimentos e presumiu que o homem sentado fosse lorde Connor de Monmouth. Vestia uma túnica de cor marrom-amarelada, calções e botas. Tinha belos cabelos castanho-avermelhados. Uma barba cheia, bem aparada, cobria seu rosto. Os olhos azuis eram agudos, especulativos, avaliadores.
— Filha.
Mas, mesmo antes de ouvir a palavra, Rianne já sentira que o homem sentado diante do fogo não era seu pai. E seu olhar se voltou para aquele de pé.
Era alto como um carvalho e de ombros largos. Não havia nada de fraqueza nele, a não ser que alguém olhasse em seus olhos. Rianne viu ali o calor da febre sempre presente, a dor a que ele se recusava teimosamente a sucumbir, e as sombras que empanavam o fulgor de um espírito vibrante.
Foi então, quando olhou de mais perto, que ela viu que a túnica pendia um pouco solta demais, a cor da tez era muito pálida, e percebeu o esforço que custava a ele ficar de pé. Não queria que ela o julgasse fraco ou doentio. Era por demais orgulhoso.
Nem era fraca a mão que se fechou sobre as de Rianne, mas forte e quente, a emanar o poder do guerreiro que empunhara uma espada a serviço de seu rei. Ao mesmo tempo, contudo, era incrivelmente gentil. E Rianne também sentiu que aquele homem, que não tinha medo de nada na vida, a temia.
Rianne. Sua filha. Depois de todo aquele tempo. As emoções dominaram Connor e ameaçaram lançá-lo de joelhos.
Tantos anos, tanto tempo perdido... Ele quase desistira da esperança de vê-la outra vez. Porém ali estava ela, agora.
Recordou-se do bebê de apenas algumas semanas de vida. Vezes incontáveis ele imaginara a criança. Mas não poderia nunca ter imaginado a beleza que ela se tornara, tão parecida com a mãe. Com um vislumbre de sua irmã no olhar desafiador e um lampejo de si mesmo no ângulo do queixo. Uma beleza invulgar.
O que dizer? Como dizer? Milhares de vezes Connor buscara as palavras e as descartara, e, em seguida, começara de novo. Agora, pareciam todas inadequadas. Sua mão se apertou sobre a de Rianne.
— Bem-vinda ao lar, minha menina.
Bem-vinda ao lar. Palavras simples. Não algum ato de contrição ou uma amabilidade sem sentido. Palavras simples que rasgaram as defesas de Rianne como nada mais poderia, a dispersá-las como folhas ao vento.
Ela se convencera de que não sentia nada por aquela gente. Estava certa de que poderia manter a barganha com Merlin e depois seguir seu caminho.
Bem-vinda ao lar. Mais que palavras, fora um vínculo o que Rianne procurara durante toda a vida. E estava ali, tão simplesmente, no calor daquela mão, a se estender pelos anos, pela dor e solidão que ela via também nos olhos dele. E isso a tornou humilde.
Toda a raiva e desafio se esvaíram. Rianne queria lhe dizer isso. Queria pronunciar palavras que pudessem de alguma forma confortá-lo como aquelas simples palavras a tinham confortado. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, sentiu uma presença ao lado, e uma mão forte a se fechar dolorosamente em torno de seu braço, num aviso silencioso.
— Se disser ou fizer alguma coisa para causar a algum deles uma angústia momentânea, quebrarei seu braço — Tristão murmurou no ouvido dela. — E depois quebrarei seu pescoço — emendou.
A ladrazinha suja, de face manchada e de roupas de garoto e maneiras e temperamento de um porco-espinho desaparecera. O menino fora substituído por uma bela mulher de feições surpreendentes. Era incrível o que um pouco de sabão e água conseguiam fazer.
Rianne não o vira quando entrara no cômodo. Sua concentração se focalizara inteiramente em Merlin e naqueles perto da lareira. Porém não o teria reconhecido, a não ser pelo olhar daqueles olhos dourados e escuros — que luziam como o brilho ameaçador das brasas no fogo antes de explodirem em chamas.
Tristão estava vestido todo de preto, numa túnica bordada com fios prateados que moldava seus ombros largos, calças pretas que destacavam as coxas musculosas, e botas também pretas, que luziam à luz do fogo na lareira. Os longos cabelos negros, ainda com gotas de água, caíam pelos ombros em ondas sedosas.
Rianne nunca o vira barbeado. Sem a sombra da barba, ele parecia menos um bandido, porém não menos ameaçador, com a mandíbula cerrada, a cicatriz pálida no queixo, aquela expressão dura nas feições belas e frias, e o olhar de aviso naqueles olhos dourados. Os dedos fortes se fecharam em seu braço, e Rianne pensou que seus ossos iriam arrebentar. Se pelo menos tivesse uma faca...
— Sir Tristão tem nossa imorredoura gratidão por trazer nossa filha de volta em segurança.
Uma mulher esguia saiu das sombras e juntou-se a lorde Connor. Pousou a mão suavemente no braço dele. O gesto era terno e familiar, até mesmo íntimo.
Com alguma surpresa, Rianne reconheceu a criada que a ajudara a se vestir. Franziu a testa, intrigada.
— Você aliviou nosso sofrimento e nos trouxe muita felicidade — ela continuou. — Meus agradecimentos do fundo do coração, sir Tristão.
Rianne imediatamente percebeu o erro tolo que cometera. Tinha presumido que a mulher que a ajudara a se vestir e que trançara seus cabelos fosse uma das criadas. Mas aquela que estava de pé, ao lado de lorde Connor, não era nenhuma serva. Era a senhora de Monmouth. Sua mãe!
Incontáveis emoções a invadiram, entre elas o sentimento de traição. Porém, quando seu olhar encontrou o de lady Meg, viu ali apenas tristeza.
Perdoe-me, Meg murmurou em pensamento. É que eu apenas queria a chance de ver você sozinha. Faz tanto tempo...
Sim, faz, Rianne respondeu friamente e depois fechou a mente com firmeza. E sentiu no mesmo instante a reação dolorosa de Meg.
Aquela percepção crescente das emoções dos outros era algo novo. Mas descobrira que não lhe proporcionava nenhum prazer causar a outra pessoa um sofrimento tão profundo e dolorido. Principalmente alguém que havia lhe demonstrado apenas gentileza e doçura.
— A refeição da noite está sendo servida — Meg anunciou, sem demonstrar mágoa.
Ao começarem a deixar o aposento, lorde Connor de repente se enrijeceu. Seu rosto tornou-se lívido e retorcido de dor.
De imediato, Meg enfiou o braço em torno da cintura do marido, a lhe apoiar o peso nos ombros delicados, enquanto Arthur o amparava do outro lado. Juntos, o colocaram numa cadeira.
— O que é?
Tristão ouviu a inquietação na voz de Rianne. Ela nem mesmo se dera conta disso, ou do fato de ter instintivamente estendido a mão na direção do pai. Pegou-a pelo braço. Dessa vez sua mão tinha um toque mais gentil, embora não menos insistente.
— O que há de errado com ele? — Rianne perguntou, com o semblante pálido e ansioso, quando deixou com relutância que o guerreiro a conduzisse para fora do aposento.
Tristão a fitou diante da repentina alteração no tom de voz de Rianne. Seria outra artimanha?
— O ferimento nunca sarou por completo. Enche seu corpo de venenos que o estão matando lentamente.
— E nada pode ser feito?
— Por que quer saber? Eles não significam coisa alguma para você — Tristão a relembrou, curioso a respeito daquela súbita preocupação.
O olhar de Rianne encontrou o dele. Havia algo na expressão daqueles olhos azuis, algo exposto, nu, ferido. E, no breve instante em que se revelou, Tristão reconheceu o sentimento em sua própria infância. O medo de deixar alguém chegar muito perto... o medo de perder, mais uma vez, tudo que lhe era querido na vida.
A raiva que sentia por Rianne desintegrou-se. Por um momento, viu de relance a criança magoada dentro dela, e isso o arrasou como nada que Rianne tivesse dito ou feito poderia. Então, desapareceu. A porta das emoções foi de novo fechada com força.
— Apenas presumi que, com suas extraordinárias habilidades, certamente Mestre Merlin poderia curar o ferimento.
— Tudo que poderia ser feito já foi tentado — Tristão assegurou. — Mas nem mesmo o vasto conhecimento de Merlin dos métodos de cura parece ajudar. — Seu pai está morrendo, embora nunca admitiria isso a você. Não poderia suportar que você o visse fraco e doente.
Sua mão se fechou sobre a de Rianne enquanto a conduzia para o salão. Os dedos dela estavam gelados. E a mão tremia.
Por fim, lorde Connor e lady Meg vieram reunir-se a eles. O duque de Monmouth sentou-se ao centro da longa mesa, rodeado por seus convidados, com lady Meg à esquerda e o rei, como hóspede ilustre, à direita. Rianne sentou-se diretamente em frente a eles, com Tristão ao lado.
Lorde Connor parecia ter-se recuperado. Contudo, havia sombras profundas sob seus olhos, e as faces estavam encovadas. E embora as maneiras de lady Meg fossem casuais, ela não saiu do lado do marido.
Rianne, por mais que se rebelasse contra isso, percebeu que seus olhos constantemente eram atraídos na direção de lorde Connor.
— Tome cuidado — Tristão avisou ao se inclinar para mais perto. — Alguém pode pensar que você realmente se importa com seu pai.
Um sorriso lento tomou forma nos lábios dela. E Tristão devia ter pressentido que estava em apuros. Com uma repentina impulsão da mente, Rianne entornou-lhe a taça de vinho. Esta caiu sobre a mesa, e o conteúdo espalhou-se pelas mangas da túnica do guerreiro. Com a boca curvada num sorriso travesso, ela murmurou:
— Você precisa ter cuidado, milorde.
Rianne nunca vira tamanha abundância de comida. Para alguém que com freqüência passava fome, tratava-se de uma experiência desconcertante.
Bandejas eram trazidas da cozinha num fluxo interminável, repletas de carnes assadas e de uma enorme variedade de pães, pudins, bolos, frutas e outras iguarias que ela não saberia nem mesmo nomear.
Uma travessa cheia de comida foi colocada à sua frente. O aroma de carne assada e molhos doces fez seu estômago roncar. Queria provar tudo. Mas descobriu um novo problema.
Comer sempre fora uma questão de sobrevivência. Era normalmente uma fatia de pão ou um pedaço de galinha assada furtada do fogão de alguém, e depois consumida às pressas, muitas vezes uns poucos passos adiante do dono por direito.
Rianne olhou ao redor e viu como as pessoas se comportavam. Não parecia muito complicado. Pegou a colher com séria determinação e a enfiou no prato. Era mais difícil do que parecia. A maior parte do caldo quase terminou na frente do vestido.
— Use sua mão esquerda — Tristão sugeriu, a voz baixa.
- E segure deste jeito. — Mostrou a ela como deveria segurar acolher.
O rubor queimou-lhe as faces. Rianne não queria se importar se espalhasse ou não comida em suas roupas. Mas se importava. De repente, pela primeira vez na vida, se importava e muito.
Bateu a colher na mesa e teria fugido se Tristão não a impedisse. A mão forte do guerreiro fechou-se suavemente sobre a sua, seus dedos a entrelaçarem os dela conforme os dobrava em torno do cabo da colher.
— Você é canhota — ele explicou com um sorriso. — Notei isso naquela noite, na hospedaria, quando ameaçou cortar uma certa parte do meu corpo. — Fechou os dedos de Rianne em torno do cabo. — Relaxe a pressão — Tristão sugeriu —, tal como se segurasse uma espada. Se apertar muito, irá tremer e derramar a comida.
Ele tinha razão, era muito mais fácil com a mão esquerda. Rianne recusou-se a encará-lo, mas não era próprio de seu temperamento mostrar-se ingrata.
— Obrigada — murmurou.
— O que disse?
— Obrigada — ela repetiu, um pouquinho mais alto.
— Não ouvi.
O olhar de Rianne se ergueu e encontrou o de Tristão, divertido. Ele tinha a mão em concha atrás da orelha.
— Que pena, sir Tristão—ela disse numa voz alta o bastante para que todos ouvissem —, não percebi que era tão velho. — E depois, ainda mais alto, emendou, com um sorriso largo: — Deveria ver alguém a esse respeito. Talvez Mestre Merlin possa ajudá-lo.
Ela era deliciosamente travessa. Uma lufada de ar fresco se comparada às mulheres, jovens ou não, com que ele se relacionara durante os últimos anos. E logo se cansara delas. Duvidava que pudesse se entediar com Rianne, simplesmente porque nunca poderia ter certeza do que aquela garota traquinas faria no momento seguinte.
O jantar estava em sua metade quando houve um rebuliço na entrada principal do salão. Os cães começaram a ladrar com pavoroso estardalhaço até que foram presos a um canto. Uma sombra esgueirou-se ao longo da parede e surgiu ao lado de Meg. Grendel.
Vários dos guardas de lorde Connor entraram escoltando um dos homens do rei, que acabara de chegar. Suas botas e manto estavam emplastrados de lama.
— Perdoe minha intrusão, Vossa Majestade — o cavaleiro saudou seu rei. — Mas acabei de voltar das terras das fronteiras e trago notícias de lá.
No canto, os cães se puseram a ladrar de novo. Olhavam o recém-chegado com inquietação. Lorde Connor ordenou que fossem retirados do salão.
— Junte-se a nós, sir Longinus — Arthur convidou o cavaleiro. — Conversaremos depois que tiver comido.
O olhar do cavaleiro percorreu a mesa e depois se cravou em lorde Connor.
— Minha gratidão por sua hospitalidade, milorde.
Tirou o manto e a couraça do peito. Era alto e se movia com aquela mesma energia contida dos guerreiros de elite. Inclinou a cabeça numa saudação a todos à mesa; então, seu olhar pousou em Rianne.
Connor fez as apresentações formais.
— Minha filha, lady Rianne, que retornou recentemente a Monmouth.
Longinus fez uma reverência, os olhos negros a se cravar nos dela.
— Parece bastante bem, depois de uma jornada tão longa, milady. Não deparou com nenhuma dificuldade?
— Cheguei em segurança — Rianne respondeu.
— Então, foi grandemente afortunada.
De novo, ele inclinou a cabeça, dessa vez com um leve sorriso que lhe enfatizou as feições bonitas. Depois, juntou-se aos cavaleiros de Arthur na ponta mais distante da mesa.
— Não gosto desse sujeito — Grendel murmurou entre os dentes ao surgir de repente ao lado do cotovelo de Tristão.
— Você não gosta de ninguém — Tristão ponderou.
— É verdade — concordou Grendel, e deu de ombros. — Mas não gosto dele. E muito menos do que de qualquer outro.
Tristão observou o cavaleiro pela extensão da mesa. Sabia pouco sob Longinus. Achava-o um oponente notável. Sua família era obscura, diziam, com um vínculo com a antiga nobreza romana que dominara anteriormente a Bretanha por quinhentos anos.
Ele não era amável como Gawain, nem simpático como Bedevere. Nem era rude e brusco como Agravain, que nunca sorria.
— Talvez devesse dizer a ele — Tristão sugeriu.
— Talvez algum dia eu diga — o homenzinho resmungou e furtou uma torta da mesa quando ninguém prestava atenção. Depois desapareceu sob a mesa para se esconder novamente nas sombras.
Rianne ouvira a conversa com grande interesse. Relanceou os olhos pela mesa na direção de Longinus. O olhar do guerreiro encontrou o dela, e ele inclinou a cabeça num cumprimento.
Conforme a noite avançava, a conversa voltou-se para a política, assuntos de Estado, o equilíbrio delicado de poder entre os nobres com quem Arthur era forçado a tratar constantemente, e a atual insurgência ao longo das fronteiras.
— Você acabou de retornar do País do Norte. — Arthur dirigiu a atenção a Rianne. — O que pensa dessas questões?
Rianne sabia que o rei se mostrava condescendente com ela. Não esperava realmente que Rianne tivesse qualquer opinião a respeito, e estava com a razão.
— Não penso nisso, milorde — ela respondeu com rude honestidade e emendou com uma racionalidade simples: — É difícil ponderar sobre questões tão pesadas quando se tem fome.
Arthur concordou.
— Você deparou com muita adversidade, mas certamente existiam aqueles em quem podia confiar, que se importavam com você.
— Aprendi a confiar em mim mesma. Quando não se tem ninguém, faz-se o que é preciso.
Rianne sentiu imediatamente o sofrimento que provocava em lady Meg e lorde Connor.
— Não foi tão difícil — continuou a explicar, mesmo sem compreender por que se importava com o fato de lhes infligir dor.
— Quando não tinha meios de me prover, eu caçava. Existe caça abundante nas florestas do norte.
— Como você caçava?
— Fazia armadilha para pequenos animais e pássaros. Caçava os maiores com um arco.
—Um arco? — lorde Standford indagou, a borda da madeira a pressionar a barriga enorme quando ele se inclinou para encarar Rianne pela extensão da mesa.
Ele era um dos nobres de cujo apoio Arthur precisava para acabar com aquela última série de escaramuças. Era tão gordo quanto era alto e, a despeito das roupas elegantes e da túnica debruada de peles, seus dentes estavam estragados até as gengivas. Também era o marido de lady Alyce.
— Prefere um arco em particular em relação aos demais? — Standford perguntou, e cutucou o companheiro com o cotovelo roliço.
— Prefiro o arco longo galês — Rianne respondeu. — É melhor quanto à distância e à precisão.
Standford piscou para o homem ao seu lado.
— Ouvi falar desse arco. Talvez você possa nos mostrar as vantagens dele sobre aqueles usados pelos arqueiros do rei.
Rianne sentiu a caçoada na voz do homem. Encontrara muitos como ele, tais como Garidor. Não importava a elegância e a fineza dos trajes, eram sempre iguais.
— Se puder encontrar um, milorde, ficarei feliz em lhe mostrar as vantagens.
— Mas, certamente, não era necessário que você caçasse para conseguir sua própria comida o tempo todo — Lorde Standford comentou, ainda naquele tom caçoísta.
— Oh, não, milorde — Rianne retrucou. — A maior parte do tempo eu me sustentava com meus ganhos nas mesas de jogo.
- Lorde Connor! — exclamou lorde Standford. — Sua filha é de uma beleza rara e de um senso de humor raro também. — Voltou-se para ela. — E que jogos, digamos assim, você prefere?
No centro da mesa, a mão esguia de Meg fechou-se sobre a de Connor com repentina inquietação. Ela conhecia lorde Standford da corte de Arthur. Exteriormente, era pomposo, sociável. Porém, sob o exterior cortês, havia um homem de ambição e sagacidade para quem a perda dos domínios da família durante os dezesseis anos anteriores, quando Arthur se apossara do trono, não fora esquecida.
Merlin sentiu a apreensão de Meg. Olhou para os convidados com uma expressão pensativa.
Um silêncio de expectativa enchera o salão. Rianne tinha plena consciência de que lady Meg estava tensa, mas percebeu que lorde Connor tentava controlá-la com a mão em seu pulso.
— Tenho alguma experiência com dados — respondeu Rianne, com modéstia, ao captar algo em Standford de que não gostou. Uma ganância que negava o comportamento aprazível.
Ele não era um cordeirinho manso, e sim uma raposa esperta na pele de um cordeiro.
— Ah, um jogo de azar — comentou lorde Standford.
— Não existe essa coisa de azar — retrucou Rianne. — É uma questão de habilidade.
— E você é habilidosa com os dados?—Ele deu uma risada.
Tristão relanceou o olhar para Connor. Por que ele não punha um ponto final em tudo aquilo? Standford não era um novato em jogos. Enquanto outros preferiam um desafio de força e habilidade física, Standford preferia os jogos, e não apenas a vitória sobre o oponente, mas sua absoluta humilhação também. E, sem dúvida, mais particularmente, se o oponente fosse uma mulher.
Seu desrespeito por mulheres, inclusive sua segunda esposa, muito mais jovem, era bem conhecido. Tristão não estava apaixonado por Alyce. O relacionamento era de mútuo apetite, nada mais. Gostava dela. O que era mais do que Alyce recebia do marido.
Rianne sorriu.
— Sim, milorde.
— Eu derrotei cada um dos homens desta mesa. Acha que poderia me superar?
— Eu poderia limpar sua bolsa em três rodadas.
Por toda a mesa, a reação foi de divertimento. Rianne sabia que a julgavam nada mais que uma criança falastrona. Mas descobriu que o desafio representava bem mais para Standford. Era a oportunidade de afrontar lorde Connor de uma forma bastante pessoal, por razões que ela não compreendeu de imediato.
— Eu gostaria muitíssimo de ver isso, minha cara. — Standford aceitou o desafio com ar de simpatia e voltou-se para Connor: — O que diz, milorde? Vai permitir que a menina nos entretenha?
Entretenimento? Ah! Humilhação era o que ele pretendia. Ficou tão claro para Rianne como se o homem tivesse dito isso alto e bom som. Viu-o naquele olhar atento. E era evidente que lady Meg fazia objeções.
— Tenho profunda confiança de que minha filha defenderá a honra desta casa, Standford — lorde Connor retrucou.
Então, sorriu, e, por um momento, Rianne vislumbrou o homem que ele fora um dia, antes que a doença devastadora lhe roubasse a energia e a vitalidade.
—Fique de sobreaviso — emendou Connor, com um sorriso que escondia sua própria sagacidade. — A mãe dela é uma mulher muito esperta, e Rianne é uma filha bastante parecida com a mãe.
— Talvez — retrucou Standford. Mas seus pensamentos contrariavam a resposta cuidadosa. — Então, não faz objeção?
O olhar surpreso de Rianne encontrou o do pai. E, naquela conexão silenciosa, ela descobriu confiança, fé e amor incondicional que a sensibilizaram como nenhuma palavra poderia conseguir.
— Não tenho nenhuma objeção.
— E irá garantir as perdas dela?
— Garantirei.
As emoções ameaçaram dominar Rianne. Nunca esperara aquele apoio, muito menos o amor incondicional que a envolvia. Era tudo tão novo... como uma porta aberta que ela fechara havia muito tempo.
— Então, vamos ao jogo — Standford anunciou, cheio de júbilo, com os olhos a faiscar diante da expectativa de vitória.
A mesa foi limpa e os convidados se reuniram ao redor, enquanto o escudeiro de Standford apresentava um conjunto de dados com as marcações familiares em cada face.
Merlin colocou-se ao lado de Rianne.
— Você não precisa passar por isso se quiser o contrário. Seu pai, assim como o rei, apoiará sua decisão. Ninguém pensará mal de você. Standford é um adversário de respeito. Praticamente todo homem aqui presente perdeu para ele uma vez ou outra.
— Eu gostaria muito de derrotá-lo — ela retrucou.
Merlin concordou.
— Gostaria muito de ver isso acontecer.
— Não interfira — Rianne pediu com veemência. — Ele suspeitará. E se os outros acreditarem na sua interferência, então ele ganharia de qualquer forma. O senhor deve me deixar agir a meu modo.
— E se você perder?
— Não pretendo perder.
— Tenho minhas suspeitas de que Standford trapaceia — Merlin disse, a título de último conselho.
— Então, teremos de fazer dele um homem honesto. Uma das longas mesas com cavaletes foi separada das outras e virada de lado. Os convidados se juntaram ao redor.
— Não tenho como apostar! — Rianne exclamou.
— Há alguém que apostará por lady Rianne? — Standford perguntou.
Ela viu o modo com que os olhos de Standford luziram ao encarar lorde Connor. Mas, antes que o senhor de Monmouth dissesse uma palavra, a voz de Tristão ergueu-se:
— Eu cubro a aposta.
— Ah... o jovem guerreiro. — Os olhos de Standford fais-caram e sua voz se tornou sedosa. — Sem dúvida.
Rianne sentiu que havia mais ali que o simples desafio de um jogo. Existia algo entre Tristão e Standford pelos olhares que trocavam.
Tristão colocou várias moedas de prata e de ouro sobre a mesa diante de Rianne. Era uma soma substancial, bem mais do que ela já vira na vida. Ele se inclinou e murmurou-lhe no ouvido:
— É melhor ganhar. Isto é tudo que eu tenho de meu. — Seu olhar divertido encontrou o dela, cheio de espanto. — Você pode derrotá-lo, não pode?
— Darei o melhor de mim.
— Ótimo. Eu gostaria muito de vê-lo perder.
— Há algo mais que deseja dizer, milorde? — Rianne indagou, sem tentar esconder o sarcasmo da voz.
Tristão sorriu, aquele mesmo sorriso de quando a beijara e depois a jogara sobre o lombo do cavalo. Um sorriso perigoso que fez o sangue de Rianne ferver.
— Está muito linda esta noite, milady — ele murmurou, para depois acrescentar: — É incrível o que um pouco de água e sabão podem fazer.
Rianne ficou boquiaberta. Apertou os lábios, impedindo os vários palavrões de saírem de sua boca, enquanto Tristão se afastava.
Porco!, ela endereçou-lhe o pensamento como se fosse uma bofetada.
Standford era um adversário bastante respeitável. Rolou os dados com perícia e confiança. Gostava de ganhar e não tinha intenção de perder. Mais ainda porque ela era a filha de lorde Connor.
Os dados passaram de um para o outro. Rianne ganhou tantas rodadas quantas perdeu. Mas estava ciente de que Standford gradualmente aumentava a aposta a cada jogada.
Então, ela percebeu que, aos poucos, começava a perder mais do que ganhava. E, ao pegar nos dados, sentiu o motivo para a mudança em sua "sorte". Eles não eram os mesmos com os quais jogara no início.
— Alguma coisa errada?
Rianne ergueu os olhos e encontrou os de Merlin.
Nada que não possa ser consertado, ela respondeu mediante a conexão mental, enquanto se concentrava para a próxima rodada.
Sacudiu os dados na palma da mão e os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram pesadamente, confirmando o que ela sentira ao pegá-los. Dois deles estavam adulterados. Quando o último dado parou, Rianne lhe deu um pequeno empurrão com um impulso de sua energia interior. O cubo tombou do outro lado, alterando assim o resultado.
Através da mesa, ela viu a sutil expressão de surpresa de lorde Standford. Rianne jogou-os outra vez. Ganhou de novo com um ligeiro "empurrão". Dessa vez a reação de Standford foi menos sutil, conforme seus olhos se estreitaram. Ela, então, perdeu deliberadamente a próxima rodada, permitindo que os dados passassem para Standford.
Rianne deixou que ele ficasse com o controle do jogo durante várias rodadas a mais, conseguindo assim uma quantidade substancial de moedas. Praticamente todas as moedas de Tristão tinham se acabado. O guerreiro parecia acabrunhado. Rianne ficou com pena. Na próxima rodada, impulsionou os dados adulterados com o pensamento e mudou o resultado do jogo. Standford franziu a testa diante da inesperada derrota.
— Parece que é a sua vez com os dados, milady — disse ele, ao jogar os cubos para ela.
— Espero ter tanta sorte como o senhor, milorde — Rianne respondeu com um sorriso.
Standford sorriu também, encabulado. E ela sentiu que o adversário tentava imaginar por que o resultado da última rodada não fora a seu favor.
Rianne queria ter de volta tudo que perdera, mais uma porção substancial das moedas do trapaceiro. Empalmou os dados, sacudiu-os na palma fechada e depois os jogou sobre a mesa. Os cubos rolaram exatamente como ela desejava. A expressão de Standford não se alterou, mas ele empalideceu visivelmente. Os dados retornaram para Rianne, que as rolou de novo, e venceu outra vez. Já então a fisionomia de Standford transfigurou-se do desconforto para a incredulidade.
Melhor fazê-lo ganhar mais uma, ela pensou. E, na próxima rodada, deixou os dados rolarem sem intervir. Perdeu.
— Ah-ah! — Standford exclamou ao recuperar os dados. — Agora veremos quem é o melhor!
Sacudiu os cubos na palma larga, carnuda, sopesando-os, como se para confirmar que eram os dados que ele trocara. Sorriu, com uma expressão de confiança.
Fez o lance. Quando os cubos pararam, tinha perdido. A cor fugiu-lhe do rosto que, em seguida, tingiu-se de um vermelho escarlate. Rianne julgou que Standford fosse ter um ataque de apoplexia.
— Jogada bastante infeliz — disse ela, e depois emendou: — Mas o seu infortúnio é talvez a minha boa sorte.
Rianne jogou os dados sobre a mesa. Com a mesma precisão com que deixara Standford ganhar, agora virara o jogo a seu favor.
Standford ficou olhando, impotente e com crescente frustração e raiva enquanto ela usava os dados que ele adulterara para se apossar de uma pequena fortuna em moedas de ouro e prata, e até mesmo de uma quantidade substancial de peças metálicas de formato estranho que haviam se tornado moeda de troca corrente no reino.
Rianne estava prestes a recolher os dados e jogar novamente, quando uma imagem cruzou num lampejo seus pensamentos, numa explosão de chamas tão real, tão intensa que ela pôde sentir o calor e, instintivamente, puxou a mão para trás.
Tristão percebeu. Alguma coisa estava errada. Merlin também. Rodeou a mesa e se postou onde ela se encontrava de pé.
Rianne recostou-se contra a borda da mesa, suas unhas a se enterrarem na madeira. Seus olhos se tornaram sombrios, o azul brilhante a se afinar e circundar as pupilas escuras, dilatadas, cintilantes como pérolas negras. Seu rosto empalideceu, exangue. A respiração arquejava entre os lábios igualmente pálidos.
Os pensamentos de Merlin uniram-se facilmente aos dela. E o que ele viu o deixou aturdido.
Por meio da conexão mental, enxergou as chamas que queimavam nas bordas da visão e o sangue na mão de Rianne.
Então, o sangue desapareceu gradualmente e, em seu lugar, havia uma magnífica e cintilante pedra sangüínea.
Rianne ouviu chamarem seu nome. O som penetrou em seus pensamentos, e as imagens fugiram, recuando para as fronteiras da visão. Então, desapareceram por completo.
As tochas queimavam firmes nas paredes mais uma vez, e os rostos que a fitavam não mais a espiavam das sombras dos sonhos terríveis. Ali estavam as mesmas pessoas de antes, em torno da mesa, no aguardo que o jogo continuasse.
Merlin sentiu a porta dos pensamentos se fechar de novo assim que as imagens sumiram. A cor voltou ao rosto de Rianne. Os olhos que o fitavam eram de um azul brilhante mais uma vez. Ela voltara do lugar para onde fora durante aqueles breves instantes. Agora, era como se nada houvesse acontecido. Como se Rianne se recusasse a se recordar de algo que sucedera no presente ou no passado.
Será que ela podia controlar os pensamentos e ocultá-los até mesmo de si própria? Era uma possibilidade intrigante. Mais intrigante, até mesmo perturbadora, era a imagem que Merlin vira de uma pedra que brotava do sangue. Os Anciãos a chamavam de jaspe sangüíneo.
Histórias do jaspe sangüíneo tinham passado de geração a geração desde aqueles que possuíam o poder da Luz. Sua origem estava envolta nas brumas da antigüidade. Era a marca do Escolhido, aquele que primeiro entrara no mundo mortal. Não era vista fazia mais de mil anos.
Rianne sentiu quando Merlin contornou a mesa e parou bem perto dela.
Deve permitir a ele vencer pelo menos uma rodada a mais, antes que Standford possa explodir.
Ela o encarou com surpresa, os olhares a transmitirem um entendimento não verbalizado.
Depois, acabe com ele.
Como é?
Um ar de riso faiscou no olhar radiante de Merlin.
Prolongue a tortura. Standford usufruiu de sua injusta cota de impunidade durante muitos anos.
E o final?
Rápido e mortal.
Rianne deixou o adversário vencer na rodada seguinte. Mas o júbilo de Standford durou pouco. Ganhou apenas três lances e depois perdeu outra vez. As veias saltaram em seu pescoço e o rosto tingiu-se de um arroxeado vibrante.
Sem piedade?, Rianne perguntou, os olhos a faiscar de malícia diante da emoção da vitória.
Absolutamente nenhuma. Merlin não se divertia assim fazia muitos meses.
Os dados rolaram pela mesa e, ao pararem, revelaram uma derrota retumbante para Standford. O homem ficou lívido. Recolheu os cubos e, furioso, lançou-os contra a parede. Os dados se quebraram em vários pedaços e caíram entre as palhas no chão.
Grendel correu apressado e os recolheu.
— Vejam, vejam! Alguém deve ter trocado os dados. Estão viciados. Quem faria uma coisa dessas? — perguntou.
— É mesmo! — Tristão exclamou ao pegar os fragmentos e examiná-los com atenção. — É um dos seus, Standford. Este dado tem a sua marca nele. A maioria de nós a conhece.
— Não posso imaginar quem faria algo assim! — Standford exclamou. — É um complô para me desacreditar. — Voltou-se para Rianne: — Eu lhe asseguro, senhora, a tramóia não é do meu conhecimento. Quando eu encontrar o safado, pode ter certeza de que será punido.
— O que importa é que venci, apesar disso. Standford empalideceu ainda mais.
— Claro. E talvez possa pensar numa revanche diante desse resultado incomum.
Realmente, um resultado que absolutamente ele não esperava. Rianne não se deixou ludibriar pelas palavras solícitas. Sentiu o ressentimento e a raiva de Standford diante da derrota e da humilhação que sofrera. E percebeu que seu olhar se desviava para o rei, que ouvia tudo com ar divertido.
— Concordo com uma revanche, milorde. — Rianne sorriu, radiante, ao enfiar a última moeda no bolso. — Agora que tenho meu próprio dinheiro de aposta, só tem de marcar o dia e a hora.
Standford parecia ter engolido algo amargo e pavoroso. Mas, com o rei a observá-los, nada mais poderia fazer a não ser concordar com a proposta.
— É muito gentil, senhora. Meus agradecimentos por uma noite muito... interessante.
— Obrigada ao senhor, milorde.
Standford hesitou diante do silêncio de todos. Esperava que alguém desse a entender que o dinheiro da competição fosse devolvido. Mas ninguém, inclusive Arthur, sugeriu essa possibilidade.
— Sim, muito bem, então está acertado. Agora, preciso encontrar a alma infeliz responsável por adulterar os dados. Eu lhe asseguro, senhora, que ele será punido.
Voltou-se e afastou-se com um suspiro de desagrado, com seu mordomo-mor e o escudeiro a segui-lo zelosamente.
— Ele não ficará satisfeito até que um de seus escudeiros seja punido — Tristão comentou em voz baixa, já sem a expressão de riso.
— Mas é evidente quem foi que adulterou os dados — argumentou Rianne.
— A culpa vai recair sobre outro — Merlin explicou. — Standford não pode se permitir passar por idiota ou por trapaceiro.
— O escolhido para a punição será demitido, é claro — Connor acrescentou. — Já vimos isso antes. O coitado terá um lugar aqui em Monmouth, se assim desejar.
Os movimentos de Connor eram lentos e feitos com grande dificuldade e sofrimento. Mas a mão que procurou a de Rianne era firme e forte. Ele ofereceu-lhe o braço.
— Caminhe comigo, filha.
Havia algo em sua voz, algo na maneira com que disse a palavra "filha" que perturbou Rianne no íntimo e a deixou sem forças para recusar.
Não o afaste. Ele a ama muito, minha filha.
Rianne ouviu a voz da mãe em pensamento. Concordou, embora apenas um dia antes tivesse certeza de poder se afastar dele. E de sua mãe.
Os dois subiram os degraus. Rianne receou que as forças do pai pudessem faltar. Vez ou outra fizeram uma pausa e Connor se apoiou nela; depois, sob a luz trêmula das tochas nas paredes, Rianne viu aquele sorriso débil, porém determinado.
— Subi estes degraus pela primeira vez quando tinha três anos — disse para ela, ao parar mais uma vez para recuperar o fôlego. Depois, prosseguiu: — Conheço cada pedra, cada viga, cada canto escondido. Ocultei-me aqui em mais de uma ocasião. — Pararam outra vez quando ele apontou para uma alcova que quase passava despercebida, e sua expressão mudou. Não era mais um garoto malicioso, e sim o homem que muitas vezes se escondera ali com uma bela jovem.
Rianne sentiu os pensamentos que se entrelaçavam nas palavras como uma tapeçaria viva a retratar a vida de Connor. E a sua também. Os dois continuaram a subir e chegaram finalmente ao patamar e à porta que conduzia às ameias.
A mente de Connor era um painel a revelar tudo que ele era, tudo pelo qual lutara: seu amor por Arthur, um amor fraterno que suportara muita coisa; mais que amigos, eram irmãos em espírito; seus sentimentos profundos e apaixonados por lady Meg; o orgulho que sentia de Tristão, o filho que nunca tivera; e, por fim, porém não menos importante, o amor que se expandia de seu coração para envolver Rianne.
Era um amor que estivera ali durante todos aqueles anos, através do tempo e da distância. Um amor que suportara o sofrimento de mandá-la para longe e que depois vivera com a esperança desesperada de vê-la uma última vez.
Fazia frio. Era possível sentir o cheiro da mudança do clima no ar. Mas, naquela noite, as estrelas e a lua se esquivavam das nuvens como Connor se esquivava da morte. Por enquanto.
— Isto é o que eu queria que você visse.
A noite se espalhava diante deles como um manto de veludo, uma abóbada de estrelas cintilantes. Uma lua prateada banhava a paisagem. O mugir distante do gado e o balido ocasional das ovelhas mesclavam-se ao canto solitário de um pássaro noturno. Aqui e ali, luzes piscavam conforme as lamparinas e as velas eram acesas nas cabanas e choças que se espalhavam para além da floresta.
Havia famílias naquelas cabanas. Seguras e aquecidas. Tal como Rianne estava segura e aquecida. Um lembrete de que lar era mais que simplesmente uma palavra. Era a vida diária de gente que trabalhava a terra e acendia aquelas lanternas à noite, que colocava os filhos na cama e cantava canções para eles, em tempos de paz e tranqüilidade. E que os mandava para longe para um lugar seguro, em tempos de perigo.
Essas eram as coisas que jaziam no coração de Connor, que ele esperara uma vida inteira para dizer. Era o que queria mostrar a Rianne. O lar não constituía um lugar de onde fugir; era um lugar para onde fugir.
— Sei que estes anos todos não foram fáceis para você — ele disse, gentilmente, a lhe afagar a mão pousada em seu braço. — Soube que quer ir embora. Aceitarei sua decisão, seja qual for. Mas é importante para mim que você saiba que eu não poderia ter desejado uma filha melhor. Você me faz sentir humilde com sua força e coragem. — Inclinou-se e beijou-a na testa. — Espero que encontre humildade em seu coração para ficar.
Rianne ouviu a debilidade na voz do pai e sentiu-a no tremor de suas mãos. Percebeu também que não estavam sozinhos. Então, avistou a figura esguia que se postava à parte, sob a luz das tochas, na passagem aberta.
Meg os seguira a uma distância discreta, e aparecera agora apenas por causa da preocupação com o marido.
— Venha, meu esposo — disse, com doçura, ao enfiar o braço sob o dele. — É tarde, e você sabe muito bem que não consigo dormir naquela cama enorme, a menos que você esteja a meu lado. Há tempo suficiente para Rianne ver Monmouth.
— Mulher tola — ele reclamou, mas havia apenas ternura em sua voz quando fechou a mão sobre a dela. — Você dormiu sem mim durante as guerras.
— Sim, e é por essa razão que me recuso a fazer isso agora — Meg respondeu.
Connor soltou uma risada suave, cheia de uma linguagem sutil que era só deles. Tocou a face da esposa com um gesto terno. Instintivamente, ela se voltou e roçou os lábios contra os dedos do marido, num ritual amoroso que era ao mesmo tempo antigo e renovado cada vez que se repetia.
Rianne sentiu o amor que fluía entre os dois. Um amor que nem mesmo a morte poderia diminuir. Um amor que se expandia até ela nas palavras não-verbalizadas e, no entanto, ouvidas. E, no profundo de seu ser, sentiu a última pedra na muralha da raiva e da amargura que construíra em torno de si ruir em pedaços e se transformar em pó.
Ouviu o murmúrio das vozes cheias de carinho quando os pais desceram pela passagem; o sussurro gentil de sua mãe e as palavras tranqüilizadoras, a resposta reconfortante de seu pai, e a risada entremeada de ternura. Mesmo agora, com a morte tão perto. E as lágrimas escorreram quentes pelas faces de Rianne.
Ela sabia que Tristão estava ali. Sentiu sua presença antes que ele falasse, antes mesmo que estendesse a mão para tocá-la. Rianne virou-se e jogou-se em seus braços. Deslizou as mãos e rodeou-o pela cintura em busca de seu calor e de sua força.
— Por favor, me abrace — murmurou.
Certa vez, a criança zangada que habitava dentro de Rianne o agredira. A criança se fora. Em seu lugar havia uma jovem que queria apenas uma coisa: a força, o calor, os braços de Tristão a envolvê-la. Sem perguntas, sem zanga, sem ameaças, sem palavras. Apenas a sensação máscula a preencher todos os lugares vazios e solitários que havia em seu íntimo.
O clima impediu-a de partir. Foi o que Rianne disse a si mesma. E lhe deu tempo para repensar a decisão tomada com tanta facilidade naquela noite nas ameias.
Nevou durante vários dias, e o clima tornou-se também a desculpa de Tristão para se manter, juntamente com seus homens, longe de casa.
Depois daquele encontro nas ameias, mesmo que seus caminhos se cruzassem ocasionalmente, Rianne sentira que o guerreiro a evitava.
Todo dia, ela e Merlin passavam as manhãs juntos, no herbário mantido por lady Meg. Ali, ele começou a instruí-la sobre os métodos de cura, a antiga arte de fazer sangrias e misturas de extratos de ervas com outros elementos naturais que traziam alívio aos doentes e feridos em Monmouth.
Também começou a ensiná-la a respeito dos imortais. A cada dia, Rianne descobria mais das habilidades com que nascera. Um novo mundo, fascinante e algumas vezes assustador, se abriu para ela. Um mundo de poderes extraordinários e imensa responsabilidade.
Rianne assumira a atribuição de cuidar das necessidades dos habitantes das redondezas. Passava a maior parte das tardes nas vilas das cercanias, conforme assumia os encargos que sua mãe agora delegava de bom grado para poder ficar mais tempo com Connor. No final de cada tarde, quando retornava, Rianne seguia diretamente para a pequena ante-sala dos aposentos privativos do casal, com seu fogo acolhedor e as velas de luz suave. Lá, contava ao pai tudo que vira e ouvira na vila naquele dia.
Meg reunia-se a eles. Ocasionalmente, perguntava sobre uma queixa ou enfermidade em especial que Rianne encontrara na vila.
Tratava-se de um início de relacionamento bastante hesitante. Cada momento era um pequeno passo adiante, seguido de outro. Não poderiam ter de volta aquilo que se perdera, mas tinham algum tempo. E todo dia era uma dádiva que descobriam juntos.
Rianne, agora, se tornara os olhos e os ouvidos de Connor. Mais e mais, a cada dia, ele perguntava a opinião da filha sobre várias questões. E isso deixava-a lisonjeada e, ao mesmo tempo, com uma sensação de humildade.
Discutiam questões de grande importância quando se sentavam em frente um do outro diante de um grande tabuleiro, e Connor ensinava Rianne a jogar o mesmo jogo que seu pai lhe ensinara. Era um entretenimento que exigia sagacidade e estratégia, cada movimento a afetar o seguinte e os demais, num padrão intrincado de ações e reações.
Não poderia ser vencido por manipulação, como ela manipulava os dados. Não se ganhava alterando-se o resultado. E a estratégia mudava todo tempo, o que tornava impossível saber os pensamentos do pai logo adiante. Era um jogo que só poderia ser vencido se cada jogada fosse avaliada; se Rianne conhecesse o oponente, se conhecesse os padrões e depois posicionasse as peças de modo a se proteger, a manter seu domínio e a derrotar o adversário.
Era o jogo mais desafiador que ela jamais encontrara. E também frustrante e irritante. Isso, Rianne descobriu, também fazia parte da estratégia: enervar o oponente, expor suas fraquezas e depois usar essas mesmas fraquezas contra ele. Uma lição que ela não esqueceria.
No dia em que, finalmente, Rianne venceu uma partida com perícia e decisão, Connor não disse nada por alguns instantes. Então, ergueu os olhos. E, pela primeira vez, Rianne viu, não a fadiga e a fraqueza em sua face, mas algo mais. Uma emoção em seus olhos e no sorriso em sua boca. Orgulho!
— Muito bem, minha filha!
Nunca ninguém antes se orgulhara dela. Só tivera um incentivo: sobreviver. Coisas tais como orgulho, aprovação, amor, não existiam em sua vida. Apenas em sonhos.
E seu relacionamento com a mãe e o pai mudou de maneira irrevogável a partir daquele dia. Rianne não mais se escudava no sofrimento do passado, mas abriu o coração para o futuro.
Tristão muitas vezes se reunia a eles na ante-sala, quando voltava trazendo notícias de vilas e aldeias remotas. E, se ele demorava em suas jornadas, Rianne ficava a esperar por seu regresso nas muralhas. Algo mudara entre os dois naquele dia nas ameias. Ela sentira na maneira com que Tristão a abraçara. E era a razão que o mantinha afastado de Monmouth.
Ou fora Rianne que mudara? Ou simplesmente descobrira quem era desde o princípio?
Havia dias em que não tinha certeza. Sobretudo quando Merlin explicava como era o mundo além da dimensão mortal.
Sua parte humana achava difícil aceitar tais coisas. Impossível, pensava. Tais criaturas não eram reais. Existiam apenas no mito e na lenda.
Merlin, contudo, era real. Sua mãe era real. E eram parte de Rianne. A essência de ambos fluía através dela. E, cada dia, Rianne descobria mais de seus poderes e habilidades. A dúvida cedia espaço para aquela outra característica igualmente mortal: a curiosidade. Às vezes para inquietação de Grendel.
— Pelos Anciãos! — o gnomo resmungou quando os vasos e as jarras alçaram vôo pelo herbário. — Seremos todos mortos!
Rianne caiu na risada e os vasos dançaram loucamente em meio ao vôo, o poder que os impulsionava afetado pelas emoções dela. Fascinada com a mais nova descoberta, resolveu fazer experimentos.
Pensou em Garidor e em sua crueldade para com Kari. De repente, os vasos dispararam pelo aposento numa velocidade perigosa que resvalava para a beira do desastre. Pensou no pai, e os objetos se firmaram com direção e controle. Então, Rianne pensou em Tristão.
Os vasos começaram a girar, todos em diferentes direções, em círculos confusos e entrelaçados, a voar para o teto e depois a mergulhar freneticamente, num padrão de emoções tumultuadas e eletrizantes.
Conforme um deles passou por ela numa velocidade estonteante, caótica, a porta do herbário se abriu e.Grendel usou a oportunidade para fugir. O vaso estourou na parede ao lado da porta.
Era difícil dizer quem estava mais surpreso, Rianne ou Tristão, ao parar na soleira da porta com uma expressão aturdida diante do caos que havia lá dentro.
Ela o encarou de olhos arregalados. Depois, a graça da situação a fez estourar em gargalhadas.
A última coisa que Tristão esperava, ao abrir a porta do herbário, era encontrar o gnomo e um vaso a voar em sua direção numa velocidade insana. Grendel fugira por entre suas pernas. O vaso esmigalhara-se contra a parede ao lado de sua cabeça. Vários outros colidiram no meio do ar numa explosão de perfumes de ervas.
Tristão examinou o herbário, penalizado. Então, seu olhar voltou para Rianne.
Ela estava de pé em meio aos vasos e jarras quebrados e às pétalas e folhas que flutuavam no ar, como a rainha da floresta. Seus cabelos caíam soltos pelos ombros e desciam em sedosas ondas de ouro até a cintura. O rubor coloria seu rosto, e uma das faces estava suja de alguma substância desconhecida. Seus olhos cintilavam como chama azul e brilhante. E sua boca exprimia uma expressão entre a apreensão e o riso.
Tristão jamais vira uma criatura mais fascinante. Rianne era uma intrigante combinação de mistério e malícia, de excentricidade e sedução. Era também filha de Connor, e ele passara a maior parte das últimas semanas tentando com todas as forças manter-se longe dela.
Fora criado como um filho por Connor e Meg. Rianne era quase uma irmã, portanto. Mas os sentimentos e os pensamentos que nasceram dentro dele desde o momento em que haviam se confrontado na hospedaria eram tudo, menos fraternos.
— Saiu-se mal e falhou na lição, hein? — ele perguntou, num tom de caçoada.
Falhar? A palavra acabou com o riso e a alegria de ver Tristão novamente. Por que ele sempre encontrava alguma falha nela? Isso quando se dignava a lhe dirigir a palavra!
— O que está fazendo aqui? — Rianne perguntou. — Perdeu-se pelo caminho? Os canis são do outro lado da fortaleza.
Borbulhante de risadas ou furiosa e a despejar insultos e vasos em sua cabeça, Rianne era a criatura mais charmosa que Tristão já conhecera. E ele estava começando a repensar seriamente a prudência de procurá-la, por causa do ferimento que sofrera no ombro.
Afastou-se da parede ao lado da porta, e Rianne imediatamente sentiu que ele não fora até ali para insultá-la ou ridicularizá-la.
— Você está ferido.
Não era uma pergunta, mas uma constatação.
— Coisa sem importância.
— Coisa sem importância, mas você procura uma curandeira? — Rianne meneou a cabeça, e fragmentos de flores secas se desprenderam do ouro cintilante de seus cabelos e flutuaram até o chão. — A poção para mentirosos é uma infusão muito amarga.
— Teria de ser — Tristão retrucou. Não era mais capaz de usar das grosserias que haviam se tornado seu escudo contra ela.
— Realmente, é bastante ruim. E tem uma mais pavorosa para aqueles com um comportamento desagradável. Só a ameaça de tomá-la os obriga a mudar.
Indicou uma cadeira ali perto enquanto chutava os cacos e abria espaço entre a cerâmica quebrada.
— Alguma vez você tomou um pouco por engano? — Tristão perguntou, e sorriu quando Rianne lhe endereçou um olhar curioso.
— Fui assim tão horrorosa?
— Pior.
— Ora, parece que me lembro de ser amarrada feito uma galinha e jogada sobre o lombo do seu cavalo, e que esse foi apenas um dos maus-tratos! — ela exclamou ao voltar com um punhado de ataduras e bálsamos medicinais. Encarou-o e emendou: — Terá de tirar sua túnica.
— Maus-tratos? — Tristão retrucou, incrédulo, ao arrancar a túnica. — Ainda tenho marcas de dentes onde você me mordeu, e hematomas em lugares que nunca imaginei... E você ainda ameaçou tirar a minha virilidade.
Rianne deu de ombros.
— Uma pequena ameaça. Só que necessária na ocasião.
— Eu lhe asseguro, não foi pequena...
A voz de Tristão se tornara baixa e rouca, mas de uma rouquidão aveludada que provocava sensações inquietantes dentro de Rianne; aquelas mesmas sensações que haviam feito os vasos voarem loucamente pelo aposento e que a faziam acordar no meio da noite.
- Precisa tirar a camisa também. — De repente, sua própria voz soou áspera, tensa.
O ferimento estava coberto por um pano sujo e ensopado sangue que Rianne começou a remover delicadamente com uma solução de ervas. Seus dedos formigavam de vontade de tocar mais lugares, conforme aplicava a solução. E sua garganta ressecou-se quando ela se lembrou do gosto daquela pele máscula: um misterioso sabor oculto que se prendera a seus lábios e lhe assombrava os sonhos.
— Merlin diz que tenho mãos mais adequadas para tirar leite de vaca ou puxar o pescoço de galinhas — Rianne murmurou. Tentou não pensar no sabor da pele do guerreiro. Era difícil com aquela extensão nua de peito e ombros musculosos à mostra.
— Ou empunhar uma espada? — ele sugeriu. Rianne sorriu.
— Talvez.
— O que é isso?
Tristão apontou o bico dos sapatos de Rianne, que espiavam por baixo da barra da saia. Não eram do estilo normalmente usado pelas moças.
Ela ergueu a saia e mostrou um par de delicadas botas de couro amarradas em torno de tornozelos também delicados.
— Lady Meg mandou fazer para mim. — Exibiu as botas macias, alheia ao fato de que o olhar de Tristão se demorava onde a barra do vestido expunha uma canela bem torneada. — É bem melhor do que congelar os pés no chão de pedra. Estou trabalhando num par de calcinhas também.
— Calcinhas? — Tristão arqueou as sobrancelhas.
— Oh, sim — Rianne respondeu com aquela franqueza tão natural nela. — Não consigo entender por que as mulheres usam saias e vestidos com o vento a soprar em seus traseiros nus. É muito desagradável. E poderia ser bastante constrangedor numa ventania.
Tristão lutou entre o riso e a curiosidade espicaçada de saber se ela usava ou não alguma calcinha. E rezou por uma ventania, mesmo dentro das robustas muralhas da fortaleza.
— Como está se saindo? — indagou com fingida seriedade.
— Estraguei o primeiro par. Mas tenho praticado e fiz ajustes para o feitio.
— Fez progressos, então.
— Um progresso muito lento, receio. Se não der certo, terei de voltar a usar calças.
Tristão recordou-se da aparência de Rianne com calças de couro, a pele macia esticada e tensa num traseiro roliço ocasionalmente visível. Ela escondia de qualquer um que não olhasse bem de perto o fato de ser mulher. Ele olhara. Mais de uma vez.
Finalmente, Rianne liberou o ferimento do curativo sujo e jogou uma bandagem usada num caldeirão de água fervente. O sangramento parara e o corte estava praticamente fechado. Iria ficar uma cicatriz. Lavou o local machucado com a mistura de ervas, limpando os detritos e as crostas de sangue.
— Como se feriu?
— Foi um acidente. Encontramos invasores na floresta e os perseguimos. Na confusão, sofri um golpe de um dos meus homens.
Ela o encarou.
— Seu próprio companheiro?
— Longinus. Acontece de vez em quando no calor da batalha. Muitas vezes é difícil dizer quem é companheiro, quem é inimigo.
— Pensei que Longinus tinha voltado a Camelot com Arthur.
— Ele e seus homens reuniram-se a nós no rio. Arthur julgou necessário devido ao número de invasores que foram vistos. Podem ser os mesmos que atacaram Monmouth.
— E Longinus?
— Um dos meus homens interveio e ele se deu conta do engano que cometera.
Rianne comprimiu suavemente uma atadura limpa no ferimento.
— Segure isto no lugar.
Ela se ajoelhou no chão diante de Tristão, encaixada entre aquelas pernas longas e musculosas, e se recordou das horas passadas montada no garanhão negro. Imaginou circunstâncias bem diferentes. Agora, Tristão era seu prisioneiro.
Rianne enrolou uma ponta da tira de pano sobre o ombro e cruzou-a pelo peito e em torno das costas do guerreiro para prender a bandagem no lugar. Conforme trabalhava, os cabelos macios roçaram pelo torso dele. Eram como seda a cintilar em tons claros de dourado à luz trêmula das lamparinas a óleo. Tristão tirou uma flor seca das mechas, e seus dedos se demoraram a afagá-los.
As mãos de Rianne eram gentis e suaves a lhe roçar a pele, e sua voz, calma e terna, cheia de luz e sombras; a respiração, cálida e doce. Rianne arquejou de espanto quando Tristão segurou aquela mecha sedosa e se recusou a soltá-la, vendo-a se endireitar ao terminar a tarefa.
Nas ameias, dominada por novos e inesperados sentimentos para com o pai, emoções que nunca conhecera, Rianne pedira a ele simplesmente que a abraçasse. Agora, dominada por sentimentos bem diferentes, precisava e queria muito mais.
Sentiu a batalha feroz que se desencadeava no íntimo de Tristão, o conflito entre desejo, dever e honra, emoções poderosas que ele tentava negar. Abriu os pensamentos e murmurou mentalmente, com o desejo que nascia em seu íntimo:
Toque-me.
As palavras dominaram a mente de Tristão, cheias de um anseio silencioso que o invadiu até o âmago de seu ser e fez eco a seus próprios anseios.
Rianne conteve a respiração, certa de que ele se afastaria. Então, lentamente, exalou um débil e trêmulo gemido de prazer quando Tristão a tocou.
Sua mão era a mão de um guerreiro: poderosa, marcada de cicatrizes, mais acostumada ao contato de uma espada. Capaz de matar num simples golpe e, mesmo assim, quente, forte, protetora; terna, gentil e, depois, trêmula ao lhe roçar a face.
Beije-me.
Os dedos de Tristão deslizaram pela face de Rianne e depois se fecharam nos cabelos sedosos. Não havia nada de gentil ou terno no beijo que lhe deu, apenas possessão; uma ânsia poderosa, contundente e ávida quando ele lhe forçou a cabeça para trás.
Experimentou a surpresa nos lábios de Rianne e, em seguida, uma onda de calor. Depois, o desejo, quando ela retribuiu a carícia.
O calor explodiu em seu sangue como um inferno, selvagem, febril e carente, a passar de Rianne para ele. Suas mãos estavam igualmente febris e desejosas conforme se torciam nas mechas douradas; sua boca a assaltava, queria mais, com uma fome que aumentava mesmo enquanto era saciada. Rianne parecia arder através de Tristão, como se tivesse se esgueirado para dentro, a se integrar ao seu corpo, aos seus pensamentos, ao seu sangue, à sua alma.
Não era próprio dela ser submissa ou conformada. A boca de Rianne se moveu, faminta, colada na de Tristão, a língua ousada a penetrar por seus lábios num jogo sensual.
Desapareceu o comportamento calculista e frio da garota que jogava com tamanha sagacidade e perícia numa mesa de jogo. Foi-se a raiva e o desafio que ela usava como escudo contra as emoções. Rianne era toda energia e paixão ao entregar-se ao beijo e deixar Tristão invadir o calor úmido de sua boca.
O desejo queimava em seu sangue. A fome crescia enquanto seu corpo pulsava com necessidades mais profundas e mais misteriosas: queria tocá-lo do jeito como ele a tocava; ver a expressão nos olhos de Tristão passar do glacial para a perigosa; e depois, sentir a força daquelas mãos sair do controle; queria prová-lo do jeito que o provara da primeira vez, naquela noite, tempos antes, na hospedaria, quando o tinha sob a ponta de uma espada.
Tristão interrompeu o beijo e, com um palavrão rude, empurrou-a à distância do braço. Os lábios de Rianne tremiam, levemente intumescidos. Os seios arfavam em arquejos curtos, entrecortados. E os olhos luziam com a cor de uma chama azulada.
O gosto dela perdurava nos lábios do guerreiro. O desejo naquele olhar queimava em seu sangue. Só agora fora possível a ele inspirar o primeiro hausto de ar. Suas mãos se apertaram nos braços macios. E Tristão precisou lutar para se convencer a soltá-la.
As chamas das velas tremeram quando a porta do aposento se abriu. Uma face enrugada com olhos redondos como contas espiaram com cautela ao redor, da soleira da entrada.
— O que você quer? — Tristão perguntou, a raiva contra si próprio e contra Rianne agora endereçada ao gnomo.
O que Grendel queria era que as pessoas parassem de jogar coisas nele: vasilhas de cerâmica e insultos. Seu mestre o mandara cumprir uma tarefa e ele não se atreveria a deixar de cumpri-la.
— Mestre Merlin deseja falar com a jovem senhora — informou.
Inquieto, Grendel relanceou os olhos do guerreiro para Rianne. Alguma coisa não estava certa ali, pensou. Sir Tristão estava zangado. Sabia que ele fora ferido por acidente. Imaginou que Rianne tivesse sido rude ao tratar do ferimento.
— Ele insiste em vê-la agora mesmo — o gnomo declarou. O ar estava pesado como uma bruma espessa. — Precisam dele em Camelot, e Mestre Merlin deve partir imediatamente.
Tristão soltou Rianne. Vestiu a camisa e a túnica, e pestanejou ao enfiá-las pelos ombros. Deu boas-vindas à dor física, que suplantava a dor que lhe devorava as entranhas e o dilacerava.
— A atadura precisará ser trocada regularmente, se quiser que o ferimento sare — Rianne o lembrou. A voz saiu insegura; os pensamentos eram ainda mais erráticos.
— O garoto dos estábulos mudará para mim — Tristão respondeu com secura.
Seu olhar cravou-se no dela quando ele parou à porta. Momentos antes, o gnomo julgara que o ar no herbário estava pesado como a bruma. Agora, se aquecia, ameaçando incinerar tudo e todos dentro daquelas paredes, apenas com o olhar trocado entre ambos. Então, Tristão saiu, a porta pesada a se fechar num baque violento atrás dele.
— Mestre Merlin está esperando...
Nem bem Grendel se virará e as palavras saíram de sua boca, um pequeno vaso cortou o ar bem perto de sua cabeça e chocou-se contra a porta fechada. Contra o pobre gnomo, Rianne aliviava a raiva e a frustração e mais meia dúzia de outras emoções que nem mesmo começara a compreender.
O homenzinho meneou a cabeça.
— Se detesta tanto assim sir Tristão, transforme-o num sapo. Isso lhe ensinaria uma lição.
Rianne não sabia se ria ou chorava. Queria arrebentar tudo, quebrar todos os vasos. Mas, no momento, outra idéia era muito mais interessante. Seus olhos faiscaram.
— Acho que vou transformar você num sapo — anunciou.
— Não! — Grendel exclamou e rumou para a porta tão depressa quanto as pernas curtas permitiam. — Tenha piedade, senhora! — berrou, o rosto contorcido de horror. Detestava sapos. Eram criaturas escorregadias, horríveis. — Não faça isso! Está apenas aborrecida. Irá lamentar depois.
— Então, eu me preocuparei com isso mais tarde.
Ele não parou de correr até chegar ao salão principal. Malditas escadas, malditas emoções mortais imprevisíveis! Olhou para as pernas, certo de que encontraria os membros verdes e gosmentos de um sapo. Soltou um suspiro de alívio e caiu contra a parede do corredor.
Que dia!
Ela conseguira dessa vez, Rianne pensou, ao sentir a friagem da parede sólida a se fechar em torno de si. Percebia cada grão áspero da pedra, cada junta rugosa, e então... estava emparedada.
O pânico começou a se instalar em seu íntimo. Não conseguia respirar! Não podia se mover! Estava presa!
Retome o controle de si mesma!, repreendeu-se mentalmente. Pense! Lembre-se do que Merlin lhe ensinou!
Concentrou os pensamentos, focados na imagem com que havia começado, e depois, aos poucos, puxou a respiração. Ainda mantendo o mesmo pensamento e nenhum outro em mente, descobriu, gradualmente, que podia se mexer. Devagar a princípio. Conforme continuava a se concentrar, os movimentos surgiram com mais facilidade.
Era como dar aquele primeiro passo quando criança, em pernas desajeitadas e pés inseguros. O segundo passo se tornava mais fácil, depois o próximo, e o seguinte, somado à capacidade de prosseguir, até que... Rianne tropeçou e caiu, através da parede, para um quarto suavemente iluminado.
Levou alguns momentos até seus sentidos se ajustarem, os olhos focando-se aos poucos nos objetos o redor — o baú entalhado contra a parede, a prateleira com a lâmina de barbear, a escova e a bacia de água, a cadeira de espaldar alto colocada diante de uma lareira de pedra, uma mesa e uma cama larga e baixa coberta com grossas mantas de pele.
Captou uma essência familiar, provocante, que se movia por seu sangue com um calor lento, e teve certeza — era o quarto de Tristão.
Rianne correu os dedos de leve pelo tampo da mesa. Havia um mapa sobre ela. Marcos, estradas e trilhas estavam pintados sobre o tecido grosso, que possuía uma capa protetora de couro. Ela reconheceu a floresta além de Monmouth, as cidades, vilas e aldeias cujos nomes pronunciou em voz alta no antigo idioma celta, que Merlin estava lhe ensinando, assim como o latim.
Havia marcações no mapa, em diferentes locais, com números com que Rianne não estava familiarizada. Com a ponta do dedo, traçou a distância entre o ponto mais próximo de Monmouth e o seguinte.
Hesitou e ergueu a mão sobre o mapa. Por um momento, tivera a sensação de que o tecido estava quente sob seus dedos. Franziu a testa, certa de que aquilo era fruto de sua imaginação. Porém, ao olhar de novo, poderia jurar que linhas tênues eram visíveis onde seus dedos tinham deslizado e revelavam várias retas que se interceptavam.
Talvez tivesse perdido parte do cérebro na passagem através da pedra. Seria muito difícil encontrá-lo de novo, imaginou com desgosto, já que não tinha idéia de como chegara até ali.
Precisava trabalhar seu senso de direção ou, da próxima vez, poderia se descobrir no meio de uma situação bastante comprometedora, difícil de explicar.
Rianne puxou a mão de repente. A escova de Tristão e a navalha de barbear jaziam na prateleira à sua frente. Pegou a escova. Tudo no quarto — o aposento em si — estava impregnado da essência dele. Aquele gosto misterioso, oculto, fugidio que ela sentia mais uma vez nos lábios e na ponta dos dedos... Fechou a mão no cabo da escova. Como se tocasse Tristão.
— Keflech! — praguejou.
Ia colocar a escova de novo na prateleira, mas hesitou. As cerdas eram ásperas e grossas e, como o quarto em si, emanavam a essência de Tristão, aquela presença vaga, fugidia que a rodeava, aquele cheiro másculo, misterioso, profundo, que penetrava em seus sentidos, aquecia seu sangue e a recordavam daquele dia no herbário, quando ele a beijara.
Devolveu a escova à prateleira. Ia sair, mas sentiu algo mais nas sombras do nicho de pedra na parede. Algo com o tênue aroma dos dias de verão e ravinas cobertas de bosques.
Seus dedos roçaram em linho macio. Ao puxá-lo, descobriu que era uma pequena bolsa amarrada com um pedaço de linha. Tilintou de leve quando ela a revirou entre os dedos, e aquela essência leve de flores permeou no ar. Rianne, então, percebeu que a bolsa continha flores e ervas secas.
Sorriu à lembrança de como ambos tinham ficado cobertos por folhas e flores no herbário. Ela as tirara dos cabelos durante dias. Sem dúvida, Tristão encontrara várias nas roupas também, e as guardara num pedaço de linho. Por que razão?
Ouviu vozes, não à maneira mortal, pois as sentiu daquela forma que se tornara instintiva em um curto período de tempo. Percebia agora que aquelas estranhas ocorrências, que haviam sido tão desnorteantes e perturbadoras para ela quando criança, nada mais eram que as habilidades naturais com que nascera, mas das quais tinha pouco conhecimento.
A princípio, as vozes lhe chegaram através da espessura das pedras e da madeira pelas paredes maciças, grossas demais para alguém com ouvidos mortais poder ouvir. Agora, porém, Rianne conseguia escutar, alto e claro, logo do lado de fora da porta do quarto. E uma das vozes era de Tristão.
Ela não poderia permitir que o guerreiro a encontrasse ali. O que iria pensar? Como explicar o fato de estar no quarto dele?
Não havia lugar para se esconder. O pânico quase a dominou quando o ferrolho se ergueu e deslizou na tranca da porta. Rianne arrojou-se contra a parede e saiu da única maneira possível sem ser vista — do mesmo jeito que entrara.
Tristão parou ao entrar no quarto, a mão ainda a descansar no ferrolho.
— Alguma coisa errada? — sir Roderick perguntou.
O cavaleiro conhecia bem a região, pois passara vários anos escondido nas colinas e florestas da redondeza, vivendo da terra e caçando homens com prêmios em suas cabeças.
— Não é nada — respondeu Tristão.
Ele franziu a testa e correu os olhos pelo quarto. O que vira? Um faiscar dourado? Um raio de luz? Ou fora uma ilusão de ótica?
Um exame rápido revelou que não havia ninguém no aposento. Contudo tinha certeza de que vira alguma coisa, um vislumbre fugaz de algo nos limites de sua vista. Imaginação.
— Este é o mapa de que lhe falei — explicou ao esticá-lo sobre a mesa. — Gostaria da sua opinião a respeito.
Ao apontar os diferentes locais, parou mais uma vez. O cheiro de flores secas e ervas parecia mais forte que antes. Ou será que imaginara isso também?
Novamente, sir Roderick indagou:
— Alguma coisa errada, Tristão?
— Não, não é nada — foi tudo que ele pôde dizer.
Merlin percebeu, com um misto de frustração e orgulho, que Rianne sumira. Outra vez. Com tamanha rapidez e eficiência que, mesmo ele, estava espantado.
Fizera uma simples pausa entre palavras ao explicar a questão e os meios dos poderes de transformação, e, de repente, tivera a distinta sensação de que estava falando sozinho. Novamente!
E como um professor que procura um aluno teimoso embora brilhante, ele foi atrás dela. De novo.
Era frustrante, percebeu, conforme deslizava pelas paredes em busca da essência de Rianne. Ela era impetuosa e inquieta. Isso explicava sua perícia nos jogos. Porém havia coisas nesta vida com as quais Rianne se defrontaria e que não eram um jogo. E a impulsividade tinha um preço.
Merlin sabia muito bem que essa sabedoria vinha com a idade e a experiência. Mas aqueles que possuíam o poder da Luz também possuíam a habilidade de aprender com coisas assim e transcendê-las. Tal era a bênção e a maldição da imortalidade.
Contudo aquela criatura incrível e fascinante não era inteiramente uma criatura da Luz. Era em parte mortal, com todas as fragilidades e forças que isso implicava, uma combinação do pai e da mãe, pois o sangue de Connor corria em suas veias também. Por mais que sentisse os dons de Meg dentro de Rianne, também sentia aquela porção que ela herdara do pai.
Merlin virou-se e emergiu da pedra no corredor do lado de fora dos aposentos privativos. Sentiu Tristão e um de seus homens muito perto, a conversa chegando até ele como se vários centímetros de pedra não os separassem. A discussão girava sobre os ataques de meses antes. Mas dentro das paredes daquele mesmo quarto, Merlin sentiu... algo.
Rianne passara recentemente por aquele caminho, disso Merlin tinha certeza. A essência dela se grudara às paredes de pedra num padrão errático e caótico que não sugeria pensamento lógico, mas emoção. Rianne continuava a permitir que as emoções lhe guiassem os poderes.
Keflech! Será que a garota nunca aprenderia a controlar os sentimentos?
Sua frustração aumentou diante da incômoda percepção de que seu tempo ali, com ela, estava no fim. Arthur queria a presença do conselheiro em Camelot. Havia questões sobre as quais desejava sua orientação, entre elas a decisão de tomar uma rainha. E ali jazia o maior sofrimento emocional de Merlin.
Sentia que precisaria deixar Camelot em breve. Não poderia suportar ficar e observar a mulher que ele amava com uma paixão assustadora e mortal casar-se com o homem a quem amava como a um irmão.
Fora imprudência permitir que isso acontecesse. Ele havia percebido e poderia ter impedido antes mesmo que começasse. Porém sentia-se cansado de viver a existência fria, solitária, sem emoções, sem nunca experimentar as alegrias que os outros vivenciavam, como aquela que era a mais profunda das emoções humanas.
Contra toda lógica, toda sabedoria, tudo que Merlin era, havia se apaixonado profunda e loucamente. Contudo tinha de deixá-la. E assim fizera, meses antes, quando retornara a Camelot e para seu dever para com Arthur.
Dever. Era singularmente vinculado àquele laço mortal, pois nunca trairia Arthur. E, portanto, deixara a mulher amada. Mas, nos meses desde que partira de Lyonesse, descobrira que não poderia também permanecer em Camelot.
Talvez sua tarefa tivesse terminado, agora que Arthur era rei de toda a Inglaterra. O futuro não mais se desdobrava para ele como antes, com tanta clareza. Talvez fosse isso que devesse acontecer.
Mas havia ainda uma pequena questão, na forma de uma jovem extremamente adorável que possuía poderes extraordinários: isso ainda não fora concluído.
Pelos Anciãos! Onde estava Rianne?
No mínimo era imprudência, uma arrematada tolice, mas também uma absoluta e irresistível tentação. Com um sorriso malicioso a lhe curvar os lábios, Rianne surgiu atrás de Merlin e bateu-lhe de leve no ombro.
— Estava procurando por mim?
Merlin fez meia-volta, e Rianne imediatamente sentiu que aquilo fora muito além da tolice ou da insensatez. Ele estava zangado. Aliás, mais que zangado; estava furioso.
Seus olhos se arregalaram quando sentiu o encantamento que Merlin convocava. Então, aquela seria sua punição...
Resolveu aceitar o desafio. E repeliu o encantamento com outro, de sua própria criação.
Livrou-se dos grilhões sedosos com que ele procurou prendê-la com um gesto, como quem afasta uma mosca aborrecida.
A tentativa de transformá-la numa ovelha dócil e complacente foi facilmente repelida. E a reação foi um rugido de frustração que ecoou pelas paredes do corredor.
Havia apenas uma coisa a ser feita, Merlin concluiu: ensinar a Rianne uma lição da qual não se esqueceria. Tinha de aprender disciplina e autocontrole. O mago focou os pensamentos, concentrou seus poderes, e estava prestes a...
— O que há de errado, caro irmão? — Meg perguntou ao sair das sombras e se colocar entre Merlin e a filha.
Com a concentração quebrada, tudo que ele pôde fazer foi praguejar outra vez.
— Essa menina, sua filha, deve aprender uma lição.
— Normalmente, eu concordaria com você. Mas parece que suas intenções estão mescladas de raiva. Algo contra o qual você sempre me aconselhou a ter precaução. O que o deixou tão zangado?
— O quê? — Merlin perguntou com voz estrangulada, e depois repetiu: — O quê? Essa falta de responsabilidade de Rianne, seus caprichos. Não leva nada a sério. Tudo é um jogo para ela.
— Como assim? — Meg indagou, com uma inocência de enlouquecer que o fez rilhar os dentes.
— Ela fugiu das aulas outra vez. Usa seus poderes, não com discrição e prudência, mas com impulsividade e a seu bel-prazer. Recusa-se a aceitar a importância de suas habilidades. Ela...
— Está enganado, irmão — Meg o interrompeu com firmeza. — Rianne não fugiu. Estava simplesmente usando o que aprendeu. Como pode saber como agir, se você não permite que ela teste suas habilidades?
Então, virou a situação contra ele de uma forma bastante hábil.
— Deveria estar envergonhado, irmão, por tentar ensiná-la tanto em tão pouco tempo. Existem coisas que vêm somente com a prática. Você, mais que ninguém, sabe disso. E parece que me recordo de histórias que os Instruídos contavam sobre um "certo jovem" que lhes deu um trabalho particular com as aulas.
Merlin a encarou em silêncio. Não poderia negar o fato. Era a pura verdade. E, embora a verdade fosse muitas vezes tão eficiente como uma arma, era também uma espada que alguém descobria estar apontada para si mesmo.
— De qualquer maneira — continuou Meg —, Rianne estava comigo o tempo inteiro. Assim sendo, veja, ela não foi absolutamente negligente em suas responsabilidades.
Ambos a encararam. Merlin sentiu que não era de forma alguma verdade. E Rianne sabia que aquilo estava bem longe da verdade.
O olhar de Merlin se estreitou. Seria possível que sua irmã tivesse mentido a ele? Não, não podia ser. Porém, mesmo assim, nutria a suspeita de que fora enganado.
— Muito bem. Então, iremos continuar as lições agora mesmo.
—É suficiente por um dia — Meg o contrariou. — Esperam Rianne na vila, hoje. Estávamos a caminho do herbário para preparar os medicamentos que ela deve levar consigo.
Em seguida, pegou Rianne pelo pulso e empurrou-a para frente, na direção dos degraus de pedra no final do corredor. Ficou entre o irmão e a filha, para poder impedir com mais facilidade qualquer punição de última hora que Merlin imaginasse.
- Acalme-se, irmão, Meg o consolou por meio da conexão dos pensamentos. Ela é jovem. Com o tempo, será como você espera. Sei disso no meu coração.
Bolas!, bufou Merlin. Rianne é muito parecida com a mãe!
E com o tio, eu acho.
— A senhora mentiu! — Rianne acusou a mãe, olhando-a de soslaio, quando trabalhavam lado a lado no herbário.
— Não menti — disse Meg, feliz com a intimidade que as unia no momento. A cada dia que passava, sentia o estranhamento diminuir entre as duas. Descobria cada vez mais que a filha, não mais na defensiva, se tornara uma criatura encantadora, apesar das dificuldades que vivenciara. Meg sorriu com aquele toque de malícia que pareciam compartilhar. — Simplesmente estiquei a verdade um pouquinho.
— Um pouquinho? Ficou bem longe da verdade. Sabe muito bem que eu não estava com a senhora.
— Num certo sentido, estava — retrucou Meg e, diante do olhar confuso de Rianne, explicou: — Você está sempre comigo, filha. Como esteve desde o dia em que a senti se movendo dentro de mim pela primeira vez. Esse não é um laço que pode ser rompido, seja pelo tempo, seja pela distância. — Então, o ar de malícia voltou. — E acontece que senti que você poderia precisar de mim. Tive medo do resultado, se Merlin e você passassem dos limites. Veja, eu estava com você.
— Vou me lembrar disso — Rianne murmurou, com um sorriso, diante do segredo que agora compartilhavam. — Acho que dizer a verdade, às vezes, traz conseqüências terríveis.
— E também imensa alegria, mais particularmente quando você pode abrir seus sentimentos para alguém e compartilhá-los com essa mesma honestidade e franqueza. A recompensa é maior que qualquer tesouro.
O sorriso de Meg suavizou-se. E Rianne soube que ela falava de seu pai. Não se sentiu excluída ou negligenciada. Foi tomada por algo bem diferente, um anseio por experienciar aquela mesma conexão com alguém, aquela plenitude que seus pais sentiam, como se um não fosse inteiro sem o outro.
— Você encontrará um dia — Meg assegurou ao captar os pensamentos da filha. — Senti o jeito com que Tristão olha para você.
— Não tenho tanta certeza — Rianne murmurou, pensativa. — Ele me julga muito teimosa e cabeça-dura. Pensa apenas no seu dever.
Meg sorriu com compreensão.
— Claro, minha querida. Afinal, é um homem.
Um homem muito intrigante, pensou Rianne.
Durante toda a tarde, trabalhou na vila. Na última cabana que visitaram, uma moça estava em trabalho de parto do primeiro filho. O parto foi longo e difícil. O marido, aprendiz de carpinteiro em Monmouth, andava nervoso de um lado para outro.
Rianne sentiu o medo e a ansiedade do homem. Embora soubesse pouco dessas coisas, sentia que o parto era normal, e com a parteira de Monmouth, ela não tinha dúvida de que tudo correria bem.
Porém, conforme a tarde avançava e a criança não nascia, Rianne começou a ficar seriamente preocupada. Colocou as mãos sobre o ventre distendido. Sentiu a criança lá dentro. Por menos que soubesse a respeito de partos, sabia que a criança precisava nascer primeiro com a cabeça. E aquela estava virada na direção errada.
Com imenso cuidado e delicadeza, Rianne focalizou seu poder e rodeou a criança com calor e luz, enquanto a virava lentamente dentro do ventre da mãe.
Bem devagar, guiou a criança como se a tomasse pela mão e a conduzisse pelo caminho. Manteve aquela visão na mente quanto aliviava a dor do corpo da mãe e a tensão dos músculos retesados. Então, a criança veio ao mundo.
O ar frio, em contraste com o calor de momentos antes, arrancou o bebê de sua letargia. Ele saiu do ventre a agitar as pernas, aos gritos, a face vermelha.
A mulher olhou para o recém-nascido e estendeu as mãos para pegá-lo. Era uma expressão que Rianne nunca vira antes. E que viu refletida na face do marido quando ele irrompeu pela cabana com uma braçada de lenha que se esparramou pelo chão, ao se dar conta de que a criança nascera.
O olhar em seus rostos era uma combinação de alegria, deslumbramento e amor inacreditáveis. E, naquele momento, Rianne foi transportada pelo giro do tempo. Outra jovem mulher acalentava a filha recém-nascida. E o guerreiro valoroso que era o pai da criança ajoelhava-se a seu lado em silêncio respeitoso, com tamanha humildade que nenhum inimigo jamais o reconheceria.
Com a certeza de que aquela criança era amada, Rianne percebeu que também ela fora amada. E, pela primeira vez, aceitou que fora aquele mesmo imenso amor que a afastara de Monmouth.
Por que não me contou?, gritou em pensamento.
Você não quis me ouvir, filha. Agora, compreende o elo de amor entre uma mãe e o filho, amor que está disposto a sacrificar tudo, até mesmo a própria vida.
Quando Rianne se preparava para ir embora, o jovem carpinteiro a parou.
— Não tenho moedas para lhe pagar, mas gostaria de lhe dar este presente. — Colocou uma caixa de madeira entalhada nos braços dela. — Eu mesmo a fiz.
A caixa era feita com capricho, com figuras de um homem e uma mulher esculpidas na superfície com uma perfeição que parecia que poderiam saltar da madeira e ganhar vida a qualquer instante. Mesmo as tonalidades da madeira captavam as nuances exatas da expressão. O talento do rapaz estava sendo desperdiçado como carpinteiro, tal a qualidade artística de seu trabalho. Mas ele tinha uma família para alimentar e não havia muita necessidade de coisas artísticas na vila.
— É linda! — Rianne exclamou. — Muito obrigada.
Ele inclinou a cabeça num gesto de modéstia. Voltou para junto do filho e da esposa, que também agradeceu com um aceno.
Rianne saiu da cabana e ergueu a tampa da caixa, julgando que seria excelente para guardar suas ervas, e descobriu o presente verdadeiro.
Lá dentro, havia pequenas figuras entalhadas na madeira. E ela reconheceu, de imediato, sua mãe e seu pai, os cavaleiros e guerreiros, Merlin e várias outras pessoas ilustres, inclusive o rei, numa duplicada do tabuleiro de jogo em que ela e o pai jogavam.
Um sorriso curvou-lhe a boca ao pensar em quanto Connor ficaria feliz ao ver a caixa. Talvez pudessem jogar quando ela chegasse, se ele estivesse se sentindo bem. Colocou a caixa sob o braço, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
Estava muito frio. Quando Rianne e a parteira entraram no salão principal, o cheiro de comida e um calor convidativo a envolveram como nunca antes. Era como se tivesse realmente chegado em casa.
A porta para a pequena ante-sala estava entreaberta. A luz do fogo que queimava constantemente na lareira refletia-se na madeira rústica.
Àquela hora do dia, Rianne sabia que a mãe estaria com o mordomo-mor, e os criados, nas cozinhas, Merlin não se encontrava em parte alguma, e Tristão, sem dúvida, ainda não retornara do pátio de exercícios.
Tudo estava quieto e em paz quando ela entrou na ante-sala, onde sabia que encontraria o pai a ler alguma carta que recebera, ou talvez a cochilar diante do fogo, à espera que a filha regressasse, como se tornara hábito.
Connor estava na cadeira de espaldar alto, voltado para o calor do fogo. Tinha a cabeça ligeiramente pendida para a frente, sem dúvida concentrado em alguma importante questão.
Rianne atravessou o aposento e rodeou a cadeira, ansiosa para mostrar ao pai o belo presente.
— Olhe o que o jovem Jarrod me deu, agradecido pelo nascimento do filho! — exclamou. — É lindo. Pensei que poderíamos jogar... — Sua voz se calou quando olhou para o pai.
O queixo de Connor descansava no peito e os olhos estavam fechados. A dor, aquela companheira familiar da doença devastadora que o assolava durante meses, não mais lhe marcava o rosto. As feições estavam relaxadas em suave repouso; uma das mãos descansava sobre a coxa. Parecia esperar por Rianne, para que pudessem jogar outra partida no tabuleiro.
— Pai?
A palavra saiu trêmula dos lábios de Rianne, embora ela sentisse que não haveria resposta. Ajoelhou-se no tapete macio de pele aos pés do pai, e depois encostou a face contra aquela mão grande e gentil que a acolhera com amor incondicional. Dor, pesar e tristeza insuportável se fecharam em torno de seu coração.
Estava feito, pensou a criatura quando saiu das sombras da floresta que ficava logo além de Monmouth. As tochas relu-ziam pelas ameias e em cada janela, conforme a notícia se espalhava.
Ele a encontrara por fim. E o próximo passo seria dado, a criatura pensou, conforme a luz do sol poente arrancava um lampejo da runa de cristal que pendia das mãos com feitio de garras. Só restava a etapa final, e depois, destruiria aquela chamada de Escolhida. E ela o ajudaria a fazer isso.
Finalmente Meg dormira.
Rianne olhou pela janela do quarto que sua mãe compartilhava com seu pai. Velas luziam suavemente. O fogo queimava no braseiro. E Rianne sentiu a presença de lorde Connor por toda parte. Na cadeira onde ele com freqüência se sentava. No baú de madeira que continha as coisas que lhe pertenciam. Na espada encostada contra a parede ao lado da cama, como se esperasse pela mão do guerreiro. Contudo conhecera-o por tão pouco tempo. E agora, ele se fora para sempre.
O enterro ocorrera naquela manhã, na cripta de pedra sob o chão da capela, em Monmouth, onde outras gerações de sua família repousavam no descanso eterno. Porém não o pai de Connor, o irmão, a mãe e a irmã, pois tinham sido brutalmente assassinados, e suas cinzas espalhadas ao vento, com ninguém para chorar por eles, quando ele não se encontrava ali.
Isso tudo Tristão lhe contara, coisas que Rianne não sabia, mas que a faziam sentir-se de certa forma mais próxima do pai.
Meg suportava seu pesar com calma incomum. Havia uma tranqüilidade nela que a princípio deixara Rianne preocupada, pois parecia pouco natural. Mas Merlin lhe explicara que parte do tormento de Meg provinha de saber que Connor sofria com a enfermidade devastadora que o matava lentamente. Agora não sofria mais. Os mortais acreditavam que assim que o corpo morria, a alma ficava em paz. E Meg estava agora em paz, embora dias de solidão a esperassem.
Meg pusera a mão sobre a lápide funerária, como se quisesse alcançar o marido no túmulo, e dissera palavras que ninguém, nem mesmo Rianne ou Merlin, captaram, tão particulares ela as mantivera. Depois disso, Rianne lhe dera uma poção de ervas que a ajudara a dormir.
— A senhora precisa descansar — dissera-lhe, com receio de que pudesse perder a mãe também, pois ouvira falar de tais coisas. Não podia suportar a idéia de ficar sem ambos depois de reencontrá-los tão recentemente.
— Quero me recordar — Meg protestara com doçura. — Quero me lembrar de cada momento, cada palavra, cada pensamento. — E com olhos que reluziam de lágrimas, dissera, com uma tristeza de partir o coração: — Isso irá durar uma eternidade. E eu não poderia suportar se não tivesse essas lembranças.
Depois, aceitara por fim o chá de ervas e logo adormecera, a boca a se curvar num sorriso, como se descobrisse algo naqueles sonhos, algo que perdera em vida.
— Você também precisa de descanso, menina — disse Merlin ao se juntar a Rianne à janela. — Eu cuidarei de Meg, para que tenha um sono tranqüilo.
— Ela ficará bem?
— Sim — ele assegurou, pousando a mão sobre a de Rianne. — Porque Meg tem algo pelo qual viver. Connor é parte de você.
Tristão não voltara ao salão principal depois que Connor fora enterrado, mas buscara os estábulos e talvez a camaradagem de seus homens, como fizera com freqüência durante as últimas semanas.
Rianne não foi descansar, mas desceu a escadaria para o salão. A fortaleza estava mergulhada num silêncio incomum, a não ser pelo som de choro abafado. E ela julgou que ficaria louca se ouvisse aquele coro de lamentos por mais tempo.
Entrou na ante-sala, onde compartilhara tantas horas com o pai. O fogo se extinguira, mas a cadeira de Connor ainda se encontrava diante da lareira, como se ele fosse voltar a qualquer momento.
A caixa com as peças entalhadas do jogo estavam no chão ao lado da poltrona. Rianne levou-as para a mesa e as dispôs uma a uma no tabuleiro. Em seguida, fez o primeiro lance.
— Que movimento faria, papai? — perguntou, como se ele estivesse sentado do outro lado. E depois, disse: — Ah, sim, compreendo. — E moveu a peça para ele.
Sua mão se mexeu sobre o tabuleiro. Sentia-se, de certa forma, mais perto do pai com aquelas peças arrumadas do mesmo jeito de quando jogavam por horas.
— Continuaremos mais tarde. — Levantou-se e rumou para a porta. Então, parou com um sorriso. — E não tente trapacear. Saberei se moveu qualquer uma das peças.
As tochas já queimavam no salão. A tarde caía. Sua mãe dormiria a noite toda com a poção que ela lhe dera. O amanhã poderia esperar. Mas Rianne não poderia agüentar o silêncio do salão e a ausência do pai.
Saiu, alheia ao vento cortante que assobiava e às nuvens que escureciam o céu, e desceu correndo os degraus de pedras, incerta do rumo que tomaria.
Tristão surgiu no pátio, montado no garanhão negro. Sem uma palavra, estendeu a mão para erguê-la do chão. Acomodou-a na sela diante de si, como fizera tantas vezes anteriormente, e guiou o cavalo na direção dos portões principais.
Cavalgaram pelo vale da Baixa Escócia, além da vila, além dos campos e cabanas que Rianne visitara muitas vezes durante as últimas semanas. Agora, aqueles lugares tinham nomes. Os rostos tinham nomes. E a ligavam a eles de um modo que ela nunca experimentara antes.
O sol afundou no horizonte. Cruzaram o rio e cavalgaram pelas colinas ondulantes, através de todos os lugares que seu pai percorrera quando menino, e depois, já homem feito. Lugares que ele amava e chamava de lar, pelos quais lutara e estava disposto a dar a vida. Ao vê-los outra vez, Rianne se sentiu mais próxima de Connor.
Seguiram adiante, cada um perdido nos próprios pensamentos, alheios à escuridão que os cercava, esquecidos até mesmo da chuva que caía em gotas geladas e lhes ensopava as roupas.
Rianne encolheu-se contra Tristão, buscando força e calor, sentindo-lhe as poderosas batidas do coração, ouvindo o pulsar do próprio coração, cheio de dor pela perda que se tornara tão familiar a ela durante longos anos. Porém aquela era uma dupla perda, por haver perdido o pai antes, ao longo de todos aqueles anos passados, e novamente agora.
Rianne teve uma vaga percepção daquelas mesmas cabanas e da vila, e depois dos portões de Monmouth a se fecharem quando ambos retornaram, empurrados pela tempestade, e ainda mergulhados numa tormenta emocional.
Um garoto dos estábulos apareceu para pegar o cavalo, e Tristão ergueu Rianne da sela. Suas roupas estavam ensopadas e pesadas, e ela teve certeza de que cairia se ele a colocasse no chão. Em vez disso, Tristão a carregou até o salão principal.
Não a pôs no chão quando chegaram às escadas, mas continuou a carregá-la, a subir os degraus de dois em dois. E, pela primeira vez desde que tinham se conhecido, Rianne não protestou.
Ele a levou no colo pelo corredor e empurrou a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota. Uma das criadas acendera o fogo no braseiro e várias velas. Uma suave luz dourada banhava as paredes do aposento.
Tristão carregou-a até diante da lareira e então a colocou no chão. Quando ia se afastar, Rianne o impediu com a mão em seu braço. Ela não suportaria que ele a deixasse naquele momento.
— Fique comigo.
As feições de Tristão se enrijeceram. A luta pelo autocontrole se notava em cada músculo e no cerrar firme do queixo. Mas seu olhar era perpassado por numerosas emoções: raiva, desejo e sofrimento. Rianne compreendia todas elas. Espelhavam as suas próprias; raiva pela perda que compartilhavam, desejo descoberto num beijo, e o sofrimento pela necessidade que os dominava.
— Você não sabe o que está dizendo — Tristão declarou.
Rianne ergueu a mão do guerreiro e virou-a para cima. Comprimiu a boca contra a palma calosa num beijo terno que falava mais do que as palavras que ele se recusaria a ouvir.
Fitou-o então, o olhar azul como uma chama a encontrar o de Tristão, o calor a queimar entre os dois.
— Sei exatamente o que estou dizendo.
Ele aproximou-se. Empalmou o rosto de Rianne, tomado de certeza e pesar. Certeza do desejo. Pesar por ceder ao desejo. Talvez fracassasse em seu dever. Talvez estivesse mesmo destinado a fracassar desde o momento em que pousara os olhos pela primeira vez em Rianne. E, lentamente, baixou a boca sobre a dela.
Seu beijo foi diferente daquele que lhe dera no herbário. Fora-se a raiva. Fora-se a paixão mal controlada. Era dolorosamente terno agora, uma completa rendição ao que os esperava. E fez Rianne desejar chorar.
Com a ponta dos dedos, Tristão traçou o contorno das feições de Rianne. Depois, enterrou-os pelos cabelos molhados, inclinando-lhe a cabeça para trás para que o beijo não fosse interrompido e continuasse indefinidamente, até parecer que jamais poderia respirar de novo. Mesmo que quisesse.
Invadiu-lhe a boca, sua língua a se enroscar na de Rianne, despertando uma fome primitiva em ambos ao tocar aqueles seios macios.
O ar tremeu e fugiu dos pulmões de Rianne em palavras entrecortadas, ansiosas, palavras que haviam esperado demais para serem proferidas e que agora eram balbuciadas por um e pelo outro em meio àquele interminável beijo.
O olhar de Rianne continuou cravado no de Tristão quando o beijo terminou. E suas mãos soltaram os laços do corpete do vestido. Ela puxou-os e soltou-os, e o vestido escorregou pelos ombros até se amontoar a seus pés.
Tristão respirou fundo, asfixiado de ansiedade ao vê-la estender os braços. E ficou imóvel, tenso, ansioso, quando Rianne soltou devagar os cordões da sua túnica e depois a puxou de seus ombros.
A boca rosada seguiu o trajeto dos dedos, saboreando a pele do guerreiro. E Rianne enterrou os dentes, em mordidas ternas, quentes, excitantes, na carne arrepiada, o que fez Tristão prender o ar nos pulmões e soltar uma praga por entre os dentes. Louco de desejo, ergueu-a nos braços, carregou-a para a cama e a colocou sobre o colchão fofo.
Rianne era como os raios dourados do sol em meio a uma nuvem branca, os cabelos espalhados em leque pela cama, parecendo ouro derretido onde a luz das velas a tocava. Como se fosse a própria essência das chamas.
Ela estendeu-lhe os braços quando Tristão se postou, totalmente nu, à sua frente. E entrelaçou os dedos nos dele, puxan-do-o para baixo, aqueles olhos magníficos a lhe assegurar que não havia como voltar atrás.
Beijou-o. O ar estremeceu com as palavras ávidas que brotavam das bocas carentes. Os corpos se buscaram para se completarem. E Rianne se deu a Tristão totalmente.
O fogo era uma coisa viva, que respirava, o rugido da ferra a espalhar o terror, enquanto consumia tudo em seu caminho, escalando as paredes, lambendo o teto de palha da cabana, devorando qualquer coisa que encontrasse.
A escuridão envolveu-a. O frio cortou-lhe as costas como um punhal, enquanto as chamas lhe queimavam a memória. Nada escapara da fome devastadora da fera. A criança olhou, como olhara incontáveis vezes antes, e sentiu o sangue quente em suas mãos.
Escorria entre seus dedos, a fluir de seu punho fechado, e depois se fundiu naquele único ponto, transformado numa pedra cintilante em sua mão, quando ela a estendeu.
Então, tudo desapareceu. Ela estava sozinha — como sempre estivera. A não ser pela figura solitária que se postava à beira da escuridão, as feições acobertadas pelo capuz do manto.
Podia sentir aqueles olhos a observá-la. Olhos frios que fitavam dentro de sua alma e a chamavam.
A figura era a Morte... e ela o conhecia.
Rianne acordou, gelada, tremendo, com o som da fera a rugir em seu sangue.
Gradualmente, o rugido retrocedeu até que tudo que ela ouvia era o bater furioso do próprio coração.
O quarto estava calmo e quieto. Nada a encarava das sombras. Havia apenas um calor em suas costas, forte e protetor: o corpo de Tristão aninhado contra o seu.
Tinham caído no sono, mas era como se Rianne ainda o sentisse bem fundo, dentro de si, seu corpo a se moldar ao dele, a lembrança vívida do prazer que o guerreiro extraíra de um jeito terno e lento, e depois devolvera, também de um jeito terno e lento, até que ela se sentira queimar, ávida e ansiosa, e, finalmente, não pudera mais suportar e exigira que Tristão terminasse com seu tormento.
Ele terminara, de um jeito terno e lento, os beijos a arrancar protestos de seus lábios enquanto provocava uma onda de calafrios em seu corpo.
Rianne o odiara um pouco, só um pouquinho, pelas sensações, por enlouquecê-la de desejo, por saciá-la aos poucos, como se desse migalhas a um mendigo faminto. E ela se contorcera, recusando-se, orgulhosa, a implorar, embora o fizesse em pensamentos.
Lenta tortura a cada investida para dentro; doce tortura a cada beijo na pele incendiada; selvagem tortura que ela não queria que acabasse.
Fizeram amor de uma maneira feroz. E Tristão marcara o corpo de Rianne e sua alma quando se apossara daquilo que nenhum homem jamais tomara. E a aturdira com todas as coisas que ela vira e sentira na mente do guerreiro: o desejo de se sentir renascido em Rianne, de dar tudo o que ele era e tomar tudo o que ela era, numa união feita de esperança, prece e solene promessa.
Rianne se juntara a Tristão naquele violento exorcismo do passado, naquele momento final, quando seu corpo se agarrara ao dele em sucessivas ondas de prazer, enquanto o guerreiro plantava a quente semente do amor em seu ventre.
Olhou para Tristão, agora adormecido. No sono, havia uma aura de inocência adolescente em torno dele. Só a cicatriz no queixo marcava tanto o menino como o homem, inocência em um, puro ar travesso no outro.
Moveu-se com cuidado, para escapar do peso das longas pernas que a prensavam na cama. Depois, tirou o braço que ele passara por sua cintura.
O chão de pedra estava gelado sob seus pés. Rianne pegou uma manta grossa da cama e enrolou-a nos ombros ao seguir até o braseiro e colocar mais lenha.
O fogo se consumira durante a noite; restavam apenas carvões frios. Ela abriu a mão e estendeu-a sobre os pedaços de madeira de cheiro penetrante. Com um simples pensamento, uma língua de fogo apareceu na ponta de seus dedos. Rianne soprou-a suavemente, e a labareda explodiu em várias outras chamas que logo incendiaram a madeira.
Pouco depois, a luz se espalhava pelas paredes, e o ar no quarto perdia um pouco da friagem. Rianne puxou a manta em torno dos ombros e saiu do aposento.
Sua mãe ainda dormia, mas era um sono inquieto. Os pálidos cabelos loiros estavam emaranhados, e o braço, atravessado na cama que uma vez compartilhara com o pai de Rianne, como se a buscar por ele.
Era difícil acreditar que aquela bela mulher fosse sua mãe.
Quando a vira pela primeira vez depois de todos aqueles anos de separação, não havia sinais de idade na face de lady Meg. A pele era macia e sem vincos, os cabelos do mesmo tom de ouro que ela e Rianne compartilhavam.
Só agora, no sono, Rianne via as linhas tênues nos olhos e em torno da boca de Meg, como se aquela perda insuportável lhe tivesse roubado a juventude, além do coração.
Como se seus papéis tivessem de repente se revertido, Rianne puxou a manta de pele sobre os ombros de Meg e enfiou as pontas para dentro para mantê-la aquecida. Acariciou gentilmente a face macia como sabia que a mãe a afagara quando bebê.
Estou aqui, mãe, disse, com ternura, em pensamento.
Merlin ficou a observá-la. O poder da Luz era forte dentro dela. Muito mais forte do que ele alguma vez imaginara. E Rianne estava diferente da garota zangada que chegara a Monmouth.
Havia uma suavidade em torno dela quando se debruçou sobre a mãe, uma ternura que falava de paixões despertadas e saciadas. E Merlin soube com certeza.
Você se deitou com ele.
Sentiu a tristeza do inevitável.
Rianne sabia que Merlin se mantinha ali em vigília silenciosa. Sabia também que perceberia de imediato o que acontecera. Não precisou responder.
Ele é mortal; você não é. Amá-lo trará somente sofrimento a você, como trouxe sofrimento a ela.
Havia uma tristeza pungente, um tormento sentido através da conexão que partilhavam. E Rianne descobriu o segredo que jazia lá, com a mesma certeza com que Merlin soubera que ela se entregara a Tristão.
O senhor a amava.
Não procurou o nome da mulher nos pensamentos de Merlin. Não importava.
Demais.
E ainda a ama.
Não era uma pergunta, mas uma certeza, a verdade oculta em lugar seguro no coração de Merlin, e agora exposta ao coração de Rianne.
Como eu o amo, Rianne continuou, surpresa com a facilidade com que formara o pensamento, instintivo como o respirar, tão natural como as batidas do coração. Sentiu o próximo pensamento de Merlin e o expulsou com uma energia feroz que o deixou aturdido. Não viverei sem ele!
Terá de fazê-lo. Ele ficará velho e morrerá, você não. Assim são as coisas para nós, que não somos mortais. É melhor que aprenda isso agora.
Como o senhor aprendeu. Rianne sabia que o pensamento magoava. Teria preferido não amá-la?
A expressão nos olhos de Merlin era cheia do sofrimento da separação. Os pensamentos de Rianne o atingiam.
Por tempo demais não houve amor nem ternura nem gentileza. E eu não mais sabia o que era o amor. Ficaria feliz em sentir o sofrimento em vez de absolutamente nada.
Merlin não respondeu. Não era preciso. Rianne sabia que a mesma resposta ecoava no coração dele, inclusive agora, depois de todo o sofrimento. Merlin escolheria o mesmo outra vez, tal como ela escolhera.
Rianne não voltou ao seu quarto, mas subiu as escadas para as ameias.
O vento chicoteou-lhe a face e os cabelos e clareou seus pensamentos quando ela puxou a manta em torno dos ombros e chegou ao alto das muralhas. Madeira, pedra e argamassa sumiam num declive pela escuridão abaixo, enquanto uma faixa acinzentada surgia no horizonte distante.
O ruído do vento mudou. Não mais solitário e lamentoso, carregava o som de vozes; vozes antigas que murmuravam e falavam com Rianne; vozes vindas do passado, antes que sua mãe tivesse entrado no mundo mortal, antes que Merlin ocupasse seu lugar ao lado de Arthur.
Murmuravam e falavam de sangue e morte, de trevas e luz, de perda incalculável e débil esperança.
E, na escuridão que se avultava, apenas com a luz das tochas mais próximas, e com aquelas vozes a lhe sussurrarem ao ouvido, imagens surgiram em lampejos pelos pensamentos de Rianne, provindas de seus sonhos.
Em vez do sol, chamas queimavam no horizonte. Destruíam tudo em seu caminho — vilas, cabanas e fazendas —, até que nada restava. Depois, outra imagem relampejou por sua mente, e o sangue começou a escorrer por seus dedos. E devagar reli trocedeu, fundindo-se num único ponto, que se transformou numa pedra cintilante em sua mão. E Rianne soube.
A criatura estava lá fora. Ela podia senti-la, fria como a morte, a observá-la, a esperar por ela, não mais satisfeita em assombrar seus sonhos. O que via não era o passado, mas a visão do futuro.
Tristão a encontrou nas ameias.
— Está amanhecendo — disse ele ao roçar os lábios pelos cabelos de Rianne, ao abraçá-la com força. — Vamos voltar à fortaleza.
Ela mal se moveu.
— Suponho que isso signifique que eu terei de levá-la no colo — o guerreiro murmurou, e recebeu em resposta um leve aceno de cabeça.
Ele carregou-a no colo pelo corredor, abriu a porta do quarto de Rianne com a ponta da bota e depois a deixou cair, não muito gentilmente, sobre a cama.
Rianne puxou a manta para se cobrir, enervada com aquela hostilidade. Tristão tirou o manto pesado dos ombros como se fosse um pedaço leve de linho e jogou-o na cadeira. Calçara as botas antes de ir atrás dela nas ameias, mas não usava nada mais além das calças. O ferimento no ombro tinha sarado de forma bastante satisfatória, e Rianne congratulou-se pelas habilidades recém-desenvolvidas, já que Tristão não lhe dissera nada. Depois, apreciou as linhas duras e os contornos dos músculos do peito e dos braços do guerreiro. Músculos que não tivera tempo de notar antes, ou mesmo naquele encontro anterior no herbário, e que eram suficientes para lhe encher de água a boca.
Ele rumou para a lareira e lançou mais lenha no fogo. Então, foi até a mesa e serviu-se de uma taça de vinho. A tensão enrugava suas sobrancelhas, e os olhos tinham aquele tom de ouro escuro que Rianne vira em muitas ocasiões.
Ela começou a ficar aflita e inquieta. Preferia muito mais o prazer que haviam desfrutado. O que teria acontecido com aquele homem terno e gentil a quem se dera?
— Já lhe ocorreu que você poderia não ter nenhuma escolha nessa questão? — Tristão indagou e desabou na cadeira ao lado da mesa.
Será que ele conseguira ler seus pensamentos? Rianne não julgava que tivesse aberto aquela conexão; contudo, depois daquilo que haviam compartilhado... Deu de ombros.
— Bem, se eu tiver apenas duas opções a respeito do assunto, então suponho que a cama é muito boa. Mas poderíamos explorar outros lugares.
Tristão engasgou, e o vinho saiu por seu nariz, provocando um ataque de tosse.
Rianne saltou no mesmo instante da cama, sem se importar com a manta, que caiu a seus pés. Atravessou o quarto e começou a bater entre as espáduas do guerreiro.
Quando a tosse finalmente diminuiu, ela se ajoelhou diante de Tristão, enxugando o vinho que escorrera pelo peito e o estômago dele.
Pai do céu! Ela iria ser a causa de sua morte, Tristão pensou, quando, finalmente, conseguiu aspirar uma golfada de ar para os pulmões. Com os cotovelos enterrados nos joelhos, encontrava-se ao mesmo nível de Rianne. Aqueles vívidos olhos azuis o encaravam com preocupação, a boca comprimida num beicinho.
Estava completamente alheia da visão provocante que era, nua como no dia em que nascera, os cabelos de um loiro-claro a reluzir em torno dos ombros, um mamilo cor de areia a espiar entre as mechas douradas, o outro escondido.
Tristão ergueu o queixo de Rianne com a ponta do dedo e a encarou.
— Já lhe ocorreu que posso ter lhe dado um filho na noite passada?
Ela arregalou os olhos. Então, fora isso o que ele quisera dizer? Arregalou ainda mais os olhos diante da possibilidade. E depois deu de ombros.
— Sempre é possível. — E com a objetividade e praticidade que lhe eram inerentes, murmurou: — Tomarei conta da criança como sempre cuidei de mim mesma.
— Não espero que você assuma a criança sozinha. Aceitarei a responsabilidade também.
Uma sobrancelha delicada se arqueou. Tristão vira aquele olhar antes e teve a distinta impressão de que eles enxergavam o assunto de modos diferentes.
Dever. A palavra enregelou-lhe o coração. Então, era o que Tristão pensava com relação a ela. Agora, que a jogara em sua cama — na cama dela, na verdade —, ele faria o "seu dever"!
— Obrigada, milorde, por sua generosa oferta, sem dúvida adequada a um cavaleiro do rei — Rianne retrucou, a voz como o inverno do Ártico. — Mas existem remédios que podem ser tomados. Certamente Meg os conhece. Se não, consultarei a parteira. Ela é versada em muitas coisas. — Virou-se e teria escapado se Tristão não a agarrasse pelo braço.
— Você se livraria deliberadamente de nosso filho?
— Eu não disse isso. — A raiva borbulhava dentro de Rianne. — Disse que cuidaria do assunto se tivesse um filho, como sempre tomei contra de mim. Não necessito da sua ajuda. E — emendou, para maior clareza, para que não houvesse mal-entendidos — seria meu filho.
— Fala como se ele tivesse engatinhado para o seu ventre por conta própria! — Tristão esbravejou, impaciente, e sem certeza do motivo. — Esqueceu tão depressa quem o gerou?
— Como poderia esquecer, quando você insiste em me lembrar disso? — Com um pensamento raivoso, Rianne se libertou e correu para a cama, pegando o vestido no caminho.
Tristão saltou da cadeira e a agarrou, fazendo-a dar meia-volta. A raiva tingia as faces de Rianne, e seus olhos faiscavam como pedras preciosas. Uma vozinha interior a avisou quanto ao que poderia fazer; a raiva a ignorou.
— Talvez você queira esquecer. Talvez haja outro que prefira que aqueça sua cama.
Tristão não saberia dizer o que o levara a dizer uma coisa dessas. Odiou cada palavra no momento em que as pronunciou, mas não poderia engoli-las de volta.
— Talvez... Talvez eu prefira alguém cuja preocupação não seja só o "dever"!
Afastou-se dele, lutando com as pregas e a saia volumosa do vestido, com vontade de reduzi-lo a trapos. Ah, que saudade das calças velhas...
Não importava que tivesse sido ele mesmo a mencionar a possibilidade. Só a simples idéia de alguém mais na cama de Rianne era o bastante para fazer Tristão querer matar quem quer que fosse essa pessoa. E nunca fora do tipo ciumento... Que ironia!
Tomava amantes casualmente, com a convicção de que elas faziam o mesmo. Até Alyce, com que mantivera um caso por mais tempo, não fizera segredo de que Tristão não fora o primeiro ou o último em sua cama. Ele simplesmente a entretivera entre outros amantes, o que havia sido mutuamente satisfatório.
A idéia de que pudesse ter ciúmes era intrigante. Mas o ciúme, Tristão sabia muito bem, não se manifestava de repente. O ciúme vinha de outra emoção... do amor.
Ele nem negou nem resistiu à inegável verdade: estava apaixonado por Rianne. Parecia tão natural como respirar. Mas quando acontecera?!
Talvez apenas um momento antes; talvez na noite anterior, quando ela se entregara sem reservas, sem lágrimas pela virgindade perdida, mas com necessidades que igualavam as suas. Era possível que tivesse acontecido naquela passagem escura, em Bath, quando Rianne o beijara, hesitante, num jogo que não era jogo algum, afinal. Ou poderia ter sido na ocasião em que empunhara aquela espada contra ele na hospedaria, a confrontá-lo com coragem inflexível e desafiadora, quando Tristão se postara diante de Rianne tão nu como ela estava agora.
Ficou a observá-la lutar com o vestido, a resmungar palavrões, os cabelos a lhe roçarem a curva das nádegas, e a lhe provocarem pensamentos maliciosos.
Rianne estava zangada com ele. Como podia ter certeza de não conseguir viver sem ela, se duvidava ser possível uma existência juntos devido às suas diferenças, à independência de Rianne e ao seu próprio senso de dever? Para não mencionar o fato de que ela era filha de Meg e possuía dons incomuns. Seria o mesmo que Connor sentia por Meg?
Tristão teria de encontrar um jeito de contornar tudo isso; uma forma de burlar a raiva e o desafio; um meio de se certificar de que Rianne não meteria na cabeça de transformá-lo em troll. Ou coisa pior.
Teria simplesmente de apelar para a natureza apaixonada de Rianne.
Com um suspiro de frustração, ela jogou o vestido no chão do quarto. Estava prestes a pegar a túnica que usara no dia anterior, quando a luz da lamparina a óleo reluziu numa lâmina de aço apenas a poucos centímetros de seu rosto.
Rianne se endireitou devagar, a lâmina a se mover também. Ela se virou para encarar o agressor. E aqueles olhos magníficos se estreitaram ligeiramente quando encontraram os de Tristão.
— Milorde?
— Ande — ele ordenou, ao indicar, com a ponta da espada, a cama com as mantas de pele.
— Não, milorde — Rianne murmurou, o queixo erguido. — É dia claro e quero sair um pouco.
A espada cortou o ar tão perto que ela sentiu o silvo mortal quando um cacho de cabelos dourados caiu ao chão. Recuou a cabeça enquanto vários palavrões bem escolhidos ecoavam pelo aposento.
Tristão meneou a cabeça e apontou-lhe um dedo, como se Rianne fosse uma criança malcriada.
— Tome cuidado — avisou —, você não gostaria de perder mais cachos loiros.
Baixou a espada na direção do umbigo de Rianne e apontou a arma para a região de cachos mais curtos, como ela lhe apontara um punhal em situação semelhante.
O rosto de Rianne tingiu-se de um rosado vivo, depois em-palideceu, para se tornar manchado de vermelho. Os punhos delicados se fecharam ao lado do corpo.
— Que maldição, Tristão...
Ele aproximou a espada, com cuidado para não machucar a carne tenra. Tinha outras intenções para aquele botão rosado.
— Pela ultima vez, estou dizendo... Ande!
Com certeza Tristão estava brincando... Não iria... O olhar de Rianne percorreu a extensão da lâmina, consciente da ponta que se aninhava entre os pêlos encaracolados.
Era enlouquecedor, perverso e irônico, para não dizer provocante e erótico e mais do que simbólico.
Sabia que ele jamais a machucaria. Sentia isso. Se o desafiasse, tinha certeza de que Tristão a soltaria. Mas havia aquela outra parte de seu ser, aquela metade desafiadora, teimosa, desregrada, que desejava ver até onde Tristão pretendia ir.
Pela última vez, ele ordenou:
— Vá para a cama!
Rianne sentou-se no meio da cama, as pernas enfiadas por baixo do corpo, os braços dobrados sobre os seios.
Tristão colocou a espada sob aquele queixo teimoso. Ela empinou-o ainda mais, em desafio, o olhar capaz de incinerar um homem.
Era um jogo com apostas perturbadoras. E, se Tristão conseguisse agir como queria — e era precisamente isso que pretendia —, não haveria perdedores. Só ganhadores. A menos, é claro, que a teimosia de Rianne levasse a melhor.
Com a ponta da espada, ele jogou aquela cascata dourada de cabelos por sobre um ombro. O olhar de Rianne não se desviou. Apenas por um momento traiu uma emoção diferente da raiva, quando ela respirou fundo, como se para acalmar os receios. Ou alguma outra coisa. Com um gesto do pulso, Tristão empurrou mais mechas de cabelos por sobre o outro ombro, para que os seios de bicos rosados se revelassem em toda a sua magnificência.
Rianne engoliu em seco. E estremeceu com a lembrança da boca do guerreiro a acariciá-la, ávida e tenra.
Ao ver que aqueles botões rosados se endureciam, ele sorriu.
Fora uma lufada de ar frio ou a lembrança deliciosa da noite anterior?
Apontou a arma para os punhos cruzados, e os cutucou de leve. Rianne desdobrou os braços com relutância.
— Deite-se de costas na cama — Tristão ordenou, a espada a deslizar até o seio esquerdo, na direção do coração.
Ela respirou fundo, o peito a arfar de indignação. Tristão viu o protesto naqueles olhos que faiscavam e murmurou com secura:
— Deite-se!
Rianne obedeceu. E foi tomada de uma curiosidade que suplantava a teimosia e a indignação.
— Feche os olhos.
De olhos fechados, ela deixou os outros sentidos se expandirem, a envolver o guerreiro, a captar o cheiro dele... E algo mais que pairava no ar quente do quarto. Paixão. Tão doce e fervente que poderia prová-la, senti-la em cada terminação nervosa.
Rianne era uma visão deslumbrante, pensou Tristão. Como uma deusa primitiva, ou talvez uma feiticeira, com seus cabelos espalhados pela cama num dourado desarranjo, era a imagem do fascínio, com os braços de lado, os seios de bicos rosados a arfar, as faces tingidas de rubor, as longas pernas afastadas, revelando apenas o suficiente daquele ninho úmido.
Sentiu que poderia explodir de desejo.
— Continue de olhos fechados — disse, numa voz rouca. Rianne encolheu-se ao sentir algo roçar em seus seios. Ele não poderia! Não faria! Certamente que não! Seus pensamentos se nublaram. E ela se viu invadida por uma onda de puro Prazer sensual quando Tristão...
Com uma lentidão provocante, ele deslizou a pena de falcão pelo vale macio entre os montes rosados daqueles seios deslumbrantes.
O ar saiu dos pulmões de Rianne com um arquejo profundo. Talvez um suspiro de alívio... ou de prazer. E o seguinte saiu como um gemido quando a pena deslizou pelo mamilo do outro seio.
Tristão provocou-a e atormentou-a em cada centímetro do corpo, a despeitar sensações desconhecidas. Rianne estremecia a cada carícia, a cada nova descoberta de pontos sensíveis, a cada onda de prazer que Tristão desencadeava. — O prazer pode ser satisfeito sem riscos. A voz rouca a atormentava. As mãos de Rianne se fecharam nas mantas, as unhas se enterraram na pele macia. Arquejante, retorcia-se, enquanto Tristão continuava com aquela lenta e sensual tortura.
Seus músculos se retesavam e depois estremeciam a cada toque, para se contrair de novo à espera da próxima carícia. De olhos fechados, ela imaginava a trilha que ele seguiria antes de provar na pele, com o ar preso nos pulmões. Quando julgou que não poderia suportar mais, sentiu a respiração quente, algo a deslizar... A boca ávida de Tristão.
Quis empurrá-lo, e seu nome escapou num gemido. Então, seu corpo todo estremeceu, numa convulsão tão violenta que parecia destroçar-lhe as entranhas.
Percebeu o peso de Tristão deslocar-se, e logo ele a tomava por inteiro. Rianne abriu os olhos. Beijou-o de leve, os olhos a faiscarem.
— Prazer sem riscos?
A expressão de Tristão era perigosa, sensual.
— Eu menti.
As palavras emudeceram. Os pensamentos silenciaram. Medo ou pesar não tinham significado. Apenas a doce entrega da paixão.
Rianne teve o mesmo sonho outra vez. De escuridão, fogo, sangue e morte. Mas não mais sonhava com a cabana na floresta, e sim com muralhas imponentes de arenito e torres reluzentes que chegavam até a negrura do céu. Quando acordou, Tristão se fora.
Recordou-se vagamente de seu beijo de despedida, do roçar rude e terno de seus lábios, da mão a lhe tocar a face numa carícia demorada. E depois, da friagem da cama, que a fez afundar dentro das mantas de pele, a procurar o calor que lhe fugira. Quando o sono, finalmente, dissipou-se e os pensamentos se aclararam, a primeira preocupação que teve foi para com Meg.
Levantou-se depressa e se vestiu, consciente do corpo de um modo novo e diferente. A mão deslizou pelo ventre ao ajeitar a túnica no lugar.
Pôs de lado as preocupações e encheu a bacia de água. Estava quente, o que a surpreendeu. Ao mergulhar a mão, viu que a água começava a turbilhonar e se tingir de um vibrante escarlate. De olhos arregalados, horrorizada, Rianne fitou a mão.
O sangue escorria por seus dedos, pelo dorso e, depois, gradualmente, retrocedeu até aquele ponto onde se concentrou como uma brilhante pedra sangüínea incrustada em um anel. Instintivamente, ela tentou puxar a mão, mas descobriu que não conseguia. Era como se alguma força invisível a segurasse recusando-se a soltá-la.
Por fim, a água parou de se revolver naquele frenético turbilhão, e, mais uma vez, tornou-se imóvel e polida como um espelho. Mas a imagem que a fitou da superfície não era o seu reflexo.
A figura que a encarava da bacia era de uma jovem com longos cabelos castanhos avermelhados, vívidos olhos azuis e feições belas e fortes.
A imagem estendeu o braço para ela, aquela mão esguia parecendo tocar a de Rianne, ambas ligadas por aquele jaspe sangüíneo de brilho incomum.
Então, a superfície da água estremeceu e a imagem sumiu, engolida naquela profundeza escura que espiralava em torno de seus dedos. A jovem desapareceu, e o reflexo que havia na água era de novo o de Rianne.
Naquele instante, quando ela puxou a mão para trás, não houve resistência. Nem tinha mais o anel. Sumira, junto com a imagem desconcertante.
Rianne franziu a testa ao tentar compreender o que acontecera. Poderia acreditar que ainda sonhava, só que estava acordada. E isso deixava apenas uma explicação: o que vira não fora um sonho. Fora uma visão. Mas do quê?
Nesse momento, ouviu gritos de alarme que vinham do pátio sob sua janela.
Abriu depressa as venezianas. Da janela, podia ver os portões principais. Estavam fechados, como se tornara obrigatório desde que Monmouth fora atacada. Porém sua atenção foi atraída para o portão lateral, menor.
Um cavaleiro entrava por aquela passagem. Foi saudado por um dos homens de Tristão, e desmontou às pressas. Havia uma urgência em seus modos, e sua expressão era séria ao se voltar e seguir para o salão principal. Rianne sentiu no mesmo instante uma inquietude diante das notícias que ele poderia trazer. Terminou de se vestir e trançou os cabelos com gestos apressados.
Meg não se encontrava em seu quarto. De certa forma, isso não surpreendeu Rianne. Não era próprio de sua mãe entregar-se ao luto até ficar doente de pesar, como acontecia a muitas mulheres. Nem seu pai haveria de querer isso, Rianne sentiu.
Amor, Rianne aprendera com eles, não era apenas paixão e desejo. O amor também confortava, protegia, se sacrificava e, no fim, dava forças para o desprendimento. Naquele amor que haviam compartilhado, Meg encontraria a energia para prosseguir.
Um número maior de guardas enchia o salão, e quando Rianne chegou ao pé da escada, o recém-nomeado capitão da guarda entrou no salão e seguiu depressa para a ante-sala.
Nas últimas semanas, a ante-sala se transformara numa colméia efervescente com as atividades diárias. Vários cavaleiros que haviam servido Connor se reuniam ali, em torno da mesa de jogo, agora coberta com o mapa que Rianne vira no quarto de Tristão.
O cavaleiro recém-chegado apontou vários locais no mapa, enquanto Tristão ouvia atentamente a mensagem que o outro trazia.
Sentada diante da lareira, na cadeira que Connor costumava ocupar, lady Meg ouvia atentamente a conversa, enquanto Merlin aconselhava o grupo reunido ali.
Tristão não ergueu os olhos, nem deu a perceber que sentira a presença de Rianne, nem por um olhar nem por um gesto. Nem ela esperava por isso. O senso de dever de Tristão era forte demais para permitir que ele fosse distraído das questões de relevância para dar atenção a paixões carnais.
Mesmo assim, ela o fitou com um olhar amoroso e seguiu para o lado da mãe. Tomou-lhe as mãos como se fosse um hábito de anos, não de poucas semanas.
— Três cidades fronteiriças foram atacadas nos dois últimos dias — Meg informou-a, enquanto ouviam as discussões em torno da mesa. — Todas pouco além de Monmouth.
Rianne reconheceu os nomes das vilas. Apenas semanas antes ela as visitara para cuidar dos doentes. Recordou-se dos nomes daqueles que conhecera e cuidara, homens, mulheres e crianças, todos mortos agora. Um buraco frio e cavernoso abriu-se em seu peito. Antes, aqueles eram lugares distantes, nomes sem rostos. Não a preocupavam porque aquele mundo era muito remoto de sua mísera existência.
Tudo isso lhe parecia muito frívolo agora. Quanto mudara...
Assim que os planos foram feitos e a estratégia decidida, Rianne afagou a mão da mãe e, em seguida, deixou o cômodo.
— O que está fazendo?
Tristão percebera que Rianne saía, assim como percebera que ela entrara na ante-sala. E a seguira. Seus olhos eram sérios ao vê-la enrolar e amarrar uma manta grossa de pele.
— Estou preparando as coisas de que irei precisar na viagem para a fronteira oriental.
— Não.
Nenhum agrado, nenhuma palavra amorosa, apenas uma ordem seca. Não.
— Você vai precisar de uma curandeira. Não irei atrasá-lo.
— Não!
Rianne o encarou, mas Tristão cortou-lhe qualquer protesto ou tentativa de conversar.
— Não há nada a discutir. Você não vai.
Decisão tomada, decisão anunciada. Fim de conversa. A não ser por um único detalhe. Não fora uma conversa nem discussão, apenas a resolução dele, da qual Rianne não tomara parte.
Tristão viu o aviso naquela sobrancelha arqueada. E novamente cortou qualquer protesto.
— Há perigo, Rianne. Você se colocaria em risco tão cedo, depois da morte de seu pai? Meg já sofreu uma perda. Pense no que seria para ela se alguma coisa acontecesse a você.
Rianne sabia exatamente o que Tristão estava fazendo e odiou-o por isso. Como podia usar daquele tipo de chantagem emocional para impedi-la de seguir com ele? Começou a dizer palavrões.
O vocabulário horrível o fez erguer as sobrancelhas.
— Vai me deixar ir para o campo de batalha com xingamentos como palavras de despedida? — Tristão perguntou ao enlaçá-la pela cintura e, a despeito dos protestos, apertá-la contra si.
Rianne arqueou as costas como um gato e plantou as mãos no peito de Tristão para impedir que ele a puxasse para mais perto.
— Sim, e piores — retrucou, com os olhos a faiscar com um fogo azulado. — Posso pensar em vários ainda mais apropriados.
— Sem dúvida que pode, mas existem outras coisas que eu prefiro destes lábios macios.
Acendeu-se um fogo abrasador nos olhos de Rianne.
— Porco!
Um brilho divertido luziu nos olhos dourados de Tristão, enquanto emoções mais sombrias tomavam seus pensamentos. Acariciou com a polpa do polegar o lábio inferior de Rianne. A textura rude e terna daquela carícia penetrou-a como um choque.
— Cão vadio!
Conforme ela prosseguia pelas diferentes espécies de animais encontrados em quintais e chiqueiros, Tristão continuou aquele assalto aos sentidos de Rianne, a beijá-la de leve.
Sentiu a lenta transformação conforme aquele corpo esquivo perdia a frieza glacial para se incendiar num calor abrasador. Pela primeira vez, Tristão queria apenas ficar ali, com Rianne, perder-se no doce esquecimento daquela paixão, nos suspiros cheios de desejos e no calor daquele corpo que o incendiava de prazer.
— Estarei esperando por você — ela murmurou. Tristão não respondeu, mas beijou-a apaixonadamente. E, depois, se foi.
Rianne descobriu que o tempo demora a passar quando se tem de esperar, e as horas medidas pelo relógio de sol no jardim caminhavam com incrível lentidão.
Três dias se tornaram cinco, depois oito. Merlin fora com os outros. E Rianne procurou conectar seus pensamentos aos dele, mas percebeu que não conseguia. Teve de se contentar com a certeza de que estavam seguros. Teria sentido se fosse diferente.
Meg não demonstrava nenhum sinal externo de preocupação ou inquietude. Continuava ocupada com as tarefas domésticas e, depois da refeição da noite, retirava-se para a ante-sala.
— Paciência é uma virtude. E vem com o tempo — ela comentou ao sentir as aflições da filha. — Muitas vezes esperei pelo retorno de seu pai — disse com voz calma. — O som da porta, das botas nos degraus, da voz dele...
— Como suportou isso?
— Bem mais facilmente do que suporto o silêncio. Rianne ergueu os olhos diante da voz tocante de sua mãe.
Existências separadas e tão semelhantes...
— A espera não fica mais fácil? — perguntou.
— Não é da espera que se vive, filha. Mas do chegar em casa. Daquele momento em que se ouvem os passos do amado.
Meg sorriu ao lembrar-se do que sentira, mas a filha, ainda não. As portas do salão principal de repente se abriram, e o som de botas ecoou pelo espaço. A cabeça de Rianne se ergueu. A princípio pensou que era tudo uma vívida imaginação. Vozes encheram o salão. O mordomo-mor gritava ordens aos criados, e os cães de Connor ladravam como loucos. Meg colocou a tapeçaria de lado.
— Irei procurar a cozinheira. Os fogões precisam ser acesos. Teremos muitos guerreiros famintos a alimentar hoje à noite.
Não tão famintos como o guerreiro que irrompeu pela ante-sala momentos depois.
Estava coberto de lama e sujeira. Emplastava suas botas, manchava sua túnica e grudava-se a seu elmo. Seus olhos lu-ziam duros, sombrios e hostis, cheios das sombras das coisas que presenciara nos últimos dias. A barba por fazer sombreava-lhe o rosto, fazendo com que parecesse feroz, mortal e perigoso, de um jeito que Rianne nunca vira.
Antes, Tristão fora um captor incumbido de uma tarefa que detestara; mais recentemente, o cavaleiro que servira a seu pai e ao rei Arthur. Depois, o amante perigoso que a amara de maneiras que Rianne jamais imaginara, mesmo com todos os dons que possuía. Agora, porém, não conhecia aquele homem que acabara de chegar.
Os olhos que a fitavam eram obsedados e frios. Olhos de um homem que matara e, na matança, talvez tivesse perdido parte de si mesmo. Era o que Rianne via agora, e fez seu coração se apertar.
Foi até ele, cheia de ternura e palavras doces. Mas Tristão a puxou com a mesma força feroz com que empunhava uma espada em batalha. Suas mãos eram fortes, nervosas, contundentes, quando as enterrou nos cabelos de Rianne. Inclinou-lhe a cabeça para que recebesse seu beijo. Um beijo urgente e duro, cheio de toda a dor e angústia dos últimos dias. E de outras coisas que Tristão nunca contaria a ela, coisas que precisava exorcizar da alma.
Rianne sentiu aquela loucura e a urgência, e depois o desejo incontido, quando Tristão a empurrou contra a parede, as mãos rudes a lhe queimarem a pele conforme erguia sua saia e sufocavam seus protestos no calor das carícias. E logo o guerreiro a invadiu. Rianne o recebeu com toda a paixão acumulada nas noites solitárias, o corpo a palpitar por ele.
Algum tempo depois, enquanto respirava ofegante, Tristão inclinou a cabeça de Rianne para trás e afastou uma mecha de cabelos da testa porejada de suor.
— Perdoe-me. Não queria machucá-la — murmurou. Rianne roçou os lábios de leve na boca arfante de Tristão.
— Eu o perdoarei mais tarde.
E, para ter certeza de que Tristão compreendia exatamente o que ela queria dizer, comprimiu-se contra ele.
— Oh, não... — Tristão gemeu. — Não tenho forças. Preciso comer, tomar um banho e...
— E depois terá mais energia? — Rianne perguntou, num tom que indicava que ainda não se saciara.
— Certamente — ele assegurou ao empurrá-la para a cadeira onde desabou, arrastando-a junto.
Rianne aconchegou-se. E sentiu a extrema fraqueza que o dominava, somada ao pesar e à frustração. Era algo profundo, de caráter pessoal.
Tristão afagou-lhe os cabelos. Ela era como uma luz na escuridão, chamas douradas que incineravam o sofrimento daquilo que ele vira, e que tornavam possível a esperança.
Havia coisas que Rianne gostaria de saber, mas nada disse, pois sentiu que Tristão não poderia falar.
— Não pergunte — ele murmurou, os lábios a lhe roçarem a testa. — Jamais pergunte o que aconteceu.
Rianne não perguntou. Não teve de perguntar. Merlin contou-lhe o que haviam encontrado nas vilas e aldeias nas terras orientais; falou da morte e da destruição; de homens e mulheres assassinados, crianças mortas em seus berços, fazendas inteiras, vilas e cidades arrasadas para que nada restasse. Daqueles que encontraram, o que restara dos que puderam ser enterrados, contou a forma como tinham morrido. Algo que vivenciara apenas uma vez antes e que nunca mais esperava ver. Tristão tomou a decisão de que deveriam ir todos para Camelot. Estariam a salvo lá. Camelot era defensável, com seu perímetro de postos avançados, uma salvaguarda contra ataques de surpresa, enquanto Monmouth, naquele vale afastado, circundado por montanhas, era mais vulnerável.
Não fora uma decisão fácil, porém tomada em virtude não apenas dos ataques recentes às regiões próximas, mas também por causa daquela incursão em que Connor fora gravemente ferido. Ele não estava mais ali para proteger seu lar, e Tristão temia pela segurança de todos em Monmouth, com os guerreiros afastados a serviço de Arthur.
Ainda assim, Meg hesitou em partir. Monmouth era seu lar. Rianne, porém, sentiu que havia uma razão mais profunda para tal relutância. Era como se, ao deixar Monmouth, sua mãe deixasse Connor.
— Sinto a presença dele em torno de mim, aqui, neste lugar. Se eu tiver de partir... — disse.
— O que jaz além da morte? — Rianne indagou.
— É uma pergunta muito séria para alguém tão jovem.
— A senhora não é regida pela passagem do tempo e pela morte como são os mortais. Talvez haja mais coisas do que os mortais visualizam da vida. Talvez haja algo que vá além da morte.
Meg tomou a mão da filha.
— Espero com todo meu coração que seja assim. Viverei cada dia, enquanto eu existir, com a esperança de que seu pai e eu possamos estar juntos de novo neste mundo ou no mundo além. Fui avisada de que seria assim.
Suspirou.
— Optei por não dar ouvidos. E, mesmo agora, com esta perda insuportável, posso dizer que não escolheria diferente, pois, se fosse assim, eu jamais teria experimentado o amor que compartilhamos.
— Será o mesmo para mim? — perguntou Rianne ao pensar naquilo que partilhava com Tristão e julgando impossível a idéia de não ter aquela paixão em sua vida.
— Não sei — Meg respondeu, com honestidade, pois não poderia dar outra resposta. — Ao fazer minha escolha, também fiz uma escolha por você. Quando eu a carregava em meu ventre, era minha esperança de que não a condenasse a uma vida de solidão como a minha agora se tornou. Um dia você pode ter de fazer a mesma opção.
— Receio que já tenha feito — respondeu Rianne. — E não estava nem mesmo ciente disso.
Meg sorriu com doçura.
— É o risco que assumimos ao viver no mundo da matéria; que nos tornemos muito humanos em nossas maneiras e emoções, embora ainda façamos parte do mundo sobrenatural.
— Então, não há como evitar?
— Só fazendo uma escolha diferente, e isso eu não poderia fazer.
Nem eu, pensou Rianne, com certeza.
Arthur insistiu no convite, e Meg, finalmente, concordou em ir para Camelot.
Meg não olhou para trás ao partirem de Monmouth.
Camelot ficava a apenas um dia de viagem, mas, com as carroças e coches mais lentos, necessários para mudar uma equipe doméstica inteira, foi preciso um dia extra de viagem pela estrada.
Rianne nunca vira Camelot, porém ouvira várias histórias a respeito de sua odisséia, inclusive os boatos de que as ruas eram pavimentadas de ouro. Mas não era ouro que luzia nelas quando viram a cidade de Arthur naquela encosta distante de colina, e sim muralhas de arenito claro e torres reluzentes, as mesmas que apareciam nos sonhos de Rianne.
Muito maior que Monmouth, Camelot era uma cidade em-poleirada na encosta da colina e protegida com muralhas de vinte metros, ligadas por aquelas torres que pareciam reluzir a distância. Os estandartes com a cor azul-real de Arthur flutuavam em todas as torres. Sua bandeira pessoal, resplandecente, com leões dourados num campo azul, tremulava na torre mais central, visível até mesmo a grande distância.
Tristão explicara que de acordo com o protocolo da corte, a bandeira indicava que o rei se encontrava em sua residência.
Os mensageiros que cavalgaram à frente haviam dado a notícia da chegada da comitiva. Assim que se aproximaram mais de Camelot, uma escolta real os esperava, liderada por sir Longinus, que apresentou as boas-vindas formais do rei.
O sol reluzia em seu elmo, as feições aquilinas obscurecidas pelas sombras, porém Rianne o reconheceu facilmente. Talvez porque tinham se encontrado antes em Monmouth, ou talvez por causa do confronto fortuito com Tristão naquele distante campo de batalha.
Um acidente, Tristão dissera. E Rianne pensou, não pela primeira vez, com que freqüência tais enganos aconteciam.
A comitiva entrou pelos portões principais e foi depois escoltada pelas ruas até a residência real. Lá, foram recebidos pelo próprio Arthur. Com aquela mesma familiaridade que exibira em Monmouth, o rei abriu a porta do coche e ajudou Meg a descer os degraus do estribo.
Foram trocados os cumprimentos formais, como exigia o protocolo, e depois Arthur acompanhou a senhora de Monmouth até a residência principal.
— Senhora? — Sir Longinus estendeu o braço a Rianne. Ela recuou, disposta a retribuir na mesma moeda o golpe que Tristão levara naquele campo de batalha.
— Compreendo sua relutância, milady, mas eu lhe asseguro que meu choque com sir Tristão foi um acidente.
Espantada que ele tivesse adivinhado seus pensamentos, Rianne retrucou:
— Ele foi ferido, enquanto o senhor escapou ileso.
— Sofri um ferimento sem importância que poderia ter sido muito pior. Minha boa sorte foi o meu confronto não ser com um cavaleiro menos experiente, ou eu poderia ter perdido minha cabeça.
— Pareceu-me o contrário. Que foi sir Tristão que quase perdeu a dele.
Longinus sorriu, e aqueles olhos solenes faiscaram de admiração.
— Eu deveria ter me lembrado que a senhora gosta de desafios, seja em jogos ou com palavras.
— Realmente, deveria — ela concordou. O sorriso de Longinus não vacilou.
— Parece que seu acompanhante a abandonou — observou, e de novo Rianne se viu atraída por aquele olhar sombrio. — Permitirá que a acompanhe?
Ela esperava ver Tristão assim que chegassem. Durante a viagem toda, desde Monmouth, o dever o mantivera afastado em outra parte. Agora, sumira mais uma vez, e Rianne não tinha esperança de vê-lo antes da refeição da noite. Merlin desaparecera também, para se encontrar em particular com o rei, que ficara feliz em ter seu conselheiro de volta.
Rianne aceitou o braço de Longinus, considerando o gesto engraçado. No coche, ao longo das muitas horas de viagem, sua mãe lhe ensinara o protocolo apropriado, tal como inclinar a cabeça quando o rei passasse, esperar que o rei se sentasse primeiro antes de tomar um assento, e — mais difícil de tudo — não falar sem ser instada a se manifestar.
Ao chegarem à entrada do salão principal, Longinus se inclinou para Rianne, como se fossem amigos de longa data e partilhassem uma conversa íntima. E tomou-lhe a mão, num gesto caloroso que a surpreendeu.
— Lorde Standford chegou faz vários dias — informou-a. — Sofreu uma grande humilhação depois de perder para a senhora naquele jogo.
— O jogo foi escolha dele.
— Sim, e um tolo e seu dinheiro logo são separados. Mas Standford está bastante ansioso para recuperar as perdas.
— Eu ficarei encantada em lhe oferecer a oportunidade, contanto que o rei forneça os dados.
— Talvez a senhora pudesse me esclarecer quanto à sua estratégia.
— Claro! — Rianne exclamou, sem perceber que alguém os observava ao entrarem juntos no salão. — Minha estratégia é vencer.
Longinus jogou a cabeça para trás e soltou uma risada, os olhos negros a faiscarem.
— Acho que teremos uma noite muito agradável.
Arthur providenciara tudo para suprir as necessidades dos hóspedes. Meg recebeu o quarto que ocupara com Connor nas visitas anteriores. O quarto de Rianne era na mesma ala, separado por um jardim num pátio interno. As acomodações da equipe doméstica que viajara com eles ficavam nos alojamentos dos criados, numa ala vizinha.
Rianne foi informada por uma das criadas que Tristão normalmente ficava alojado no complexo militar ocupado pelos cavaleiros do guerreiro, embora — a mulher acrescentara com um sorriso malicioso — raramente dormisse lá.
Rianne estava ciente das intrigas da corte. Meg a advertira. E, entre as intrigas que sua mãe mencionara, havia aquelas sobre Tristão e lady Alyce, a esposa de lorde Standford.
— Não é segredo que ela compartilha seus favores com muitos — Meg lhe dissera
— Ele a ama?
— Para os homens, há diferentes tipos de amor, minha filha. Rianne percebera o sarcasmo na resposta da mãe. Perplexa, ela indagara:
— De que tipo está falando?
— Do tipo que o dinheiro compra.
Rianne debruçou-se na janela, fascinada pela grande cidade dentro das muralhas que Arthur construíra. Tão alheia estava que não percebeu que alguém entrava em seu quarto. Soltou um grito de espanto quando um braço a envolveu pela cintura e lhe cortou o ar, conforme foi puxada para longe da janela.
Então, arquejou ao ser comprimida contra um corpo másculo.
Uma voz murmurou em seu ouvido, o hálito quente a lhe fazer cócegas na nuca.
— Sabe o que acontece com moças bonitas que se debruçam nas janelas dos castelos? -
— São atacados por malandros que não têm nada melhor a fazer do que assaltar belas donzelas às janelas? — Rianne murmurou, sem fôlego, ao se virar naqueles braços fortes e se ver prisioneira de mãos impacientes.
— São arrebatadas por um terrível dragão.
Rianne riu, arquejante, fitando aqueles olhos de um cálido dourado.
— E depois, o que acontece?
— O dragão leva as moças bonitas para longe, para seu covil, nas nuvens.
Ela cravou o olhar naquela boca sensual.
— E o que acontece depois?
— Ele as devora.
A risada sumiu. Em seu lugar, surgiu um som rouco, ofegante, cheio de desejo. E pensamentos deliciosos de dragões a devorar donzelas.
— Não consigo pensar em outro lugar em que eu preferiria estar, sr. Dragão — Rianne murmurou quando a boca de Tristão se fechou sobre a sua.
Ela escorregou a mão por aqueles ombros fortes, e depois pelos cabelos fartos. Então, entregou-se àquele beijo que falava dos dias solitários e noites mais solitárias ainda, desde que haviam se deitado juntos.
— Ah... — Tristão gemeu contra os lábios de Rianne. — Prometi a mim mesmo que não iria tomá-la de assalto como um idiota louco de amor.
— Tem minha permissão para me assaltar.
Ele soltou uma risada. Rianne era tão racional e pragmática... E honesta. Maravilhosamente honesta. Enterrou a mão pelo cetim pesado de seus cabelos e a beijou outra vez.
— Mais tarde — murmurou.
— Agora — ela insistiu, enquanto as negociações prosseguiam em vários beijos lentos.
— Em breve — Tristão prometeu.
— Quando?
— Logo.
Ele já repensava a promessa que fizera a Meg de levar Rian-ne para conhecer a cidade.
— Hoje à noite.
— O rei dará uma festa em sua honra.
— Eu prefiro a sua festa.
Tristão praguejou baixinho, um som profundo, gutural, carregado de sensualidade.
— Você será minha ruína.
— É isso o que pretendo, sr. Dragão.
— Prometi a lady Meg.
— Arruinar-me? — Rianne jogou a cabeça para trás, com a malícia a faiscar nos olhos azuis.
Pai do céu, ela era maravilhosa! Tristão puxou-a contra si mais uma vez, feliz por sentir aquele calor suave a lhe queimar o corpo.
— Prometi que lhe mostraria Camelot.
— Já vi Camelot.
— Viu o pátio real. Existe muito mais além das muralhas. Você ainda não viu a cidade.
— Quando? — Rianne perguntou, com a empolgação de uma garotinha.
A alegria aqueceu a alma de Tristão. Era tão fácil agradar a Rianne. E isso lhe proporcionava um prazer imenso.
— Agora.
As ruas de Camelot não eram pavimentadas com ouro, mas havia muitas maravilhas para se ver. Aromas deliciosos enchiam o ar enquanto galinhas e porcos giravam em espetos para assar; doces, frutas cristalizadas e tortas eram vendidos em carrinhos de mão, ao lado de barracas de finas sedas, cetins, especiarias e flores, trazidos dos portos marítimos.
Tristão comprou maçãs vermelhas frescas e um punhado de fitas de seda da cesta de um vendedor. Enquanto vagavam pelas ruas, descobriram malabaristas que brincavam, com incrível habilidade, com bolas de madeira, frutas e ovos. Havia também mímicos, acrobatas e palhaços, em trajes de cores brilhantes, que representavam pequenas peças cômicas.
Enquanto Rianne esperava pelo retorno de Tristão, que fazia compras, uma mulher a chamou, ali perto.
— A sorte contada por uma moeda, milady. Saiba o que a espera no futuro. Venha, senhora, conhecer sua sorte. Só por uma pequena moeda.
Rianne gesticulou e apontou as mãos vazias.
— Como vê, não tenho dinheiro.
— Uma fita bonita, então.
Intrigada, ela desatou uma das fitas que Tristão lhe comprara e lhe amarrara nos cabelos e entregou-a à mulher.
— Sente-se aqui, ao lado do fogo, e vamos descobrir o que o futuro lhe reserva.
A mulher era uma cigana, de um grupo daquele povo nômade que vagava de cidade a cidade, a oferecer seus utensílios e mercadorias. Não chamavam a lugar algum de lar. Lar era o campo aberto, um vale entre montanhas, ou qualquer que fosse a direção para a qual suas carroças os levassem.
A cigana tinha olhos tão negros como o céu noturno. Era impossível determinar-lhe a idade.
— Dê-me sua mão, e eu lhe direi seu futuro.
Rianne ajoelhou-se ao lado do fogo. A cigana tomou sua mão nas dela. Eram enrugadas e muito retorcidas, como se a mulher fosse muito mais velha do que aparentava.
Rianne soubera por Merlin que muito poucos eram capazes de convocar visões que revelassem acontecimentos vindouros. Nada havia na cigana que a levasse a crer que pudesse ser um espírito afim. Contudo ficou a observar com grande interesse quando a mulher separou seus dedos e tocou a palma da mão. — A senhora viajou de muito longe. Ah... mas terá de ir muito mais longe. Uma jornada perigosa para um lugar distante. Uma jornada que só a senhora pode fazer. A senhora já o viu — Os olhos negros da cigana luziram, cheios de segredos — em seus sonhos.
Espantada, Rianne encarou a mulher. Será que acertara por sorte? Ou aquilo era simplesmente parte do jogo? Viagens? Sonhos? Muito provavelmente, o tipo de coisa que assustaria muita gente que fosse supersticiosa. Ou havia ali alguma coisa mais?
— Onde é esse lugar?
— Fica além do mundo conhecido, através de nuvens de bruma, fumaça e fogo.
Rianne sentiu que aquilo não era mais uma brincadeira. Puxou a mão, mas percebeu que estava presa num aperto surpreendentemente forte.
A cigana ergueu o olhar e a encarou. Os olhos da mulher pareciam mais negros ainda. Não havia neles nenhum reflexo, nem das tochas próximas nem do fogo que queimava ao lado. Eram completamente vazios de toda luz, de toda emoção. Havia apenas uma perversidade gélida que parecia estender-se ao redor.
De repente, um frio intenso tomou conta de Rianne, apesar do calor do fogo. Era como se uma invisível mão de gelo tivesse descido em torno dela.
O ruído da multidão pareceu se abafar, até que não era mais que um suave zumbido. Havia apenas a cigana, o fogo, que de repente parecia queimar mais alto, e a conexão do aperto da mão da mulher que a mantinha prisioneira.
— É uma jornada que a senhora já começou...
Os pensamentos da cigana se infiltraram na mente de Rianne, enquanto aqueles dedos se fechavam em torno de seu pulso. A dor queimou-a, conforme a friagem penetrava em seu sangue e se aprofundava em sua alma. Rianne estava paralisada, como se uma droga se movesse em suas veias, a roubar lentamente toda a sua força e a vontade de resistir.
— A senhora não pode escapar. O destino a espera. Pois é a Escolhida.
As palavras sussurraram através de sua mente enquanto aquele frio se infiltrava em seu sangue. E como em seus sonhos, Rianne sentiu o sangue quente na mão. Escorria por seus dedos e pingava no vestido.
Olhou para baixo, para o pesadelo concretizado, o sangue gradualmente a retroceder e a se transformar na pedra vermelha reluzente em sua mão. Uma estranha fraqueza a invadiu, roubando-lhe a capacidade de resistir, de lutar, até mesmo de respirar.
Quem é você?
E o pensamento murmurou de volta:
A senhora sabe quem eu sou.
O olhar de Rianne encontrou o da cigana através do brilho do fogo. E além do fogo, nas sombras da fumaça serpeante e da morte, estava o estranho envolto em negro com os mesmos olhos que agora a fitavam.
A cigana sorriu. Seus dedos se afrouxaram em torno do punho de Rianne. Soltou-o.
O calor fluiu de volta pelas veias congeladas, a força retornou e a pedra reluzente da cor do sangue lentamente se desvaneceu. Quando Rianne ergueu os olhos, a cigana desaparecera. Mãos fortes se fecharam em seus ombros. Um calor familiar expulsou o frio de sua pele e circulou por seu sangue.
— O que foi? — perguntou Tristão. Os olhos de Rianne tinham um ar assombrado, algo que ele nunca vira antes.
— Quero ir embora deste lugar. Agora!
Os pensamentos de Rianne voltaram-se para Meg, aflitos.
— Aconteceu alguma coisa?
Havia uma urgência na voz dela que Tristão não ouvira em nenhuma outra ocasião. E medo.
— Por favor! Preciso voltar, agora!
— Vamos, então.
Tristão podia sentir a tensão de Rianne na sela, à sua frente, conforme rumavam para a fortaleza. E a aflição. Quando chegaram ao portão interno do pátio do rei, Rianne quase saltou da sela na ansiedade de alcançar o salão principal. Tristão entregou as rédeas ao cavalariço que apareceu e foi atrás dela. Guiada por aquele vínculo interior, e com a inquietação causada pelo encontro com a cigana, Rianne não viu o homem surgir em seu caminho e chocou-se com ele. Mãos enluvadas a seguraram.
— A senhora está bem, milady?
Ela ergueu os olhos e encontrou os de Longinus. A umidade brilhava em seu manto preto, como se tivesse acabado de voltar para o interior da fortaleza.
Rianne recuou instintivamente, mas ele não a soltou. Suas mãos a seguravam com um gesto de intimidade. E de novo Rianne sentiu aquela sensação calorosa a envolvê-la.
— Estou bem, obrigada. Preciso ver minha mãe.
— Ah, ela a espera. Conversei com lady Meg agora há pouco. Eu conhecia lorde Connor e quis expressar minhas condolências pela morte de um guerreiro tão valoroso. E digo o mesmo à senhorita. Deve sentir a perda de seu pai profundamente.
Rianne soltou-se.
— No pouco tempo em que ficamos juntos, aprendi muitas coisas com ele.
— Eu a verei no jantar?
Longinus virou-se para sair, fez um gesto de despedida e sorriu. Que pergunta ridícula. Todos eram esperados para o jantar.
Tristão entrou no corredor e viu a cena de longe. E ouviu a voz de Rianne, com um toque divertido. O que se passara entre ela e Longinus que a fizera rir, quando no trajeto inteiro desde o mercado estava muda e alheada?
Mãe!
Rianne abriu a porta do quarto num ímpeto. O aposento estava frio e pouco iluminado. Nenhum fogo queimava no braseiro ou brilhava nas lamparinas a óleo. A única claridade vinha do pátio além das venezianas, que estavam abertas.
Ela as fechou depressa. Depois, guiada por aquele dom da visão interior, encontrou facilmente o lampião a óleo sobre a mesa. Com uma simples ordem mental de Rianne, a chama ganhou vida no pavio, que se inflamou e queimou com for esparramando luz pelas paredes do quarto. Mãe?
Meg parecia adormecida na cadeira. A palavra conectou os pensamentos de ambas à maneira antiga e expulsou a densa neblina que pairava sobre seus sentidos e os anulara quase totalmente. Era uma palavra de um poder muito forte e que Meg ansiara por ouvir todos aqueles anos vazios que as separavam. E agora chegava a seus ouvidos. Filha? Estou aqui.
Eu estava sonhando de novo. Você estava perdida e eu não conseguia encontrá-la. Olhei por toda parte, porém não pude achar você.
Está tudo bem. Os pensamentos de Rianne acalmaram a mãe, enquanto ela passava os braços pelos ombros de Meg. Estou aqui agora. E nunca mais irei embora.
Naquela noite, Rianne e lady Meg eram as convidadas de honra de Arthur para sentar-se à mesa com ele. Rianne separou-se da mãe apenas quando entraram no salão principal. Lá, encontrou Longinus. E os olhos escuros do cavaleiro luziram ao vê-la. Tomou-lhe a mão com aquele gesto caloroso que a surpreendera anteriormente.
O sorriso que endereçou a ela era íntimo, até mesmo ousado. Elogiou-a pelo vestido e os cabelos, trançado com as fitas que Tristão lhe comprara. Rianne as usava para o guerreiro, e ficara desapontada por ele não a ter procurado. Foi Longinus que a acompanhou até a mesa do rei. Depois, tomou um lugar ali perto.
Rianne reconheceu muitos dos nobres que haviam sido hóspedes em Monmouth quando seu pai ainda estava vivo, e a lembrança daquela noite em particular lhe trouxe um certo conforto em meio à imponente grandeza da corte de Arthur.
Tão logo a refeição terminou, os jogos começaram, numa variedade de tabuleiros espalhados pelo salão, havendo inclusive o copo e os dados com os quais Rianne aliviara lorde Standford de uma substancial quantia em ouro e prata.
Todos haviam ficado sabendo da história, mesmo os que não se encontravam em Monmouth na ocasião, e Rianne recebeu vários convites para se juntar ao grupo de jogadores. Ela estava prestes a aceitar quando Tristão se manifestou, da ponta oposta da mesa onde ele se sentara, entre os cavaleiros de Arthur.
— Em outra ocasião — disse com tranqüila autoridade, o olhar a encontrar o de Rianne brevemente por sobre a borda da taça e pela extensão da mesa, enquanto ele sorvia um longo gole de vinho. — Ela não se sente pronta para isso esta noite.
Não se sentia pronta para isso? Como, pelo fogo do inferno, Tristão saberia como se sentia quando não conversara com ela durante a noite toda? Rianne olhou feio para ele, desafiando-o a impedi-la de jogar.
Tristão viu aquela sobrancelha delicada arquear-se. O rubor tingiu as faces de Rianne e seus olhos vívidos faiscaram. Se um simples olhar pudesse matar um homem, ele estaria trans-passado, abatido e esquartejado com apenas aquele. Levantou-se da cadeira, rodeou a mesa e segurou Rianne pelo braço.
Ao puxá-la de lado, explicou:
— Isto não é Monmouth. Existe gente aqui, inclusive Standford, que gostaria de humilhá-la como você o humilhou lá.
— Venci com justiça — ela protestou.
Tristão tentou manter a voz baixa.
— Todos sabem que Standford trapaceia. É aceito porque sua cooperação garante uma aliança com Arthur.
— Política — Rianne resumiu numa única palavra.
— Sim, política. Se essa é a maneira que você quer ver...
— É a maneira com que você enxerga, milorde. É esta também a razão de se deitar com a esposa de Standford? Mais política?
— Já basta! — ele ameaçou.
— Sim — bufou Rianne. — É mais que o suficiente. — Então, virou-se e reuniu-se a Bedford e aos outros.
Standford ainda não se juntara ao grupo. Rianne pegou os dados. As apostas foram feitas. Ela começou a rodada. Os dados rolaram sobre a mesa e pararam contra a borda do tabuleiro. Rianne jogou mais duas vezes e venceu as três rodadas. Então, entregou os dados para Bedford.
— Certifique-se de que Standford não os troque quando vier jogar — disse e retornou à mesa do jantar.
— Meus parabéns, milady — Longinus a cumprimentou. — Deveria ter esperado até Standford participar do jogo. Ele bebeu demais e sem dúvida gostaria de uma oportunidade de recuperar suas perdas.
O olhar de Rianne encontrou o de Tristão pela extensão da mesa. E ela sorriu ao retrucar:
— Prefiro um desafio.
— O que pensa sobre a questão dos ladrões, senhora? — sir Gawain perguntou, referindo-se ao problema dos assaltos na cidade, e Rianne quase deu risada, pois pareceu que a pergunta tinha relação com Standford.
Do outro lado de sir Gawain, lady Alyce inclinou-se para frente com interesse súbito na conversa.
— Gostaria muito de ouvir sua impressão sobre isso — intrometeu-se. — Ouvi dizer que viveu entre os ladrões por algum tempo antes de voltar a Monmouth.
Rianne sentiu a surpresa e a curiosidade dos outros convidados de Arthur, sentados ao redor, ao ouvirem a conversa.
Ela poderia negar, mas percebeu que era exatamente isso que lady Alyce desejava.
— É verdade — respondeu, e viu o brilho de satisfação nos olhos da outra mulher.
— Como obteve tal conhecimento em jogos?
Rianne respondeu simplesmente:
— Porque eu era uma ladra.
Tristão estava furioso com ela, mas não conseguiu evitar um sorriso diante da reação de espanto de Alyce, que quase se equiparava à expressão no rosto de lady Meg. Pensou em intervir, porém mudou de idéia.
— Por acaso roubava jóias?
— Eu roubava comida — Rianne respondeu secamente.
Pela expressão nas faces daqueles que se sentavam por perto, parecia que todos julgavam que ela, com certeza, estava brincando. Divertiam-se com a conversa.
— Roubava outras coisas? — indagou Alyce.
— Uma torta, um pedaço de fruta, um doce.
— Moedas de ouro, talvez? — Alyce insistiu.
— Moedas de ouro não tinham utilidade para mim — retrucou Rianne. — Não se pode comê-las.
— Mas isso é fascinante! Diga, por favor: como roubava essas coisas sem ser pega?
— É tudo uma questão de saber onde esconder o fruto do roubo.
— Em um bolso?
— Pode ser—respondeu Rianne.—Embora muitos ladrões prefiram a manga da camisa ou da túnica. É possível esconder algo dentro da manga com muita facilidade.
Alyce soltou uma risada.
— É o primeiro lugar em que qualquer um olharia. Empurrou a taça vazia na direção de Hereford, para que ele a enchesse. E, ao fazer isso, uma expressão estranha lhe cruzou de repente a face. Ergueu o braço esquerdo e descobriu a mancha úmida que aparecia lentamente no meio da manga. Levantou-se num repente e derrubou a jarra de vinho da mão de Hereford, enquanto sacudia a manga da túnica com gestos frenéticos.
Cascas de ovos quebradas caíram sobre a mesa em meio às claras gosmentas que escorreram sobre o tampo. Hereford e os outros nobres olharam aflitos quando vários ovos mais escorregaram pelos braços de Alyce e estouraram sobre a madeira.
— Roubando ovos, milady? — Arthur comentou. — Eu não sabia que andavam escassos.
— Poderia tentar cozinhá-los primeiro — Gawain sugeriu, com ar caçoísta.
Lady Alyce ficou rubra como uma brasa. E enfurecida. Sua túnica estava arruinada. Fora humilhada e, pior, não sabia como! Olhou com ódio para Rianne e, então, saiu do salão entre risos e piadas, os ovos quebrados a escorrerem em seu rastro.
— Muito interessante...
Rianne se virou. Arthur ouvira a maior parte da conversa e sorria para ela com ar divertido.
—Não sei como fez isso, mas conhecendo Merlin e as coisas de que ele é capaz, tenho minhas suspeitas. Algum dia vai me contar. Até lá, tenho um débito para com você. Lady Alyce assemelha-se muito a uma gata. Deixa sua marca por onde passa e reivindica tudo como seu território.
— Como um porco-espinho — retrucou Rianne. — Espi-nhento e mal-humorado.
— Você é realmente filha de seu pai. Ele sempre dizia exatamente o que pensava, mesmo quando mandava seu rei ir para o inferno. As histórias que eu poderia lhe contar...
— Eu gostaria muito.
Conversaram longamente enquanto os cavaleiros e demais convidados reuniam-se pelo salão em pequenos grupos, a passar o tempo em apostas ou contando histórias.
Horas mais tarde, a guarda pessoal de Arthur acompanhou Rianne até seu quarto. Quando ela entrou, um homem saiu das sombras.
Ele cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
Rianne o detestou por fazer seu coração dar um salto e pelo modo com que seu sangue ferveu nas veias.
Aquela boca quente queimou sua garganta, no lugar sensível em seu pescoço, e depois, sua boca. As mãos de Rianne se torceram no tecido grosso da túnica do invasor.
Não, Senhor Dragão!
Tinha certeza de que falara isso. Ou talvez só pensado. A frase mental foi silenciada pelo assalto dos pensamentos em que Rianne imaginava as muitas maneiras com que ele pretendia amá-la.
Aquele não era o amante terno que a procurara antes, mas diferente; as mãos denotavam urgência ao arrancar sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A raiva pairava entre os dois. Estava no toque, no calor feroz do corpo de Rianne a corresponder ao calor feroz do corpo de Tristão, até que se tornaram um só: apenas um pensamento um desejo, um incêndio, que consumiu a ambos.
Os portões se abriram e o cavalo coberto de lama trotou para dentro. O cavaleiro caiu da sela aos pés dos guardas. Foi carregado para a ala dos criados, a sangrar de meia dúzia de ferimentos, mais morto que vivo.
Rianne foi chamada em seu quarto. Não havia tempo para se vestir nem para pensar no fato de que acordara sozinha. Às pressas, jogou um manto pesado sobre a camisola e correu para acompanhar as longas passadas de Merlin.
O cavaleiro ferido jazia num catre perto do braseiro.
— Conheço este homem — disse Merlin, a voz repentinamente tensa ao se inclinar sobre o cavaleiro ensangüentado. — É de Lyonesse.
Seu olhar encontrou o de Rianne. O sangue já ensopava o catre do mensageiro ferido.
— Isso não será fácil de presenciar. Se quiser sair, mandarei chamar minha irmã...
Rianne meneou a cabeça.
— Diga-me o que quer que eu faça.
Merlin mandou que todos saíssem do quarto e depois começou a cortar as roupas rasgadas e ensangüentadas do homem. Parecia impossível que ainda estivesse vivo, tanto era o sangue que perdera e tantos os ossos quebrados.
Recuperava e perdia a consciência, a dor a despertá-lo até que se tornava insuportável e ele desmaiava mais uma vez. A respiração era difícil e produzia um chiado horrível.
O cavaleiro acordou de novo e se agarrou à frente da túnica de Merlin.
— Lyonesse foi atacada. Minha patroa... Precisa ajudá-la...
Num último som estertorante, sua cabeça caiu para trás, e a mão na túnica de Merlin bambeou e tombou sobre o catre.
Rianne já vira a morte antes. Mesmo assim, isso não deixava de aturdi-la, a finitude da vida, como se a importância de uma existência se reduzisse a nada.
Merlin meneou a cabeça e, cheio de frustração, jogou longe o pano ensangüentado.
— Esta é a coisa que nos separa daqueles que são mortais, nossa salvação ou nossa danação: viver, enquanto os outros morrem. Chega finalmente o dia em que tudo que é mortal desaparece, e nós continuamos em frente.
Puxou um lençol sobre o cadáver e chamou uma das criadas.
— Mande avisar que preciso falar com o rei agora mesmo.
Em questão de apenas umas poucas horas, os preparativos estavam feitos. Uma legião do exército de Arthur acampada perto de Camelot recebeu ordens de partir para Lyonesse. Arthur deveria cavalgar com as tropas, juntamente com oito de seus cavaleiros e Merlin. Quatro dos cavaleiros e seus homens deveriam esperar em Camelot até que outra legião retornasse da fronteira oriental. Se Lyonesse fora atacada, então era de presumir que Camelot também poderia ser.
O dia amanhecera frio e cinzento. Rianne aconchegou-se dentro das dobras do pesado manto, ao se postar nos degraus de Camelot com sua mãe.
Tristão se encontrava entre aqueles que partiam. O garanhão negro estava selado. Relinchava de excitação, jogando a cabeça contra a restrição da brida.
Metade da guarda de Monmouth iria cavalgar com ele, enquanto a outra metade permaneceria em Camelot. Tristão informara Meg de sua decisão ao encontrar-se com ela em particular.
; Lady Alyce, parecendo que acabara de se levantar, chegou esbaforida às escadas, onde se reuniam várias das outras damas da corte. Seu marido se preparava para retornar à fortaleza de Standford.
Sob o manto, ela ainda usava a camisola de dormir, e seus cabelos estavam emaranhados. Rianne ouvira os boatos na corte. Era impossível não ouvi-los. Sabia que Tristão e lady Alyce tinham sido amantes. De que cama ela saíra? Certamente não a do marido, que estava de pé e em atividade desde as primeiras luzes do dia, preparando-se para a viagem à fortaleza. A esposa preferira ficar em Camelot, onde estava segura. Mas Rianne pensou se não havia outras razões que a mantivessem ali.
Longinus cumprimentou lady Meg, mas Rianne percebeu o olhar que ele lhe lançava, demorado, sombrio e intenso, íntimo, como se partilhassem segredos.
— Tem um amuleto, senhora? — perguntou Longinus ao se voltar para Rianne. — Algo que eu possa levar para a batalha?
Sorriu ao estender a mão enluvada, que passou muito perto do rosto de Rianne. Com gestos lentos, pegou uma das fitas trançadas que ela trazia nos cabelos.
— Uma fita bonita, então... — disse ao enrolar a fita na mão, para depois puxá-la gentilmente da trança grossa. Levou a fita aos lábios. — Eu a terei em alta estima, senhora. E rezo para que possa viver e devolvê-la à dona.
Enfiou a fita dentro da frente da túnica e depois sugeriu:
— Talvez tenha também uma fita para sir Tristão. Tristão se aproximava. Sua expressão era rígida, os ângulos duros do rosto de certa forma mais agudos, mais ferozes na alvorada fria e cinzenta. Ouvira o bastante das palavras trocadas, e ocorreu a Rianne que era exatamente isso o que Longinus pretendia. Tristão não se despediu de Rianne, mas de lady Meg.
— Até logo, milady. Com boa sorte voltaremos em poucos dias.
Meg o beijou amorosamente na face.
— Volte são e salvo para nós.
Lady Alyce mantinha-se na expectativa, porém Tristão apenas a cumprimentou com um breve gesto de cabeça. Então, seu olhar encontrou o de Rianne. Curvou a cabeça numa mesura seca.
Não pediu uam fita. Não era próprio de Tristão implorar por alguma coisa.
— Bom dia, milady.
Em seguida, afastou-se em passadas largas.
As ordens ecoaram pelo pátio. Colunas de cavaleiros entraram em formação. Arthur avançou para a vanguarda, seus estandartes a tremular ao vento cortante da manhã. Merlin cavalgava ao lado do rei.
A mão de Meg se fechou sobre a de Rianne, ali, nas escadas de Camelot.
— Não permita que a raiva fique entre vocês, filha.
O olhar espantado de Rianne encontrou os olhos vazios de Meg. Sua mãe tinha razão. Rianne recolheu as dobras do manto e desceu as escadas correndo. Seguiu pelo pátio enquanto o exército se deslocava para os portões principais de Camelot.
Ela desviou-se de cavalariços, servos, guerreiros e cavalos nervosos até chegar perto da coluna dos homens de Monmouth. O garanhão negro jogou a cabeça para o alto quando Rianne se aproximou. Tristão puxou as rédeas com força. Então, voltou-se e a encarou.
— Talvez esteja procurando por Longinus.
— Não estou procurando nem por um tolo nem por um covarde — Rianne rebateu a ironia.
Viu a raiva e algo mais que queimava naquele olhar dourado. Ele se inclinou, enlaçou-a pela cintura e a puxou para cima.
Rianne o encarou ao sentar à frente de Tristão, na sela. Não disse nada. Não tinha certeza de que ele a ouviria. Em vez disso, deu-lhe a única coisa que possuía de valor e que sempre estivera consigo. Tirou a corrente do pescoço e comprimiu a runa de cristal na mão do guerreiro, para que pudesse protegê-lo.
Mesmo na fria manhã de inverno, a pedra reluziu com um fogo interno ao pender das mãos enluvadas. Então Rianne se virou, e teria caído da sela se Tristão não a segurasse.
Os braços do guerreiro se apertaram em torno dela. E um beijo feroz lhe esmagou a boca.
Rianne não o repeliu. Entregou-se, expulsando toda a raiva, todas as perguntas e incertezas, para que houvesse apenas uma coisa maior entre eles.
Quando o beijo terminou, Tristão a abraçou por um longo instante. Por fim, soltou-a e a desceu até o chão.
Olhos nos olhos, os dedos a se tocarem... ficaram assim por um longo instante. Então, ele se afastou.
Rianne postou-se ali até muito depois de o último homem ter passado pelo portão do pátio, com o vento frio de dezembro a chicotear as dobras de seu manto. E um frio mais fundo se fechou em torno de seu coração.
— Aonde vai? — Grendel indagou fitando-a com suspeita.
— Ao mercado — Rianne respondeu por fim, num tom casual. — Estão faltando muitas das ervas de que preciso para os remédios. Talvez eu possa encontrá-las lá.
— A cozinheira pode conseguir o que você precisa. Manda o pessoal ao mercado todo dia.
— Talvez ela me deixe ir junto — Rianne murmurou. — Então, pode ser que eu encontre o que necessito.
O que necessitava, Rianne concluiu, era livrar-se de quatro ajudantes de cozinha, de quatro guardas e do gnomo, e encontrar a cigana.
Enquanto Grendel e os demais observavam o espetáculo dos malabaristas com grande atenção, Rianne puxou o manto contra o corpo, voltou os pensamentos para o íntimo e se transformou ao entrar numa ligeira nuvem de névoa.
— Você viu? — indagou Grendel. — Aquilo não é nada! Eu posso fazer melhor! — Não obtendo resposta, fez meia-volta. — Rianne?
Ela já se encontrava a vários metros de onde Grendel a vira da última vez. E aqueles que viam o menino magro passar, de calções, botas e uma túnica grossa, não percebiam que ele não era menino, afinal.
— Estou procurando uma cigana que lê a sorte — Rianne explicava às pessoas no mercado.
Soube, então, que os ciganos estavam acampados no outro lado da feira dos mascates. Mas quando Rianne, finalmente, encontrou o acampamento, ninguém vira a mulher que ela descreveu.
Perguntou sobre a cigana a três rapazes que a seguiam.
— O que quer com a mulher? — um deles quis saber.
— Falar com ela. É importante.
— Talvez importante o bastante para pagar por isso, hein? O que tem aí, garoto? Ouro?
Rianne sentiu o ânimo e os pensamentos deles. Sabia ser perigoso estar ali, mas era importante encontrar a cigana.
Os três rapazes a acuaram num canto. Quando o primeiro se aproximou, Rianne investiu com a faca e rasgou-lhe a frente da túnica. Ele berrou de dor e saltou para trás, enxugando o sangue da barriga, onde a túnica se abria e expunha o corte.
Os três ciganos a encararam com um misto de incredulidade e raiva. Quando avançaram de novo contra Rianne, ela fez os caldeirões dos fogões por perto voarem sobre eles. Um ficou encharcado de um ensopado de cheiro horrível. Outro berrou quando um mingau quente queimou-o, escorrendo por sua túnica. O terceiro foi atingido por um caldeirão voador com pés de porco ferventes.
Numa cena patética, os rapazes gemiam e assopravam as bolhas doloridas. E também estavam completamente abismados. Ao penetrar em suas mentes, Rianne sentiu que não sabiam nada da cigana. Não era parte daquela família ou do acampamento. Nem estava na cidade. Se estivesse, ela a teria encontrado.
A mulher desaparecera com a mesma facilidade com que Rianne aprendera a se mover pelas sombras e pela bruma. Voltou para avisar Grendel de que iria para o castelo de Arthur, tomada por uma intensa inquietação. Esgueirou-se por entre os guardas e através da muralha de pedra, para dentro das sombras do lado de fora do grande salão.
Em seu quarto, trocou de roupa e guardou a túnica, as botas e os calções.
Não encontrara o que procurava no mercado. Mas havia alguém que poderia ser capaz de responder a algumas de suas perguntas. Procurou a mãe em seus aposentos, do outro lado do jardim interno.
— Entre, filha — lady Meg a chamou, antes mesmo que Rianne passasse pela soleira da porta. — Venha se reunir a mim.
Rianne entrou e foi logo dizendo:
— Há uma coisa que eu quero saber. E receio que minha mãe não possa me dizer. Quem é a Escolhida? E o que significa?
— Onde ouviu isso?
— De uma cigana que lia a sorte no mercado.
— Uma cigana? — Meg riu, com ar divertido. — Merlin acharia graça. Preciso me lembrar de contar a ele quando voltar.
— A cigana disse que eu era a Escolhida. Tive uma visão de sangue e morte, tal como nos meus sonhos. E quando o sangue desapareceu...
— Transformou-se num jaspe sangüíneo — Meg completou, numa voz que de repente se tornara muito baixa.
— A senhora viu?
— Sim — ela respondeu, com tristeza. — Vi.
— O que significa?
— Poucos viram o jaspe sangüíneo. Tão poucos que se pensou que não passasse de um mito, algo de que os Anciãos falavam, mas que ninguém nunca vira.
E, então, contou a lenda do jaspe sangüíneo: a marca dos Escolhidos, daqueles nascidos como mortais, porém com o poder da Luz.
— Dizem que os Escolhidos são os filhos do astral, nascidos da Luz numa época de crescente escuridão. Seu destino é proteger o reino contra as Trevas. Dizem que o último Escolhido nasceu faz mil anos no mundo mortal. Desde então, houve confrontos entre os poderes da Luz e os poderes das Trevas.
Parou e tocou os dedos do lado da cabeça onde, depois de todos aqueles anos, ainda aparecia a cicatriz do ferimento que lhe roubara a visão.
— Fui cegada por uma criatura que havia sido seduzida pelas Trevas. Esse é o método das Trevas, atrair aqueles que são gananciosos, ambiciosos e que não se importam com nada mais nesta vida do que com seu próprio ganho. Tornam-se a corporificação dos poderes sombrios, e é seu objetivo caçar os da Luz e destruí-los.
— Mas a senhora e Merlin nasceram com os poderes da Luz — Rianne ponderou. — Não consigo perceber nenhuma diferença. Como algo poderia ser mais poderoso que Merlin?
— Somos descendentes dos primeiros Escolhidos. Possuímos habilidades além do imaginável por qualquer mortal. Mas os Escolhidos são o poder da Luz. Dentro deles está a soma total dos poderes do bem, e têm um único destino: confrontar os poderes das Trevas.
— Então, a senhora não acredita que seja apenas um mito — Rianne concluiu.
— Gostaria de acreditar. Contudo eu soube naquele dia, muito tempo atrás, quando você era apenas um bebê, que as Trevas estavam lá para reclamar a criança Escolhida. Mandei-a para longe, para viver na obscuridade, sob um encantamento de proteção. Acreditei que seria possível mantê-la escondida em segurança. Se as Trevas não pudessem encontrar você, então não haveria perigo. Foi uma tolice, própria de um mortal, ter esquecido que nada escapa aos poderes das Trevas.
— A senhora viu o jaspe sangüíneo? Meg concordou.
— Você tinha apenas poucas semanas de vida quando voltei ao quarto para amamentá-la e encontrei os lençóis da cama ensopados de sangue. Não havia nenhuma marca em você, nenhum ferimento, nenhuma enfermidade de qualquer tipo. Mas a imagem do jaspe sangüíneo estava lá. Eu nunca tinha visto algo mais belo e, ao mesmo tempo, mais terrificante. E soube que deveria mandá-la para longe. Era nossa esperança de mantê-la em segurança.
Rianne, então, contou à mãe a respeito de seus sonhos, das imagens de fogo e morte na cabana da floresta, e do estranho envolto num manto negro, suas feições ocultas pelas sombras.
— Foram as Trevas as responsáveis pelas mortes de John e Dannelore. Procuravam por você, mas o meu encanto a protegeu— explicou lady Meg.
— E quanto a papai? Por que Merlin não pôde salvá-lo?
— Foi uma armadilha. As Trevas usaram minhas próprias fraquezas contra mim. Eu não poderia suportar que seu pai morresse sem ver você de novo. Mandei buscá-la, porém não me dei conta de que a estava colocando em grave perigo.
Rianne pensou na morte lenta e dolorosa do pai, que ninguém, nem mesmo Merlin, pudera evitar.
— Não gosto disso — Gawain murmurou, a voz baixa no silêncio sobrenatural que os rodeava. — Não podemos enxergar nada com esta maldita névoa!
Tristão sentia a mesma inquietude. Desde antes do amanhecer, estavam montados nos cavalos, os escudos e as espadas empunhados, de prontidão, depois de receberem notícias de que Loedigan e seus asseclas haviam acampado na floresta de Selden a menos de meia dia de viagem dos domínios do velho duque, em Lyonesse.
Quando chegaram a Lyonesse, encontraram lady Guinevere, a equipe doméstica, seus criados e uns poucos lavradores e as famílias, todos armados com cajados e lanças, abrigados na capela da fortaleza. Sem meios de fugir, tinham resolvido armar resistência ali.
Merlin conseguira comunicar-se com aqueles lá dentro através das portas reforçadas por barricadas. O entrincheiramento fora levantado e os sobreviventes surgiram à vista dos cavaleiros e guerreiros de Arthur, enchendo o pátio de Lyonesse.
Os exércitos se dividiram. Arthur ficara em Listenaise, com Longinus e seus homens. E Tristão enviara batedores, durante a noite, percorrerem em duplas, a pé, o contorno do perímetro da floresta e a região vizinha. Logo depois da meia-noite, o acampamento inimigo fora avistado. Em seguida, chegava a notícia de que Loedigan liderava os invasores. E a estratégia fora montada.
O brado de enregelar o sangue ecoou através da espessa muralha de neblina. Perturbou o mais corajoso dos corações e deixou os cavalos nervosos.
Os dois exércitos se entrechocaram numa explosão de gritos, de corpos em colisão e do retinir de metal contra metal. Porém, para sua surpresa, os invasores encontraram apenas uma pequena porção do exército que previam.
Tarde demais, viram os cavaleiros do rei investir pelos flancos, a rodeá-los, cortando-lhes qualquer esperança de fuga, quanto mais da vitória de que estavam tão certos apenas momentos antes.
Lutaram até a beira da floresta, e então os invasores se viram empurrados mata adentro, perseguidos e sem ter para onde fugir.
Lutar na floresta era perigoso. Ali, um homem poderia se esconder e depois saltar sobre o inimigo e cortar as pernas de seu cavalo. Tristão conhecia os riscos. Viu o brilho de metal quando o inimigo investiu, não contra ele, porém contra seu garanhão negro.
Sentiu a montaria estremecer e, depois, aquele som agudo de dor quando o corcel desabou. Tristão foi atirado da sela e a espada larga arrancada de sua mão na queda. Rolou por uma pequena clareira. Um rápido olhar através das nuvens cambiantes de névoa revelou que havia se separado do resto de seus homens. Sentiu que aquilo fora deliberado, quando o adversário o impelira para dentro da floresta.
Girou o corpo e ergueu-se de um salto, a espada mais curta imediatamente sacada da bainha às suas costas. Ao virar-se para se defender do atacante, um golpe o alcançou no ombro e lhe entorpeceu o braço da espada. Tristão se desviou para o lado, bloqueou outro golpe com o escudo e então contra-atacou.
O rosto de seu oponente estava escondido pelas sombras do capuz. Ele lutava com a força de dez homens, a se recobrar, investir e depois a obrigar Tristão a recuar. Tristão rebateu um golpe, contra-atacou e depois se viu mais uma vez na defensiva.
Não notou o galho caído ao tentar se equilibrar no solo macio. O galho enroscou-se em seu tornozelo como uma coisa viva e o derrubou. Tristão tentou libertar o pé. Então, pressentiu o golpe que desabou sobre ele e lhe arrancou o escudo.
Preso, caído, com o escudo perdido, Tristão fez um esforço desesperado e lançou uma última investida, pegando seu oponente desprevenido. O homem caiu cambaleando para trás ao ser atingido no meio do torso, a espada de Tristão a se afundar profundamente.
Quando ele puxou a arma de volta, o sangue esguichou da ferida e empapou as roupas pesadas. Aturdido, o inimigo olhou para baixo, para o ferimento aberto. Então, jogou a cabeça para trás. Em vez do grito selvagem de um nórdico agonizante, soltou uma gargalhada, e o capuz caiu. E Tristão se viu, incrédulo, cara a cara com Longinus!
Ele continuou a rir, um som que ecoou pela floresta, o gargalhar da própria Morte!
— Você é um oponente de peso — Longinus o cumprimentou. — Mas chegou sua hora de morrer.
O sangue na frente da túnica desaparecera. O ferimento parecia fechar por si só. Longinus investiu. Enfraquecido pela batalha e por aquele antigo ferimento causado por aquele mesmo adversário semanas antes, Tristão estava sem forças para se defender.
— Pode me matar, Longinus, mas juro que o caçarei pelas profundezas do inferno!
Longinus não pôde deixar de admirar tamanho senso de honra, por mais inútil que fosse. Com uma investida final, vibrou um golpe destinado a transpassar Tristão. Sentiu que era desviado no último momento, mas a visão do sangue a esguichar o gratificou.
Sons ecoaram ao redor, quando os cavaleiros e guerreiros do rei procuravam na floresta os companheiros caídos e feridos. Longinus puxou a espada devagar, com uma satisfação sádica, ao ouvir o horrível berro de agonia do adversário ferido de morte.
Tristão viu Longinus esgueirar-se pela escuridão crescente. Ele parou na beira da pequena clareira e olhou para trás, mas a figura que encarava Tristão não era a do guerreiro que ele enfrentara. Era a figura de uma velha, vergada e deformada pela idade. A mesma mulher que vira naquele dia, nas ruínas da cabana na floresta, quando fora à procura de Rianne.
E, quando ela sorriu, transformou-se mais uma vez. Onde a velha estivera, outra mulher agora se postava. Era jovem e esguia. Seus cabelos negros caíam até a cintura. Em seus olhos, o frio da morte, que Tristão reconheceu nas lembranças de um menino de dez anos de idade. Morgana.
Rianne acordou gritando de dor. A sensação queimava em seu corpo, parecendo incinerá-la por dentro, como se o fogo tivesse tocado sua alma. Sentiu a lâmina de aço como se fosse enterrada no fundo de seu ventre, e depois, ao ser lentamente retirada. Então, viu o fluxo quente do sangue que escorreu por entre os dedos como se fosse seu mesmo.
Rianne seguiu pelo mercado com firme determinação. Não dissera nada à mãe antes de sair, impelida por aquele sonho horrível e pela certeza de que Tristão estava morto.
Seu coração recusava-se a crer nisso, porém sua mente não a enganava. Naquele momento, quando a espada o abatera, estavam conectados como se fossem um só ser. Ela vivenciara a dor, o choque e a incredulidade, então o sangue a correr. Sentira o coração de Tristão bater com o seu próprio. E logo percebera quando se tornara lento, e a morte que esperava, até que não pudera suportar mais.
Enquanto caminhava pelas ruas, becos e passagens da cidade, experimentava a sensação de que cumpria seu destino como a Escolhida. Que aquilo fora posto em ação bem antes que ela e Tristão se encontrassem.
Era seu destino. Um destino do qual sua mãe tentara protegê-la e fracassara. Mesmo quando lhe falara disso, Meg não tinha idéia de quando esse destino a encontraria. Mas Rianne sabia. A cigana era parte disso. A cigana sabia. E Rianne tinha de encontrá-la.
Era tarde quando Rianne retornou à corte de Arthur, a luz do sol a desaparecer abaixo da muralha ocidental. O salão principal estava escuro. Os guardas não a saudaram ao vê-la passar. Não tinham nem mesmo ciência de sua presença. Como se... Rianne correu pelo pátio interno e subiu as escadas até a ala privativa dos quartos. O corredor encontrava-se às escuras. Nenhuma tocha fora acesa. E havia um odor de umidade e frio. Seu ombro roçou na parte de pedra perto da porta do quarto. E ela sentiu, no mesmo instante, a friagem do contato.
Seu coração se acelerou quando agarrou o pesado ferrolho da porta. Ele não se moveu, mas parecia ter se enferrujado e travado no-lugar. Focalizando seu poder, Rianne concentrou todos os pensamentos. A peça rangeu alto ao deslizar. Ela empurrou e abriu a porta.
O vento soprou num vórtice poderoso. Estava escuro. Nenhuma luz teria resistido ao violento turbilhão que invadira o aposento. Rianne lutou para seguir até a janela, e descobriu que estava fortemente trancada. Então, viu o tênue facho de luz na cadeira ao lado da lareira, e seguiu a trilha ao longo da parede.
Sua mão passou através do ar quando a parede desapareceu e abriu-se para um grande vácuo sombrio, como uma passagem que de repente se abrisse. E lá estava o facho de luz, que gradualmente se esvaía no vazio da escuridão. Então, a passagem começou a desaparecer, as pedras a se moverem de volta no lugar, selando a abertura como se nunca houvesse existido.
O vento cessou de soprar. Não mais uivava pelas venezianas. O quarto estava completamente escuro e silencioso, num caos. Tapeçarias haviam sido arrancadas de seus suportes e pendiam tortas pelas paredes. As pesadas mantas de pele estavam espalhadas pelo chão. A mobília fora arrebentada e jogada como pedaços de lenha. As lamparinas a óleo tinham se virado, as chamas apagadas pelo turbilhão. E uma camada de fuligem e cinza cobria tudo.
Sua mãe desaparecera, não se encontrava ali, Rianne sentiu. Apenas sua essência permanecia, através do elo que as conec-tava ao mundo imortal. E outra presença, débil a princípio, depois mais forte. Rianne ergueu uma pesada tapeçaria e removeu os restos esfacelados de uma urna de argila.
Encontrou o gnomo. Fora bastante ferido, os grandes olhos redondos a se abrirem lentamente conforme Rianne conectava seus pensamentos com os dele e buscava o poder da Luz no toque de sua mão sobre a cabeça do pequenino. Dedinhos toscos a agarraram debilmente.
— O que aconteceu? Onde está minha mãe?
— Ele... a levou.
Estava delirando, falando naquele estranho modo cantado, as palavras mal audíveis acima do chiado da respiração.
— Grendel, por favor! Quem a levou? Precisa me dizer! Necessito da sua ajuda. Não posso fazer isso sozinha. Grendel?!
Conforme a essência do gnomo lentamente desaparecia, Rianne reuniu seus pensamentos aos dele e, naquele vínculo hesitante e breve, vislumbrou o que acontecera: a surpresa de sua mãe quando a porta fora violentamente aberta, o frio repentino que invadira o quarto, o vento que extinguira o fogo da lareira e das lamparinas a óleo, a luta inútil de Grendel para impedir as forças das Trevas que vieram atrás dela; o medo de Meg ao recuar pelos anos até outra época e lugar, quando se confrontara com as Trevas e quase pagara com a vida. E, depois , quando as pedras na parede ruíram e aquela escura passagem se abrira.
Rianne viu aquilo que o gnomo vira; a figura sombria envolta no manto que tremulava ao seu redor, o capuz que lhe escondia as feições, a não ser por aqueles olhos frios e negros, como se a criatura tivesse saído de seus sonhos. E, então, o capuz fora jogado para trás... E a criatura de seus sonhos tinha um nome.
Longinus!
A mãozinha afrouxou-se, sem vida, nas mãos de Rianne. Ela sentiu quando a luz interior não mais queimava e o coração de Grendel parou de bater. Vira aquele momento em que o gnomo tentara salvar sua mãe, lançando-se contra Longinus, transformando-se numa criatura selvagem que o atacara na garganta. Porém não era páreo para os poderes das Trevas.
Por fim, Longinus o chutara de lado com uma coisa aborrecida. A força do golpe esfacelara seu crânio e quebrara-lhe o pescoço.
— Obrigada, amiguinho — Rianne murmurou. — Minha mãe não poderia desejar um defensor mais corajoso.
Suas lágrimas lentamente secaram quando ela se ajoelhou nos escombros daquilo que fora o quarto de lady Meg. Por dentro, sentia-se transpassada de dor. Fora procurar por uma cigana de olhos negros. Agora, percebia que a cigana estava lá o tempo todo.
— Uma fita bonita, então...
As palavras que a cigana dissera naquele primeiro encontro eram as mesmas que Longinus proferira no pátio, na manhã em que Arthur e seus homens tinham partido...
Seu pai foi um guerreiro valente. Lutou bem.
Como poderia Longinus saber como seu pai lutara quando Monmouth fora atacada? A menos que estivesse lá...
Tristão atacado no calor da batalha. Um acidente...
O sonho que a acordara naquela manhã, tão vívido que Rian-ne sentira a espada quando penetrara fundo, e ela soubera que Tristão fora mortalmente ferido...
Fora Longinus o tempo todo. Ele estivera lá na noite em que Dannelore e John haviam sido mortos. Fora ele quem planejara o ataque a Monmouth, sabendo que Meg mandaria buscá-la. Agora, tinha atacado outra vez aqueles que Rianne amava.
Ela ajoelhou-se no meio do quarto e chorou até não conseguir verter mais nenhuma lágrima. Então, enxugou o rosto. Sabia para onde Longinus levara sua mãe, vira de relance nos pensamentos moribundos do gnomo.
Ele a levara até o círculo de pedras eretas onde Meg confrontara as forças das Trevas no passado e ficara cega. E sabia por que Longinus a levara. Porque sabia que Rianne os seguiria.
Ela era a Escolhida. Era seu destino, como fora desde o início. Sua mãe tentara protegê-la, mas, no final, não pudera. Agora, as forças das Trevas tinham levado o que mais importava a Rianne. Ela as seguiria, não porque Longinus queria, mas porque era o que desejava fazer.
Rianne rumou para a torre central de Camelot. Convocou o poder com que nascera, o poder dos Escolhidos. E quando a bruma da noite se esgueirou por sobre as muralhas e pelas ruas, ela se transformou numa imponente ave caçadora.
Lançou-se da torre e arremessou-se para dentro da escuridão da noite. Seguia aquele reflexo de luz, que era como um farol a guiá-la para o distante círculo de pedras.
Era quase alvorada quando chegou às pedras e se transformou mais uma vez em correntes de bruma matutina, que lentamente envolveram o círculo à procura daquela essência familiar que a unia à mãe.
Longinus aguardava por Rianne. Esperava que ela os seguisse. Sabia que era a Escolhida. Seus próprios poderes eram imensos. Vivera entre eles — e todos, até mesmo Merlin, não haviam conseguido percebê-lo.
Rianne sentiu a presença da mãe mais forte no anel de pedras, e buscou por alguma conexão, alguma resposta de que Meg se encontrava por perto. Porém, ao fazê-lo, soube que sua mãe não denunciaria nada, não revelaria nada, manteria tudo para si, tal como guardara o paradeiro de Rianne em segredo durante todos aqueles anos para protegê-la. Nada a forçaria a revelar, nem mesmo a própria morte.
Rianne sentiu algo mais. Aquela mesma friagem da passagem escura que era vazia de todo contorno, toda forma, toda luz. E soube que Longinus estava próximo. Podia senti-lo a esperar.
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza e derrote-o. Depois, use os poderes com que nasceu.
Longinus esperava que Rianne ultrapassasse o portal para dentro do mundo que jazia além, para onde levara Meg. Mas Rianne não tinha idéia daquilo que a aguardava além daquele arco de pedras. Sabia apenas do mal que seqüestrara sua mãe.
A neve circundava o círculo de pedras. Dentro, porém, nenhuma neve permanecia no chão. Derretia-se, a escorrer por entre elas. Rianne transformou-se em fluido, como a água, e passou através do portal para o mundo além.
Era um mundo de muralhas pétreas e cavernas escuras. E também de águas sombrias. O ar era opressivo, tornando impossível respirar. Comprimia seus pulmões, apertava seu coração e movia-se lentamente junto com seu sangue.
Uma trilha ondulava pelas pedras até uma caverna distante. Rianne recordou a si mesma que aquele era o mundo de Longinus. Não poderia confiar em nada. Deveria presumir que tudo era um truque e procurar pela farsa.
Em vez de seguir a trilha, como Longinus sem dúvida queria que ela fizesse, Rianne rastejou pelo teto da caverna, transformada numa corrente de ar entre outras correntes de ar, até que a trilha se abriu numa enorme gruta.
Você aprendeu bem, o pensamento conectou-se com o dela. É uma adversária de valor. Porém não a quero como inimiga, Rianne. Você e eu somos muito parecidos. Partilhamos muitas das mesmas habilidades. O cosmos será nosso reino se você quiser se juntar a mim.
Naqueles pensamentos, Rianne sentiu a mesma intimidade, a mesma persuasão sedutora que experimentara pela primeira vez em Monmôuth. Era poderosa. Penetrava por seus sentidos, esgueirava-se por sob o escudo protetor em que ela se envolvera.
Não seja tão apressada em recusar, os pensamentos insistiram, persuasivos. Não, quando eu tenho algo que você deseja.
Rianne seguiu pela passagem e, de repente, viu-se empurrada por uma corrente mais poderosa de ar frio que a envolveu. Só então se deu conta de que havia sido atraída para uma armadilha. Viu-se impelida rumo àquela abertura, mais ao fundo das cavernas sombrias.
Então, avistou a mãe. Longinus a aprisionara num anel de fogo. Ele usara a transformação de Rianne em vento para avivar as chamas e colocar Meg em perigo.
Rianne convocou o poder mais uma vez e transformou-se numa chuva que cercou as chamas que rodeavam Meg, e as consumiu, extinguindo-as, até que tudo que restava era uma esguia labareda que começou a se expandir. E Rianne saiu de dentro dela, transformada mais uma vez em forma mortal.
Correu para Meg e caiu de joelhos ao lado dela.
— Mãe?
Meg ergueu a cabeça devagar, porém os olhos que fitavam a filha não eram de um azul pálido, e sim negros e frios.
— Não pode confiar naquilo que vê.
A criatura se transformou e assumiu a forma de outra mulher, com longos cabelos negros. Seus olhos, porém, continuavam os mesmos, negros e frios, e Rianne recordou-se das histórias que ouvira sobre Morgana.
— Ah, você aprendeu muito bem todas as coisas que lhe ensinaram. Mas talvez não o suficiente. Realmente acredita ser páreo para as forças das Trevas? Sua mãe acreditava que era, mas, no fim, não foi uma adversária à altura.
— Onde está ela?
— Está segura.
Tomada de espanto, Rianne voltou-se ao som daquela voz, falada à maneira mortal e tão familiar a ela como respirar. Tristão saiu da trilha e caminhou em sua direção.
Rianne correu para ele, e então, de repente, estacou. A mão que se estendia para ela era a mesma, a voz que a alcançava era a mesma. As belas feições, a curva do sorriso, eram todas as mesmas. Mas não era Tristão. Viu naqueles olhos.
— Você tem apenas de pegar minha mão.
Rianne recuou.
— Você não é Tristão.
— Tem certeza? E quanto àquela última noite em Camelot? — ele perguntou. — Como pode ter certeza de quem foi que a procurou naquela noite? E todas as outras noites antes? Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
Ela recuou mais, aturdida.
— Você carrega um filho no ventre, Rianne. Um filho concebido com os poderes da Luz e, talvez, com os poderes das Trevas. E mesmo você não pode ter certeza de quem é o pai.
Que embuste cruel! Não podia ser verdade!
— Está enganado — ela o desafiou. — Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
Merlin o encontrou na floresta, os relinchos do cavalo agonizante a guiá-lo. Localizou Tristão apenas uns poucos metros adiante do animal moribundo. A batalha acontecera ali, a clareira ainda estava ensopada de sangue. Uma trilha sangrenta marcava onde ele rastejara e depois se arrastara, enterrando o longo punhal no chão, à distância do braço e puxando o corpo, num inútil esforço de seguir seu atacante.
— Fique calmo, meu jovem amigo.
Merlin tirou gentilmente o punhal dos dedos de Tristão, e depois o virou para cima. O ferimento fora profundo. Poderia ter sido pior se não fosse pela runa de cristal. Ela desviara o golpe, e a marca era evidente sobre a pedra.
— Longinus — Tristão disse baixinho.
E, naquele nome, Merlin sentiu os pensamentos que vinham com ele: a descoberta da traição de Longinus, a batalha que se seguira, e a certeza de que fora ele quem atacara Monmouth; e, no distante passado, tinha sido também Longinus quem assassinara tanto Dannelore como John. E a própria família de Tristão.
Usando o poder curador, Merlin fechou o ferimento, depois de ligar os músculos seccionados, o tecido e a carne. Diferentemente da lesão de Connor, destinada a lentamente segregar veneno e a morte, aquele era um ferimento para liquidar o adversário de uma só vez.
O suor porejou pela testa de Tristão e ensopou a túnica. Era como ser queimado com um ferro em brasa. De olhos fechados, via somente uma pessoa: Rianne. E ele teve certeza de ouvi-la exclamar, orgulhosa, desafiadora:
Se carrego um filho, é de Tristão e de mais ninguém!
As palavras chegaram até ele num elo que o conectou à própria vida em si. Abriu os olhos e dirigiu-os para o alto. Nevava, mas Tristão não sentia frio. Não questionou, simplesmente aceitou o fato. Estava vivo. E tinha de encontrar Rianne.
Tristão e Merlin seguiram a trilha que Rianne tomara até as pedras eretas. Meg se encontrava lá, fria e debilitada, porém viva, do lado de dentro do círculo de pedras onde Longinus a deixara, oculta por um sortilégio.
— Tentei lutar com ele — ela murmurou quando o irmão a abraçou. — Mas eu não era páreo para Longinus. E não era a mim que ele queria. Era Rianne. Usou-me para atraí-la até aqui. Você precisa encontrá-la.
Tristão já estava de pé e rumava para aquelas duas pedras eretas como sentinelas Merlin foi atrás dele.
— Não pode ir sozinho. Não tem forças o bastante e nem idéia daquilo com que está lidando.
— Há muita coisa a acertar. Por Connor, por Meg e por Rianne. — Tristão deu um sorriso enviesado. — Longinus pensa que estou morto. Será minha vantagem.
Não havia argumento com que Merlin pudesse fazê-lo mudar de idéia.
— Lembre-se, tudo não é o que parece ser no submundo. É uma dimensão de mentiras e logros. São as armas de Longinus, e as usará contra você. Ele esperou um longo tempo por Rianne. Se ela puder ser convencida a unir seus poderes aos de Longinus, será o fim do nosso mundo. Porém, se você quiser prevalecer, existe apenas um modo com que pode destruir Longinus. Deve ser no momento da transformação, quando ele não é nem uma forma nem outra. É a sua única fragilidade.
A passagem além do portal era longa e sombria, e descia através da escuridão para emergir numa enorme caverna que se ligava a outra e mais outra. Tudo ao redor tinha o cheiro de coisas horríveis.
Os instintos de Tristão o avisavam das coisas perigosas na escuridão. Quando ele levou a mão para tocar a parede, descobriu que não havia nada ali também. Tratava-se de uma ilusão. O caminho sob seus pés era uma trilha elevada que desabava num vácuo negro de cada lado. Um passo em falso, e Tristão seria lançado nas trevas.
Chegou ao fim da trilha, guiado pelo instinto. Ao se aproximar, escutou uma voz que não era ouvida fazia longo tempo: a gargalhada fria e mortal de Morgana.
Não era real, Rianne disse a si mesma. E viu-se parada dentro do quarto, como naquela última noite com Tristão. Um homem saiu das sombras. E embora o observasse separada do sonho, tornou-se parte dele...
O homem cheirava a vinho perfumado de especiarias, ao aroma pungente de pinho que se agarrava à sua pele, e a couro macio.
— Não, Senhor Dragão!
Não se tratava do amante terno que a procurara antes. Era diferente; as mãos eram diferentes, urgentes, quando arrancaram sua túnica e o vestido, a boca ávida contra a sua.
A visão desapareceu. Os olhos que a fitavam eram negros e frios, e a mão que tocava a sua, igualmente gelada. Rianne afastou-se e fugiu. E quando ele correu atrás para alcançá-la, ela o empurrou para longe.
— Pelo amor de Deus, Rianne! Pare!
Algo no som daquela voz realmente a fez parar. Algo naquelas palavras. Então, Rianne viu Tristão sair da trilha que ela seguira até ali dentro.
Impossível! Rianne olhou para os dois homens, idênticos em todos os aspectos: na força contida do corpo do guerreiro, na cabeleira farta de fios escuros que caía até os ombros, na curva sensual da boca, e no calor daqueles olhos dourados. Um era o Mal encarnado, enquanto o outro...
— Não é possível! — ela murmurou, olhando de um para outro e depois para aquele que chegava mais perto agora. — Você está morto. Eu vi.
— Estou vivo. Tome minha mão! — ele implorou. — Você me conhece! Não confie naquilo que vê. Toque-me. Confie naquilo que sente!
Rianne olhou de um para o outro. Um momento antes, tinha certeza de que o homem que estava em pé diante dela era Longinus.
Agora, ambos afirmavam ser Tristão. Ilusão? Logro dos sentidos?
Recuou para longe de ambos, e ouviu o som de espadas a serem sacadas.
— Existe apenas um jeito de descobrir — aquele mais próximo dela desafiou ao riscar o ar com a espada. — Lutaremos até a morte.
Investiram um contra o outro em estocadas, cutiladas e atacando com golpes seguidos, num borrão de aço, membros tensos e resmungos de dor. Avançavam, desviavam, recuavam, a mudar de posição e depois a investir de novo.
A ponta de uma lâmina pegou a manga de uma túnica; o tecido foi rasgado como manteiga derretida. Outra lâmina passou perigosamente perto da garganta de um dos homens. O oponente se desviou de lado, escapando por um triz da morte. Ou seria ele a Morte?
Quem era quem? Não havia como discernir. Mentiras. Logros. Um mundo onde nada era o que parecia. Então, Rianne viu gotas de sangue no chão da caverna. Um deles fora ferido.
Mas qual?
Pode ter certeza de quem é o pai de seu filho não-nascido?
As palavras foram sussurradas em sua mente e queimaram-lhe a alma, um legado de trevas que se estenderia para o futuro se Longinus não fosse impedido. Mas como? Longinus queria apenas uma coisa e faria tudo para tê-la.
Você deve ser mais sagaz que seu oponente. Defronte-o nos próprios termos que ele utiliza, e depois use-os contra ele.
As palavras de seu pai iam e vinham em seus pensamentos. Se Longinus criara uma ilusão, então ela criaria uma também.
Rianne voltou os pensamentos para o íntimo, e atraiu o poder com que nascera, enquanto os sons da batalha ecoavam pela caverna. E começou a se transformar, mudando e se tornando aquilo que a rodeava: ar, água, fogo e terra.
Depois, criou a ilusão de uma jovem com cabelos dourados e olhos da cor das chamas azuladas. E então correu para o meio dos guerreiros em luta, determinada a impedir aquele combate mortal mesmo à custa da própria vida.
A espada enterrou-se fundo em sua lateral. O sangue espir-rou pela lâmina. De olhos arregalados, Rianne encarou o guerreiro que desferira o golpe.
— Não!
Longinus transformou-se, a espada ensangüentada caindo de sua mão. E naquele momento de transformação, Tristão desferiu o golpe fatal, enterrando a espada no fundo da alma negra de Longinus.
Quando Tristão estendeu a mão para a jovem caída, ela desapareceu, uma ilusão dissolvida em bruma e ar, que se esguei-rou por entre seus dedos.
Rianne surgiu por trás e gentilmente tocou-lhe o ombro.
O parto fora longo e difícil, talvez a coisa mais difícil que Rianne já fizera. Porém, a mãe estava ali a encorajá-la, a lhe falar com ternura, a lhe dar forças quando ela precisara.
Várias vezes, Rianne ouvira a voz de Tristão, que voltara à porta do quarto, às vezes ansioso ou zangado ou esgotado.
E Rianne, no sofrimento das dores que já duravam horas, se perguntava que criança era aquela em seu ventre. Uma criança com os olhos dourados e os cabelos escuros, ou talvez com suas próprias feições e os olhos do legado passado através de sua família? Ou encontraria aqueles olhos sombrios e tenebrosos, frios como a morte a encará-la de volta do rosto de uma criança, seu filho, e prole das Trevas?
O que ela faria se assim fosse?
Em seu coração, Rianne acreditava que era filho de Tristão o ser que trazia no ventre. Não poderia crer diferente, tão profundo era seu amor por ele, tão completamente Tristão fazia parte de seus pensamentos, de cada respiração de seus pulmões, de cada pulsar em seu peito.
Por fim, horas depois que tudo começara, ela focalizara todas as suas energias e o poder que lhe era tão inerente, e impelira aquela força para os músculos tensos até que julgara que poderia ser dilacerada. Então, experimentara uma repentina e intensa onda de dor, seguida imediatamente por outra, e sentira a criança a escorregar para fora de seu corpo.
Tomada de fadiga, estava apenas vagamente consciente do rosto sorridente da mãe, molhado de lágrimas, de um súbito e estridente choro de criança.
Através do entorpecimento daquele cansaço, sentira a presença de Tristão a seu lado; a carícia terna dos dedos calosos em seu rosto, que a fez se voltar instintivamente para ele; a força tranqüila da mão que se fechava em torno da sua; e depois, o raspar duro da barba contra sua testa, quando Tristão a beijara.
Queria saber da criança. Por que alguém não lhe contava? Então, perdera-se no sono. Num sono sem sonhos.
Acordou aos poucos, com a sensação de uma dor funda nos músculos fatigados, enquanto a lembrança das últimas horas retornava.
A criança estava deitada num berço de peles espessas, ao lado da cama que Rianne compartilhava com Tristão, envolta em mantas quentes.
Ao puxar para trás a coberta de pele, ela descobriu uma mãozinha fechada em punho, depois a curva redonda de um rosto rosado. Lentamente, descobriu a cabeça da criança. Cabelos escuros formavam uma reluzente touca naquela cabecinha.
Os olhos. Rianne não vira os olhos do bebê. Seus dedos tremiam contra a pele quente e macia. A criança acordou, um punho minúsculo a socar o ar, logo seguido pelo outro.
Rianne estendeu as mãos para o filho. Enfiou uma por baixo da cabecinha, a outra sob o corpinho miúdo. A manta caiu. O ar frio fez a criança chorar, um choro forte, saudável, faminto. A face rosada tornou-se vermelha e se virou em sua direção.
O bebê esgoelou, punhos fechados, a boca a se contorcer. Então, abriu os olhos, que eram de um azul radiante e luminoso como o coração de uma chama, emoldurados por cílios escuros.
Tristão ouvira aqueles gritos potentes ao se aproximar do quarto. Então, o silêncio repentino o fizera apressar os passos. Quando empurrou e abriu a porta, estacou no mesmo instante.
Rianne estava deitada na cama, as peles macias enroladas em torno do corpo e puxadas sobre um dos ombros. E Tristão viu a curva de um seio, aquela boquinha delicada fechada no bico, os punhos pequenos a se agitarem; e um som tênue de sucção quando o bebê começou a mamar.
Os olhinhos se fecharam no instante em que Rianne se debruçou sobre o bebê e beijou-o com ternura na testa. Ela ergueu os olhos. Lágrimas escorriam por suas faces.
Tristão correu para o lado de Rianne e deslizou um braço em torno de suas costas, aninhando tanto a ela como ao bebê num abraço. Levou o indicador sob o queixo de Rianne e lhe empurrou a cabeça para trás a fim de receber seu beijo.
Foi um beijo longo, lento, profundo — um beijo de agradecimento por estarem juntos e a salvo, um beijo de esperança por todos os dias que viriam, e um beijo de promessa de todos os outros beijos que os aguardavam.
Aquela era uma única coisa que as Trevas nunca conquistariam, a maior força e poder de todos, o amor. A luz da lareira luziu pelas paredes, pelo chão e sobre os três seres que estavam ali, envoltos em amor. E reluziu na imagem do jaspe sangüíneo que, de repente, apareceu e cintilou na pequenina mão da criança.
Quinn Taylor Evans
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