Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
FILHA DE PRÍNCIPE
Elevou‑se no ar, brilhante e fresco àquela hora matinal, o tanger alegre do sino na velha igreja.
Quando se extinguiu no espaço a sua última vibração, a porta de madeira, envelhecida pelo decorrer dos anos, girou nos gonzos e debaixo do pórtico sombrio surgiu a figura gentil duma rapariguinha loura vestida de branco.
Era alta, de andar desenvolto, olhos dum azul claro e o rosto simpático dos Nórdicos.
Toda a sua pessoa emanava um perfume de frescura, de vida e de mocidade ardente. No entanto, o seu olhar naquele momento dir‑se‑ia nublado de tristeza.
Chegara o dia 18 de Julho e Gyssie de Wrisse, princesa de Ampolis, para comemorar os seus vinte anos, acabava de ouvir missa naquela igreja humilde duma antiga aldeia bretã.
Atrás dela, uma camponesa idosa tinha, por sua vez, transposto o pórtico do templo.
Parando um instante, para permitir à mulher que a alcançasse, a jovem olhou com gravidade aquele recinto fúnebre, cujos recantos tão bem conhecia.
‑ Parece que uma penumbra de melancolia paira hoje no ar ‑ murmurou, pensativa.
‑ Oh! princesa ‑ protestou a sua companheira ‑ o Sol cintila deslumbrante por detrás das nuvens...
E assim como nada existe que possa ofuscar o brilho da mocidade em flor, também nenhum pensamento deve ensombrar o teu rosto de vinte anos... Que linda idade!... Pensa antes no futuro, princesinha.
Gyssie não respondeu.
Uma sensação de isolamento se apoderara dela naquele dia festivo, em que ia ajoelhar‑se junto do túmulo da que morrera vinte anos antes, ao dar‑lhe a vida. Gyssie bem sabia que o único coração que batia em uníssono com o seu era o da velha bretã que a acompanhava. Mas poderia toda a ternura da querida velhinha preencher a falta dos beijos de uma verdadeira mãe?
O pequeno cemitério rústico, todo florido por entre as lajes como um jardim cuidadosamente tratado, estendia‑se em volta da igreja, segundo o uso secular das aldeias francesas.
Sem que fosse preciso consultarem‑se, a jovem e a sua companheira caminhavam juntas, pelos passeios estreitos, em direcção a um túmulo de pedra carinhosamente ornamentado, com flores frescas.
Ambas se concentraram, graves e silenciosas, diante da grande pedra fúnebre assente sobre o outeiro, e na qual estava gravada a seguinte inscrição:
AQUI JAZ
Madame Gys de Wriss,
Princesa de Ampolis, Duquesa de Marzon,
Nascida Valentina Chauzoles,
Falecida aos vinte‑e‑dois anos,
Confortada com os Sacramentos da Igreja,
Repousa em Paz.
Ao reler o nome adorado da mãe que não chegara a conhecer, os olhos de Gyssie encheram‑se de lágrimas. Invadiu‑a uma sensação que encerrava mais doçura que propriamente tristeza... uma saudade subtil, sem amargura... qualquer cousa indefinível, que exprimia a si própria, muito baixinho:
‑ Minha mãezinha... minha pobre e querida mãezinha de vinte‑e‑um anos... temos quase a mesma idade, ela outrora e eu presentemente... Vês, Mamie ‑ continuou, dirigindo‑se à camponesa ‑ caso estranho: quando penso em minha mãe ‑ e sucede isso tanta vez! ‑ idealizo‑a sempre uma rapariguita, quase uma criança como eu... Chego a ter a impressão de que foi uma irmãzinha que perdi... uma irmãzinha a quem teria amado muito!
‑ Tens razão ‑ respondeu a Bretã ‑... tua mãe era ainda tão nova, tão terna, tão confiada... era uma garota como tu, com efeito.
‑ Pareço‑me com ela, não é verdade?
A velhinha olhou intensamente a jovem e abanou a cabeça ao de leve:
‑ Pouco. Tens o mesmo sorriso e a mesma voz... Às vezes chego a julgar que estou ouvindo a minha querida senhora. Mas de feições não te pareces. És mais alta, mais loura... por certo como...
Interrompeu‑se subitamente. Foi Gyssie quem continuou com simplicidade:
‑ Como meu pai... E suspirou.
Seu pai! Ela não o chorava como um morto, visto que nada provava que tivesse falecido; mas em boa verdade não seria quase a mesma cousa?
Gyssie não o conhecia... nunca o vira.
Ele próprio parecia ignorar que tinha uma filha em França, fruto do seu casamento, uma filha que usava o seu nome e que todos os dias pedia a Deus que o enviasse para junto de si.
E Gyssie, entre o túmulo de sua mãe e o pensamento num pai que estava tão longe, suspirou de novo, porque se sentia duas vezes órfã.
‑ Ah! Mamie ‑ disse com ternura ‑ não tenho na vida mais ninguém do que tu. Resumes em ti as amizades que possuo... Tu e a madrinha foram verdadeiramente toda a minha família: mas desapareceu também! Hoje, resta‑me apenas a Mamie que me educou... a minha querida Mamie que nunca se separou de mim, e a quem, no entanto, nenhum laço de parentesco me prende.
‑ Fui eu quem te recebeu ao entrares neste mundo; não achas isto um laço bastante forte para que te considere como minha filha?
Espontaneamente, Gyssie curvou‑se para a ama e abraçou‑a; depois, num gesto indolente, pendurou‑se‑lhe no braço.
‑ Apesar de crescida, ainda gosto de me apoiar no teu braço, querida amiga. E enquanto estiveres a meu lado, nunca me sentirei verdadeiramente só.
Entretanto, deixavam o cemitério e metiam pela estrada. Em breve atravessaram a aldeia de Coatderv, que não é muito grande, e cujo velho nome bretão significa «mata de carvalhos», porque se estende como uma fita estreita até à extremidade de uma floresta de carvalhos já seculares.
A estrada coberta de grandes árvores, que vai até ao castelo de Kerlan, passava diante de uma casinha rústica, isolada do resto da aldeia e que parecia desabitada há bastante tempo.
Defronte deste casebre, a jovem obrigou a sua companheira a parar e disse:
‑ Entremos na Ty-Coz, Mamie... Visto que hoje é o dia do meu aniversário, quero rever o local onde nasci.
‑ De boa vontade, querida Gyssie ‑ respondeu a ama, comovida com este pedido ‑, Já previra o teu desejo e por isso trouxe a chave comigo... entremos!
A fechadura rangeu, mas foi preciso empurrar com bastante força as duas partes da porta, porque a madeira inchara com a humidade. Ty‑Coz, «a casa antiga», nem todos os dias recebia a visita da sua proprietária, Marie‑Yvonne Guillou, a ama que criara Gyssie, e a quem esta afectuosamente tratava por «Mamie».
No vasto e único compartimento do rés‑do‑chão o ar conservava ainda um leve cheiro a fumo e a fuligem molhada, peculiar nas casas rústicas, mesmo quando o fogão não é aceso há muito tempo.
‑ Já lá vão dezanove anos que está desabitada e, apesar das suas espessas paredes, Ty‑Coz principia a derruir ‑ observou Maryvonne, com um suspiro de saudade, ante os estragos que o tempo produzira.
‑ Quando eu for rica, Mamie, mandá‑la‑ei reconstruir, e tu verás então que linda casinha teremos aqui.
‑ Óh! ‑ protestou a ama ‑ Tenho esperanças mas é que muito em breve habites o palácio de teu pai, minha princesinha.
‑ Isso, porém, não impedirá que venha aqui descansar... Escuta bem, minha querida amiga: seja qual for o futuro que me esteja reservado, não esquecerei nunca o lugar onde nasci e onde cresci, junto das vossas duas afeições... Coatderv fala‑me da madrinha e de ti... recorda‑me os vinte anos que vivi feliz e sem preocupações... Oxalá que o resto da minha vida me reserve uma felicidade nunca inferior a este passado tão tranquilo...
‑ Que Deus te ouça, minha filha!
Pela porta aberta entrou um raio de sol que foi iluminar alegremente todos os cantos da casa, fazendo reluzir o nácar das conchas colocadas debaixo dos armários a servir de adorno, disposição que se encontra por vezes na Bretanha, nas casas arranjadas, a fim de que a parte inferior dos móveis apareça, limpa e asseada, à roda do chão de terra batida.
Gyssie sentou‑se em cima duma arca, feita de madeira de castanheiro, que, a um canto da chaminé, servia de banco, em frente do leito principal, que contemplava, pensativa.
‑ Foi então ali que nasci ‑ murmurou ‑, Foi ali que a minha mãezinha, alguns dias depois de eu ter nascido, adormeceu para não tornar a acordar!
De novo, uma comoção estranha se notava na sua voz pausada. Entretanto, o olhar triste fixou‑se no travesseiro, onde devia ter repousado a cabeça de sua pobre mãe.
‑ Minha mãe!... e até exalar o seu último suspiro, foi ali que dormiu ‑ continuou Gyssie, pensando em voz alta.
‑ Então, minha filha, afasta essas ideias sombrias.
Mas Gyssie não a ouviu. Continuava a olhar para a cama, que estava tapada.
‑ Ninguém mais ali se deitou, pois não?
‑ Não, com certeza! Nele se deitara uma princesa verdadeira... uma outra princesinha ali nasceu! Era um lugar sagrado!... Além disso, eu preferia a outra caminha... aquela ao fundo da casa... A ti, haviam‑te posto em baixo, no armário... São tão fundos os nossos armários, na Bretanha, que têm espaço suficiente para abrigar um nené...
Um novo silêncio se seguiu, ao fim do qual Gyssie voltou a cabeça e, com um estremecimento, olhou a mesa. Era uma mesa grande, comprida, na qual toda a família da casa costumava tomar as suas refeições diárias; mas essa mesa serve, também, segundo os hábitos da Bretanha, para colocar o caixão enquanto se vela o cadáver.
‑ Foi ali que ela esteve ‑ balbuciou Gyssie ‑ Exactamente defronte do armário em que eu estava. Dum lado a vida que principiava e do outro... Ah! como é doloroso morrer em plena juventude, deixando no mundo uma filhinha!...
‑ Então, então, Gyssie! Que pensamentos são esses? Quando uma flor desabrocha, outra seca... É assim também a nossa vida! Ninguém pode modificar as suas leis e é preciso resignarmo‑nos. Tudo quanto Deus faz, é pelo melhor!
Maryvonne falava com simplicidade, se bem que um tanto contrariada. O seu fatalismo bretão, doutrina que a obrigava a aceitar religiosamente e com conformação os acontecimentos bons ou maus, não lhe permitia compreender as reflexões, quase extraordinárias, daquela que havia educado.
Mas Gyssie não tinha nas veias sangue bretão, e a sua resignação, apesar de ter passado tantos anos naquela aldeia de costumes primitivos, não conseguia ser igual à da sua velha companheira.
No entanto, habituada desde a infância a respeitar a ama, não proferiu quaisquer outras palavras de desalento, esforçando‑se, pelo contrário, em se mostrar alegre.
‑ Minha mãe! É hoje, finalmente, que a vou conhecer... Tenho estado tão ansiosa por este dia, Mamie... Por certo que não te esqueceste!
‑ Mas não, evidentemente! ‑ respondeu Maryvonne, quase indignada com aquela suposição ‑, Vou cumprir imediatamente a promessa que fiz àquela que me achou digna da sua confiança... O dia de hoje é para ti, princesinha, um grande dia. Vais ler tudo quanto a nossa querida senhora escreveu pensando na sua filha... É um caderno grande... fotografias... certidões, jóias... Estou ainda a ouvir a tua pobre mãezinha, a dizer‑me numa voz já enfraquecida: «Maryvonne, confio‑lhe estas páginas que entregará à minha Gyssiezinha no dia em que completar vinte anos...». As últimas linhas foram escritas numa manhã em que supunha estar melhor... Chegou a fazer vários projectos, não conhecendo o seu estado... E, no dia seguinte, deixou de existir... Que Deus tenha a sua alma em descanso:
‑ E então, tudo quanto tens para me entregar está aqui, Mamie? perguntou Gyssie, ansiosa, depois dum silêncio doloroso.
‑ Não, minha filha. Quando a tua madrinha quis que fôssemos habitar o castelo, levei tudo comigo. O cofre lá está. Vamos agora para casa e eu to darei.
‑ Sim, vamos! ‑ disse Gyssie, um pouco triste. Em silêncio, chegaram à habitação.
Alguns instantes depois, Maryvonne entregava a Gyssie um pequeno cofre, simples, de madeira branca.
‑ O caderno da tua mãezinha está aí dentro... Não lhe toquei... Tal como as suas mãozinhas fracas o deixaram quando lhe atou o nó que reúne as páginas, assim se encontra. Lá estão também no fundo da caixa todos os documentos que te dizem respeito, bem como os da minha senhora, juntamente com as modestas jóias que possuía... Sabes, Gyssie, todas essas coisas me pareceram sagradas e dum grande valor para ti. Conservei‑as sempre preciosamente. Pertence‑te agora cuidar delas... Lembra‑te de que ninguém poderia reconstituir esses documentos, se levassem descaminho.
‑ Nada receies, minha querida. Estas relíquias são tão preciosas para ti, como para mim.
Gyssie pegou na caixinha de madeira com uma espécie de respeitoso ardor e, apertando junto ao peito o tesouro que acabava de lhe ser confiado, levou‑o para o castelo a fim de ficar absolutamente só no quarto, que, desde alguns anos, lhe tinha sido pessoalmente reservado, ao lado do que ocupava então sua madrinha.
Sentada diante do cofrezinho que estava sobre a mesa, ficou primeiro um instante sem se mover.
Dominava‑a uma dor pungente e, para a vencer, ficou de mãos postas, olhando o vácuo, numa espécie de oração muda.
Pela janela aberta de par em par, naquele dia lindo, a jovem avistava defronte de si o parque em toda a sua extensão, com a grande fila de carvalhos que datavam de há três séculos e que lhe limitavam o comprimento.
À sua direita, perto da grade de ferro da entrada, erguia‑se o pequeno pavilhão onde habitava com Maryvonne.
A casa principal, o pavilhão e o parque, resumiam a vida de Gyssie... os seus vinte anos nunca tinham conhecido outro horizonte.
E eis que do cofrezinho de madeira branca ia surgir um outro mundo ainda ignorado... uma família, quem sabe?... Pelo menos, muita coisa que nem sequer lhe poderia passar pelo pensamento!
Então, tristemente, com certa timidez, abriu a caixa.
Um modesto caderno de estudante, atado pelo meio com uma fita cor‑de‑rosa, surgiu‑lhe aos olhos angustiados.
Gyssie, com a mão tremente, pegou‑lhe com delicadeza.
‑ Ninguém o abriu depois que tua mãe deu o nó na fita ‑ disse Maryvonne.
E Gyssie, com o coração oprimido, inclinou‑se para o caderno e pousou os lábios sobre o nó inviolado.
Este caderno, em que durante tantos anos ninguém tocara, este caderno que apenas tinha conhecido o contacto das mãos maternas, conservava todo o seu magnetismo. Ele era realmente para Gyssie qualquer coisa da sua mãezinha... qualquer coisa que vivia, palpável... como se fosse um pedaço da sua carne em que tocasse.
‑ Minha mãezinha... minha pobre mãezinha de vinte anos...
Apesar de tanto ano decorrido, Gyssie tinha a impressão de estar a beijar os dedos maternos e duas grandes lágrimas rolaram pelo seu rosto pálido...
Gyssie, a princezinha órfã, pela primeira vez na vida entrava em contacto com os seus...
Entre a capa e a primeira página do caderno fora colocada uma folha com as seguintes palavras escritas numa letra trémula:
«Para que minha filha, a minha adorada Gyssie, no dia em que completar vinte anos possa conhecer a sua pobre mãe, que muito embora não tenha conseguido cuidar da sua infância na terra, de mais alto continuará a velar por ela e a amá‑la».
Gyssie, ao ler as primeiras linhas, parou. Com os olhos nublados pelas lágrimas, esforçava‑se por evocar, no fundo do seu pensamento, a figura da mãe desaparecida e de quem tinha uma fotografia ampliada, à cabeceira da cama.
No seu recolhimento silencioso, dir‑se‑ia que uma voz muito meiga, vinda do coração ‑ «uma voz parecida com a sua», como dissera Maryvonne ‑ lhe murmurava baixinho:
‑ Lê, agora...
Então, Gyssie dominou a sua comoção, limpou os olhos e leu esta espécie de testamento:
«17 de Fevereiro. ‑ É para ti, meu filho que ainda não conheço, que quero escrever a história da minha vida. Presentemente, estou só no mundo!...
«Nada possuo: nem pais, nem amigos, nem marido, que me acompanhem... Que tristeza!... Nada que me anime senão a tua frágil vida, meu filho, que sinto despertar dentro de mim... somente o meu grande amor por ti... já enche todo o meu coração!
«E, no entanto, às vezes chego a ter medo... Uma estranha angústia se apodera de mim... Se Gyss, o meu marido adorado, demorar muito a chegar... se o meu princepezinho (porque deve ser um rapazinho!) chegar antes do pai voltar... e se eu, demasiadamente fraca, viesse a faltar‑lhe?
«Mas não! Coragem!... Preciso de ter coragem!...
«Sinto‑me doente esta tarde. O sossego da noite impressiona‑me e é talvez por isso que neste instante penso em tantas coisas tristes.
«Mas não devo, não quero deixar‑me arrastar por tão dolorosos pressentimentos. «Devo e quero» ser forte, «por dois»!
«Já presenceei tanta coisa, tanto sofrimento, comigo e à minha volta, que me parece difícil acreditar na felicidade. Mas visto que triunfei da adversidade, até agora, saberei ainda suportar esta espectativa, esta solidão e todas as dificuldades que possivelmente surjam.
«O grande amor que tenho por meu marido e por meu filho dar‑me‑ão coragem. A redacção das páginas que vou escrever ajudar‑me‑á a passar estas longas horas de espectativa...
Valentine de Wriss, Princesa de Ampolis
Nasci em Lião, a grande cidade austera e calma, onde o sol, escondido pelo nevoeiro, não sorri todos os dias.
A minha infância também não conheceu sorrisos.
Filha única de meus pais que já não eram muito novos quando nasci, minha mãe teve a saúde então muito abalada e ficou, parece‑me, desde esse dia até ao seu falecimento, sempre doente. Tinha apenas dois anos quando essa desgraça sucedeu e, por isso, não consegui reter qualquer recordação.
A minha própria ama não ficou em casa. Foi mandada ir com o seu marido para uma herdade que meu pai possuía no campo, e confiou‑me aos cuidados deste casal.
Esta boa mulher estimava‑me bastante e pode‑se dizer que os únicos momentos felizes, gozados nos primeiros anos da minha vida, foram os que passei na herdade durante os meses de verão.
Isto para mim representava a liberdade, o sol, o ar puro. E acima de tudo era um pouco de ternura, grandes beijos e aqueles pequenos mimos de que tanto necessitava.
Em boa verdade, não me recordo nitidamente senão das últimas férias que passei junto desta boa mulher. Teria então os meus seis ou sete anos.
Devia ter chegado à herdade pelos princípios do verão, no tempo das cerejas. Estou a ver ainda as árvores do pomar carregadas de frutos vermelhos e deliciosos. Que bons momentos passei, naquele ano, com os dois filhos da Nounou ‑ minha irmã colaça ‑ Margarida e Gastão, o mais velho! Em Lião estava sempre sozinha na enorme casa silenciosa; nunca passou pela cabeça de meu pai que uma garotinha pudesse ter necessidade de pular, de rir e mesmo de gritar com outros da sua idade. Portanto, eu nunca brincara com quaisquer crianças.
Por isso, a herdade de Nounou me parecia um verdadeiro paraíso. Margarida era meiga e terna. Tinha mais um ano do que eu, o que lhe fazia tomar a sério o papel de irmã mais velha, se bem que me amimasse tanto como a mãe.
Gastão era mais turbulento, mas tinha uma imaginação fértil quando se tratava de inventar jogos.
Gostaria de voltar ao tempo destas recordações alegres... as únicas, infelizmente, que a minha memória pode evocar... Porém, os tempos felizes acabaram nesse ano, para não mais voltarem!...
‑ Nunca, em casa de minha ama, faltava o que quer que fosse. Havia sempre em abundância uma boa alimentação, leite quente, ovos frescos, excelente manteiga e frutas deliciosas.
Todas as manhãs me lavavam cuidadosamente e a minha roupa era muito bem tratada. Mas a boa mulher tinha muito que fazer, não podia vigiar‑nos todo o dia e, ‑ é certo ‑ à tarde, quando regressávamos das nossas expedições ao campo ou das nossas ascensões às árvores, estávamos mais ou menos cobertos de poeira e com os fatos rasgados. Os arbustos eram tão marotos!...
E foi assim que a infelicidade veio...
Um dia, ao fim da tarde, meu pai chegou de improviso.
Nounou estava na queijeira e o marido no palheiro.
Meu pai não encontrou, portanto, ninguém na herdade, o que, sem dúvida, o pôs logo de mau humor. Foi até ao pequeno bosque, onde, devido a uma ideia de Gastão, estávamos brincando aos selvagens.
Lembro‑me de todos os incidentes deste dia, que foi o último passado na herdade.
Tínhamos tirado os bibes para fazer turbantes e, metendo‑lhes fetos no meio, procurávamos imitar os ornatos de penas que usam na cabeça os Peles‑Vermelhas.
Foi nesta figura, com o vestido roto, com arranhões nos braços e a cara toda suja de amoras, que me apresentei ao senhor Juiz do Tribunal Civil.
Um monstro não lhe teria causado maior horror! Mas o horror de meu pai era frio, como tudo quanto provinha dele: manifestou‑se por um silêncio pesado como a atmosfera de tempestade, durante o tempo que na minha companhia se dirigia à herdade.
Senti nesse momento um grande peso no meu pobre coração. Um pressentimento parecia anunciar‑me que a minha frágil felicidade de criança ia terminar. Suponho mesmo que foi nesse minuto a minha primeira experiência do que pode ser um verdadeiro desgosto.
Instintivamente apavorada pela chegada imprevista de meu pai e pelo seu aspecto descontente, vagueava com tristeza à volta da casa onde Nounou e o marido estavam fechados com ele.
Ouvia a sua voz clara e cortante, alternando com as explicações confusas do casal.
Algumas palavras chegavam até aos meus ouvidos:
«Desarranjo, criança mal vestida, mal vigiada, doença, perigo...».
Depois houve um silêncio bastante longo, em seguida ao qual a ama me veio buscar.
Tinha os olhos vermelhos.
Levou‑me ao quarto e vestiu‑me o vestido dos domingos.
Não conseguia falar, mas abraçava‑me com força e eu olhava‑a muito inquieta, com grande vontade de chorar.
No entanto, quando principiou a fazer um embrulho dos meus vestidinhos não pôde reter as lágrimas, o que fez saltar também as minhas.
‑ Minha Vali... minha querida filhinha que vou perder ‑dizia ela, tomando‑me nos seus braços e apertando‑me de encontro ao seu coração de mãe.
A voz imperiosa de meu pai, chamando do fundo da escada, cortou as nossas expansões e obrigou‑nos a descer imediatamente.
Na sala, os dois homens conservavam‑se de pé. O rosto do juiz parecia inflexível e glacial, enquanto que na testa do caseiro se rincara uma ruga de tristeza.
Em cima da mesa estavam papéis espalhados e um livro de capa preta.
‑ Vem, Valentine ‑ disse meu pai.
Quis pegar‑me na mão, mas fugi‑lhe para ir refugiar‑me nas saias da caseira:
‑ Nounou! Nounou! Não me deixes ir embora! Não quero deixar‑te.
Todos soluçavam, e eu mais do que os outros.
Meu pai franziu as sobrancelhas ante os meus soluços, que pareciam uma censura à sua decisão...
Foi assim que deixei os únicos seres que me tinham tratado com ternura e feito conhecer a felicidade.
Nunca mais os tornei a ver.
Soube mais tarde que meu pai tinha ido nesse dia examinar as contas da herdade e que a sua indignação, por me encontrar esfarrapada e toda suja, coincidira com a verificação de algumas irregularidades nas contas.
Sempre supus que as ditas irregularidades eram involuntárias e que o pobre caseiro, quase analfabeto, não era responsável por elas, como sua mulher também não o era pelo meu aspecto selvagem.
Mas eram coisas que meu pai não perdoava!
Esta boa gente foi despedida. Puseram no seu lugar um outro feitor e nunca mais voltei à herdade.
Insisti talvez demais sobre este episódio da minha infância; primeiro, porque teve grande importância para mim e graves repercussões na minha pequena existência; segundo, porque demonstra, no seu dia mais típico, o carácter autoritário de meu pai.
Austero e duro para consigo próprio, era‑o da mesma forma, senão mais ainda, para os outros. Não me recordo nunca de ter visto no seu rosto uma manifestação de qualquer emoção, e se alguma vez sorria ‑ oh! mas raramente! ‑ era com amargura ou ironia.
Em toda a sua vida particular ou pública, para mim, como para toda a gente, ele era «o Senhor Chauzoles», Juiz do Tribunal Civil!
E está tudo dito...
Foi a partir deste momento, quer dizer, por volta dos meus sete anos, que comecei a compreender tudo quanto me faltava, e a sofrer, por isso, mais ou menos conscientemente.
Esta grande casa não era alegre! Dir‑se‑ia que a presença daquele homem grave e severo influía em tudo e sobre todos, com um peso de opressão.
As duas criadas que nos serviam estavam bem moldadas. Tinham tudo em ordem e o trabalho era feito automática e impecavelmente, se bem que uma já fosse idosa e sem agilidade.
Felizmente, Marine, a criada de quarto que agora se ocupava de mim, já estava na casa havia muito tempo. Conhecera minha mãe.
Foi talvez isto que contribuiu para se afeiçoar a este ninguém abandonado, que eu era nessa época. Não se atrevia a rir ou a cantar na nossa habitação, mas tratava de mim conscientemente e é a ela a quem eu devo o ter sido uma rapariguita sempre vestida com decência, elegante mesmo e cheia de saúde.
Marine, de facto, ocupou toda a minha infância abandonada. Amava‑a por si mesma e ainda porque me sabia contar histórias lindas. Escutá‑la‑ia durante horas consecutivas, porque Marine, quando queria, narrava coisas maravilhosas.
Na sua juventude, estivera em casa de um moleiro e o céu abençoara particularmente esta união. Tinham nascido dez filhos e era acerca das aventuras desta numerosa ninhada que Marine tinha assunto inesgotável. Dez filhos! Como isto era interessante para mim, pobre garota isolada que nunca via uma criança! Eram, segundo parecia, crianças bem educadas e as histórias de Marine tinham sempre um fim: «o bom exemplo», excepto quando se tratava do pequeno Marcel, que era o génio mau e o diabrete do rancho!
E no entanto era ele e as suas façanhas que me interessavam mais do que tudo.
Marcel era traquinas, maroto, insuportável, mas quanto não daria eu para conhecer um rapazinho assim com quem pudesse brincar... e mesmo com quem tivesse, de quando em quando, as minhas escaramuças!
Foi por esta época que meu pai interveio mais uma vez na minha existência, dizendo que era tempo de principiar a minha instrução.
Naturalmente, não me podia mandar para uma escola da Câmara; toda a sua fidalguia e as suas elevadas pretensões burguesas se opunham.
Por que motivo não me internava?
Nunca o soube e este ponto foi para mim um profundo mistério, porque não suponho que fosse para ele um prazer ter‑me junto de si.
Escolheu um colégio particular, tal como poderia escolher o senhor juiz Chauzoles: quer dizer, o colégio mais apertado, o mais sombrio e o mais severo da frígida cidade de Lião. Foi, no entanto, ali, que passei os melhores momentos da minha adolescência.
Havia o contacto com pessoas novas, com raparigas da minha idade. E a emulação aumentava o meu interesse pelo estudo.
Existia também a atracção da curiosidade de um cérebro de criança privada de todas as distracções. Adorava os livros com uma verdadeira paixão e, logo que soube ler, lancei‑me com entusiasmo na leitura dos que vinham parar‑me às mãos.
Felizmente, esta inclinação não desagradava a meu pai, e como a sua biblioteca austera não continha nenhuma obra frívola ou perigosa para a juventude, nunca pensou em me proibir o acesso, pelo que lhe estou verdadeiramente reconhecida.
No entanto, os anos foram decorrendo e terminei os meus estudos.
Acabava de obter o meu diploma máximo. O curso não ia mais além e já antevia com terror os meses que iam suceder‑se e aquela casa triste onde ficaria prisioneira junto dum pai cada vez mais sombrio, taciturno e severo.
Tínhamos chegado quase a não trocar palavra.
As refeições que tomávamos a sós eram rápidas e silenciosas. Meu pai desdenhava, sem dúvida, encetar uma conversa séria com uma «garota», e eu, completamente paralisada por esta frieza, não sentia coragem para fazer qualquer tentativa.
Além disso, não tinha amigas. As pequenas que conhecera no curso nunca tinham sido mais do que companheiras de trabalho a quem não via fora das horas das aulas. Enfim, a atitude glacial de meu pai afastara de nossa casa aquelas que se tinham aventurado a visitar‑me.
Por outro lado, eu não tinha licença para sair sozinha.
Meu pai autorizou‑me, contudo, a ir apresentar os meus cumprimentos de despedida à senhora Harland, a directora do meu colégio. Conhecia‑a já há tempos, mas muito imperfeitamente.
Nas aulas, por vezes, parecia majestosa e quase grave. Fixava‑nos com um olhar profundo, perscrutador, que nos intimidava um pouco; eu não sentia coragem para lhe dirigir a palavra.
Nesse dia, porém, recebeu‑me com uma cordialidade que me surpreendeu agradavelmente. Já era uma «das mais antigas» isto é, mais propriamente uma amiga do que uma aluna.
Falou‑me dos meus êxitos nos exames e na satisfação que dera aos meus professores; com efeito, sempre me tinha distinguido como boa aluna.
‑ Fazia o trabalho sem sacrifício ‑ respondi com sinceridade ‑ e o estudo era a minha melhor distracção.
Senti o seu olhar profundo fixar‑se em mim; a minha antiga directora compreendia mais do que aquilo que eu lhe dizia.
Perguntou‑me à queima‑roupa:
‑ E agora, que pensa fazer, Valentine?
Uma angústia infinita devia ler‑se nos meus olhos porque, sem me dar tempo a responder, acrescentou numa voz muito meiga:
‑ Na sua idade, minha filha, é preciso arranjar uma ocupação útil, um objectivo na vida. A conclusão dos estudos deixa um grande vácuo, em geral; é necessário preenchê‑lo... Pensei numa coisa para si...
‑ O quê, minha senhora?
Ela sorriu da pressa com que lhe fiz a pergunta e explicou:
‑ Uma das minhas amigas fundou aqui, o ano passado, sob o patrocínio da Cruz Vermelha, um dispensário‑escola onde as meninas possuidoras de uma educação esmerada, como a Valentine, vão fazer os seus estudos de enfermagem... O nosso país tem necessidade de mulheres que saibam cuidar de crianças e de doentes, porque as nossas instituições públicas nem sempre são suficientes para o fim que têm em vista...
O meu coração começou a bater, cheio de esperança. O meu rosto iluminou‑se. Iria ela dar uma finalidade à minha pobre vida?
Então continuou:
‑ Agradar‑lhe‑ia, Valentine, ocupar assim as suas horas vagas?
‑ Oh! sim!
E não consegui dizer mais nada; estava comovida e encantada. A directora recomeçou:
‑ Valentine vai fazer dezoito anos. Três anos de estudos ocupá‑la‑ão enquanto não atinge a maioridade. Se estes cursos a interessarem, posso facilitar‑lhe as formalidades de admissão. É preciso obter o consentimento de seu pai.
Toda a minha alegria se evaporou.
‑ Então é impossível ‑ murmurei, desiludida.
‑ Porquê? Estou certa de que o senhor Chauzoles não mo recusará. Permite‑me que eu trate deste assunto, Valentine?
‑ Oh! minha senhora! Seria capaz disso?! Sem reflectir, num gesto espontâneo, lancei‑me
nos braços desta excelente senhora, em quem acabava de descobrir, subitamente, um coração generoso e delicado.
A intervenção da senhora Harland deu os melhores resultados.
A sua idade, a sua situação respeitada por toda a gente, talvez mesmo as Palmas da Academia que lhe guarneciam o peito, tudo inspirou confiança a meu pai, que já a conhecia há muito tempo. Deu, portanto, o seu consentimento.
Era uma vida nova que ia começar para mim! uma verdadeira libertação!... Estes três anos foram os mais agradáveis que vivi em Lião, visto que eles me afastaram da casa austera de meu pai.
A casa? Pouco lá vivia agora!
Logo de manhã, partia sozinha para o Dispensário, porque Marine já não se arrastava atrás de mim como uma sombra débil.
Lembro‑me da alegria com que caminhava nas frescas manhãs de outono! Sentia a satisfação dum prisioneiro que recupera a liberdade.
Em casa, não via meu pai senão às horas das refeições.
Estava às vezes tão entusiasmada pelo meu trabalho e pela excitação que me provocava a minha nova vida, que chegava a falar‑lhe das minhas ocupações, dos meus projectos e até das minhas ideias.
Ele olhava‑me então, admirado, como se estivesse surpreendido por ouvir uma garota falar‑lhe com o ar de pessoa adulta. No entanto, respondia‑me; porém, fazia‑o com um ar tão superior que me gelava o entusiasmo e de novo o silêncio reinava entre nós.
Mas isso não me entristecia. Logo que o almoço acabava, largava como uma seta para o meu querido Dispensário.
Os dois últimos anos pareceram‑me ainda melhores do que o primeiro. Foram, acima de tudo, mais libertadores e habituaram‑me a pensar e a proceder por mim própria.
Fiz o primeiro estágio num hospital longe do centro de Lião e, durante três meses, não pude ir almoçar a casa.
A senhora Harland teve que intervir de novo junto de meu pai, a fim de eu poder ir comer a uma cantina universitária onde se encontravam os estudantes de ambos os sexos.
Todos eram bons camaradas. As refeições não eram afamadas, mas o ambiente era tão alegre, tão cordial, que nem sequer pensava no que engolia. Que diferença fazia da sumptuosa e triste casa de jantar, onde passara horas terrivelmente aborrecidas!
O regresso a casa, à tarde, depois destes três meses com almoços na cantina, pareceu‑me ainda muito mais doloroso.
Porém, a minha resolução estava tomada: não ficaria em casa! Logo que obtivesse o meu segundo diploma, faria como algumas das minhas colegas: iria para o hospital escolar, onde poderia ficar como interna e onde teria direito a casa, por minha vez, como vigilante. Foi isto o que expus, com coragem, a meu pai, no dia seguinte ao do meu último exame, que fizera com brilhantismo.
Escutou‑me com o seu ar glacial e, quando terminei, respondeu‑me num tom que não admitia réplica:
‑ Não darei o meu consentimento para essa nova fantasia.
‑ Porque me recusaria, meu pai, o que me tem concedido até agora? ‑ disse eu, fazendo um grande esforço para vencer a minha timidez.
‑ Até agora, tratou‑se de estudos feitos sob a direcção da senhora Harland, que conheço. Uma vez que os estudos te agradavam, não quis privar‑te deles. Interessava‑te obteres o diploma, consenti. Uma rapariga da nossa sociedade pode fazer um curso, mais ou menos extravagante, mas é inadmissível que «utilize» os diplomas assim obtidos. Não autorizo que sejas enfermeira num hospital!
E com o sorriso amargo e sardónico que já por vezes lhe vira, exclamou:
‑ Enfermeira!... A filha dum juiz do Tribunal Civil de Lião! Enfermeira!... Não querem ver isto?!
Fiquei apavorada com a vida que me esperava. O receio de passar uma existência solitária deu‑me audácia para discutir a sua recusa.
‑ Meu pai, sobre este assunto nada há a fazer! É a minha vocação; quero ser enfermeira.
‑ A tua vocação! ‑ gritou ele, encolhendo os ombros com violência ‑ Sabes tu, por acaso, o que é uma vocação, pobre pequena?
Entretanto, erguera‑se.
Com as duas mãos apoiadas sobre a borda da secretária, dominava‑me com a sua elevada estatura, e articulou lentamente, frisando bem cada sílaba:
‑ A tua vocação é ficar em casa de teu pai e aí esperares o marido que ele te escolher. A qualquer outro projecto absurdo responderei não! não! e não!
Senti um desespero e uma revolta terrível crescer em mim. Tive de cerrar os lábios para evitar qualquer palavra menos respeitosa para aquele que, apesar de tudo, era meu pai.
‑ Nunca! Nunca! ‑ repetiu, cheio de cólera. Tive a coragem suficiente para nada responder e sair do escritório sem voltar a cabeça. Lá fora, rompi em soluços...
A situação, para mim, apresentava‑se bastante difícil. Depois da cena que tivera com meu pai, fui visitar a senhora Harland.
Resolvera, visto que faria vinte‑e‑um anos quinze dias depois, esperar a data em que completasse a maioridade e saltar sobre a proibição intransigente que me tinha sido feita.
Falei desta resolução à senhora Harland, que meneou a cabeça e me dissuadiu dessa desobediência filial.
Não podia compreender até que ponto a casa paterna se me tornava intolerável e procurava convencer‑me a renunciar aos meus projectos.
‑ Pense, minha filha, na situação que ia criar para com seu pai; seria o afastamento completo, as vossas duas vidas separadas, a velhice dele solitária e o seu próprio futuro comprometido!
‑ É meu pai que assim o deseja ‑ respondi com o coração oprimido ‑ Nada mais quero do que amá‑lo, mas ele repele a minha ternura e o meu desejo de submissão.
‑ Tudo isso é lamentável, minha filha, e não vejo forma prática de arrumar o caso. Pessoalmente, não posso ajudá‑la contra seu pai. Além disso, é inteiramente impossível entrar no hospital para onde deseja ir, visto que ainda ontem me afirmaram que não há nenhum lugar de vigilante que esteja vago.
Foi o golpe mortal e estive a ponto de perder a coragem. No entanto, recobrei ânimo, tal era o meu grande desejo de trabalhar. Tudo seria preferível à vida naquela casa sombria, junto daquele homem tão ríspido, que não possuía coração de pai.
‑ Reflectirei ‑ respondi com calma aparente. As minhas reflexões, porém, estavam feitas. No entanto, para poder proceder, era necessário aguardar a famosa maioridade.
As crianças que vivem felizes junto de seus pais não conhecem as esperanças e os pensamentos libertadores que a palavra «maioridade» representa para aqueles que vivem oprimidos. Escrevo estas linhas em 1916, mas estou certa de que, dentro de quinze ou vinte anos, as novas gerações conhecerão deveres filiais menos cruéis e menos tirânicos.
Estava perfeitamente decidida a ir para Paris; por isso, durante os quinze dias que me era preciso esperar, fiz, às escondidas, a minha pequena mala e tomei todas as disposições para a partida.
Pouco dinheiro tinha de meu, visto que meu pai, no decorrer da minha infância, só me dava todas as semanas pequenas quantias, nas quais não tocara.
A senhora Harland ficou chocada com a minha resolução quando a pus ao corrente das minhas intenções. Não podia, abertamente, dar‑me razão contra meu pai; mas isso não a impedia de lastimar que eu tivesse ficado reduzida à extremidade de uma fuga.
No entanto, não querendo deixar‑me apenas com as minhas possibilidades, deu‑me um cartão com uma boa recomendação para a directora do hospital franco‑americano, a quem conhecia particularmente, e foi esta senhora que me arranjou colocação, pouco tempo depois de eu ter chegado a Paris.
Antes de me afastar de Lião e da casa onde se tinha passado toda a minha infância, escrevi a seguinte carta a meu pai:
«Meu pai,
«Vejo‑me obrigada a deixá‑lo, com o coração oprimido por partir sem o seu consentimento. Estou desolada por ser obrigada a proceder contra a sua vontade, mas receio continuar fazendo a vida inútil que até agora passei em Lião.
«Tenho vinte‑e‑um anos, e muito respeitosamente lembro a meu pai que já estou em idade de poder dispor do meu destino. O meu maior desejo é criar uma situação que me permita fazer face às minhas necessidades. Teria sido mais feliz se fosse meu pai quem me tivesse facultado os meios de a obter. Porém, recusou‑se a ajudar‑me. Não posso sacrificar a minha vida, nem aquilo que considero como uma vocação imperiosa, à sua vontade...
«Parto lealmente, sem ideias reservadas, com o fim de obter um trabalho honesto. Sei o que devo à honra do nosso nome, e juro‑lhe que nunca terá de corar do procedimento daquela que é, e sempre será, a sua filha dedicada e afectuosa.
«Abraço‑o com ardor, meu pai, e nunca o esquecerei.
Valentine.
Juntei a morada do hospital para onde ia trabalhar, em Paris, e parti.
Já estava instalada, havia alguns dias, nas minhas funções, no hospital franco‑americano. O serviço agradava‑me. À minha volta, tudo era novo, limpo e bem organizado.
Haviam mesmo arranjado para as enfermeiras uma espécie de pensão oficial, onde tínhamos os nossos quartos alegres e uma sala de reunião para descansarmos nas horas de repouso.
Tudo estaria portanto muito bem se não fosse a ansiedade em que me encontrava por não receber uma resposta de meu pai à minha carta de despedida.
Apesar da rispidez e da indiferença que sempre me testemunhara, era meu pai, e eu nunca deixara de lhe ser afeiçoada.
Ao mesmo tempo não esquecia o mandamento da lei de Deus que diz: «Honra teu pai e tua mãe». Não se tratava de uma questão de amor, porém, instintivamente, gostava de meu pai e desejava a sua estima.
(') Para boa compreensão da situação, é preciso termos em linha de conta que estas cenas se passaram em 1914, com o estado de espírito de antes da Guerra, quando nas boas famílias francesas não se admitia que uma rapariga fosse trabalhar para fora de casa de seus pais.
Por outro lado, as suas funções como juiz no Tribunal Civil faziam‑no um homem respeitável; a sua opinião não me era, portanto, indiferente.
Enfim, por austero e ríspido que meu pai fosse, materialmente nunca me faltara nada desde o meu nascimento, tendo, por isso, todo o direito ao meu reconhecimento por esse benefício.
Era por todos esses motivos que aguardava a sua resposta com tanta inquietação.
Como os dias se sucediam e não chegavam as notícias, tomei a deliberação de escrever à senhora Harland. Estava absolutamente certa da sua afeição para lhe pedir que fosse visitar meu pai, a fim de lhe falar a meu respeito, de lhe explicar a minha situação perfeitamente regular e honrosa, e, acima de tudo, porque queria saber o que ele pensava acerca da minha partida.
Esta excelente senhora respondeu‑me alguns dias depois. Não hesitara um só instante em fazer esta visita, que, no entanto, representava um verdadeiro sacrifício.
É evidente que mais penoso ainda era o facto de ter de me transmitir as palavras de meu pai.
Logo às primeiras frases da senhora Harland, o juiz interrompera‑a:
‑ Não me fale a esse respeito, peço‑lhe ‑ respondera‑lhe com frieza ‑, Esse acontecimento é a infelicidade e a vergonha da minha vida. Queira poupar‑me qualquer alusão.
E como esta senhora, sem perder a coragem, apelasse para os sentimentos naturais dum pai para a filha, ele gritara‑lhe com voz terrível:
‑ Não tenho filha! Morreu para mim! E aquela que ainda se atreve a usar esse título, que nunca mais volte a Lião; a minha casa e o meu coração estão‑lhe fechados para sempre.
A senhora Harland terminava a sua carta com palavras afectuosas e de alento, destinadas a suavizar este novo golpe que me vibrava a autoridade paterna.
Não conseguiu, contudo, evitar‑me todo o seu rigor e com isso senti um profundo desgosto.
Durante muitos dias esta ideia perseguia‑me dolorosamente...
Foi a partir deste momento que me animei, não somente a manter a minha independência pelo próprio trabalho, como também a elevar‑me, mercê dum grande esforço, até uma boa, senão brilhante, situação.
Projectei aprender medicina e doutorar‑me.
Ser apenas enfermeira já não me contentava. Desejava, material e socialmente, uma posição importante.
A minha ambição exigia agora que meu pai fosse mais tarde obrigado a confessar que eu era a alegria e a glória da sua vida... e não a sua vergonha, como se propunha julgar presentemente.
Enquanto esperava, informava‑me o melhor possível acerca dos estudos que desejava empreender.
E como o ano lectivo já principiara e não era possível matricular‑me, antes do ano seguinte, preparava‑me para um trabalho encarniçado, no intervalo das minhas horas de enfermagem.
Se insisto neste projecto, que não se chegou a realizar, é porque ele teve, apesar de tudo, uma grande influência nos acontecimentos que se seguiram e que preencheram a minha vida até ao momento em que estou escrevendo estas linhas.
Foram estes estudos que me puseram em contacto com um jovem médico no hospital, o assistente do cirurgião, e foi por seu intermédio que conheci o principal actor do drama da minha vida.
O acaso quis, com efeito, que encontrasse um dia o doutor Maudoire, a quem acima faço referência, numa biblioteca pública.
Naturalmente, trocámos algumas palavras. Ele aconselhou‑me, principalmente, sobre a escolha de livros. Dei‑lhe parte dos meus projectos.
Interessou‑se pelo caso e isto criou entre nós um laço de boa camaradagem.
A partir deste momento, guiou‑me nos meus estudos, indicando‑me os livros que devia consultar e acompanhou‑me à biblioteca da Faculdade, onde não me teria sido possível entrar se ali fosse sozinha.
Apreciei muitíssimo esta amizade masculina, que era absolutamente fraternal.
René Maudoire não tinha nenhuma pretensão a ser um bonito rapaz. Era talvez feio; mas, muito inteligente, muito absorvido pela sua vida profissional, não pensava sequer em «namoriscar».
Eu, também não.
Além disso, os nossos encontros eram bastante raros e quase sempre por acaso.
Foi assim que uma vez, num dia de saída em que aproveitara a minha liberdade para ir consultar uma obra de Saint‑Geneviève, me cruzei no boulevard Saint‑Michel com René Maudoire, que parou para me cumprimentar.
Não estava só.
Acompanhava‑o um rapaz alto e louro.
O assistente apresentou‑mo. Ouvi um nome de consonância estrangeira que mal compreendi naquele dia: Gys de Wriss.
O amigo de Maudoire inclinara‑se com a maior gentileza e pousara os lábios na ponta dos dedos que eu lhe estendera.
Depois, da mesma forma como se pede um favor, convidou‑nos a tomar um refresco em qualquer dos cafés do boulevard.
Devo dizer que este duplo gesto de cortesia me subjugou. O recém‑chegado revelava‑se um homem de sociedade e achei‑o profundamente simpático.
Por seu lado, parecia discretamente encantado por eu ter aceite o seu convite.
Esta primeira entrevista, se bem que breve, produziu‑me uma excelente impressão.
Com o decorrer do tempo, encontrei Gys de Wriss cada vez mais frequentemente.
Quase nunca encontrava René Maudoire sem este amigo; era de crer que nunca se separavam. Mais tarde aconteceu‑me encontrar de Wriss só, no caminho que levava.
Teria sido o acaso o único responsável?... Não o creio.
Com o tempo muito bem marcado pelo serviço do hospital, as minhas horas de saída também eram regulares; não era, portanto, difícil encontrar‑se «por acaso», no meu caminho, naqueles momentos.
De princípio não eram senão simples encontros... um cumprimento, algumas palavras trocadas... Depois, um dia, Gys de Wriss perguntou‑me se não seria indiscreto por me acompanhar. Dissera isto com tal correcção que não tive motivos para recusar.
Sentia, além disso ‑ confesso‑o com toda a sinceridade ‑ um grande prazer com a sua companhia, e devo dizer que esta satisfação não era absolutamente igual à que me causavam os encontros com René Maudoire.
Ah! na verdade, a presença de Gys perturbava‑me de forma diferente!
Em primeiro lugar, Gys era um bonito rapaz. Talvez mesmo o achasse mais bonito do que na realidade parecia, porque a sua beleza não estava tanto na perfeição das feições, como no seu olhar claro, no sorriso fascinante e na sua alta estatura que dava a impressão de força, de agilidade e de destreza.
Por vezes, surpreendia‑me a olhá‑lo sem nada dizer, e por vezes também sentia o seu olhar pousar profundamente no meu.
Então, estremecia, deliciosamente impressionada; esta sensação era nova para mim e muitas vezes sonhava com ela longamente, à noite, antes de adormecer.
Até aqui, nunca sentira amizade por homem algum. Na minha infância e na minha adolescência de isolada não pensara nisso. E mesmo, mais tarde, durante os meus estudos no dispensário, ficara de tal forma embriagada com a semi‑liberdade das minhas idas e vindas que o coração não desejava qualquer outra coisa.
Chegara aos meus vinte‑e‑um anos sem ter conhecido um namoro ou devaneio amoroso.
René Maudoire ‑ já o disse ‑ era um camarada sério e acima de tudo inteligente; nunca vira nele um homem.
Um homem...
Gys de Wriss, esse, era um homem, o primeiro que reparava em mim... e tão interessante, tão sedutor!
Agora, cada um dos nossos encontros iluminava‑me a alma e, no intervalo das nossas entrevistas, surpreendia‑me a pensar nele.
Apesar da minha inexperiência, compreendi bem depressa qual a natureza das minhas impressões: amava Gys de Wriss!
Fiquei ao mesmo tempo encantada e inquieta por experimentar semelhante sentimento...
Mas na mesma ocasião fiz uma outra descoberta.
Descobri... ‑porque não hei‑de confessar nestas páginas, onde sou absolutamente sincera?...‑ descobri que era bonita!
O olhar de Gys, que notava fitar‑me numa espécie de êxtase, levara‑me a interrogar escrupulosamente o espelho.
Foi para mim uma revelação.
Nunca me dera ao trabalho de observar o meu olhar brilhante e as minhas faces rosadas, esta boca onde um sorriso de felicidade parecia flutuar continuamente; até os meus cabelos pareciam mais finos, mais macios do que outrora; tinham reflexos dourados que eu lhes desconhecia.
Era bonita!... Que perspectiva maravilhosa!
Com que admiração verifiquei tudo isto!
Não havia aqui, posso dizê‑lo, sombra de vaidade estúpida ou mesquinha. Estava ingenuamente contente, porque assim podia agradar a Gys e ser amada por ele.
As minhas esperanças não iam mais além; ser amada por Gys bastava para me considerar feliz, visto já o amar! Nem sequer pensava em duvidar do amor que lhe consagrava! Não lhe dispensava toda a minha confiança? Não estava todo o meu pensamento cheio da sua imagem?
Contara‑lhe pouco a pouco toda a minha vida, o que nunca pensei fazer a qualquer outra pessoa.
Gys conhecia toda a tristeza que ensombrava a minha infância e a luta terrível que tive de sustentar para obter a minha liberdade, trabalhando.
Um dia, disse‑lhe quais eram os meus sonhos para o futuro, os meus projectos, as minhas ambições. Fitou os meus olhos profundamente, sorrindo com doçura.
‑ Valentine ‑ disse‑me numa voz que não lhe conhecia ‑, tem grande empenho em fazer os seus estudos de medicina?
‑ Mas sim, certamente ‑ respondi.
E logo em seguida compreendi que não estava bem certa que isso... que isso fosse, sobretudo, a principal preocupação da minha vida.
Gys continuava a olhar‑me. Disse‑me então, muito baixinho:
‑ Não haverá um lugar para o amor, na sua vida, Valentine?
E mais baixo ainda, acrescentou:
‑ Não ama, então, ninguém?
Olhava‑o como se estivesse hipnotizada. Não queria confessar, nem mentir... e os meus olhos estavam mergulhados nos seus... e foram eles que falaram por mim.
Foi nesse dia que Gys me confessou o seu amor... disse‑mo em termos e com argumentos tais que fiquei absolutamente convencida...
Esta hora ficou sendo a mais feliz, a mais bela de toda a minha vida.
Acreditei verdadeiramente que ia subir ao Céu e obter a felicidade suprema, visto possuir o amor daquele a quem adorava!
Passei a noite seguinte numa espécie de sonho alucinado e maravilhoso; não sei mesmo se cheguei, na verdade, a dormir! Não o creio.
A divina canção da mocidade e do amor ecoava no meu coração. Poderá acaso existir maior ventura do que amar e ser amada?
Depois, repentinamente, toda esta exaltação caiu com o sopro frio da razão. Quando evoquei a lembrança de meu pai, o nosso amor pareceu‑me um amor sem esperança.
Além disso, Gys desejava casar comigo?...
Falara‑me do seu amor e isto fora o suficiente... naquele momento estava incapaz de pensar em qualquer outra coisa.
Mas, agora que podia reflectir, bem sabia que nunca aceitaria um amor que não fosse consagrado pelo casamento. Esta forma de pensar devia‑a à minha consciência e também àquela promessa que fizera, a mim própria, de nunca dar um passo em falso, como resposta às imprecações de meu pai.
Mais do que qualquer outra, a filha do juiz Chauzoles, acusada de ser «a vergonha da família», devia ser absolutamente irrepreensível.
O casamento, então? Como seria possível?
É certo que já era maior; mas até aos vinte‑e‑cinco anos(1) não podia casar‑me sem consentimento de meu pai, e eu sabia que ele mo recusaria.
Tinha, evidentemente, o direito de fazer as «notificações respeitosas»; mas seria perder tempo e necessitava de grandes formalidades; além disso, a acção, em si própria, afigurava‑se‑me odiosa. Nunca chegaria a tais extremos.
Foi‑me preciso explicar todas estas coisas a Gys no dia seguinte.
*(1) Legislação anterior à Guerra, em França.
Não queria que houvesse entre nós uma situação equívoca.
Ele escutou‑me com toda a atenção. Não protestou nem se revoltou contra a minha decisão, o que me chocou um pouco, e deu motivo a que ficasse inquieta por ter obtido uma vitória tão fácil. Dar‑se‑ia o caso do amor de Gys ser menos intenso do que julgara?
Aquele a quem amava parecia submeter‑se com tanta tranquilidade a todas as minhas explicações!
Porém, logo que terminei, Gys pegou na minha mão e meigamente, quase solenemente, murmurou:
‑ Minha adorada noivazinha, aguardarei tanto tempo quanto for necessário!
Era uma promessa maravilhosa que me enterneceu, e cuja emoção me impedia de falar. Quase cheguei a ter remorsos da minha dúvida, em face deste amor tão forte para arrostar os obstáculos e tão seguro para ser paciente.
Por isso, logo que consegui falar, insisti, de forma a que ele compreendesse bem a situação:
‑ Já pensou bem, meu querido noivo, em todos os obstáculos que se opõem ao nosso casamento? Eu disse‑lhe que...
‑ Bem sei ‑ interrompeu Gys ‑, Não é completamente livre! Pois bem, esperaremos. Há‑de chegar o dia em que as intimações não serão precisas... Esperaremos... Não falemos mais disso, querida.
E com um beijo tapou‑me a boca...
O dia imediato não era o meu dia de saída; não estava livre senão durante a hora a seguir ao almoço. Mas o meu noivo insistira de tal forma em me tornar a ver, que prometi consagrar‑lhe aqueles instantes.
No lugar habitual esperava‑me com um táxi.
O carro fez‑nos atravessar o Bosque de Bolonha e, alguns instantes depois, apeávamo‑nos defronte do gradeamento de Bagatelle.
O velho parque, com as suas árvores centenárias, oferecia ao sol ainda brilhante o encanto da sua folhagem dourada pelo Outono. Caminhávamos numa apoteose de folhas purpurinas.
Desde a véspera, quando deixara Gys, ficara apreensiva, sentindo ao mesmo tempo o desejo imenso de o tornar a ver. Mas logo que o nosso olhar se encontrou de novo, logo que ele prendeu nas suas as minhas mãos, esqueci todos os sentimentos que não traduzissem uma alegria profunda.
‑ Trouxe‑a para aqui, minha querida noiva ‑ disse, inclinando‑se ternamente para mim ‑ porque este instante encerra um misto de felicidade e de importância, para nós. Quis ter um quadro lindo a cercar a promessa do nosso casamento.
‑ Estamos noivos, Gys. Tem a minha palavra!
‑ Sim, querida Vali: mas quero entregar‑lhe hoje a prova deste compromisso, o símbolo do nosso amor...
Parámos defronte de uma grande cascata. Ternamente apoiada no braço dele, deixava‑me embalar pela sua meiga voz, que a canção harmoniosa da água parecia acompanhar em surdina.
‑ Dê‑me a sua mãozinha, querida ‑ prosseguiu Gys muito baixinho.
Pegou na mão que eu lhe estendia, descalçou‑me a luva, e beijou‑ma fervorosamente. Depois, enfiou no meu dedo trémulo um aro de ouro com uma pérola branca: o anel de casamento.
Estava demasiadamente comovida para poder articular uma palavra e Gys ficara tão perturbado como eu. Um grande beijo disse tudo.
De mãos dadas, profundamente impressionados com a gravidade do momento em que acabávamos de decidir todo o nosso futuro, andámos ainda alguns minutos à roda dos canteiros verdes.
‑ Será minha para sempre, querida Vali‑murmurou Gys depois dum prolongado silêncio.
‑ Para toda a vida... Só sua, juro‑o ‑ prometi solenemente.
Os seus dedos entrelaçados nos meus pareciam querer materializar os nossos juramentos... o laço moral tomava forma pela pressão física.
Mas os nossos minutos estavam contados. Pelas áleas cobertas por um tapete vermelho e dourado depressa chegámos à saída do Bosque, onde o táxi nos esperava.
Um quarto de hora mais tarde, voltava a ser a enfermeirazita aplicada, vestida de pano branco, com a cabeça metida numa touca, exactamente como na véspera. Mas não o era senão na aparência: no meu coração havia luz... uma felicidade sem limites, inigualável!
Que sensação tão feliz!
Os dias que se seguiram, vivi‑os num sonho. Tinha a impressão de que estava desdobrada; o coração e o pensamento não deixavam Gys; no entanto, continuava a tratar dos doentes com a mesma atenção escrupulosa.
Estou certa de que nem um único se poderia queixar da mais leve negligência... É possível mesmo que a cintilação da minha felicidade lançasse sobre eles eflúvios vivificantes.
Seria uma ilusão motivada pelo meu próprio entusiasmo? Nesses dias parecia‑me que bastava a minha presença junto das suas camas para se sentirem melhores.
Devo, porém, confessar, que se não descurara os meus doentes, por outro lado quase que não convivia com as outras enfermeiras. Todas as horas de descanso eram consagradas ao meu noivo.
Além disso, não encontrara no meu novo hospital a atmosfera de franca simpatia que existia no nosso pequeno grupo de Lião e, desde que chegara a Paris, habituara‑me a sair sozinha.
A minha camaradagem com Maudoire criara‑me uma certa frieza da parte das outras enfermeiras; agora, então, que viam um homem esperar‑me à saída do hospital, era mais um motivo para se afastarem de mim.
Para falar com franqueza, isso não me importava absolutamente nada. Creio mesmo que, naquela ocasião, nem reparava em tal.
Vivia num sonho azul, e só voltava à realidade no minuto em que encontrava Gys.
No entanto, não o via senão um bocadinho por dia, porque ele também tinha as suas preocupações. Suponho que para o conceito que fazia de mim própria, era melhor assim; compreendia, quer em mim, quer nele, um mútuo amor que aumentava de instante para instante; como seria possível suportar com prudência a prova a que nos submetíamos, de maior liberdade e de mais prolongados colóquios?
Quando procurava reflectir nessas coisas, com calma, ficava às vezes assombrada com a força da nossa amizade.
Apesar da minha ingenuidade e da minha ignorância das realidades da vida, compreendia a que ponto Gys estava enamorado; toda a mulher possui uma intuição que não engana.
Demais, para conhecer os seus sentimentos, não era preciso senão sondar o meu próprio coração.
E não perguntava eu, a mim própria, com inquietação, como seria possível, na exaltação ardente de todo o nosso ser, suportar uma demora de meses, de anos talvez?
Era provável que Gys fizesse as mesmas reflexões; no entanto, nunca me falava nelas claramente.
Um dia em que o meu noivo procurava qualquer coisa nas algibeiras, deixou cair um sobrescrito com o seu nome, que apanhei maquinalmente.
O endereço «Gys de Wriss» surpreendeu‑me.
Se, desde o começo desta narrativa, sempre escrevi com três letras: «Gys», o nome daquele a quem amava, é porque sei agora que é assim que se escreve. Nesta época, nunca o tinha visto escrito e, verbalmente, ouvia pronunciar «Réss».
Fiz‑lhe esta observação, a que achou graça:
‑ O meu nome escreve‑se Gys ‑ explicou ‑ mas no meu país pronuncia‑se «Réss» (1).
‑ A que equivale?
‑ Não encontro qualquer nome masculino francês a que possa corresponder. Se escrevo Gys não há equivalência em francês; e se pronuncio «Réss», tão pouco a encontro. O meu nome é intraduzível, minha pequenina. Mas isso fará com que me tenha menos afeição?
‑ Oh! Gys! Isto é apenas um pequeno pormenor!
Era, com efeito, um pequeno pormenor: mas o meu noivo acabava de evocar o seu país, e compreendi, imediatamente, com espanto, que conhecia muito poucas coisas com respeito àquele a quem jurara consagrar a minha vida.
Foi precisamente nesse dia, sem ter tido necessidade de o interrogar, que Gys respondeu às minhas mudas interrogações.
‑ Sim, não tem importância ‑ continuou Gys ‑ mas, na verdade, nunca lhe falei muito de mim, querida Vali adorada, e, hoje, tenho cousas importantes para lhe dizer.
‑ Sou toda ouvidos, meu bom amigo.
Um feliz pressentimento segredava‑me que ele ia fornecer‑me todas as informações que uma noiva exigente pode desejar.
‑ Aqui está... Para começar, deixe‑me dizer‑lhe que a amo loucamente...
*(1) Na Holanda, efectivamente, Gys, nome masculino, pronuncia-se Réss.
‑ Que grande descoberta! Foi só hoje que deu por semelhante desastre!
Gracejando, contemplava‑o, com o olhar brilhante, pelo prazer que me dava esta deliciosa declaração de amor.
‑ Deixe‑me acabar, màzinha prosseguiu, abraçando‑me ‑ Amo‑a demasiado... para que possa deixar para uma data distante, e talvez incerta, o nosso casamento.
‑ Ah! ‑ exclamei, tornando‑me subitamente séria.
‑ Sim... Parece‑me que estamos ambos numa situação um tanto falsa... e muito instável. Se me tem amor, querida, poderá compreender...
Com certeza que compreendia, mas estava com receio do que ele pudesse pensar, porque não via para este angustioso problema qualquer solução aceitável.
Baixei a cabeça em silêncio e ele continuou:
‑ Não é verdade que é impossível esperarmos?... Felizmente, há um meio de tudo se arranjar.
Fixei‑o, incrédula e ansiosa:
‑ A solução, Vali, encontra‑se no facto de eu não ser francês, o que significa, para nós, no que respeita ao casamento, uma grande felicidade e uma verdadeira sorte.
‑ Então como?
‑ Não estou submetido às leis do seu país, compreende? No meu, com a maioridade, todos os cidadãos são livres e podem casar sem pedir autorização aos pais; por conseguinte, sem notificações e mesmo sem qualquer aviso.
‑ Mas estamos em França ‑ interrompi.
‑ Com efeito; mas pela regra geral ‑ estou a tirar curso de direito internacional, minha querida... tenho informações ‑ a mulher toma a nacionalidade do marido, quando se casa, e tem somente de acatar as leis da sua nova pátria.
‑ Então, que solução prática nos traz isso?
‑ Oh! é muito simples... Sabe que qualquer embaixada ou legação representa no estrangeiro uma parcela da terra nacional, não é verdade?
‑ Sim, sei.
‑ Muito bem... Ora, na Legação de Diamantino, estamos em território Diamantino... sujeitos às leis de Diamantino.
‑ Diamantino? ‑ balbuciei, espantada ‑ Perdoe, Gys, diz‑se no estrangeiro que os franceses não sabem geografia... Ora compreendo que isso agora me diz respeito. Não faço uma pequena ideia onde fica Diamantino!
‑ É um vasto território na América do Sul, minha querida ignorante.
‑ Na América! É americano... E eu a pensar que era holandês!
‑ Sou de raça holandesa ‑ rectificou com doçura ‑ O meu nome é também holandês, minha querida... Mas há já alguns séculos que... os meus colonizaram o Diamantino.
Parou, como se estivesse embaraçado para continuar. E perante os meus olhos curiosos que queriam saber mais coisas, sorriu e continuou com uma simplicidade despida de rodeios:
‑ Aqui, em Paris, não passo dum simples estudante de direito e não uso senão um dos meus nomes... sem o meu título! Mas sou o descendente da antiga família reinante do país que é hoje o «Estado livre de Diamantino»:
‑ Disse que não usa senão um dos seus nomes?... Gys de Wriss não é, portanto, um nome... inteiro, completo?
‑ Não, é necessário acrescentar‑lhe «Príncipe d'Ampolis»... Ampolis é uma das províncias de Diamantino.
‑ Príncipe de Ampolis ‑ repeti com uma espécie de fervor respeitoso ‑ Oh! Gys, quererá a sua família receber‑me?
‑ Acabo de lhe explicar, querida incrédula, que no meu país todos os cidadãos se casam livremente, sem a intervenção das famílias, a quem a questão do casamento não diz respeito... Um casamento, na realidade, é um assunto absolutamente pessoal. Não são, creio eu, os pais que ficam destinados a viver com o cônjuge que se escolher... A França ainda está muito atrasada no que respeita a questões fundamentais de família. Aqui, as tradições e os preconceitos dominam as situações e os sentimentos.
‑ Com efeito ‑ aprovei, pensativa ‑ Entre nós sucede isso... os pais fazem as suas combinações antes dos filhos.
‑ É a liberdade que existe em Diamantino, sobre o matrimónio, que nos vai permitir casarmos legalmente, sem formalidades difíceis, antes da idade exigida pelas leis francesas para poder prescindir do acordo dos pais.
‑ Na verdade... será possível?
‑ Indiscutivelmente!... Basta que um consulado (1) aceite o encargo de nos unir. Ora, o nosso cônsul residente na Legação Diamantina, em Paris, é‑me muito dedicado. É ainda partidário do regime antigo, se bem que não o possa proclamar oficialmente... Estive ontem com ele. Considera‑me como um dos grandes chefes da oposição, e o que deseja é ser‑me agradável... Compreende, minha querida?
Abri muito os olhos, encantada, escutando Gys, que continuou:
‑ Podemos, portanto, casar‑nos na Legação. O cônsul fará o que for necessário. Facilitar‑nos‑á todas as formalidades, e o acto realizado desta forma terá o mesmo valor do que no meu país.
Fiquei absolutamente surpreendida com tudo quanto ouvia;
*(1) Isto não é verdadeiro senão em certos países estrangeiros. Em França, um casamento feito fora do registo civil francês não tem valor algum. No entanto, o caso que relatamos aqui é absolutamente verídico; um rapaz enamorado e impaciente por desposar a jovem a quem amava, imaginou este processo singular para poder convencê‑la.
A possibilidade deste casamento e o país longínquo donde me aparecera um noivo cercado duma auréola de príncipe... de príncipe duma antiga dinastia reinante!
Tudo isto era de tal forma maravilhoso que parecia um conto de fadas.
No entanto, naquele momento, considerava o seu nascimento ilustre em segundo plano... O príncipe d'Ampolis desaparecia para dar lugar ao «Príncipe Encantador» que era Gys, quer dizer: o ente mais interessante, mais recto, mais nobre, o mais digno de amor, o único homem que existia verdadeiramente para mim, sobre a terra!
E de tudo quanto ele me contou naquele dia, não fixei nitidamente senão o seguinte: a possibilidade de nos casarmos... e de nos casarmos sem demora!
Estava de tal forma satisfeita que quase me custava a acreditar na minha felicidade.
‑ Tem a certeza absoluta, Gys, de que o nosso casamento terá o mesmo valor e será tão legítimo como se fosse no Registo Civil?
‑ Absoluta, minha querida.
E acrescentou com um sorriso amimado e uma pontinha de ironia:
‑ Felizmente!... Visto que não me estima o suficiente para me pertencer, sem todas estas formalidades.
‑ Oh! Gys ‑ exclamei ‑ como pode duvidar do meu amor? Já lhe expliquei que, mais do que qualquer outra, não devo dar ocasião a ser censurada... Perante a minha própria consciência e perante a opinião tão severa de meu pai, quero ser irrepreensível... Por coisa alguma deste mundo desejo dar motivo para justificar a sua maldição.
‑ É adorável, minha querida ‑ murmurou o meu noivo, beijando‑me os olhos cheios de lágrimas.
No entanto, um outro assunto me inquietava.
‑ Compreendo que ficamos casados legalmente...
Mas será apenas um casamento civil. Nenhum padre, em França, abençoaria uma união que não fosse regularmente sancionada pelas autoridades civis do seu país e que não tivesse tido o acordo dos pais.
Uma sombra de contrariedade passou pelo rosto de Gys logo que fiz esta observação; mas, imediatamente, com toda a segurança, respondeu:
‑ Não se inquiete a esse respeito, minha querida. O nosso casamento terá todas as bênçãos do céu. Prometo dar os passos necessários para que isso aconteça... mesmo que seja necessário ir a Roma e obter uma dispensa do Papa... Casaremos, pois, religiosamente... Seremos abençoados por Deus e pelos homens!... Nada mais tem a objectar, pois não, minha querida?
Evidentemente que não; nada mais tinha a dizer. Convencera‑me por completo e o meu pensamento voava agora para as regiões da felicidade e para as suas perspectivas encantadoras.
As últimas explicações de Gys tinham‑me feito compreender muitas coisas: o seu nome holandês e o seu tipo louro de homem do Norte que podiam parecer estranhos, pertencendo a um habitante da América do Sul. Estas singularidades explicavam‑se, porém, muitíssimo bem, quando se soubesse a origem da família do meu noivo, cuja raça não quisera aliar‑se a nenhum estrangeiro. Tudo estava claro, certo e luminoso à minha volta, porquanto, sob outro ponto de vista, pudera documentar‑me sobre o Estado livre de Diamantino e já o conhecia um pouco, presentemente.
Um Malte‑Brum que folheara na Biblioteca Nacional, num dia em que Gys não se encontrou comigo, fizera‑me conhecer tudo quanto ignorava a respeito desse país.
Por exemplo, essa geografia que datava de há um século, não mencionava a província de Ampolis. De resto, Malte‑Brum falava desta região como sendo um país selvagem, cuja capital era composta por algumas centenas de cabanas.
O aspecto geral de Diamantino devia ter‑se modificado depois de decorridos cem anos, se bem que um Larousse moderno desse ainda menos informações acerca do país. Contudo, estes dois livros tinham‑me informado sobre toda a geografia física da terra onde o meu futuro marido nascera, e sentia‑me feliz com esta modesta erudição.
O nosso casamento ficou assente que se realizaria no fim da semana imediata; quer dizer, apenas um mês depois da nossa decisão e simplesmente o tempo necessário para os preparativos materiais. Gys tinha‑se encarregado de tratar de tudo e eu confiara‑lhe os meus papéis... O seu nome bastara para aplanar todas as dificuldades e até mesmo na igreja tudo estava em ordem.
Ficou combinado que, para ser mais rápido, Gys alugaria uma casinha mobilada, onde nos instalaríamos logo que regressássemos da nossa pequena viagem de núpcias.
Para mim, a única preocupação era o vestido; confesso‑o com toda a franqueza.
Sonhava com um vestido de cetim branco com uma grande cauda e um véu de tule muito vaporoso...
Queria também uma grinalda de flor de laranjeira! Era a imagem clássica da noiva, tal como ela aparece nos sonhos de todas as raparigas, que eu desejava realizar.
E, depois, ia ser princesa! E a princesa d'Ampolis, a meu ver, não podia casar‑se levando um vestido de passeio e sem pompa.
Já sabia que meu pai não assistiria ao casamento, mas estava esperançada que um dia, talvez, viesse a saber... Queria, portanto, que mais tarde soubesse que a sua filha, renegada e desprezada por ele, se casara como verdadeira princesa, no esplendor dum vestido sumptuoso e casto... Seria a minha única vingança!
Tinha, pois, grande empenho naquele vestido branco, que desejava o mais lindo possível. Mas eu estava ainda há pouco tempo no hospital franco‑americano, para ter economias e aquelas que tinha na altura em que saíra de Lião haviam desaparecido por completo.
Gys, que observava, como verdadeiro enamorado, todas as expressões do meu rosto, compreendeu um dia este pequeno aborrecimento, e pediu‑me explicações. Tive de lhe confessar o meu desejo.
‑ Gostaria de levar o vestido branco das noivas e queria‑o digno da princesa d'Ampolis... Gostaria tanto, Gys, que um fotógrafo nos tirasse um retrato, para recordação, em que eu figurasse a seu lado, com o vestido imaculado que, entre nós, só as raparigas honestas têm o direito de usar por algumas horas!
‑ Sabe, minha querida ingénua e formalista, que isso é um costume pagão?
‑ Um costume pagão ‑ protestei com horror contra o que supunha uma heresia ‑ Oh! a igreja católica sempre vestiu de branco as virgens e as crianças.
‑ Recordações do paganismo que vestia de branco a esposa tímida que ia entregar ao seu futuro senhor e marido, bem como a criança pura que sacrificava a uma divindade monstruosa, sobre qualquer mesa sangrenta.
‑ O que significa quase o mesmo ‑ disse para o arreliar ‑ Em qualquer dos casos, imolavam uma mulher! A mulher que se casa é sempre considerada uma vítima. Mas ‑ acrescentei imediatamente, tomando um ar consternado ‑ não quer, na verdade, que me vista de branco no dia do nosso casamento?
Vendo o meu ar abatido, sorriu e aproximou‑se de mim.
‑ Meu querido amor ‑ disse, apertando‑me ternamente nos braços ‑ não me custa nada dar‑lhe satisfação. Quero que nesse dia todos os seus desejos sejam satisfeitos.
E, logo em seguida, levou‑me a uma loja de modas da especialidade. Ali encontrei imediatamente o vestido dos meus sonhos... Não tive sequer a preocupação do preço!
Foi assim que vi, uma manhã, nascer o dia radioso do meu casamento... Não havia nuvem alguma, nem no céu, nem no coração!
Quando me recordo do dia lindo do meu casamento, posso dizer que dele conservo a impressão de uma felicidade sem par.
Tudo me parecia belo, normal, perfeito!
Os pequenos pormenores que, reflectindo, me poderiam deixar uma impressão menos agradável, só mais tarde me acudiram ao pensamento. Naquele instante, nada havia que ensombrasse, nem mesmo ao de leve, a minha alegria imensa.
E é por isso que me sinto agora admirada por não ter notado que estava absolutamente só, num dia como aquele... Sozinha, sem família e sem amigos!
Com a minha família, sabia antecipadamente que não podia contar, visto não convidar meu pai, que se oporia por todos os meios possíveis a este casamento, tratado sem o seu consentimento.
Pela mesma razão, e a fim de meu pai não ser avisado, evitara escrever à minha antiga directora e a Marine, as únicas pessoas que ainda existiam para mim, em Lião.
Quanto às minhas companheiras do hospital, Gys não tinha empenho em as ver a meu lado, naquele dia, pelo que não as pudera, portanto, convidar. Mostraram‑se mesmo um pouco frias, quando lhes fui dizer adeus.
Mas, repito‑o, não prestei atenção ao meu isolamento; só pensava na minha felicidade.
Em contrapartida, tinham vindo numerosos amigos de Gys, que se mostravam muito animados.
Pareceram‑me muito novos e muito alegres, como é natural sê‑lo quando se é estudante e se festeja o casamento de um compatriota que virá a ser um dia, sem dúvida, uma alta personalidade na sua pátria.
Era, com efeito, toda a mocidade da colónia de Diamantino, que naquela manhã faltara às aulas dos cursos do Bairro Latino para assistir à cerimónia.
A nossa Legação não tinha como domicílio um palácio sumptuoso. Estava situada muito simplesmente num velho edifício da margem esquerda, ao fundo dum antigo palácio, mas ainda de bom aspecto.
A entrada, quando chegámos, já estava cheia de rapazes e raparigas. Quando descemos da carruagem, Gys vestido de preto e eu envolta em neve, uns agitavam os seus barretes de estudante e os outros ramos de verdura e flores.
Aclamaram‑nos alegremente:
‑ Viva o príncipe Gys e a princesa Valentine!
Fiquei profundamente comovida com estas aclamações... Ao pensar neste título, que pela primeira vez ecoava aos meus ouvidos, a minha perturbação foi tão forte que os meus olhos se encheram de lágrimas de alegria.
Que pena, meu pai, cujo orgulho eu conhecia, não me poder ver naquele momento!...
Sorrateiramente, olhei para Gys.
Pareceu‑me um pouco aborrecido com todo aquele barulho que faziam à nossa volta.
Compreendi o seu aborrecimento. Não queria que o nosso casamento se tornasse público... E depois, já estava habituado a todas estas aclamações vãs.
Pelo seu braço entrei no consulado.
Era no terceiro andar.
Atrás de nós, o grupo alegre subia as escadas, rindo talvez excessivamente.
Alguns pareciam dirigir e organizar os pormenores da cerimónia, que teve lugar no salão nobre.
O Cônsul pareceu‑me uma pessoa muito nova... Tinha a impressão de que todos os funcionários do corpo diplomático deviam ser já de certa idade; mas talvez o Cônsul de Diamantino fosse mais velho do que aparentava.
Em todo o caso, em francês correcto, disse um pequeno discurso... discurso muito bem feito e que teve o mérito de não ser muito longo.
Depois das perguntas do estilo e do consentimento dado por cada um de nós, fez‑nos assinar um grande livro de registos e, em seguida, numa dupla folha timbrada no alto e onde se lia «Estado Livre de Diamantino». (1).
As testemunhas escreveram os seus nomes depois dos nossos; os selos azuis vieram legalizar estas múltiplas assinaturas; inscreveu‑se a data; os números de registo homologaram o conjunto. Após isto, o Cônsul proclamou solenemente o nosso casamento.
Gys, com um sorriso, entregou‑me o documento que validava esta cerimónia, e eu, ao recebê‑lo, corei, porque o olhar de «meu marido», mergulhando no meu, parecia dizer‑me amorosamente:
‑ Será agora, minha querida mulherzinha, que poderei, enfim, abraçá‑la livremente?
Se fosse possível, ter‑lhe‑ia certamente respondido:
‑ Ainda não, querido esposo, é necessário primeiro que a nossa união seja abençoada.
Mas os nossos olhos compreendiam‑se, na falta de linguagem mais expressiva, e tornámo‑nos muito sérios,
*(1) A narração deste casamento, numa legação desconhecida, é absolutamente autêntica. É bom notar, somente, que apenas os nomes de pessoas e países foram alterados.
ao evocar a bênção religiosa que ainda devíamos receber.
Uma nova e calorosa ovação coroou o fim da cerimónia. Todos os assistentes se mostravam cada vez mais alegres.
Desta vez, Gys respondeu‑lhes com um discurso de que muito me admirei.
Agradeceu‑lhes toda a simpatia manifestada e a presença junto dele num dia como este. Não deixou de fazer uma alusão ao futuro político da sua pátria.
Foi apenas um esboço... feito com muito tacto.
Se bem que não parecesse muito entusiasmado por ser obrigado a discursar em tal ocasião, notei que Gys lhes falava, realmente, um pouco como se já fosse o seu chefe, tendo sido longamente aclamada esta passagem do discurso.
A terminar, lembrou‑lhes cordialmente que um copo de água os aguardava num restaurante que pertencia a um dos seus compatriotas; este servir‑lhes‑ia comidas da Pátria distante. Por fim, pediu‑lhes muito cortesmente, mas também com autoridade, que nos desculpassem se não nos fôssemos juntar a eles.
A sua pressa de ficar só com a nova princesa pareceu, sem dúvida, legítima a toda esta mocidade, porque, novamente, se ouviram estrondosas aclamações:
‑ Viva a noiva! Viva a linda princesa!
Apertámos ainda algumas mãos, antes de partir. Apresentaram‑me, entre outras, a uma senhora nova, demasiadamente pintada, a meu ver, mas muito bonita. Tinha‑se consorciado quinze dias antes naquela mesma Legação de Diamantino, e disse‑me que fora para ela uma grande honra ter‑me precedido, pelo mesmo motivo, naquele salão diplomático.
Toda aquela mocidade alegre nos acompanhou até à rua, onde os rapazes e raparigas improvisaram uma guarda de honra.
Quando o automóvel que nos levava arrancou, lançaram no espaço uma formidável e última aclamação, de tal forma que os transeuntes pararam naturalmente e, vendo uma noiva vestida de branco, juntaram as suas ovações às dos Diamantinos.
Foi assim, no meio duma verdadeira multidão de curiosos e adeptos, que deixámos a Legação de Diamantino, onde Gys e eu acabávamos de ser casados legalmente.
Se consagrei tantas linhas à descrição da nossa cerimónia nupcial é porque tenho um desgosto; nenhum dos meus pôde assistir a ela, nem tomou conhecimento da solenidade inolvidável com que o nosso casamento foi celebrado.
Nunca pensara ouvir tantas aclamações ou imaginara ser rodeada de tanta estima e de tantas homenagens respeitosas.
É evidente, e não ignoro, que todas estas ovações eram dirigidas em primeiro lugar ao meu querido Gys, que representava a esperança destes jovens patriotas, mas não era menos certo que não as tendo previsto me comoveram singularmente.
Durante toda a cerimónia, Gys estivera com um aspecto quase grave. Dir‑se‑ia que a exaltação cheia de alegria, dos convidados, não o interessava e talvez mesmo o aborrecesse.
A sua atitude um pouco indiferente dava‑lhe um ar de «majestade». Eu, porém, sabia que se estava tão sério e tão comovido era por se sentir apaixonado.
E não me enganava.
Logo que ficámos sozinhos, no carro, e longe da multidão ruidosa dos nossos amigos, ele soltou um suspiro de alívio.
‑ Oh! Gys! ‑protestei ‑ Não está contente?
‑ Havia gente demais, minha querida. Era uma verdadeira maçada.
‑ Mas foram muito amáveis!
‑ Na verdade, portaram‑se muito bem.
‑ Foi muito lindo ‑ afirmei ‑ Não sejamos ingratos para com eles, meu amigo. Sem a sua presença estaríamos completamente sós.
‑ O que teria sido muito mais agradável.
‑ Como pode dizer semelhante coisa, Gys? Há sempre necessidade de muita gente à volta duma noiva,
‑ O que não impede todos os homens que se casam de soltar um suspiro de alívio quando a cerimónia termina. Não fui eu quem inventou o clássico «enfim sós».
‑ É verdade! ‑ aprovei, sorrindo ‑ Os homens têm ideias bastante singulares.
‑ Se sempre esteve satisfeita, é isso o que me interessa.
‑ Oh! muito contente! Foi magnífico! Pegou‑me na mão, beijou‑ma longamente e depois ficou silencioso.
‑ Gys ‑ perguntei baixinho ‑ na igreja estaremos sozinhos?
‑ Sim ‑ respondeu‑me ‑ Preferi silêncio e circunspecção em torno de nós... Apenas duas testemunhas nos esperam.
‑ Está muito bem ‑ aprovei docilmente. Haveria possibilidade, naquele momento, de não achar bem qualquer coisa que fosse feita por Gys?
Para nos conduzir à igreja, o automóvel dirigiu‑se para o cais, a fim de atravessar o Sena.
Diante de nós erguiam‑se as torres da igreja de «Notre‑Dame, das quais nos aproximávamos cada vez mais.
‑ Que pena não termos escolhido a catedral para nos casarmos! ‑ observei inocentemente ‑ Dá‑me a impressão de que neste dia tão importante da minha vida gostaria de respirar a atmosfera duma vasta igreja... A mais linda de Paris... As abóbadas, conhecidas do mundo inteiro, impregnadas de incenso, iluminadas por velas e cheias de orações!...
Quem sabe mesmo se não seria para mim um motivo de orgulho pensar que a cauda do meu vestido branco de noivado limpara o chão de «Notre‑Dame...». Mas não ousava exprimir um pensamento tão infantil, diante de Gys, que, após as minhas últimas observações, me examinava com estranheza.
Dois minutos depois, o automóvel parava defronte do pórtico da igreja de «Saint‑Julien‑le‑Pauvre».
‑ Não é precisamente «Notre‑Dame»‑ observou Gys, com doçura persuasiva ‑ mas suponho que para si qualquer igreja serve... E esta é tão impressionante na sua simplicidade!
Não conhecia esta espécie de capelinha ortodoxa ‑ embora católica ‑ que se ergue nas margens do Sena, mesmo em frente da «Notre‑Dame».
«Saint‑Julien‑le‑Pauvre» é uma das mais antigas e mais pequenas igrejas de Paris. Não é a admirável e soberba catedral que sonhara percorrer vestida de branco, ainda há pouco; mas era certamente, como Gys dissera, uma das mais impressionantes que se pode encontrar.
Comovi‑me muito ao entrar lá pela primeira vez, neste dia. O interior da igreja, em talha, num estilo meio grego, meio latino, causou‑me uma forte impressão, e confesso que me senti feliz por lá estar sozinha com Gys. Esta intimidade diante de Deus era emocionante. A alegria e a exuberância dos assistentes à cerimónia no Consulado ter‑me‑iam parecido pouco próprias para o recolhimento e a gravidade do nosso casamento religioso.
Este foi, no entanto, muito simples, ainda mais do que o casamento civil e mais rápido também, porque Gys não mandara dizer missa. Algumas orações murmuradas a meia‑voz, algumas perguntas rápidas, uma bênção, a troca dos juramentos e das alianças, a passagem pela sacristia, onde assinámos novamente; depois, o capelão, comovido talvez pela nossa solidão, apertou‑nos as mãos afectuosamente.
Ainda vi Gys fazer deslizar, às escondidas, uma nota para as mãos das duas testemunhas, que mais tarde confessou ter «alugado» para aquele acto.
Tudo terminara.
Perante Deus e perante os homens, meu marido e eu estávamos unidos para sempre.
Para irmos para o carro tivemos que atravessar de novo a igreja.
Então, cheia de fé, fui ajoelhar‑me diante de um ícone, por cima do qual estava uma cruz ortodoxa erguida no meio do coro, enquanto um Cristo sobre um altar, na parte de baixo, lembrava aos fiéis católicos que estão sempre no seu meio, neste santo lugar.
Estava entregue às minhas orações, onde o nome de meu pai ausente se juntava com o de minha falecida mãe, quando senti a mão de Gys apertar a minha.
Levantei‑me, supondo que pedia para terminar as minhas devoções. Enganava‑me. O seu gesto afectuoso acompanhava uma oração mental.
‑ Juro diante de Deus, Valentine ‑ disse ele com gravidade, numa espécie de promessa solene ‑ que será minha mulher perante todos, aqui, em França. Logo que as circunstâncias o permitam, farei legalizar a nossa união. Prometa‑me que, seja o que for que possa acontecer, com o decorrer do tempo, nunca duvidará de mim.
‑ Prometo‑o, Gys ‑ respondi com firmeza, mas com os olhos razos de lágrimas, porque esta jura, feita sem testemunhas, numa igreja vazia onde parecíamos estar sozinhos na presença de Deus, tinha qualquer coisa de forte e de solene.
‑ É minha mulher, Valentine ‑ insistiu Gys com a mesma gravidade.
‑ Sou sua mulher ‑ confirmei.
‑ E eu, o seu marido! É isto que nem eu nem a Valentine devemos esquecer.
‑ Lembrar‑me‑ei sempre, Gys. Toda a minha vida lhe pertence.
‑ Assim seja ‑ disse ele.
E na igreja de «Saint‑Julien‑le‑Pauvre», meu marido, num gesto respeitoso e protector, beijou‑me.
‑ Que Deus escute os nossos juramentos e abençoe o meu primeiro beijo de marido! ‑ terminou, beijando‑me na testa, com respeito.
Depois, deu‑me o braço, e os dois, sozinhos na igreja deserta, dirigimo‑nos lentamente para a porta, em passos pequenos, como se nos seguisse uma grande comitiva.
Sobre as lajes do chão, a cauda do meu vestido estendia‑se majestosamente... Anjos invisíveis cuidavam das suas dobras imaculadas... Sei apenas que, no meu coração, ressoava uma música celestial, mil vezes mais linda do que os melhores cânticos dos maiores órgãos...
Algumas horas depois, trocava o meu lindo vestido de noiva por um de viagem e o comboio conduziu‑nos a Fontainebleau... por dois dias!
Dois dias de felicidade sem igual... dois dias acerca dos quais nada mais posso dizer do que, fosse qual fosse a tristeza da minha infância, e quaisquer que sejam as provas que a existência ainda me reserva, representam toda a compensação.
Só por si, eram o bastante para que me valesse a pena viver!
E o melhor ainda foi terem tido seguimento.
Gys escolhera uma pequena casa para irmos morar, e um hóspede abençoado instalara‑se lá connosco. Esse hóspede chamava‑se "amor" e o seu outro nome era "felicidade".
Parecia ter entrado no nosso lar para sempre.
Vivíamos sozinhos, meu marido e eu; nenhum amigo vinha bater‑nos à porta, nem mesmo o doutor Maudoire, que não tornáramos a ver, e que, por estar doente, pedira desculpa de não poder assistir ao nosso casamento.
Felizmente, Gys e eu bastávamo‑nos um ao outro.
Meu marido saía muitas vezes, porque continuava a tirar o seu curso de direito internacional. Esperava que estes estudos lhe dessem uma boa situação no seu país.
Eu compartilhava das suas esperanças, feliz e orgulhosa por lhe estar associada.
Quando estava ausente, aguardava‑o com paciência, pensando nele, sem nunca sentir o desejo de tornar a ver nem as minhas companheiras do hospital, que pouco conhecia e a quem deixara definitivamente, nem nenhum dos nossos convidados do casamento.
Gys não tinha nenhum interesse em que me relacionasse com eles. Considerava‑os, verdadeiramente, sob o ponto de vista pessoal, mas não queria mais convivências. Na nossa vida particular devíamos conservar uma certa correcção e não nos comprometermos com relações que pudessem prejudicar o nosso futuro.
Devo confessar que aprovava plenamente este programa de meu marido, parecendo‑me deliciosa esta existência solitária que ambos fazíamos. Demais, aquela mocidade alegre e turbulenta, que entrevira no consulado, não me seduzia. Para o nosso prestígio, preferíamos guardar as distâncias de que falava Gys. Éramos «príncipes», sendo desnecessário revelar a nossa verdadeira situação financeira. A vida que levávamos era, com efeito, bastante modesta, quase pobre, mesmo, sobretudo porque eu nunca mais ganhara qualquer coisa, desde que abandonara o serviço de enfermeira. Gys não quisera que eu voltasse ao hospital.
‑ Oh! ‑ bem sei que a casinha estava muito bem arranjada e havia sempre flores em cima da mesa que servia para os nossos deliciosos jantarzinhos...
Mas sei também que a «princesa» tinha que duplicar a sua actividade para chegar a este resultado e quantas coisas ela própria fazia, para que as refeições agradassem e o lar fosse confortável.
Nessa ocasião comecei a abençoar Marine pela ciência caseira que me ensinara em Lião, um pouco contra a minha vontade.
Tudo quanto aprendera servia‑me agora, e ficava tão orgulhosa ‑ quando Gys chegava, à tarde ‑ dos cumprimentos que me dirigia por ter sido feliz na escolha de determinado prato, como dos raros pormenores que me dava acerca do emprego do seu tempo, que calculava ser passado em visitas diplomáticas.
Porque, podem crer, o futuro político dos príncipes d'Ampolis inquietava‑me, era uma das minhas principais preocupações e Gys censurava‑me muitas vezes. Para ele, seria preferível que a nossa vida actual durasse sempre, e não era sem uma nuvem de tristeza que via chegar o termo dos seus estudos, pelo que seria então obrigado, para assegurar uma boa situação, a entrar no combate e a interromper a nossa deliciosa «solidão».
Fizera‑me mais ambiciosa do que ele.
É que uma dúvida abençoada, e depois uma esperança cheia de alegria, nascera em mim; Gys, muito em breve, deixaria de ser o último do seu nome... Haveria um outro pretendente ao título... O meu querido marido ia ter um herdeiro!
E esse herdeiro que ele, pobre de mim, não verá talvez nascer, és tu, meu filho adorado, tu, que dormes dentro de mim e para quem escrevo estas linhas.
Desde que principiei a fazer a narração da minha vida, já decorreram algumas semanas. Esta narrativa ajudou‑me a suportá‑las. Mas, apesar de tudo, sinto‑me cansada... e tão fraca!
Só o teu pensamento me anima, meu principezinho, meu querido nené!
Voltemos ao momento em que ia anunciar a grande notícia ao meu adorado marido. Esperei estar absolutamente certa, a fim de não lhe dar uma esperança vã.
Foi no dia de Natal que fiz a surpresa de lhe revelar esse futuro nascimento.
Ouviu‑me em silêncio, com aquele aspecto sério que tinha, quando se tratava do nosso amor, e me obrigava a amá‑lo tanto.
Vi o seu rosto alterar‑se, enquanto me examinava intensamente. Depois, com infinito carinho, disse‑me:
‑ Sinto‑me profundamente feliz, Vali muito querida!
Uma comoção íntima impediu‑o de me dizer qualquer cousa mais, mas eu compreendera que a notícia o enchera de felicidade.
A partir desse momento, mostrou‑se ainda mais meigo e mais afável e cada um dos seus gestos e palavras pareciam acompanhados duma nuvem de protecção e quase de respeito.
Passou‑se o dia de Ano‑Novo e depois o mês de Janeiro.
Ficara muito só durante estes períodos de festas, mas achei bem a ausência de Gys. Estivera na Holanda; e não devia fazer as visitas protocolares obrigatórias?
Porém, não me inquietava e suportava esta solidão, sabendo que no regresso de Gys encontraria um marido mais terno e mais apaixonado do que nunca.
O que me parecia menos tranquilizador era ver que ele parecia por vezes muito apreensivo, como se estivesse sofrendo um grande desgosto que não me quisesse confiar.
Além disso, não gostava que lhe fizesse perguntas a esse respeito.
‑ Os negócios dos homens não interessam às mulheres bonitas ‑ dizia, fazendo‑me calar com um beijo.
No entanto, esta resposta, que me devia sossegar, mais ainda me atormentava.
E porque era mulher apaixonada, antes de ser princesa, tremia, por vezes, com receio da nossa felicidade.
É muito difícil esconder qualquer cousa à intuição duma mulher que ama verdadeiramente.
A menor preocupação no rosto de Gys era‑me de tal forma sensível que chegava ao ponto de não poder dissimulá‑la, não obstante a sua vontade de não me entristecer.
Evitava dizer‑lho, visto isso parecer desagradar‑lhe, mas Gys sentia o meu olhar ansioso ‑ apesar de não o querer demonstrar ‑ a fixá‑lo furtivamente.
A maior parte das vezes começava a gracejar, a fim de me iludir.
‑ Minha querida, vou contar‑te uma história maravilhosa duma linda princesa que foi castigada por se ter entregue, muito abertamente, ao seu defeito de curiosidade:
«Teve seis filhos duma só vez, mas os principezinhos não eram maiores do que coelhos. E como exigiam bastantes cuidados e davam muito trabalho para se conservarem asseados, não tinha um só minuto para satisfazer a sua deplorável propensão.
«Vês, minha querida, o grande perigo que há para uma futura mamã quando deixa transparecer os seus grandes defeitos? Queres que um génio mau te mande, duma só vez, seis gordos pequerruchos?
E continuava assim, alegremente, mas o seu tom jovial soava falso e não me sossegava absolutamente nada... pelo contrário!
Pelos fins do mês de Janeiro, meu marido parecia ainda mais preocupado. Não comia quase nada e, se bem que sempre procurasse não deixar transparecer os seus desgostos, ficava silencioso por longos momentos, como se estivesse oprimido por pensamentos demasiadamente tristes.
‑ Gys ‑ disse‑lhe um dia, envolvendo‑o num abraço ‑, dize, amas‑me ainda como no primeiro dia?
‑ Amo‑te mais do que nunca, querida Vali adorada.
‑ Estamos unidos para toda a vida?
‑ Para toda a vida ‑ afirmou ele gravemente. E, olhando bem para os meus olhos:
‑ Poderás duvidar, meu amor? Não te lembras dos meus juramentos... diante de Deus... naquela igrejinha à beira do rio?
‑ Oh! sim! Como eu me lembro... Foi o instante de maior alegria que tive no dia do nosso casamento.
‑ Então, porque duvidas?
‑ Não duvido... Tenho absoluta confiança em ti... Mesmo que a vida nos reserve momentos difíceis, isso não será nada, se estivermos juntos num mútuo apoio.
‑ Sim, só o nosso amor importa... E desde o momento em que o coração dum esteja certo do coração do outro, o resto não interessa.
Gys dizia estas palavras com os olhos profundamente mergulhados nos meus, segurando meigamente a minha cabeça nas suas mãos.
Beijava‑me os olhos, a testa, os lábios, numa espécie de embriaguez selvagem.
‑ Minha mulherzinha, minha bem amada, minha Vali querida!... Minha vida, minha felicidade!... Ah! Sou rico, visto que te tenho nos meus braços! Sinto‑me forte, porque possuo o teu amor. A sorte favorece‑me, desposei‑te e amo‑te!
E todas estas palavras de amor eram interrompidas por beijos ardentes e amplexos apaixonados.
Saía então dos seus braços completamente tranquilizada, e sentindo com intensidade que a sua ternura por mim era invulnerável.
Era fora dos seus sentimentos íntimos que devia procurar a causa das preocupações... E, egoisticamente, procurava convencer‑me de que não seria nada, tudo se arranjaria, viesse donde viesse o mal, contanto que acima de tudo perdurasse o nosso amor.
Que loucura! Que cegueira a minha!
Tinha, no entanto, visto cair entre nós uma sombra de silêncio e de segredo... A primeira que escureceu a nossa felicidade!
E uma sombra é muita vez o prelúdio duma nuvem... duma nuvem que precede a tempestade!
Chegou Fevereiro...
Será possível que este passado seja tão recente, e que, no entanto, dele me separe um abismo?
Os acontecimentos que vou relatar agora tiveram lugar há apenas algumas semanas... Como é possível?!...
Ainda há bem pouco tempo eu era uma mulher amada, acarinhada pelo mais terno dos maridos... Uma mulher feliz... Oh! tão feliz!
Penso naquela noite de 4 para 5 de Fevereiro... Naquela noite que foi um verdadeiro sonho de amor e de embriaguez... e também a última!
No dia imediato, pela manhã, Gys saiu cedo.
Entrou para almoçar à hora precisa, com o rosto mais preocupado do que nunca, mas também com a vontade bastante nítida de o dissimular ainda mais do que habitualmente.
Eu não podia levantar os olhos para ele, porque, assim que se sentia observado, principiava a falar, numa espécie de animação febril, de coisas indiferentes ou fúteis.
Sentia‑me oprimida perante o seu aspecto extraordinário. Desejaria poder interrogá‑lo, mas sabia de antemão que não obteria resposta a nenhuma das minhas perguntas.
Procurei, portanto, tranquilizá‑lo, afectando a mais terna confiança e um à‑vontade o mais natural possível.
Falámos do nenèzinho que devia chegar um dia... Era um dos assuntos favoritos das nossas conversas; muito antes de nascer, o «nosso príncipe» já tinha o seu lugar.
Fazíamos os mais lindos projectos para «quando ele já ali estivesse». E eis que, de repente, meu marido afectou interessar‑se extraordinariamente pelo enxoval do «nosso homenzinho».
Em geral, não me falava nisso senão para me ser agradável e, naturalmente, sem cousa alguma perceber do assunto, como a maior parte dos homens. No entanto, naquele dia, o enxoval do nosso nené parecia ser, realmente, a sua principal preocupação.
Pois se até me chegou a censurar por fazer economias a este respeito!
‑ Quero que o nosso filho seja elegante, desde o primeiro dia ‑ declarou ‑ Por muito que não nos queiramos preocupar com «a sua primeira camisa», é necessário que a primeira camisa dum príncipe seja fina... em cambraia, não é verdade? E com uma renda...
Eu sorria, vendo Gys preocupar‑se com estes fúteis pormenores. Então ele insistiu, meio alegre, meio nervoso:
‑ Sim, sim, minha querida Vali... É preciso pôr uma renda, repito! Abrirei uma conta especial nas futuras finanças do Estado, para a renda das camisas do príncipe.
Isto foi dito com tanta graça que soltei uma gargalhada... A minha última gargalhada!
Logo que acabou a refeição, Gys deu‑me dinheiro e pediu‑me para ir imediatamente, sem mais demoras, comprar a cambraia e a renda necessária. Ele conhecia ‑ por que acaso? ‑ a direcção duma casa da especialidade, onde eu encontraria o que havia de melhor.
‑ É no outro extremo de Paris, mas isso proporcionar‑te‑á um passeio. Tens toda a tarde para o percurso e não há necessidade de andares a correr.
‑ Oh! Mas isso não é tão urgente que seja necessário lá ir hoje.
‑ Sim! Sim!... Quero a compra feita imediatamente!
‑ Está bem ‑ disse, um pouco admirada, mas submetendo‑me ao seu capricho.
Já pusera o chapéu e vestira o casaco porque lá fora estava muito frio. No momento em que ia sair, Gys alcançou‑me quase à porta da rua. Atraindo‑me aos seus braços, fitou‑me longamente, com os olhos a quererem penetrar os meus. E em seguida um beijo prolongado... tão terno, tão apaixonado!
‑ Vai depressa, meu amor, e não apanhes frio! Prendeu ele mesmo a gola de peles que se desapertara, e, abrindo a porta suavemente, empurrou‑me para fora.
‑ Vai depressa, minha Vali bem‑amada ‑ repetiu ‑, minha querida... Adoro‑te, meu amor... Vai depressa comprar as rendas para o principezinho...
Sorria, procurava mesmo rir. E ao voltar‑me avistei os seus olhos... Oh! os seus olhos perturbados como nos minutos mais graves do nosso amor.
Mas nada percebi... Parti!
Para continuar esta narrativa preciso de apelar para toda a minha coragem.
Com a mesma facilidade com que a minha caneta deslizava suavemente para evocar os dias felizes, a minha mão treme hoje, ao mesmo tempo que o meu coração se oprime.
É necessário, contudo, por ti, meu filho, que fixe a minha recordação desses minutos atrozes, deste drama sem palavras que arruinou a minha vida... E talvez a tua, meu pobre pequenino!
Fizera as compras indicadas por Gys e, como era para o "principezinho", dera ao caso toda a minha atenção, todos os meus cuidados. Entrei, portanto, um pouco cansada, mas feliz, tendo esquecido quase o estranho olhar de meu marido, no momento da partida.
Já era bastante tarde quando abri a porta. A casa estava às escuras e sem ninguém, mas muita vez acontecia ser eu a primeira a entrar. Dirigi‑me, portanto, para o nosso quarto, sem me admirar. Só ali acendi a electricidade.
No meio da cama, bem em evidência, destacava‑se um sobrescrito branco, tendo apenas estas palavras: «Para Valentine».
Senti um aperto no coração; depois, refiz‑me, troçando de mim mesma. Tratava‑se, sem dúvida, dum convite inesperado para Gys, e meu marido avisava‑me de que não vinha jantar:
Sucedia algumas vezes ter de me deixar sozinha às refeições. Que havia, portanto, nessa tarde, para estar assim impressionável?
Febrilmente, abri o sobrescrito.
Continha, em vez dos dizeres breves que previra, uma grande carta e um outro sobrescrito que não abri imediatamente.
A carta dizia o seguinte... Oh! tenho‑a ainda, e sei de cor o seu conteúdo...
«Querida Valentine, minha adorada Valizinha,
perdoa‑me... Vou causar‑te um grande desgosto... Perdoa‑me sobretudo não ter podido anunciar‑te eu próprio a tal notícia: amo‑te demasiado, meu amor, não teria coragem para suportar as tuas lágrimas...
«Receei fraquejar perante o teu desgostto... o nosso desgosto! Receei que este grande amor que te dedico me fizesse esquecer o dever... Porque o meu dever ‑ cruel ao máximo! ‑ é o de partir, de me separar de ti, por um espaço de tempo que será talvez longo... Tem paciência e coragem, minha querida. É preciso por ti, por mim e pelo nosso filhinho.
«Tive medo da tua insistência ‑ que já previa ‑ em me acompanhares. Onde encontraria eu a força necessária para te resistir?...
«Compreende bem, querida, que graves, muito graves acontecimentos me forçam a afastar de França; desses acontecimentos vão depender o futuro, a felicidade e a paz dos meus, o futuro do teu Gys, que não poderia viver na mediocridade... e também o futuro do principezinho que trazes nas tuas entranhas.
«Antes de poder ficar tranquilamente junto de ti, é necessário que me lance na batalha pela vida para depois ter direito ao repouso. Vou conhecer os riscos de um clima doentio e quantos perigos não me esperam longe dos meios civilizados... nos matos desconhecidos onde devo passar longos meses.
«É isto, meu amor, que tenho obrigação de te evitar, porque sou um homem que te ama, e mais ainda, porque sou o pai dum nené que vai nascer: tenho o dever restrito, se morrer, de ter preservado a vida do nosso filho... do meu herdeiro!
«É por ele que te suplico, de todo o meu coração que é teu, para seres forte e corajosa. Não é à querida, à meiga Valentine que me dirijo; é àquela que usa o meu nome, é à minha esposa. Qualquer comoção pode ser prejudicial ao ente que é toda a minha esperança... a esperança dos nossos. Conserva toda a força e a tua serenidade! Tenho confiança em ti, minha adorada; serás corajosa, porque assim é preciso!».
Depois destas ternas e nobres palavras que me tinham reconfortado um pouco, a carta do meu adorado Gys abordava pormenores mais práticos.
Em primeiro lugar, falava‑me da sua viagem, que seria maior do que habitualmente, pelo facto de lhe ser preciso tomar infinitas precauções.
«Para frustrar a vigilância activa daqueles que procuram impedir que a minha missão seja levada a cabo»,
Gys ia, pois, fazer uma longa digressão pelas índias Neerlandesas e pelo Pacífico.
Tudo isto me explicava em breves linhas, sem se alongar; depois prevenia‑me de que só raras vezes teria notícias suas:
«Mas é preciso que não te inquietes, se as minhas cartas demorarem. Bem sabes, querida, que o meu pensamento nunca te deixará? É preciso, também, renunciares a escrever‑me; as tuas cartas não me seriam entregues, pelo menos presentemente. Durante algum tempo estarei privado das tuas notícias e das do nosso filho... É o maior sacrifício que posso fazer na tarefa que me foi confiada...»
Quando cheguei a esta passagem tão pungente da carta de Gys, rompi em soluços. Que coragem não teria sido necessária ao meu querido marido para se afastar, em semelhantes condições!
Fui obrigada a reagir e a apelar para toda a minha energia, de forma a poder continuar a leitura.
O meu querido Gys pensara no meu bem‑es‑tar. Deixava‑me todo o dinheiro de que podia dispor, não guardando para si senão uma soma restritamente necessária para a viagem.
O segundo sobrescrito, incluído no outro, continha, com efeito, sete notas de mil francos, que era uma quantia muito grande no ano da graça de 1914.
Gys dizia‑me também que o aluguer da nossa casa estava pago por cinco meses.
«Daqui até lá, minha querida, espero poder enviar‑te nova remessa de fundos... Sê razoável, não economizes demais ‑ dizia ele, a terminar ‑ conheço‑te demasiado para insistir neste ponto. Devo antes recomendar que trates de ti. Nem a ti nem ao nosso filho quero que falte o que quer que seja».
Não me recordo bem das horas que se seguiram a esta leitura.
Devo ter ficado imóvel, inerte, quase inconsciente, fulminada pela partida de Gys, como o teria ficado com o efeito duma pancada.
O que sei é que a madrugada do dia seguinte me foi encontrar estendida e atravessada na minha cama, ainda vestida. Devia ter‑me arrastado até lá e caído, sem mesmo pensar em me despir.
Creio que se não morri naquela noite foi porque a tua vida ‑ oh! meu filho! ‑ velava dentro de mim e não renunciava à existência; forçaste‑me a viver para te lançar neste mundo...
Com o dia renasceu a minha energia.
Peguei na carta de Gys e reli‑a com atenção. A falta de pormenores acerca da missão que ia cumprir apareceu‑me novamente. Porém, estava habituada a que ele não me pusesse ao corrente dos seus negócios.
‑ Para que não te inquietes, minha querida ‑ dissera‑me mais de vinte vezes.
E, na verdade, até aqui, nunca me inquietara muito com a sua discrição, porque ligava todos os actos dele à tarefa política de que estava incumbido pelo seu país.
Devo confessar que nesse dia não tive senão pensamentos amargos acerca de Diamantino.
Por fim, encarava a situação com a maior calma possível e tomei a resolução de não pensar em coisa alguma que não fosse no nosso filho.
Comecei por proibir a mim própria meditar no meu desgosto, na minha dor; devia, pelo contrário, empregar toda a minha vontade para me interessar pelos mínimos pormenores do enxoval do meu futuro "baby", que, dali por diante, foi inteiramente feito por mim.
Alguns dias depois deste terrível golpe principiei a escrever este Diário... para forçar o meu pensamento a fugir à sua ideia fixa.
Foi necessário fazer a história da minha vida desde o início e isto levou algumas semanas, mas tornou‑se um poderoso lenitivo para a minha dor.
Começa hoje o mês de Maio.
Sob o seu sol primaveril sinto‑me ainda muito triste; no entanto, sou razoável e esforço‑me por estar calma. Vejo demasiadamente nítidas as minhas responsabilidades de mãe para com aquele que vai nascer, para ter um único instante a tentação de fraquejar.
15 de Maio ‑ Que comoção tive esta manhã!
Chegou uma carta de Gys, a primeira depois da sua partida; ama‑me! vive! Pensa em mim! E isto chega‑me bem... Tudo o mais são cousas sem importância.
Oh! esta carta, como a beijei!...
Está aqui, dobrada por baixo da minha blusa: preguei‑a junto ao coração.
É um pouco de ti mesmo, meu Gys adorado, que chegou até mim, vindo desses mares distantes.
A carta está datada de Singapura!
Para algumas semanas, é um pouco de alegria... e de dor!
Fui à igreja de «Saint‑Julien‑le‑Pauvre», dar graças a Deus pela grande felicidade que me concedeu com a carta de Gys.
Gosto de me recolher nesta capelinha que recorda o dia do meu casamento, quando, com a minha mão na do meu bem‑amado, fizemos a promessa de nos amar sempre e de nunca duvidar um do outro.
Meu Gys, continuo a amar‑te. Não duvido. Tenho confiança em ti...
21 de Maio ‑ A Primavera está linda e o sol já muito quente.
Será a temperatura que me fatiga desta maneira? Sinto‑me por vezes muito fraca e tenho vertigens que me deixam inteiramente exausta.
Hoje, diante da minha janela toda aberta, fiquei por algum tempo absorta. O casaquinho de malha que estava a fazer caiu sobre os meus joelhos... Não tive forças sequer para continuar aquele trabalho tão ligeiro!
No entanto, tomara a resolução de não divagar... Devo cumpri‑la, se quiser viver para o meu filhinho.
23 de Maio ‑ Já não escrevo todos os dias... para quê? Não poderia senão revolver a mesma ferida.
Agora que cheguei ao ponto de relatar os acontecimentos dia a dia, eles passam‑se e são todos parecidos: a minha vida é tão igual!
O meu único passeio é ir à pequena igreja. Somente ali, perto de Deus, sinto o meu marido junto de mim... Cada vez que lá vou, saio reconfortada.
A minha modesta felicidade é reler a carta de Gys... a última, porque a primeira já não tenho coragem... tenho medo de sentir renascer o sofrimento atroz.
29 de Maio ‑ Estou a tornar‑me cada vez mais nervosa... Qualquer cousa me faz estremecer e tenho terrores infantis que outrora não sentia...
3 de Junho ‑ Tenho medo... Sinto‑me muito doente. E estou só... Não tenho um único ser amigo em Paris!
Sim... René Maudoire!
Este, sei bem que posso contar com ele, se bem que o tivéssemos esquecido completamente depois do nosso casamento. Voltei a vê‑lo, no entanto, uma vez, antes da partida de Gys; continuava a ser sempre o mesmo excelente camarada.
Porque não tornou a aparecer?
6 de Junho ‑ Estava tão desamparada nestes últimos tempos que escrevi a Maudoire.
A minha carta ficou sem resposta.
Admirada, telefonei dali a pouco para o prédio onde morava, sem dizer o meu nome. O porteiro respondeu‑me que o doutor Maudoire partira, havia semanas, para as colónias!
Chorei!
Oh! se não tivesse a tua pequenina vida para proteger; o meu querido nené!...
7 de Junho ‑ Não posso continuar a viver assim. Esta manhã estive meio desmaiada quando me levantei. Foi preciso um toque persistente da campainha da porta de entrada, para me fazer voltar a mim. Era a porteira que me trazia o leite e o jornal. Inquieta com o meu silêncio, insistira e estava a tocar havia cinco minutos.
É uma boa mulher. Disse‑me que não era razoável estar sozinha, no meu estado.
‑ Tem razão ‑ respondi ‑ mas estou em Paris há alguns meses e não conheço aqui ninguém.
‑ Arranje uma criada ‑ aconselhou ‑ Pelo menos, uma governanta.
‑ Deve ser difícil encontrar... É preciso saber quem se mete em casa.
‑ Conheço uma excelente criatura que lhe posso recomendar. É uma Bretã já não muito nova. Está na casa dos cinquenta. Presentemente, trata do arranjo da casa; mas, em geral, ocupa‑se de crianças e de doentes. Tem muita prática... Enfim, acima de tudo, é uma boa alma!
Sentia‑me tão cansada e tão doente que aceitei.
É certo que não posso fazer despesas inúteis; as minhas economias diminuem e o aluguer já está por algumas semanas apenas, mas Gys foi o próprio a dizer‑me: é «necessário» ter os maiores cuidados com o nosso filho.
Espero, portanto, essa mulher, que se chama Marie‑Yvonne Guillon.
10 de Junho ‑ Maryvonne está aqui instalada há três dias. Pôs toda a casa em ordem. Tornei‑me tão preguiçosa que isto já estava sendo necessário.
Quer obrigar‑me a comer com regularidade; isso, porém, é o mais difícil!
15 de Junho ‑ Maryvonne trata de mim como se eu fosse uma criança. Deixo‑a... é tão bom sentirmo‑nos cercados dum pouco de solicitude!
É uma boa alma, com efeito! Tenho a impressão de que a conheço há muito tempo.
20 de Junho ‑ Abafa‑se aqui! Há tempestade na atmosfera.
Maryvonne gostava que eu saísse, que andasse um pouco, mas sinto‑me tão fatigada...
Não tenho apetite nenhum e a boa mulher está desolada por eu não apreciar os seus pratos especiais.
Não posso engolir... Tudo me aborrece.
26 de Junho ‑ Sufoco com esta atmosfera de Paris. Continua a tempestade.
29 de Junho ‑ Maryvonne disse‑me esta manhã, com uma suave autoridade:
‑ É o ar do campo que lhe está a fazer falta, minha senhora. O nosso ar. Aqui, pode arranjar uma anemia e estará em más condições quando chegar o momento...
Respondi‑lhe num tom aborrecido:
‑ Que hei‑de fazer, Maryvonne? Neste momento hesito na despesa de uma estadia no campo.
Não tive coragem de lhe dizer que nem sequer podia continuar na casa, que só estava paga até ao dia 15 de Julho.
Que fazer?
‑ Porém, minha senhora, não se trata de uma estadia no campo, nem de despesas... Sei de uma casinha muito modesta, onde nada teria que pagar e na qual seria tão bem tratada como por uma mãe.
Olhei‑a sem compreender. Então, o seu simpático rosto velhinho iluminou‑se num sorriso franco, enquanto explicava:
‑ Há já algumas semanas que sinto o desejo de ir a minha casa... passar as férias, como todos os Parisienses! Se a senhora quisesse, iríamos instalar‑nos, as duas, em Coatderv, na minha pequena habitação de Ty‑Coz. Lá esperaríamos o nené... Sempre será melhor, para ele, nascer ali do que no hospital.
Como todas as pessoas da província, Maryvonne tinha horror ao hospital. Confesso que partilho um pouco da sua opinião... É melhor que uma futura mamã possa tratar‑se em sua casa! Já me resignara a dar entrada numa maternidade, visto estar sozinha e ser preciso que o meu principezinho tivesse todos os cuidados necessários.
O meu príncipe?
Ah! Sim, é melhor que vá nascer na Bretanha, em casa desta santa mulher, do que no hospital...
Se puder evitar a palavra «hospital» no seu registo... O meu Gys, tão altivo, preferi‑lo‑á também, por certo!
Exactamente, Maryvonne continuava:
‑ Então, está combinado? Instalamo‑nos em Coatderv, para o nascimento?... Vamos começar hoje a preparar as malas, porque é preciso fazer a viagem antes que se sinta demasiadamente fatigada.
Boa Maryvonne!
Não pensei sequer em fazer cerimónia!
Abracei‑a afectuosamente, como a uma velha amiga!
Tínhamos ambas os olhos cheios de lágrimas...
10 de Julho ‑ Tenho descuidado um pouco o meu diário, estes últimos dias.
Houve a viagem, a instalação aqui, e apesar da solicitude de Maryvonne, que tomou conta de tudo, sinto‑me terrivelmente fatigada.
Não compreendo porque me sinto tão cansada. Tenho melhor ar do que em Paris e aqui tudo é tão simples, tão calmo...
Se não fosse esta fraqueza, considerar‑me‑ia quase feliz!
11 de Julho ‑ Aqui todos falam bretão. Não percebo nada desta língua; no entanto, distrai‑me, quando ouço falar, procurar adivinhar nas fisionomias o que estão a dizer.
Ty‑Coz significa «casa velha». É o nome da habitação de Maryvonne. Ty‑Coz acha‑se um pouco distante da aldeia. À sua volta existem grandes carvalhos, cuja sombra fresca muito aprecio. Passo ali a maior parte do meu tempo, estendida sobre uma comprida cadeira de verga.
A minha companheira trata‑me com uma dedicação admirável.
13 de Julho ‑ Uma grande alegria! Notícias de Gys, que passaram por Paris!
Óh! Notícias bem curtas.
Chegou ao seu destino, diz‑me. A situação está séria, mas prefere não me dar nenhum esclarecimento...
Sempre tão meigo, o meu Gys adorado! O seu amor dá‑me coragem.
Envia‑me alguns fundos e a sua carta veio por intermédio de um amigo nas índias Neerlandesas.
Entreguei o dinheiro a Maryvonne. Não para remunerar os seus cuidados, pois não é possível pagar tanto carinho, mas por ser ela quem toma conta da caixa... Ninguém sabe o que pode acontecer!
16 de Julho ‑ Já não tenho forças para escrever. Ontem, sofri durante todo o dia. Maryvonne tratou‑me e encorajou‑me, mas o momento grave aproxima‑se... e tenho medo...
Porquê?
17 de Julho ‑ Cai a tarde... Ainda não é hoje que aparecerá o meu principezinho... Tudo está a postos...
21 de Julho ‑ Minha filha... Minha Gyssie.
O «principezinho» é uma menina... chegada na madrugada de 18.
Todos os sofrimentos estão esquecidos; a minha filha é tão linda!
Gys, hás‑de amar da mesma forma a nossa princezinha!...
22 de Julho ‑ Quero escrever; é preciso que Gyssie viva... Que seja feliz... Encontre seu pai... Eu, não sei se poderei... Estou tão fraca...
Minha pequenina Gyssie, que Deus te abençoe!...
O diário de Valentine parava aqui; as últimas linhas eram escritas com mão trémula e quase ilegíveis.
A jovem mãe falecera na noite de 25 de Julho, quase um ano depois de ter deixado Lião... Sete meses apenas, dia a dia, depois do Natal.
Natal! A recordação radiosa de uma grande ventura: a participação ao marido, ao pai, de que iam ter um filho.
O destino!
Tinham bastado sete meses... Um lar destruído... Um túmulo... um berço...
E é assim a vida.
Depois de ter terminado a leitura, Gyssie tornou a fechar o caderno.
Sabia agora por que motivo nascera na Bretanha... Porque não conhecera o pai...
Durante algum tempo ficou imóvel, com o olhar vago.
Tudo quanto a rodeava havia desaparecido do seu pensamento.
Voltara atrás vinte anos, junto do leito daquela jovem mãe da sua idade, morta alguns dias depois de lhe ter dado a vida.
E eis que, naquela mãezinha desaparecida, ela encontrava os seus próprios sentimentos... A alma de uma era igual à da outra... A mesma forma nítida de ver as cousas, a mesma fé, o mesmo ardor, a mesma necessidade de moral honesta.
E Gyssie, apesar desses vinte anos de distância, tinha a impressão de que a mãe também estava viva e tão perto de si, como se na verdade existisse.
Piedosamente, de novo, voltou a beijar o caderno; depois, curvando a cabeça, pousou a testa sobre as páginas escritas e onde a mãe tocara, com a mesma impressão que sentiria se estivesse apoiada sobre as queridas mãos maternas.
Parecia‑lhe que este gesto a aproximava da querida morta... Fizera‑se garotinha e repousava ternamente nos joelhos de sua mãe.
Quando se levantou tinha Maryvonne defronte dela.
A boa mulher estava silenciosa, respeitando a comoção profunda daquela criança.
Gyssie sentiu‑se reconhecida por vê‑la ali.
Ainda sob a impressão do que acabara de ler, queria interrogá‑la na presença, por assim dizer, da querida desaparecida.
Primeiramente, examinou tudo quanto o cofre encerrava além do manuscrito, todas as relíquias preciosas que Maryvonne conservara tão cuidadosamente, à espera daquele dia...
No fundo da caixa onde o caderno repousara durante vinte anos, havia mais papéis; principalmente a certidão de casamento de sua mãe: uma grande folha de papel selado, ornada com os selos azuis da Legação de Diamantino.
Gyssie leu as primeiras linhas:
«Estado livre de Diamantino:
«Aos 15 de Outubro de 1913, Gys‑Hendricht de Wriss, duque de Marzon, príncipe d'Ampolis, etc...».
Talvez, pela primeira vez na sua vida, a jovem compreendeu tudo quanto esse título representava para ela; Gyssie, filha de príncipe, não deveria nunca proceder como qualquer outra... Devido ao seu nome, à sua categoria, à sua raça, tinha obrigação de nunca fraquejar...
‑ Pobre, talvez, mas degenerada, nunca ‑ pensou.
Um passo em falso seria uma infâmia ou uma tara!... Coração ao alto! Deves continuar sempre nobre!
Voltando para Maryvonne, perguntou timidamente:
‑ Nounou, é verdade que sempre me tenho portado como uma princesa?
‑ Ah! creio bem que sim, meu tesouro! ‑ exclamou a boa mulher ‑, A tua madrinha e eu tivemos sempre este pensamento: educar‑te dignamente para que nunca tivesses de corar da tua infância. E foste sempre tão razoável, tão sensata e tão distinta, que, na verdade, toda a gente pressentia que eras uma verdadeira princesa... duma raça diferente de todas as outras crianças da aldeia... minha pequenina Gyssie!
‑ Então tudo vai bem ‑ disse ela gravemente ‑ Não tenho senão que continuar como até aqui.
Tornou a pegar no cofre e tirou as fotografias.
‑ Aqui está a tua mamã no dia do seu casamento ‑ informou Maryvonne.
‑ Sim, vejo ‑ disse, suspirando, Gyssie ‑, o lindo vestido branco com que sonhara!... Foi assim pelo braço de seu marido ‑ do meu papá ‑ que ela caminhou na igreja de «Saint‑Julien‑le‑Pauvre». Que recordação preciosa e magnífica deve ter sido para ela este retrato!
‑ Contempláva‑o todos os dias ‑ explicou a ama em voz baixa.
‑ Devia querer‑lhe muito... Pobre mamãzinha! Gyssie moveu‑se para se esquivar ao voo dos
pensamentos tristes.
‑ Jóias? ‑ disse, admirada, metendo a mão no fundo da caixa.
‑ Eram todas as que possuía... Não queria usar senão a sua aliança... Mesmo o anel do pedido de casamento, tirou‑o para o guardar para ti.
‑ Para mim! ‑ repetiu Gyssie num soluço.
- Deu‑me a sua vida... Não viveu senão para mim, e... e pensou também em me deixar estas modestas jóias. Oh! Mamie, como é atroz a minha mamãzinha ter morrido!
A velha bretã tornou a meter no cofre todas estas recordações demasiadamente comovedoras.
A «pequenina» vira‑as... Por hoje era bastante. Na sua idade há emoções que é necessário não prolongar.
Depois, como Gyssie continuava a chorar em silêncio, tomou‑a maternalmente nos seus braços,
‑ Vamos, vamos, sê forte, minha princezinha. Tudo isto já se passou há bastante tempo... Estou certa que a minha querida senhora é muito mais feliz lá em cima do que o seria cá em baixo.
‑ Oh! não creio! Amá‑la‑ia.
‑ Sim, é certo, a nossa afeição nunca lhe faltaria... Somente, vês tu, minha princesa, a tua mamã pensava sempre no seu querido, e, como este não voltou, nunca mais escreveu e é impossível saber‑se o que é feito dele, nunca se teria consolado com esta ausência e teria uma vida de lágrimas, apesar da doçura da tua presença infantil.
A jovem suspirou e ficou alguns minutos silenciosa, pensando naquele pai distante que, com um rosto de vinte‑e‑cinco anos, sorria com tanta franqueza, no retrato!... Aquele pai, de quem sua mãe nunca duvidara e para junto de quem lhe pedia que fosse... Aquele pai que, no entanto, nunca fora para junto da filha.
E pensou alto:
‑ Porque será que nunca mais escreveu? Saberia ele, pouco mais ou menos, a data do meu nascimento!
Espontaneamente, Maryvonne tomou a defesa do ausente:
‑ Evidentemente que a conhecia e com certeza isso inquietou‑o... Somente ‑ sabes? ‑ a guerra veio complicar a situação... Tu não tinhas mais do que alguns dias quando todos os sinos de França tocaram a rebate para a mobilização.
E na verdade... durante quatro anos a correspondência postal com os países estrangeiros sofreu grandes contratempos. Teu pai talvez escrevesse algumas vezes... Basta que os barcos transportadores do correio tivessem sido metidos a pique, para que nada recebêssemos... As suas cartas repousam talvez no fundo do mar.
‑ Tens razão ‑ disse a jovem, apreensiva ‑ A guerra, que ninguém previa, arruinou todos os lares!... Mas depois? Quando acabou essa maldita guerra? Não se pôde saber coisa alguma?
‑ A senhora Le Kérec investigou, nessa época... Sabia que eu tinha nas mãos os documentos da Legação de Diamantino... Com os nomes, todos os títulos... Não faltava senão a morada de teu pai... lá em baixo, na América! Então, tua madrinha escreveu para o Ministério do Interior, de onde lhe responderam que não havia rasto em Paris de uma legação de Diamantino.
«Era um engano ou uma brincadeira» ‑ diziam eles.
«Sem perder a coragem, a senhora Le Kérec dirigiu‑se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
«Dali recebeu uma resposta mais explícita:
«A França, procurada no princípio do século, segundo parecia, por um agente diplomático de Diamantino, não quisera reconhecer o governo que o enviava, porque este último era muito incerto...
«Era um país mal delimitado e em constantes revoluções!
«No entanto, o Estado de Diamantino existia, visto a resposta do ministro dos Negócios Estrangeiros dizer ainda que a Inglaterra e a Rússia tinham aceite as credenciais dos representantes oficiais.
«Esta certeza fez com que tua madrinha escrevesse directamente ao chefe do governo da América... Duas cartas seguidas ficaram sem resposta e... nunca foram devolvidas.
«Cansada da luta, a senhora Le Kérec não tornou a escrever. Receava também expor‑te a alguma vingança política... Nunca se sabe! Era bem extraordinário que os Americanos tivessem deixado as cartas sem resposta. E lembrando‑se de todas as precauções tomadas por teu pai, tua madrinha não ousou continuar as suas investigações... Primeiro, era preciso educar‑te... Depois se trataria do caso!
‑ Querida madrinha, como ela também pensava em mim...
‑ Ah! gostava muito de ti! Disso podes estar certa!
‑ Por que motivo não me fala dela no seu diário, a minha mãe? ‑ perguntou ainda Gyssie ‑ Estou certa que devia conhecer aquela que seria minha madrinha.
‑ Isso é uma outra história... Ouve, minha princesa, é necessário contá‑la, de contrário nunca compreenderias tudo quanto se passou nesse momento... Com a doença, e depois com a morte da tua mamã, não tinhas sido baptizada logo que nasceste, segundo os hábitos bretões... O nosso cura viera registar‑te... enquanto não se podia fazer o baptizado.
Parou para respirar, depois prosseguiu a narrativa, fazendo sinal a Gyssie para se sentar e tomando ela própria um lugar defronte da jovem.
‑ Quando nasceste, foi preciso declarar no registo... É uma coisa obrigatória, que toda a gente sabe.
‑ Evidentemente.
‑ Pois bem, a pobre senhora inquietava‑se bastante por causa disso... porque, não estando teu pai presente para tratar de tudo, receava que a cerimónia realizada na Legação não fosse suficiente para o registo civil.
«Ora o professor, que era também o secretário do Registo Civil, estava doente nessa ocasião...
Tinha ido para o hospital de Saint‑Brieuc, para ali ser sujeito a uma operação melindrosa. Foi o Maire de Coatderv, pessoalmente, quem redigiu o auto. Era um bom camponês já de certa idade, nesse tempo; apenas sabia ler e escrever. Olhou para o papel da Legação com os seus grandes selos; nada mais perguntou... Somente, ficara bastante orgulhoso por ter inscrito nos registos o nascimento de uma princezinha e contava o caso a toda a gente. A senhora Le Kérec soube‑o como os outros! Quando a tua pobre mamã morreu, foi rezar junto do leito mortuário, como é hábito entre nós... Foi neste dia somente que pela primeira e última vez a nossa castelã viu a princesa d'Ampolis, tua mãe, já defunta.
«A pobre senhora estava tão linda com o seu rosto branco de mármore... Parecia dormir! Dir‑se‑ia uma santa! A senhora Le Kérec ficou comovidíssima.
«Quando soube que ficaras completamente só no mundo, interessou‑se muito por ti e voltou várias vezes a Ty‑Coz, ver a orfãzinha estrangeira.
«Um dia, ofereceu se para ser tua madrinha e eu fiquei radiante com isso; para uma princezinha era melhor uma castelã, não é verdade?
‑ Se não tivesse sido ela, quem terias escolhido para desempenhar esse papel?
Gyssie olhava para a boa mulher sorrindo afectuosamente, porque bem sabia que Maryvonne era quem deveria ser a sua madrinha; já tanta vez lho explicara!
‑ Mas ‑ respondeu com efeito a humilde bretã ‑, teria sido eu. A tua mãe tinha‑mo dito. Não conhecíamos qualquer outra pessoa... Mas pensei com o meu cérebro cansado: «Uma camponesa madrinha de uma princesa, não está certo».
«E fiquei radiante quando a senhora Le Kérec se propôs para isso.
«Calculava também que eu não era bastante rica e isto dar‑te‑ia uma verdadeira protecção na vida... para mais tarde!
‑ Pobre de mim! ‑ murmurou Gyssie com um suspiro ‑, Infelizmente, a madrinha também já me deixou.
‑ Sim ‑ respondeu Maryvonne ‑ Mas graças a ela tiveste uma educação esmerada. Tinha‑me dito:
‑ «Ambas a educaremos; Maryvonne, com a sua bondade e os seus cuidados; eu, dando‑lhe a preparação para o bem‑estar, e as maneiras de uma menina de sociedade.
«Vinha visitar‑te a Ty‑Coz; gostava que estivesses bem vestida com lindas roupas do teu enxoval, feitas pela minha querida senhora.
«Além disso, tua madrinha sempre se ocupou dos teus vestidos; porém, à medida que crescias, Ty‑Coz não lhe agradava; corrias por todos os cantos como um coelhinho... a casa é justamente à beira da estrada... Ela achava isso perigoso por causa dos automóveis que começavam a circular no país... Temia, sobretudo, que adquirisses o hábito de brincar na rua com os garotos da aldeia e que isso te desse os modos destes.
«Não se pode educar uma princesa como se educa uma camponesa! Foi por este motivo que me propôs um dia que viéssemos habitar para o pavilhão do castelo... aqui onde estamos.
«Não te queria separar de mim, com certeza, visto eu continuar a cuidar de ti... Mas, no entanto, instalaram‑te num lindo quartinho, ao lado do seu... Depois, viveste tanto junto dela no castelo, como viveste junto de mim no pavilhão... A tua boa madrinha ‑ por certo te recordas ‑ ocupou‑se dos teus estudos e tinhas todo o grande parque para correr e brincar à vontade.
‑ É verdade ‑ disse Gyssie, pensativa ‑, Graças a ambas, tive uma infância e uma juventude maravilhosas... Vivi um sonho cor‑de‑rosa.
‑ Como uma princezinha das lendas ‑ terminou Maryvonne, comovida.
Fizera‑se silêncio entre as duas mulheres.
A mais nova recapitulava tudo quanto acabava de saber, a mais velha pensava na boa senhora Le Kérec, que lhe prometera educar a òrfãzinha segundo a posição que teria de ocupar, se os seus pais estivessem junto dela.
‑ Minha Gyssie... Quando penso nos vinte anos que acabam de decorrer, sinto‑me feliz... Amei‑te como se fosses realmente minha filha, aproveitei todos os teus sorrisos... E tu estavas linda, bem tratada, e vestida como as crianças ricas! E, no entanto, não eras minha filha... Tu, uma tão linda princezinha, quase minha!...
Gyssie correu para ela e abraçou‑a com entusiasmo.
‑ Sou muito tua, Mamie, porque te amei com ternura e te obedeci como uma filha verdadeira. Agora que sei tudo quanto fizeste por mim, e pela minha mamãzinha, amo‑te ainda mais do que ontem, se tal é possível! Além disso, tu, para mim, és tudo... Não tenho mais ninguém no mundo, pois não conto muito com o regresso de meu pai.
‑ Ai de mim!
‑ Quanto à minha família... a outra família!... Deste‑lhe, por acaso, parte do meu nascimento?
‑ A quem te referes, minha filha?
‑ Ao meu avô de Lião... Àquele juiz tão severo, de quem minha mãe se viu obrigada a fugir. Saberá que a filha de Valentine vive aqui?
Maryvonne teve um gesto de violento protesto.
‑ Não, evidentemente, ele nada sabe!... A tua mãe, nos últimos tempos, falou‑me muito dele... Não queria que ele soubesse nada acerca do seu casamento e do teu nascimento... do teu nascimento acima de tudo!
‑ «A minha filha não deve pertencer senão a seu pai... a ele somente» ‑repetia‑me.
«Quando nasceste e se achou tão fraca, assustou‑se com a ideia de que seu pai, sabendo do teu nascimento, pudesse vir reclamar‑te se ela aqui não estivesse para te defender.
‑ «Não quero que a minha Gyssie lhe seja confiada, Maryvonne; ele apagará o seu sorriso! Não quero que a minha filhinha conheça a grande casa sem alegria e sem sol onde eu tinha a impressão de estar enterrada viva...
«Prometi à tua mamã que nunca te entregaria a seu pai.
«E cumpri a minha palavra. Tive o cuidado de nunca escrever para Lião, como deves calcular! Foi a mim que a tua mãe te confiou... A mim somente!
‑ Fizeste bem, Mamie ‑ aprovou Gyssie com gravidade ‑, Tenho sido muito mais feliz junto de ti, mais do que em qualquer outra parte.
‑ Evidentemente... Vivemos tranquilas, as duas... Isto não impede que algumas vezes eu pense que o teu avô era rico, e, normalmente, a sua fortuna deve ser para ti.
‑ Oh! não, não falemos nisso... A minha pobre mamãzinha não tinha de modo nenhum examinado esse lado da questão; quero proceder como ela.
Maryvonne suspirou:
‑ Ah! tenho bastante pena que a tua madrinha morresse naquele estúpido desastre de automóvel... Prometera assegurar o teu futuro. A sua morte prematura, sem testamento, causou‑te um grande prejuízo, minha princezinha.
Mas Gyssie, que amara ternamente a sua madrinha, não queria misturar as saudades que sentia pela sua morte, com uma questão de dinheiro.
‑ Sim ‑ aprovou ela ‑, Perdi uma amiga muito querida e foi, com efeito, um grande prejuízo moral... A perda insubstituível de um coração amante e sincero.
‑ Em todos os sentidos, este acidente foi um desastre ‑ insistiu a ama com teimosia ‑ Talvez não tenhas dado por isso.
Aos dezoito anos a questão material não se apresenta com toda a clareza. A senhora Le Kérec gostava de ti como se fosses filha e anunciara a todos que serias a sua herdeira. Quando o seu automóvel foi feito em estilhas pelo comboio da linha de Treguier e souberam da sua morte, toda a gente estava persuadida de que o castelo e as terras seriam tuas... Foi preciso a afirmação da senhora Houat para se renderem à evidência. Nenhuma indicação a teu favor; a fortuna de tua madrinha passava para um dos seus sobrinhos, um jovem já muito rico, que fora educado nas colónias.
Gyssie tomara o partido de deixar falar a sua velha companheira. Esta continuou as explicações:
‑ Este herdeiro estava na Cochinchina quando soube da morte da sua tia. O notário anunciou‑lhe ao mesmo tempo que havia uma jovem no castelo, que era quase como filha da falecida.,. Cavalheirescamente, o rapaz decidiu que até à sua chegada a França nada mudaria para a princezinha que a sua tia recolhera.
‑ Já sei o resto ‑ interrompeu maliciosamente Gyssie ‑ O generoso cavalheiro teve piedade da órfã, e, por intermédio da senhora Houat, escreveu‑lhe uma linda carta assegurando‑lhe toda a sua simpatia. Pedia‑lhe que continuasse a habitar Kerlan e se considerasse ali como em sua casa, tal como no tempo em que a senhora Le Kérec era viva. Isto é quase um conto de fadas! E se o cochinchinês não ofereceu ainda mais, o seu coração, o seu nome e os seus deuses domésticos à princezinha bretã, é que seguramente deve ser um velho, feio, tendo uma esposa cor de açafrão, e uma meia dúzia de macaquinhos chineses cuja colecção aumenta todos os anos!
‑ Oh!... ‑ exclamou Maryvonne, escandalizada ‑ Porque queres tu que esse bom rapaz seja um cochinchinês, e tenha criado por lá as suas raízes?
‑ Eu?!... Mas não quero absolutamente nada!...
- És tu, Mamie, quem se ilude! Quando me aconselhaste que aceitasse o seu oferecimento e continuasse a viver no castelo, ouvia‑te suspirar dez vezes por dia: «Ah! que pena aquele rapaz morar tão longe... O sobrinho da senhora Le Kérec é talvez um cavalheiro interessante!...».
‑ Meu Deus! Eu dizia o que pensava!
‑ Mas não por completo, Mamie; se não, terias acrescentado com toda a sinceridade: «Um homem que herda Kerlan e todas as terras anexas, seria um bom partido para Gyssie... Isto poderia dar um lindo casamento».
A jovem principiou a rir.
‑ Então! Mamie, quantas vezes, muito baixinho para contigo mesma, pensaste isto?
‑ É verdade ‑ confessou Maryvonne ‑ Ficava desolada com a ideia de quereres aprender a estenodactilografia, para te empregares.
‑ Era razoável, visto não ter família, nem fortuna.
‑ Não importa! Quando te via ir a Guingamp, todas as semanas, para a lição, sentia‑me oprimida! E passavas todos os dias, horas inteiras, no pavilhão, a martelar na máquina.
‑ Sinto‑me satisfeita por ter tirado bom resultado. Presentemente, posso ganhar o meu pão quotidiano. É preciso qualquer dia principiar a trabalhar. Não vou ficar toda a minha vida às atenças da China!
‑ Oh! Nada nos apressa. Quando o sobrinho regressar, saberemos a sua decisão.
‑ Pois então, Mamie, prepara‑te para as emoções! Esse homem não tardará muito a aparecer. Falou em três anos pouco mais ou menos.
‑ Temos ainda alguns meses diante de nós, felizmente, minha princesa. Daqui até lá podem surgir muitas novidades.
Maryvonne, teimosa, contava ainda que o pai de Gyssie pudesse dar notícias. Em todo o caso, dentro de alguns meses, a sua "princesa" podia encontrar com quem casasse e nunca ter necessidade de utilizar o seu talento de escrever à máquina.
A jovem compreendeu a alusão ao regresso do pai e o seu contentamento desapareceu de repente.
‑ Novidades?
Ela não acreditava na volta do pai.
Decorridos vinte anos, havia poucas possibilidades de Gys de Wrisse aparecer. É bem verdade que por outro lado, tendo tomado conhecimento do que dizia o caderno de sua mãe, perguntava a si mesma se não era agora obrigação sua procurar o querido ausente!
Passaram‑se alguns dias...
Gyssie tornara‑se pensativa.
Reflectia em tudo quanto soubera no dia do seu aniversário e nas dolorosas recordações que tanto a tinham comovido.
Fazendo a aproximação das confidências de Maryvonne com o diário de sua mãe, chegava à conclusão de que, sob o ponto de vista das leis francesas, o seu nascimento era ilegítimo e não tinha talvez o direito de usar nem o nome, nem o título de seu pai...
Fora a inexperiência dum oficial do Registo Civil da aldeia, quase analfabeto, que lhe dera um estado civil normal, mas que, chegada a ocasião, podia ser legalmente contestado.
Além disso, em compensação com todas as emoções sentimentais que sofrera nestes últimos dias, esta descoberta era de pouco peso. Que lhe importava o que num país é ilegal e noutro é legal? Nunca, ninguém, provavelmente, levantaria contra ela a questão de estado civil. O caso parecia‑lhe, portanto, ser bem secundário.
Qualquer coisa de mais grave e de maior oportunidade lhe ocupava o pensamento durante as longas noites em que, sem conciliar o sono, procurava traçar a si própria uma linha de conduta.
Antes de tudo, com efeito, era conveniente compreender bem o pensamento materno.
Sua mãe escrevera: «Para a minha filha, quando tiver vinte anos...». Nesse caso, é porque a mãe ausente admitira que nessa idade Gyssie poderia saber e proceder...
Com efeito, na véspera de morrer, a infeliz esposa explicara bem:
«É necessário que minha filha encontre o seu pai...».
E, a Maryvonne, Valentine Chauzoles dissera ainda:
«A minha filha não deve pertencer senão a seu pai... a seu pai somente».
Estava, portanto, bem nítido no pensamento de sua mãe que Gyssie devia, logo que tivesse idade, investigar e esforçar‑se por encontrar aquele pai tão bom, tão sedutor, que sua mãezinha amara tanto.
A primeira ideia da jovem foi dirigir‑se à casa onde tinham morado seus pais.
A saudosa falecida não indicara a morada no seu diário, mas, por felicidade, tinha conservado nos respectivos sobrescritos as duas cartas que o marido lhe enviara.
Gyssie, examinando o assunto, admitia mesmo que, naturalmente, de volta a Paris, seu pai devia ter‑se dirigido a esta casa, a fim de ali procurar quaisquer indícios de sua mulher e de sua filha.
Era, portanto, por ali também, que ela devia principiar...
Gyssie escreveu então à porteira da casa, fazendo o maior número possível de perguntas.
A resposta não demorou, mas nada adiantava.
Muito delicadamente, a porteira desculpava‑se de não poder dar nenhuma informação acerca das pessoas que outrora tinham habitado aquela casa. A antiga porteira morrera durante a guerra e algumas outras se lhe sucederam. Quanto aos inquilinos, nenhum daqueles que actualmente habitavam o prédio se recordava das pessoas citadas.
Gyssie teve um movimento de desespero ao receber esta resposta. Contara já como certa qualquer indicação. Considerava‑a mesmo tão importante para si, como para seu pai. Quem poderia agora dar uma informação a Gys de Wrisse se fosse procurar a família? Como poderia ele vir a saber que existia uma filha, vivendo no castelo de Kerlan, em Coatderv, na Bretanha?
Evidentemente, Marie‑Yvonne Guillon e a senhora Le Kérec tinham sido infinitamente boas para a órfã, constituindo‑lhe, de facto, uma nova família. Porém, para que a filha pudesse encontrar seu pai, era em Paris, na casa onde ele vivera com sua mãe, que Gyssie deveria ter passado a sua infância. E a jovem lamentava‑se da impossibilidade material em que seu pai e ela estavam para se poderem encontrar.
Felizmente, Gyssie, sob a aparência indiferente, não era pessoa que perdesse a coragem por muito tempo. Não possuía a exuberância latina; era mais calma, mais silenciosa do que as mulheres francesas, mas, em compensação, mais resoluta e decidida do que são, habitualmente, aquelas que nunca saíram de suas casas.
‑ Irei eu própria ‑ resolveu ‑ Vou a Paris.
Quando Gyssie falou neste projecto a Maryvonne, a ama levantou os braços ao céu, como se tivesse ouvido uma coisa abominável. Foi preciso Gyssie convencê‑la, contando‑lhe pormenorizadamente todas as razões que a tinham levado a tomar esta determinação.
‑ Mas eu não te poderei acompanhar, minha querida filha ‑ lastimou‑se Maryvonne, inquieta ‑ Já estou velha demais e a viagem para as duas sairia muito cara.
- Tu és acima de tudo muito precisa aqui, minha boa Mamie ‑ respondeu‑lhe Gyssie ‑ Quem tomaria conta de Kerlan, que o herdeiro da madrinha nos confiou? E, além disso, tens confiança em mim, não é verdade?
‑ Oh! sim, minha Gyssie. Sei que és muito ajuizada e sensata. Creio mesmo que serás capaz de te saires muito bem dessa maldita profissão de dactilógrafa, que conheces a fundo... No entanto, poderias aguardar a chegada do sobrinho da senhora Le Kérec... Talvez ele te facilitasse as investigações...
‑ Que poderia fazer mais do que eu?
‑ Muita coisa: é rico! Gyssie encolheu os ombros.
‑ Escuta, Mamie, renuncia a todas as lindas esperanças que giram na tua cabeça. Esse homem nada nos deve. Se todos os que herdam fossem obrigados a manter as pessoas que os seus parentes amavam, a herança seria uma quimera!... Uma única coisa é absolutamente certa para mim: poder, com a minha instrução, tirar‑me de dificuldades na capital, procurando, entretanto, nas horas vagas, achar o rasto daquele a quem procuro! Um príncipe estrangeiro não deve ser muito difícil de encontrar... Em Paris, nos ministérios, indicar‑me‑ão o que devo fazer.
E Maryvonne, com o coração oprimido, mas forçadamente convencida, teve que aceitar a partida da criança a quem educara.
A próxima viagem de Gyssie em breve foi conhecida por toda a aldeia de Coatderv. A senhora Houat, que residia na capital do distrito, aprovara‑a por lhe parecer natural e razoável que uma jovem, sem fortuna, procurasse assegurar a sua independência por meio de um trabalho regular e com o seu honorário; mas o abade Palmech, que dera a primeira comunhão a Gyssie, foi menos entusiasta. Receava, ainda mais do que Maryvonne, a solidão e as dificuldades que a sua pequena paroquiana ia encontrar na grande Paris.
Não dizia a voz corrente que eram as ingénuas raparigas da Bretanha as que mais facilmente sucumbiam, formando a maior parte das infelizes que a Prefeitura vigiava?
Evidentemente, Gyssie era muito séria, mas sabe‑se por acaso a quantas tentações está exposta a inocência e a pureza?
Esta ideia atormentou‑o de tal forma que o bom abade acabou por lhe encontrar uma solução.
Viviam na capital uns vagos primos do falecido marido da senhora Le Kérec. Ela não se dava muito com eles, mas o abade conhecia‑os o bastante para lhes recomendar calorosamente Gyssie.
O excelente homem arranjou as coisas de tal maneira e fez um tão grande elogio da sua paroquiana, que o senhor e a senhora Le Fíir ofereceram um lugar a Gyssie nos seus próprios escritórios.
Ficou combinado que a jovem serviria de secretária do senhor Le Fíir, todas as manhãs. Ficaria portanto, para ela, a parte da tarde inteiramente livre. Como retribuição pelo seu trabalho, o casal Le Fíir comprometia‑se a dar‑lhe casa e alimento, sem nenhuma remuneração.
Maryvonne achou que tal oferta não era para desprezar, visto assegurar, em qualquer caso, um lar a Gyssie, dando‑lhe ao mesmo tempo a possibilidade de fazer as investigações que desejava empreender.
‑ Sim, está muito bem ‑ disse Gyssie, um pouco triste por não ser remunerada ‑ No entanto, como não poderei andar em Paris, nem vestir‑me, sem ter qualquer dinheiro comigo, vou continuar a ficar na tua dependência, minha boa Mamie.
A bondosa Nounou soube convencer a sua «princesa» que Kerlan, cujos rendimentos lhes tinham deixado ficar, dava bastante com os seus legumes, frutas e criação que eram vendidos no mercado, para que pudesse pagar as modestas despesas de Gyssie, em Paris.
- Compreendes, minha princezinha: a nossa alimentação vem toda dos produtos das herdades; assim, que hei‑de eu fazer ao dinheiro que recebo, todos os sábados, em Guingamp?
Gyssie deixou‑se convencer. Com o coração oprimido, mas o espírito cheio de decisão, uma manhã abraçou ternamente a sua querida Nounou e partiu para Paris.
‑ Felicidades, princezinha. Escreve muitas vezes... e sê o mais extensa possível.
‑ Mandar‑te‑ei um verdadeiro diário, todas as semanas. Até à vista, Mamie, até à vista, minha boa Nounou!
O acolhimento do casal Le Fíir foi simples e cordial. Gyssie ficou encantada.
Os amigos do abade Palmech deram‑lhe um quarto no último andar da casa que habitavam, na rua Franklin, perto do Trocadero. Este quarto, que ficava ao lado do quarto da criada, era quase tão pequeno como o dela. No entanto, Gyssie sentia‑se lá muito à vontade e gostou dele imediatamente, porque a vista era magnífica e alongava‑se por cima dos telhados da cidade até aos confins da região parisiense.
Todas as manhãs, a órfã ia para o escritório do senhor Le Fíir, que tinha o negócio de seguros. Este trabalho durava até ao meio‑dia.
Quando era a hora do almoço, dirigia‑se ao domicílio da senhora Le Fíir e lá comia na companhia do casal.
Era uma hora agradável e calma; a comida era variada e o dono da casa muito comunicativo.
Se Gyssie tivesse um pouco mais de experiência da vida, teria notado que o entusiasmo do marido irritava a boa senhora Le Fíir, que algumas vezes deixava transparecer sinais de mau humor.
Mas a jovem não podia adivinhar que ela era ciumenta e que o marido já lhe dera bastantes motivos para o ser!
Não, Gyssie não podia perceber os segredos da vida íntima do casal Le Fíir. O marido era para ela um patrão... nada mais do que um patrão! Qualquer coisa como o misto de pai de família e de mestre‑escola... Enfim, era mais velho do que ela cerca duns quarenta anos, o que para uma jovem de vinte o colocava quase na categoria das pessoas de bastante idade.
Tudo quanto ela via, na sua nova vida, era ter encontrado logo em Paris um lar de amigos, que representavam para ela, fosse de que maneira fosse, uma família. E todas estas coisas lhe pareciam perfeitas, visto que, tendo as tardes livres, podia, facilmente, entregar‑se às suas investigações.
Até aqui, as suas diligências não tinham tido qualquer resultado; fazia‑as quase ao acaso, e esbarrando sempre, nos ministérios onde ia, com empregados que não a atendiam, ou que a informavam mal, mandando‑a para outros lados absolutamente estranhos ao fim em vista.
O acaso ia fornecer‑lhe uma boa vontade mais esclarecida, pronta a ficar à sua disposição.
Os Le Fíir recebiam muito. Quase todas as tardes havia um ou dois convivas à mesa. Nestes dias ficavam muito orgulhosos por poderem apresentar a hóspeda aos seus conhecimentos, fazendo destacar bem o seu título de «princesa».
Foi assim que um dia a apresentaram a um dos seus amigos, grande viajante que chegara do estrangeiro e que não estava em França senão há pouco tempo.
Gyssie mal ouviu o nome daquele que se inclinava correctamente diante dela; distinguiu somente a figura alta do convidado e o seu olhar claro e profundo.
‑ Um bonito rapaz ‑ pensou.
Quando ele se ergueu, os olhares de ambos cruzaram‑se, colorindo de um tom rosado as faces de Gyssie e fazendo passar um clarão de admiração nas pupilas do recém‑chegado.
À mesa, a jovem não falava. Ouvia principalmente o que diziam à volta dela.
Assim, soube que o conviva apresentado antes da refeição era oficial de Marinha. Por este motivo e apesar de novo ainda ‑ trinta e dois anos apenas ‑ já percorrera quase toda a superfície da terra.
O convidado tomou repentinamente aos olhos da jovem uma importância extraordinária.
Quando se levantaram da mesa, Gyssie aproveitou a primeira ocasião para interrogar o oficial.
Nesse momento tomava o café, em pé, junto dela, que acabava de ajudar a dona da casa a dar as chávenas aos convivas.
Primeiro, embaraçada por ter que iniciar a conversa, a jovem esboçou um sorriso, ao qual o viajante respondeu solicitamente.
‑ Ouvi falar das suas principais viagens, senhor ‑ murmurou, pouco à vontade ‑ Conhece certamente uma enormidade de países.
‑ Com efeito, não há nenhum que não conheça.
‑ Mesmo a América do Sul? ‑ interrogou Gyssie, sempre com timidez.
‑ Conheço muito bem essa metade do continente ‑ afirmou o oficial, com firmeza.
‑ Então conhece Ampolis?... Ou antes, Diamantino?
‑ Ampolis?
O oficial de Marinha teve um gesto de ligeira surpresa, e fitou Gyssie.
‑ Ampolis?... Não, não conheço.
‑ É, creio eu, uma grande cidade de Diamantino... A capital.
‑ Nunca fui para esses lados. Sei que esse país existe nos limites ainda mal definidos dos planaltos de Arinos e de Mato Grosso... Lastimo nunca ter tido ocasião de o percorrer, pois ficaria encantado se a pudesse informar.
Enquanto falava, observava com extrema atenção o fino rosto daquela que o interrogava. Gyssie era encantadora e muito distinta, apesar da sua grande simplicidade. O oficial sentia‑se verdadeiramente atraído por ela.
‑ Posso perguntar‑lhe ‑ disse num tom que diligenciava tornar indiferente ‑ por que motivo esse país distante e tão pouco conhecido tem a honra de a interessar?
Abertamente e sem rodeios, Gyssie respondeu:
‑ Meu pai é natural de Ampolis... Pertence a uma antiga família de Diamantino. Infelizmente, os acontecimentos políticos que lá se deram... depois da Guerra Europeia, separaram‑nos. Após isso, tenho procurado, em vão, encontrar os seus vestígios.
Para desvanecer a triste impressão que poderiam produzir as suas confidências, acrescentou com um sorriso gracioso, ao qual o seu interlocutor pareceu dar toda a importância:
‑ Por esse motivo, como vê, interrogo os viajantes...
‑ O viajante está desolado de não poder informá‑la melhor ‑ respondeu com seriedade.
E acrescentou, para a conhecer melhor, ou para prolongar a conversa:
‑ Também lá nasceu?
‑ Oh! não ‑ respondeu Gyssie ‑ divertida com a suposição ‑ Sou quase bretã... ou, pelo menos, nascida na Bretanha, em Coatderv.
‑ Coatderv? ‑ repetiu o desconhecido, como se estivesse pensando noutra coisa.
‑ Na «Costa do Norte» ‑ esclareceu a órfã ‑, Passei toda a minha juventude no Castelo de Kerlan, em casa de minha madrinha, que era ainda aparentada, segundo me disseram, com a família Le Fíir... A senhora Le Kérec, uma excelente pessoa que me educou e amou como se fosse sua filha... Talvez conheça esse nome!
O oficial admirou a grande franqueza com que Gyssie, para fazer conhecer a sua origem, se abrigara imediatamente por detrás de um nome francês, honrosamente conhecido. Nem vaidade, nem falsa humildade se notavam no tom da sua voz e, no entanto, em poucas palavras, conseguira fazer
compreender tudo quanto dizia respeito à sua situação de estrangeira e órfã, educada num meio sério, graças à generosidade de uma madrinha rica.
‑ Parece‑me que ouvi a senhora Le Fiir chamar‑lhe «princesa» ‑ respondeu ele apenas ‑ Era a si a quem ela dava este título?
‑ Sim ‑ explicou Gyssie, um pouco constrangida ‑, Princesa d'Ampolis... Mas chamo‑me Gyssie de Wriss.
‑ Princesa d'Ampolis ‑ repetiu o oficial, pensativo ‑ É um título bonito, muito brilhante, que usa admiravelmente... Posso felicitá‑la? É uma linda princesa e não perde nada com isso!
Gyssie corara ao ouvir este cumprimento, acompanhado de um olhar respeitoso, mas ardente.
‑ Oh! ‑ balbuciou ‑ Uma princezinha simples e sem pretensões... Desempenho o lugar de secretária no escritório do senhor Le Fiir; já vê que não é das situações mais brilhantes.
Uma verdadeira surpresa se desenhou no rosto do oficial de Marinha.
‑ Secretária? ‑ disse ele, arqueando as sobrancelhas escuras.
‑ Mas sim, uma simples estenodactilógrafa ‑
confirmou alegremente.
‑ Perdoe‑me, mas eu julgara compreender há pouco que habitava o castelo de Kerlan!
‑ E ainda lá morava há quinze dias. Continuo a ter lá o meu quarto e a minha ama lá me conserva o meu lugar. Foi isto com certeza o que lhe disse a senhora Le Fíir. Mas tenho agora vinte anos e o castelo não é meu. Preciso de acostumar‑me a ganhar a vida, visto que sem meu pai não tenho meios próprios de existência.
Uma nuvem ensombrara a fronte do jovem
oficial.
Maquinalmente, endireitou‑se, olhando Gyssie profundamente. Ao notar isto, Gyssie supôs que o seu interlocutor ficara desapontado por ver que ela, apesar do seu título, não passava de uma órfã sem dinheiro.
Este pensamento escureceu o seu meigo sorriso feminino.
‑ Quando estou em Paris, venho muitas vezes visitar os meus velhos amigos Le Fíir ‑ dizia entretanto o oficial ‑, Espero, pois, ter o prazer de a encontrar aqui muitas vezes.
‑ Ficarei encantada ‑ respondeu sem entusiasmo, talvez mesmo com tristeza.
Pela primeira vez na sua vida, Gyssie sentiu‑se invadida pela melancolia, ao pensar que era realmente pobre.
Um segundo pensamento, formulado igualmente pela primeira vez, acudiu‑lhe em seguida e fê‑la soltar um suspiro:
‑ E no entanto pertenço a uma família de sociedade... Meu pai é príncipe e meu avô materno juiz do tribunal...
Esta observação, ao atravessar‑lhe o cérebro, reconfortou‑a um pouco.
A conversa dos dois jovens ficou por aqui. A senhora Le Fíir, aproximando‑se, falou‑lhes doutro assunto.
Quando os convidados sairam, a jovem senhora perguntou a Gyssie:
‑ Como acha o nosso amigo Le Gurum?
‑ Quem?
‑ O nosso amigo Alex, se assim o prefere... o oficial de Marinha.
‑ Ah! ele chama‑se Alex... Qual é o apelido? ‑ acrescentou Gyssie, que não o compreendera quando a senhora Le Fíir lho apresentou.
‑ Oh! Le Gurum não é apelido de família ‑ interveio de Le Fíir, rindo ‑, é quase um nome nacional! Metade dos bretões chama‑se assim! Como vê, não temos falta de trovões por cá, mesmo que sejam de Brest.
Como Gyssie ficasse séria, sem compreender, ele explicou:
‑ Le Gurum quer dizer: «trovão». Isto ressoa por todos os lados na Bretanha. Há‑os por toda a parte e os «trovões de Brest» podem também ser de qualquer outro lado.
Le Fíir estava radiante com o gracejo e Gyssie sorriu delicadamente.
Não ligou qualquer outra importância a este nome, mas a imagem do jovem oficial flutuou‑lhe, "contra vontade, muitas vezes no pensamento.
Além disso, teve ocasião de o tornar a ver em bastantes ocasiões, em casa dos Le Fíir, onde, como ele dissera, parecia sentir‑se muito satisfeito.
Depressa se tornaram camaradas e Gyssie pôde verificar que a sua falta de fortuna em coisa alguma prejudicava aquela mútua simpatia. Pelo contrário, o jovem oficial esforçava‑se em todas as circunstâncias por quebrar a frieza, procurando inspirar a Gyssie uma grande confiança. Depois de uma meia dúzia de encontros, dir‑se‑ia que os dois jovens já eram conhecidos de longa data e que uma boa amizade os unia há bastantes anos.
Gyssie, se bem que muito correcta, ficava, entretanto, instintivamente reservada perante um camarada de sexo oposto ao seu; quanto a Alex Le Gurum, se este não conseguia apagar a chama que brilhava nos seus olhos quando contemplava a órfã, esforçava‑se, pelo menos, em se mostrar infinitamente correcto e impecável para com ela.
Gyssie foi à casa em que sua mãe habitara. Sabia que a porteira era outra, mas tinha esperanças que aquela que lá estava agora talvez tivesse recebido a visita de seu pai. Queria também, mostrando a fotografia de seus pais, procurar acordar a memória dos inquilinos de antes da guerra, ou dos comerciantes vizinhos, a fim de obter qualquer informação útil.
A sua esperança pouco durou: o prédio fora arranjado de novo e para fazer estes trabalhos tiveram que despedir os inquilinos antigos.
Nas lojas, o resultado também era infrutífero. A órfã evocava uma época muito distante para que um rosto ainda pudesse ser reconhecido. Se Gyssie estivesse bem ao facto dos hábitos de seus pais, teria compreendido que esta última tentativa era inútil. Gys de Wriss e sua esposa evitavam as lojas do bairro a fim de não revelarem aos vizinhos a modéstia das suas compras.
Quando escreveu a Maryvonne contando‑lhe este primeiro insucesso, Gyssie não parecia ter perdido a coragem. Possuía uma vontade forte e tenaz e ainda não conhecia as alternativas em que se esgotara a energia, mais nervosa, de sua mãe.
Depois desta derrota, sem perder a coragem, decidiu procurar o doutor Maudoire, de que falava o diário de Valentina Chauzoles.
O seu primeiro pensamento foi de ir informar‑se no hospital franco‑americano, onde estivera como interno e sua mãe o conhecera.
Mas a guerra acabara. O hospital tinha agora um outro nome e, depois do armistício, mudara de direcção e de pessoal. Também ali não conseguiu obter qualquer indicação.
Pensou então em obter algumas informações na Escola Médica. Ali, pelo menos, supunha, poderiam fornecer‑lhe dados sobre os antigos alunos; o nome de Maudoire não devia ser desconhecido.
Não sabia muito bem a quem devia dirigir‑se para este fim, mas, ao sair de casa dos Le Fíir, nessa tarde, dizia para consigo que iria principiar as investigações pela Faculdade de Medicina. Imediatamente, faria então o que melhor lhe parecesse.
Absorta nestes diversos pensamentos, encaminhou‑se para o Trocadero, a fim de ali tomar um autocarro.
Quando voltava a esquina do palácio do Trocadero chocou com Alex Le Gurum, que soltou uma exclamação de alegria ao vê‑la.
Um encontro com o oficial de Marinha era sempre um prazer para Gyssie, que pela primeira vez o via sem ser em casa dos Le Fíir.
Amigavelmente, os dois jovens trocaram um aperto de mão.
‑ Que sorte! ‑ exclamou Alex, afectando uma grande surpresa ‑ Não sabia o que havia de fazer da minha tarde e eis que, um acaso benfazejo, coloca no meu caminho uma agradável companhia.
O acaso tinha, por certo, as costas largas, visto Gyssie sair todos os dias, com regularidade, às mesmas horas.
Mas Alex sorria e a jovem não suspeitou sequer um segundo que este encontro pudesse ter sido premeditado.
Com uma distância de vinte anos, a mesma comédia recomeçava. Tal como Gys de Wriss outrora procedera para com a mãe, Alex Le Gurum procedia agora para com afilha... Gyssie não ligou os factos. E quando, cheio de gentilezas, o jovem oficial se ofereceu para a acompanhar, não teve uma hesitação sequer:
‑ Oh! Com a melhor vontade ‑ disse ela, com prazer ‑ Vou imediatamente fazer‑lhe pagar o tributo...
‑ Às suas ordens ‑ respondeu Alex, radiante. Confiada e numa franqueza absoluta, a órfã explicou:
‑ Estou um pouco embaraçada por ter que ir procurar uma informação na Escola Médica; quer ajudar‑me?
‑ Da melhor vontade. De que se trata?
‑ De encontrar um médico.
‑ De Paris?
‑ Não sei onde está actualmente. Era interno em 1914...
‑ Mau!.
Em que hospital?
‑ O hospital já não existe... Já lá fui sem resultado.
‑ Isso parece‑me bastante difícil, porém... Experimentemos... Primeiro, antes de ir à Escola Médica, poderíamos consultar um anuário médico.
‑ Ora aí está uma ideia que nunca me teria ocorrido. Esse anuário deve, com efeito, mencionar todos os nomes e as moradas de médicos que trabalham actualmente em França.
‑ Vamos ver ‑disse simplesmente Alex. Para atravessar a praça do Trocadero, o oficial
de Marinha passou a sua mão por debaixo do braço de Gyssie, que corou com esta grande confiança; mas, como o seu companheiro não mostrava qualquer familiaridade e parecia muito simplesmente preocupado em conduzi‑la por entre os carros, não retirou o braço da mão escaldante que o segurava. O anuário, que acabaram por encontrar numa grande farmácia moderna, indicava dez médicos com o mesmo nome.
‑ Deus meu ‑ disse Gyssie, quase a perder a coragem ‑ nunca conseguirei chegar ao fim! Como poderei saber dentre estes médicos qual é aquele que procuro?
Mas Alex não se perturbou. Tomou nota pacientemente dos nomes; das moradas e das informações essenciais acerca de cada um.
‑ Vamos proceder por eliminação. Suponho que não será indiscrição da minha parte perguntar‑lhe algumas características desse doutor... E também quais são as razões que a levam a procurá‑lo. Poderia ajudá‑la mais eficazmente se estivesse ao facto...
O olhar límpido de Alex era tão leal que Gyssie não teve senão um breve segundo de hesitação.
‑ Seja: contar‑lhe‑ei tudo... Mas será longo... É uma verdadeira história... Terá paciência e tempo necessário para me ouvir?
‑ Para a ouvir, Gyssie, tenho a vida inteira diante de mim ‑ respondeu com seriedade
‑ Mas procuremos um sítio mais confortável do que a rua, com este tempo tão incerto. Não quer ir tomar chá em qualquer dessas casas, neste bairro?
Com a mesma franqueza, Gyssie aceitou.
A tarde não ia muito adiantada e a hora do chá ainda vinha longe; assim, no salão de uma pastelaria moderna e decente, onde entraram, ficaram absolutamente sós. Era tudo quanto podiam desejar de melhor.
Muito bem instalada junto de Alex, ao fundo da sala deserta, Gyssie falou.
Resumiu a largos traços e com uma delicadeza rara, a vida de Valentine Chauzoles, o seu estranho casamento, a sua infelicidade e a sua morte.
Alex escutava com surpresa esta narrativa singular ", uma emoção íntima o atormentava quando Gyssie falava do amor de seus pais, das promessas sagradas do pai e da grande confiança que a falecida tinha no marido, A verdade obriga‑nos mesmo a dizer que Alex se sentia um pouco contrariado quando o amor filial de Gyssie deixava transbordar o coração, dizendo maquinalmente algumas palavras afectuosas falando de seu pai, e ao compreender que a jovem compartilhava, igualmente, a grande confiança que a mãe tivera no homem a quem adorara.
É que o jovem oficial, depois da sua primeira conversa com a órfã, informara‑se melhor acerca de Diamantino. Sabia que, no ano de 1887, um aventureiro chamado Jules Marin, natural de Malakoff, ali improvisara a república de «O Amazonas Independente», com um conselho de governo com sede em Paris. Mas, depois dessa época, este território conhecera muitas vicissitudes. Alguns franceses infelizes lá tinham ido morrer de miséria, mais do que de doença.
Ora, Alex não podia compreender bem como é que uma verdadeira dinastia, de origem holandesa, podia lá ter existido. Até mesmo o nome de Ampolis não era citado entre as várias aglomerações, sem importância, desse território. Um único pormenor, nessa história mirabolante, dava alguma possibilidade à existência dum Estado livre de Diamantino: pelo começo do século a Inglaterra aceitara as credenciais dum dos seus representantes, se bem que certa convenção franco‑brasileira atribuísse este país ao Brasil.
Por várias vezes, no decorrer da narrativa de Gyssie, o oficial de Marinha teve tentações de a interromper e dizer‑lhe tudo quanto pensava a este respeito.
Receando causar‑lhe um desgosto ao dissipar‑lhe as ilusões e temendo também fazer, apesar das aparências, um julgamento excessivamente sumário acerca do pai, Alex dominou o seu impulso e escutou até ao fim as confidências da sua companheira.
Mas que história tão extraordinária! E como se podia acreditar na boa fé de Gys de Wriss?
Por certo, Alex não queria ferir nem desiludir a adorável e confiante Gyssie, dizendo‑lhe a sua maneira de sentir acerca da legação de Ampolis e do casamento em que a sua pobre mãezinha acreditara.
A suposição menos desagradável que a narração fazia nascer no seu espírito era que o estudante de direito internacional devia estar sinceramente apaixonado. O idílio começara numa verdadeira mistificação e acabara num amor sério e profundo.
Esta hipótese parecia absolutamente aceitável, porquanto, provavelmente, a mãe de Gyssie possuía o mesmo encanto fascinador da filha... esta criança altiva e confiante que acreditava, com uma fé cândida e leal sinceridade, na «estirpe gloriosa de seu pai» e no seu título de princesa... Aquele título que lhe ficava tão bem e que usava como uma pessoa de sangue real.
Não, Alex não queria perturbar esta alma de criança, recta e crente, por quem principiava a
estar perdidamente enamorado... Por coisa alguma deste mundo quereria ensombrar o lindo olhar límpido que se erguia para ele com tanta confiança e sinceridade.
Pelo contrário, ia procurar acreditar exactamente em tudo quanto ela lhe dizia e entrar também no jogo... Quer dizer, procurar convencer‑se realmente de que tudo, no casamento de Valentine Chauzoles, se passara com normalidade.
E, como o seu rosto parecia aceitar todas as explicações de Gyssie, porque lhe prometera, muito sério, ajudá‑la a encontrar Gys de Wriss, os grandes olhos dela ergueram‑se iluminados de alegria e de confiança.
‑ Oh! Senhor le Gurum! Como sou feliz por querer ajudar‑me... O senhor, que conhece Paris e tem a experiência das escolas, do Bairro Latino, dos Ministérios, de tudo quanto eu ignoro e de que apenas sei o papel ou o funcionamento...
Ela olhava‑o e Alex, estremecendo, impressionado por este olhar tão puro, fito no seu, sentia‑se preso de amor. Prometeria atingir o céu e arrancar a lua, para fazer prolongar esta deliciosa impressão que o agitava. Teve que se reprimir para não deixar escapar as palavras ardentes que lhe queimavam os lábios e as suas mãos crisparam‑se sobre a mesa, na necessidade de se conter, para não tomar nos braços aquela que, sentada a seu lado, o perturbava tão intensamente, mas a quem uma palavra demasiadamente gentil ou um gesto excessivamente familiar assustariam e teriam feito fugir.
Que esforço intenso foi obrigado a fazer, sobre si mesmo, para deixar escapar pela garganta seca esta insignificante resposta:
‑ Permita‑me, Gyssie, que me ocupe do assunto dos médicos. Não se fatigue mais até eu lhe levar a informação que deseja.
‑ Mas que vai agora fazer?
‑ Vou escrever, desde já, a todos os médicos com o nome de Maudoire...
Descanse que nada direi acerca do verdadeiro motivo que me leva a proceder assim... Serei prudente...
‑ Isso vai causar‑lhe muitas maçadas, senhor Le Gurum...
‑ Oh! não me maça absolutamente nada. Por si, Gyssie, que haveria que eu não fizesse?
A voz dele tremia de emoção mal contida.
Mas a órfã, toda entregue aos seus pensamentos filiais, parecia não ter sequer notado a sua comoção.
‑ A mim, uma rapariga ‑ dizia ela ‑ talvez não respondessem. É de tal forma suspeita, uma mulher que procura o endereço dum homem desaparecido... ao passo que a si, senhor Le Gurum, dir‑lhe‑ão imediatamente a verdade.
‑ Sim, hão‑de responder‑me, com certeza ‑ aprovou ‑ Mas, à pequenina Gyssie, uma vez que eu sou agora seu amigo... qualquer cousa parecida com um irmão mais velho, pronto a ajudá‑la e a trabalhar para si, continuará a chamar‑me senhor Le Gurum? Não acha que uma irmã... ou melhor ainda, que entre camaradas como nós somos, poderia evitar o "senhor" com que cerimoniosamente precede o meu nome? Como seria gentil da sua parte tratar‑me muito simplesmente por Alex!...
‑ Oh! Mas não ousaria!‑protestou Gyssie, corando instintivamente.
‑ Porquê? Eu ouso chamar‑lhe apenas Gyssie! Assim, dar‑me‑ia a impressão de que não estou absolutamente só... que possuo na vida uma irmãzinha, querida e confiada... Aqui tem! Dar‑me‑ia quase a impressão de que procuro com ela o pai que ambos perdemos. E agora, pequena Gyssie, como seria lindo existir entre nós a ilusão desses laços fraternais!
Gyssie não respondeu logo de seguida. Com os cotovelos apoiados em cima da mesa, deixou vaguear o olhar por alguns pares que guarneciam agora o salão de chá.
Depois, voltando os seus olhos para o companheiro:
‑ Um irmão mais velho? ‑ disse ela por fim, saindo do seu sonho ‑ Sim, é assim mesmo que penso em si. É verdade, Alex. Parece‑me que já o considero realmente como um irmão mais velho em quem terei confiança e a quem amarei muito.
De novo o jovem oficial se perturbou sob este olhar de mulher.
Um impulso atraíu‑o para a jovem e tomou‑lhe a mão, que levou aos lábios longamente.
‑ Gyssie, minha irmãzinha... Gyssie adorada... A paixão fazia‑o divagar. Mas, prudentemente,
conteve‑se, porque a mão feminina já se subtraía à carícia demasiadamente prolongada da boca masculina.
No entanto, se ele tivesse visto o olhar, perturbado e profundo, no qual, por um instante, a jovem inconscientemente o envolvera, teria conhecido subitamente a deliciosa embriaguez de todas as esperanças.
Pela primeira vez na vida a princezinha de vinte anos acabava, sem se aperceber, de vibrar ao contacto de um homem...
E, ingenuamente, o seu coração alegrava‑se, porque pensava:
‑ Oh! Como é bom ter um irmão!... E como vou amar este querido irmão Alex que a providência divina, com tanta felicidade, colocou no meu caminho!
Como todas as manhãs, Gyssie acabava de entrar no sumptuoso escritório do senhor Le Fiir, onde, muito diligentemente, desempenhava as funções de secretária. Parecia‑lhe que o zelo e mesmo a dedicação da sua parte eram absolutamente naturais como reconhecimento pela maneira cordial e afectuosa com que era recebida em casa deste bondoso casal.
José Le Fíir mostrava‑se para com ela mais um amigo do que propriamente um patrão. Gyssie estava‑lhe reconhecida por tudo isso, sem qualquer pensamento reservado. Quanto à esposa, se bem que estivesse por vezes um pouco nervosa, por carácter ou pelo seu estado de saúde, tinha‑se sempre mostrado realmente bondosa para ela.
O trabalho diário de Gyssie consistia em tomar nota, por meio de estenografia, das respostas que o «patrão» lhe ditava ao abrir a correspondência; depois, passava essas mesmas respostas à máquina de escrever. Quando José Le Fíir saía para tratar dos seus negócios, Gyssie ficava sozinha durante o resto da manhã; antes de sair, colocava o correio «para assinar» em cima da secretária do director e ia‑se embora, muitas vezes sem o tornar a ver.
No entanto, havia já algum tempo que o senhor Le Fíir ficava bastantes vezes até à hora da partida de Gyssie, e, nesses dias, entravam em casa juntos, para almoçar. Apesar da sua ingenuidade, Gyssie acabara por notar que o mau humor da senhora Le Fíir coincidia com os dias em que regressava em companhia do marido.
Admirada e surpreendida com tal descoberta, que não sabia explicar, arranjou as coisas de forma a poder ir sozinha para casa. O pensamento de que uma mulher casada podia ter ciúmes seus era‑lhe odioso e levava Gyssie a perguntar a si própria se não seria conveniente procurar outra colocação.
Numa manhã, Gyssie sentara‑se à máquina e José Le Fíir, depois de ter ditado o correio, não saíra.
Estava sentado à secretária, a tamborilar nervosamente com os dedos sobre uma faca de cortar papel, de que não se servia. O jornal, estendido diante dele, também parecia não lhe prender a atenção.
Uma ou duas vezes, olhara de revés para a secretária e perguntara com impaciência:
‑ Já acabou?
‑ Ainda não ‑ respondera Gyssie, sem notar sequer a agitação do patrão.
Logo que escreveu a última linha, principiou a juntar toda a correspondência, quando José Le Fíir lhe disse com um ar ligeiramente hesitante:
‑ Tinha‑me esquecido... Há ainda uma carta para ditar... mais uma carta... mas íntima! Devo lembrar‑lhe que as secretárias estão ligadas pelo segredo profissional... Espero, portanto, que não fale nisto em minha casa.
‑ Não tenho que falar de assuntos do meu serviço‑ respondeu, deveras embaraçada.
Tornou a pegar no bloco, no lápis, e, maquinalmente, ligando maior importância ao som do que ao sentido das palavras, como sucede em estenografia, pôs‑se a escrever as frases que o director lhe ditava... No entanto os termos eram de tal forma insólitos que foi obrigada a tomar atenção, ficando mesmo aborrecida.
‑ Que queria aquilo dizer? Que ideia surgira ao patrão, para mandar dactilografar uma carta como aquela, e pela sua empregada?! Uma carta de amor!
À medida que estenografava aquelas palavras, ao mesmo tempo tolas, pretensiosas, mas bastante inconvenientes, Gyssie corava de desgosto... E, por vezes, de tal forma aquela carta lhe parecia ridícula, que sentia vontade de rir.
No entanto, não deixou transparecer estas diversas impressões.
Aparentemente impassível, logo que o senhor Le Fíir terminou, principiou a escrever à máquina aquela estranha missiva.
Com ligeireza, os seus dedos delgados batiam sobre as teclas brancas e, indiferente à atitude estranha que o patrão tinha nessa manhã, não voltou a cabeça, uma única vez, para o seu lado.
Assim que terminou a carta, com a mesma naturalidade de quando se tratava de correspondência comercial, Gyssie perguntou:
‑ Escrevo a direcção, ou o senhor mesmo a faz?
‑ Escreva‑a ‑ disse Le Fíir, que continuava a olhá‑la por baixo.
E como ela ficasse imóvel, esperando uma explicação, acrescentou bruscamente, levantando‑se:
‑ Ponha... Pode pôr a sua!
E fixou‑a ousadamente, esperando que ela reagisse.
A jovem sentiu‑se corar, mas não vacilou. Apesar da sua estupefacção, pensou imediatamente que o melhor seria tomar o caso como uma brincadeira.
E, para evitar o olhar desse homem que não perdia um único dos seus gestos, desviou‑se um pouco dele. Depois, dobrando a famosa carta, meteu‑a num sobrescrito e colocou‑a sem afectação em cima do resto do correio.
Como a sua tarefa terminara, arrumou a máquina e os restantes utensílios, sem se tornar a importar com o olhar que a fixava.
Na realidade, sufocava de vergonha e de indignação, e estava com pressa de se ver fora dali para respirar à vontade e reflectir na situação singular que lhe tinha criado a inconveniência do patrão.
Nenhuma outra palavra se trocou entre Gyssie e ele, mas a jovem ficou perturbada para o resto do dia. Compreendia que a sua presença naquela casa ia tornar‑se impossível. Mil pequenos nadas em que a sua boa e leal inocência não reparara na ocasião, vinham‑lhe agora à lembrança.
Por momentos também, esta história parecia‑lhe de tal maneira vergonhosa e estúpida que preferia julgar que se tratava de uma brincadeira de mau gosto.
Em todo o caso, só tinha a felicitar‑se pela atitude indiferente e superior que tomara para com Le Fíir, esperando que ele compreendesse que não devia insistir.
A sua espectativa foi iludida. No dia seguinte, pela manhã, quando chegou ao escritório, já encontrou o patrão sentado à secretária. Ditou‑lhe o correio como de costume, mas com um aspecto frio, que não teria parecido estranho à órfã se nada se tivesse passado na véspera.
‑ Muito bem ‑ dizia Gyssie para consigo mesma, satisfeita ‑ Por certo percebeu. Melhor! É de tal forma ridícula e desagradável semelhante história!...
Logo que terminou, dirigiu‑se como de costume para a máquina de escrever. Tendo tirado a cobertura de tela encerada que a cobria, a fim de a preservar da poeira, encontrou, bem em evidência sobre o teclado, uma carta... A famosa carta! Desta vez tinha uma direcção escrita pelo próprio punho de José Le Fíir... Uma direcção estranha assim concebida:
«Para aquela cuja graça e beleza perturbou a minha razão».
Agora, Gyssie não podia continuar a fingir que não compreendia.
Atónita no primeiro momento, a jovem sentiu‑se de repente cheia de indignação; como podia este homem, em quem depositava toda a confiança, que prometera ao abade de Palmech recebê‑la em sua casa e protegê‑la contra os perigos da grande cidade, ser o primeiro a ousar faltar‑lhe ao respeito? Era absolutamente ignóbil!
E depois, acima de tudo, ele era casado. Em que situação vergonhosa a colocaria, no seu próprio lar, entre ele e a juvenil senhora que tão bem a acolhera?... Era uma abominação!
Esforçando‑se para dominar a violência da sua indignação, Gyssie dirigiu‑se para a mesa do director e colocou defronte dele a carta aviltante.
Depois, num tom que conseguiu tornar calmo:
‑ Suponho, senhor ‑ disse ela ‑ que perdeu esta carta.
Ele fitou‑a com o mesmo olhar equívoco que tinha para com ela havia alguns dias. E fingindo afectação, disse‑lhe, fazendo a boca pequenina:
‑ Talvez eu tivesse perdido o meu coração... Não o encontrou, querida Gyssie?
A jovem franziu as sobrancelhas.
Este nome íntimo que Alex Le Gurum pronunciava com tanto respeito que ela não se irritava, tornava‑se na boca do seu director uma ultrajante familiaridade.
Um vermelho vivo coloriu as faces juvenis da órfã e, vibrante de indignação e de cólera, observou‑lhe num tom duro:
‑ Não sei o que quer dizer, senhor, não compreendo.
José Le Fíir parecia estar disposto a empregar toda a sua paciência.
‑ Será preciso que fale mais claramente, Gyssie? Porque não quer compreender‑me?
Ela interrompeu‑o e disse ainda:
‑ É inútil, senhor, não continue.
Mas Le Fíir insistia, já muito excitado e apressado:
‑ Vejamos, Gyssie, escute‑me: suponha que esta carta é para si... Não, não se vá embora.
Erguera‑se e pegara na mão da jovem.
‑ Peço‑lhe, ouça‑me...
Gyssie procurava bruscamente soltar‑se. Tornara‑se pálida e não podia dominar a indignação que a sufocava.
‑ É odioso! ‑ gritou ela ‑, Ah! Deixe‑me! O senhor é um miserável!
Estalou uma bofetada, que obrigou Le Fíir a largar a presa.
‑ Parto imediatamente! ‑ gritou Gyssie ‑ Não ficarei aqui nem mais um minuto! É abominável!
Pegara no casaco, nas luvas e no chapéu, e ia abrir a porta quando José Le Fíir, recuperando o uso da razão, teve medo do escândalo que ela podia fazer em sua casa. Reteve‑a com um gesto. Esforçando‑se por se mostrar calmo, disse num tom natural, se bem que estivesse seriamente inquieto:
‑ Está bem. Se assim o deseja, partirá: não posso obrigá‑la a ficar. Mas peço‑lhe que não faça escândalo junto dos meus.
‑ Não tenho que ter contemplações para consigo ‑ replicou ela com dureza.
‑ Não tem o direito, no entanto, de causar um desgosto a minha mulher... Compreende? Como lhe explicará esta partida súbita?... Prometa‑me, em atenção a ela, que vai almoçar a casa...
Estas palavras juntaram à indignação de Gyssie um sentimento de desprezo mais acentuado; mas recordou depois a boa senhora Le Fíir, que não devia suportar as consequências desta cena, e teve piedade.
‑ Seja ‑ disse ela ‑ Almoçarei em sua casa, ao meio‑dia; mas arranjarei uma razão qualquer para partir ainda esta tarde.
E sem acrescentar uma palavra, saiu.
Le Fíir teve o tacto suficiente de telefonar para casa, no momento em que deveriam estar a sentar‑se à mesa, a dizer que um negócio urgente o impedia de comparecer e que, por conseguinte, a esposa não o esperasse para almoçar.
Gyssie não tornara, portanto, a vê‑lo, quando às duas horas saiu para se encontrar com Alex, que agora a esperava todos os dias.
Se bem que ela em cousa alguma fosse responsável pela audácia de Le Fíir, sentia um verdadeiro tormento para lhe contar os incidentes da manhã, com todos os pormenores.
Disse‑lhe apenas:
‑ Vai ser necessário ajudar a sua irmãzita, Alex... Vou ter precisão... e imediatamente... de arranjar um emprego.
‑ O quê, um emprego, boa amiguinha?... Então, já não trabalha com José Le Fíir?
‑ Terminei o meu serviço de secretária, em casa dele, esta manhã.
Alex olhou admirado.
‑ O que foi que se passou, Gyssie?
‑ Oh! nada! É uma ideia que tive agora. O oficial de Marinha receou adivinhar.
‑ Tomou essa decisão com muita pressa, Gyssie!
‑ disse ele, um pouco inquieto.
‑ Sim... Há casos em que é preferível não insistir: eu e o meu director temos formas diferentes de pensar... e como creio que nunca poderemos estar de acordo, é melhor separarmo‑nos.
‑ Isso depende... Em que assunto não estavam de acordo?
Gyssie hesitou um pouco, procurando as palavras:
‑ Sobre... Meu Deus! Era a propósito de uma questão de psicologia... Não é muito interessante.
‑ Não tem confiança em mim, boa amiguinha?
‑ censurou meigamente Alex.
Então, julgando perceber um pouco de tristeza no tom do seu companheiro, ela explicou:
‑ Oh! Como pode acreditar em semelhante cousa, Alex? Mas, na verdade, é um assunto de contradição bem desagradável entre uma secretária e o patrão. O senhor Le Fíir sustenta que uma rapariga pobre deve permitir que lhe faltem ao respeito... Toda a gente... Mesmo os chefes, compreende? Eu, porém, tenho uma opinião contrária... e como sou inabalável nas minhas opiniões... é preferível sair.
‑ Com efeito ‑ disse Alex, que compreendera mais do que Gyssie lhe dissera ‑ o pobre Le Fíir é incorrigível: nada respeita e parece não compreender que há raparigas honestas que os homens devem respeitar...
É um indivíduo detestável... Ter a ousadia de lhe dizer isso, Gyssie! A si!
‑ Tive uma desilusão ‑ confessou a órfã, com tristeza ‑, Um homem casado!... Eu era de uma verdadeira ingenuidade até agora... Creia, Alex, julgava que tendo uma mulher legítima... E ainda porque fora recebida em sua casa... Enfim!... Julgava‑me em segurança e, realmente, a ideia de desconfiar dele nunca me passaria pela cabeça... Que estupidez a minha, não acha?
‑ Não, em si era natural!... Nele é que não! Le Fíir é um animal! Casado ou solteiro, um homem que se preza respeita sempre a jovem que lhe é confiada!
Ele estava indignado e profundamente comovido.
‑ Não pode estar mais tempo naquela casa. Não quero que continue sujeita a semelhantes ultrajes!
‑ Ah! por certo! Não posso continuar em casa dele, e sinto‑me satisfeita, Alex, por ver que é da minha opinião... Parece‑me que seria impossível viver em tais condições, mesmo que esse homem fosse correcto daqui para o futuro. Somente o que me parece muito difícil é avisar a senhora Le Fíir da minha partida. Ela não tem responsabilidade nenhuma na leviandade do marido e não queria causar‑lhe um desgosto!
‑ Evidentemente! É preciso poupá‑la! Mas parece‑me que não deve hesitar em deixar aquela casa... e quanto mais cedo, melhor...
Reflectiu alguns segundos.
‑ Vai escrever imediatamente algumas palavras... Avisará essa senhora de que foi chamada à pressa, para longe daqui... que tem necessidade de ir para fora.
‑ Aconselha‑me a que me afaste sem dizer adeus?
‑ Parece‑me preferível evitar explicações. Receio que Gyssie não saiba, verbalmente, explicar‑lhe os motivos da sua partida... Algumas linhas simplificarão tudo.
‑ Com efeito ‑ disse Gyssie depois de um instante de meditação ‑ a sua ideia é excelente! Eu tinha, na verdade, desejos de passar alguns dias em Lião. Poderia, portanto, dar esta desculpa, sem mentir.
Mas Le Gurum sobressaltou‑se. Gyssie tomava muito à letra o plano traçado.
‑ Partir! Para fazer o quê? Não tem necessidade nenhuma de deixar Paris.
‑ Evidentemente ‑ disse ‑, Não conto afastar‑me definitivamente da capital. Vou apenas aproveitar a oportunidade que se apresenta... visto não ter emprego... Antes de procurar colocação, tomo alguns dias de férias.
Este projecto de viagem não seduziu muito o oficial.
‑ Que iria, na verdade, fazer a Lião?... Há recordações dolorosas que é preferível não evocar, creia‑me!
‑ Sim, Alex, estou absolutamente decidida. E este incidente, que me livra do trabalho diário, parece‑me enviado pelo destino. «Devo» ir a Lião. Devo procurar avistar‑me com meu avô. Estará muito velho, se ainda não morreu... Quem sabe se um pouco de humanidade e alguma ternura não poderão ainda acordar‑lhe o coração?... Quem pode afirmar se ele não seria feliz, caso antes de morrer pudesse ainda ver a filha de sua filha?... Enfim, se já morreu, irei ajoelhar‑me junto do seu túmulo, tal como o faria minha mãe.
Alex sacudiu a cabeça, melancolicamente.
‑ Quando se parte assim, nunca se está certo da data do regresso. E os seus interesses?... As suas malas?
‑ Vou buscá‑las hoje... Depositá‑las‑ei na gare... a não ser que me descubra qualquer asilo para as receber.
Le Gurum aproveitou imediatamente essa sugestão.
Se as malas ficassem em Paris, Gyssie teria que ir buscá‑las, com certeza.
‑ Depositá‑las na gare é uma ideia genial! Dar‑me‑á o seu boletim e se eu encontrar uma casa boa para a acolher no seu regresso, mandá‑las‑ei para lá.
‑ Estupendo! Porém, receio abusar da sua boa vontade.
‑ Ficarei mais tranquilo se aceitar a minha proposta... Terei esperança de a ver regressar breve... Como vê, a minha oferta é interesseira.
Ela ergueu para ele os seus lindos olhos brilhantes.
‑ Oh! não estarei muito tempo ausente... É preciso não esquecer que, acima de tudo, quero encontrar meu pai.
‑ Sim ‑ disse Le Gurum, com um pouco de amargura ‑ por causa dele, regressará.
Contra vontade, Gyssie olhou‑o de revés.
‑ Deus meu! ‑ observou com naturalidade ‑, não vejo quem, a não ser ele, pudesse prender‑me à capital. Não conheço aqui mais ninguém do que o Alex.
‑ E eu não sou nada ‑ murmurou ele, por entre os dentes.
Gyssie riu‑se.
‑ Oh! Alex ‑ censurou alegremente ‑ Não é generoso! Digo‑lhe que não tenho senão a sua amizade em Paris e responde‑me que não é nada... Pobre de mim! E eu que me julgava tão rica com a amizade de um irmão mais velho! Se isso nada representa, então com que hei‑de contar?
O rosto jovem do rapaz iluminou‑se um pouco.
‑ Minha pequenina Gyssie, como diz coisas lindas, quando quer! ‑ exclamou com calor ‑, Uma vez que a minha amizade lhe é preciosa, sou o homem mais feliz do mundo.
‑ Sim ‑ disse ela gaiatamente ‑ Vejo que se contenta com pouco! Mas eu desejaria saber se «o Alex não é nada» ou se pelo contrário a «sua ami zade é preciosa», sabe?
A sua opinião nunca está muito bem equilibrada quando faz alusões aos laços da nossa camaradagem...
‑ Ai de mim! ‑ aquiesceu, rindo ‑, Não valho senão o que pensa, minha amiguinha. Está, portanto, da sua parte, estimar‑me conforme o que a seus olhos represento.
De novo Gyssie o olhou maliciosamente.
‑ Ah! bem; se assim é, o caso é outro... Esta manhã, por exemplo, asseguro‑lhe que não valia muito; a meu ver, era apenas um homem. E confesso‑lhe que todos os homens de Paris tinham sido colocados no mesmo nível de José Le Fíir... Eram todos libertinos, em quem ninguém se podia fiar...
‑ Muito obrigado pela comparação!
‑ Em compensação, esta tarde ...
Ela parou, achando prazer na impaciência dele.
‑ E então, esta tarde? ‑ perguntou ele, atento.
‑ Esta tarde, acho que é muito agradável, quando se está aborrecida, ter junto de nós um bom camarada que por nós pensa e nos aconselha... Encoraja‑nos, reconforta‑nos... Não se está só... Conta‑se com ele! Diz‑se que não se sabe o que fazer em Paris para arranjar um outro emprego, uma outra casa... Mas «ele» está atento, é deixá‑lo proceder... «Ele» se desembaraçará... E esta sensação de segurança que sentimos junto «dele» é importante... Vê, Alex: esta tarde os meus sentimentos são como os seus, muito interesseiros.
‑ E tenho nisso grande prazer, minha pequenina Gyssie...
Passou‑lhe a mão por baixo do braço, se bem que não houvesse nenhuma rua para atravessar. Com um gesto de proprietário, manteve‑a bem apertada contra si.
‑ Creio que nunca pensou, minha amiga ‑ continuou com gravidade ‑ que seria muito mais doce e muito mais consolador para uma rapariga saber que o bom camarada dedicado, atencioso... e tão sincero! tão profundamente fiel! se poderia transformar em companheiro de toda a vida! Nunca pensou no casamento, Gyssie?
A interpelada levantou a cabeça.
‑ Não ‑ disse ela ‑ nunca. E mesmo, confesso, Alex, quando me lembro da pobre senhora Le Fíir, concluo que a maior asneira que uma rapariga pode fazer é casar‑se.
‑ Mas nem todos os homens são Le Fíir ‑ protestou Alex, com calor.
‑ Creio que assim seja ‑ respondeu ela convictamente ‑ porém, não conheço em Paris senão aquele casado.
‑ Exactamente por isso, não pense que é regra geral.
‑ Verifico apenas que o abade Palmech o conheceu quando era ainda rapaz... Parece que naquele tempo José Le Fíir era leal e generoso; levava uma vida própria de trabalhador regrado... O nosso reitor citá‑lo‑ia, de boa vontade, como exemplo... E viu no que ele se tornou agora?
‑ É um idiota! Tem uma mulher encantadora e acabará estupidamente por desfazer o lar.
‑ É provável! Mas eu pergunto a mim mesma se isso não será culpa do casamento.
‑ Como poderia sê‑lo?
‑ O casamento é talvez um medicamento dissolvente de todas as nossas boas qualidades.
Ela parecia falar com tanta segurança que Le Gurum ficou inquieto.
‑ Que diz, Gyssie? ‑ protestou, como se o tivesse escandalizado.
‑ O que penso ‑ respondeu francamente ‑ Minha mãe vivia feliz antes de ter marido... O casamento não lhe trouxe tranquilidade! Notei também que em Coatderv as camponesas casadas se lastimavam muito dos maridos que tinham. Pelo que diziam, eram, ou alcoólicos inconstantes, ou preguiçosos! Nenhuma estava contente com o seu, nem com a vida... Em Kerlan, pelo contrário, minha madrinha, que era viúva, estava sempre alegre, bem como a minha ama, que nunca casara... Ora, em Kerlan, não havia homens!...
‑ E a que conclusão chega, Gyssie? ‑ perguntou Le Gurum, inquieto com tais considerações.
‑ Oh! Nada que interesse; tenho falta de experiência! No entanto, como há pouco lhe disse, parece‑me que uma rapariga tem o direito de perguntar a si própria se o casamento não será, antes de mais nada, a causa de aborrecimentos, de desgostos e de infelicidades!... Eu não sei! Verifico apenas que a nossa pobre humanidade não está nada contente com a sua sorte.
‑ Peço‑lhe, Gyssie, não acuse o casamento... A pessoa é quem provoca as suas próprias desgraças!
‑ Casando‑se, naturalmente? ‑ insistiu a órfã com um bocadinho de malícia ‑ Seja como for ‑ continuou ‑ uma vez que o Alex é o meu melhor companheiro, o meu único amigo... a si, a quem estimo como um bom irmão dedicado e indulgente, peço‑lhe para ser generoso. Preste todos os serviços possíveis à sua irmãzita ignorante e tímida... Cumule‑a de gentilezas... Arranje‑lhe um emprego, procure‑lhe uma casa respeitável, ajude‑a a deixar decentemente os Le Fíir, faça tudo quanto puder para mitigar os seus desgostos e as suas preocupações... Ela ficar‑lhe‑á profundamente reconhecida, afianço‑lhe! Mas nunca lhe aconselhe a que se case: não lhe gabe o casamento e evite, acima de tudo, arranjar‑lhe um marido... Ela não tem interesse nenhum em casar.
‑ Realmente! Quem me diria que ouviria da sua boca semelhante profissão de fé, Gyssie! Estou desolado!
‑ Não vejo porquê. Não estamos nós muito bem assim, livres e bons camaradas? Tão felizes por estarmos juntos e por sentirmos uma confiança mútua? E queria demolir tudo isto para me «arranjar» um marido qualquer?
‑ Em primeiro lugar, não seria um «qualquer» aquele de quem lhe quero falar.
‑ Ora! ora! ora! É sempre isso o que se diz! Mas eu é que sei muito bem que não quero abdicar da minha liberdade em proveito dum cavalheiro mais ou menos agradável. E, neste momento, asseguro‑lhe que um pretendente, seja ele qual for, representa para mim um inimigo inveterado, certo!
‑ Gyssie, ouça‑me...
‑ Não quero ouvir nada, meu caro Alex! Guarde todos os argumentos e deixe‑me gozar em paz a boa companhia que me proporciona.
‑ Não digo mais nada, visto não permitir que advogue a minha causa.
‑ Mas ela já está advogada! Sei que é o melhor camarada que há no mundo... Somente, meu bom amigo, lhe direi que, se abusa da minha confiança para me querer casar à força, ultrapassa os seus direitos... E ver‑me‑ei forçada, caro senhor, a renunciar à sua preciosa amizade.
‑ Oh! Então agora chama‑me senhor!
‑ Ora esta! ‑ disse ela ‑ Está de tal forma exigente... Um amigo assim é um perigo público!
Gyssie falara num tom tão malicioso que Le Gurum ficou vencido e começou a rir.
‑ Não falemos mais nisso ‑ concedeu ele ‑ visto que está tão refractária às perspectivas conjugais. Prometa‑me, no entanto, que um dia me ouvirá e me permitirá que lhe diga...
Porém, ela interrompeu com vivacidade.
‑ Oh! Mais tarde, por certo!... Muito mais tarde, quando já formos dois solteirões obstinados... Alex sofrerá de ataques de reumatismo e eu já pintarei os cabelos... Será muito agradável pensar, então, no casamento! Aos cinquenta anos casará com uma linda menina de vinte! Eu escolherei o papá dela, que há‑de ser viúvo e muitíssimo rico. Serei então sua sogra e fá‑lo‑ei arreliar ameaçando‑o de fazer com que o deserdem em meu proveito.
Será delicioso e regozijo‑me antecipadamente!
Mas não pôde acabar; ria às gargalhadas ao pensar que poderia vir a ser sogra de Alex, que tinha mais doze anos do que ela.
‑ Que grande romance que está a fazer! ‑ disse ele, sorrindo contra a vontade.
Gyssie olhava‑o maliciosamente, enxugando os olhos, que o ataque de riso humedecera.
‑ Choro de comoção ao pensar na felicidade que nos está reservada a ambos, mais tarde!
‑ Tem, na verdade, ideias originais acerca do futuro da nossa amizade ‑ replicou, incapaz de continuar a falar a sério com aquela garota que adorava e que, com o sorriso nos lábios, parecia não querer compreendê‑lo.
Teria adivinhado que a adorava e queria oferecer‑lhe o seu nome? Porém, nem uma única vez lhe deixara acabar a frase.
Debaixo desta brincadeira um pouco maliciosa que arranjara naquele dia, Le Gurum esforçara‑se por adivinhar‑lhe o verdadeiro pensamento. E, inquieto, no fundo mesmo um pouco infeliz, perguntava a si próprio se nunca viria a ser amado por aquela garota indiferente.
‑ Quando ela encontrar o pai, lhe falarei ‑ decidiu consigo mesmo ‑ é preciso que me ouça e me compreenda... Daqui até lá, creio que é inútil!
Suspirou. Esta última certeza era‑lhe bastante cruel.
E, andando, continuava a segurar‑lhe o braço. Em cima da sua mão sentiu subitamente a de Gyssie, que lhe chamava a atenção.
‑ E agora, Alex, quer ajudar‑me a escrever a carta à senhora Le Fíir?
Ficou satisfeito com esta interrupção, que o obrigava a pensar noutra cousa; feliz, acima de tudo, por ela ter precisão dele para mil futilidades.
‑ Da melhor vontade ‑ disse ‑ Irei depois fazer uma visita a essa senhora, enquanto Gyssie faz as suas malas. Mas peço‑lhe que não se demore, a fim dela não se admirar... E, principalmente, porque tenho muita pressa em vê‑la deixar essa casa, onde dum instante para outro pode surgir
Le Fíir.
Fez‑se o que Le Gurum decidira. A senhora Le Fíir saíra para ir fazer compras. Gyssie pôde, portanto, levar a bagagem sem necessidade de explicações. Contentou‑se em confiar a carta de despedida à criada de quarto e, delicadamente, dizer adeus a esta, exprimindo‑lhe todo o seu pesar por não ter encontrado a dona da casa.
Numa malinha de mão, Gyssie colocara todos os objectos necessários para a sua viagem a Lião; pôde, portanto, deixar as malas no depósito de bagagens, conforme ficara combinado. E como tinham ainda duas horas, antes da partida do rápido «Paris‑Côte‑d'Azur», jantou com Alex no bufete da gare.
Para Gyssie foi um momento delicioso. Estava contente por ter saído duma situação difícil e, sobretudo, era livre e ia empreender a viagem com que sonhara havia algumas semanas...
O jovem oficial de Marinha estava, pelo contrário, muito triste por vê‑la partir, e procurava ainda dissuadi‑la de fazer esta viagem de grandes consequências.
‑ Gyssie ainda é menor; se o seu avô quiser, pode lá conservá‑la porque tem esse direito.
‑ Esquece, meu caro senhor, que não irei imediatamente contar‑lhe que não sei onde está meu pai... Vou a Lião ver se encontro o juiz Chauzoles ou, pelo menos, ter a certeza de que ainda vive; mas receio que as nossas relações não vão mais além.
‑ Permite‑me que a acompanhe, Gyssie ‑ pediu de repente Le Gurum ‑ Receio muito, vendo‑a assim nova e inexperiente, que lhe suceda qualquer coisa.
‑ Quer acompanhar‑me a Lião? ‑ disse ela, admirada ‑ Mas que vai lá fazer?
‑ Vê‑la‑ei nos seus momentos de liberdade... Tomaremos juntos as nossas refeições...
‑ E poderíamos até ficar no mesmo hotel ‑ observou ela, muito séria.
Ele hesitou.
‑ Se o deseja ‑ aceitou por fim. Gyssie soltou uma gargalhada.
‑ Aqui tem, é muito simples! Irei procurar meu avô acompanhada por um cavalheiro que não sei como hei‑de apresentar. A que título estaria Alex ao pé de mim?... E estava o caso arrumado!
‑ Se há bocado me tivesse querido ouvir ‑ murmurou ele, um pouco contrariado.
Mas Gyssie com certeza não o ouvira, porque nada replicou à sua reflexão.
Enquanto o comboio começava a pôr‑se em movimento e Le Gurum ficava imóvel e sério na gare, a princezinha, à portinhola do seu compartimento, acenava‑lhe alegre «até à vista». E havia nessas demonstrações uma tal exuberância infantil, um à‑vontade tão franco, que ele ficou profundamente comovido.
‑ Que criança tão boa e tão pura ‑ disse, impressionado ‑, Todos os seus parentes unidos contra mim, que não passo dum simples plebeu, permitir‑me‑ão que venha a casar com ela?
Uma infinita tristeza confrangia‑lhe dolorosamente a alma.
‑ Deus meu! Que vai ser de mim durante o tempo em que ela estiver ausente?
E podemos afirmar que nunca fora tão sincero como quando considerou a melancolia dos dias que iam seguir‑se.
Minha querida Mamie:
Estou em Lião desde terça‑feira à tarde.
Vamos, boa Nounou, não franzas assim as sobrancelhas! Não infrinjo as ordens da minha querida mamãzinha. Não contrario sequer os seus desejos... O que ela temia para mim era a hospitalidade ou a severidade de seu pai. Tivera uma juventude tão triste e tão oprimida que não queria expor‑me a conhecer uma igual... Mas de forma nenhuma me proibiu que procurasse descobrir a família quando estivesse em idade de resistir aos embargos que os seus parentes pudessem exercer sobre mim.
Ora, Mamie, esta ideia de vir a Lião não me deixava desde o dia do meu aniversário, em que fiquei a saber quase toda a história da minha família. Desejava ver os lugares onde minha mãe vivera, conhecer o juiz severo e inflexível, mas, provavelmente, justo, que tão impiedosamente a condenara, quando lhe deveria, visto que era ao mesmo tempo juiz e parte, procurar todas as circunstâncias atenuantes! Não devia, portanto, recear ter sido, apesar da sua vontade de fazer justiça, demasiadamente parcial e recto?... Foi o que aconteceu, com certeza!
A decisão de meu avô, que data de há vinte anos, afigura‑se‑me tão iníqua como se datasse apenas de ontem, e parece‑me que o meu primeiro dever para com minha mãe é apelar desta sentença e reconciliar, para além‑túmulo, o sobrevivente e a querida desaparecida, tão inexoravelmente condenada.
E aqui tens, Mamie, por que motivo vim a Lião.
Imediatamente após a minha chegada, pela manhã, informei‑me acerca de Désiré Chauzoles, o pai de minha mãe.
Ainda é vivo, mas já terminou as suas funções há alguns anos, no Tribunal Civil.
É um velhote alto e bonito, de setenta‑e‑três anos, de cabeça erguida e muito direito. Magro, rosto seco, cara rapada apesar da sua idade, lábios delgados, sorriso amargo, o antigo juiz continua a dar a impressão da severa frieza de que falava minha mãe.
Tive a sorte de o ver ao sair de casa, para dar o seu passeio quotidiano, depois do almoço, e quando mal principiara a minha sentinela, na rua, a alguns metros da sua habitação.
Tenho tantas vezes, de há um mês a esta parte, olhado a sua fotografia, que o reconheci imediatamente. Passou a alguns metros de mim, sem me ver. Os seus olhos pardos não devem pousar muita vez, na rua, sobre uma tão humilde personagem como a minha modesta pessoa. Desnecessário será dizer‑te, Mamie, que quando o avistei fiquei comovidíssima.
E no entanto era o pai de minha mãe! Vê bem que eu não digo «meu avô». Esta palavra não me salta dos lábios... Tão‑pouco saltou do meu ser íntimo, quando vi passar junto de mim aquele velhote de aspecto tão frio.
Estará mais perturbada antes de o ver do que no momento de o avistar. É triste dizê‑lo, mas tive mais a impressão de estar diante dum estranho, a quem olhava intensamente, na ansiedade de adivinhar o seu carácter.
Compreendes isto, Mamie? Sem conhecer meu avô, estava inquieta por não saber que impressão me causaria; foi a única sensação que prevaleceu, creio.
Uma frieza altiva, uma rigidez que não pode ser senão reserva, uma linda cabeça de velhote, direita, que não se inclina... Um velho estranho, cujo verdor eu contemplava... Era tudo!
A voz do sangue nada me dissera...
E, no entanto, também sinto que sou muito reservada, um pouco fria, altiva. Naturalmente, deveríamos simpatizar, visto sermos da mesma raça.
Quando me informei acerca de Désiré Chauzoles, um comerciante da vizinhança também me falou na sua criada velha, há quarenta anos já ao seu serviço. Era a boa Marine, de quem minha mãe falava no seu diário: «Boa rapariga, presa, como um cão ao casinhoto, à casa que a acolhera».
E fiquei no passeio, perguntando a mim mesma o que havia de fazer para entrar em conversa com este outro personagem, quando a porta da casa que vigiava se abriu para dar passagem a uma mulherzinha baixa, vestida de preto, com um saco de cretone no braço, que ia fazer, nalguma loja do centro da cidade, as compras que se deixam geralmente para a tarde.
Aproximei‑me dela imediatamente:
‑ Perdão, minha senhora ‑ disse‑lhe delicadamente ‑ Informaram‑me de que às vezes precisa de quem a ajude... para os trabalhos da casa, de costura e de engomados.
Com indiferença, a mulher parou diante de mim, sem quase me olhar.
‑ Deve estar enganada, menina. É muito raro, pelo contrário, tomar alguém para me ajudar, e mesmo assim, quando o faço, é sempre a mesma mulher a dias. Era, por certo, outra pessoa que lhe queriam indicar.
Eu já esperava o seu protesto. Lentamente, abanei a cabeça:
‑ Não creio estar enganada ‑ disse com doçura ‑ Disseram‑me: «Marine». Não é este o seu nome, minha senhora?
Não fazia uma pequena ideia do efeito que este nome, pronunciado por mim, lhe podia produzir.
Teve um verdadeiro sobressalto e, levantando a cabeça, examinou‑me com os seus olhitos pretos e vivos.
Uma emoção fugitiva crispou‑lhe o rosto moreno.
‑ Deus meu! Quem lhe disse esse nome? ‑ perguntou com voz quase desfalecida.
‑ Alguém que me disse também que era muito boa.
‑ Ah!... E...
Parou. Dir‑se‑ia ter medo das palavras que ia pronunciar.
‑ ... E... mandaram‑na ter comigo?
‑ Vim pedir‑lhe um trabalho qualquer... Junto de si... na sua casa.
‑ Infelizmente, não sou a dona da casa! ‑ exclamou, como se quisesse levantar uma muralha entre ela e o meu desejo.
Estremeci, subitamente apreensiva.
‑ Há então uma senhora? ‑ balbuciei, porque a ideia de que pudesse haver uma «dona de casa» sob os tectos do juiz Chauzoles não me passara pela cabeça.
Mas a mulher apressou‑se a sossegar‑me:
‑ Não! Não! ‑ disse vivamente ‑ Não há mais ninguém do que o patrão. Por isso mesmo é difícil contratar qualquer pessoa sem o prevenir.
‑ Por alguns dias, apenas, senhora Marine ‑ insisti ‑ Às vezes é preciso tão pouca coisa para ajudar alguém que tem necessidade.
De novo me olhou longamente, profundamente, e deixou escapar um grande suspiro. Depois, com hesitação, perguntou:
‑ É de dinheiro que... que tem necessidade?... Eu posso pôr à disposição de... da pessoa que a mandou aqui... parte das minhas economias.
Os meus olhos abriram‑se desmedidamente de surpresa.
‑ Oh! senhora Marine! Que me propõe... Sem me conhecer!... Mas, sossegue, não é de dinheiro que preciso, tenho bastante! É de trabalho... em sua casa... nessa casa... Compreende?
E, de longe, contemplava intensamente a fachada de azulejos e as suas dez janelas. A mulher levantou a cabeça.
‑ Sim ‑ disse por fim ‑ Quer trabalhar em casa do juiz Chauzoles... É isto, não é verdade?
Não tive coragem para afirmar nitidamente ser isso, com efeito, o que desejava: mas o meu olhar tímido e suplicante respondeu por mim.
‑ E que sabe fazer?
‑ Tudo quanto quiser.
‑ Tudo que quiser... Quer dizer, não muito!
‑ Oh! senhora Marine, bem sabe que quando se é nova e se quer fazer qualquer coisa...
‑ Sim ‑ repetiu ela lentamente, como se procurasse um pretexto para me despedir ‑ Eu sei... não se faz quase nada... é o costume!
Suponho que não sei insistir quando peço um favor, se mo não fazem logo de seguida.
Continuei em pé, à borda do passeio, sem ousar falar e olhando a minha interlocutora com o coração despedaçado.
‑ Quer ver a casa? ‑ disse ela de repente, como se tivesse tomado uma decisão.
‑ Oh! quero, sim! ‑ exclamei subitamente, radiante com esta proposta inesperada.
Ela sorriu e entendeu dever explicar:
‑ Quando se pretende trabalhar em casa de qualquer pessoa, é por vezes conveniente conhecer os lugares e o trabalho que se terá de fazer, não acha?
‑ Tem toda a razão ‑ aprovei. Ela olhou para o seu saco de mão.
‑ Darei as minhas voltas outro dia... não tenho pressa nenhuma! Venha comigo, estaremos melhor em casa, do que aqui, para conversar.
Estava imensamente surpreendida por ter obtido, assim, desta mulher que não me conhecia, um tão grande favor.
E, seguindo‑a, perguntava a mim mesma o que teria dito para ela ter tão grande confiança em mim.
Logo que abriu a porta, com o molhinho de chaves que tirara do saco, a criada voltou‑se para mim.
‑ Está contente? Era isto o que desejava? ‑ perguntou, procurando ler nos meus olhos o que eu pensava.
‑ Sim ‑ respondi ‑ É muito boa, minha senhora. Mas isto não me admira", eu sabia já que só Marine me podia ajudar em Lião.
De novo se lhe crispou o rosto. Pareceu‑me mesmo que ela mordia os lábios para disfarçar o tremor e a comoção que os agitava.
‑ Entre ‑ disse‑me meigamente.
E afastou‑se para me deixar passar.
Subi os três degraus que davam acesso ao vestíbulo.
O meu coração batia fortemente: senti‑me de súbito perturbada; vinte anos antes, minha mãe transpusera este limiar pela última vez.
‑ Aqui é o salão ‑ disse a minha companheira, abrindo uma porta diante de mim.
E, designando os retratos pendurados na parede, acrescentou:
‑ Toda a família... A do senhor juiz e a da senhora Chauzoles, falecida há muito tempo.
Disse‑me o nome das pessoas que os quadros representavam, explicando, ao mesmo tempo, os laços de parentesco que as uniam ao juiz.
Com o dedo, indicava‑os, mas notei que não olhava para eles; era a mim, pelo contrário, a quem fitava, como se quisesse compreender qual o acolhimento que eu dava às suas palavras.
Já não duvidava que soubesse qual era a minha identidade e fazia esforços por me mostrar impassível ante o seu exame.
Depois do salão, passámos à casa de jantar, à qual os móveis esculpidos em carvalho preto, brilhante como ébano, davam um aspecto severo, quase frio.
‑ Aqui tem o lugar do senhor juiz, ao fundo da mesa. Defronte dele, antigamente, era o da senhora. Mais tarde, foi o da menina.
‑ A menina?
Os meus olhos imobilizaram‑se neste último lugar, procurando reconstituir o ambiente.
‑ E houve, alguma vez, risos nesta sala? ‑ pensei em voz alta.
‑ Sim, ao princípio: quando a senhora era viva...
‑ Depois comia‑se em silêncio... Devia ser muito triste.
‑ Isto nunca foi alegre... Mas há vinte anos para cá ainda mais triste é!
‑ Oh! ‑ disse eu, protestando.
Num relâmpago, os meus olhos encararam aquela que fazia semelhante observação. Direita, a cabeça um pouco inclinada, olhos vagamente sonhadores, muito humilde na sua atitude e as mãos em cima do avental, a boa mulher parecia reviver longos anos de resignação e de estoicismo.
Calculei que na casa do austero juiz devia ter havido, talvez, uma outra vítima além da minha mãe, somente com a diferença de que esta última pudera evadir‑se; tivera na sua mão o ir procurar noutro lado uma atmosfera menos opressora. A esta talvez lhe faltasse a coragem para ir refazer a sua vida num outro lar menos frio e mais acolhedor. Timidez e fraqueza, ou dedicação ao senhor e à criança, que uma mulher no seu leito de morte lhe tivesse deixado recomendados, ficando então vítima da sua hesitação ou dos seus escrúpulos?
Quem ousaria censurá‑la por isso?
‑ Fez bem, Marine, em não deixar a casa ‑ aprovei em voz alta.
A minha voz ressoara extremamente grave.
‑ Mas vinte anos! ‑ murmurou a mulher ‑ Esperava um regresso... Mas não era esperar o que eu devia ter feito.
‑ Nunca se sabe... estamos nas mãos da Providência.
‑ Sim, mas está escrito: «Ajuda‑te que o céu te ajudará...» Deve‑se, portanto, proceder, trabalhar, para se conseguir realizar o que desejamos. A vida é uma luta e não uma espectativa... Porém, aqui está, só quando era demasiadamente tarde compreendi.
Suspirou, depois, sacudiu os ombros como se quisesse lançar para longe dela o pesado fardo das saudades.
‑ Enfim, lastimar um erro não ajuda a repará‑lo. Quer visitar agora os quartos?
‑ Quero!
Subimos ao primeiro andar.
‑ Foi aqui que a pobre senhora morreu... Foi aqui também que ela deu à luz o seu nené.
E designou‑me uma cama enorme, colocada sob um grande docel de madeira dourada e de seda vermelha.
Com algumas semanas de intervalo, eu encontrava o mesmo ambiente melancólico num cenário e em regiões diferentes: uma cama onde uma criança nascera... A mesma cama onde a mãe morrera! E, para mim, isto representa a mesma emoção triste e complexa.
‑ O senhor sempre teve este quarto... Sem nunca ter parecido desejar esquecer ou substituir a boa senhora.
Não respondi.
Em pé, junto à porta, procurava abranger com os meus olhos toda a decoração para a fixar bem.
Mas a estranha e perturbadora visita dos compartimentos continuava.
‑ Venha ver o quarto dos hóspedes. Estremeci.
‑ Mas alguma vez houve hóspedes nesta casa triste? ‑ observei, sem querer.
‑ Raramente... Algumas vezes, um procurador ou um advogado, a quem o senhor juiz oferecia hospitalidade quando se tratava de um processo importante... Nenhum a quem se pudesse dar o nome de amigo, alegre ou novo. O senhor juiz está tão distante do resto da humanidade!
‑ Quer dizer «muito superior» ou «demasiadamente altivo», Marine? ‑ perguntei com uma voz que esforçava por tornar calma, mas que, contra minha vontade, vibrava cheia de censuras inexprimíveis.
‑ Não é um homem como qualquer outro... Não conhece nenhuma das fraquezas que forçam os outros a ser indulgentes.
Depois do quarto de hóspedes, um pouco banal, apesar das ricas tapeçarias de veludo castanho, a criada abriu uma terceira porta:
‑ O quarto pequeno ‑ exclamou ‑ Não serve há já vinte anos!...
‑ Ah! ‑ balbuciei, confusa. Compreendera.
Era o quarto de minha mãe, em solteira.
Oh! tão modesto, tão pouco confortável! Era quase uma cela de convento; uma cama de ferro com cortinados brancos e um Cristo à cabeceira, um lavatório de porcelana, uma mesinha diante da qual havia uma cadeira de laca, um genuflexório, colocado defronte de uma pia de água‑benta; e era tudo.
Sentia o coração de tal forma constrangido que tive dificuldade em evitar as lágrimas.
Uma criança vivera sem ternura e sem alegria entre estas quatro paredes... E esta criança era a minha juvenil mãe!
‑ Não falta nada, mas é monacal ‑ exprimi em voz baixa, que parecia arrastar soluços.
‑ É limpo, é higiénico... O senhor dizia que a saúde da alma e do corpo exigiam esta simplicidade.
‑ A higiene exige também risos e um ambiente alegre... O sol é tão preciso para o coração como para o corpo... As crianças têm necessidade de calor e de luz.
Humildemente, como a desculpar‑se, Marine mostrou‑me um vaso em cima da chaminé.
‑ Havia sempre flores... Eu renovava‑as com regularidade.
‑ E sabia contar lindas histórias ‑ respondi docemente ‑ Sei isso e também conheço o Marcel, o garoto endiabrado que fazia partidas tão engraçadas aos irmãos e às irmãs.
‑ Deus meu! ‑ balbuciou, consternada, enquanto o sulco de duas pesadas lágrimas lhe marcavam a face pálida ‑, «Ela» não se esqueceu.
‑ Nunca se esquece a mão generosa que alimenta a nossa alma quando está esfomeada... Marine foi a única afeição e a única indulgência que «ela» encontrou nesta casa...
Compreendi subitamente que, sem uma palavra de explicação pronunciada entre nós, não cessávamos ambas de evocar aquela que ocupava todos os nossos pensamentos.
‑ Como adivinhou, Marine, que...
Parei, hesitante ainda em explicar o meu papel naquela casa.
‑ Que vinha da sua parte? ‑ concluiu.
‑ Sim.
‑ Que dúvidas poderia eu ter? Chamo‑me Marinette... Toda a gente me conhece por este nome... Uma única boca, outrora, me chamava Marine... Sim, era assim que ela me chamava... Um nome de que só ela tinha o privilégio... Dizia que não reconhecia a ninguém o direito de o pronunciar... Quando na rua me abordou chamando‑me Marine, havia possibilidade de duvidar que vinha da sua parte?
‑ E foi por isso que me acolheu?
‑ Certamente... Visto não ter necessidade de dinheiro, o pedido de trabalho não era senão um pretexto. Compreendi, imediatamente, que queria conhecer a casa... visitá‑la, para lhe dizer se alguma coisa mudara.
Adivinha‑se facilmente a comoção que tais palavras me causaram.
Desde que entrara neste quarto, tinha o coração terrivelmente oprimido e a minha emoção era tão grande que desejaria chorar livremente, ajoelhada diante da cama, com a cabeça apoiada na coberta.
Tudo quanto podia evocar a minha querida mamãzinha, a sua infância e a sua adolescência sem alegria, os seus sonhos, as suas esperanças e também as suas desilusões, tudo parecia estar condensado entre estas quatro paredes.
Mas, voltar a encontrar Marine no estado de espírito em que minha mãe parecia tê‑la deixado, ouvir esta pobre mulher falar‑me da ausente como se lhe tivesse dito adeus na véspera, e compreender, de repente, que esta infeliz aguardava o seu regresso há vinte anos, tinha qualquer coisa que me comovia ao extremo.
Uma profunda piedade e uma grande ternura transbordaram subitamente do meu coração... A piedade proibia‑me de dizer à pobrezita que a sua espectativa era vã, que minha mãe morrera e nunca mais voltaria a ver aquela que criara.
Não, era‑me impossível tirar a este coração fiel a sua ilusão; podia, porém, pelo contrário, deixar expandir a súbita ternura que sentia pela criada humilde, que não sabia esquecer.
Espontaneamente, senti a necessidade de a abraçar.
Os meus beijos iam recompensar a sua grande dedicação por uma recordação tão bem conservada.
Dirigi‑me para ela, imediatamente a atraí aos meus braços e apertei‑a de encontro ao coração.
‑ Marine, eu já a estimava sem a conhecer... Agora, a minha afeição pertence‑lhe...
Uma porta que bateu, lá em baixo, cortou as minhas expansões.
Inquietas, subitamente, afrouxámos o nosso abraço e apurámos o ouvido.
‑ É o senhor juiz ‑ disse Marine, repentinamente desorientada ‑ Meu Deus! Se ele a encontra aqui, o que dirá!
Mas eu conservara todo o meu sangue‑frio.
‑ Não me parece que venha alguma vez a este quarto ‑ observei com resolução ‑ Vá ao encontro de seu patrão, Marine, e faça o seu serviço como de costume... Esperarei aqui até me poder vir libertar... Não tem nada a recear, não me mexerei, nem farei barulho algum... Fique sossegada.
Confiou em mim sem mais explicações e afastou‑se muito agitada, deixando‑me só.
Neste instante, não pude deixar de observar como o respeito que tinha pelo patrão a apavorava.
Era provável que outrora minha mãe sentisse a mesma angústia ante a chegada inesperada de seu pai.
Eu, pelo contrário, sentia‑me extremamente calma naquele instante... O terrível juiz não me causava medo.
Fosse o que fosse que acontecesse, sentia‑me capaz de dominar a situação. É que eu fora educada num outro ambiente de segurança e de terna afeição. Ignorava as excessivas severidades e a dor glacial daqueles com quem vivia. Crescera numa atmosfera de paz, de ternura e de indulgência.
Nada há que nos dê mais confiança em nós próprios do que sentirmos a aprovação dos que vivem connosco.
Tomara lugar na cadeira, diante da mesa onde minha mãe, outrora, fazia os seus exercícios e aprendia as lições.
Não procurarei recordar todos os pensamentos amargos ou tristes que me assaltaram durante os vinte ou trinta minutos que estive encerrada no «quarto pequeno».
Foram, na realidade, momentos muito suaves, apesar das penosas recordações evocadas.
Sinto‑me feliz por os acontecimentos me terem permitido recolher‑me, tanto tempo, entre estas paredes impregnadas de recordações tão queridas. Parece‑me que conheço realmente minha mãe, agora que pude viver alguns instantes no quarto que lhe pertenceu, e depois de ter percorrido a casa que a viu nascer e onde decorreu a sua vida.
Quando Marine, em bicos de pés, me veio buscar, encontrou‑me reflectindo, sentada, com a cabeça nas mãos e os cotovelos em cima da mesa.
‑ Tive que ir dar uma chávena de chá ao senhor... Desculpe‑me tê‑la feito esperar.
‑ Não achei que fosse muito tempo... Cheguei quase a desejar que se esquecesse de mim até amanhã.
‑ Oh! Não... Não seria prudente... Mas, contudo, está contente por ter visto?
‑ Sim, Marine... e nunca me esquecerei.
‑ Então, venha, agora... mas não faça barulho.
Seguia‑a, evitando fazer estalar os degraus da escada.
Deslizando sobre os ladrilhos do vestíbulo, arrastou‑me até à porta da rua; uma vez ali, obriguei‑a a parar.
‑ Não, Marine, é inútil fazer‑me sair. Peço‑lhe para dizer ao seu amo que uma menina chegada agora lhe deseja falar.
‑ Quer vê‑lo?... Deus meu! Já reflectiu nessa entrevista?
‑ Não falarei de si, Marine ‑ prometi docemente, mas com firmeza ‑ Tão‑pouco direi que visitei a casa. Porém, vim com um fim bem definido: falar ao seu patrão! E não sairei de Lião sem o ter visto.
‑ Bem ‑ disse ela docilmente, visto a minha firmeza a ter dominado ‑ No entanto ‑ continuou ‑ sempre é bom saber que nada tem a esperar; é um homem que nunca esquece nem perdoa.
‑ Ninguém pode saber os pensamentos obscuros que dormem no íntimo de cada um. O meu dever exige que faça esta tentativa; fala‑ei, embora tenha a convicção de que não servirá de coisa alguma.
Marine suspirou.
‑ Vou anunciar‑lhe a visita de uma pessoa desconhecida.
‑ Exactamente, mas entregue‑lhe este cartão; o meu nome incitá‑lo‑á talvez a ouvir‑me.
Entreguei‑lhe a fina folha de cartão brístol, sobre o qual estavam gravados um nome e um título: «Gyssie de Wrisse, princesa d'Ampolis». Este cartão, um tanto pretensioso, dizia bem com a minha figura um pouco altiva. Devo mesmo confessar que correspondia, realmente, ao meu carácter pessoal; não me chamavam, desde tenra idade, a «princezinha»?
Marine afastou‑se sem entusiasmo. Não alimentava ilusões acerca das possibilidades de indulgência do seu amo e era‑lhe doloroso expor‑me a um dissabor.
Cinco minutos depois, introduzia‑me no gabinete de trabalho do juiz Désiré Chauzoles.
A casa era espaçosa. Três grandes bibliotecas de carvalho escuro cortavam as paredes, cadeiras antigas estavam dispostas nos quatro cantos e uma pesada secretária, esculpida, ocupava o meio da casa; defronte deste último móvel, um homem vestido de preto aguardava‑me de pé.
O meu olhar dirigiu‑se imediatamente para ele.
Encarou‑me longamente antes de me indicar uma cadeira e parece‑me que o seu exame lhe trouxe uma crispação ao rosto pálido.
Num relâmpago, pensei na vaga parecença com minha mãe; mas não pude insistir nesta suposição; uma voz lenta, um pouco baixa, interrogou‑me:
‑ Pediu‑me para me falar, menina?
‑ Exactamente, senhor, e muito lhe agradeço ter‑se dignado receber‑me, sem me conhecer, e sem lhe trazer uma apresentação.
Com a mão fez um gesto que parecia convidar‑me a continuar.
‑ O meu nome, sem dúvida, nada lhe diz.
‑ Com efeito... É a primeira vez que o leio.
‑ Não vim para lhe falar de mim... Não, evidentemente... Permita‑me que vá direita ao fim... com lealdade.
‑ Escuto‑a, se bem que a palavra «lealdade» me faça supor que se trata de qualquer coisa... bastante subtil.
‑ Não é bem assim, senhor... Ensinaram‑me a não usar de rodeios e a falar sempre segundo a minha razão e a minha consciência.
O seu olhar frio parecia trespassar o meu. Apelei para toda a minha coragem.
‑ Vim para lhe falar de sua filha Valentine.
‑ Que diz?
Levantou‑se bruscamente pálido e repentinamente furioso.
Assim de pé, diante de mim, parecia‑me mais alto, mais imponente.
A sua figura, o seu rosto glacial, o seu olhar altivo, tudo contribuía para o tornar impressionante.
Contra vontade, a minha voz tremia, repetindo:
‑ Venho evocar‑lhe a recordação de Valentine Chauzoles...
Ia talvez acrescentar: «minha mãe», mas o seu gesto autoritário cortou‑me a palavra.
- Basta! ‑ ordenou ‑ Há nomes que não se pronunciam diante de mim.
- Mas há aqueles que se pronunciam com amor e com respeito. Tais, pode ouvi‑los, senhor! E o de Valentine Chauzoles pertence a este número.
- Mas eu não o quero reconhecer.
O seu braço estendeu‑se em direcção à porta.
‑ Saia, peço‑lhe ‑ ordenou com certa violência.
- Oh! senhor! O nome que invoco não me coloca sob a sua protecção?... Antes de me mandar sair, não quer saber porque me encontro aqui?
Erguera‑me, por minha vez, e a minha figura delgada, mais pequena do que a sua, evidentemente, mas maior que a média, denotava que pertencia à mesma raça.
Eu falara sem receio e sem comoção; o meu tom calmo dir‑se‑ia surpreendê‑lo.
Durante um momento, o seu olhar imperioso pareceu querer dominar o meu, e os meus olhos baixaram‑se, simplesmente... o bastante para não parecerem ousados.
A minha audácia, no entanto, devia ter‑lhe produzido o efeito de uma insolência imperdoável.
Deixou o seu lugar e dirigiu‑se para a porta, que abriu.
‑ Saia, se não quer que a mande expulsar ‑ disse com uma voz glacial que parecia não admitir a menor transgressão.
‑ Como um cão!... ‑ notei, sorrindo.
‑ Como um importuno que não me agrada continuar a ouvir por mais tempo.
‑ Depois de vinte anos, quer reeditar o mesmo gesto inclemente ‑ observei com amargura ‑ Faz mal, senhor juiz, em ser tão implacável... Vim aqui defender uma recordação que, apesar de tudo, lhe deveria ser querida. Se deixo esta casa sem que me tenha ouvido, há muitas probabilidades de nunca mais tornar aqui a pôr os pés...
As minhas palavras pareceram sufocá‑lo. Deviam também parecer‑lhe insensatas.
Em sua casa, na casa dele, uma mulher, uma estranha, ousava afrontá‑lo. Pior do que isso, parecia discutir os seus desejos e a sua vontade! Não o ameaçava ela de não voltar a sua casa, se ele não a ouvisse? Como se um homem do seu valor e da sua autoridade pudesse alguma vez lastimar a ausência desta estranha impertinente!...
Vi passar por ele todas estas irritantes reflexões. A minha presunção ultrajara‑o realmente!
Uma cólera fria sacudia‑o agora. Os seus olhos, brilhantes de furor, pareciam querer pulverizar‑me.
‑ Saia ‑ repetiu febrilmente.
A sua mão, após alguns instantes, apoiou‑se fortemente sobre o botão de uma campainha eléctrica, que ressoava por todos os cantos da casa.
Marine apareceu, com o rosto atormentado. A pobre mulher estava incapaz de esconder a sua comoção e eu via‑a curvar‑se sob o olhar imperioso do patrão autoritário.
‑ Reconduza‑a até à porta da rua e nunca mais a deixe voltar ‑ ordenou, fulminando‑a com o olhar ‑ Já não sabe afastar os indesejáveis?
Ela não respondeu. De cabeça baixa, mordendo os lábios para reter os soluços que lhe tomavam a garganta, a infeliz mulher acompanhou‑me até à porta.
Atrás de nós, tendo ficado em pé, debaixo da ombreira da porta, o juiz assistia à minha execução com um sorriso sardónico nos lábios.
‑ Até à vista, Marine, tive muito prazer em a conhecer; não me esqueça ‑ acrescentei em voz baixa, enviando‑lhe um beijo de despedida na ponta dos dedos.
Enquanto ela fechava lentamente a porta, os nossos olhares cruzaram‑se, os dela quase desesperados, os meus cheios de uma triste desilusão.
Não me afastei enquanto não fechou a porta por completo.
Visitara a «grande casa», vira os lugares onde minha mãe vivera, conversara com o meu irritável e austero avô; devia considerar‑me quase satisfeita, visto nunca poder esperar conhecer tão bem estes sítios, e não ter quaisquer ilusões acerca da recepção que me reservava o pai de minha mãe.
Pois bem! Devo confessar que, ao afastar‑me de casa do juiz para regressar ao hotel, situado perto da gare de «Lião‑Perrache», a minha alma estava cheia de amargura.
Ah! eu era bem a neta do juiz implacável! Durante os vinte minutos que durou o percurso, na minha cabeça só passavam projectos de vingança! E foi apenas quando me encontrei sozinha, no meu quarto silencioso, que os meus rancores se equilibraram numa vontade única: vingar a memória ultrajada de minha mãe, procurando atingir o seu implacável pai.
E, determinando com precisão este projecto, calculava já como poderia realizá‑lo.
Friamente, com calma, sem hesitação e sem piedade, como teria feito seu avô, a neta examinava o ponto sensível que ia fazê‑lo sofrer.
Devo confessar, para justificar o meu estado de espírito, que acabava de passar por uma decepção atroz, contra a qual nenhuma experiência me precavera.
Na minha existência de órfã, recolhida por duas mulheres sozinhas, nunca vivera junto dum homem. Não os havia em Kerlan e eu não podia saber, exactamente, de que fraquezas, orgulho, rancores, cóleras e egoísmo era feito o carácter masculino.
Um pai parecia‑me dotado de todas as qualidades que o meu cérebro de órfã podia atribuir a um ser imaginário, com que sonhava. Supunha o meu avô muito severo, mas justo. Julgava também que ele tinha remorsos da sua rispidez...
E viera a Lião, apesar de nada esperar, cheia de ignorância, de ilusões e de confiança.
O meu avô, ao receber‑me tão rudemente, acabava de cortar, com um só golpe, todas as minhas crenças e todas as ideias que eu faria dum pai. Todo o meu ser íntimo parecia sangrar.
O instinto animal, que faz com que o cão dê uma dentada a quem o excita, e o gato uma unhada a quem lhe perturba o sono, fazia‑me procurar, com a mesma necessidade de retribuir golpe por golpe, o meio de atingir o meu avô.
E esse meio encontrei‑o imediatamente...
Tinha a certeza de que o rancor implacável do juiz Chauzoles, para com sua filha, era assim tão forte porque supunha que ela vivia.
Vinte anos sem o ter ido ver, vinte anos sem lhe ter dado notícias! Não havia para ele possibilidade de perdoar semelhante rebelião, nem tamanha indiferença.
E como eu não lhe dissera que era filha de Valentine, assim ele ignorava também que esta falecera alguns meses, somente, após a sua partida de casa dele.
Pois bem; eu ia dar‑lhe a notícia.
E o juiz inexorável conheceria então toda a amargura duma vingança malograda e dum furor sem razão.
Saberia assim que era para uma morta que o pai irritado alimentara os seus rancores; que iam todas as suas severidades e o seu ressentimento para um ser desaparecido... Ora, não é costume querer‑se mal aos mortos; cólera, vingança, castigo, tudo cessa com o túmulo.
Peguei num sobrescrito sobre o qual pus a direcção de Désiré Chauzoles. E sem uma palavra para o preparar ou suavizar a terrível notícia que lhe ia dar a conhecer, meti no sobrescrito a certidão de óbito de minha mãe.
A mão não me tremeu e os meus olhos estavam secos enquanto cumpria este gesto que me parecia de toda a justiça.
Estava persuadida de que vingava a memória da minha querida morta, ao mesmo tempo que fazia ver ao juiz a inutilidade de ser tão austero e tão ríspido.
No meu instintivo desejo de justiça, pensei também em Marine, que merecia uma boa recordação minha.
Sobre uma folha de papel, escrevi estas poucas linhas:
«Marine, sou «sua filha», e muito lhe agradeço ter‑me proporcionado a querida peregrinação que hoje fiz.
«Abençoada seja, por se lembrar dela! Nunca aesquecerei...
Gyssie de Wriss, princesa d'Ampolis»
Esta pequenina e afectuosa carta partiu para a boa Marine pelo mesmo correio que o sobrescrito destinado ao severo patrão.
Fui eu mesma levá‑los ao correio e informar‑me da hora a que as duas cartas deviam ser entregues aos destinatários.
O empregado assegurou‑me que chegariam ainda nessa mesma tarde e esta resposta encheu‑me de satisfação; ter‑me‑ia sido desagradável, com efeito, que, quer a vingança, quer o agradecimento, ainda demorassem vinte‑e‑quatro horas.
E aqui tens a minha longa narrativa, Mamie... Agora vou deixar Lião e regressar a Paris.
Não te inquietes acerca do meu estado de espírito; fiquei desiludida, mas não chorei. Não quero pensar em coisa alguma... em nada disto! Já dei a minha unhada... era preciso, todo o meu ser o exigia e parece‑me que me sinto aliviada desde que a certidão partiu! Mas acabou‑se... Já não tenho família pelo lado materno. Meu avô morreu para num... Nunca mais falaremos dele, queres?... Porque, vês, minha querida Maryvonne, há no meu coração um pequenino golpe... quase nada... todas as minhas ilusões fugiram por ali; e este golpe dói‑me se lhe tocarem.
Não é nada, sabes: uma feridinha que dentro em pouco deixará de existir... O tempo há‑de curá‑la e hei‑de esquecer...
Abraço‑te, como te estimo, de todo o coração.
Tua pequenina Gyssie.
Na grande casa silenciosa onde habitava o juiz Chauzoles brilhava uma janela àquela hora nocturna; era a do austero e glacial gabinete de trabalho do dono da casa. Este acabava de entrar depois de um passeio.
Após a visita de Gyssie, o velho, cheio de dúvidas tardias, fora ao Registo Civil. Queria saber o estado civil de sua filha Valentine, a fim de se certificar se qualquer nascimento de criança fora inscrito na margem... era uma ideia que lhe surgira ante a idade da visitante... Talvez também tivesse ficado impressionado por qualquer vaga semelhança... Um certo ar de família... A expressão altiva do rosto, quando a desconhecida o ousara ameaçar de nunca mais pôr os pés em casa dele...
‑ Palavra de honra ‑ dizia o juiz naquele instante ‑ achei‑a parecida comigo.
E, assaltado por esta suposição, o juiz Chauzoles dirigiu‑se ao Registo.
Graças à elevada posição que por muito tempo ocupara em Lião, o pai de Valentine conhecia bastante gente. Pôde, portanto, imediatamente e sem dificuldades, consultar os registos de estado civil. O registo de nascimento de sua filha apareceu‑lhe sem qualquer inscrição: nem casamento, nem nascimento, nem falecimento, estavam mencionados.
Não se admirem por isto: qualquer pessoa pode com facilidade, todos os dias, verificar casos análogos.
O juiz Chauzoles não o ignorava; contudo, era demasiadamente respeitador do texto integral das leis para supor que seria justamente a propósito dos seus que o registo de estado civil pudesse estar incompleto.
Entrando em casa, sem se apressar, o juiz tirava agora a pelica.
Durante um segundo, estendeu as magras mãos para a chama do braseiro, onde ardia a lenha cuidadosamente acesa, logo que começara a cair a aragem da noite.
Em cima da secretária, como todos os dias, o correio da tarde lá estava colocado, esperando‑o.
Por entre os jornais, o juiz avistou imediatamente um sobrescrito azul... Um sobrescrito escrito com uma letra feminina, alta, enérgica e clara... clara como um desafio!
Metodicamente, sentou‑se à secretária antes de pegar na carta, e primeiro voltou‑a por entre os dedos, examinou o carimbo duma estação de correio de Lião; finalmente, com a extremidade da faca de marfim, abriu o sobrescrito.
Longe de compreender de que se tratava, o avô de Gyssie desdobrou o papel, que não condizia com o sobrescrito azul... Era um severo papel oficial...
E, repentinamente, os dedos do juiz largaram tudo, como se aquele contacto tivesse sido mortal...
O homem tornara‑se pálido! As mãos, caídas na borda da secretária, pareciam naquele momento incapazes do menor movimento.
O velho juiz teve que encostar a cabeça ao alto espaldar da cadeira e ali ficou, imóvel, com o olhar fixo... terrivelmente fixo, voltado para aquela porta que ele mesmo abrira para expulsar a jovem desconhecida... aquela porta que, vinte anos antes, proibira Valentine de tornar a transpor...
Valentine?... Sua filha?... Já morrera há muito tempo! Morrera aquela que amaldiçoara nas noites sem repouso... Amaldiçoara‑a porque não voltara... supondo que, tão tenaz como ele, orgulhosamente lhe guardara rancor!
E era para uma morta que a sua cólera implacável se dirigira... uma morta inocente de tudo quanto ele a acusava!
Valentine morrera! Morrera a sua única filha!... Vinte anos antes!
Que tanger fúnebre lhe soava aos ouvidos congestionados!
A sua vida já não tinha finalidade!... Para que lhe servia viver, visto o pensamento daquela a quem queria castigar já não o suster!... A criança escapara ao castigo... Pior ainda! Estava inocente de quase tudo de quanto a acusava!
E ele, o homem íntegro, o juiz severo mas justo, acusara a ausente... Levantara contra ela um requisitório, sem indulgência, de ingratidão filial que não merecia...
Com os olhos fixos, o homem continuava para consigo mesmo o terrível processo em que, de pai acusador, passava para mísero acusado, por quem nesse momento a sua consciência não sentia piedade!
Durante vinte anos alimentara o seu rancor, conservara as suas mágoas e renovara a sua maldição!... E lá longe, na Bretanha, num outeiro desconhecido, a sua filha... a sua filha única... Valentine, repousava sem o natural perdão do pai!
A sua filha!... Partira sem uma palavra de misericórdia que se costuma conceder, mesmo aos criminosos inveterados... Seria possível que ele, o pai, se tivesse mostrado tão inflexível?
E inflexível tinha‑o sido também para aquela rapariga alta, loura e orgulhosa, que lhe fora falar da ausente...
O juiz íntegro mostrara‑se subitamente desumano...
Agora, o pensamento passava da filha para a visitante desconhecida.
O olhar dirigia‑se para o bocadinho de cartão brístol que estava em cima da secretária: «Gyssie de Wriss, princesa d'Ampolis». Era o mesmo nome e o mesmo título que eram atribuídos na certidão de óbito a Valentine Chauzoles. O instinto ‑ depois do golpe, infelizmente! ‑ guiara‑o: a visitante era a filha de Valentine. Era sua neta, aquela jovem que ousara fazer‑lhe frente... Aquela que, cruelmente, sem uma palavra de doçura, não hesitara em mandar‑lhe, nua e implacável no seu aspecto oficial, esta horrível certidão de óbito...
Pela primeira vez na vida, o velho juiz sentiu uma comoção de ternura. Profundamente perturbado, com a voz quase embargada, murmurou:
‑ Ela é cruel, é da minha raça... Gyssie, a minha neta...
Os pensamentos seguiam num terrível declive. Que abismo se abria na consciência!
À porta do gabinete de trabalho, Marine batera já três vezes.
Não ouvindo qualquer ruído no interior, assaltara‑a a inquietação.
Timidamente, o que nunca teria ousado fazer em tempo normal, entreabriu a porta. O seu velho coração de criada dedicada já estava inquieto.
Com todas as comoções que o senhor juiz devia ter sofrido há pouco, podia encontrar‑se doente.
Porém, apesar dos seus setenta anos, o juiz ainda sabia fazer frente à adversidade.
Marine encontrou‑o firme, diante da secretária... Notou, no entanto, que o seu olhar estava fixo e as mãos se agitavam num tremor convulso...
‑ O jantar está pronto.
Não respondeu; nem sequer a ouvira entrar.
‑ Senhor, o jantar vai para a mesa. Levantou lentamente a cabeça.
‑ Não tenho vontade de comer.
‑ O senhor está doente?
Como não respondesse, ela insistiu:
‑ Fiz exactamente, esta tarde, aipos cozidos, de que o senhor juiz tanto gosta habitualmente.
Desta vez, voltou a cabeça para o lado dela e olhou‑a.
‑ Marinette ‑ disse ‑ não achaste, há bocado, que «ela» se parecia com alguém?
A criada perturbou‑se.
‑ Sim, senhor ‑ respondeu lealmente, embora pouco à vontade ‑ Pareceu‑me que... que tinha um ar de família com... o senhor juiz ‑ terminou, baixando a voz.
Désiré Chauzoles não respondeu, mas levantou‑se.
A sua figura alta pareceu a Marinette mais magra ainda do que habitualmente.
O patrão parecia ter envelhecido subitamente; e depois, aquela tremura nas mãos, aquela tremura senil... A pobre mulher ficou aflita.
O juiz puxou a cadeira e deu alguns passos na sala. Devia ter conhecimento da sua fraqueza física.
‑ O carvalho, a velha árvore, fora ferida ‑ murmurou ‑ Nunca mais a sua cabeça se erguerá orgulhosamente... O ramo principal morreu e o seu último rebento já não está perto dele para o suster...
Oscilava como um ébrio, dirigindo‑se para a sua secretária, onde, sem hesitar, abriu uma das gavetas e tirou um bocado de cartão... Um cartão que estava guardado há vinte anos, mas do qual não esquecera o lugar.
Com os olhos dilatados pela surpresa, Marine viu colocá‑lo, com gestos desastrados, na sua secretária, em pé, defronte da pasta, quer dizer, diante do lugar onde habitualmente se colocava a fotografia de Valentine.
A comoção da infeliz foi tão grande que as suas pernas tremeram e teve que se apoiar na ombreira da porta, junto à qual ficara ao entrar.
Que significava aquele gesto do severo juiz?
A sua filha Valentine retomava o lugar em casa. Porém, nessa mesma tarde, expulsara Gyssie. Mas Désiré Chauzoles não prestara atenção à surpresa da criada.
‑ É preciso pôr flores junto «dela» ‑ ordenou com voz breve ‑ «Ela» devia gostar de flores.
Era uma ordem dada nitidamente.
Além do tremor das mãos e da fixidez do olhar, o juiz Chauzoles não deixara transparecer um único sinal exterior da sua comoção.
Para alcançar a casa de jantar, afastou com um gesto maquinal a criada, que lhe cortava a passagem.
‑ Ponha o jantar na mesa!
Sentado agora diante do prato cheio de sopa, conservava a mesma rigidez e o mesmo silêncio impressionante.
Marine viu‑o colocar lentamente os cotovelos em cima da mesa, segurando o queixo com as mãos. O olhar dirigia‑se para diante dele, para a outra extremidade da toalha... ali, onde mais tarde Valentine igualmente costumava instalar‑se para comer...
Durante muito tempo, imóvel, contemplou o lugar vazio. Repentinamente, num gesto de autómato, puxou o prato ainda cheio e disse:
‑ Tire!... O que se segue?
Nem sequer tocara na sopa; mas, maquinalmente, fazia os movimentos habituais...
Marine, sempre perturbada, colocou defronte dele um novo prato.
Levantou um dedo e, designando o lugar defronte dele, desocupado há vinte anos:
‑ Ponha também o «seu» talher ‑ disse ‑ Todos os dias o porá... E, se a vir, diga‑lhe que o lugar dela está marcado... defronte de mim!
Marine ia deixando cair o prato que trazia, de tal forma isto era inesperado! Quase que custava a acreditar! Por certo se passara qualquer coisa que ela desconhecia!
Instintivamente, obedecia, mas principiara a tremer e mordia os lábios para reter os soluços que a sufocavam.
Meu Deus! Vinte anos depois! O pai lembrava‑se que tinha uma filha... E reclamava‑a... A não ser que se tratasse daquela que expulsara poucas horas antes!
Quando Marine colocou o talher, o juiz contemplou‑o primeiro; depois, lentamente, curvou‑se, apoiando a fronte sobre os punhos crispados.
Esquivando o olhar, a boca tapada com o guardanapo branco, para abafar os soluços, Marine olhava‑o, hesitando em compreender...
Uma lágrima... uma grande lágrima de dor foi molhar o prato vazio e a criada, com o espírito perturbado, viu enfim que o patrão chorava...
O austero e glacial juiz Chauzoles, pela primeira vez na sua vida, deixava transparecer uma emoção diante de alguém... Nessa tarde não era mais do que um pai infeliz, um pai que acaba de saber que a sua única filha morreu... longe de si!
Perda irremediável...
Por telegrama, Gyssie prevenira Le Gurum do seu regresso à capital; assim, quando o comboio parou na gare de Lião, em Paris, o oficial de marinha já percorria o local onde devia descer a viajante.
Mesmo antes de ter saído do compartimento, esta última encontrara o olhar claro e profundo de Alex, que lhe sorria.
‑ Fez boa viagem, Gyssie?
‑ Sim ‑ disse laconicamente.
‑ Estou radiante por ter voltado tão depressa.
‑ E eu preferia ter sido obrigada a ficar mais alguns dias.
‑ Ah!
Alex viu repentinamente que Gyssie trazia de Lião uma expressão de aborrecimento e preocupação que não lhe era habitual.
Com suavidade, levou‑a para um café. Devia ter necessidade de se reconfortar depois de uma viagem feita de noite. E então, ao abrigo duma sala aquecida, dir‑lhe‑ia mais facilmente o segredo dos seus aborrecimentos.
‑ O seu avô ainda é vivo? ‑ perguntou logo que lhes serviram um chocolate bem quente.
‑ Sim ‑ respondeu com secura.
‑ Ah! E então... Ele viu‑a?
‑ Viu‑me.
E o seu rosto tinha um aspecto tão reservado que Alex ficou perturbado.
‑ Gyssie, peço‑lhe, conte‑me tudo... Isso aliviá‑la‑á, minha amiguinha, pois adivinho que não encontrou tudo quanto procurava.
Não respondeu; tinha o coração atrozmente oprimido naquele instante.
Depois duma noite horrível em que, durante horas inteiras sem dormir, recordara as palavras trocadas com o avô, acordara muito triste.
‑ Alex ‑ disse ela por fim ‑ esta viagem foi rude... Fui chocar de encontro a um bloco de gelo e o meu coração ficou como que couraçado de aspereza... Não me reconheço e ainda não compreendi a que desejo de vingança, vindo do fundo de mim mesma, obedeci... Fui implacável! Dir‑se‑ia sentir um outro ser dentro de mim que me obrigava a proceder num sentido contrário aos meus sentimentos habituais...
‑ Não estará a exagerar, minha amiguinha? ‑ interrogou o rapaz, com confiança ‑ é impossível que tenha sido voluntariamente má.
‑ E, no entanto, Alex, o facto deu‑se.
‑ Então é porque a ofenderam... e reagiu instintivamente.
‑ Talvez... Meu avô foi severo... Pior do que isso: fez‑me expulsar de casa, antes de eu poder advogar a causa de minha mãe... Já esperava, já previra...
Por isso, não compreendo a que móbil obedeci, vingando‑me sem piedade dum acto previsto e que perdoara antecipadamente.
Le Gurum envolveu‑a num olhar indulgente.
‑ Que fez então, querida Gyssie, para ter sido tão cruel?
O terror assombrou‑lhe os grandes olhos azuis, que, fixamente, olhavam o espaço.
‑ Alex ‑ confessou Gyssie com a lealdade habitual ‑ suponha que eu compreendi que meu avô ignorava a morte de sua filha Valentine...
Parou: a confissão, apesar de tudo, parecia‑lhe penosa. Mas ele encorajou‑a, sabendo bem que depois de ter confessado o que ela chamava as suas culpas, ficaria mais calma.
‑ Então, Gyssie, que fez?
‑ Fui tão vingativa como ele ‑ explicou em voz baixa ‑ Coloquei num sobrescrito a certidão de óbito de minha mãe e, como se recusara ouvir‑me, enviei‑lhe o terrível papel... Sem considerações... O cruel documento... tão tristemente revelador... Sem uma palavra para preparar o meu avô... Ah! que golpe isto deve ter sido para ele... na sua idade!
Le Gurum contemplou‑a com doce piedade.
‑ Gyssie, está‑se a torturar sem utilidade. O seu avô estava talvez ao corrente... Em todo o caso, uma vez que foi toda a sua vida implacável e rancoroso, deve admitir que os outros usem do mesmo processo para com ele... É preciso, também, recordar que não teve ternura nem indulgência para com sua mãe...
‑ Ela, no entanto, era sua filha...
‑ E ele seu pai!... Ora, justamente, não creio que tivesse tido por ela a ternura paternal habitual... O seu acto impulsivo de ontem, Gyssie, foi talvez muito simplesmente a revolta inconsciente da sua ardente piedade filial. Protestou contra a triste infância de sua mãe, mas não creio que tenha querido realmente prejudicar seu avô.
Mas Gyssie interrompeu‑o e acudiu sinceramente:
‑ Engana‑se, Alex! Enviei realmente a certidão de óbito com o desejo de pagar o mal que me causou, fazendo‑me sofrer também!... E é isto que me causa horror, porque, na verdade, em geral, sou incapaz de fazer mal a alguém, conscientemente...
‑ Atavismo ‑ explicou Le Gurum, cheio de misericórdia ante este excesso de escrúpulos que a obrigavam, tão humildemente, a acusar‑se ‑, Em Lião, a Gyssie era a neta do juiz inflexível e usou para com ele do método que lhe era habitual... Era a guerra, creia, minha amiga.
‑ Talvez tenha razão ‑ concordou Gyssie, um pouco sossegada ‑, Lembro‑me, com efeito, deter sofrido muito até mandar a carta. Foi somente depois de a ter metido no correio que me senti aliviada... Dir‑se‑ia ter começado, imediatamente, a respirar melhor. O meu avô é talvez, também, como eu o fui ontem, implacável contra a sua própria vontade... As pessoas que possuem semelhante carácter devem ser muito infelizes depois dos golpes... Esta manhã, afianço‑lhe, Alex, estou profundamente penalizada com o meu gesto desumano e, se soubesse que uma palavra minha podia reparar o mal, escreveria imediatamente para Lião, a fim de pedir desculpa.
Mas Le Gurum sacudiu a cabeça.
‑ É um impulso que não deve seguir ‑ protestou ‑ o seu avô não compreenderia os sentimentos que a obrigavam a proceder assim. Julgaria que tudo isso era um meio para lhe forçar a porta e para o obrigar a escrever‑lhe...
‑ Oh! renunciei a comovê‑lo...
‑ Exactamente por isso. Deixemos as coisas como estão... Temos, além disso, passos mais urgentes a dar aqui...
Le Gurum procurava obrigar o pensamento de Gyssie a seguir um outro caminho.
‑ Tenho coisas muito interessantes a contar‑lhe - disse, para a distrair ‑, Enquanto lá esteve não fiquei inactivo e escrevi a todos os doutores Maudoire, de quem tínhamos tomado as moradas.
‑ Ah! E então? ‑ perguntou Gyssie, esforçando‑se por tomar interesse por este novo assunto.
‑ Todos me responderam, parecendo‑me que a cortesia ainda reina no mundo médico. Mas nove respostas cingiam‑se a breves palavras de delicada negação. Um único podia ser aquele que nós procurávamos... Esse, diz ter conhecido, no seu tempo de estudante, um holandês que se chamava, julga ele, de Vrize... Não é absolutamente a ortografia do nome de seu pai, se bem que a eufonia seja a mesma. Além disso, passado tanto tempo, o doutor Maudoire pode enganar‑se... Diz, realmente, que o de Vrize de quem fala estudava direito internacional, o que condiz perfeitamente. No entanto, uma dúvida surge no meu espírito, porque o nome que o doutor atribui ao seu antigo camarada é inteiramente diferente daquele que nós conhecemos.
‑ Que nome é? ‑ perguntou vivamente Gyssie.
‑ Ress ‑ respondeu.
Gyssie soltou um grito de alegria.
‑ É ele! ‑ exclamou ‑ É mesmo ele! Oh! que feliz que eu sou, Alex! Isto recompensa todos os aborrecimentos desta terrível viagem.
E, como ele a olhasse admirado, Gyssie explicou o que sabia depois da leitura do diário da mãe; que Gys, na realidade, se pronuncia Ress, e que os amigos de de Wriss deviam chamá‑lo como ele dissera verbalmente.
Em vez de ser um motivo para dúvida, este pormenor constituía, pelo contrário, uma certeza.
‑ Mas, então, o seu nome deveria ser «Ressi» ‑ observou Alex, admirado.
‑ Sim, provavelmente. Mas eu não conheço a pronúncia deste nome senão há alguns meses. Mamie e toda a gente habituaram‑se, durante vinte anos, a pronunciar Gyssie à francesa e deixei‑os continuar.
‑ Se assim é, está tudo muito bem: trata‑se realmente de seu pai ‑ prosseguiu o oficial de Marinha ‑ Mas voltemos ao nosso doutor Maudoire. Ele disse‑me ainda que deixou a França pouco mais ou menos na época em que conhecera este jovem holandês, o que deu em resultado tê‑lo perdido completamente de vista... Supõe, no entanto, que um dos seus amigos comuns ficou em relações com ele. Deu‑me o nome e a morada deste último. É um industrial, fabricante de acessórios de automóveis, bastante conhecido: Raphael Russin. É preciso que lhe peça uma entrevista, querida Gyssie, a fim de o interrogar, sem demora, se for possível.
À medida que o seu grande amigo falava, as feições da órfã serenavam. A esperança e a segurança voltavam‑lhe, junto desse rapaz leal e simples que lhe testemunhava, em todas as ocasiões, uma tão sincera estima. Parecia‑lhe agora que a viagem a Lião não passava de um pesadelo e junto de Alex coisa alguma desagradável lhe podia suceder.
Por certo ainda lhe estavam reservadas bastantes dificuldades; mas era bom saber que podia contar com este amigo, cuja boa vontade nunca lhe faltaria...
Aproveitou estas circunstâncias para lhe comunicar as suas tão importantes preocupações materiais.
‑ Actualmente não tenho emprego, e os meus recursos não são grandes... Esgotar‑se‑ão muito depressa, se eu não encontrar imediatamente uma ocupação.
‑ Quer arranjar outro emprego?
‑ Sim... Um lugar qualquer... Gostaria muito que esse trabalho me deixassse livre uma parte do dia.
‑ Mas é difícil de arranjar.
‑ Talvez; mas não tenho eu necessidade de prosseguir as pesquisas, que são a finalidade da minha estada em Paris?
Alex aprovou sem hesitar:
‑ É preciso, mesmo, Gyssie, de momento, consagrar‑lhe todo o seu tempo. Mais tarde pensará na sua situação. Há uma pista muito importante a seguir, desde já, para que lhe volte as costas. É o mais urgente. Não se preocupe com outra coisa.
‑ Seria da sua opinião, se pudesse, Alex. Mas como lhe acabo de explicar, os meus recursos são fracos... Principalmente, depois da viagem!
‑ Esteja sossegada a esse respeito, minha amiguinha. Encontrei durante a sua ausência uma excelente e modesta pensão de família, para meninas... É muito decente e tem a vantagem de não se pagar senão no fim do mês. Como vê, nada a apressa... Além disso, vou lá levá‑la agora. Depois de tantas fadigas e emoções, deve ter necessidade de descansar. Quanto ao resto, tenha confiança em mim, porque mais tarde me ocuparei do emprego que procura.
Gyssie deixou‑se convencer. Sentia‑se muito cansada e era feliz com esta protecção que a envolvia com tanta solicitude... Alex empregava tanta delicadeza e tanto desinteresse no oferecimento dos seus préstimos, que nem sequer pensava de momento como é que lhe poderia um dia pagar tudo isso...
Raphael Russin era um homem metódico. A fim de não exceder o limite das suas múltiplas ocupações, estava tudo organizado à sua volta de forma que todos os minutos fossem preenchidos com exactidão. Em seu redor ignorava‑se o que era esperar em vão, ou perder tempo em conversas... Por conseguinte, os empurrões, o enervamento e a famosa canseira por excesso de trabalho, igualmente se desconheciam.
As suas entrevistas eram coisas sagradas. À hora exacta, o industrial recebia; pensava que a pontualidade foi sempre a delicadeza dos reis, mesmo destes reis modernos que são os grandes senhores da indústria. Em compensação não deixava os faladores alongarem‑se com palavras vãs. Se ele não fazia esperar, estava entendido que não admitia também que abusassem do seu tempo.
Gyssie felicitou‑se por ter obtido uma entrevista deste homem meticuloso. À hora precisa chegou ao escritório dele, com um vestido género alfaite, muito simples, mas que, usado por ela, como tudo quanto vestia, tomava uma distinção incomparável. Devia a elegância à sua figura alta e flexível, ao brilho dos seus olhos límpidos, aos seus cabelos louros e, ainda, a qualquer coisa de indefinível e muito particular que lhe dava a atitude da sua cabeça, o pescoço admirável e uma graça extraordinária, talvez um pouco altiva... Digamos, mesmo, um ar naturalmente «majestoso.
Quando Gyssie entrou no gabinete da direcção onde se encontrava este homem, conhecido por todo o mundo, que movimentava tantos milhões, teve um pensamento rápido ante o compartimento claro e quase vazio.
‑ Há muito mais simplicidade aqui do que no escritório de Le Fíir, que não passa, no entanto, dum pequeno negociante.
Mas não teve tempo para reflexões.
Cortês e ligeiramente surpreendido perante esta beleza altiva e distinta, Raphael Russin cumprimentou Gyssie e pediu‑lhe para se sentar numa das duas cadeiras que estavam defronte da secretária.
‑ Em que lhe posso ser útil?
Gyssie, um pouco intimidada, respondeu, no entanto, entrando logo no ponto sensível da questão:
‑ Dando‑me notícias de meu pai. Disseram‑me que o conheceu, quando ambos eram estudantes.
Russin olhou de relance para o cartão que ela lhe mandara entregar e se encontrava em cima da pasta. O cartão tinha, como sempre, o nome e título atribuídos à princezinha.
O industrial teve primeiro um ligeiro franzir de sobrancelhas. Procurava, evidentemente, localizar este nome num dos seus numerosos conhecimentos de outrora. Depois, pareceu hesitar.
‑ É a menina Wriss? ‑ interrogou com voz indefinível.
‑ Sim ‑ disse Gyssie ‑ a filha de Gys Wriss. Ela pronunciara Ress tal como os amigos de
seu pai deviam ter o hábito de lhe chamar.
Raphael Russin ficou silencioso alguns instantes; depois, como que a custo, continuou:
‑ Então, minha senhora, suponho que há qualquer engano. Conheci realmente um de Wriss, mas não era príncipe... Não usava, sequer, este nome d'Ampolis que leio no seu cartão.
Pareceu fazer um ligeiro esforço de memória e continuou:
‑ Era holandês, creio eu, e a partícula que precedia o seu nome não devia ter qualquer significação...
‑ Não devia ser meu pai ‑ balbuciou Gyssie, bastante desanimada.
‑ É provável... E, no entanto, o meu antigo camarada falava algumas vezes num país em que o nome d'Ampolis tinha um lugar...
‑ Ah! ‑ disse a jovem, perturbada ‑ Ele... ele falava nisso?...
‑ Sim... Não sei a que propósito, mas este nome já o ouvi pronunciado por ele.
De novo, Russin parou. O seu olhar, num relâmpago, envolveu Gyssie com um pouco de compaixão. Depois continuou:
‑ O pai tinha uma boa situação na Holanda... no comércio, provavelmente... Nunca o soube ao certo... Lembro‑me que Gys resistiu muitos meses a este pai, que exigia a sua partida para as índias Neerlandesas. Acabou por deixar Paris, bruscamente, sem tornar a ver os seus amigos... Depois, perdi‑o de vista.
E repetiu, como se sublinhasse as suas palavras:
‑ Mas não era príncipe... Já vê que não deve tratar‑se de seu pai.
Gyssie olhou para este homem que dizia aquilo num tom de absoluta certeza.
Ela supôs que, para ser tão afirmativo, ele devia saber mais do que dizia.
Fosse o que fosse, queria saber tudo, porque no seu íntimo não estava tão certa, como o industrial, de que não se tratasse de seu pai.
Portanto, insistiu:
‑ Por que motivo não satisfazia o seu condiscípulo os desejos do pai? Havia alguma coisa que o retivesse em Paris?
‑ Um grande amor, creio eu...
‑ Ah! sim! ‑ exclamou Gyssie.
E, sem compreender que acabava de reconhecer abertamente seu pai no companheiro do fabricante, acrescentou:
‑ Não casara pouco tempo antes... pelos começos de Novembro?
Gyssie tinha um aspecto angustiado, mas tão resoluto que o industrial não hesitou mais. Afinal, ele gostava das situações claras e de pessoas bastante fortes para suportarem a verdade.
Gyssie pareceu‑lhe pertencer a esta classe; foi com uma verdadeira simpatia que lhe disse então:
‑ Minha senhora, não veja naquilo que lhe vou relatar senão o desejo sincero de a ajudar. Julgo que quer saber toda a verdade, seja ela qual for.
Gyssie fez um sinal afirmativo com a cabeça.
‑ Vou, portanto, dizer simplesmente o que sei de Gys de Wriss; a conclusão tirá‑la‑á segundo aquilo que já conhece por si mesma... Julgará se é seu pai ou não... Primeiro, disse‑lhe que Gys, na época que precedeu a sua partida, estava loucamente apaixonado. Disto, estou certo em absoluto, sendo pouco mais ou menos o único que recebia as suas confidências. Sei que amava uma jovem pura e encantadora, que nunca lhe pertenceria senão como esposa legítima. Ora, razões imperiosas por parte da família daquela a quem amava, tornavam este casamento impossível antes de alguns anos. Lembro‑me muito bem destes pormenores, porque estive pessoalmente implicado nesta história. É necessário dizer‑lhe... Posso falar com toda a simplicidade leal, diante duma rapariga moderna, não é verdade?
Mais uma vez, Gyssie aprovou com a cabeça.
‑ Pois bem!... É preciso dizer‑lhe que nesse tempo tínhamos imaginado, entre estudantes, uma pequena comédia para nos distraírmos, para nos divertirmos um pouco... Fazia‑se uma espécie de paródia ao casamento, consagrando as nossas ligações fugitivas do Bairro Latino. Agora, julgo isto absolutamente idiota, mas nesse tempo víamos apenas um pretexto mais para nos divertir... Foi pela altura dos vinte anos, a idade de todas as tolices!
Gyssie olhou‑o pensativa.
‑ Também tenho vinte anos ‑ disse a meia voz.
Havia uma tal dignidade e nobreza no seu aspecto que o industrial desculpou‑se perante aquela criança.
‑ Os vinte anos de agora são doutra qualidade, minha senhora... A juventude de hoje é mais precoce e conhece melhor as responsabilidades que nós ignorávamos. Há um abismo entre as nossas duas gerações. Outrora, éramos indolentes e muito inconscientes dos resultados dos nossos actos... Verdadeiros garotos, que nem o serviço militar, que então durava três anos, conseguia tornar mais ajuizados... No entanto, como já disse, Gys estava profundamente apaixonado... e respeitava muito a noiva. Desesperava‑se por ela não lhe poder pertencer... As nossas pequenas comédias matrimoniais sugeriram‑lhe a ideia dum casamento falso... Mas a mulher que de Wriss amava não se deixava iludir por uma cerimónia grotesca, em qualquer sala de café do Bairro. Para ela, era preciso dar a esta cerimónia toda a aparência dum verdadeiro casamento, o que não era necessário com as Mimi Pinson que cada um de nós desposava para rir. Foi por causa disto que de Wrisse me veio procurar. Inventara toda esta história d'Ampolis, da legação e de príncipe herdeiro, que já parece conhecer, e à qual julgo ter dado crédito...
Russin parou um instante; Gyssie empalidecera.
‑ Peço‑lhe perdão se digo as coisas sem rodeios...
Mas, apesar da surpresa que acabava de experimentar, a órfã dominara‑se. Imediatamente implorou!
‑ Peço‑lhe que continue, senhor... quero saber tudo.
A sua voz era pura mas quase afónica. Raphael Russin continuou, portanto, a sua narrativa:
‑ Para dar um pouco de verosimilhança a este casamento fictício, era preciso arranjar uma legação... com um cenário apropriado. Meus pais habitavam nessa época uma rua sossegada. Tinham alugado na margem esquerda uma boa casa, num bonito palácio que tinha ainda bom aspecto. Como meu pai era um grande caçador, a família ficava no campo até ao Natal. Eu estava sozinho, e voltara a Paris por causa dos meus estudos; acedi, pois, ao desejo do meu amigo, e emprestei a nossa casa para simular a legação de Diamantino...
Gyssie contemplava‑o, sempre pálida, lábios entreabertos, gelada de assombro, enquanto ele continuava:
‑ Devo confessar que, durante todo o tempo que durou a pseudo‑cerimónia, de Wriss conservava um ar grave... Um ar que excitava ainda mais a alegria dos outros, porque nada é mais divertido, quando se trata de um grupo de loucos, do que ver um actor cómico tomar o seu papel a sério...
A órfã teve um movimento brusco... Russin apressou‑se a continuar:
‑ Falo‑lhe da impressão daquele grupo alegre e inconsciente... Eu, sabia bem quanto o meu amigo estava apaixonado com sinceridade, compreendia o remorso que devia sentir, por abusar de tão deliciosa criatura... Ele sentia‑se mesmo muito infeliz por ter que se expor aos gracejos de toda aquela mocidade estouvada, da qual eu fazia parte. Não me admirei quando Gys nos convidou a ir almoçar, sem ele e sem a sua encantadora mulher, muito comovida, que conseguia enfim subtrair àquela fantochada, ciosamente, levando‑a consigo. Depois deste dia não consentiu mais que qualquer de nós avistasse esse ser delicioso e chegava a zangar‑se quando algum de nós, de brincadeira, lhe pedia notícias... Aqui tem tudo quanto sei, minha senhora, porque Gys deixou Paris sem me visitar, despedindo‑se simplesmente de mim por um bilhete breve e insignificante... Sempre julguei que tivesse levado consigo a mulher adorada... Ignorava também que tinha uma filha dessa senhora...
Parou e um silêncio doloroso sucedeu‑se a estas explicações.
‑ Agradeço‑lhe, senhor ‑ disse por fim Gyssie, com esforço‑Não suspeitava do papel singular que meu pai representara para com minha mãe; mas, quanto mais examino isto, mais sinto que os factos se adaptam perfeitamente ao que eu já sabia...
A voz tremia‑lhe, ao falar, porque fora para ela uma revelação terrível, chegando mesmo a ser desmoralizadora, visto, até aqui, a sua confiança no pai ser absoluta.
Repentinamente, reviu a cerimónia de Saint‑Julien‑le‑Pauvre, descrita no diário de Valentine.
‑ Não houve também ‑ disse com voz rouca ‑ a comédia do casamento religioso... numa igreja meio ortodoxa, creio?
‑ Não sei... Pelo menos, eu não soube... Parou, e depois observou com vivacidade:
‑ E porque havia de ser ortodoxa? A sua mãe não era católica?
‑ Sim, era, com efeito...
‑ Além disso, semelhante comédia teria sido um sacrilégio e, se bem que Gys fosse um rapaz bastante incrédulo, o que fazia dele um espírito pouco respeitador de todos os cultos, fossem eles quais fossem, não creio que tivesse brincado com as crenças religiosas da mulher amada... Os gracejos permitidos têm os seus limites, e de Wriss era um homem honesto.
‑ Ah! ‑ disse apenas Gyssie, que não ousava esperar que seu pai tivesse transposto esses limites.
Nesse instante estava incapaz de julgar os «limites permitidos à consciência dum homem honesto», segundo o ponto de vista do seu interlocutor. Parecia‑lhe que o simples facto de enganar a mulher a quem se ama, abusando da sua confiança e da sua ingenuidade, era suficientemente abominável para que um homem de coração se baixasse até esse ponto.
Teria Russin adivinhado as ásperas reflexões para o seu amigo, que esta narração sincera fizera nascer no espírito da visitante? É provável que sim, pois procurou calorosamente defender o ausente:
‑ Será talvez bom, minha senhora, pô‑la de sobreaviso contra o julgamento temerário, demasiadamente fácil de formular...
‑ Nada mais preciso do que julgar que tudo está bem ‑ respondeu Gyssie, desorientada ‑ Escuto‑o, senhor.
‑ Sim ‑ continuou ele ‑ É preciso fazer‑lhe notar que o meu condiscípulo pertencia à verdadeira raça flamenga. Nascido e educado em Amesterdão, raciocinava como um verdadeiro holandês. Ora, ali, a liberdade de consciência e mesmo a liberdade pessoal são muito mais sagradas do que aqui. O "diz‑se" e a opinião dos outros não têm a importância que lhes atribuímos, uma vez que um homem repute a sua vontade íntima com muito mais valor de que, por exemplo, uma promessa sancionada pelo registo do acto, na repartição competente, ou pela bênção do padre numa igreja!...
‑ Oh! ‑ protestou baixinho Gyssie, cujos olhos angustiados continuavam a fitar o industrial, na espectativa das coisas inquietantes que ele revelava.
‑ Se eu acrescentar ‑ prosseguiu Russin, com firmeza ‑ que Gys de Wriss alimentava teorias da filosofia alemã e que mal reconhecia aos Governos o direito de reger os actos pessoais dos indivíduos, compreenderá facilmente que o casamento exigido pela noiva, perante o oficial do Registo Civil, lhe parecia uma comédia algo ridícula...
‑ Uma comédia! ‑ balbuciou Gyssie, tendo dificuldade em compreender semelhantes contradições...
‑ Mas sim!... Ora, para de Wriss, a sua comédia, sendo sincera, valia bem a do maire cingido pela faixa tricolor.
‑ Mas, a bênção do céu? ‑ murmurou a órfã, absolutamente desorientada.
‑ Palavra de honra! ‑ disse Russin ‑ vou dar‑lhe uma grande desilusão, minha senhora, mas o meu camarada não acreditava que fosse necessário usar de intermediários entre Deus e ele... É muito difícil explicar a uma senhora até que ponto os filósofos alemães levaram as suas teorias, onde não se acomoda a mentalidade dos estudantes nórdicos, os quais, aliás, a cultivam mais pela palavra do que por acções... Houvesse o que houvesse, na questão do casamento, de Wriss era realmente sincero, asseguro‑o, e esta sinceridade de sentimentos desculpava, a seu ver, os artifícios que tivera necessidade de empregar para possuir sua mãe.
Gyssie não respondeu. Estava aniquilada com tudo quanto acabava de saber.
O pai, que vira até ali através do amor que soubera inspirar à mãe, aparecia‑lhe agora publicamente odioso. Enganara sua mulher, usando para com ela processos absolutamente inqualificáveis... Era um incrédulo... quase um ímpio... Gyssie considerava‑o como um monstro... ou um miserável...
Porém, não quis deixar transparecer as suas reflexões a Raphael Russin.
Apesar da cruel decepção que acabava de experimentar, esforçava‑se por parecer calma e correcta. Diante deste homem que conhecera seu pai e sua mãe, sentia vontade de dominar a sua desilusão.
O industrial, no entanto, notou a palidez extraordinária no fino rosto de Gyssie e adivinhou a comoção contida que ela procurava esconder.
Piedosamente, repetiu:
‑ Estou absolutamente convencido que de Wriss não se prestou a esta brincadeira senão porque, doutra forma, não obteria o amor daquela a quem adorava. Também tenho a certeza de que se não fosse a obediência ao pai, que era quase obrigatória, nessa época, teria renunciado a partir para as índias. Sei ainda que pretendeu sacrificar a brilhante posição que lhe ofereciam; esteve quase a estragar o futuro para não deixar a mulher que nele confiava.
‑ Mas não o fez ‑ observou Gyssie.
‑ É preciso reconhecer todas as razões antes de acusar ‑ disse generosamente o industrial.
‑ Mas eu não acuso... constato somente. E conhece o destino que depois teve o vosso antigo camarada?
Russin teve um gesto vago que parecia traduzir a sua ignorância.
‑ As nossas relações da mocidade não foram reatadas quando regressou à Europa... Não lhe posso dar nenhuma indicação.
‑ No entanto, não supõe que ele morreu?
‑ Oh! não! ou, então, muito recentemente. Os negócios deram‑me oportunidade, aqui há tempos, de tornar a ver o seu nome... Não me recordo bem a propósito de quê. Mas vive, e está em Paris. Em todo o caso, de Wriss deve ocupar uma boa situação. Em negócios, os holandeses são pessoas hábeis e desembaraçadas. É possível que, dirigindo‑se ao consulado da Holanda, obtenha as informações que deseja acerca da sua actual residência.
Gyssie levantou‑se. Com uma gratidão cheia de coragem, agradeceu a Raphael Russin as suas explicações... Graças a ele compreendia melhor a situação particular... Principalmente a origem do título de princesa, ao qual não tinha direito algum...
‑ A senhora sua mãe nunca soube coisa nenhuma? ‑ perguntou‑lhe Russin.
‑ Minha mãe faleceu quando eu nasci. Felizmente, ignorou o lado escabroso e vexatório do seu falso casamento... O mais curioso ‑ disse ironicamente, com um triste sorriso ‑ é as boas criaturas que me educaram acreditarem piamente que eu seja filha do príncipe d'Ampolis. E, com este nome, estou legitimamente inscrita no Registo Civil.
‑ Mas, então, tem todo o direito de usar o título.
‑ Oh! senhor! ‑ protestou Gyssie dolorosamente ‑ Uma vez que sabe tudo quanto ele representa, crê que continuarei a ostentá‑lo no futuro?
O homem envolveu Gyssie num olhar de profunda consideração. A sua atitude era realmente cheia de dignidade, apesar da cruel desilusão que acabava de sofrer.
‑ Tem toda a razão, minha senhora. Vejo que é, como sua mãe, uma pessoa demasiadamente inteligente para se contentar com as aparências.
Os olhos de Gyssie encheram‑se de lágrimas perante este cumprimento feito à sua querida desaparecida.
‑ Estou verdadeiramente comovida, senhor, pela recordação honrosa que tem de minha mãe, e agradeço‑lhe as palavras que, a seu respeito, acaba de pronunciar. Devo‑lhe também toda a minha gratidão pelo acolhimento benevolente que me dispensou... e que nunca esquecerei.
Ora, o que o industrial não previra, deu‑se: Gyssie mostrara uma tal dignidade que se impusera verdadeiramente.
Longe de ser uma aventureira sem escrúpulos, revelava‑se bem educada, impecável e merecendo todo o respeito.
Foi com entusiasmo que ele lhe estendeu a mão.
‑ Queira dispor de mim, minha senhora, se alguma vez lhe puder ser útil...
Muito delicadamente, acompanhou‑a até à porta do escritório, o que raramente fazia.
E quando ele se inclinou, murmurando: «Os meus respeitosos cumprimentos...», isto não representava uma palavra vã de delicadeza; sentia‑se verdadeiramente cheio de deferência por Gyssie, tão nova e tão nobre no seu imerecido sofrimento.
Gyssie afastou‑se, aparentemente calma, mas no coração ferviam‑lhe os mais dolorosos sentimentos de amargura. O seu desgosto era feito de indignação e de desilusão profunda. O pai não passava de um subornador. Por uma mentira sustentada e repetida, graças a uma comédia inqualificável, conseguira seduzir sua mãe... A maneira como procedera era indigna de um homem honrado.
E quando Gyssie evocava a confiança doce e leal de Valentine naquele que ela julgava seu marido, uma onda de nojo invadia‑lhe a alma.
‑ Meu Deus! Que torpeza! E este homem é meu pai; eu orgulhava‑me de usar o seu nome!... Que perda inconfessável!
Parada à borda do passeio, a alguns passos da fábrica de Raphael Russin, Gyssie ficara imóvel, mergulhada no abismo que os seus pensamentos abriam diante de si.
Era de tal forma inesperado o que acabara de saber que tinha a impressão de ter sido atacada de loucura.
Teria seu pai podido inventar semelhante história? Ostentar nomes e títulos que não lhe pertenciam?
E todo o seu orgulho se revoltava com a ideia desta mentira... deste título que lhe davam há vinte anos e ao qual não tinha direito algum.
Mas tudo isto seria verdade? Não se trataria, pelo contrário, de um terrível pesadelo de que ia acordar?
Tinha realmente dificuldade em se render à evidência.
Parecera‑lhe tão belo este homem, que nunca vira senão amável e encantador, através dos olhos da mãe... Aquele a quem procurava com confiança filial, como o grande amigo e o supremo protector!
E este pai, em quem vira um deus, não passava de um aventureiro... pior ainda: pela sua concepção da lealdade, um hipócrita! Abusara da confiança de uma mulher pura e nobre, incapaz de suspeitar da mentira!
Que atroz desilusão!
‑ É então isto que são os homens? ‑ perguntava a si mesma, rispidamente ‑, o senhor Le Fíir... meu pai, depois de meu avô, outro egoísta... Este, absolutamente o contrário de Gys! Tão austero, tão severo e ríspido, quanto o outro era sorridente, lisonjeiro e mentiroso. E, cada um no seu género, eram tão odiosos um como o outro.
Os homens!
Que detestável mentalidade a do sexo oposto, com o qual somente agora começava a tomar conhecimento!
Principiava a andar, a direito, sempre para diante, maquinalmente por qualquer caminho, sem se importar com o itinerário que seguia.
Alex, que a acompanhara até à porta de Russin, e passeava de um lado para o outro aguardando o seu regresso, avistou‑a de longe, no momento em que, repentinamente, desaparecia na esquina de uma rua.
Ao alcançá‑la, tomou‑lhe o braço.
‑ Então, Gyssie, onde vai? Pouco faltou para que me esquecesse, no passeio.
Ela levantou para ele os seus grandes olhos magníficos, que uma espécie de hipnotismo endurecia... E foi Alex quem recebeu o choque da cruel decepção acabada de sofrer.
‑ Alex ‑ disse Gyssie um pouco nervosa ‑ é abominável! Nunca pensei que os homens pudessem ser tão falsos e tão miseráveis!
O oficial ficou surpreendido, mas Gyssie não lhe deu tempo a protestar e acrescentou asperamente:
‑ São uns verdadeiros monstros! Os homens não têm coração! Austeridade ou falsidade, é sempre o mesmo egoísmo que os obriga a proceder!... É impossível acreditar em semelhantes criaturas... Impossível ter confiança neles... São todos iguais!... Sim, desprezíveis!
E como parasse para tomar fôlego, visto a cólera lhe tomar a respiração, Le Gurum conseguiu dizer algumas palavras:
‑ Vejamos, Gyssie! Acalme‑se, minha amiga, e não generalize: nem todos somos egoístas e mentirosos, como julga!
‑ Pois eu acho que são! ‑ exclamou com nova indignação ‑ Estou a ver que, logo que os homens querem qualquer cousa, todos os meios lhes servem para atingir os fins... Não conhecem freios para as suas paixões e não se importam em sacrificar quem quer que seja, para realizarem os seus desejos... As mulheres a quem amam não podem, sequer, ter confiança neles; é necessário mentir, enganar!... São homens, acima de tudo!
O oficial de marinha, profundamente contrariado com estas referências tão ásperas para o seu sexo, sentia‑se atormentado e baixava a cabeça como um culpado. Na veemente indignação de Gyssie, ele adivinhava a grandeza da decepção que devia ter experimentado, mas não conseguia saber o que lhe dera causa. Teria Raphael Russin sido menos correcto para com a órfã? Ou seria Gys de Wriss, cuja conduta equívoca de outrora fora subitamente revelada a sua filha?
Mas não esteve muito tempo na incerteza das grandes ofensas que motivaram a cólera de Gyssie.
Rapidamente, mas em termos claros e peremptórios, a órfã pô‑lo ao corrente dos factos singulares que o industrial lhe revelara.
‑ Compreende, Alex: meu pai enganou indignamente minha mãe, ao fazer uso de um estado civil que era fantástico. Estou revestida de um título que não me pertence; não sou princesa!
‑ Isso não lhe dá menos valor, Gyssie. O rosto e a alma continuam sendo os mesmos!
‑ Sim, mas deve compreender a terrível mentira... perpetrada no meu registo! Estou absolutamente desolada!
‑ Porquê? Ninguém tem necessidade de ser posto ao corrente desta história. O Registo Civil de Coatderv validou o seu nome. Está legalizado presentemente; ninguém pode fazer nada!
‑ Mas, na realidade, é uma falsidade! O Registo Civil foi ludibriado, como o foi a minha pobre mamã.
‑ Felizmente, ela não duvidou um só instante.
‑ Sim, e foi bom que ignorasse todas estas acções... Ainda não consegui persuadir‑me de que tantas coisas fossem inventadas. Nunca, antes deste dia, pude pensar que os actos de uma pessoa correcta pudessem esconder tanta perversidade. Realmente, o seu sexo é desprezível, Alex! Os homens manejam, instintivamente, a mentira!
De novo o oficial teve um gesto de protesto.
‑ Asseguro‑lhe, Gyssie, que se engana. Nem todos os homens são mentirosos. A maioria, felizmente, é composta de rapazes bons e leais.
‑ Sim, sim! ‑ respondeu ela ‑ Os rapazes são sempre perfeitos, quando as suas conveniências ou as suas paixões não estão em jogo.
‑ Vamos, minha amiguinha, não seja assim injusta e não torne responsável, pelo erro de alguns, metade do género humano... Há já bastantes meses que nos conhecemos... e parece‑me que a minha afeição e dedicação nunca lhe faltaram... Serei, por acaso, tão desprezível como pensa? Já a ofendi alguma vez?
O seu tom de amargura chocou a órfã. Fitou‑o com um ar de admiração, como se mal notasse a sua presença ao seu lado.
‑ Quem, o Alex? ‑ disse com sinceridade ‑ Mas o Alex não é um homem!... É...
‑ Um Iroquês! ‑ disse ele baixinho.
Gyssie levantou novamente os olhos e, sob a influência de um pensamento íntimo, corou.
‑ Quero dizer ‑ continuou com menos segurança ‑ que é um irmão, um amigo precioso, um bom cão dedicado...
‑ Ainda bem que o compreende!
‑ ... O Alex não me estima com amor! ‑ continuou, imperturbável ‑ E o que é certo é eu também não lho dedicar!...
‑ Evidentemente!
‑ ... Entre nós há apenas uma grande e leal afeição... Felizmente... é bem melhor assim!
‑ Ah! está bem! ‑ interrompeu, arrebatado ‑ Já vejo que admite, apesar de tudo, um pouco de afeição entre nós!
‑ Com certeza! E é quanto basta! Se houvesse amor, seria uma calamidade! Nessa altura procuraria apenas mentir‑me... enganar‑me... como... fazem todos os outros!
‑ Muito obrigado.
‑ Seria ciumento, exigente... e talvez não me protegesse com tanto desinteresse... Quanto ao que me diz respeito, se eu o amasse, seria um verdadeiro desastre!
‑ E porque havia de ser um verdadeiro desastre? ‑ perguntou ele, cada vez mais teimoso.
‑ Porque então teria confiança em si ‑ respondeu com um amuo infantil.
‑ Seria como a minha pobre mamã, e acreditaria tudo quanto me dissesse!... Imaginaria que o Alex possuía todas as qualidades boas e era o único no mundo que as tinha... Seria uma verdadeira catástrofe! ‑ acrescentou quase a chorar.
Desarmado, apertou mais ternamente contra si o braço frágil que descansava no seu.
‑ Minha querida Gyssie, que acaba de confessar que tem confiança em mim!... Apesar de tudo, é amabilidade dizer‑mo... não obstante o seu desprezo pelos homens.
Apertou na sua a mãozita dela, sem que Gyssie se defendesse.
Foi um instante embriagador que causou vertigens na alma do oficial.
‑ Ah! ‑ murmurou, muito comovido ‑ como é bom não nos amarmos, minha pequenita Gyssie... Pediria a sua mão... Casar‑nos‑íamos... Gyssie usaria o meu nome, simples plebeu; seria, no entanto, um nome que a impediria de pensar na sua origem... no seu avô muito severo... no seu pai muito inconsequente. Viveríamos muito egoisticamente só para os dois... e mais tarde teríamos uns filhinhos encantadores, a quem nunca enganaríamos... Oh! a minha querida Gyssie dá‑me um lugar à parte no desprezo em que envolve metade do género humano!... Como poderíamos ser felizes os dois, se me quisesse dizer... sim... somente por hoje!
Gyssie, pouco à vontade, libertou‑se do seu contacto.
‑ Felizmente ‑ disse ela depois de um silêncio ‑ sou razoável por dois. Estimo‑o por demais e nunca quereria fazer a sua infelicidade, permitindo‑lhe casar comigo.
‑ O sonho era demasiadamente belo ‑ suspirou Le Gurum em voz baixa.
‑ Os sonhos são sempre utopias ‑ respondeu Gyssie com amargura ‑ a realidade é inteiramente diferente.
Sou apenas uma pobre garota honesta a quem um homem cobriu com um título ridículo.
‑ Não pense mais nisso, minha pequenina Gyssie. Que lhe importa não ser princesa, uma vez que, casando, mudará de nome!
‑ Sim, mas aqui está: nunca me casarei...
‑ Ah! Gyssie?
‑ Ou, então, se o prefere, será o mais tarde possível.
‑ Gosto mais disso, se bem que esse «mais tarde» nada tenha de sedutor.
Gyssie não respondeu imediatamente, mas ao fim dum minuto observou, como se falasse só para si:
‑ Mais tarde? Isso tanto pode ser amanhã como daqui a cinquenta anos, felizmente!
E, sem parecer notar o assombro que o seu companheiro mostrava, perguntou com ar muito sério:
‑ Se o Alex estivesse apaixonado... ‑ mas com aquilo a que se chama «amor verdadeiro!...»‑ também seria capaz de mentir... de inventar?
Uma súbita gravidade ensombrou o fino rosto do oficial.
‑ Nenhum ser humano sabe, antecipadamente, do que será capaz para ganhar ou conservar o amor da mulher que ama ‑ respondeu em voz surda ‑, Para ganhar o seu amor, minha Gyssie adorada, creio que seria capaz dos heroísmos mais loucos... Mas para a conservar inteiramente minha... para impedir que qualquer outro a viesse buscar... Oh! maldição, na verdade, não tenho a certeza, verdadeiramente, de não ser capaz de cometer um crime!
‑ Ah! que horror!... Bem me parecia! São todos iguais!... É abominável!... Alex, desprezo‑o profundamente por ser um homem!
Mas ao dizer estas palavras suspendeu‑se no braço dele, e, enquanto andavam, inclinava a cabeça de tal forma que o seu rosto ia apoiar‑se, com confiança, junto do ombro do oficial.
Em silêncio, andaram uma centena de metros.
Alex não ousava pronunciar uma palavra, com receio de perturbar aquela aproximação deliciosa que fazia palpitar todo o seu ser, e Gyssie, mergulhada nas suas reflexões mais ou menos cor‑de‑rosa, não notava o deleite que sentia, tão singularmente, junto do seu afectuoso companheiro.
‑ Vi muito bem, há bocado, que Raphael Russin desculpava meu pai ‑ observou de repente, a meia voz ‑ Explicou‑me as razões que o fizeram proceder. A influência da sua nacionalidade, da sua educação... Meu pai tinha uma mentalidade inteiramente diferente da nossa... Russin disse também que o seu condiscípulo era leal... E, mesmo, não parecia desprezá‑lo.
‑ Para julgarmos os outros, pequenina Gyssie, é necessário colocarmo‑nos no seu lugar, conhecendo as razões do seu procedimento. Seu pai pode muito bem ter sido sincero para com sua mãe.
‑ E era‑o! Isso é indiscutível!
‑ Pois bem, minha amiga, a palavra sinceridade é sinónimo de lealdade... E se alguém cometer um erro, nem por isso será um indigno...
‑ É exactamente o que eu pensava ‑ aprovou ela com um sorriso satisfeito, porque lhe custava terrivelmente desprezar o pai.
Houve entre eles um novo silêncio, durante o qual cada um resolvia, para consigo mesmo, o problema. Depois, Le Gurum interrogou:
‑ E agora, Gyssie, que pensa fazer?
‑ Pois bem... continuar as minhas pesquisas... É evidente.
‑ Não pensa que antes de as prosseguir seria preferível unir‑se a um companheiro que lhe amortecesse os golpes cruéis, se alguma vez tivesse que tornar a ser atingida?
‑ Por que motivo o seria ainda mais? Que me pode suceder ainda pior?
‑ Nunca se sabe...
‑ Não. Creio que atingi hoje o extremo doloroso da história. Agora estou pronta para tudo.
‑ Mas isso não impede que um fardo levado por dois seja menos pesado.
‑ E esse companheiro, naturalmente, encontrava‑o sob o aspecto de marido!
‑ Olé!... Um noivo seria já alguma coisa.
A jovem parou e, largando o braço a que se agarrara, exclamou:
‑ Um noivo! Nada menos do que isso! Mas onde havia eu de ir desencantar um?... Assim?... Imediatamente?
‑ Vejamos, Gyssie, não diga criancices. Sabe muito bem como a adoro e que não desejo senão que...
‑ O Alex? Pronto! Aqui começamos nós a divagar! Principia a brincar com coisas sérias, sem dar por isso!
‑ Perdão! Eu estou a falar a sério...
‑ Ninguém o diria, meu amigo! A sua loucura é manifesta e seria bom, creio, tratar de si, de forma que não ameace por mais tempo a tranquilidade das raparigas ajuizadas!
‑ Oh! Gyssie, acabe com essa brincadeira tão cruel.
‑ Não percebo como sou cruel, não ficara combinado entre ambos há bocado «que não nos amávamos?».
‑ Nunca aprovei coisa tão falsa!
‑ Enfim, era qualquer coisa nesse género... Havia seguramente um de nós que não amava o outro!
‑ Infelizmente!
‑ Penso, pelo contrário, que é uma felicidade para si... e talvez mesmo para mim!... Mas aí está a tomar de novo esse ar furioso, quando eu prefiro muito mais o seu sorriso. Separemo‑nos depressa, se não quisermos discutir... Além disso, estou já à minha porta...
‑ Já!... E eu nem sequer tive o tempo necessário para a convencer...
‑ Como tenho mil razões, esta tarde, para estar triste! Ah! Não sei, Alex! A pobre princesinha enganada não deve ter esta noite sonhos muito bons.
O rosto do oficial ensombrou‑se imediatamente. Próximo a deixá‑la, não pensava senão no instante em que poderia tornar a vê‑la.
‑ Gyssie, não quer terminar a tarde na minha companhia? Jantaríamos juntos, num restaurante; depois, iríamos ao cinema e eu viria trazê‑la aqui, após o espectáculo. Seria muito mais divertido para ambos.
Mas Gyssie sacudiu a cabeça tristemente.
‑ Não ‑ disse ela ‑ Perdoe‑me contrariá‑lo, Alex, mas prefiro não sair... Estou sem disposição nenhuma, esta tarde... Vou escrever a Maryvonne, para lhe contar o lastimável resultado da minha visita a Russin; depois vou‑me deitar... Sinto a cabeça obcecada por esta história inverosímil de há vinte anos! Se eu pudesse dormir, esqueceria um pouco... e era melhor!
‑ Minha pobre Gyssie, como eu gostaria de ter o direito de não a deixar esta tarde... Parece‑me que conseguiria expulsar‑lhe do pensamento essas ideias tristes.
Ela encolheu os ombros com indiferença.
‑ Tenho que esgotar o cálice‑disse com amargura ‑, é necessário ir até ao fim... Depois, talvez tudo fique melhor.
Antes de a deixar, Le Gurum beijou‑lhe a mão. Depois, ficou a vê‑la desaparecer na escuridão do corredor.
À medida que se afastava, parecia cair um peso tremendo sobre os ombros de Alex.
De cabeça baixa, meteu‑se a caminho.
‑ Há, com certeza, um de nós que não ama o outro ‑ repetiu com desespero.
E como não era ele!
Desmoralizadora verificação! Nunca lhe seria possível ganhar a amizade de Gyssie?
‑ Palavra! Ela tem medo de amar! E firmou‑se nisto, depois da aventura que aconteceu à mãe!
As suas mãos crisparam‑se no fundo das algibeiras.
‑ É por culpa do pai que não tem confiança!... Ah! esse, se eu o apanhasse!
Gyssie esteve ainda dois dias sem que o coração pudesse encarar, com calma, a nova situação que a narrativa de Raphael Russin criara.
Primeiro, não era princesa. Era preciso, o mais depressa possível, riscar esse título da sua vida e não permitir a ninguém que suspeitasse que o estado civil lho atribuía «legalmente».
Em segundo lugar, perguntava a si própria se era conveniente procurar ainda Gys de Wriss, como sua mãe lhe indicara.
Visto não poder sentir a admiração, a confiança e o respeito que uma rapariga deve reservar para o autor dos seus dias, era razoável expor‑se à tentação de lhe dizer todas as pungentes verdades que ele merecia?
Durante quarenta‑e‑oito horas, Gyssie recusou tornar a ver Alex, e quando o encontrou, o seu olhar fixou‑se nele com uma espécie de dureza! Também era um homem.
‑ Oh! Gyssie! ‑ exclamou em tom de repreensão ‑ como foi cruel por me ter afastado de si, durante dois dias!
‑ Estive doente! ‑ respondeu laconicamente.
‑ Foi o moral que adoeceu, minha amiguinha... Não proteste; compreendo muito bem... Mas, justamente porque estava triste, era preciso refugiar‑se junto de mim. Quando somos dois, suportamos melhor a adversidade.
Mas Gyssie abanou a cabeça, pensativa.
‑ Há desgostos que também têm o seu pudor. Além disso, não me teria compreendido... É homem e pensa como homem!
‑ Evidentemente, mas isso não impede que possa julgar se uma coisa está certa ou não... Se um facto é leal ou não! Màzinha! Porque me diz sempre coisas tão severas?
‑ Porque é preciso abrir‑lhe os olhos, Alex. Põe voluntariamente uma venda a meu respeito!
‑ Isso sim! Gyssie é a mais pura e a mais franca das raparigas. Gostava que minha mãe ainda fosse viva para a poder levar junto dela e pedir‑lhe que a considerasse desde então como sua filha.
‑ Esquece, meu amigo, que não tenho família nem dinheiro... Sou a filha duma mulher que foi seduzida... Uma criança a quem o pai não reconheceu... Aquela a quem o avô expulsou de casa... Apesar das boas qualidades que me atribui, a sua mamã far‑lhe‑ia notar que estou à margem da sociedade!
‑ Oh! mas que exagero! A Gyssie, sempre tão ponderada!...
‑ Estou triste ‑ desculpou‑se ‑ Tenho tido tantas desilusões há um tempo a esta parte!
‑ Porque não tem direito ao título de princesa? ‑ disse Alex, procurando gracejar.
‑ Porque meu pai não era absolutamente nada do que eu pensava. Atribuira‑lhe todas as qualidades! Orgulhava‑me dele... e sentia‑me tão feliz por ser sua filha.
‑ Esqueça‑o, minha querida Gyssie, visto parecer que ele nunca mais pensou em si! Renuncie duma vez a procurá‑lo e verá como o seu estado moral melhora!
A reflexão era infeliz; Gyssie atalhou:
‑ Antes de o acusar de todas as torpezas é preciso adquirir a certeza! ‑ exclamou num lindo gesto de indignação ‑, Uma vez que ainda vive, quero conhecê‑lo! Não pretende, por certo, que eu abandone a ideia de o encontrar, nem suspenda as minhas pesquisas no momento em que parecem estar no final! .
Le Gurum teve um gesto de tristeza.
‑ Vejo que quer correr o risco de novas decepções, minha amiguinha!
‑ Ou então duma grande felicidade ‑ respondeu ela, sem notar a sua singular reviravolta ‑, Vê, Alex ‑ continuou ‑ meu pai não é um homem qualquer... É preciso não o comparar aos simples mortais, como nós. Minha mãe julgava‑o acima de todos os outros.
‑ Por ignorar que ele abusara da sua confiança.
‑ Mas nunca duvidou da sua ternura! E o amigo dele, Raphael Russin, que o conheceu, disse‑me que estava loucamente apaixonado e era sincero. Um amor grande e verdadeiro é uma coisa tão rara e tão bela que é preciso sermos indulgentes... Procuremos compreender o que uma pessoa verdadeiramente enamorada é capaz de fazer.
Chegara a vez de Alex atalhar:
‑ O quê!... Como é que diz isso, Gyssie? Uma pessoa verdadeiramente enamorada?... Mas, primeiro, gostava de saber a que chama um «grande amor»!...
‑ Ora essa! ‑ disse Gyssie, fitando nele os seus grandes olhos tranquilos ‑ Creio que nem toda a gente é capaz de possuir um sentimento suficientemente poderoso para inventar uma história como a da legação imaginária!
‑ Felizmente!
‑ É preciso estar‑se louco de amor ‑ continuou ela, sem notar a interrupção ‑, para se esquecer a sua condição de pessoa honrada e não compreender, sobretudo, que a tolice cometida tem o risco de lhe retirar, para sempre, a confiança daquela que crê em nós...
‑ Ah! então acha que o verdadeiro amor permite a mentira, a traição e a hipocrisia?
‑ Meu pai não traiu minha mãe.
‑ Mas abusou da sua candura.
‑ Amou‑a apaixonadamente... Não pode saber, Alex, o que é semelhante amor!
‑ Não, naturalmente, não posso saber... Não sou um homem como os outros! Sou incapaz de amar...
Gyssie olhou‑o, parecendo ficar absolutamente estupefacta com o seu tom irritado.
‑ Ah! bem! ‑ disse tranquilamente ‑ Que tem, meu amigo? Está doente?
‑ Palavra! começo a acreditar, com efeito, que estou doente para aceitar com paciência todas as suas reflexões... Seu pai! Não há outro como ele!... Com a cabeça cheia de todas as qualidades que lhe atribui, chega a pensar‑se que é o único no mundo... Os erros, agora, circundam‑lhe a fronte como um nimbo! Está completamente extática diante dele! Não repara, sequer, nas modestas qualidades daqueles que a cercam.
No rosto de Gyssie passou um clarão de ternura.
‑ Meu pobre Alex ‑ observou com doçura ‑ está a causar‑me inquietação! Terá, por acaso, ciúmes de meu pai?
‑ É muito possível! Também eu gostaria de a deslumbrar!
O seu ar de mau humor fê‑la sorrir, se bem que não estivesse verdadeiramente satisfeita.
‑ Talvez tenha também o desejo de inventar uma legação, não? ‑ disse ela em tom de brincadeira.
‑ Ah! Se não bastar que eu me torne imperador da Patagónia para conseguir o seu amor, creio que terei de me resignar a isso.
‑ Seria, com efeito, um título muito pomposo ‑ replicou ela com seriedade ‑, Onde vai aninhar ‑se a ambição masculina! E eu sempre a imaginar que o título de amigo muito querido e de fiel confidente lhe bastavam, junto de mim... Estou completamente desolada por ver que, pelo contrário, sonha com grandezas e títulos gloriosos...
‑ Minha querida Gyssie, se soubesse quanto gostaria que me desse um pouco do seu amor!
‑ Mas eu amo‑o muito, Alex, que mais deseja? O rapaz soltou um profundo suspiro.
‑ Evidentemente ‑ disse com melancolia ‑ Ama‑me «muito» e isso deve bastar‑me.
Ela estendeu‑lhe afectuosamente a mão.
‑ Vamos, meu bom amigo, sorria depressa à sua irmãzinha. Alegre‑se, seja forte, visto ela actualmente só ter grandes preocupações. Que teria ela feito, durante estes últimos meses, se o Alex não estivesse junto dela para a reconfortar?...
Uma súbita amargura ensombrou‑lhe a voz. Alex compreendeu‑a e generosamente mudou o assunto da conversa.
‑ Tem razão, minha Gyssie, lastimo‑me e tenho afinal a grande felicidade de a ver livremente! ‑ observou num tom risonho ‑, Possuo em si a amiguinha mais preciosa e ao mesmo tempo a melhor camarada que um homem pode desejar.
‑ Pois com certeza! ‑ concordou Gyssie ‑ Entendemo‑nos ambos às mil maravilhas.
‑ Entendemo‑nos mesmo divinamente ‑ aprovou ele, comovido.
Gyssie compreendeu a comoção da voz masculina e, num gesto espontâneo, bateu amigavelmente com a mão no ombro de Alex.
‑ Meu bom amigo, nada de comoções! Somos dois companheiros formidáveis!
Depois, mudando de tom, para fugir à comoção:
‑ Vou à igreja de Saint‑Julien‑le‑Pauvre; quer acompanhar‑me até lá, Alex?
‑ Da melhor vontade! Mas que vai fazer a essa igreja?
‑ É preciso ter a certeza de que o casamento religioso de meus pais foi lá celebrado.
‑ Creio que sua mãe lho disse.
‑ Com efeito, mas a minha mamãzinha amava demasiadamente meu pai... Estava incapaz de saber ao certo qualquer coisa.
Alex ouviu‑a soltar um grande suspiro e compreendeu que Gyssie estava muito menos convencida, do que sua mãe, da regularidade das coisas.
‑ Tomemos então o caminho de Saint‑Julien‑le‑Pauvre ‑ aceitou ele simplesmente.
No táxi que os levava pela margem esquerda, pois chovia torrencialmente nesse dia e os autocarros passavam cheios, Gyssie evocou o automóvel que levara seus pais da suposta legação para a igreja.
‑ Há vinte anos que a minha mãezinha, com o seu vestido de noiva, também estava sentada ao lado de meu pai para fazer um percurso pouco mais ou menos idêntico ‑ murmurou, com os olhos enevoados.
Alex, repentinamente perturbado, murmurou:
‑ Oh! minha amiguinha! Como essa comparação que faz é tão grata para mim!
‑ E como é cruel para mim! Ela era feliz, porque confiava... Eu estou desesperada e não tenho fé!
‑ Gyssie!
Num impulso, pegou‑lhe na mão e apertou‑lha afectuosamente.
‑ Gyssie! ‑ repetiu ele ‑, Quaisquer que sejam as suas preocupações neste momento, diga‑me que não deseja suportar o peso dos erros de seus pais; é nova ainda, tem o futuro diante de si e é digna de todas as adorações... Um dia amará e será feliz.
‑ O amor é o maior perigo que pode atingir uma rapariga ‑ replicou ela num tom gaiato ‑ Que Deus me preserve de semelhante desgraça!
E tudo isto foi dito tão simplesmente que Alex, não gostando de ouvir brincadeiras acerca deste assunto, largou a mãozinha que retinha prisioneira, e, furioso, lançou‑se no outro canto do carro.
O doloroso passado, no qual a sua companheira se comprazia em viver, deveria erguer‑se sempre diante dela e impedi‑la de ser feliz?... Feliz com ele, acima de tudo?
Excluindo a aventura de sua mãe, vinte anos antes, parecia desinteressar‑se totalmente do presente e da sua própria vida.
É que, para Alex, não era suficiente amar aquela criança pura e leal, queria‑a sua, para sempre. Mas conseguiria fazer‑se amar com tão cruéis reminiscências, que evocava, cem cessar, para ajustar ao presente?
E estava neste ponto das suas reflexões quando a voz de Gyssie rompeu o silêncio do ambiente pesado de amuo que os envolvia:
‑ O meu grande amigo Alex tem qualquer motivo para estar zangado comigo? ‑ perguntou ela com doçura.
‑ Nenhum, pessoalmente! É evidente! ‑ respondeu Le Gurum com amargura ‑, Mas desejaria vê‑la viver com a sua alma de hoje e não com uma mentalidade ancestral, totalmente falseada pelas aventuras que aconteceram a seus pais.
‑ Suponho, pelo contrário, que devemos aproveitar a experiência contida nos acontecimentos que atravessaram a vida deles.
‑ Os factos não se repetem, nunca, absolutamente iguais. É perigoso querer comparar a nossa época à que caducou totalmente e era anterior à guerra. São outras pessoas, outro meio, outra mentalidade também. Em todo o caso, não é razoável subordinar a sua vida a um passado abolido, que não existe senão na imaginação.
‑ Mas eu quero ver, julgar a vida com o mesmo olhar inocente e leal com que minha mãe a olhou.
‑ Nesse caso, não compreendo o que vai procurar a Saint‑Julien‑le‑Pauvre ‑ respondeu, de mau humor, o oficial ‑ Se sua mãe se contentou com uma mentira, porque procura a verdade?
Gyssie ficou boquiaberta. Este Alex, tão bom amigo, seria capaz também de lhe causar um golpe profundo?
«Na verdade ‑ concordou ela consigo mesma ‑ muitas vezes lhe dou bastantes razões para protestar com energia.
Levada pelo seu amor filial, que a fazia admirar tudo quanto vinha de sua mãe e mesmo de seu pai, nunca avaliara a admiração que ele lhe concedia.
O endiabrado Alex, com as suas apreciações masculinas, que a sua infeliz paixão por Gyssie estimulavam, constrangia‑a a encarar a verdade.
‑ Evidentemente ‑ concordou ela ‑ Minha mãe julgaria que era prova de falta de confiança em meu pai e mesmo uma injúria verificar as suas afirmações. Eu, porém, sou menos crédula, percebeu?
Tinham chegado ao largo Viviani. Alex e Gyssie desceram do táxi e dirigiram‑se para a igreja, que ficava situada ao fundo da pequena praça.
Gyssie conhecia o lugar. Já, por várias vezes, fora ali fazer as suas devoções e evocar a meiga imagem de Valentine Chauzoles deslizando, vestida de branco, por sobre as lajes da igreja.
Naquele dia atravessou a nave sem parar e encaminhou‑se, imediatamente, para a sacristia.
Dirigiu‑se ao padre que ali se encontrava, e, timidamente, perguntou se lhe poderia fornecer o extracto de um casamento contraído naquela igreja vinte anos antes.
E foi com o coração palpitando de angústia que aguardou ver os nomes dos pais e a data indicada pela sua mãe como sendo a do seu casamento religioso.
Depois, a tremer de comoção, esperou o resultado das pesquisas do eclesiástico.
Não ousava esperar que a cerimónia descrita com tanta minúcia e fervor no diário de Valentine Chauzoles tivesse sido legal; Gys de Wriss, em Saint‑Julien‑le‑Pauvre, como na suposta legação de Diamantino, devia ter abusado da ingénua candura da sua apaixonada, demasiadamente confiante.
E enquanto o padre, procurando no registo dessa época, seguia com o dedo a nomenclatura dos casamentos registados, esforçava‑se por não deixar transparecer os seus receios e a sua falta de fé.
Teve um sobressalto brusco quando o eclesiástico leu, a meia voz, estas linhas:
‑ No dia 2 de Outubro de 1913, casamento de Gys de Wriss e de Valentine Chauzoles...
Gyssie precipitou‑se e, por cima do ombro do padre, decifrou a letra minúscula que atestava o casamento religioso de seus pais.
Então, não era um mito! Seu pai desposara realmente sua mãe!
A impressão foi tão terna para Gyssie que algumas lágrimas de comoção lhe humedeceram os olhos.
‑ Meu Deus! ‑ balbuciou" ‑ É, portanto, verdade... Minha mãe casou realmente com meu pai, na igreja!
Admirado, o padre voltou‑se para Gyssie:
‑ Duvida então, minha filha?
‑ Ah! senhor abade, não sei o que creio... Como não encontro provas do casamento civil, pensara as coisas piores.
O padre pôs‑se a ler o registo referente aos pais de Gyssie.
‑ Não há qualquer anotação a esse respeito... Mas com certeza que os papéis dos cônjuges estavam em ordem... Veja, portanto, no registo do quinto bairro. Lastimo não lhe poder dar mais informações. Em todo o caso, aqui está a certidão do casamento religioso, que me pediu.
Gyssie agradeceu ao padre, calorosamente, de tal forma ficara satisfeita com o que acabara de saber; depois, foi ao encontro de Alex, que a esperava visitando aquele lugar santo.
Pelo sorriso radiante que lhe lançou, Alex compreendeu imediatamente que estava satisfeita.
‑ Vamos! Adivinho... tudo correu bem! A minha amiguinha, desta vez, não está desgostosa!
- Não, é verdade, Alex! Estou radiante! Minha mãe casou‑se aqui. E como o casamento religioso é o mais importante, o resto não interessa.
Le Gurum evitou deitar um duche sobre o grande entusiasmo de Gyssie, enquanto pensava que, aos olhos da lei e do estado civil, é justamente o casamento religioso que não tem importância.
E, pela primeira vez, desde que se conhecia, Le Gurum invejou os povos estrangeiros onde os usos eram diferentes dos franceses e onde a religião presidia, só por si, à regularização das uniões legítimas.
Na verdade! Havia bastante «necessidade de mudar isso», em França! Lá fora, a minha pequenina Gyssie seria realmente uma filha legítima e sua mãe uma senhora casada, de verdade.
Porém, Alex não exprimiu em voz alta o pensamento, com receio de escurecer o belo sorriso confiante e vitorioso que a sua querida companheira mostrava tão triunfantemente.
Gyssie teve que voltar ao consulado holandês, três vezes, antes de poder obter a morada do pai.
De começo, tinham‑se perguntado minuciosamente tudo quanto ela própria podia saber acerca desse Gys de Wriss, de quem vinha informar‑se; qual a data aproximada da sua estadia em Paris? Sabia a idade? E a profissão?
Em tudo isto não havia questão de sentimentos, fossem eles quais fossem. Era mais uma ficha a estabelecer, entre as restantes. Tudo se fazia administrativamente.
Quando tomou nota de tudo, o secretário da legação disse a Gyssie:
‑ Suponho que com estas indicações poderemos fornecer‑lhe as informações desejadas... Vamos proceder o mais diligentemente possível; será, sem dúvida, questão de alguns dias.
Na realidade, foram necessárias mais de duas semanas para que o pedido fosse satisfeito. Mas, em compensação, quantos pormenores inéditos lhe forneceu um dos adidos da legação, a quem a sua beleza fascinava!
Gys de Wriss, de quarenta‑e‑quatro anos de idade, nascera em Amsterdão e era administrador duma grande empresa de navegação holandesa, com a sede social em Roterdão e um escritório francês na rua Scribe, em Paris. Habitava na Holanda, mas vinha a França três a quatro vezes por ano. Era membro do Yachting‑Club‑Internacional, bem como do Racing‑Interallié, etc., etc... A sua situação era sólida e perfeitamente estabelecida. Muito considerado no seu país, era igualmente conhecido da colónia holandesa em Paris, que o julgava duma honorabilidade absoluta.
Vinte vezes Gyssie leu e releu estas notas, que a deixaram pensativa.
Voltava entre as mãos nervosas este papel que lhe dizia muito... e não dizia ainda o bastante!
Que relação havia entre este homem rico, bem colocado e muito considerado, e o estouvado e terno apaixonado de Valentine? Com o estudante, quase pobre ou, pelo menos, economicamente subvencionado pelo pai? Com este fantasista «Príncipe Encantador» que tão bem soubera conquistar o coração da sua leal mãezinha.
No entanto, a mãe falecera numa situação bem precária, quase próxima da miséria, enquanto aquele que a seduzira e enganara acerca do seu estado civil era já, possivelmente, muito rico e susceptível de a rodear de bem‑estar!
Era evidente ter sabido arranjar tudo de forma que nenhum laço legal o prendesse à humilde Valentine e supusera ter o direito de esconder a sua verdadeira situação a esta espécie de esposa morganática... Mas Gyssie calculava com o coração e não com o cérebro. Gys de Wriss, rico, respeitado e poderoso cidadão holandês, perdia a seus olhos o privilégio da auréola de apaixonado sincero e pobre. Na verdade, não fora no passado senão um impostor.
Depois, transformou‑se num personagem impudente que calcou a seus pés o coração duma mulher, renegando todos os juramentos e faltando a todos os seus deveres.
Foi com esta hostil disposição que Gyssie resolveu ir ver Gys de Wriss aos seus escritórios, em Roterdão, porque só o pensamento de poder ir encontrá‑lo em casa, onde vivia talvez com a sua nova família, a enchia de indignação...
Esta segunda parte da vida paterna desejava orgulhosamente ignorá‑la... com a presciência obscura de que, talvez, ele tivesse esposa e filhos legítimos, e estes a considerassem como inexistente, visto ter nascido fora dos laços legais, que os tornavam fortes perante ela.
Todos estes pensamentos lhe subiam do coração ao cérebro, em ondas de cólera ou de desprezo, segundo o prisma por que os encarava.
Alex, que no decorrer das suas peregrinações marítimas muitas vezes visitara a Holanda, acompanhou Gyssie até lá.
A jovem quase preferia estar sozinha, para ter mais liberdade nas suas idas e vindas; mas o oficial, que não augurara coisa boa das diligências a empreender, não a desejava isolada naquela cidade, onde não conhecia o idioma nem os habitantes.
Foi ele quem a guiou até à Companhia de Navegação onde o pai dela era o maior elemento.
Gyssie entrou nos escritórios de Gys de Wriss sem se ter feito preceder pelo envio de uma carta ou de um aviso telefónico. Nada provava, pois, que seu pai estivesse presente e a quisesse receber assim, de improviso, sem lhe ter sido marcada uma entrevista.
Com o coração palpitante de emoção, a visitante entregou o seu cartão...
Não daqueles que mandara imprimir recentemente e onde não pusera os títulos nobres aos quais não tinha direito nenhum; foi, pelo contrário, um dos seus cartões antigos, com os seus nomes e os seus títulos todos inscritos: «Gyssie de Wriss, princesa d'Ampolis», que deu ao empregado para ser entregue a quem procurava. Não era preciso encontrar imediatamente o antigo companheiro de sua mãe e que ele ficasse sabendo bem quem era a pessoa que lhe desejava falar?
Gyssie viera com a impressão de que Gys de Wriss a não receberia e ficou quase surpreendida quando compreendeu que a mandavam entrar.
Nunca o coração lhe batera com tanta agitação como no momento em que entrou no escritório do pai, com quem sonhava há tanto tempo. E a sua comoção foi tão forte que nem notou o luxo que a cercava. Não viu literalmente mais nada do que um homem desconhecido, de quem usava o nome, o qual estava imóvel, olhando‑a também com um rosto impenetrável.
Alguns minutos, que pareceram séculos, passaram‑se neste recíproco e curto exame.
Caso singular: este pai, de quem não conhecia senão o retrato de há vinte anos, reconhecia‑o. Pareceu‑lhe apenas envelhecido. O que mudara nele mais do que as feições fora a expressão, tornada dura, e que era, nessa manhã, concentrada e glacial.
De Wriss, além disso, tomava certamente a defensiva, ante esta rapariga cuja existência desconhecia até àquele momento.
Era nesta espécie de indiferença que ele a examinava.
Não teria notado, logo ao primeiro olhar, a flagrante parecença que tinha com ele próprio?
Quem sabe?
Talvez!
Fosse como fosse, não deixava transparecer cousa alguma que pudesse encorajar a visitante. Não queria, evidentemente, mostrar o que pensava.
Desde logo, e instintivamente, erguia uma muralha de gelo entre ele e a desconhecida.
‑ Que deseja, minha senhora?
O tom era de tal forma neutro e correcto que toda a emoção de Gyssie desapareceu de repente. Sentia‑se apenas intimidada para responder:
‑ Mandei‑lhe o meu cartão, senhor... Leu o nome?
‑ Li, com efeito, minha senhora, e vejo que usa um parecido com o meu. Porém, não tenho a honra de a conhecer, e isso de forma nenhuma me explica qual o fim da sua visita.
O tom era altivo... E tão distante! Onde estava naquele momento a franqueza holandesa tão gabada nos outros países!
Gyssie teve a impressão de se encontrar a milhões de léguas daquele salão sossegado. Esforçou‑se, contudo, por conservar um ar de confiante serenidade e, muito simplesmente, perguntou:
‑ Não compreende a relação existente entre mim e o senhor?
O homem teve um gesto evasivo:
‑ Não... Ainda não! O meu nome é comum nos Países‑Baixos e não sou aparentado com todos quantos usem um nome semelhante.
‑ Mas nem todos juntam, talvez, ao seu patronímico, o título bastante raro de «princesa d'Ampolis...». E este qualificativo também não lhe diz cousa alguma?...
‑ Não, quando se refere a si, minha senhora.
‑ Sou a filha de Valentine Chauzoles ‑ replicou Gyssie, com uma firmeza de que não se julgaria capaz ‑, Por acaso já esqueceu Valentine?
Ele contentou‑se, por resposta, em encolher os ombros, e Gyssie teve um movimento de revolta que lhe tornou a voz rouca, enquanto insistia:
‑ Tem, então, tão fraca memória que já esqueceu a mulher com quem casou... lealmente, correctamente... há vinte anos... perante cinquenta testemunhas?
De Wriss não fez um movimento, mas uma onda de sangue purpureou‑lhe o rosto imóvel, como uma máscara.
Gyssie continuou, deixando‑se arrastar de novo pela comoção:
‑ Será possível ter esquecido a promessa sagrada feita na igreja de Saint‑Julien‑le‑Pauvre, à noiva vestida de branco, coroada com flor de laranjeira, tão pura, tão cândida, tão ingenuamente confiante na sua palavra de honra?...
Parou, para retomar fôlego, porque sentia todos os seus rancores subirem‑lhe aos lábios, ao evocar a mãe, com o vestido imaculado das donzelas. Ora Gyssie não queria perder o domínio das suas palavras. Devia conservar‑se calma e respeitadora ante o pai que acabava de encontrar.
Como ele não respondesse, Gyssie continuou de novo, mas mais baixo ainda:
‑ Será preciso recordar‑lhe como deixou sua esposa... uma tarde... afastando‑a de sua casa para ir comprar a cambraia e a renda para o «principezinho», que estava para nascer?... Foi no dia 5 de Fevereiro de 1914 que ela obedeceu à sua leal e franca sugestão! Nesse dia, partiu para fazer as compras que lhe aconselhara! Foi nessa mesma data que o senhor, corajosamente, abandonou o domicílio conjugal, deixando atrás de si, para sempre, a mulher confiante a quem fizera mãe...
Gyssie apresentava a sua queixa com uma voz pura e sem hesitações. Este pai altivo, cujo olhar fugia do seu, não a intimidava. Logo às primeiras réplicas, compreendera que ele repelia todo o passado, entrincheirando‑se na sua indiferença, como numa torre bem defendida.
Como ficasse silencioso, o olhar fito no cartão de Gyssie, com o qual brincava na ponta dos dedos, ela terminou, quase em voz baixa:
‑ Nasci em 18 de Julho... O príncipe era uma rapariga, compreende?
De novo parou. Estava sufocada de comoção.
Enquanto ela falara, sob a máscara impassível do homem nenhuma feição se contraía, mas uma surpresa recalcada... emoção, talvez... ensombrou‑lhe por segundos o olhar claro. Respondeu com uma voz surda, como se falasse consigo próprio, num sonho vago:
‑ Aquela de quem fala desapareceu da minha vida há já muitos anos...
Por leve que fosse a insinuação, pareceu a Gyssie monstruosa. A frase disparatada de seu pai dava a impressão de acusar sua mãe daquela separação.
O seu protesto rompeu como se lhe tivessem tocado numa mola:
‑ Bem sabe que não foi por culpa dela que não viveu consigo toda a vida! Foi o senhor quem abandonou a sua mulher e a criança que ia nascer. Esqueceria também, por acaso, as responsabilidades que lhe cabem?
A esta censura, nitidamente formulada, ele não levantou a voz e foi no mesmo tom, medido e calmo, que respondeu:
‑ Visto conhecer esses acontecimentos longínquos, deve saber quais as condições, independentes da minha vontade, que me obrigaram a abandonar a mulher amada, com efeito por longo tempo...
Voltado para ela, como a desafiá‑la, encostou‑se sobre os cotovelos para prosseguir:
‑ E o que talvez não saiba e, seja quem for, devo dizer‑lho, é que quando regressei à Europa, em plena guerra, no momento em que todas as pesquisas se complicavam terrivelmente, fiz tudo quanto pude para encontrar essa mulher e o filho dela...
‑ «Seu» filho ‑ corrigiu com doçura Gyssie, a quem as explicações do pai acalmavam pouco a pouco.
‑ Nosso filho, sim ‑ consentiu ‑ Nunca tive a ideia de os abandonar... Valentine estava só, isolada, sem defesa, sem fortuna...
Desejei ardentemente encontrá‑la para cumprir o meu dever para com ela.
‑ Procurou‑a, realmente? ‑ insistiu a jovem, que não desejava senão que o seu rancor se acalmasse.
E o seu coração, na prisão de carne, principiava a palpitar com uma secreta doçura.
‑ Procurei, evidentemente! ‑ replicou num tom arrogante ‑ Procurei durante longos anos... Mas inutilmente! Não consegui sequer saber se Valentine ainda era viva!
Gyssie sentia‑se agora muito fraca. Era de tal forma boa esta certeza reconfortante de seu pai não ter realmente querido abandonar a mãe, que se sentia confundida. Lágrimas de sossego nublaram‑lhe o olhar.
‑ Então ‑ disse com doçura, num impulso involuntário de afeição ‑ então, se sofreu a expectativa das suas pesquisas, deve estar hoje muito satisfeito!
‑ Satisfeito?... E porque hei‑de estar satisfeito?
‑ Satisfeito por eu ter vindo!
Uma sincera admiração cobriu o rosto de Gys de Wriss.
‑ Por ter vindo! ‑ exclamou ‑ O que pretende dizer? Porque havia eu de estar satisfeito!
E examinava‑a subitamente, como se descobrisse diante dele qualquer coisa muito curiosa para examinar.
‑ Por ter vindo! ‑ repetiu com calma ‑ Mas «eu não a conheço»! É a primeira vez que a vejo!
Gyssie olhou‑o um pouco magoada e ferida pelo seu tom de indiferença, que um ligeiro desdém parecia acentuar. Supondo que ele não tivesse compreendido ainda os estreitos laços que os uniam, insistiu com um sorriso triste... um sorriso a mendigar uma resposta piedosa:
‑ Sou a filha de Valentine Chauzoles... A filha nascida do seu casamento com minha mãe.
‑ E então?
‑ Então ‑ repetiu ela, sucumbida ‑ sou também sua filha... É meu pai!
De Wriss não vacilou ante esta precisão. Teve apenas um gesto vago de indiferença.
‑ É possível... se o pretende, é verdadeiro, é mesmo provável; mas também não é menos certo «eu não a conhecer».
Para Gyssie, esta frase era de tal forma inesperada que perdeu a respiração.
Depois de alguns instantes de silêncio passados numa espécie de estado hipnótico, a olhar aquele que falara, observou com lógica, apesar da sua perturbação:
‑ É evidente não me conhecer. Os acontecimentos não o permitiram. Aquelas que me educaram, procuraram, em vão, encontrar o seu rasto e anunciar‑lhe o meu nascimento... O senhor é o próprio a dizer ter‑me procurado...
‑ Perdão: eu procurei Valentine...
‑ ... E seu filho...
‑ Ela, primeiro... Ela, antes de tudo!...
‑ Mas, o filho?... ‑ protestou Gyssie, sufocada ‑ A criança que também lhe pertencia e a quem apelidara de «principezinho?»
De Wriss sorriu com um pouco de ironia perante esta «cousa sem importância» que Gyssie teimava em precisar.
‑ Não era muito certo ‑ observou ‑ que a criança viesse a este mundo em boas condições... Podia não ter vivido! Na realidade, apenas a mãe me interessava.
‑ Ah! ‑ disse Gyssie, desiludida e completamente desnorteada, sem poder compreender como, amando sua mãe, Gys de Wriss da mesma forma não sentia um pouco de ternura por ela... pela criança que nascera da mulher amada...
Gyssie ignorava, porém, que os holandeses são, antes de mais nada, homens de negócios, de números; homens que se esforçam por dar aos seus sentimentos o lugar mais pequeno nas suas ocupações diárias.
Por outro lado, o seu carácter plácido e um pouco frio não lhes permite exteriorizarem‑se, sobretudo publicamente, da mesma forma que as suas emoções se traduzem mais facilmente por um mau humor ou por um silêncio pesado do que por lágrimas ou ternura. Para quem os conhece mal, esta indiferença, ou estes sinais de irritação, fazem‑nos crer desprovidos de sensibilidade. Mas não é assim e a sua aspereza é mais aparente do que real.
Esta ignorância do verdadeiro carácter holandês obrigou Gyssie a cometer um erro.
Ante a indiferente frieza que de Wriss parecia ligar à filha de Valentine, Gyssie supôs dever insistir e fazer um apelo ao laço de sangue que une um pai a sua filha:
‑ Como será possível ‑ observou ela ‑ viver sem ter sentido nenhum estremecimento paternal! A voz do sangue não lhe falava, então, do pequenino ente que lhe devia a vida e crescia longe de si, sem o conhecer?
‑ A voz do sangue!
Desta vez, de Wriss começara a rir, francamente divertido por esta ridícula expressão.
‑ A voz do sangue?... Por certo que não! Não creio nessa invenção, criada pelos romancistas franceses em busca de assuntos para os seus originais... A voz do sangue!
A sua alegria parecia tão natural e tão justificada que Gyssie ficou confundida.
Teve repentinamente a impressão de que o pai e ela não se compreendiam... tal como se estivessem falando duas línguas diferentes.
‑ Não acredita, talvez, que eu seja na realidade sua filha? ‑perguntou, inquieta.
‑ Não sei! Diz‑me que é a filha de Valentine; pois bem, admitamo‑lo.
‑ Não nega, então, que eu possa ser sua filha? ‑ insistiu com a mesma inquietação.
‑ De forma nenhuma!... Perante os pormenores fornecidos, já reconheci, há pouco, ser muito provável.
‑ Então, se... se admite a ideia de ser... meu pai, porque me acolhe... assim?...
‑ «Assim», como?
‑ Sim... assim... friamente.
‑ Friamente?... Será, por acaso, necessário tomar qualquer atitude?Parece‑me que estou como deve ser!
Imediatamente se impacientou:
‑ Que esperava ao vir aqui? Como havia eu de a receber?
Gyssie fitou nele os seus grandes olhos.
‑ Como eu supunha que um pai devia receber a sua filha, depois de tão longa separação.
Falara com tristeza, porque sentia uma súbita vontade de chorar, perante este pai tão altivo.
Gyssie, porém, também desconhecia que na Holanda parece mal ter uma filha fora do matrimónio. Um homem que esqueça a lei fundamental das conveniências é muito mal visto pelos seus semelhantes. E, a tal ponto, que um rapaz rico, poderoso e instruído, que não sendo casado tivesse uma filha duma criada, se julgaria obrigado, para satisfazer os costumes, a casar com a mãe, livre de desprezá‑la «abertamente» de futuro.
Digamos ainda, para se compreender bem o carácter do nosso herói, que, nos Países‑Baixos, se as mulheres casadas estão completamente sob a autoridade marital, a ponto do casamento ser um apanágio que dá ao homem todos os privilégios no lar, as raparigas solteiras, em compensação, são muito livres e muito protegidas pelas leis e pela opinião pública. Resulta daqui não sonharem, como em França, no marido que hão‑de arranjar. Casam‑se, pelo contrário, o mais tarde possível e consideram isto uma coisa absolutamente razoável, depois de terem gozado todas as liberdades que ali se concedem, tanto aos rapazes como às raparigas.
Pelo exposto, resulta que de Wriss não tinha intenção de renegar a linda e meiga Valentine. Parecia‑lhe mesmo absolutamente natural ter usado de todos os subterfúgios para a possuir; era um assunto entre ela e ele; ninguém tinha nada a ver com isso, e ninguém, na Holanda, teria pensado em censurar o caso!
O ponto sensível, em compensação, era a criança!... Nesta conjuntura, era Gyssie, quer dizer, uma rapariga, que tudo sustentava «contra ele», contra o seu abandono, e até mesmo contra a sua indiferença.
Armada com as leis, com os hábitos, com a opinião pública, era muito forte; tinha de qualquer maneira «direitos sobre ele», podia «exigir!...».
E, no cérebro revoltado contra tudo quanto era uma violência para os indivíduos, de Wriss, cheio de filosofias, não concebia sequer que um governo pudesse, pela força do seu exército e da sua polícia, governar despoticamente milhares de cidadãos desarmados; revoltava‑se, instintivamente, pensando apenas que Gyssie tivesse um direito ‑ nem que fosse de afeição ‑ sobre si próprio.
Este cidadão da livre Holanda era rico, poderoso, rodeado de luxo; mas, nem que fosse pobre, obscuro, desprovido de tudo, teria tido o mesmo movimento de recuo ante uma sujeição, fosse ela qual fosse. O homem não admitia a existência dum senhor. Sendo o indivíduo criado livremente, era incompreensível que um outro indivíduo ou grupo de indivíduos pretendessem sujeitá‑lo sob a força da lei ou sob uma exigência.
E, naquele momento, o seu livre arbítrio e a sua vontade estavam ameaçados por uma criança desconhecida... uma fraca rapariga que, pela sua filiação, podia alegar direitos ou deveres que nunca aceitaria ser constrangido a cumprir. Antes de qualquer outra sensação, era esta a causa subjectiva que nele fervia.
Levantara‑se já do seu lugar havia alguns instantes e, nervosamente, percorria a largos passos o grande compartimento coberto de pesados tapetes de Smirna.
De repente, parou defronte de Gyssie, que ficara prostrada numa grande cadeira.
‑ Supunha talvez que ia saltar‑lhe ao pescoço ou choramingar de emoção com a sua vinda?... Não!... Seria ridículo!... Conheço‑a, por acaso? Há apenas alguns minutos que soube da sua existência. Reflicta um pouco... Nada nos liga, nem o passado, nem os hábitos, nem a concordância de carácter ou ideias... Nada, absolutamente nada!...
‑ Nada, senão os laços naturais que unem um pai a sua filha ‑ interrompeu tranquilamente Gyssie, porque, perante o arrebatamento de Gys de Wriss, a neta do juiz Chauzoles recuperava repentinamente o sangue‑frio, sereno e altivo, do avô.
‑ Os laços naturais? ‑ repetiu ele, acalmando‑se subitamente ante a tranquila segurança da visitante ‑ Quer referir‑se à hereditariedade, à raça?... Confesso humildemente que sou incapaz de os distinguir em alguém... Ainda que fosse a filha do carvoeiro da esquina, seria para mim exactamente a mesma, de feições, de figura e de aspecto!
Gyssie não hesitou.
‑ Não sou a filha do carvoeiro da esquina ‑ observou com doçura ‑ Sou «somente» a sua filha!
‑ O que é talvez lamentável para si.
‑ É provável ‑ replicou Gyssie com fleuma ‑ porque, naturalmente, não lhe passa pela ideia que entre nós possa existir um laço normal!... De afeição, por exemplo!... A minha ternura filial respondendo ao seu amor paternal. Já ouvi dizer que isto se tem visto... algumas vezes... de pais para filhos!
Ou fosse a ironia glacial de Gyssie que o esbofeteara, ou fossem as palavras acabadas de pronunciar que o tivessem ferido nas suas concepções pessoais, de Wriss, perdendo pela segunda vez a sua aparente impassibilidade, saltou literalmente ao ouvi‑la, como se lhe tivesse dirigido a mais formidável das acusações.
‑ Ah! ah! ‑ exclamou‑Já esperava essa frase. Há uns dez minutos pressentia que ia saltar‑lhe dos lábios! O amor paternal! A ternura filial!... Isso existe? Crê que se possa encontrar na natureza?
Estupefacta, não compreendendo a pergunta, Gyssie olhava‑o em silêncio.
‑ Sabe, por acaso, o significado da afeição, da ternura ou da piedade de que fala tão pomposamente? ‑ continuou com aspereza ‑ Nunca pensou que todos esses lindos sentimentos, cujos nomes pronuncia com ênfase, não passam, na realidade, dum estado doentio da pessoa?
Um clarão de horror passou‑lhe nos olhos, que fitavam de Wriss.
‑ Oh! ‑ balbuciou com a sua meiga voz, consternada ‑ Como pode dizer que a profunda ternura duma filha por seu pai é o resultado dum estado doentio?
‑ E não é outra coisa, no entanto ‑ afirmou com firmeza ‑ O sentimento não existe na natureza. Não nasceu senão nos cérebros humanos, degenerados por uma civilização imbecil e fora das leis naturais.
De novo, parou defronte dela.
‑ Que idade tem, Gyssie ‑ perguntou bruscamente, mudando de tom.
Pronunciara «Ress» e isto comovera a jovem.
‑ Tenho vinte anos ‑ respondeu docilmente.
‑ Vinte anos, quer dizer, a idade viril, a idade em que a juventude pensa no amor, em que as raparigas sonham com um marido!... Pois bem, que fazem os seres da natureza, quando o instinto de se multiplicarem lhes chega?
Como Gyssie ficasse calada, insistiu:
‑ Olhe à sua volta, com o desejo de ver claramente, e não com o falso pudor que lhe põe um véu no rosto, ante a realidade... Verificará que os animais deixam os seus covis, isolam‑se dos bandos e vão, ao acaso, procurar o companheiro ou a fêmea da sua preferência... O mesmo sucede com a espécie humana: os rapazes e as raparigas, na ânsia de formarem um lar, deixam também a casa dos pais, para se fixarem noutro lado!
‑ Não compreendo muito bem onde quer chegar ‑ observou Gyssie, um pouco embaraçada com estas divagações.
‑ A isto: quando atingem uma certa idade, os filhos dos animais afastam‑se para longe dos velhos, para se juntar e perpetuar; da mesma forma, os filhos dos homens, quando o amor se faz sentir, deixam os pais e obedecem ao instinto que os atrai para um outro ser, para uma vida nova. Veja que importância tem o amor dum pai e duma mãe, aos olhos dum rapaz apaixonado!
‑ E então? ‑ perguntou Gyssie sem se perturbar, fazendo‑lhe a breve interrogação que lhe dirigira no começo da conversa.
‑ Então ‑ concluiu de Wriss, estendendo para ela o dedo, como se a designasse pessoalmente à reprovação dum mundo invisível ‑ Então não compreendo como aos vinte anos, a senhora, cuja existência eu ignorava e que também não me conhecia, me venha oferecer a sua afeição e reclamar a minha! Parece‑me ser um pouco tarde!... É natural que aos vinte anos tenha necessidade da ternura dum pai? É normal? É lógico? É realmente admissível que deseje apenas encontrar o meu amor paternal e me queira distinguir com a sua afeição filial?... Ou, antes, não procurará fazer brotar, com vantagem para si, este duplo sentimento?... Por necessidade doentia?... Porque o seu coração é livre e ainda não encontrou aquele por quem cedo me deixaria, se a acolhesse junto de mim como parece desejar?...
Gyssie não respondeu. Estava um pouco perturbada com este raciocínio tão longo e verosímil.
Ante uma lógica tão nova para ela, era‑lhe difícil defender‑se. Os modestos professores de Coatderv, que a tinham instruído, não lhe haviam, naturalmente, falado de Kant, de Schelling ou de Freud, e a metafísica destes últimos era, talvez, demasiadamente abstracta para o seu cérebro de ingénua.
No entanto, de repente, lembrou‑se que Raphael Russin lhe dissera a respeito de seu pai: «De Wriss era um excelente rapaz, mas seguia muito a filosofia alemã. Para ele pouco valor tinha o que a força dos outros homens conseguia...».
Gyssie, evocando esta opinião dum homem que lhe parecera respeitável, olhou para seu pai e examinou‑o com curiosidade. Compreendia subitamente que entre ela e ele havia uma diferença de compreensão difícil de conciliar.
Apesar da sua semelhança física e talvez das suas afinidades, eram absolutamente opostos um ao outro. Estranhos, eram‑no ainda mais devido às suas mentalidades diferentes do que pelas fronteiras dos respectivos países que os tinham visto nascer e crescer.
Todas estas considerações apareciam subitamente a Gyssie como uma fita vertiginosa que estivesse a passar no écran do seu cérebro febril.
‑ Nós estamos ‑ murmurou ela ‑ nos dois pólos opostos duma formação moral que faz do senhor um nórdico positivo e prático e de mim uma latina sonhadora e cheia de imaginação. Nunca nos poderemos compreender, porque as palavras dum revoltam sempre o outro... Pela minha parte, nunca saberei assimilar as suas teorias subjectivas... E o senhor, suponho, não condescenderia nunca em julgar sinceros os meus humildes sentimentos...
Não acrescentou o que pensava havia alguns instantes: que esse pai a quem via pela primeira vez lhe dava a impressão dum doente... não era completamente responsável pelas ideias expostas.
Um excesso de filosofia é como um excesso de morfina, ópio ou tabaco: estraga a pessoa terrivelmente... Na verdade, o antigo esposo de sua mãe era um intoxicado cerebral.
Gyssie olhava‑o pensativa, com uma piedade dolorosa... Também com uma espécie de receio aterrorizado... com aquela impressão que, contra vontade, sentimos diante dum louco...
‑ Não deveria ter vindo ‑ continuou a meia voz ‑ Não tinha realmente necessidade de me conhecer e eu noto agora que me disse a verdade: «o senhor seria demais na minha vida...».
‑ Evidentemente!
‑ A filha do carvoeiro da esquina é, provavelmente, da sua raça e da sua mentalidade, muito mais do que eu, que não falo a sua lingua, apesar de ter os seus olhos claros, os seus cabelos ruivos e a sua figura alta...
Uma grande amargura invadia‑a perante este pai aceitando plàcidamente que a sua filha fosse para ele uma estranha. De que natureza insensível seria feito este ser que, como esses super‑homens teutónicos cujo idealismo abstraía o prazer, se julgava pelo menos um semideus?
Levantou a mão branca de finas articulações e com os dedos alongados, onde parecia revelar‑se uma raça.
Com curiosidade, olhou‑o:
‑ É engraçado ‑ observou com um sorriso melancólico ‑ corre nas nossas veias o mesmo sangue; sou, segundo a expressão clássica, a «carne da sua carne»; ora, a minha mão nunca tocou na sua... os nossos dedos nunca se encontraram... Nunca desejou esse contacto... E eu «também não o desejo!»
‑ Não nos conhecemos, já lhe disse! ‑ interrompeu ele, bruscamente, enquanto uma onda de sangue lhe coloria subitamente o rosto pálido.
‑ E as suas palavras foram convincentes, visto «eu também não desejar» conhecê‑lo... nem amá-lo!
Compreendi que éramos, irrevogàvelmente, dois estranhos...
Parou para respirar. Na realidade, sufocava de angústia perante esta verificação que definia bem o piedoso resultado da entrevista com seu pai.
‑ De hoje para o futuro‑continuou ela, um pouco mordaz ‑ ao pensar em mim, evocará com desprezo os meus sentimentos doentios e anormais... E eu pensarei com indiferença..., na sua filosofia dissolvente!
De Wriss principiou a rir. As últimas reflexões de Gyssie pareceram pô‑lo de bom humor.
‑ É muito engraçada, minha filha! Diz isso num tom que mais parece uma oração fúnebre.
Um relâmpago de desafio obscureceu os grandes olhos de Gyssie.
‑ E talvez o seja! ‑ respondeu Gyssie, com vivacidade ‑ Vinte anos de separação total e de ignorância absoluta não conseguiram enfraquecer em mim a imagem bela sonhada de um pai... Um pai! É quase um criador!... É a raça, a hereditariedade, a tradição, todo o passado!... É também o futuro, a ternura, o refúgio, a dedicação. Um pai! Palavra imensa que se assemelha a Deus!
O seu olhar muito triste envolveu por um instante a linda cabeça do pai, cheia de gravidade, e a sua voz foi menos firme ao continuar:
‑ Construirá para si um altar místico... Uma hora bastou para demolir o ídolo tão maravilhosamente preservado. Do sonho, que se poderia ter transformado em realidade, nada resta... senão um cadáver que afasto com o pé!... Não ria de mim, se ainda olho para os destroços... gravemente... com tristeza... Como se olha para um morto!...
Gyssie fez uma pausa; depois, muito baixinho, terminou:
‑ Como vê, afinal era uma oração fúnebre...
‑ Frases, tudo isso! ‑ respondeu de Wriss, encolhendo os ombros, cheio de cólera ‑ É absolutamente ridículo, Gyssie, tomar as coisas de tal forma ao trágico... Verdade seja, felizmente, que não crê em metade do que acaba de dizer!...
‑ Julga isso?
‑ Evidentemente! Tenho a certeza! A espécie humana recebeu o dom funesto da palavra e embriaga‑se com palavras convencionais, que não correspondem quase nunca à realidade. Deixei‑a contar‑me todas as suas historietas. Teve expressões mordazes e tiradas magnificas que teriam feito a delícia dum teatro popular... Ponhamos as coisas no seu lugar, quer?... Não há cadáver nenhum nesta sala, nem estranhos irrevogàvelmente separados. Há apenas um homem que não deseja ser importunado com manifestações intempestivas de amor filial, e, diante dele, uma rapariga que supôs ir ser recebida como o filho pródigo. Assim transposto o problema para as suas justas proporções, é muito menos trágico e muito mais fácil de resolver.
‑ Se acha que o seu acolhimento explicado desta maneira é mais animador ‑ observou Gyssie, vexada com os sarcasmos do pai.
‑ Porque não me escreveu antes de vir? Se pudesse, antecipadamente, estudar o assunto, talvez a minha recepção fosse melhor...
‑ Não supunha que um pai tivesse necessidade de reflectir, para saber como devia acolher o filho!...
‑ Há surpresas que são desagradáveis... Todos os homens me compreenderão! Desde a sua chegada, ainda não cessei de repetir que não a conheço. Isto é uma verdade!...
‑ Seja! Sou para si uma desconhecida.
‑ Indiscutivelmente! E como a simpatia, ou, mais simplesmente, a confiança, não é uma mercadoria que se compre em qualquer armazém, recebia‑a como teria acolhido qualquer visitante desconhecido e indesejável!
Fez uma pausa; depois, acomodando‑se melhor na cadeira, as mãos estendidas em cima da secretária, como um homem que vai tratar dum negócio, ordenou:
‑ Agora, dê‑me os seus papéis.
A firmeza do tom sobressaltou Gyssie.
‑ Os meus papéis? ‑ disse ela, indecisa ‑ Que papéis?
‑ Aqueles que deve ter. Com certeza que não veio ver‑me sem trazer as provas da sua identidade! Não se vem reclamar um parentesco sem um sinal de reconhecimento. Traz por certo nas suas algibeiras as certidões do seu estado civil.
‑ Tenho algumas na minha mala ‑ confessou Gyssie, dominada por aquele tom autoritário.
‑ Pois bem, mostre‑mas!
Espantada e hesitante, abriu a mala e, dum maço de papéis presos por um elástico, tirou o seu passaporte e a certidão de baptismo.
De Wriss apoderou‑se deles e, rapidamente, examinou‑os.
Como homem de negócios passou sobre os pormenores inúteis, parando apenas nas paragens principais.
O título de nobreza, respeitado pelo estado civil, fê‑lo sorrir.
‑ Ah! Ah! ‑ disse, gracejando ‑ Está legitimada e é princesa. É maravilhoso!... Os meus cumprimentos, minha filha, teve um belo quinhão!
O olhar de Gyssie iluminou‑se com dureza.
‑ Não acho isso muito agradável.
‑ Mas, a mim, diverte‑me! É inesperado e muito engraçado.
‑ Diga antes que é penoso para quem é obrigado a cobrir‑se de ridículo com um título que não lhe pertence.
‑ Os escrúpulos estão fora do jogo! Senão, veja! Usa oficialmente ‑ legalmente, na verdade ‑ um título altissonante que faz de si um ser excepcional, e não está contente?... Ingrata!... Há pessoas que dariam uma fortuna para possuir semelhante certidão de nascimento.
‑ Uma certidão falsa!... Um título usurpado!
‑ De maneira nenhuma! Os seus nomes não devem nada a ninguém, ninguém lhos pode reivindicar ou contestar e o Registo Civil validou‑os! Devia ainda agradecer‑me ter feito de si a criatura privilegiada que é, na nossa época, uma princesa «nascida princesa».
Gyssie não respondeu.
«Uma criatura privilegiada?»‑dissera ele.
Pensou subitamente na sua infância de órfã, na mãe, morta de desgosto e de privações e nas boas almas que a tinham educado.
Uma criatura privilegiada, a neta do juiz Chauzoles? A secretária de Le Fíir? A filha de Gys de Wriss, o pai extraordinário que a natureza lhe dera?
Gyssie suspirou. Até aqui, o seu título legal, se bem que usurpado, não lhe dera quaisquer privilégios.
‑ Sua mãe continua a chamar‑se senhora de Wriss?
Gyssie sobressaltou‑se. O seu pensamento estava tão longe que somente as palavras lhe chegaram aos ouvidos e não notou a voz máscula que fizera a pergunta.
‑ Minha mãe? ‑ disse ela com o coração subitamente oprimido ‑ Minha mãe morreu quando nasci, há vinte anos.
De Wriss não fez um movimento, mas as suas feições pareciam ter‑se fixado num rosto transformado em marfim e dir‑se‑ia que dificilmente engolia a saliva.
‑ Se sua mãe morreu, quem a educou? ‑ perguntou, depois de um longo silêncio.
O tom ficara o mesmo, mas a voz parecia mais lenta... como se repentinamente estivesse muito cansada.
‑ Uma humilde mulher da Bretanha recolheu‑me quando nasci... Uma outra, teve piedade desse pequenino ser sem família e assegurou a minha existência.
Graças à sua dupla generosidade não conheci nem a fome, nem a miséria... Abençoadas sejam!... Até agora nunca me faltou nada.
De Wriss endireitou‑se novamente. Os seus olhos altivos fixavam‑se muito longe... no espaço.
Este homem era manifestamente orgulhoso, e a adversidade ou os golpes da sorte que fazem dobrar os outros não conseguiram fazer‑lhe curvar a cabeça. Pelo contrário, desafiava facilmente o destino. Que a criança nascida do seu amor tivesse tido necessidade dos outros, para viver, não era uma culpa que lhe pudessem imputar; isso não o tornava mais fraco! E, com altivez, olhava o passado, onde a parte do trabalho e da consciência profissional tinham sido a maior.
‑ Não tive culpa da sua infância isolada ‑ desculpou‑se por fim ‑ Já disse que não consegui encontrar traços de Valentine.
‑ Não o acuso ‑ disse Gyssie docemente ‑ Além disso, senti sempre ternura e bem‑estar junto das boas criaturas que me educaram.
‑ Todavia, se não estou em erro, está sem fortuna!
‑ Absolutamente! Mas isso nada significa! Tenho uma profissão...
‑ Qual?
‑ Estenodactilógrafa.
‑ Já trabalhou?
‑ Um mês apenas... Na realidade, a questão de ganhar a minha vida ainda não se me impôs.
‑ Sabendo isso, explico melhor, a mim próprio, esta sua diligência...
Gyssie levantou a cabeça, admirada.
‑ Refere‑se à minha presença, hoje, em sua casa!
‑ Sim!
‑ Porque é rico e eu sou pobre?
‑ Evidentemente.
‑ Pois bem! Engana‑se! A sua fortuna nunca influiu de forma alguma na minha decisão de o vir procurar. É rico, e talvez isso seja lamentável para
mim: um pai pobre ter‑me‑ia acolhido melhor... Vim para obedecer à vontade de minha mãe, muito simplesmente!
‑ Da sua mãe...
‑ Sim. Antes de morrer, ela decidiu: «É necessário que Gyssie encontre seu pai...». Então, procurei‑o, e quando obtive a sua morada, vim visitá‑lo.
‑ Ainda assim, levou bastante tempo!
‑ Há apenas algumas semanas que conheço a sua existência. Até lá, nada sabia acerca de meu pai e ignorava o triste romance da minha pobre mamãzinha. Só quando fiz vinte anos tomei conhecimento de tudo.
‑ Mas, diz que é pobre?... Não tem, em Lião, um avô com uma fortuna razoável?
Ela aquiesceu com a cabeça, dizendo:
‑ O juiz Chauzoles.
‑ Não morreu?
‑ Não, vive ainda.
‑ E nada fez por si?
‑ Ele não tinha obrigação de o substituir ‑ replicou Gyssie secamente, pois tinha horror aos assuntos de dinheiro e o pensamento de poder vir a receber uma ajuda do avô revoltava‑a ‑ Não foi por culpa do juiz Chauzoles que minha mãe o encontrou! Ele nada me devia, a mim! A verdade ‑ continuou mais docemente ‑ é que meu avô não perdoou a minha mãe, a quem nunca mais tornou a ver... Ignorava até aqui a minha existência e eu... nada quero receber dele...
‑ Sim... Evidentemente... Se bem que, apesar de tudo, ele seja seu avô!
De Wriss continuou, escarnecendo:
‑ Que velhote tão engraçado! Todo o mal, na realidade, veio dele. Sem o seu despotismo, eu teria podido casar, verdadeiramente, com a sua mãe! Mas não pretendia Chauzoles governar a vida inteira da filha e obrigá‑la a obedecer a todas as suas vontades?
‑ Porque se interessava pelo seu futuro ‑ observou Gyssie com rispidez, pois lhe parecia doloroso que o causador da sua infelicidade pudesse descarregar as responsabilidades no avô, cujas vontades calcara.
‑ Interessava‑se? Isso é uma maneira de falar! ‑ replicou De Wriss, que, sem o parecer, media todas as palavras pronunciadas por Gyssie ‑ O juiz Chauzoles teria feito melhor, talvez, se se desinteressasse... como eu! ‑ acentuou, olhando ironicamente, de relance, para a visitante ‑ Mas ‑ continuou, retomando o seu ar grave ‑ como pode dizer que vindo procurar‑me hoje, na Holanda, obedeceu às ordens de sua mãe, visto ter morrido há vinte anos?
‑ Deixou para mim uma carta e um caderno onde me explicava a sua vida... o meu nascimento... o seu casamento... alegação... a igreja... e o seu lindo romance de noiva. A minha pobre mãezinha compreendeu que não viveria muito tempo... O desgosto da sua partida minava‑a pouco a pouco... desejou que eu não ignorasse absolutamente nada do que lhe dizia respeito: «Para a minha filha quando fizer vinte anos», escreveu...
‑ E escreveu que me viesse procurar?
‑ Sim... Que o procurasse e ficasse consigo. Ela queria que me educasse... triste presente me fazia... e a si também... dum pai como o senhor e duma filha como eu!... Mas não sabia... Nunca soube que o senhor não era quem dizia... Por isso, tinha confiança... Nunca duvidou de si.
Com um certo requinte, Gyssie insistia nestes pormenores. Via de Wriss um pouco pálido e muito grave. Tinha a consciência de lhe estar fazendo mal, apesar da sua aparente insensibilidade e talvez, mesmo, por sua causa.
Teria ele adivinhado o jogo cruel que fazia a visitante? É provável, porque a interrompeu asperamente:
‑ Termine, pois, com esses pormenores mórbidos e volte aos factos: sua mãe contou‑lhe tudo quanto lhe dizia respeito, disse?
‑ Sim, na narrativa da sua vida.
‑ Essa narrativa é longa?
‑ Um caderno de cerca de cinquenta folhas.
‑ E esse caderno? Tem‑no aí?
‑ Não...
‑ Não o trouxe consigo?
Gyssie calou‑se; não tinha o hábito de mentir. Além disso, aquele pai de voz autoritária intimidava‑a.
‑ Não pensei ‑ balbuciou, hesitante ‑ Se eu soubesse... Supus que não lhe interessasse...
De Wriss compreendera a hesitação.
‑ Vamos! Trouxe‑o. É o argumento mais forte que possui contra mim.
Instintivamente, as mãos de Gyssie crisparam‑se na mala.
‑ Minha mãe não o conhecia verdadeiramente... Eu mesma ignorava... As ingénuas páginas de amor em que ela entrega a sua alma de vinte anos, não têm, provavelmente, qualquer sentido para si.
‑ Porquê?
‑ Porque... na verdade!... Na natureza... os animais não escrevem...
Levantou‑se repentinamente, apertando contra o peito a mala que continha o precioso legado de Valentine.
Pelo olhar agudo de seu pai, fixado sobre as suas mãos crispadas, compreendera que de Wriss adivinhou que o caderno da mãe estava ali e ia apoderar‑se dele, ou exigir que lho entregasse.
‑ Não! não! ‑ dizia Gyssie, defendendo‑se, instintivamente‑ Não mo peça... Seria um sacrilégio entregar este testemunho de fé às suas incredulidades ou aos seus sarcasmos... Minha mãe escreveu para uma rapariga como ela... Para mim, que a podia compreender, mas, não... não para um homem!... Não para si!
Estavam agora ambos face a face.
Se de Wriss tivesse, realmente, querido conhecer o que continha o caderno de Valentine, não precisava mais do que apertar um pouco os frágeis punhos que se ofereciam aos seus dedos musculosos.
Mas não o fez.
O seu desdém pela força brutal ou as suas teorias acerca da liberdade individual não lhe permitiam semelhante gesto.
Olhou para Gyssie, depois para a mala, em seguida para as lindas mãos compridas, finamente atravessadas pelas veias azuis... e o seu olhar claro, que não deixava transparecer nenhum sentimento sob o aço das suas pupilas, foi pousar novamente nos grandes olhos verdes, tão parecidos com os seus.
‑ É tola, Gyssie, por me recusar a leitura desse caderno ‑ observou com uma voz menos clara ‑ Era, seguramente, o seu melhor trunfo.
Apesar do tom insinuante da voz, Gyssie levantou a cabeça; nada mais esperava daquele pai, que a desiludira.
‑ Não tenho necessidade de trunfos... Jogámos a partida e nem um nem outro pretendemos continuá‑la...
Gyssie desejaria antes servir‑se doutros argumentos... Tinha a alma cheia deles, amargos e dolorosos! Mas, instintivamente, o respeito obrigava‑a a calar‑se perante este homem, que, apesar de tudo, era seu pai.
E esta reserva que a si própria impôs, custou‑lhe muito naquele momento.
Olhou em volta com o desejo de estar longe daquele escritório sumptuoso. Subitamente, sentia‑se muito cansada e tinha a impressão de que apenas os nervos a sustinham, correcta e calma, diante deste homem, tão calmo e tão frio.
‑ Agora, vou‑me embora... Não quero incomodá‑lo mais...
Mas ele interrompeu‑a de novo, bruscamente:
‑ Está nalgum hotel?
‑ Sim... no «Maas'Hotel».
‑ Por muito tempo?
Gyssie supôs que ele se inquietava com a sua presença tão perto de si e, com amargura, sossegou‑o:
‑Oh! apenas por algumas horas! Torno a partir esta tarde... Esteja sossegado, não me tornará a ver... Nunca mais o importunarei... Nem com a minha ternura, nem com a minha presença!
Ele não respondeu; olhou‑a gravemente, quase com dureza.
E Gyssie voltou‑lhe as costas, incomodada com aquele olhar demasiadamente cheio de pensamentos que ela não conseguia penetrar.
Hesitou no gesto que devia fazer... Depois, perturbada, perdendo um pouco a cabeça no momento em que ia abandonar o pai que não tornaria a ver, dirigiu‑se para a porta com um simples e tímido cumprimento, sempre com as mãos cruzadas sobre a mala, que levava apertada junto de si, como um tesouro.
Ia deixar a sala.
De Wriss deteve‑a com um gesto:
‑ Um segundo, se faz favor... Esquece‑se do passaporte, que lhe é indispensável.
‑ Oh! é verdade!
Pausadamente, ele dobrou‑o e estendeu‑lho.
Gyssie pegou‑lhe com as pontas dos dedos. Dir‑se‑ia que procurava a maneira da sua mão tremente não roçar sequer a do pai, neste derradeiro minuto.
Não iam eles ficar para sempre estranhos?
‑ Esquecia‑me também da minha certidão de nascimento ‑ disse ela com uma voz que a comoção tornava afónica.
‑ Não, essa guardo‑a. Facilmente arranjará outra.
E guardou‑a no fundo da gaveta, fechando‑a imediatamente à chave.
Como Gyssie seguisse os seus gestos, um pouco admirada, de Wrisse explicou:
‑ Por certo admite que este documento me diga tanto respeito a mim como a si própria! O meu nome está lá todo inteiro...
Com que superioridade formidável de tom e de gestos ele conseguia falar e proceder!
‑ Agora, antes de partir, faz‑me o favor, dá‑me a sua morada.
‑ Oh!... Para quê, visto que...
‑ Sabe a minha!... Desejo, além disso, terá possibilidade de a encontrar... Quanto mais não seja para saber donde partem os golpes que ainda me possa vir a vibrar...
Como que horrorizada, Gyssie protestou com um gesto da sua mão, mas ele encolheu os ombros.
‑ Pode saber‑se?... Nós dizíamos então: mora em...?
Como um autómato, cansada ao ponto de não poder reflectir, deu maquinalmente a morada de Maryvonne, o nome da aldeia e o departamento.
Estava transtornada... Quase hipnotizada pelo que se passava em si... e entre eles... neste minuto final duma separação definitiva.
Seria a certeza de nunca mais tornar a ver este pai com quem sonhara tanto tempo... do qual a sua imaginação filial fizera um herói magnífico, ou a inexprimível saudade de tudo quanto poderia ser, se ele o quisesse, ou ainda a inutilidade desses vinte anos de esperança e de espectativa?
Gyssie não compreendia a sua perturbação e o pensamento vacilava.
Talvez, no final de contas, a comoção fosse motivada por uma dupla vista imponderável... Verdadeira telepatia com ligações secretas... como se, sob a atitude insensível de Gys de Wriss e sem ele saber, um sem fios misterioso, nascido duma afinidade impalpável, lhe revelasse nesse instante uma emoção igual à sua.
Inconsciente, ela continuava de pé, oprimida, hesitante... esperando não sabia o quê.
E de Wriss, ele próprio, sob a sua atitude indolente, feita de mutismo e insensibilidade, não procuraria também retardar o limite extremo da sua partida?
Quem o poderia dizer?
Parecia subitamente abatido por uma influência que a sua natureza nórdica não lhe permitia exteriorizar.
‑ Uma última formalidade ‑ disse, com uma voz menos segura ‑ Ainda não me disse a quantia que lhe é necessária.
‑ Necessária! ‑ repetiu ela como num sonho, sem que as palavras tivessem perturbado o seu doloroso êxtase.
‑ Sim; a importância da compensação que deseja.
‑ Compensação...
Era isso o que esperava... que continuava a esperar? Qualquer coisa desconhecida... que desejava e temia ao mesmo tempo... que devia dar‑se... antes da porta se fechar definitivamente, depois dela passar...
‑ Evidentemente! Admito ter deveres a cumprir para consigo... Não os nego! Um homem que força uma criatura a viver é um miserável, se não se desobrigar perante ela. Devo‑lhe, consequentemente, uma indemnização.
‑ Uma indemnização!
Acabara por ouvir a voz grave, de modulações roucas e esforçava‑se por compreender.
‑ A vida não é um lindo presente! Longe disso! E visto que todo o indivíduo que causa um prejuízo a outro lhe deve uma reparação...
‑ Quer reparar esse mal?... O mal de me ter feito vir ao mundo?
‑ É o meu dever restrito... Não é dessa opinião?
Gyssie sentia uma onda dentro do peito...
Um peso que a oprimia... Uma bola a subir... a subir sempre... aumentando... e que ia estalar.
O amor filial, feito de sonhos fabulosos e de ilusões sublimes, que ela cultivara dentro de si durante longos anos, equivalia terrivelmente, levado a este ponto de adoração, muito simplesmente ao amor; e a criança frágil, perante a derrocada de todas as suas esperanças de ternura, não era mais do que uma pequenina coisa, sem resistência, pronta a todos os desesperos.
‑ Diga‑me uma importância, Gyssie ‑ continuou a mesma voz cansada ‑ Sou rico e posso satisfazê‑la... Pelo menos, a este respeito! Pudesse esta compensação pagar a minha dívida...
‑ Dinheiro...
Compreendera‑lhe, finalmente, o pensamento!
‑ Ah! Ah! Ah!
Foi como que um prolongado uivo de fera na agonia.
Duma só vez, o seu desgosto estalava violento e impetuoso.
Era talvez esta libertadora distensão nervosa que todo o seu ser sentia aproximar havia alguns minutos.
‑ Dinheiro!‑gritou ela, enlouquecida ‑ O meu pai oferece‑me dinheiro como compensação do meu nascimento indesejável!
Sob um verdadeiro rio de lágrimas irrefreáveis, soluçava, toda congestionada.
‑ Dinheiro ‑ repetia entre soluços ‑ Mas então não compreendeu?... Não compreende nada! E era de mim que pensava «num estado doentio»!... Dinheiro! Foi tudo quanto encontrou?...
Fora de si, agora, não medindo os actos nem as palavras e sem ver os gestos de negação de seu pai, abriu a mala e pegando no caderno da mãe, lançou‑o para diante desse homem, imóvel, assombrado com esta explosão.
‑ Ah! aí o tem! Leia‑o e talvez compreenda! Compreenderá tudo... «Se puder compreender!»
E, desvairada, com o rosto cheio de lágrimas, fugiu, com a cabeça perdida, não querendo que ele gozasse, por mais tempo, o espectáculo das suas lágrimas e do seu desespero.
Na noite escura o comboio rolava sobre os carris, passando estações e fronteiras.
Encolhida num canto do compartimento de primeira classe onde tomara lugar com Alex, Gyssie, olhando vagamente pelos vidros escuros, estava silenciosa.
Aborrecido com o aspecto sombrio da sua companheira, Le Gurum entregava‑se a todas as suposições, porque ela nada lhe contara do que fora a sua entrevista com de Wriss.
Quando Gyssie se encontrou com ele, no café onde a esperava, levava ainda traços de lágrimas mal secas e, pelo tremor das suas mãos, pela perturbação dos seus grandes olhos angustiados, pelo seu aspecto desiludido, compreendera que Gyssie acabava novamente de receber uma amarga decepção. No entanto, nada mais lhe dissera do que esta súplica trágica:
‑ Partamos!... Partamos imediatamente... Tenho horror a este país!
Era o exagero natural, humano, a amplificar as causas de um desgosto até ao ambiente daquele a quem o devemos.
E Le Gurum, como irmão mais velho, atento e misericordioso, não tinha mais do que obedecer a esse grito de desespero, de tal forma a pobre Gyssie parecia incapaz, na sua grande necessidade de fugir, de lhe comunicar os acontecimentos e as coisas.
No restaurante onde a conduzira enquanto faziam horas para o comboio, Gyssie não comera. Ficara imóvel, defronte do prato cheio, muito longe, em pensamento, da sala elegante com as luzes veladas por sedas multicolores.
Agora, ali estava, acabrunhada, no seu cantinho, com o rosto inflexível sob reminiscências secretas e dolorosas... não respondendo a nenhuma pergunta... O oficial ficara reduzido a fazer suposições.
Como teria de Wriss recebido a filha? Este pai desconhecido seria o homem correcto que a sua si tuação de fortuna fazia esperar? Ou não passava,!! na realidade, de um aventureiro vulgar e sem escrúpulos, como se podia depreender do seu romanesco casamento com Valentine Chauzoles?
Para que Gyssie ficasse de tal maneira desesperada, era preciso ter sido terrivelmente desiludida... Talvez injuriada ou expulsa! Em qualquer dos casos, não estava como uma filha feliz por ter encontrado o pai adorado, a quem acabava de visitar.
Teria este constituído uma nova família, a quem a sua presença pudesse incomodar? Receava uma chantagem? Uma vingança?... Teria ameaçado?... Teria falado em mandar prender a visitante?... Todas as suposições eram permitidas. Sabe‑se, por acaso, como um homem acolhe a visita inesperada de uma filha abandonada, de quem nunca esperaria, depois de vinte anos, tornar a ouvir falar?
Há pessoas timoratas, hipócritas e cobardes, que nunca recuariam diante fosse do que fosse para esconder uma ligação da mocidade.
Alex não conhecia suficientemente a mentalidade holandesa para compreender, por si mesmo, do que é capaz de pensar um homem daquele país, em semelhante situação, ou, pelo menos, o que os costumes locais poderiam obrigá‑lo a fazer, mesmo contra vontade.
Além disso, a mentalidade de um povo não define a de um indivíduo: já é bastante ela dar‑lhe certos aspectos que parecem copiados de um modelo particular da raça. Assim, em geral, o inglês é magro e fleumático; o alemão, mais forte e sombrio; o francês, vivo e ligeiro, o holandês, mais calmo e mais frio; mas isto é uma aparência que nada influi, na verdade, no carácter particular de cada um.
E era este o grande ponto de interrogação onde ia chocar Le Gurum, ante o regresso enigmático de Gyssie, toda chorosa.
Que poderia esse de Wriss ter‑lhe dito para ela continuar tanto tempo num silêncio penoso e com o rosto tão trágico, depois desta entrevista, que, normalmente, deveria ter sido, pelo menos, correcta? Sendo Gyssie encantadora, bem educada, bonita e elegante, não poderia, na realidade, deixar de lisonjear o orgulho de um pai!
Não resistindo por mais tempo à necessidade de a reconfortar, custasse o que custasse, curvou‑se para ela e mais uma vez a interrogou:
‑ Minha querida Gyssie, não fique assim silenciosa, encerrada nesse círculo de ideias deprimentes... Desabafe um poucochinho, peço‑lhe... Não sou já o amigo e confidente com quem pode sempre contar? Pronto, diga‑me um bocadinho mal dos homens! Há muito tempo que os não ataca!... Já não são eles uns monstros e uns seres desnaturados?
Ela teve, contra vontade, um pálido sorriso, ao ouvir evocar os seus rancores passados. Depois, abanou a cabeça, pensativa:
‑ Não, Alex, não ataco os homens. Não são tão maus como eu dizia!
‑ Realmente! ‑ disse, embaraçado, porque não esperava semelhante resposta depois da decepção que ela parecia ter sofrido na sua entrevista com Gys de Wriss ‑ É possível, querida Gyssie, que esteja reconciliada com o meu sexo?
‑ É quase isso ‑ disse com tristeza ‑ Reflecti e... compreendo melhor os seus semelhantes.
‑ A sua conversão parece um milagre! ‑ observou Alex, para prolongar o assunto e desviá‑la de pensamentos demasiadamente sombrios.
‑ Não, não é milagre... É apenas um pouco de indulgência.
Depois, após um silêncio, explicou, animando‑se a pouco e pouco:
‑ Os homens são, como as mulheres, pobres seres sacudidos pela vida, quer dizer, tocados alternadamente pelas alegrias e pelas tristezas. Têm, por vezes, desejos insaciáveis, aspirações que não podem conseguir, desilusões que não sabem impedir, instintos que não podem satisfazer e, além disso, uma grande propensão para querer, apesar de tudo, conhecer a felicidade. Então, por todos os meios, procuram obtê‑la... E, muitas vezes, por pequenos meios: a mentira, a traição, a ingratidão, etc... Mas, assim tal qual, são parecidos e humanos! Quer dizer, têm um coração que palpita, uma alma que se revolta...
Calou‑se, franzindo as finas sobrancelhas ante uma reflexão difícil de profundar. Depois, num tom meigo e longínquo, ao mesmo tempo, continuou:
‑ Os homens vivem! disse eu... Quer dizer que são susceptíveis de admitir, nos outros, as mesmas fraquezas e as mesmas perturbações... Podem odiar, se sabem amar! Têm o direito de ser severos, se conhecem o amor nas suas mais pequenas manifestações e levam a dedicação até ao sacrifício...!
‑ Mas isso, minha querida Gyssie, é a grande filosofia... Como conseguiu tornar‑se tão indulgente, assim de súbito?
‑ Por ter compreendido que é assim a vida! Ah! Alex! O que seria espantoso era os homens cessarem de amar e de acreditar no amor, na ternura e na dedicação!... Nunca se lembrarem de que têm um coração!... Imagine o que seria o género humano se o sentimento não existisse e se os indivíduos não obedecessem senão ao seu instinto natural!...
‑ Se fosse possível semelhante aberração, minha boa amiga, tornar‑nos‑íamos, muito simplesmente, em animais...
‑ Oh! Cale‑se, Alex, pois com o cérebro e com o dom da palavra que nos deram, não seríamos sequer dignos de ser animais, seríamos, exactamente, monstros!
Calara‑se, e Le Gurum, com a testa marcada por um vinco de preocupação, procurava adivinhar qual o sentido que estas palavras encerravam e o que Gyssie lhe ocultava.
Não eram estranhos os pensamentos que ela exprimia algumas horas depois da sua entrevista com Gys de Wriss? Seria possível ter sido ele quem lhos fizesse nascer? Nesse caso, que estranha aberração do sentimento paternal!
Le Gurum recordava a opinião dada por Raphael Russin acerca do seu antigo condiscípulo... À adorável ternura filial que tão ingénua e sinceramente lhe ofereciam, teria ele, o pai, oposto uma abstracta filosofia pessimista e dissolvente?
Esta suposição pareceu‑lhe de tal forma dolorosa e tão pouco vulgar, dentro dos deveres dum pai, que a repeliu como se fosse um sacrilégio.
Porém, este receio inquietava‑o de tal forma que se atreveu a perguntar:
‑ Seu pai correspondeu à imagem que no seu pensamento traçara a respeito dele, Gyssie?
Ela hesitou, mas depois, lentamente, disse:
‑ Fisicamente, sim. Tive a impressão de o reconhecer.
‑ E... moralmente?
‑ Muito frio, muito reservado... Um homem do Norte, compreende?
‑ Absolutamente! Nesse país diabólico não sabem exteriorizar os sentimentos, e quando, por infelicidade, se alimentaram desde a infância com literatura estéril, chega‑se a esta situação: sentir‑se ao mesmo tempo muito comovido e incapaz de exprimir a comoção... Realmente, ele recebeu‑a mal?
‑ De forma nenhuma!... A sua correcção foi infinda... Creio mesmo que fui a mais agressiva.
Tinha a alma cheia de rancor com a ideia de ele ter enganado minha pobre mãezinha e disse‑lhe algumas verdades amargas... Talvez desastradamente, irreverentemente...
‑ Terá seu pai, ao menos, compreendido a ideia máxima que a obrigava a falar? Procurou desculpar‑se do seu procedimento?
‑ Hum!... Não me parece... Pelo contrário, julgou que eu exagerava!
Esta expressão incerta pareceu resumir a sua entrevista com Gys de Wriss, e teve, contra vontade, um pálido sorriso.
‑ Quero dizer ‑ continuou ‑ meu pai pensou que eu me comprazia em ter uma atitude trágica... Creio que lá no fundo não sente remorsos nenhuns por ter representado, outrora, semelhante comédia perante aquela a quem amava... Começo a compreender... um homem tem muitos direitos sobre a mulher que corresponde ao seu amor... Mesmo quando ela lhe não concede favor algum.
‑ É possível, com efeito, que o facto de ser amado dê privilégios excepcionais ‑ reconheceu Le Gurum, que muito desejava possuir alguns sobre Gyssie ‑ Mas daí a representar a comédia dum casamento num consulado, vai uma grande distância...
‑ É a minha opinião.
- E para consigo, Gyssie, seu pai...
- Menos mal!... Para comigo Menos mal!... Far‑me‑á rica.
- É assim mesmo"...
- Ah! Foi perfeito!., se eu quiser. Sim... Tem muito dinheiro... Cobrir‑me‑á de ouro, de peles, de jóias... Basta eu exprimir um desejo.
Alex, desta vez, ficou embaraçado.
‑ Mas então, Gyssie, seu pai recebeu‑a bem?
‑ Já lhe disse que foi absolutamente correcto. Alex não o reconhece, perante as suas ofertas mirabolantes?
Um pouco de nervosismo tornara‑lhe a voz ligeiramente brusca. O oficial compreendeu esta alteração, apenas perceptível.
Não insistiu, portanto, sobre o assunto, que parecia muito doloroso.
‑ Não devemos pedir às pessoas aquilo que não nos podem dar ‑ disse, conciliador ‑ Não é verdade que cada um de nós oferece o que tem de melhor quando deseja proporcionar satisfação a alguém? Seu pai é um homem de negócios. Por certo pensou, imediatamente, que, se o dinheiro não dá felicidade, pelo menos pode contribuir para ela largamente. A sua oferta prova que procurou para si o que de melhor lhe podia dar...
‑ Provavelmente! ‑ aprovou Gyssie. Mas a chama aguda que subitamente lhe ensombrou os olhos claros desmentia a sua aprovação.
Na carruagem, frouxamente iluminada, de novo se fizera silêncio, esforçando‑se cada um por pedir ao sono reparador o descanso das inquietações do dia.
Gyssie, no entanto, não dormia e, diante dela, sob a aba do chapéu puxada para baixo, os olhos de Le Gurum esforçavam‑se por sondar o rosto pálido, que uma ruga de tristeza nos lábios tornava por vezes trágico.
Gyssie devia sentir sobre si esta observação vigilante, porque, de repente, curvou‑se para o oficial, sem temer perturbar‑lhe o repouso. E, como se ele devesse adivinhar os pensamentos que a assaltavam, observou‑lhe a meia voz:
‑ No fim de contas, Alex, nunca ninguém devia ir a um país estranho sem ter estudado o carácter e a mentalidade das pessoas que vai visitar.
‑ Evidentemente, seria mais prudente. Por felicidade, a Holanda está bem perto. Goza também como nós do código de Napoleão e as diferenças de costumes e hábitos não são de tal forma exagerados...
‑ Podem sê‑lo mais do que parece!... Seja como for, tenho a impressão, embora tardia, de ter sido demasiadamente rigorista... Os meus ressentimentos, justificáveis em França, não o são na Holanda. E, sem o saber, devo ter sido injusta e ridícula.
‑ A que propósito faz essa marcha‑atrás, minha amiguinha?
‑ A propósito da frieza de meu pai... Disse‑lhe que me enganei... Sonhara com um pai afectuoso e acolhedor!... Mas sei eu, por acaso, o que é o meu sonho?
‑ Provavelmente, com um pai segundo o nosso ponto de vista, dos franceses!
‑ Sim, foi isso... Um pai com a nossa mentalidade e os nossos sentimentos...
‑ E Gys de Wriss é, pelo contrário... uma pessoa calma!
‑ Não se pode, talvez, querer‑lhe mal por isso... ‑ expôs ela, timidamente ‑ Se no seu país... não se sabe... Não é verdade?
Alex le Gurum olhou com doçura a sua juvenil companheira. Nos grandes olhos claros, levantados para ele, lia‑se uma tristeza filial que ele não quis enganar. Aquela criança encantadora ligava a sua alma a um fio e preferia pensar que fora desastrada para com aquele pai enigmático a atribuir‑lhe todas as culpas. Para lhe mitigar o sofrimento, tinha que, generosamente, mostrar‑lhe a mesma opinião e disse:
‑ Escute, minha amiguinha, vou contar‑lhe uma conversa que ouvi há pouco, entre três rapazes, no café onde a esperei. Esses senhores, segundo compreendi, eram de Roterdão, e tinham ido ver, ao cinema, uma fita que nós vimos juntos, a Gyssie e eu, em Paris... Recorda‑se?...
Como ela hesitasse, Le Gurum explicou:
‑ Tratava‑se duma rapariga que deixa a casa
paterna para seguir o seu apaixonado... Um ano depois, a nossa heroína volta ao lar paterno, de cabeça baixa, com um filho nos braços... Não casara, o homem abandonara‑a...
‑ Ah! sim! Já sei.
‑ Bom! Não esqueceu, por certo, a revolta do velho pai e a sua cólera contra aquela que desonrara os seus cabelos brancos... Em poucas palavras: quando um rapaz, mais tarde, foi pedir‑lhe a mão da filha, o pai respondeu que ela não era digna de entrar numa família honesta...
‑ Era muito bonito ‑ interrompeu Gyssie ‑ mas talvez um pouco austero...
‑ Sim, um pouco severo...
‑ Mas bastante justo...
‑ Enfim, é a maneira de ver dos Latinos!... Não devia ser a dos três rapazes do café, porque comentaram esta fita em termos muito vivos. Conheço suficientemente o flamengo para ter podido seguir‑lhes a conversa, e asseguro‑lhe que fizeram reflexões muito singulares, acerca da nossa mentalidade.
Gyssie, contra vontade, franziu as sobrancelhas. O seu ingénuo e exaltado patriotismo não podia aceitar qualquer crítica dirigida contra a França ou contra os seus costumes.
‑ E que nos censuravam eles, ao certo, esses cavalheiros? ‑ perguntou sem doçura.
‑ Que estávamos atrasados... dois séculos, pelo menos, em relação aos outros povos! As nossas famílias tinham o espírito fraco... hipócritas ou demasiadamente pudicas!... Não sabíamos fazer justiça... O sentido das verdadeiras responsabilidades, entre nós, ainda estava atrofiado...
‑ Que queriam eles então?
‑ Que o pai considerasse a filha como uma vítima... o homem que a fizera mãe, sem a desposar, era o único culpado.
‑ Mas a rapariga também tinha culpas! ‑ insistiu Gyssie, a quem este assunto apaixonava porque o seu espírito inquieto voltava‑se sempre para a aventura passada com sua mãe.
‑ Ah! a rapariga? ‑ repetiu Alex, um pouco perplexo ‑ Pois bem, eles julgam‑na diferentemente de nós... um pouco como nós julgamos os nossos filhos, quando estes são demasiadamente fracos... com uma severidade mista de indulgência... ou compreensão!
‑ O que diz?... Não percebo bem como, neste assunto, seja permitida a indulgência!
‑ Que é um pouco difícil definir o pensamento dos três rapazes de há bocado! Pareciam, ao mesmo tempo, muito puritanos e de ideias avançadas... Assim, um deles perguntou muito sério se os pais franceses se preocupam também com os pormenores íntimos... respeitantes às filhas... Percebe? Um pai que se respeita deve evitar certas repreensões... escabrosas...
‑ Porque os pais de lá são mais indulgentes do que os nossos.
‑ Hum! ‑ contentou‑se a fazer Alex, que neste ponto estava menos convencido do que Gyssie.
‑ E pôde estar a ouvir esses três homens sem se meter no assunto? Não protestou? Era preciso dizer‑lhes qualquer coisa, bem vê!
Alex olhou sorrindo a sua companheira, cujas faces se coloriam de vermelho, devido à indignação.
Tinha os olhos tão claros, tão ingénuos, que o oficial, para lhe dar prazer, teria rachado ao meio todos os habitantes dos Países‑Baixos!
‑ Pouco faltou para os fazer entrar na ordem! ‑ disse ele, o mais seriamente que pôde.
‑ Mas não o fez! ‑ protestou ela, com pena.
‑ Não ‑ replicou, sorrindo ‑ Eu não era mais do que um hóspede de passagem... Além disso, falavam duma obra de cinema e eu não podia deitar‑lhes as mãos ao pescoço só porque criticavam o argumento... A crítica também é livre entre nós!... Tanto mais que eu partilhava um pouco das ideias deles...
‑ Oh! pois quê!
‑ Sim, parece‑me que, até entre nós, no mesmo caso, um pai se sentiria feliz por encontrar um marido que casasse com a filha comprometida.
Gyssie, por um instante, ficou pensativa.
‑ Tem razão ‑ concordou ‑ O papel dum pai é o de procurar o melhor futuro possível para a sua filha.
Como ela se tornasse subitamente calma, debaixo da ideia fixa que a sua reflexão fazia renascer, Alex apressou‑se a continuar a conversa:
‑ Ainda não acabei a história dos três cavalheiros do café...
‑ Meu Deus, que disseram eles ainda mais?
‑ Coisas muito engraçadas, a propósito duma outra fita que fazia parte do mesmo espectáculo.
‑ Uma fita francesa?
‑ Sim, como a primeira. Mas desta vez tratava‑se duma história de amor...
‑ Sempre era mais alegre!
‑ Justamente! Ora, parece que o nosso herói‑ um artista muito querido dos parisienses ‑ tinha um papel em que se devia mostrar muito solícito junto daquela que amava... Ia esperá‑la à porta do atelier, acompanhava‑a por toda a parte, oferecia‑lhe flores, guloseimas...
‑ Era absolutamente natural!
‑ Numa palavra, cercava‑a de mil carinhos... beijava‑lhe as mãos, os cabelos, etc.!
‑ E então? ‑ perguntou Gyssie, que bebia as palavras de Alex.
‑ Então, os três cavalheiros de Roterdão acharam isto ridículo!... Riram, minha amiguinha!... E afirmo‑lhe que riam com todo o gosto! A ideia de que um homem pudesse beijar a mão duma mulher e pôr‑se de joelhos diante dela para lhe dizer quanto a adorava, dava‑lhes uma grande vontade de rir... Esta atitude parecia‑lhes das mais ridículas... Faziam da cena mil imagens cómicas... Gostaria, Gyssie, que pudesse ouvir os seus comentários...
Eram tais que eu não pude deixar de rir.
‑ O quê ‑ protestou Gyssie, indignada ‑ também achou o assunto cómico?
‑ Somente as suas observações e os seus pontos de vista, minha amiguinha!
‑ E, naturalmente, nunca dará a uma noiva provas visíveis da sua paixão.
‑ Oh! isso é outra coisa! No entanto, parece‑me que nunca conseguirei pôr‑me de joelhos diante duma mulher, sem evocar as reflexões burlescas dos três holandeses de há pouco.
‑ O que significa saber agora, menos do que nunca, convencer uma rapariga do seu amor.
‑ Terei outros argumentos.
‑ Que não terão o mesmo valor.
‑ Mas, sim!... Encontrarei outros mais fortes!
‑ Isso são palavras apenas!
‑ Que se provam!
‑ Como?
‑ Como? ‑ repetiu Le Gurum, um pouco confuso ‑, Ah! Aqui está ‑ continuou ele logo em seguida, com segurança ‑ É muito simples! Se promete recompensar‑me com um beijo... com um beijo verdadeiro, sem reticências, asseguro‑lhe, Gyssie, que farei seja que palhaçada for, diante de si, no cais da gare do Norte.
‑ Oh! ‑ protestou Gyssie, que se tornara carmesim ‑ não quer, antes, que o abraçasse... assim... sem razão alguma... diante de toda a gente!
‑ Pelo contrário, não desejo outra coisa. Depois disso ficaríamos noivos... É este o meu pensamento mais querido, concorda?
‑ Oh ‑ repetiu ela, voltando, toda confusa, para o seu canto ‑ Diz coisas abomináveis, Alex!
‑ Confessa que não recuo ante coisa alguma para ganhar o seu amor, minha amiguinha?
‑ Está sempre pronto a tornar ambos ridículos! Não há dúvidas! Felizmente, eis Paris, e já
não terá tempo para imaginar as mais horrorosas propostas. Estamos na gare.
Alguns minutos depois um táxi levava‑os aos seus respectivos domicílios.
‑ A Gyssie vai fazer o possível por dormir ‑ recomendou o oficial à sua companheira, quando esta se despediu dele para se dirigir ao seu quarto ‑ As noites, em caminho de ferro, são muito fatigantes para quem não está habituado.
‑ Isso é verdade! ‑ confirmou Gyssie ‑ O sono far‑me‑á bem, dói‑me um pouco a cabeça...
Os seus olhos brilhantes fitavam o companheiro.
‑ Agradeço‑lhe ter‑me acompanhado, Alex. Não consegui obter tudo quanto esperava desta viagem, mas o Alex fez todo o possível para ma tornar confortável... e menos enganadora! Agora tudo acabou; a minha missão está cumprida...
‑ Pode, nesse caso, pensar um poucochinho em si, minha amiguinha.
‑ Sim... Mais tarde!..., É preciso que eu esteja forte... e esqueça!
‑ Ajudá‑la‑ei a não se lembrar...
‑ Com o tempo, talvez...
Ela fez pausa, o seu pensamento distante percorria o ciclo das horas passadas.
‑ Reflecti, Alex... Depois de tudo bem examinado, vejo que procedi mal para com meu pai. Não o soube compreender! Foi muito amável... muito correcto! Infelizmente, eu, fui intolerável... tal qual como o pai da sua história!... Um pouco de paciência, de conciliação, e nada estaria perdido!... Enfim, não falemos mais nisso; o que está feito, feito está, e não há necessidade de voltar ao caso...
‑ Entre nós, na Bretanha, diz‑se que a sorte de cada um está escrita no grande livro do Destino e não podemos impedir que os acontecimentos se produzam... Portanto, Gyssie, aceite as coisas tais como se apresentam e não se acuse... Estava escrito que, fizesse o que fizesse, seu pai a receberia friamente.
Gyssie suspirou.
‑ Sim. Foi Deus que quis as coisas assim... talvez para meu bem!... No entanto, insisto, a culpa foi minha... Afirmo‑lhe, Alex, que foi minha!... Por isso... apesar de tudo... tenho muita pena.
Procurou sorrir, mas, como encontrasse o olhar grave e inquieto de Le Gurum, voltou a cabeça para ele não ver as lágrimas que, subitamente, inundavam os seus olhos claros.
‑ Até logo, meu amigo, jantaremos juntos!
E, num salto, deixou‑o, desaparecendo no corredor sombrio da casa, onde ia, enfim, poder deixar correr, livremente, as lágrimas acumuladas havia tantas horas.
Pela estrada bretã, com as suas colinas íngremes e baixas, que vai a direito, ora escalando, ora descendo declives, sem procurar atalhos, corria um automóvel, com os seus niquelados novos a brilhar debaixo dum sol primaveril.
Era um automóvel de desporto, elegante e veloz, o modelo mais recente do último Salão de Automóveis. O seu proprietário não ousava dar‑lhe o máximo de velocidade, porque a rodagem do motor terminara há pouco.
Era também preciso poupar as emoções e os nervos da passageira, que se encolhia silenciosamente ao lado do rapaz, de aspecto enérgico, que ia ao volante.
Ambos se conservavam calados; o condutor atento à estrada e a companheira perdida nos seus pensamentos...
Nos seus pensamentos?
Poder-se‑ia chamar assim ao sonho bastante vago, onde tudo acabava por se confundir numa recordação: as comoções tão fortes, tão penosas dos últimos tempos, e a distensão nervosa, o desespero que se tinham seguido à última prova?
De todo o seu sofrimento, Gyssie ‑ porque era ela ‑ não tinha, felizmente, conservado senão uma imensa, mas confusa ferida moral. O que ela via mais nitidamente, no presente, a que se agarrava na sua angústia, era a intervenção de Alex, deste admirável amigo, deste irmão indulgente e sincero, que, em todas as circunstâncias, sempre mostrara para com ela uma tão afectuosa e desinteressada dedicação.
Gyssie tornara‑se uma criaturinha frágil, quebrada pelas comoções e muito cansada, muito desgostosa da vida, depois da entrevista com o pai. A Alex, consternado, confessara: ‑ Tudo me falta... Não tenho família e não tenho esperança em coisa alguma... Estou sozinha... terrivelmente só!
E ele, o bom, o excelente amigo, não procurara contradizê‑la ou convencê‑la. Compreendera que todas as palavras seriam inúteis, que era preciso, antes de mais nada, fazê‑la sair da sua solidão dolorosa e salvá‑la do desespero em que começavam a debater‑se os seus pensamentos.
A neurastenia, com o seu cortejo de múltiplas fraquezas, depressa chega quando não tomamos cuidado.
Muito simplesmente, o oficial dissera:
‑ É preciso deixar Paris, Gyssie. De momento, já nada aqui tem que fazer.
A jovem não respondera; não queria ir‑se embora para não ficar só, não desejava, sobretudo, na sua mágoa, deixar a única pessoa que fora boa para ela.
Evidentemente que esta última consideração não a exprimiu Gyssie ao oficial; mas, este, que por seu lado não pensava, de forma alguma, em deixar a sua querida companheira, explicou logo de seguida: ‑ Levá‑la‑ei à Bretanha... Tenho, justamente, alguns negócios que me chamam lá: de qualquer das maneiras sou obrigado a ir. Além disso, acabam de me entregar o meu novo automóvel, que tenho pressa de experimentar...
Uma experiência séria, numa grande estrada. Compreende? Serei o piloto e a Gyssie a passageira.
Ele sorria... Gyssie sorria também, com a doce perspectiva de mais esta viagem com ele... e, com toda a simplicidade, aceitara.
Tinham‑se posto a caminho no dia seguinte, pela manhã.
Agora, na sala de jantar do melhor restaurante de Maine, almoçavam juntos depois de terem, desde a madrugada, percorrido a primeira parte do caminho.
Alex Le Gurum era feliz; a sua amiguinha entrava de novo no país Bretão, ali, onde ele próprio tinha as suas recordações e contava viver à sombra do campanário que vira nascer e morrer todos os seus... ali, onde, sobretudo, construiria consoladores projectos para o futuro para realizar com aquela a quem adorava com o amor mais puro e desinteressado... Por outro lado, alegrava‑se por Gyssie não ter nenhum motivo para voltar à capital... Todos os assuntos familiares que a tinham afastado de Kerlan estavam arrumados... mal arrumados, evidentemente ‑ e o amor de Alex era demasiadamente profundo para se regozijar com isso ‑ mas, enfim, presentemente, nada impediria Gyssie de pensar no futuro... Ela acabaria, talvez, por ouvir as sugestões do seu grande amigo e aceitar a entrega, para toda a vida, da sua mãozinha, nas mãos que ele, liberal e amorosamente, lhe estendia.
Enquanto comia, olhava‑a, achando linda a sua companheira de viagem! E ainda mais do que linda, estava nimbada por um encanto irresistível, com os seus grandes olhos claros que reflectiam o céu e a sua expressão radiante de doçura.
Como se demoravam um pouco à mesa, bebendo o café tão abundantemente deitado nuns copos grandes, Alex não resistiu a levar a conversa para o assunto que mais o interessava:
‑ A vida é bela quando a queremos ver assim ‑ dizia ele ‑ e é fácil, quando não se é exigente em demasia, torná‑la verdadeiramente linda e aceitável; uma mulher encantadora e simples, lindos filhos que se educam no amor da família e no dever, uma casa confortável e acolhedora onde a mulher tenha todo o conforto moderno, um carro que permita uns circuitos pela vizinhança e mesmo umas fugidas mais distantes... Haverá necessidade de mais alguma coisa para ser feliz, será preciso desejar mais: o baile, o cinema, os cafés de Mont‑parnasse, por acaso?
‑ Evidentemente ‑ concordou Gyssie ‑ a vida é agradável para aqueles que podem ter todas as vantagens acabadas de enumerar.
‑ Que estão ao seu alcance, querida Gyssie, basta querer...
‑ Sim, eu sei ‑ disse ela, fingindo não o compreender ‑ Meu pai disse‑me para lhe fixar uma importância...
‑ Mas, sem ter necessidade de seu pai, um marido que a amasse e a quem Gyssie não desdenhasse, poderia procurar fazê‑la feliz...
‑ Um casamento rico? Já pensei nisso. Falara com uma sinceridade tão aparente que Alex se sobressaltou; não esperava semelhante resposta.
‑ Sim ‑ continuou ela, o mais seriamente possível ‑ para mim, que não tenho família nem fortuna, o melhor, evidentemente, seria casar com um homem rico.
Desta vez, Le Gurum ficou embaraçado, visto Gyssie até aqui nunca lhe ter falado em semelhantes cálculos.
‑ Pensou realmente nessa... nessa solução prática?
‑ Como as outras! ‑ afirmou sem vacilar ante o olhar sombrio de Le Gurum ‑ Quer dizer, a minha ama fez os seus projectos a meu respeito... percebe?
‑ Ah! a sua ama fez?...
‑ Sim, é uma mulher que conhece a vida.
À medida que Gyssie parecia sacudir a sua tristeza, aceitando esta conversa ‑ e não deixava de lhe imprimir uma certa malícia e entusiasmo! ‑ o rosto de Alex distendia‑se singularmente.
Que seria essa história acerca da qual Gyssie nunca lhe falara? Então essa Maryvonne que não conhecia, mas a quem julgara, até aqui, a mais santa alma que se pode encontrar, permitia‑se dar a Gyssie conselhos de interesse...
‑ Não me dissera, Gyssie, que a sua ama tinha certos projectos... isso realmente é a sério?
‑ Tudo quanto há de mais sério! Há já alguns meses que Mamie anda a magicar isso!
‑ E em que consistem, com exactidão, esses projectos?
Gyssie tomou um ar misterioso e, pondo um dedo nos lábios:
‑ Schiu! ‑ disse com gravidade ‑ É «o perigo amarelo», muito simplesmente.
‑ Hein?
‑ Sim, um cavalheiro lá desses lados... do lado da China... um homem de... não sei onde!
‑ Ásia?
‑ Isso mesmo! Esse rapaz vai chegar... Deve ter desembarcado em França nestes últimos dias.
‑ E esse homem poderia casar consigo?
‑ Parece que sim!... A Mamie está encantada! É fabulosamente rico: tem terras, castelos, escravos; um verdadeiro «ricaço» chinês.
Gyssie teve vontade de rir vendo o rosto carrancudo de Alex.
‑ Ah! isso, por exemplo, não é vulgar!
De facto, Le Gurum estava cada vez mais admirado.
‑ Não é vulgar o quê, meu amigo? ‑ perguntou Gyssie com o ar mais inocente deste mundo.
‑ O projecto de casamento!
‑ Na minha idade, vejamos, é preciso esperá-lo.
‑ ... Com esse pretendente singular e que surgiu de repente.
Ela continuava a sorrir.
‑ Eu não podia, contudo, dar‑lhe parte das esperanças de Mamie antes que estas tivessem qualquer possibilidade de se realizarem.
‑ E agora, isso a que chama «possibilidade»... existe, não? O projecto marcha?
‑ Segundo o afirma Mamie...
Ante esta tranquila segurança, o oficial de marinha exclamou, descontente:
‑ E anuncia‑me isso com paz de espírito! Com mil bombas! Alma do diabo! Com...
Gyssie interrompeu‑o, indignada:
‑ Oh! Alex, é muito feio praguejar.
‑ Não há forma de fazer outra coisa, quando a oiço falar com tanta calma nos ridículos projectos da sua ama!
‑ Em primeiro lugar ‑ replicou Gyssie com uma vivacidade exagerada ‑ não são assim tão ridículos os projectos da minha boa Nounou: quer ver‑me rica! Está no seu direito!... Em segundo lugar, tenho horror... percebe, Alex... tenho um horror absoluto aos cavalheiros que têm mil bombas na garganta... Isso não aumenta os seus argumentos, afianço‑lhe!
‑ Estou de tal maneira revoltado com tudo isso, que me obriga a sair fora de mim... Alma do diabo!...
Alex parou, mordendo os lábios, encolerizado. De soslaio, Gyssie, com o seu ar gaiato, parecia comprazer‑se no descontentamento do seu camarada e, com uma compaixão verdadeiramente provocante, curvou‑se para ele:
‑ Meu grande amigo, meu bom irmão, diga‑me porque sofre... o que lhe desagrada, neste momento, nas minhas palavras?
Se estivesse menos apaixonado, Alex teria notado o pequeno clarão de malícia que, inocentemente, brilhava nos dois olhos femininos erguidos para ele; mas, naquele momento, não pensava senão no desapontamento que lhe causava a notícia.
‑ Gyssie ‑ respondeu quase tragicamente ‑ diga‑me que não pensa em casar com esse «pão de milho»!
‑ Deus meu!... não sei! É a minha ama quem insiste! Parece que esse cavalheiro tem todas as qualidades necessárias para um bom marido.
‑ Se não ama esse homem, todas as qualidades de marido perfeito lhe desagradarão... Far‑lhe‑ão mal aos nervos!
‑ Tudo é possível! ‑ suspirou Gyssie, convencida ‑ Devem ser bem irritantes as qualidades de um marido que não se ama.
‑ É a minha opinião!
‑ É um caso difícil! Maryvonne interessa‑se muito por este casamento. E o meu amigo aconselha‑me firmemente a repelir o... «o perigo amarelo»?
‑ Sem hesitação nenhuma!
‑ Seria necessário persuadir esse bom asiático a escolher uma mulher na Cochinchina!
‑ Ah! ele é da Cochinchina?...
‑ Sim! É de raça branca, evidentemente! Mas não é isso que o torna simpático!
‑ De maneira nenhuma.
‑ Era preciso ajudar‑me, meu bom amigo, a fazer compreender à Mamie que não deve impor‑me semelhante casamento...
‑ Ela quer então casá‑la à força?... Tinha graça!
‑ É muito rico... sabe?... o tal senhor!
‑ Oh! Gyssie, não fale em dinheiro!
‑ Não é coisa que sempre se possa desdenhar! Enfim, seja, não falemos mais nisso!...
‑ Tudo quanto quiser!
‑ Não, o que eu quero, não, porque não sei I Será tudo quanto o Alex pensa contra semelhante projecto de casamento, que é necessário expor‑lhe!... Explicar‑lhe‑á... far‑lhe‑á compreender...
‑ Serei eloquente. Ah! minha Gyssie querida, quando penso que essa marota da Maryvonne é capaz de alimentar semelhantes intenções!
‑ Sim, realmente, é incrível!
‑ Absolutamente! E ridículas! Não há outro termo.
Gyssie suspirou; depois, com as mãos prudentemente cruzadas, do outro lado da mesa, olhou pensativa para Alex.
‑ Aqui está uma questão arrumada! E, mais uma vez, foi o Alex, o meu grande amigo, quem liquidou o assunto.
‑ Minha Gyssie muito querida, desejaria imenso ser eu próprio a arrumar toda a sua vida... não ter mais do que deixar‑se viver... sem uma preocupação, sem um aborrecimento.
‑ Evidentemente! Seria o ideal!
A «pérfida» Gyssie parecia curvar‑se tão docilmente aos seus conselhos que Alex, deslumbrado pelo seu sorriso e pela facilidade com que ela o escutava, inclinou‑se para a jovem e, com os olhos nos dela, principiou calorosamente uma declaração de amor, que já não suportava maior demora:
‑ Ouça‑me, querida amiguinha... Permita‑me dizer‑lhe...
Com um gesto, ela deteve‑o:
‑ Mas não, Alex, eu é que preciso explicar‑me ‑ disse com vivacidade ‑ É necessário dizer‑lhe quem é o cochinchinês para poder falar dele a Mamie... Não ficou assente que, ao chegarmos a Kerlan, convenceria a minha ama?
‑ Está combinado e não faltarei.
‑ Prometido?
‑ Juro!
Uma suave alegria passou nos olhos claros de Gyssie, que fez um grande esforço para se conservar séria.
‑ Tenho confiança em si, Alex ‑ afirmou com gravidade ‑ Porém, não seja demasiadamente severo para com a minha pobre Maryvonne; essa boa mulher está persuadida de me ter feito um grande favor.
‑ Compreendo. Essa pobre aldeã julga proceder bem. É sincera... Mas as pessoas de idade têm às vezes ideias muito engraçadas...
‑ Extraordinárias!... Imagine...
Gyssie olhou‑o de soslaio, depois, temendo não conseguir conservar‑se séria se Alex continuasse a ver‑lhe o jogo fisionómico, baixou os olhos e pareceu absorver‑se na contemplação da carteira de couro trabalhada em relevo, colocada sobre a mesa, diante dela.
‑ Imagine ‑ continuou com maior segurança ‑ que este senhor chinês não é, na realidade, mais do que um rapaz de Finisterra...
‑ Ah!
‑ Sim... Um rapaz da «nossa terra» que passou uma parte da sua juventude por lá... É o sobrinho e herdeiro da minha madrinha...
Alex sobressaltou‑se:
‑ Que diz! ‑exclamou, aturdido. Não queria acreditar no que ouvia.
‑ Eu explico ‑ continuou Gyssie complacentemente ‑ Trata‑se do sobrinho da senhora Le Kérec, o herdeiro de Kerlan. Esse senhor já foi muito gentil para comigo, visto ter‑me permitido continuar a residir no castelo onde fui educada, até ao seu regresso a França. Ora, de todas estas amabilidades, a minha boa Maryvone concluiu que seria um bom marido para mim.
Le Gurum ouvia, subitamente cheio de bom humor, se bem que se esforçasse por ficar sério,] enquanto ela continuava:
‑ Parece‑me que esse rapaz está agora de volta, na Bretanha; Mamie anunciou‑me isto na sua última carta e dizia‑me qUe o notário, consultado, presumia também que este casamento fosse possível.
‑ E porque crê ele isso? ‑ interrogou Alex, que ouvia a sua companheira com um rosto alegre.
‑ Ora essa! Provavelmente, o rapaz, educado lá, é muito ingénuo... Mamie e o notário saberão persuadi‑lo a casar comigo.
‑ E a Gyssie?‑interrogou ele com curiosidade. Alex acendera um cigarro e, com ar prazenteiro,
lançava baforadas de fumo para o tecto.
‑ Aceitaria um marido escolhido nessas condições? ‑ insistiu ele.
‑ E porque não?... É rico! ‑ disse a órfã com o seu ar mais sério ‑ Por outro lado ‑ continuou ‑ ele não me conhece... Não terei necessidade de lhe falar de meu pai nem do casamento de minha mãe... Julgar‑me‑á princesa e, mesmo por pouco estúpido que seja, ficará em êxtase diante de mim... Isto não acontece todos os dias, nem a toda a gente, casar com uma princesa!
‑Esse homem não é talvez tão tolo como o julga.
‑ Nesse caso, não casará comigo!
‑ Desta vez, parece‑me que decide muito depressa! Porque não havia ele de a escolher... ele mesmo... sem que lha impusessem?
‑ Porque, em primeiro lugar, não se casa com uma mulher sem a conhecer, e em segundo, a não ser que fosse destituído de bom senso, não se casa com uma princesa pobre, sem família e sem ilusões!... Experimente propor uma mulher assim a um rapaz moderno! Verá se ele não faz logo uma careta, rejeitando a sua proposta e avisando‑o de que não é idiota.
‑ Donde conclui que esse senhor... cochinchinês, como diz, se casar consigo, é porque não passa dum pobre de espírito?
‑ Perfeitamente!
‑ É muito engraçado o seu raciocínio! ‑ observou Alex, sorrindo a qualquer visão íntima, enquanto cuidadosamente fazia cair, com a ponta do dedo, a cinza do cigarro.
Só então Gyssie levantou os olhos e ousou fitar o seu camarada.
Este já não estava triste nem inquieto. Parecia mesmo que se esforçava para se mostrar indignado, como era conveniente, em semelhante caso.
‑ Assim, Gyssie ‑ exclamou ele ‑ é tudo quanto este projecto de casamento lhe inspira! O rapaz é rico, talvez estúpido se conseguir engolir‑lhe todas as mentiras possíveis, e isto basta para a decidir!
‑ E não é um pouco assim, Alex, quando qualquer pessoa se casa?
‑ Oh! com tanta franqueza, não! Pela sua parte, não é muito interessante pensar assim! Surpreende‑me e faz‑me pena, confesso!... Prefere, realmente, aceitar esse casamento a corresponder ao meu amor e aceitar o oferecimento que lhe fiz!
Gyssie fingiu uma grande surpresa e pareceu ficar muito contrariada:
‑ Ah! é verdade! Já não me lembrava que queria casar comigo...
Parecia estar muito confusa.
‑ E eu a contar‑lhe... Meu Deus! como fui desastrada! Alex, estou sinceramente desolada!
Le Gurum ficou absolutamente estupefacto com a comédia que ela representava e pela qual, desta vez, ele não se deixava enganar.
‑ Esqueceu‑se e está desolada ‑ disse, um pouco irritado ‑ Enfim!... Admitamos o seu esquecimento e a sua pena... mas prove‑os respondendo à minha proposta... Uma vez, ao menos, diga‑me o que pensa, a fim de eu saber!
‑ Que hei‑de dizer, meu bom amigo?‑interrogou ela com uma ternura imperturbável, e de mãos sempre cruzadas, prudentemente, em cima da mesa!
Ele fixou‑a, comovido.
‑ Oh! Gyssie ‑ protestou em tom de censura ‑ não diga que não sabe o que não pretende dizer! Acabe com esta brincadeira cruel! Há meses que lhe suplico para aceitar o meu amor e ser minha mulher.
‑ Chega a ser horrível a perseverança que tem nas suas ideias ‑ observou Gyssie tranquilamente.
‑ É tudo quanto encontra para me dizer?... Oh! peço‑lhe, minha amiga, que acabemos com isto!... Fale!... Adoro‑a... Dê‑me uma resposta definitiva!
‑ Quer dizer, um sim ou um não?
‑ Diga sim, muito simplesmente, minha Gyssie.
‑ Hesito! É de tal forma grave!
‑ Mas, no entanto, aceita, minha adorada?
‑ Infelizmente, não!...
Alex endireitara‑se, com o rosto subitamente alterado:
‑ Oh! Oh!... Gyssie... por certo não pretende dizer...
‑ Que respondo negativamente à sua proposta? Mas, sim... é exactamente «não» que eu digo.
‑ Então não quer?... Recusa o meu pedido?
‑ Recuso.
‑ Mas porquê?... Porque não aceita? ‑ exclamou, subitamente todo trémulo ‑ Há semanas que espero... e me faz esperar...
‑ Oh! protesto! Nunca lhe dei a esperança de esperar qualquer coisa!
‑ Enfim! pelo menos, nunca me desiludiu! ‑ exclamou com desespero.
‑ Talvez, com efeito, devesse ser mais afirmativa... mais franca! Somente, o caso é este... no fundo, hesitava... O Alex agradava‑me...
‑ Gyssie!
‑Sim... reconheço muito bem que não me desagradava... preferia‑o mesmo a qualquer outro...
‑ E então, depois?
Suplicante, procurava por cima da mesa tomar‑lhe a mão, mas, com firmeza, ela fugia‑lhe.
‑ Não, Alex, é impossível: «sinto que não tenho confiança em si».
‑ Vejamos, Gyssie, que está a dizer?
‑ Infelizmente, a verdade! O Alex, o meu amigo, enganou‑me... há semanas, há meses!
‑ Ah! não, protesto!
‑ Mas, sim, Alex... desde o primeiro dia, mentiu‑me descaradamente.
‑ É impossível! Trata‑se dum terrível mal‑entendido.
‑ Eu disse: uma mentira... uma mentira sustentada... repetida...
‑ Não! Não! Isso não é verdade! Conte o que tem a censurar‑me, mas desde já digo e repito que se trata dum terrível mal‑entendido!... Desafio‑a a dar‑me a prova de alguma vez lhe ter mentido...
‑ Sim? Pois bem, toda a sua negação prova simplesmente que engana as pessoas com uma naturalidade... com a mesma inconsciência com que respira! Quando, antigamente, eu dizia que os homens sentem a necessidade de mentir, mesmo às mulheres a quem amam... pois bem!... contava‑o nesse número.
‑ Oh!
O oficial olhava‑a, verdadeiramente sufocado.!
A censura que Gyssie lhe dirigia era daquelas que um homem bem educado não aceita. E, na sua qualidade de apaixonado, a insistência de Gyssie em o acusar por esta feia acção era‑lhe duplamente desagradável.
Alex pôs os cotovelos em cima da mesa, amuado.
‑ É muito simples. Presentemente, deixo‑a falar, Nem sequer me defendo, de tal forma a sua acusação é injusta.
Ao contrário dele, que parecia furioso, Gyssie sorria com uma espécie de satisfação íntima.
‑ Há muito tempo que sentia vontade de o desmascarar, Alex ‑ continuou tranquilamente ‑ sobretudo quando me pedia para ter confiança em si... para toda a vida!... Enfim, cada um tem o seu temperamento. Eu contei‑lhe imediatamente tudo quanto me dizia respeito... mesmo os desgostos por que passei! Não fiz como o Alex...
O oficial não respondeu, afectando mesmo não a ouvir.
‑ Pronto ‑ disse ela com pena, se bem que o brilho radiante das suas pupilas desmentisse o seu ar magoado ‑ Agora, está zangado. Já vejo que era
necessário continuar a fingir... ter sempre o aspecto de acreditar em tudo quanto dizia... Não é fácil, sabe?... ainda mais, quando um rapaz nos pede em casamento e passamos a examinar todos os lados do problema...
‑ Escute, Gyssie ‑ disse ele, um pouco pálido ‑ Fiquemos por aqui, quer?... Dir‑se‑ia que procura apenas uma zanga e isso a diverte... Não lhe oculto que não percebo nada desta brincadeira. Neste momento, sinto‑me irritadíssimo... e não quero que me falte a paciência... involuntariamente... para consigo!
‑ Pensei ser melhor acabar já com este assunto... Mas, visto preferir que fique para mais tarde... está bem!... Vou recomeçar a fingir que acredito em tudo quanto me diz...
Alex mordeu os lábios. Fazia esforços visíveis para continuar calmo; mas esta Gyssie tão conciliadora e tão meiga, usualmente, punha‑o fora de si, naquele momento.
E, exactamente naquele instante, ela recomeçava:
‑ Para mim, no fundo, é indiferente que procure enganar‑me. Não acreditarei, na verdade, senão naquilo que muito bem me parecer... Como?... O que disse?
Ele não dissera nada, mas aproveitou logo
aquela tábua que lhe estendiam:
‑ Disse que me ia explicar imediatamente o motivo da censura! Para insinuações, já basta!
‑ Schiu! mais baixo! Tenha calma, Alex! Se começa a falar assim tão alto, toda a gente, no restaurante, vai pensar que não estamos de acordo... E isso não seria verdade, porque nos entendemos sempre muito bem, os dois... Não é verdade, bom amigo?
Nunca Gyssie dera tanta afectação ao seu sorriso nem tanta carícia à sua voz.
Depois, para cúmulo, por cima da mesa, a sua mãozita foi colocar‑se sobre a do oficial, cujos dedos tamborilavam nervosamente sobre a toalha de linho branco. Ora, este contacto perturbador, este doce olhar fixo no seu, conseguiram, melhor do que todas as palavras, acalmá‑lo.
‑ Minha pequenina Gyssie... Minha querida Gyssiezinha... ‑ balbuciou, completamente mudado.
‑ Sim, a sua pequenina Gyssie... mas a quem, no entanto, esteve enganando com uma espécie de satisfação...
‑ Oh!... ainda!
‑ E sempre!
A «má» não afrouxava as reclamações. Mas, como não retirava a mão, na qual o oficial acabava de depor um beijo, quase a medo, estava disposto a todas as concessões e não muito longe de admitir que possuía todos os defeitos.
‑ Compreeende, Alex, nunca lhe poderei perdoar as suas faltas, enquanto não me explicar as razões.
‑ Explico‑lhe tudo... tudo, minha querida!
‑ Então, por que motivo, desde o primeiro minuto em que me viu, não me disse a verdade?
Le Gurum conseguira tornar prisioneira, entre as suas, a mãozinha de Gyssie, e, uns após outros, comprazia‑se em apertar‑lhe os deditos de unhas rosadas. Como seria possível, em semelhantes condições, discutir as censuras que ela lhe dirigia?
‑ Alex, tenha juízo. Estão a olhar para nós.
‑ A gente desta terra é terrivelmente curiosa!
‑ Creio que sim... Mas largue a minha mão; é preferível não estar a proporcionar‑lhes distracções intempestivas...
‑ Só largo a sua mão quando me explicar tudo! Não se acusa ninguém de coisas abomináveis, sem lhe dar ocasião para uma desculpa!
‑ É inteiramente justo, com efeito!... Isso não impede que, no primeiro dia, quando eu lhe disse quem era e onde fora criada, não me tivesse prevenido que conhecia Coatderv.
‑ Não tinha importância!
‑ Mas também lhe falei de Kerlan e da minha querida madrinha. O Alex parecia não os conhecer.
‑ Parecia, apenas, Gyssie!... Na verdade, não ia insistir num assunto que lhe podia ser doloroso, visto a sua madrinha ter falecido.
‑ Está bem, mas eu não morrera! E quando lhe disse o meu nome e o meu título?...
‑ Felicitei‑a, minha querida. Usava‑o divinamente, o seu título!... Recorda‑se?... E logo de seguida senti a necessidade de lhe dizer que era adorável.
‑ Vejamos, Alex! A lealdade ter‑lhe‑ia feito dizer outra coisa.
‑ A lealdade!... Que linda palavra!... Ah! a Gyssie sabe dizer coisas belas!... Somente, essa palavra nada tem que ver entre nós. Sempre fui sincero, dizendo achá‑la bonita.
‑ Mas era um grande misterioso, e eu nada percebi!... Deixe a minha mão, Alex!... Que está a fazer?
‑ Tomo a medida do seu dedo... para um anel, Gyssie! Um simples anel, sem importância, que nele desejo enfiar... para toda a vida!
‑ Vejo que tem distracções quando se lhe fala de lealdade!
‑ Porque teima absolutamente em misturar o primeiro dia em que nos encontrámos com o dia de hoje, no qual eu desejava que ficássemos noivos! E, depois, não sei em que ponto estava das explicações que tenho a dar‑lhe!
‑ Censurava‑o por não me ter dito que conhecia o meu nome, antes do nosso primeiro encontro!
‑ É possível... visto afirmá‑lo!
‑ E não sabe o que deveria ter feito nesse dia?
‑ Infelizmente!... Além do meu amor, querida Gyssie, não vejo mais nada!
‑ Então aprenda, senhor, que logo de seguida e desde o primeiro instante, era necessário fazer cessar qualquer equívoco e dizer lealmente...
‑ Lealmente! E insiste na palavra, minha amiga!
‑ Também sou perseverante nas minhas ideias... No começo das nossas relações tinha obrigação de me dizer o seguinte: «Conheço‑a, minha senhora. Já tive o prazer de me corresponder consigo, acerca do castelo de Kerlan que me deixou em testamento minha tia Le Kérec... Porque a minha tia era sua madrinha, minha senhora! Pois bem, embora nos vejamos agora, pela primeira vez, já somos velhos conhecidos, porque minha tia me falava muito de si, nas suas cartas, e nada ignoro a seu respeito!».
Um raio que caísse aos pés de Alex não lhe causaria maior assombro.
‑ Ah!... Sabia? ‑ balbuciou.
‑ Que não me desconhecia?... Sim, como vê, sabia!
‑ É pena! Esperava fazer‑lhe essa surpresa amanhã!
Logo que passou o primeiro momento de espanto, o oficial procurou recuperar a sua atitude habitual, enquanto a si mesmo perguntava como poderia ter Gyssie sabido a verdade!
Teria cometido qualquer imprudência? Teria deixado ao seu alcance alguma carta comprometedora? A não ser que alguém a tivesse prevenido? Mas quem? Não via quem pudesse ser e além disso andavam sempre juntos!
Por outro lado, não pensava em negar que ao princípio das suas relações compreendera o que representava para ele a linda princesa de Ampolis, que o acaso colocava no seu caminho, tão longe de Kerlan.
Porque não falara logo no primeiro momento? Não sabia bem ao certo porquê, e era isso o que Gyssie queria que ele lhe explicasse.
‑ Porque não mo disse, Alex? Porque preferiu calar‑se? Era para me surpreender... para me estudar... ao abrigo do seu incógnito, não é verdade? Era quase uma espionagem!
Gyssie tinha uma tal forma de apresentar as coisas, com os seus grandes olhos severos fitos nele, que o oficial fazia a figura de um verdadeiro culpado! Apesar de toda a sua segurança, acabava por se sentir realmente em culpa! E, portanto, não sabia que, se procedera assim, quase instintivamente, era somente por Gyssie lhe ter agradado logo desde o primeiro instante.
‑ O amor vem de repente ‑ procurava ele explicar, para dar uma desculpa ‑ Logo ao primeiro olhar compreendi que ia adorar a pupila de minha tia!
‑ Mas depois, Alex? Depois?... Teve mil ocasiões de me falar... de me dizer a verdade!
‑ Ah! depois?...
‑ Depois, palavra de honra, o idílio era demasiadamente lindo para que uma questão de gratidão ou de interesse pudesse vir juntar‑se‑lhe... Não tive mais do que um pensamento, ganhar o seu amor, Gyssie, sem saber quem eu era... Suponha que por causa da grata recordação que tinha da senhora Le Kérec aceitava o sobrinho!... Por mero reconhecimento!
‑ E adiantou muito, com isso! Também eu depressa adivinhei quem era!
‑ Oh! naturalmente! Foi o Le Fíir que lhe contou!... É um bisbilhoteiro, esse velho sátiro!
‑ Mas não, foi Mamie que me escreveu... Soubera do regresso a França do senhor Le Gurum... Comparei as datas, os nomes e as circunstâncias... Imediatamente compreendi...
‑ Pois com certeza! Para compreender uma coisa que me podia aborrecer não havia necessidade de grandes explicações!... Enquanto eu, durante semanas e meses, procurava, em vão, fazer com que me ouvisse dizer‑lhe quanto a amava...
Ela começou a rir.
‑ Mas isso também logo compreendi!
Le Gurum lançou‑lhe um olhar cheio de censuras.
‑ Então, porque fingiu, com tanta malícia, não compreender?
‑ Porque uma rapariga séria não toma logo estas coisas ao primeiro indício!
‑ Ah! Gyssie, quanta vez me tornou infeliz!...
‑ O ar da sua terra há‑de curá‑lo, Alex!
‑ É do seu amor que necessito, minha Gyssie! E como apertava nas suas a mãozinha que até
ali tão imperiosamente se lhe furtava, julgava‑se já próximo do resultado final.
‑ Minha Gyssie querida... minha noiva adorada! Que doce realidade ‑ murmurou ele com o rosto extasiado.
‑ Mas engana‑se, Alex! ‑ protestou Gyssie, provocadoramente indignada ‑ Este casamento é impossível!... Não se esqueça de que me prometeu proteger contra o «perigo amarelo». Precisa de falar nesse sentido a Maryvonne. Tenho a sua palavra! Jurou!
Mas ele defendia‑se com energia:
‑ Arrancou‑me essa promessa de má fé! Bem sabia que eu acreditava na existência de um rival! A Gyssie não ignorava ser eu próprio o famoso «cochinchinês»...
‑ Quando se jura uma coisa não vamos abrigar‑nos sob tão insignificantes desculpas...
‑ Mas a Gyssie compreende...
‑ Não, não!... Primeiro, cumpra as suas promessas...
Com a voz cortante e as sobrancelhas carregadas, Gyssie tinha o aspecto de um juiz grave, a examinar factos e a confundir o réu.
‑ Por muito doloroso que seja o dever, meu grande amigo, é sempre preciso cumpri‑lo!
‑ Seja ‑ admitiu Alex, pondo‑se repentinamente muito sério ‑ Falarei a Maryvonne, uma vez que prometi... Dir‑lhei, além disso, muito mal das duas partes: Alex é um rapaz sem vontade própria, incapaz de guiar na vida uma criatura tão déspota e voluntariosa como a menina Gyssie... em vista
disso, Alex volta para o seu barco, com um novo contrato por quinze anos, o que lhe permitirá, uma vez decorrido esse lapso de tempo, voltar a França, vindo de qualquer outro país sem ser da China.
‑ O que pode muito bem suceder! ‑ disse Gyssie, a troçar.
‑ Naturalmente! Desde o momento que fique livre de mim, acha tudo muito bem!
Isto foi dito com tão mau humor que Gyssie principiou a rir com o seu ar travesso.
‑ Oh! Alex, revela assim um carácter muito feio! Observo, de passagem, que na adversidade será um homem rabujento e desagradável... Não é muito animador para uma rapariga que pensa em casar.
‑ Uma vez que não deseja ser minha mulher,
não tenho necessidade de me mostrar amável!
‑ Recuso apenas o «perigo amarelo»... Alex foi o próprio a aconselhar‑me, há pouco!
‑ Como consegue ser cruel, Gyssie, quando quer! Brinca com os meus sentimentos como o gato com o rato.
‑ Oh! Alex há um bocadinho afirmava que eu era adorável! Os homens, decididamente, variam muito de opinião... Isso explica, por outro lado, os maravilhosos resultados do sufrágio universal!
‑ Mas há os meus sentimentos para consigo, Gyssie, que nunca mudarão!
‑ Assim o espero.
Ela viu as horas no relógio de pulso.
‑ Por agora, contentemo‑nos em chegar à Bretanha o mais depressa possível. Há duas horas que estamos à mesa; é formidável, meu pobre amigo, muito tempo leva a comer!
Ela levantou‑se, mas, devagarinho, Alex deteve‑a na sua frente.
‑ A Gyssie não me respondeu... Eu quero saber imediatamente...
Ao mesmo tempo, curvando‑se para ela, mergulhava os seus olhos nos de Gyssie.
‑ Amo‑a, não me faça sofrer.
A sua voz era tão grave, tão perturbada, e os olhos estavam tão perto dos de Gyssie, que esta corou, perdeu toda a firmeza e voltou a cabeça. Ficara, repentinamente, muito comovida.
‑ Escute, Alex ‑ disse com voz fraca ‑ parece‑me não ser conveniente uma rapariga dispor sozinha da sua vida... Falará a Maryvonne... E creio... creio que ela dirá que «sim!»... A não ser que, entretanto, me tenha arranjado um marido mais rico do que o Alex.
E lançando esta flecha de Partos, Gyssie, toda confusa, precipitou‑se para a saída e voltou para o automóvel, enquanto Alex, finalmente cheio de esperança, pagava a conta do restaurante e dava uma gorjeta principesca ao criado, que não voltou a si da surpresa deste ganho inesperado.
‑ Mamie! Oh! Mamie!
A boa mulher tomara nos braços a criança frágil que voltava ao ninho depois de tão cruéis aventuras e apertava‑a fortemente contra o peito, como se quisesse dar‑lhe um pouco do seu vigor ou protegê‑la contra adversários invisíveis.
‑ Se tu soubesses, Mamie, como por momentos me senti infeliz, desde que te deixei!
‑ Não duvido, meu tesouro. As tuas cartinhas bem queriam ser corajosas, mas eu adivinhava nas entrelinhas aquilo que não me dizias.
‑ Nunca supus que o conhecimento da minha família me pudesse trazer tantas decepções... Antes de encontrar os meus, tudo me parecia de tal forma lindo!
Maryvonne ergueu a cabeça, pensativa.
‑ A vida traz sempre mais dores do que prazeres! Desde que partiste, sofri grandes desgostos, minha querida... Se eu tivesse adivinhado a verdade acerca do casamento de tua mãe, não teria permitido que te fosses embora...
Não merecia a pena ires tão longe buscar lágrimas e aborrecimentos! Mais valia continuares a viver na ignorância... ‑ Era impossível, Mamie! Eu não teria ficado aqui sem conhecer o que havia a respeito de meu avô e o que fora feito de meu pai... No estado de espírito em que fiquei depois do meu aniversário, se necessário fosse, teria ido até à América do Sul procurar os traços do desaparecido. Maryvone suspirou.
‑ Evidentemente, era natural quereres saber o que sucedera a teu pai... A tua própria mãe dera ordem de o procurares... Precisavas de obedecer, era o teu destino! Enfim, minha princesa, tudo isso é bem triste.
Porém, a este título que a boa mulher lhe dava ainda, Gyssie estremeceu:
‑ Oh! não!... não, Mamie, esse nome, não!... Não quero; não tenho direito a ele... Nunca mais desejo ouvir soar esse título aos meus ouvidos.
A boa mulher sacudiu a cabeça e tornou‑se grave.
‑ Escuta‑me, Gyssie ‑ disse ela, obrigando a órfã a sentar‑se numa cadeira, diante do banco esculpido onde ela estava ‑ Reflecti muito no caso desde que me escreveste, na tarde em que foste visitar o senhor Russin. Adivinhas por certo que não falei a ninguém na tua carta... nem mesmo ao senhor cura, porque, a meu ver, o segredo do teu nascimento não me pertence... pertencia, antes de mais nada, à pobre senhora que faleceu ao fazer‑te entrar neste mundo... Tu mesma não tens o direito de dispor dele e de enxovalhar a memória da que te deu a vida... Os filhos são solidários com os pais e, se estes cometerem um erro ou tiverem uma falta que os rebaixe, não devem ser eles a divulgá‑los.
‑ Não falei disto senão a ti, Mamie... e a Alex... porque era preciso que ele soubesse... Compreendes! Não podia ocultar‑lho.
A bretã envolveu Gyssie num olhar terno.
‑ Sim ‑ concordou ‑ Ele devia saber!... Mas tudo isto é apenas para te dizer que não falei no caso a ninguém. Ninguém sabe, portanto, que o título anotado no Registo Civil daqui nenhum valor tem... Ora, por conseguinte, minha Gyssie, esse nome de «de Wriss», esse título de «princesa d'Ampolis», é preciso que continues a usá‑los, a fim de ninguém suspeitar da verdade.
‑ Oh! Mamie! ‑ protestou a órfã ‑, Tu, que és tão recta, como podes aconselhar‑me a usar um estado civil que é falso?
‑ Primeiro, Gyssie, o estado civil não é falso. É teu!... Se fosses uma criança abandonada e o secretário do Registo Civil te tivesse chamado, ironicamente, Reine ou Renêe du Buisson‑ Vert ou das Trois Êtoiles, ficarias sendo para toda a vida Renée du Buisson‑ Vert ou Reine des Trois Êtoiles, porque seria esse o teu verdadeiro estado civil... És Gyssie de Wriss, princesa d'Ampolis, e assim deves continuar sempre... Compreendes, minha pequenina?
‑ Sim ‑ disse Gyssie, comovida.
‑ Mas, há ainda uma outra razão que deve obrigar‑te a usares esse nome, sem afectação e honrosamente: é que não o poderias deixar sem enxovalhar a memória de tua mãe e contares a toda a gente que, embora casada pela igreja, a pobre senhora não o fora perante a lei... Calcula o que seria expor todas estas coisas em público! Mexer em todas as recordações!... revelar a toda a gente a infame comédia de teu pai e a ingénua, mas ridícula, confiança de tua mãe!
‑ Não, não! Nunca! ‑ exclamou Gyssie, a quem a perspectiva encarada pela ama revoltava ‑ Que a minha pobre mamãzinha descanse em paz e meu pai viva tranquilo. Os meus lábios serão mudos e usarei dignamente o nome que me foi dado, embora custe enfeitar‑me com penas de pavão e pareça descender duma aristocracia de príncipes, quando, na realidade, não passo duma pobre garota sem pai!
‑ Eu tinha a certeza, minha Gyssie, que saberias compreender‑me e aceitarias resolutamente a situação em que o destino te colocou. Que ninguém, portanto, sonhe a verdade... mesmo para o teu avô, é preciso calares‑te também, minha pequenina.
‑ Oh! a ele, Mamie, podes ter a certeza de que nunca lhe direi nada, pela simples razão de nunca o tornar a ver! Bem sabes que meu avô não me quis ouvir e me expulsou de sua casa! Faço mesmo tenções de nunca mais pôr os pés em Lião, de tão tristes recordações!
A velha bretã não respondeu imediatamente. Pensativa, olhava para Gyssie, cujo rosto se tornara de repente sombrio, exprimindo dolorosos pensamentos. Depois, um sorriso entreabriu a boca desdentada da humilde aldeã.
‑ Está escrito, creio, minha pobre Gyssie... não voltarás a Lião... Sabes quem há dias veio a Coatderv?
O olhar da jovem fixou‑se, cheio de angústia, no de Maryvonne.
‑ Não sei... Não ouso mesmo fazer uma suposição... No entanto, penso em Marine...
Mas a mulher levantou a cabeça.
‑ Não! ‑ disse ela ‑ Foi um homem... um velhote... muito grave e infeliz!
‑ O meu avô ‑ balbuciou Gyssie, tornando‑se muito pálida.
‑ Sim... O juiz Chauzoles.
Um silêncio unia‑as nesta visão comum: a de um velhinho a quem uma desgraça irreparável atormentava.
Gyssie interrogou:
‑ Conta, Mamie... É possível, realmente, que meu avô tenha vindo a Coatderv?
‑ Veio, afianço‑te.
‑ Que veio ele cá fazer?... Verificar, sem dúvida, a certidão de óbito de minha mãe!
‑ Não... Rezar sobre a sua campa...
De novo a imagem severa e triste do juiz de Lião se colocava entre ambas; mas, perto dele, erguia‑se um outro rosto meigo que vinte anos de obscuridade esfumava. A antiga criada pensava na sua senhora, a filha evocava sua mãe.
Animando‑se um pouco, Maryvonne, explicou:
‑ Foi uma manhã... Eu tinha ido à vila comprar algumas provisões. Quis passar pelo cemitério, como tantas vezes faço... Mas quando cheguei perto do túmulo da pobre senhora vi que estava alguém junto da lousa... um velhote alto... muito direito... muito grave... Estava de pé, enquanto caía uma chuva miudinha, sem se mexer, sem parecer rezar...
‑ Falou‑te?
‑ Não... Afastei‑me do túmulo... para não o perturbar, percebes? Entrei na igreja, para fazer as minhas orações, esperando que se fosse embora.
‑ Ficaste a pensar quem seria?
‑ De maneira nenhuma... Pela sua figura, pelo seu aspecto... e, depois, era um estranho nesta terra, onde conheço toda a gente... adivinhei sem pensar que pudesse enganar‑me... Era tão severo! e tão triste que o nome do juiz Chauzoles veio imediatamente à minha cabeça.
‑ E então?... Quando saíste da igreja?
‑ Ainda lá estava... sempre de pé, no mesmo lugar. Fazia‑me pena vê‑lo imóvel, sob aquele chuviscar que «pingava» pesadamente e parecia não sentir... Que estaria a dizer, muito baixinho, à filha encontrada ali depois de vinte anos?... Pobre velho!... Nós, os bretões, não somos sensíveis! Não choramos facilmente! No entanto, revoltava‑me a alma vê‑lo assim... silencioso... sem se mexer! Compreendia‑se perfeitamente que estava «vendo» a falecida e lhe devia estar a dizer qualquer coisa!... Parti sem ousar aproximar‑me, e o sacristão, no dia seguinte, disse‑me que ficara mais de duas horas no cemitério.
Enquanto ela falava, grossas lágrimas rolaram pelas faces de Gyssie. Sentia‑se responsável pelo desgosto que o avô sofria, e cada palavra de Maryvonne caía‑lhe sobre o coração. Ela, que não desejara outra coisa do que reconciliar o avô com o pensamento de sua mãe, compreendeu então que com o seu gesto de despeito crucificara um coração de pai.
‑ Oh! Mamie, é atroz!... O seu desgosto... foi culpa minha!
‑ Mas não, minha princesa ‑ disse a ama com gravidade ‑ Era uma prova por onde devia passar... Todos os pais choram os filhos perdidos! Ele, no entanto, levou muito tempo a conhecer o destino da filha, mas tinha de sabê‑lo, um dia ou outro.
Gyssie, no entanto, não aceitava o fatalismo da sua velha ama; a alma sensível exagerava‑lhe as culpas. E com o coração oprimido por uma infinita tristeza, refutou os argumentos de Maryvonne:
‑ Sim, é verdade, como dizes, que os pais choram os filhos perdidos, mas é usual, também, não serem eles sozinhos a chorá‑los... À sua volta há afeições que se esforçam por lhes suavizar a dor; a esposa, a mãe, outros filhos, amigos, conhecidos... uma infinidade de gente que tem piedade da sua dor... O meu avô, porém, estava só quando recebeu a minha carta... Esteve sozinho no cemitério... Eu devia ter previsto a sua solidão e não lhe dar semelhante golpe...
Maryvonne não podia admitir que a «sua princesa» fosse culpada, por isso replicou:
‑ Se ele tivesse procedido como deve proceder um pai, estarias a seu lado... tanto em Lião como em Coatderv! Deus levou‑lhe a sua única filha mas enviava‑lhe uma neta para amar e proteger. O seu quinhão era bom, porque Deus é infinito na sua misericórdia e coloca sempre o remédio perto da doença... Compete‑nos a nós não desprezar os seus benefícios...
‑ O juiz Chauzoles não podia adivinhar que eu era sua neta ‑ observou generosamente Gyssie, a quem as considerações da bretã não conseguiam convencer ainda.
‑ Apresentaste‑te defronte dele, pronunciando o nome de Valentine. Era pai... Este nome devia dizer‑lhe qualquer cousa... a sua paternidade cumpriria um dever, escutando‑te!
‑ Ficou surpreendido com a minha visita... Não calculou, talvez, o que ela podia significar!
‑ Fez, acima de tudo, passar o seu ressentimento sobre o dever... Na realidade, foi o autor de todo o mal!
Gyssie levantou a cabeça, pensativa:
‑ Assim seja, se queres... Mas ele causou‑te dó, Maryvonne, quando o viste no cemitério?
Esta reflexão motivou o protesto instintivo da boa Mamie:
‑ Era preciso ter um coração de pedra para não me comover diante daquele velho infeliz, vítima da sua intransigência...
Parou, olhando Gyssie, que enxugava os olhos, e depois, abandonando o seu tom severo de aldeã incorruptível, acrescentou suavemente, feliz por poder anunciar uma boa notícia:
‑ Ele veio cá.
‑ A Kerlan?
‑ Sim... Na aldeia informou‑se. Deram‑lhe o meu nome e mostraram‑lhe a minha casa.
‑ E depois?
‑ Franqueou a grade, olhando à roda... Eu não acreditava no que via e, um pouco embaraçada, esperava que falasse... Oh! mas ele não é conversador! Finalmente, acabou por perguntar se não era eu quem tratara da senhora de Chauzoles e educara a filha... Hesitou diante do nome, não pronunciou de Wriss...
‑ Meu Deus! ‑ murmurou Gyssie, angustiada ‑ dar‑se‑á o caso dele saber tudo?
‑ Não... Não dei por isso, no decorrer da nossa conversa... Vinha simplesmente para falar de tua mãe e de ti... Já calculas que, contando fielmente a verdade, não lhe disse senão o que ele podia saber... Enquanto lhe falei de tua mãe escutou em silêncio... como se escuta na igreja, quando o padre fala dos anjos!... Depois, quando pronunciei o teu nome, agitou‑se e fez‑me uma quantidade de perguntas...
Maryvonne sorria para a jovem, cujos olhos sombrios estavam postos nos lábios dela.
‑ Compreendes, ainda lhe restava uma neta, quando supunha que tudo estava perdido... o pobre homem não se cansava de ouvir falar da criança desconhecida enviada pelo céu... Suponho que se estivesse a falar‑lhe durante horas, continuaria a ouvir‑me.
‑ Nada disse, quando acabaste?
‑ Sim, sim, meu tesouro! Primeiro, agradeceu‑me, depois encarregou‑me dum recado para ti: «Diga a Gyssie que ainda lhe resta um avô... por pouco tempo, visto estar muito velho! Mas diga‑lhe, sobretudo, que não está sem família e que o meu velho coração reclama a sua presença junto de mim...». Aqui tens a narração da visita de teu avô, minha princesa! É pena que não estivesses cá... Mas, enfim, ele veio... Estás contente, minha pequenina?... Vês, afinal o juiz Chauzoles tem coração!...
Ela parou porque Gyssie soluçava.
‑ Oh! minha princesa!... não chores!... Não te sentes feliz por teu avô ter vindo?
‑ Eu... choro de alegria ‑ balbuciou Gyssie por entre lágrimas... ‑ Não podes compreender, Mamie... Eu fazia‑me forte e não queria dizer o desgosto que me causava o facto de não ter família; mas, no fundo, não podia pensar no meu avô sem ficar com o coração oprimido... Era demasiadamente duro ter um avô que não gostasse de mim.
‑ Pobre pequena! ‑ disse a ama, atraindo a si aquela cabecita loura.
E, alisando docemente os cabelos com a mão, explicava à sua pequenita:
‑ O Destino seria verdadeiramente injusto para contigo se não te concedesse a afeição do teu avô. Quando pensava que a minha Gyssie possuía ainda, em qualquer lado, um pai e um avô, revoltava‑me ver que ambos não sabiam corresponder às tuas esperanças. No entanto, dizia para comigo mesma que os homens nem sempre são da melhor espécie; mas que os dois não valessem nada era muito pouca sorte, e a minha Gyssie nada fizera para Deus lhe dar tão triste quinhão.
A ingénua frase da ama fez sorrir Gyssie.
‑ Então, Mamie, também a ti te sucede dizer mal dos homens?
‑ Não! Não muitas vezes! ‑ protestou a bretã, a sorrir ‑, Foram precisas todas estas tuas desgraças para eu compreender os seus defeitos... Evidentemente, alguns têm!...
‑ Mas não tantos como eu lhes atribuía! ‑ replicou Gyssie, que se tornara alegre ‑, O bom Alex,.; esse, tem tanta paciência para mim...
E o olhar dela iluminou‑se, ao recordar algumas «zangas alegres».
‑ É um bom rapaz... Conseguiu reconciliar‑me com o sexo oposto, porque, vês tu, Mamie? Ele... ele possui realmente todas as qualidades!
Maryvonne sacudiu a cabeça, convencida, e disse com enternecimento:
‑ Tenho a certeza, princezinha!
De repente Gyssie principiou a rir e, à sua ama, que não compreendia a causa daquela hilaridade, explicou:
‑ Penso na cara de Alex ao comunicar‑lhe que parto novamente em viagem para Lião... Será preciso lembrar‑lhe também que a correcção exige que ele peça a minha mão ao avô... Isto dar‑lhe‑á prazer, por certo!... Ah! Mamie, como me vou divertir mais uma vez!...
Lá ao longe soou a campainha do portão da entrada.
‑ Escuta, Mamie! Estão a bater!
‑ Tens melhores ouvidos do que eu! Não ouvi nada.‑ Estão a bater com força... Quem será a esta hora?
‑ Talvez o senhor Alex.
‑ Não, Alex preveniu‑me ontem que só viria quase ao fim da tarde e são apenas duas horas.
‑ Vou ver ‑ decidiu Maryvonne.
Já se afastava pelas áleas sinuosas que os carvalhos centenários cobriam com a sua folhagem rendilhada, quando de longe gritou para a sua companheira, imóvel: ‑ E se for um importuno, mando‑o embora, princezinha.
Gyssie aprovou com um sinal de cabeça. O parque estava lindo no seu esplendor primaveril. As árvores, revestidas de verde e púrpura, cintilavam como ouro, sob um sol de Junho, já muito quente. A natureza estava deslumbrante... Gyssie, depois de ter seguido com os olhos a ama, que não passava de um ponto negro num sumptuoso tapete de ervas verdes onde desaparecia a álea, continuou lentamente o seu passeio para o terraço empedrado de granito milenário.
A seus pés, o humos das folhas caídas e os raminhos secos, velhinhos de séculos multiplicados, estalavam num crepitar seco, não permitindo que os seus passos ficassem marcados na espessura da camada.
O terraço erguia‑se diante de uma paisagem esplêndida, trabalhada em relevo, com cavidades e proeminências, plantada com juncos e giestas que cobriam de negro o espaço dos grandes canteiros amarelos, até aos confins do horizonte.
Maravilhada pelo esplendor das coisas, Gyssie encostou‑se, extasiada, ao muro que servia de parapeito.
O deslumbrante panorama fazia‑a sonhar, e, numa doce evocação, julgou‑se no parque de Bagatelle, onde a mãe, no dia do seu ilusório noivado, tinha colocado a sua mão na de Gys de Wriss...
Dentro em pouco, Alex Le Gurum ia chegar...
No mesmo quadro maravilhoso, Gyssie, por sua vez, não aceitaria que o seu fiel amigo lhe colocasse no dedo o anel simbólico que os ligaria para toda a vida?
Um sorriso flutuou‑lhe nos lábios: a felicidade aproximava‑se!... A criança abandonada a quem os seus tinham ignorado durante tanto tempo, chegava ao porto de segurança onde a atraía imperiosamente um noivo carinhoso.
O casamento seria o fim da sua angustiosa solidão... A segurança do seu estado civil reconquistado... Um lar de família reconstruído.
Para aquela a quem um pai repelira, e um avô, num primeiro impulso, expulsara de sua casa, esta certeza de um lar estável era radiante e enternecedora.
«Alex!... Oh! Alex! Como lhe farei a vida feliz, a ele, o amigo querido que me proporcionará todas as afeições de que o destino me privara!».
O amor de Alex era uma luz brilhante que lhe iluminava todo o futuro.
«Meu noivo!... Meu adorado marido!».
Esta evocação era tão terna que as lágrimas vieram‑lhe aos olhos, consoladoramente.
E Gyssie, ao mesmo tempo enternecida e alegre, sorria à visão deslumbrante do noivo que dentro em breve chegaria e cuja ternura e protecção ia aceitar enfim, para toda a vida...
Como nesse momento se voltasse para o parque profundo, ao fim do qual o castelo de Kerlan se estendia por detrás das corbelhas de rododendros e onde a sua vida inteira decorria em paz, Gyssie estremeceu.
Uma silhueta masculina desenhava‑se na álea percorrida há pouco por Maryvonne.
«Já, o Alex! ‑ pensou Gyssie num impulso de alegria imediatamente reprimido: «Não... É engano meu!».
Com efeito, não era aquele por quem esperava... O oficial era menos alto, menos largo de ombros. A estatura de quem vinha lá em baixo era forte, imponente, dominadora...
O «importuno», que Mamie devia ter mandado embora, continuava a avançar, tranquilamente, por baixo dos grandes carvalhos...
Não era, portanto, um importuno, mas sim um visitante que fora aceite.
E, de repente, sem ela mesmo ter compreendido a sua comoção, o coração, que por um segundo parara a sua corrida nostálgica devido a uma estranha apreensão, começou a bater um pouco apressado... com grandes pancadas a martelarem‑lhe no peito, quase a fazerem‑lhe mal.
«Ele... Meu Deus... Não é possível!...». Subitamente empalidecida, incapaz de fazer um movimento, de tal forma a invadira uma fraqueza singular, Gyssie deixou‑o aproximar‑se.
Perto dela, de Wriss retardou a marcha. Os seus olhos penetrantes mergulhavam nos de Gyssie e esta, sem força, com o olhar fixo naquele que a fitava, sentiu um grande soluço a estrangulá‑la.
‑ Meu pai! ‑ balbuciou num gemido. Gys de Wriss abriu os braços.
‑ Minha Gyssie!... Minha filha.
A jovem não fez mais do que deixar‑se cair sobre aquele peito másculo que se lhe oferecia, com a cabeça encostada ao seu ombro viril, onde sonhara, durante tanto tempo, aninhar‑se um dia.
‑ Meu pai! Meu pai!
Este nome não era mais do que uma palavra de amor no meio de um soluço, mas encerrava tanta fé, tanto esquecimento, tanta promessa, que ele ficou tão perturbado como ficaria pelas mais lindas frases, mais comovido mesmo do que nunca se julgara capaz.
Instintivamente, apertou muito de encontro a ele a criança frágil que acabava de reconquistar, somente com a sua presença naqueles lugares.
‑ Minha Gyssie pequenina...
No entanto, com um sobressalto de energia amigável, Gyssie dominou com rapidez a violência da sua emoção.
Recordou‑se, judiciosamente, que de Wriss, não sendo um sentimental, se sentiria incomodado com estas expansões ruidosas.
E, levantando a cabeça, tapou os olhos, por instantes, procurando sorrir‑lhe:
‑ Oh! Como estou contente, meu pai. Nem quero crer no que os meus olhos vêem.
‑ Vim trazer‑te o manuscrito da tua querida mãe, minha querida filha. Partiste tão depressa, no outro dia, que nem tivemos tempo para combinar como to devolveria...
O tratamento de tu, que usava para com Gyssie, surpreendeu‑a um pouco, por não ser esperado, embora soasse ternamente aos seus ouvidos.
Mas, se ela conhecesse melhor os costumes dos holandeses, saberia que este tratamento significava um acolhimento benevolente. De Wriss julgara a filha favoravelmente: admitia a incursão dela na sua vida; significava, enfim, que doravante ela fazia parte dos seus íntimos.
Aqui está tudo quanto esse «tu» desusado queria dizer.
Na Holanda, efectivamente, as crianças que apresentam os camaradas aos seus pais esperam impacientemente o tratamento de tu, sinal de «bom acolhimento», após o qual eles podem voltar a suas casas tantas vezes quantas desejarem. Este «tu» dos pais sela as promessas de casamento, da mesma forma que confirma as amizades; é a forma de conversação em que o coração desabafa, e põe cada um à vontade.
E, com simplicidade, nesse dia, de Wriss usava‑o para com sua filha.
Ele tomou‑lhe o braço e, muito alto ao pé dela, começou a andar, ligeiro, pelo terraço.
Nunca os seus olhos verdes haviam tido tanto brilho. Para Gyssie, aquele momento, tinha um encanto maravilhoso que resgatava todos os desgostos passados.
‑ Vês, minha filha ‑ explicava de Wriss conscienciosamente ‑ No outro dia procurei telefonar‑te para o «Maas'‑Hotel». Disseram‑me que já partiras. Nada me restava, portanto, senão vir encontrar‑te aqui, se não quisesse continuar a prolongar o mal‑entendido...
‑ Meu pai! Sinto‑me tão feliz por ter vindo. Foi tão bom! tão belo! Abençoado seja por me proporcionar esta grande felicidade!
‑ Se, em Roterdão, tivesses dado o tempo necessário para nos conhecermos um pouco mais, teríamos experimentado esta alegria oito dias mais cedo... Mas és impetuosa, exuberante... Tal como era a minha querida Valentine! Eu sou mais calmo e estava tão longe da tua visita... Logo que passaram os primeiros minutos de surpresa, comecei a habituar‑me um pouco à ideia de ter uma filha e foi justamente esse momento que escolheste para me lançar todas as maldições.
‑ Meu pai! Peço‑lhe perdão da minha vivacidade. Depois, vi bem que fora muito desastrada...
Ele sorriu com indulgência.
‑ Não, não foste precisamente desastrada... Pelo contrário! Foste simplesmente terrível com a tua lógica de sentimental.
Creio bem que terias acabado por me convencer de que as culpas eram todas minhas.
Gyssie baixou a cabeça, confusa.
‑ Não me queira mal por isso, peço‑lhe!
‑ Longe de tal! Fizeste‑me lembrar Valentine, quando qualquer coisa não estava de acordo com as suas concepções de rapariga francesa...
Prudentemente, Gyssie conservava‑se calada... Havia tantas coisas, na maneira de proceder de seu pai, que deveriam ter ferido sua mãe!
De Wriss, contudo, não parecia notá‑lo... Também tinha a sua moral e a sua honestidade. Se a maneira como pensava estava algumas vezes em desacordo com a sua consciência e a de Valentine, era questão de latitude, sem que a dupla vontade de ambos para tal tivesse contribuído.
Abertamente, com simplicidade, dizia a Gyssie:
‑ Fizeste‑me algumas censuras, no outro dia, às quais desejo responder. É preciso que nos expliquemos...
‑ Esqueça‑as, meu pai... Compreendo que ninguém tem autoridade suficiente para julgar os actos dos outros.
Sem querer, a frase fora hábil, encantando de Wriss, que aprovou:
‑ É muito justo... Nunca ninguém deve arvorar em censor!... Hoje, no entanto, quero responder às tuas objecções... Estou pronto a defender‑me, porque sabendo agora que és de verdade minha filha, não quero equívoco entre nós; porque... acima de tudo, a vontade de tua mãe nos junta e une na mesma saudade doce e cruel do seu desaparecimento.
De Wriss suspirou e depois disse com voz rouca:
‑ O Diário de tua mãe comoveu‑me profundamente... Evocou toda a minha juventude... Valentine foi a única mulher a quem amei... Nunca me casei...
Ao ouvir esta notícia pela própria boca de seu pai, pareceu a Gyssie que uma mão de ferro lhe apertava a garganta. Sob uma torrente de lágrimas, fechou os olhos, absolutamente transtornada pela emoção. Os seus pés, repentinamente cansados, ficaram como que pregados ao solo.
A mão de Wriss apertou com mais força o braço que tremia no seu, enquanto continuava:
‑ Falemos positivamente: sei, minha filha, tudo quanto julgas dever censurar na minha conduta para com ela... Tenho apenas uma coisa a dizer‑te: estava apaixonado... loucamente apaixonado por tua mãe!... Foi esse o móbil de todos os meus actos e a sua única desculpa... se eles disso têm necessidade... compreendes?
Gyssie escutara, pensativa. O pai, então, pousou meigamente a sua mão na dela.
‑ Talvez não possas compreender! Ainda não sabes o que é o amor?
Uma chama coloriu o rosto meigo da donzela, que se curvou um pouco para não deixar ver a sua perturbação.
‑ Foi por amor que partiu... e nos deixou, a minha mãe e a mim?
A voz, contra sua vontade, tremera; no entanto, não envolvia censuras, mas mais tristeza do que amargura.
O pai respondeu‑lhe simplesmente com factos: ‑ Fiz tudo quanto pude, nessa ocasião. Ficar em Paris, desobedecer a meu pai? Era a miséria negra... Tú ainda não sabes o que é, entre nós, a vontade dum pai! É necessário obedecer‑lhe cegamente ou renunciar a tudo! O meu pai era de ferro... Havia já alguns meses que me tirara a pensão! Para deixar alguma coisa a Valentine, tive que pedir emprestado! Uma vez nas índias Neerlandesas, poderia acudir às suas necessidades e às tuas e arranjar depressa uma situação que me libertasse da tutela paterna... Mandei dinheiro a primeira vez, depois a segunda...
O meu terceiro envio foi devolvido com a indicação terrível: «Destinatário desconhecido». Fiquei louco, não podia compreender... O fio que me ligava a Valentine estava cortado! A guerra, fechando as fronteiras,, destruindo os navios e os correios, transtornou tudo!... Quando consegui voltar a França, como poderia adivinhar que, numa longínqua aldeia bretã, isolada do resto do mundo, havia uma filha minha que crescia e... a mulher bem‑amada dormindo no cemitério...
De Wriss parou, visivelmente comovido, apesar do seu hábito de ficar impassível.
‑ Venho do seu túmulo... levei‑lhe flores!
A voz estrangulou‑se‑lhe completamente e ficou pensativo.
Perante esta comoção sincera que se exteriorizava na sua presença, Gyssie sentiu dissiparem‑se as suas últimas razões de queixa.
Num gesto espontâneo, rodeou com o braço livre o pescoço do pai e abraçou‑o com ternura.
‑ Amá‑lo‑ei por ela e por mim, meu pai! Como única resposta, envolveu com os seus braços vigorosos os ombros finos de sua filha e, ternamente, retribuiu a Gyssie as suas carícias, beijando‑lhe a testa pura e o rosto encantador que tão afectuosamente estendia para ele.
Era o primeiro beijo dum pai, respondendo ao primeiro beijo da filha...
O sol continuava a sua marcha majestosa por detrás das grandes árvores seculares...
Na solidão do parque deserto, diante da paisagem suave da charneca bretã que se alongava até ao infinito, sentados ao lado um do outro num banco musgoso, de Wriss e sua filha, de mãos dadas, aprenderam então a conhecerem‑se...
No horizonte, o sol retardava já a sua marcha enquanto pai e filha continuavam a conversar, tendo ainda muito que dizer...
Alex Le Gurum apareceu defronte deles sem ser pressentido.
Quando o jovem oficial examinava com surpresa o companheiro de Gyssie, esta, num impulso de alegria, exclamou ao vê‑lo:
‑ Oh! Alex! Como sou feliz? Conheci hoje grande felicidade: meu pai veio procurar‑me!...
E como o oficial não compreendesse logo de seguida o que significava a presença dum desconhecido junto daquela a quem amava, ela insistiu:
‑ Alex! Não percebe! A minha felicidade agora é completa, visto meu pai me ter sido restituído!
A fronte do oficial desenrugou‑se, tanto mais que, com o mesmo entusiasmo, Gyssie, voltando‑se para seu pai, dizia:
‑ Meu pai, permita‑me que lhe apresente o senhor Alex Le Gurum, sobrinho da minha madrinha e proprietário deste castelo... É também o meu noivo... Ficar‑lhe‑ia infinitamente reconhecida se o acolhesse favoravelmente... dando‑lhe um lugar no seu coração... Amamo‑nos e devemos casar brevemente... com o seu consentimento, querido pai!
Os dois homens apertaram as mãos em silêncio.
De Wriss admirava a bela expressão de franqueza e lealdade do oficial, enquanto este, muito comovido pela frase maravilhosa de Gyssie: «Amamo‑nos...», experimentava repentinamente uma viva simpatia por aquele cuja presença provocara semelhante confissão daquela a quem adorava.
Gyssie, no entanto, voltara‑se de novo para ele, continuando a falar, mas a sua voz tornara‑se ainda mais meiga, como para amortecer a mágoa que lhe iria provocar a notícia:
‑ Alex, o nosso casamento vai atrasar‑se... um pouco! Meu pai acaba de me fazer a maior das surpresas: deseja que eu vá com ele, numa viagem, a França, Bélgica e Holanda. Nunca nos meus sonhos ousei encarar tão grande felicidade: viajar com meu pai, numa intimidade deliciosa e na maior comunhão de ideias... Deve compreender, Alex, o que para mim representa a maravilhosa notícia: meu pai foi‑me restituído! E vou conhecer a maior alegria: viver com ele durante algumas semanas!
‑ Não devo senão felicitá‑la, Gyssie, por este feliz acontecimento... Eu, que conheci todas as suas angústias e todas as suas esperanças, sei bem a alegria que hoje deve sentir... A demora do nosso casamento... desgosta‑me um pouco, é certo; mas amo‑a demasiadamente para querer causar‑lhe algum aborrecimento... Esperarei tudo quanto queira... para fixar a data da minha felicidade. Uma vez que nada possa impedir a nossa união, tudo quanto a Gyssie fizer está bem feito.
O tom da sua voz era, como sempre, muito franco e muito sincero. Foi assim que chegou aos ouvidos de Wriss, que aprovou as prudentes palavras do rapaz. Mas, para Gyssie, que conhecia as mais insignificantes inflexões da voz do noivo, assim como os menores estremecimentos do seu rosto, adivinhou‑lhe a decepção e todas as dúvidas torturantes que a sua correcção lhe impedia de expressar.
Muito comovida, Gyssie sorriu para aquele que a amava com tanta abnegação e, fitando‑o meigamente, procurou reconfortá‑lo:
‑ Meu pai permitirá, certamente, Alex, que se encontre connosco nas principais cidades que vamos atravessar no nosso esplêndido cruzeiro.
‑ Excelente ideia ‑ aprovou de Wriss com indulgência, enquanto um sorriso de alívio distendia as feições expressivas do oficial.
‑ Desta maneira ‑ explicou Gyssie ‑ meu pai terá ocasião de travar melhor conhecimento consigo e de apreciar as suas qualidades... E, desta maneira, terei a certeza de que será um noivo modelo...
E começando a rir graciosamente:
‑ É que sou terrivelmente exigente!... Agora que encontrei o meu querido pai, Alex tem que se portar muito bem; vai saber o que custa desposar uma rapariga que possui um pai e um avô, afectuosos e vigilantes... Meu querido e bom amigo, creio que no fundo acabarei por ter dó de si, possuindo uma noiva como eu!
‑ Os bretões são muito fatalistas, querida Gyssie. Se o meu destino diz que terei de ser o seu marido, não lhe poderei fugir!
Curvou‑se e beijou com fervor a mãozinha de Gyssie, que acabava de apertar entre os seus dedos.
De Wriss olhava‑os, sorrindo a qualquer visão íntima. Ele, o céptico que não acreditava em coisa alguma senão nas próprias forças do homem, instintivas, as quais dominam o indivíduo, sentia‑se quase admirado por estar comovido... Seria talvez porque Gyssie lhe evocava uma outra imagem muito linda, e agora presente no seu pensamento, apesar de tantos anos decorridos... a de Valentine... A sua mocidade, a sua fé, o seu ardor... Tudo quanto ele próprio fora outrora, e que as decepções e as amarguras duma vida solitária, entregue ao único objectivo de ganhar dinheiro, lhe haviam feito esquecer.
De Wriss continuava a sorrir com indulgência e ternura à vida que para ele principiava... E fora devido aos atractivos duma criança, a sua filha, que aquele homem ia de novo aprender a amar e a crer...
A vida não iludiu Gyssie; seu marido era bem o homem afectuoso e bom que adivinhara nele.
Passaram a habitar em Paris uma parte do ano.
Gys de Wriss, assim como pela sua parte o juiz Chauzoles, acharam que a Bretanha estava demasiadamente longe de Lião e de Roterdão.
Paris, o ponto intermediário entre estas duas direcções opostas, foi por todos considerada como uma cidade estratégica de primeira ordem, para abrigar o casal encantador que ambos desejavam ver muitas vezes.
De Wriss deu, portanto, a sua filha, como presente, uma deliciosa vivenda que as árvores do parque da Muette limitavam num quadro de verdura.
Para mobilar o delicado ninho, o juiz Chauzoles separou‑se das suas arcas antigas e das suas melhores cadeiras; ele queria que em Paris a neta pudesse encontrar, um pouco, o ambiente ancestral dos velhos burgueses de Lião, de quem descendia.
E depois, todos foram felizes. Gyssie arranjava todos os pretextos para dar uma saltada até Lião, onde era acolhida com ternura pelo velhinho solitário, de quem era toda a alegria. Com ela, a quem acompanhava para toda a parte, Alex imprimia sempre a nota de alegria e de animação no casarão silencioso, a ponto de Marine se esquecer, enquanto escutava, de activar o serviço, o que o juiz Chauzoles parecia não notar.
De Wriss foi mais prático, como aliás o exigia o seu temperamento. Em casa de sua filha reservou para si um cantinho: um quarto e um gabinete de trabalho. Como os seus negócios o chamavam muita vez à capital francesa, podia, ao mesmo tempo, gozar a presença da filha e ocupar‑se dos seus próprios interesses.
Este plano, que lhe dava toda a independência, assegurando, também, ao casal, a sua liberdade, satisfez todos: ao pai, que amava profundamente a filha e a Gyssie, que o via frequentes vezes, sem ser obrigada a ir a Roterdão.
Há apenas Maryvonne, de quem ainda não falámos... Mas a velha ama era uma pessoa muito sensata: entre a Bretanha e a «princesa» não hesitou!
‑ Vou contigo para Paris, minha princezinha ‑ decidiu com surpresa de todos ‑ Terás tão pouco tempo disponível para satisfazer as tuas três afeições masculinas, que vão ser egoístas e exigentes, que é preciso alguém para te cuidar da casa... Será a minha tarefa, que bem suave me parecerá!... Quanto a Kerlan, lá iremos para o verão, nos meses de calor: a grande construção de granito guardará muito bem, sozinha, as suas empenas, as suas telhas de ardósia e o seu grande parque!...
E assim continuou a vida: linda e serena, por ser baseada na satisfação e na felicidade de todos...
Max du Veuzit
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