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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHA DO SANGUE - P.2 / Anne Bishop
FILHA DO SANGUE - P.2 / Anne Bishop

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

                             CAPÍTULO 8

Daemon baralhou as cartas enquanto Leiand olhava de relance para o relógio - outra vez. Estava a jogar às cartas há quase duas horas e, se seguisse a rotina, deixá-lo-ia sair dentro de dez minutos ou depois de mais uma jogada, o que quer que se alcançasse em primeiro lugar.

Era a terceira noite nessa semana que Leiand tinha solicitado a sua companhia quando se retirava. Daemon não se importava de jogar às cartas, mas incomodava-o que insistisse em jogar na sua sala de estar e não na sala para recepções no andar de baixo. E os comentários provocantes ao pequeno-almoço elogiando-o pelo facto de a ter entretido tão bem, incomodavam-no ainda mais.

 

 

 

 

 

 

Na primeira manhã após terem jogado às cartas, Robert tinha ficado vermelho como um pimento e soprado ao ouvir Leiand tagarelar até reparar na raiva silenciosa de Philip. Depois disso, uma vez que um escravo de prazer não era considerado um homem “verdadeiro” e, por isso, não era considerado um rival, Robert tinha acariciado alegremente a mão de Leiand e tinha-lhe dito que estava satisfeito por ela achar que Sadi era uma companhia tão agradável, uma vez que ele próprio tinha de se ausentar tantos serões em trabalho.

Philip, por outro lado, tornou-se brutamente seco, atirando o itinerário diário a Daemon e cuspindo ordens verbais. Juntou-se também a Daemon e às raparigas no passeio matinal, colocando Jaenelle e Wilhelmina de cada lado, forçando Daemon a seguir atrás.

Nenhuma das reacções dos homens agradava a Daemon e o facto de Leiand fingir não ter consciência da tensão crescente agradava-lhe ainda menos. Ela não era tão superficial ou frívola como tinha pensado inicialmente. Quando jogavam sozinhos às cartas e Leiand se concentrava no jogo, Daemon podia ver a astúcia serena, a perícia na dissimulação para que, pelo menos superficialmente, se inserisse no círculo social de Robert.

Nada disso explicava a razão pela qual o estava a usar para provocar. Philip já tinha bastantes ciúmes devido ao direito do seu irmão se deitar na cama de Leiand. Não tinha de exibir outro macho.

Daemon contornou a impaciência e concentrou-se nas cartas. A razão que levava Leiand a olhar para o relógio não lhe dizia respeito. Tinha as suas próprias razões para desejar que o serão terminasse.

Liberado, por fim, Daemon dirigiu-se à biblioteca de Arte. Encontrando-a vazia, reprimiu o desejo de destruir a biblioteca devido à frustração que sentia.

Esta era a parte mais irritante da súbita atenção de Leiand. Jaenelle dava sempre um passeio nocturno por volta da meia-noite, que terminava na biblioteca, onde Daemon a encontrava habitualmente agarrada a alguns dos antigos livros da Arte. As suas intrusões eram breves e nunca perguntava a razão pela qual deambulava pela casa àquela hora, sendo recompensado com fragmentos de conversa, igualmente breves, embora, por vezes, surpreendentes.

Aqueles fragmentos fascinavam-no. Eram uma mistura inquietante de inocência e de percepção obscura, de ignorância e de sapiência. Se, durante a conversa, Daemon conseguisse vislumbrar o livro e a secção que Jaenelle estava a ler, conseguia, por vezes e com dedicação, destrinçar um pouco do que ela dizia. Noutras alturas sentia como se tivesse nas mãos um punhado de peças de um quebra-cabeças do tamanho da própria Chaillot. Era exasperante - e era fascinante.

Quase tinha desistido de esperar quando a porta se abriu de repente e Jaenelle entrou à pressa. Desviando as ancas do caminho para que ela não roçasse nele abaixo da cintura - uma situação que Daemon tinha diligentemente evitado visto que não sabia qual seria a sua reacção física - pousou-lhe a mão no ombro para a deter e impedir de saltar quando se apercebesse de que estava ali mais alguém.

Sentiu um prazer estonteante quando Jaenelle não se mostrou surpreendida ao vê-lo. Enquanto Daemon fechava a porta e acendia a vela no abajur, a mão direita de Jaenelle afofava o cabelo, algo que fazia quando estava a pensar.

— Gostais de jogar às cartas? — perguntou quando se acomodaram no sofá em pele castanho-escura, mantendo uma distância discreta entre eles.

— Sim, gosto — respondeu cautelosamente. Não se passava nada nesta casa de que ela não tivesse conhecimento? A ideia não lhe agradou. Se sabia que jogava às cartas com Leiand, o que é que sabia, ou compreendia, sobre as visitas solicitadas ao quarto de Alexandra?

Jaenelle afofou o cabelo. — Se chover uma destas manhãs e não pudermos dar um passeio, talvez possais jogar às cartas comigo e com a Wilhelmina.

Daemon descontraiu-se um pouco. — Gostaria muito.

— Porque é que a Leiand não diz que estiveram a jogar às cartas? Por que é que faz com que pareça tão secreto? Ela perde sempre?

— Não, não perde sempre. — Daemon tentou não se mostrar atrapalhado. Por que razão fazia tantas malditas perguntas incómodas? — Creio que as senhoras gostam de parecer misteriosas.

— Ou podem saber de coisas que têm de permanecer escondidas.

Por um momento, Daemon esqueceu-se como respirar. A mão direita agarrou as costas do sofá e retraiu-se. Maldição. Tinha deixado que se infiltrasse. O veneno tinha de ser extraído do dente de serpente e não tinha dedicado nenhum do seu tempo para encontrar um veneno que fosse fácil de obter e que não o fizesse adoecer.

Jaenelle olhou atentamente para a mão de Daemon.

Subitamente incomodado, Daemon mudou de posição, deixando a mão cair descontraidamente no colo. Tinha mantido o segredo do dente de serpente durante séculos e não o iria agora revelar a uma miúda de doze anos.

Não tinha contado com a tenacidade nem com a força de Jaenelle. A mão dela agarrou-lhe o pulso e puxou-o. Cerrou o punho para esconder as unhas e puxou para trás, tentando soltar-se. Como não conseguiu, rosnou enfurecido. Era um som que tinha feito com que fortes homens recuassem e Rainhas pensassem duas vezes sobre o que lhe tinham ordenado para fazer.

Jaenelle olhou-o simplesmente nos olhos. Daemon afastou o olhar em primeiro lugar, tremendo ligeiramente ao abrir a mão para que ela a observasse.

O toque de Jaenelle era como o de uma pluma, delicado e entendido. Estudou um dedo de cada vez, interessando-se em particular no tamanho das unhas e, por fim, concentrou a atenção no anelar durante bastante tempo.

— Este está mais quente do que os outros — disse, quase para si própria. — E existe algo por baixo.

Daemon saltou, arrastando-a quase até ao chão até ela lhe largar o pulso. — Deixai estar, Senhora — disse com um tom de voz tenso, colocando as mãos com cuidado nos bolsos.

Pelo canto do olho, Daemon observou-a a instalar-se de novo no sofá e a estudar as suas próprias mãos. Parecia que estava a fazer um grande esforço para revelar algo e ocorreu-lhe que, também ela, estava a considerar o que poderia ser inadvertidamente revelado.

Finalmente, disse timidamente:

— Eu sei alguma Arte de curar.

— Não estou doente — respondeu Daemon, olhando fixamente em frente.

— Mas não estais bem. — Subitamente, a sua voz parecia anos mais velha.

— Não há nada de errado, Senhora — afirmou Daemon com veemência. — Agradeço-vos por vos preocupardes, mas não tenho qualquer problema.

— Parece que não são só as senhoras que gostam de parecer misteriosas — disse Jaenelle friamente, dirigindo-se à porta. — Mas há algo de errado com o vosso dedo. Príncipe. Aí a dor está presente.

Sentiu-se encurralado. Se fosse outra pessoa que tivesse descoberto o dente de serpente, estaria a cavar uma sepultura neste momento. Mas Jaenelle... Daemon suspirou, voltou-se e olhou para ela. Â distância, especialmente sob esta luz ténue, parecia uma criança tão frágil e simples, amistosa sem ser terrivelmente inteligente. À distância. Estando suficientemente perto para observar aqueles olhos a mudarem de azul celeste para azul safira, era difícil ter em mente de que se tratava de uma criança, era difícil não sentir um arrepio de apreensão face à inteligência aguçada e selvagem imediatamente abaixo da superfície e que tirava as suas próprias conclusões sobre o mundo.

— Ajudei-vos uma vez — disse calmamente, desafiando-o a negar. Demasiado surpreendido para responder, Daemon olhou-a fixamente. Desde quando saberia ela que tinha sido ele a ceder a sua força ao Sacerdote na noite em que solicitou ajuda, na noite em que Cornéiia o tinha açoitado? Ao perceber a resposta, apeteceu-lhe dar um pontapé em si próprio por ter sido tão estúpido. Desde quando? Desde a primeira manhã no recanto quando ela chegou a uma decisão em relação a Daemon.

— Eu sei — disse Daemon respeitosamente. — Fiquei muito agradecido, ainda estou, pela cura. Mas neste caso, não é uma ferida ou uma doença. Faz parte de quem sou. Não há nada que possais fazer.

Sentiu arrepios ao ser analisado minuciosamente.

Por fim, Jaenelle encolheu os ombros e deslizou para fora da biblioteca.

Daemon apagou a chama, ficando na escuridão bafienta e reconfortante por uns instantes antes de regressar ao seu quarto. O seu segredo estava agora nas mãos de Jaenelle. Nada faria para se proteger em relação ao que ela pudesse dizer ou fazer.

Uns minutos mais tarde, a sineta de Alexandra começou a tocar.

 

Saetan levantou os olhos do livro que estava a ler em voz alta e reprimiu um arrepio, faeneffe tinha estado a estudar atentamente a capa do livro ao longo da última meia hora, com o olhar vago que significava que estava a absorver a lição, tal como Saetan pretendia, mas estava também a considerar as informações de uma forma completamente diferente. Continuou a ler em voz alta, mas a sua mente já não se encontrava nas palavras.

Alguns minutos mais tarde, desistiu e pousou o livro, bem como os óculos em meia-lua, na mesa. Os olhos de ]aenelle não seguiram o livro, como previra. Estava concentrada na mão direita de Saetan, a testa enrugada devido à concentração, ao mesmo tempo que afofava o cabelo.

Ah. Embora fosse difícil de saber ao certo até que uma feiticeira atingisse a puberdade, Jaenelle apresentava uma forte propensão para ser uma Viúva Negra natural. Ainda levaria alguns anos até que as provas físicas fossem visíveis, mas o interesse que demonstrava exigia que o treino se iniciasse de imediato.

Erguendo uma sobrancelha com um ar divertido, Saetan estendeu a mão direita. — Pretendes examiná-la de perto, Senhora?

Jaenelle riu-se para Saetan distraidamente e pegou-lhe na mão.

Saetan observou-a a explorar a mão, voltando para um lado e para outro, até que os seus dedos ficaram pousados na unha do anelar.

— Por que razão usas as unhas compridas? — perguntou com uma voz afável ao examinar as unhas tingidas a negro.

— Por gosto — respondeu descontraidamente e aguardou para ver o que conseguiria detectar.

Jaenelle olhou-o demoradamente. — Existe algo por baixo desta. — Passou levemente com o dedo na unha do anelar.

— Sou uma Viúva Negra. — Virou a mão para que Jaenelle pudesse ver o que existia por baixo da unha, dobrou o dedo e observou os seus olhos a arregalarem-se ao ver o dente de serpente a deslizar para fora do seu invólucro. — É um dente de serpente. A minúscula bolsa de veneno ao qual está ligado fica debaixo da unha. Cuidado, — avisou, ao ver o dedo de Jaenelle a mover-se para lhe tocar. — O meu veneno pode já não ser tão forte como era, mas ainda é suficientemente potente.

Jaenelle prestou atenção ao dente de serpente durante um bocado. — O teu dedo não está quente. O que significa se o dedo ficar quente?

O ar divertido de Saetan escapuliu-se. Afinal, não era mera curiosidade. — Significa problemas, criança-feiticeira. Se o veneno não for usado, tem de ser extraído do dente de serpente com intervalos de algumas semanas. Caso contrário, o veneno engrossa, podendo até cristalizar. Se ainda se conseguir forçá-lo a sair pelo dente de serpente, não deixará de ser, no mínimo, um procedimento doloroso. — Encolheu os ombros, tristemente. — Se não se conseguir extraí-lo, a única forma de parar a dor será a remoção do dente e da bolsa.

— Por que razão alguém deixaria de extrair o veneno? Sacian voltou a encolher os ombros. — O veneno precisa de veneno. Quando a bolsa de veneno fica cheia, o corpo de uma Viúva Negra anseia por veneno de qualquer espécie. Mas tem de se ter cuidado com o que se introduz no corpo. O veneno errado pode ser tão fatal para uma Viúva Negra como o veneno é, no geral, para os restantes Sangue. O melhor veneno é o de si próprio. Habitualmente, as Viúvas Negras extraem o veneno da bolsa imediatamente antes do período da lua para que, durante os dias em que são obrigadas a repousar, o corpo, estimulado por algumas gotas do próprio veneno, volte a encher lentamente a bolsa, sem sentirem qualquer desconforto.

— E se tiver engrossado?

— Não serve. O corpo rejeita-o. — Saetan retirou a mão e juntou os dedos. — Criança-feiticeíra...

— Se não for possível utilizar o próprio veneno, existe algum veneno que seja seguro?

— Existem alguns venenos que se podem utilizar — disse cautelosamente.

— Posso levar um pouco?

— Para quê?

— Conheço alguém que precisa. — Jaenelle afastou-se de Saetan, subitamente hesitante.

A caixa torácica de Saetan encostou-se ao coração e aos pulmões. Debateu-se com a vontade de enfiar as unhas na carne e despedaçá-la. — Macho ou fêmea? — inquiriu melifluamente.

— Tem alguma importância?

— Claro que tem, criança-feiticeira. Se a destilação dos venenos não for realizada tendo em conta o género, os efeitos poderão ser desagradáveis. Jaenelle examinou-o com um olhar perturbado. — Macho.

Saetan ficou imóvel durante muito tempo. — Tenho algo que te posso dar. Por que não vais ver que petiscos te preparou a D. Beale? Vou demorar algum tempo.

Logo que Jaenelle ficou entretida a provar as iguarias da D. Beale, Saetan regressou ao seu gabinete privado no Reino das Trevas. Trancou a porta e verificou as divisões adjacentes antes de se dirigir à porta secreta no lambrim ao lado da lareira. A sua oficina estava trancada a Cinzenta, uma precaução sensata que mantinha Hekatah afastada mas que permitia que Mephis e Andulvar o contactassem. Enviou um pensamento para as velas no final do estreito corredor, trancou a porta atrás de si e dirigiu-se ao seu antro de Viúva.

Era aqui que preparava os venenos e tecia as teias entrelaçadas de paisagens oníricas e visionárias. Caminhando para o balcão que corria toda a extensão de uma parede, invocou uma pequena chave e abriu as portas em madeira maciça de um dos grandes armários que se encontravam por cima.

Os venenos estavam ordenados em filas arrumadas, os recipientes de vidro identificados com exactidão por uma etiqueta escrita em Idioma Antigo. Mais uma precaução, uma vez que Hekatah nunca tinha dominado o verdadeiro idioma dos Sangue.

Retirou um pequeno frasco com rolha e ergueu o vidro contra a luz. Abriu-o e cheirou-o, mergulhando depois um dedo na substância e provando-a. Era o que usava para si próprio. Não tendo nascido Viúva Negra, o seu corpo não tinha a capacidade de produzir veneno por si próprio. Voltou a colocar a rolha no frasco, olhou novamente para o armário e retirou um frasco de minúsculos flocos vermelho sangue.

Somente um floco ou dois de sangue-de-feiticeira seco adicionados à destilação e a dor sentida agora por Daemon seria uma doce carícia comparada à agonia que seria a sua última experiência entre os vivos. Tinham existido homens que se tinham aberto a eles próprios com uma faca e se tinham esventrado na tentativa de aliviar a dor. Ou este. Uma morte mais suave mas indubitavelmente certa. Porque agora tinha a certeza de que Daemon estava demasiado perto. Jaenelle estava a ajudá-lo, mas de que forma pagaria Daemon essa amabilidade?

Saetan hesitou. E no entanto...

Quando caminhava entre os vivos e ao criar os seus filhos, Mephis e Peyton, era uma nota e eles eram outras duas notas, harmoniosas mas diferentes. Também Lucivar era uma nota diferente, com maior frequência uma nota aguda. Saetan soube, desde a primeira vez que Lucivar se pôs de pé, as pequenas asas agitando-se no ar para o ajudar a equilibrar-se, que este filho seria o tormento do pai ao lançar-se ao mundo com aquele respeito arrogante dos eyrienos por todas as coisas que pertencem ao céu e à terra.

Mas Daemon. Desde o primeiro momento em que Saetan lhe pegou que tinha sentido, a um nível profundo e instintivo, que as Trevas cantariam a este filho da mesma forma que lhe cantavam a ele, que este filho seria o espelho do pai. Tinha transmitido a Daemon um legado e um fardo que nunca tinha pretendido dar a qualquer um dos seus filhos.

O seu nome.

Tinha desejado ensinar a Daemon a honra e a responsabilidade que implicavam usar Jóias tão devastadoras como as Negras. Porém, por causa da honra, não tinha estado presente. Porque acreditava no Protocolo e na Lei dos Sangue, tinha concordado mentir quando Dorothea lhe negou a paternidade. E, por ter aceitado a mentira, Daemon tinha sido criado como um bastardo e como um escravo, um pária sem lugar na sociedade dos Sangue.

Assim sendo, como poderia condenar Daemon à morte se tinha sido o seu fracasso na protecção da criança que contribuiu para formar o homem? Contudo, como poderia deixar de tomar essa opção quando a vida de Jaenelle estava em risco?

Saetan voltou a colocar o sangue-de-feiticeira seco e trancou a porta do armário.

Tinham existido muitas ocasiões durante a sua extensa vida em que tinha tido de tomar decisões difíceis, decisões implacáveis. Fez uso da mesma avaliação para esta.

Daemon tinha cedido as suas forças para ajudar Jaenelle quando ela precisou.

Não poderia pagar essa dívida com uma garrafa recheada de morte.

A honra impedia-o.

Regressou ao Átrio de Kaeleer, deu a destilação a Jaenelle e repetiu as instruções uma e outra vez até se certificar de que ela as sabia de cor e salteado.

 

Daemon estava sentado na ponta da cama, a mão direita aninhada no colo. A camisa estava colado ao corpo, inundada em suor resultante da febre e dador.

Nessa manhã, tinha tentado extrair o veneno do dente de serpente, todavia tinha engrossado mais rapidamente do que previra e, para além de inflamar a carne que já estava dorida, nada conseguira. Ao longo do dia, tinha conseguido resistir e, logo após o jantar, pediu para ser dispensado, declarando que não se encontrava bem, o que era verdade. Visto que Philip tinha ido jantar algures e ainda não tinha regressado e Robert estava ocupado com os seus habituais assuntos nocturnos, Alexandra e Leiand tinham sido compreensivas o suficiente para não fazerem exigências adicionais a Daemon.

Agora, à medida que a meia-noite se aproximava e que a dor era uma linha aguda e fina que percorria o dedo, subindo até ao cotovelo e escalando lentamente em direcção ao ombro, Daemon imaginou vagamente o que fariam Leiand e Alexandra quando o encontrassem. Poderia perder o dedo ou a mão, possivelmente até mesmo o braço, nesta altura. Se lhe fosse permitido escolher, preferia morrer com a sua própria dor. Seria preferível ao que Dorothea lhe infligiria após ter conhecimento do dente de serpente, especialmente porque duvidava de que fosse capaz de se proteger.

A porta do quarto abriu-se e fechou-se.

Jaenelle ficou à sua frente, solene e serena.

— Deixai-me ver a vossa mão — disse, estendendo a dela.

Daemon abanou a cabeça e fechou os olhos.

Jaenelle tocou-lhe no ombro. Os dedos dela seguiram infalivelmente a linha de dor do ombro até ao cotovelo, do cotovelo ao pulso, do pulso ao dedo.

Daemon abriu os olhos lentamente. Jaenelle segurou-lhe na mão, mas Daemon não a sentia, não tinha qualquer sensação no braço. Tentou falar mas foi silenciado pelo olhar obscuro que Jaenelle lhe dirigiu. Posicionando a pequena taça que utilizava para extrair o veneno do dente de serpente por baixo da mão de Daemon, Jaenelle deu pequenas pancadas no dedo, desde a articulação até à ponta da unha. Não sentiu dor de qualquer espécie, somente uma pressão crescente na ponta do dedo.

Logo, um leve som, como se um grão de sal tivesse caído na taça. Depois outro e outro e ainda mais outro antes de Jaenelle espremer do dente um fio fino e contínuo de veneno espesso.

— Posso recitar a lição que aprendi hoje? — perguntou Jaenelle baixinho enquanto prosseguia com as batidas no dedo. — Ajudar-me-á a lembrar.

— Se quiserdes — respondeu Daemon, devagar. Estava a ser difícil conseguir raciocinar, conseguir concentrar-se ao olhar espantado para a pequena espiral de veneno no fundo da taça, para os pequenos grãos cristalizados que tanta dor tinham provocado.

Quando Jaenelle começou a falar, a cabeça de Daemon desanuviou-se o suficiente para ouvir e compreender. Falou sobre o dente de serpente e sobre o veneno, sobre como uma Viúva Negra usa quatro gotas do seu próprio veneno misturadas com uma bebida quente para repor o equilíbrio do veneno de que o corpo necessita após a extracção do veneno, sobre os perigos de deixar que o veneno engrosse e assim por diante. Durante o tempo que levou a extrair totalmente o veneno do dente, tinha-lhe ensinado mais do que ele próprio tinha conseguido recolher em séculos de esforços. O facto de que o que Jaenelle lhe disse viesse contrariar grande parte do que ele próprio tinha aprendido, não o surpreendeu. Dorothea e a sua assembleia tinham-se esforçado por educar as suas Irmãs noutros Territórios, uma educação que Daemon sabia não ser outorgada pelas próprias. O que explicava a razão pela qual tantas potenciais rivais morriam em agonia.

Por fim, terminou.

— Pronto — disse Jaenelle com satisfação. Afofou as almofadas. — Agora tendes de deitar-vos e descansar. — Fez má cara ao olhar para a camisa de Daemon.

Sentiu que a sua mente estava a ficar pouco nítida. Já Jaenelle lhe tinha despido metade da camisa quando Daemon se apercebeu o que estava a acontecer, fazendo um esforço desajeitado para a ajudar. Segurando o tecido encharcado com a ponta dos dedos, torceu o nariz e fez a camisa desaparecer. Entrou na casa de banho com a taça e regressou com uma toalha, secou-o e encostou-o às almofadas.

Daemon fechou os olhos. Sentia-se leve, tonto e vazio até ao tutano. Sentiu também um desejo intenso por veneno, tão violento que quase teria ficado agradecido se a dor voltasse.

Ouviu água a correr na casa de banho e depois parou. Abriu os olhos deparando-se com Jaenelle junto à sua cama, segurando uma das canecas da Cozinheira. — Bebei isto.

Daemon aceitou a caneca desajeitadamente com a mão esquerda e bebeu, obediente. O seu corpo vibrou. Bebeu, agradecido, aliviado ao perceber que o desejo intenso começava a esvair-se. — O que é isto? — perguntou por fim.

— Uma destilação de venenos que são seguros para vós.

— Onde...

— Bebei — Precipitou-se de novo para a casa de banho. Terminou a bebida antes de ela regressar. Jaenelle colocou a taça limpa na mesinha de cabeceira, pegou na caneca vazia e fê-la desaparecer. — Agora, precisais de dormir. — Descalçou-lhe os sapatos e estendeu a mão em direcção ao cinto.

— Eu consigo despir-me — rosnou, envergonhado pelo tom áspero da sua voz, tendo ela feito tanto para o ajudar.

Jaenelle recuou. — Estais envergonhado.

Daemon examinou-a. Não estava a ser dissimulada. — Eu não me dispo à frente de jovens raparigas.

Jaenelle olhou-o de forma estranha e pensativa. — Muito bem. O dente de serpente ainda não se retraiu para o invólucro, por isso tende cuidado para que não fique preso. — Virou-se e dirigiu-se à porta.

Magoava ouvi-la a usar aquele tom de voz neutro e formal. — Senhora — chamou ternamente. Quando ela chegou junto à cama, Daemon pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios dando-lhe um leve beijo. — Obrigado. Se mais alguma vez quiserdes recitar outra lição para vos ajudar a recordá-la, terei muito gosto em ouvi-la.

Jaenelle sorriu. Adormeceu antes de ela sair do quarto.

 

Surreal tentou mover as ancas para uma posição mais confortável, mas o braço que a abraçava cerrou-se ainda mais e a mão que repousava no seu braço agarrou-a com uma força que a magoava.

Philip Alexander tinha marcado este serão com ela bem cedo nessa manhã. Tinha sido a única acção previsível de Philip. Não houve um jantar calmo, conversa, luzes apagadas, preliminares suaves antes de a cobrir. Possuiu-a, violentamente, sob as ofuscantes luzes das velas para que não houvesse qualquer ilusão sobre quem estava debaixo dele. Quando terminou, rolou de cima dela, devorou o jantar já frio, bebeu quase todo o vinho e voltou a possuí-la. Agora olhava fixamente para o dossel sobre a cama, comprimindo os dedos no braço dorido de Surreal.

Poderia tê-lo detido, Cinzenta contra Cinzenta. A Jóia Verde tinha-a protegido um pouco, mas não o suficiente para evitar que ficasse magoada. A Cinzenta era a sua arma surpresa e não pretendia abdicar dessa vantagem a não ser que fosse absolutamente necessário. Depois da segunda vez, nada mais tinha feito do que abraçá-la com firmeza junto a ele, porém Surreal sentia a raiva que existia nele, observou as Jóias a brilhar ao mesmo tempo que absorviam a energia.

— Mataria aquele cabrão, se pudesse — disse Philip entre dentes. — Age como se nada estivesse a acontecer, enquanto ela...

— Quem? — Surreal tentou erguer a cabeça. — Quem é cabrão? — Se tivesse a mínima ideia do que o teria levado a agir desta forma, talvez conseguisse passar o resto da noite.

— O presente que Dorothea SaDiablo enviou a Alexandra. Um glaciar é mais quente do que ele e, apesar disso, Leiand...

Surreal cheirou-lhe a sangue. Virou a cabeça só um pouco. Philip, com a fúria, tinha mordido o lábio.

Já tinha percebido que a ligação de Philip à corte de Angelline tinha mais a ver com a filha do que com a mãe. Não era isso que significava o quarto completamente às escuras, poder fingir que estava a fazer amor calmamente com Leiand? Teriam existido acasalamentos apressados quando Robert Benedict não estava, acasalamentos tão dominados pelo medo de serem descobertos que não tinha existido qualquer prazer? Agora, Sadi estava lá e Leiand podia ser fisicamente satisfeita por outro macho sob o olhar aprovador e vigilante de Robert.

Surreal estremeceu, recordando-se demasiado vivamente como era ser satisfeita pelo Sádico.

— Frio? — perguntou Philip, a voz agora um pouco mais dócil Surreal deixou que Philip os aconchegasse com a colcha. Agora que sabia onde procurar, não seria difícil chegar a Sadi - se quisesse. Todavia, havia aquela feiticeira ruiva no Altar de Cassandra que o procurava, e ela estava em dívida para com ele.

Surreal levantou-se, apoiando-se num cotovelo, lutando contra a mão de Philip que a prendia. Afastou o cabelo do rosto, deixando-o cair como uma longa cortina negra sobre os ombros e as costas. — Philip, por que razão acreditas que Sadi está a servir a Senhora Benedict?

— Ela convoca-o publicamente para o seu quarto para que toda a família e a maior parte do pessoal saibam que ele está com ela — Philip rosnou. A raiva fazia com que os seus olhos cinzentos parecessem fixos e frios. — E durante o pequeno-almoço, ela põe-se a tagarelar sobre como ele a divertiu.

— Ela diz mesmo que ele a divertiu? — Surreal atirou-se para trás, rindo. Maldição. Leiand era mais esperta do que pensava.

Philip atirou-se a ela, prendendo-a à cama. — Achas isto engraçado? — proferiu violentamente. — Achas que é divertido?

— Ah, meu doce, — disse Surreal, contendo o riso. — Do que sei sobre o Sadi, ele pode ser muito interessante fora da cama, mas raras vezes o é na cama.

O aperto de Philip afrouxou um pouco. Franziu a testa, intrigado.

— Não é a primeira, sabes — disse Surreal, com um sorriso.

— A primeira quê?

— A primeira mulher a chamar a atenção de forma tão ostensiva em relação ao uso de um escravo de prazer. — Abafou o riso. Philip ainda não tinha percebido.

— Porque...

— Para que, depois de se tornar uma situação habitual e as criadas pararem de espalhar bisbilhotices sobre a roupa da cama em desalinho visto que a história já tem mofo, o escravo possa ser dispensado discretamente e o amante da senhora possa passar algumas horas com ela, sem pressas, sem levantar suspeitas. — Surreal olhou-o nos olhos. — E a Senhora Benedict tem um amante, não tem?

Philip olhou-a fixamente durante uns momentos. Começou a desenhar um sorriso mas retraiu-se ao repuxar o lábio cortado.

Surreal empurrou-o duma maneira brincalhona, rolou para fora da cama e dirigiu-se descontraidamente para a casa de banho. Acendeu a luz e examinou o seu reflexo. O braço tinha nódoas negras, bem como os ombros, infligidas pelas mãos de Philip e nódoas negras no pescoço infligidas pêlos dentes. Estremeceu devido à dor penetrante entre as pernas. Deje iria perder os seus serviços por uns dias.

Quando regressou ao quarto, Philip tinha arrumado a cama e estava deitado confortavelmente de costas, com as mãos debaixo da cabeça. A Jóia Cinzenta brilhou suavemente quando afastou os cobertores para a deixar entrar na cama. Examinou as nódoas negras, acariciando-as delicadamente com os dedos.

— Magoei-te. Desculpa.

— Riscos profissionais — retorquiu Surreal, com uma doçura venenosa. Philip merecia uma pequena faca espetada nas costelas.

Philip puxou a cabeça de Surreal para o seu ombro e voltou a aconchegar os cobertores. Surreal sabia que ele estava a tentar encontrar uma forma de regressar a terreno familiar, de eliminar a dor que tinha causado. Deixou que o silêncio se prolongasse quase até ao intolerável, não fazendo qualquer esforço para o ajudar. Continuava a ser prostituta pois era a forma mais fácil de se aproximar dos machos, aprender os seus hábitos e matá-los. Uma vez que Philip estava presente em apenas um dos seus dois cadernos, não sendo provável que viesse a constar do outro, não se importaria se ele nunca mais voltasse.

Sadi representava um problema diferente. Tinha de encontrar uma forma de se encontrar com ele, sem despertar suspeitas. No entanto, isso seria algo a ponderar depois de dormir um pouco.

— Não comeste nada — disse Philip baixinho.

Surreal aguardou um par de batidas de coração antes de aceitar a oferta de paz. — Pois não, e estou esfomeada. — Enviou um pedido à cozinha de duas boas costeletas com todos os acompanhamentos e outra garrafa de vinho. A pesada conta que Deje lhe iria apresentar iria deixá-lo atrapalhado, mas, ao mesmo tempo, iria aliviá-lo de alguma da culpa por tê-la magoado.

— Eu não me preocuparia com o Sadi — disse Surreal ao sair da cama e enrolar um roupão à volta do seu elegante corpo. — Se bem que — que agradável era ver aquele imediato brilhozinho de preocupação nos olhos de Philip — um amante que peça a sua discrição e participação silenciosa terá de ter presente que Sadi recorda os favores da mesma forma que recorda as desconsiderações.

Sorriu ao ouvir tocar o obelisco em cima da mesa e as duas refeições surgiram em cima da mesa. Deixá-lo ruminar sobre esta consideração, pensou, ao cortar a costeleta.

 

Daemon deslizou para a sala dos pequenos-almoços mas parou de imediato ao ver Leiand e Philip absorvidos a conversar calmamente. As costas de Philip estavam voltadas para a porta e, conforme falava, a sua mão deslocava-se suavemente para cima e para baixo ao longo do braço de Leiand. Os olhos de Leiand, enquanto o ouvia, estavam iluminados pelo fogo de uma mulher apaixonada.

Estava vestida com o equipamento de equitação, o cabelo apanhado deixando ver o rosto, de uma forma simples e que a favorecia. Sim, por baixo dos folhos e dos enfeites que usava para as senhoras da sociedade, batia o coração de uma feiticeira.

Ao sorrir sobre algo que Philip lhe dizia, olhou por cima do ombro deste e viu Daemon. Os seus olhos gelaram. Afastando-se de Philip, curigiu-se à mesa do buffet e começou a servir-se.

Os olhos de Philip endureceram ao reparar em Daemon, mas conseguiu produzir um sorriso e uma saudação respeitosa.

Ora, ora, ora, pensou Daemon ao servir-se também. Andava algo no ar. Deveria ir montar com Leiand nessa manhã, mas reparou que Philip também estava vestido para montar.

Só quando o pequeno-almoço terminou e Leiand já tinha saído para a cavalariça, é que Philip falou directamente para Daemon. Parecia um anfitrião educado que se dirigia a um hóspede que não era muito bem-vindo. — Não há razão para saíres, a não ser que assim desejes, claro. Uma vez que tinha planeado montar esta manhã, a Senhora Benedict não necessita de outro acompanhante.

Ou de um pau-de-cabeleira, Daemon pensou enquanto bebericava o café. De um dia para o outro a atitude de Philip tinha-se alterado passando de seco e ciumento a este esforço de boa educação. Porquê? Não que interessasse. Sabia perfeitamente o que fazer dispondo de uma manhã livre – e seria realmente livre estando Leiand e Philip fora de casa. Alexandra estava de visita a uma amiga e só regressaria depois de almoço e Robert, sempre muit3 ocupado com os seus “negócios” que lhe tomavam tanto tempo, passava o mínimo de tempo possível na propriedade.

Na verdade, à medida que aquele delicioso odor negro se infiltrava novamente nas paredes da mansão dos Angelline, Robert parecia cada vez mais desconfortável por ali permanecer. Tinha chegado ao ponto em que Daemon sabia sempre quando Robert tinha regressado, mesmo que não o tivesse visto, pois no átrio de entrada e nas escadas que levavam aos aposentos da família, pairava sempre o ligeiro fedor a medo.

Daemon voltou a servir-se de café e encolheu os ombros em resposta à sugestão de Philip. — Não me importo de não montar esta manhã — disse com o seu tom de voz entediado de corte. — Provavelmente sois um cavaleiro mais entusiasta, o que fará de vós uma companhia mais adequada.

Os olhos de Philip semicerraram-se, mas nada havia na voz entediada e melíflua de Daemon que fornecesse qualquer indicação sobre um segundo sentido.

Daemon sorriu e alcançou outra torrada. — Não deveis fazer a senhora esperar. Príncipe Alexander.

À porta, Philip hesitou. Daemon barrava manteiga na torrada com movimentos lentos e sensuais, ciente de que Philip o observava e imaginava com inquietação algo diferente de uma torrada por baixo da sua mão. Ora, se Philip acreditava realmente que alguém como a Leiand poderia fazer palpitar um Senhor da Guerra de Jóia Negra, o tolo merecia sentir-se aterrorizado.

Logo que Philip saiu, Daemon dirigiu-se ao seu quarto e mudou rapidamente de roupa. Wilhelmina estava com Graffnas suas aulas; a Cozinheira estava na cozinha, a beber uma chávena de chá e a planear a ementa do almoço e os criados andavam atarefados de um lado para o outro ocupados nas suas tarefas. Só restava uma pessoa.

Daemon assobiava uma melodiazita alegre ao dirigir-se ao recanto privado com o objectivo de passar uma manhã agradável com a sua Senhora.

Tinha vasculhado os jardins, vasculhado a casa, entrado e saído da cavalariça, verificado a biblioteca de Arte, encontrando-se agora na ala das crianças, sentindo-se frustrado e preocupado. Não a conseguia encontrar. Tinha até verificado o quarto de Jaenelle, batendo levemente à porta não fosse ela estar a descansar ou querer alguma privacidade. Não obtendo resposta, tinha-se esgueirado para dentro do quarto para uma rápida vista de olhos.

Daemon mordeu o lábio inferior enquanto ouvia Graff a descompor Wilhelmina. Tinha-se perguntado qual a razão pela qual aquela severa mulher, não sendo grandemente instruída, estava a ensinar Arte a uma jovem feiticeira de uma família tão poderosa, até saber que tinha sido contratada por Robert Benedict. Uma vez que Wilhelmina não tinha parentesco directo com Leiand e Alexandra, a preferência de Robert tinha anulado as objecções delas. Daemon admitiu que Graff era uma boa escolha se a intenção fosse adulterar as sensibilidades de uma rapariga relativamente ao que era e ao poder que continha, de tal maneira que nunca viria a sentir qualquer alegria na Arte ou nela própria. Sim, Graff tinha sido uma escolha excelente para esmagar o ego de uma menina e torná-la sensível à brutalidade de um tipo mais íntimo quando fosse um pouco mais velha.

Daemon aproximou-se da sala de aulas para verificar se Jaenelle poderia ali estar quando Graff berrou:

— Esta manhã estais uma nulidade. Uma nulidade completa. Chamais a isso Arte? Ide. A aula acabou. Ide fazer algo de útil. Algo que consigais. IDE!

Wilhelmina saiu porta fora a correr, esbarrando contra Daemon, que a segurou pêlos ombros, firmando os pés para conseguir manter os dois em pé. Sorriu debilmente em agradecimento.

— Com que então, estais livre — disse Daemon sorrindo também. — Onde está...

— Ah, que bom, estais aqui — disse Wilhelmina em voz alta e com um tom autoritário. — Ajudai-me a praticar o meu dueto. — Dirigiu-se à sala de música.

— Primeiro, dizei-me onde...

Wilhelmina recuou e pisou firmemente com o calcanhar os dedos dos pés de Daemon. Resmoneou ao sentir a dor mas nada disse pois Graff estava agora de pé, à porta, a observá-los com atenção.

Wilhelmina desviou-se. — Oh, desculpai. Magoei-vos? — Sem aguardar a resposta, arrastou-o para a sala de música. — Vinde, quero praticar.

Ao chegarem à sala de música, pôs-se ao piano e começou a procurar o dueto que estava a aprender. — Podeis tocar a parte grave — disse colocando as mãos nas teclas.

Daemon coxeou até ao banco e sentou-se. — Menina Wil...

Wilhelmina começou a tocar, abafando a voz de Daemon. Continuou durante alguns compassos e, de seguida, virou-se para ele, num tom acusatório: — Não estais a tocar.

Tinha sido uma imitação tão perfeita da voz de repreensão de Graff que os lábios de Daemon se crisparam para produzir uma rosnadela ao mesmo tempo que se virava para a encarar, mas ao olhar para ela, viu que o seu rosto tinha um ar de súplica por compreensão e os seus olhos estavam vidrados de medo. Rangendo os dentes, colocou as mãos nas teclas. — Um, dois, três, quatro. — Começaram a tocar.

Ela estava bastante assustada e tinha algo a ver com ele. Enquanto seguiam aos tropeções pelo dueto, reparou que Graff estava à porta da sala de música, a ouvir, a observar, a espiar. Terminaram o dueto e voltaram ao início. Quanto mais tocavam e quanto mais Graff os observava, mais Wilhelmina deturpava a música até Daemon se questionar se estariam a tocar a mesma composição. Decerto que a pauta que estava a ler não tinha nada a ver com o que estava a ouvir, estremecendo mais do que uma vez ao ouvir os sons que eram produzidos.

Quando Wilhelmina recomeçou o dueto, obstinadamente, pela terceira vez, Graff retirou-se com uma careta e Daemon deu consigo a invejar amargamente a habilidade de Graff para se ir embora. Porém, logo que ela saiu, Wilhelmina começou a tocar mais suave e calmamente.

— Jamais pergunteis por Jaenelle — disse tão baixinho que Daemon teve de se inclinar para a ouvir. — Se não a encontrardes, não deveis perguntar a ninguém por ela.

— Porquê?

Wilhelmina olhou fixamente em frente. A sua garganta movimentava-se convulsivamente, como se se estivesse a engasgar nas palavras. — Porque se descobrirem, pode ter problemas e eu não quero que ela tenha problemas. Não quero que volte para Briarwood. — Parou de tocar e voltou-se para ele, os olhos cheios de lágrimas. — E vós quereis?

Afastou-lhe o cabelo do rosto e acariciou-lhe levemente a face. — Não, não quero que volte para lá. Wilhelmina... Onde está ela?

Wilhelmina recomeçou a tocar, mas baixinho. — Ela agora tem aulas de manhã. Às vezes vai e vê amigos.

Daemon franziu o sobrolho, intrigado. — Se tem aulas, com certeza o vosso pai ou Alexandra ou Leiand trataram de...

— Não.

— Mas uma criada deve acompanhá-la e...

— Não.

Ao ponderar sobre estas informações, as mãos de Daemon cerraram-se lentamente. — Ela vai sozinha? — disse, finalmente, mantendo a voz cuidadosamente neutra.

— Sim.

— E a vossa família não sabe sequer que ela vai?

— Não, não podem saber.

— E vós não sabeis onde é que ela vai ou quem lhe lecciona estas aulas?

— Não.

— Mas se a vossa família descobrisse sobre as aulas ou quem a está a ensinar, poderiam voltar a pô-la no hospital? O queixo de Wilhelmina estremeceu. — Sim.

— Compreendo. — Ah pois, compreendia mesmo. Cuidado com o Sacerdote. Ela pertence ao Sacerdote. Tinha sido negligente por se esquecer de um rival tão assombroso. Porém, ela tinha uma maneira inocente de deslumbrar um homem. Tinha-se esquecido do Sacerdote. Estaria ela com ele neste momento? O que poderia oferecer Saetan, um dos mortos vivos, que fosse preferível ao que ele, um homem vivo, lhe poderia oferecer? Todavia, ela ainda não estava preparada para o que um homem podia oferecer. Tentaria Saetan mante-la afastada dele? Se a família dela alguma vez soubesse do Senhor Supremo...

Nesta família, existiam demasiadas tendências divergentes, demasiados segredos. Alexandra tentava equilibrar-se no gume da faca política, tentando manter-se como o poder dominante de Chaillot ao mesmo tempo que a posição de Robert no conselho dos machos que se opunha constantemente a ela, enfraquecia a confiança de que precisava das outras Rainhas de Chaillot. A rivalidade entre Robert e Philip era um segredo às claras entre a aristocracia dos Sangue em Beldon Mor e a inaptidão de Alexandra para controlar a própria família estava a levantar dúvidas sobre a sua capacidade de governar o Território. Para além disso, havia o embaraço social de ter uma neta que volta e meia era internada num hospital para crianças emocionalmente perturbadas, desde os cincos anos.

E se a isso acrescesse o facto dessa mesma criança admitir que o Senhor Supremo do Inferno, o Príncipe das Trevas, o Príncipe dos Senhores da Guerra mais poderoso e mais perigoso da história dos Sangue, estava a ensinar-lhe a Arte.

Mesmo que pensassem que era mais outra história, trancá-la-iam de vez para evitar que contasse a alguém que lhe desse atenção. E se, pelo contrário, desta vez acreditassem nela, o que lhe poderiam fazer para que o Senhor Supremo perdesse o interesse, mantendo-se a eles próprios seguros? E Daemon tinha a certeza de que se passavam coisas em Beldon Mor que Saetan não estaria disposto a,deixar passar ou a perdoar.

Daemon levantou os olhos e suspirou de alívio.

Jaenelle estava à porta, vestida com o equipamento de equitação. O cabelo louro estava entrançado e no topo da cabeça tinha um chapéu de equitação, inclinado sobre a orelha. — Vou montar. Queres vir?

— Oh, claro! — exclamou Wilhelmina alegremente. — Já terminei de ensaiar.

Ao observar Wilhelmina a correr para fora da sala, Daemon sentiu um sabor amargo na boca. As cinzas de um sonho. No fim de contas, era o Prostituto de Hayll, um escravo de prazer, um divertimento para as senhoras, independentemente da idade, um passatempo. Fechou a pauta e fingiu endireitar a pilha de folhas. Porque haveria de esperar que Jaenelle sentisse algo por ele? Porque estaria agora magoado como uma criança que não foi escolhida para o jogo?

Daemon voltou-se. Jaenelle estava junto ao piano, a examiná-lo, um olhar intrigado a enrugar-lhe a testa.

— Não montais a cavalo. Príncipe?

— Sim, monto.

— Ah. — Ponderou. — Não quereis vir?

Daemon pestanejou. Olhou para os olhos cor de safira, límpidos e belos, de Jaenelle. Não tinha sequer considerado excluí-lo. Daemon sorriu, dando um puxão brincalhão na trança de Jaenelle. — Sim, gostaria muito.

Voltou a examiná-lo. — Não tendes outras roupas?

Daemon engasgou-se. — Perdão?

— Estais sempre vestido dessa forma. Daemon olhou para o seu fato preto perfeitamente talhado e para a camisa de seda branca, apanhado de surpresa. — O que tem de mal a forma como me visto?

— Nada. Mas se usardes essa roupa, ficareis todo amarrotado. Daemon começou a tossir e bateu no peito para dar tempo a si próprio para engolir o riso. — Tenho alguns fatos de equitação — arquejou.

— Ah, bom. — Os olhos de Jaenelle cintilaram, divertidos. Diabinha. Sabes porque me engasguei, não sabes? És uma criaturazinha impiedosa a escarnecer da vaidade de um homem.

Jaenelle saltitou para a porta. — Despachai-vos, Príncipe. Encontramo-nos na cavalariça.

— O meu nome é Daemon — resmungou suavemente.

Jaenelle girou sobre os calcanhares, fez uma vénia insolente e riu-se antes de desatar a correr pelo corredor.

Daemon dirigiu-se ao quarto tão depressa quanto permitiam os seus ainda doridos dedos dos pés. Chamava-se Daemon e não Príncipe, resmungou para si próprio ao mudar de roupa. Parecia que estava a chamar um maldito de um cão mesmo que esse fosse o seu título adequado de Protocolo. Não faria mal se o tratasse pelo nome, mas não o fazia pois ele era idoso.

Daemon parou ao calçar as botas. Começou a rir-se. Se ele era idoso, o que acharia Jaenelle do Sacerdote?

Quando Daemon chegou à cavalariça, encontrou dois póneis selados bem como uma égua cinzenta e o Dançarino Negro. Sem ter a certeza sobre qual o cavalo que lhe estava destinado, aproximou-se de Andrew. O moço da cavalariça sorriu hesitantemente para Daemon antes de se baixar para voltar a verificar a sela do Dançarino.

— Tende cuidado — disse Andrew baixinho. — Hoje está agitado.

— Comparado a quê? — Perguntou Daemon friamente.

Andrew encolheu os ombros.

Os olhos de Daemon semicerraram-se. — Há alguma razão para esta agitação?

Os ombros encolheram-se mais um pouco.

Sentindo a tensão a percorrer o pátio, Daemon olhou à volta.

Jaenelle conversava calmamente com um dos póneis. Wilhelmina estava por perto, aguardando que alguém a ajudasse a montar. As suas bochechas estavam coradas devido ao ar fresco de Outono e à excitação de cavalgar, mas continuava a olhar de relance na direcção de Daemon, recusando-se a pedir-lhe. — Mãe Noite — murmurou entre dentes, dirigindo-se a Wilhelmina para a ajudar.

Depois de ajudar Wilhelmina, Daemon virou-se para auxiliar Jaenelle, mas ela já estava no seu pónei, sorrindo abertamente para Daemon.

— É melhor irmos andando — disse Andrew nervosamente. Quando Daemon se voltou para lhe responder, olhou de relance para o pátio. Todos os moços da cavalariça estavam completamente imóveis, a observá-lo. Todos sabem, pensou ao montar o Dançarino Negro. Era o precioso segredo de todos eles.

Guinness saiu do escritório e dirigiu-se a eles, com a cabeça baixa e os ombros encolhidos como se estivesse a caminhar contra uma forte ventania. Quando chegou perto deles, mordeu as bochechas durante um minuto, pigarreou umas quantas vezes e olhou na direcção deles, sem olhar directamente para ninguém. Voltou a pigarrear. — Ora bem, as senhoras há algum tempo que não saem, por isso quero que dêem um agradável e calmo passeio a cavalo. Nada de cavalgar por terrenos acidentados, nada daqueles grandes saltos. Só a trotar. E ali o De... Dançarino Negro também não tem saído muito - olhou com um ar culpado para Daemon — por isso não quero que o deixem fazer o que ele quer senão aleija-se. Percebido?

— Nós percebemos, Guinness, — disse Jaenelle calmamente. A sua voz parecia séria, mas os seus lábios estremeciam e os seus olhos cintilavam.

— A Senhora Benedict e o Príncipe Alexander ainda estão a cavalgar, por isso prestem atenção, ouviram? — Guinness mordeu a bochecha. Acenou com uma mão e disse bruscamente:

— Agora vão lá.

As raparigas tomaram a dianteira, conduzindo os póneis tranquilamente pelo pátio e ao longo do caminho, com Daemon e Andrew atrás.

— Não me lembro do Guinness alguma vez ter chamado este cavalo pelo nome — disse Daemon.

Andrew encolheu os ombros e sorriu. — A Menina Jaenelle não gosta que lhe chamemos Demónio. Diz que o faz ficar triste.

— Sabes, Andrew — disse Daemon com uma voz calma e melíflua, — se este cavalo lhe partir o pescoço, eu parto-te o teu.

Andrew soltou um riso abafado. Daemon levantou uma sobrancelha perante a resposta.

— Aguardai até os verdes juntos. Vale a pena ver — disse Andrew. — Quando chegarmos à árvore, podeis ficar com a égua. Acho que o pónei não vos conseguirá carregar.

— Muito atencioso da tua parte — disse Daemon friamente. Mantiveram o passo até à árvore. Quando Andrew e Daemon ali chegaram, já Jaenelle tinha desmontado e aguardava. O coração de Daemon começou a bater desmesuradamente perante o olhar afável e cintilante de Jaenelle, para logo se sentir esmagado por uma mão com garras, ao perceber que o olhar não lhe era dirigido.

O garanhão relinchou baixinho e impeliu a cabeça para a frente. — Olá, Dançarino — disse Jaenelle cuja voz era uma carícia meiga e sensual.

Doces Trevas, daria a sua alma se a voz de Jaenelle soasse daquela forma quando falava com ele, pensou Daemon ao desmontar. Ajustou os estribos para ela. — Ajudo-vos a montar?

A cabeça de Andrew agitou-se em movimentos rápidos como se a pergunta fosse completamente inapropriada. Talvez fosse. Daemon tinha a sensação de que Jaenelle não necessitaria de ajuda, mas o que não admitiria a ninguém em troca do que quer que fosse era que queria - precisava – de lhe tocar de uma forma inocente, mesmo que isso significasse sentir o pequeno pé dentro da bota nas suas mãos em concha.

Os olhos de Jaenelle encontraram os seus e fixaram-nos. Deixou-se mergulhar naquelas lagoas cor de safira e soube que ela vira o que ele não queria admitir.

— Obrigada... Daemon. — A voz de Jaenelle era uma carícia leve como uma pena que descia pelas costas de Daemon, incendiando-o e aplacando-o.

Um pouco zonzo, Daemon colocou as mãos em concha e inclinou-se. Por um brevíssimo instante, Jaenelle colocou o pé nas suas mãos. Depois, ergueu-o ligeiramente e impulsionou-se para a sela.

Daemon ficou a olhar espantado para as mãos vazias, endireitando-se devagar. Os olhos que o fitavam estavam com um ar divertido, mas não pertenciam a uma criança.

— Vamos? — perguntou Jaenelle serenamente.

Enquanto Daemon subia para a égua, Jaenelle fez o chapéu desaparecer e desfez a trança, deixando que o cabelo flutuasse como uma onda dourada. Partiram em direcção ao campo, Jaenelle cavalgando à frente, a sua voz sussurrante a flutuar na brisa.

Aliviado por não ver Philip e Leiand no campo, Daemon levou algum tempo a aperceber-se que o Dançarino Negro trotava bem distante deles, passando a um galope devorador de terra.

— Estão a dirigir-se ao fosso! — No momento em que Daemon começava a instigar a égua para cortar caminho pelo campo e interceptar o garanhão, Andrew agarrou-o pelo braço.

— Vede — disse Andrew.

Daemon rangeu os dentes e manteve a égua parada.

O Dançarino Negro estava a alcançar rapidamente o fosso, a sua cauda negra e o cabelo dourado de Jaenelle esvoaçando atrás deles como bandeiras de glória. Quando estavam próximos da vala, reduziu a velocidade e fez uma curva pronunciada e tranquila de volta ao centro do campo onde estavam colocados os pequenos obstáculos. Saltou os pequenos obstáculos de madeira como se fossem tijolos, elevando-se e exibindo-se, e, ao trotar em direcção a eles, Daemon pôde ouvir o riso de deleite, argentino e aveludado, produzido por Jaenelle.

Jaenelle virou o garanhão para circundar novamente o campo. Daemon espicaçou a égua e começaram a andar à volta a um ritmo calmo, lado a lado, seguidos por Wilhelmina e Andrew.

Ao efectuarem um círculo completo, Jaenelle fez o Dançarino seguir a passo. — Não é maravilhoso? — Afagou-lhe o pescoço transpirado.

— Quando o montei, mostrou-se um pouco mais ambicioso — disse Daemon secamente.

Jaenelle franziu a testa. — Ambicioso?

— Mmm. Queria ensinar-me a voar.

Jaenelle riu-se. O som cantou-lhe no sangue. Dirigiu-se agora a Daemon. Sob aquela boa disposição, o olhar estava perturbado e triste. — Talvez gostasse mais de vós se falásseis com ele - e se ouvísseis.

Daemon queria dizer algo frívolo e animado para afastar aquele olhar dos olhos de Jaenelle, mas houve algo na forma como o garanhão estremeceu repentinamente as orelhas, parecendo escutá-los, que lhe espicaçou os nervos. — As pessoas falam com ele o tempo todo. Provavelmente sabe mais segredos dos moços das cavalariças do que qualquer outro ser vivo.

— Pois, mas não o ouvem a ele, pois não?

Daemon manteve-se sereno, tentando estabilizar a respiração.

— Ele é Sangue, Daemon, ainda que pouco. Não o suficiente para ser aparentado, mas demasiado para ser... — Fez um pequeno gesto com a mão que abarcou a égua e os póneis.

Daemon humedeceu os lábios, mas a boca estava seca. Lembrou-se da história da Cozinheira sobre os cães. — O que quereis dizer, aparentado?

— Sangue, porém de maneira diferente. Sangue, sem ser humano. Aparentado é... parecido mas diferente.

Daemon olhou para cima. Umas escassas nuvens de aspecto fofo deslizavam no céu profundamente azul de Outono e o sol brilhava, enviando os derradeiros raios quentes. Não, o dia físico não tinha mudado. Não tinha sido isso que lhe tinha causado arrepios. — É híbrido — disse, por fim, sentindo relutância em admitir a verdade. — Metade Sangue, metade plebeu, para sempre preso entre os dois.

— Sim.

— Mas conseguis percebê-lo, falar com ele?

— Escuto-o — Jaenelle espicaçou o Dançarino para que trotasse. Daemon não deixou que a égua os seguisse, ficando a observar a rapariga e o cavalo a circundarem o campo. — Maldição. — Doía. O Dançarino Negro era um Irmão e saber desse facto era mais doloroso do que ter conhecimento dos mestiços humanos que Daemon tinha visto ao longo dos anos e que eram demasiado fortes, demasiado determinados, demasiado magoados por uma necessidade por colmatar de se adequarem à vida de uma povoação plebeia e que, apesar disso, estavam do outro lado da grande ravina psíquica onde se encontravam os elementos mais fracos dos Sangue por não serem suficientemente fortes para atravessar. Contudo, os humanos podiam falar uns com os outros. Quem tinha este Irmão quadrúpede? Não admirava que fosse tão cuidadoso com Jaenelle.

De súbito, Jaenelle e o Dançarino precipitaram-se em direcção a Andrew enquanto este saltava de cima do pónei e ajustava freneticamente os estribos. Daemon espicaçou a égua com os calcanhares e galopou para se juntar a eles.

— Andrew...

— Depressa! Baixai os estribos do Dançarino!

Daemon largou as rédeas da égua e correu para o garanhão. — Calma, Dançarino — disse, afagando o pescoço do cavalo antes de baixar os estribos.

— Menina Jaenelle. — Andrew pegou-lhe pela cintura e atirou-a para cima do pónei. Girou sobre si mesmo, com os olhos a perscrutarem o terreno. — O vosso chapéu. Maldição, o chapéu.

— Aqui está. — Jaenelle levantou o chapéu na mão e colocou-o na cabeça. O cabelo caía pelas costas, emaranhado pela cavalgada.

Wilhelmina olhou de relance para Jaenelle, completamente pálida. — A Graífvai ficar louca quando vir o teu cabelo.

— A Graff é uma cabra — proferiu Jaenelle com brusquidão, com os olhos fixos num caminho que fazia uma curva no meio de algumas árvores.

Os póneis devem ser fêmeas, pensou Daemon ao ajustar os estribos. Todos os machos se tinham retraído ao som daquela voz lancinante.

— “Tá bom assim — disse Andrew, deslizando por baixo do pescoço do Dançarino. — Ficai na égua. Não há tempo para mais. — Montou, agarrou as rédeas e começou a andar para a frente. O garanhão estava furioso e mostrava-o, mas continuou em direcção ao caminho. Wilhelmina seguia atrás de Andrew, tentando acalmar o pónei nervoso, acabando por perturbá-lo ainda mais.

Daemon montou e avançou, mas deteve-se de imediato. Jaenelle estava completamente petrificada, os olhos pregados na curva ao fundo do caminho. Dor e raiva enchiam aqueles olhos, uma mágoa que tocava tão profundamente que Daemon soube não possuir a magia para a ajudar. Sob as feições de criança existia um rosto vetusto que o cauterizava, regelava, que lhe envolvia o coração em correntes de seda.

Pestanejou para afastar as lágrimas e ali estava a Menina Jaenelle de rosto infantil e olhos azul-celeste, não muito inteligentes. Sorriu-lhe como uma menininha e começou a trotar no preciso momento em que Philip e Leiand contornaram a curva, parando de imediato.

Do outro lado do campOyPhilip fitou primeiro Daemon e, em seguida, Jaenelle. Nada disse quando alcançaram o grupo, mas manobrou o cavalo para que Jaenelle cavalgasse a seu lado durante todo o caminho de volta à cavalariça.

Daemon abotoou os botões de punho em rubi na camisa e pegou no casaco do smoking. Não tinha tido um momento para si próprio desde que tinha deixado a cavalariça nessa manhã. Primeiro, Leiand tinha necessitado de um acompanhante para uma prolongada ida às compras, não chegando a comprar o que quer que fosse, depois Alexandra decidiu de repente ir visitar uma galeria de arte e, por fim, Philip tinha insistido de que necessitavam conferir convite enfadonho a convite enfadonho relativos a todas as funções sociais às quais Daemon poderia ter de acompanhar Leiand ou Alexandra.

Esta manhã, algo no campo tinha-os deixado nervosos a todos, algo que tinha rodopiado e que tinha estalado como a neblina e os relâmpagos. Queriam culpá-lo, queriam acreditar que tinha feito algo para transtornar as raparigas, queriam acreditar que o odor da violência reprimida era, na origem, masculino e não feminino. Mais do que isso, queriam acreditar que não eram a causa e tal só seria possível se Daemon fosse a origem.

As senhoras gostam de parecer misteriosas.

Mas não a Senhora Jaenelle Benedict. Não se esforçava por ser misteriosa, era-o simplesmente. Caminhava sob o sol do meio-dia envolta numa névoa da meia-noite que rodopiava à sua volta, ocultando, revelando, dilacerante, assustadora. A sua honestidade tinha sido contida pelo castigo. Talvez fosse preferível. Era boa na dissimulação, tinha algum discernimento sobre a reacção da família caso descobrissem algumas das verdades que lhe diziam respeito, e, ainda assim, não conseguia ser suficientemente dissimulada porque se preocupava.

Quantas pessoas sabiam da sua existência? Daemon perguntou-se ao escovar o cabelo. Quantas pessoas a considerariam como sendo o seu segredo?

Todos os moços da cavalariça, bem como o Guinhess sabiam que ela montava o Dançarino Negro.

Porém, Philip, Alexandra, Leiand, Robert e Graffnão sabiam.

A Cozinheira tinha conhecimento da sua capacidade de curar. Também Andrew. E também uma jovem criada a quem o criado mais velho tinha aberto um lábio, ao recusar as suas investidas amorosas. Daemon tinha-a visto nessa manhã específica com o lábio ainda a deitar sangue. Uma hora mais tarde tinha passado por ele no corredor, com o lábio ligeiramente inchado, mas sem mais nenhuma mazela, e com uma expressão atónita e amedrontada nos olhos. Também um dos jardineiros idosos que tinha agora um unguento para os joelhos doridos. E também ele próprio.

Porém, Philip, Alexandra, Leiand, Robert e Graffnão sabiam.

Wilhelmina tinha conhecimento de que a irmã desaparecia durante horas a fio para visitar amigos anónimos e um mentor anónimo, sabia como o sangue-de-feiticeira tinha conseguido crescer no recanto.

Daemon sabia das suas deambulações noctívagas e das leituras secretas dos textos de Arte antigos, sabia que existia algo terrível e belo por baixo do casulo de criança que, quando atingisse a maturidade e, finalmente, emergisse, já não poderia viver com estas pessoas.

Porém, Philip, Alexandra, Leiand, Robert e Graff não sabiam. O que viam era uma criança que não conseguia aprender Arte simples, uma criança que consideravam excêntrica, estranha e cheia de fantasias, uma criança disposta a proferir as verdades brutais que nunca seriam proferidas pêlos adultos e das quais não queriam ter conhecimento, uma criança que não conseguiam amar o suficiente para aceitar, uma criança que era como um alfinete escondido numa peça de roupa, arranhando constantemente a pele mas que não se conseguia dar com ele.

Quantos mais fora de Chaillot saberiam o que ela era?

Porém, não o sabiam Philip nem Alexandra nem Leiand nem Robert nem Graff. Não o sabiam as pessoas que a deveriam proteger, mante-la segura. Era em relação a eles que Jaenelle não estava a salvo. Eram eles que tinham o poder de a magoar, de a internar, de a destruir. Eles, os que a deveriam manter em segurança, eram os seus inimigos.

E, por conseguinte, eram também os de Daemon.

Examinou o seu reflexo insensível uma última vez para se certificar de que não estava nada fora do lugar e, de seguida, juntou-se à família para jantar.

 

Leiand sorria com um ar nervoso, olhando para o relógio na sua sala de estar claramente iluminada. Em vez de cartas, estavam na mesa uma garrafa de vinho fresco e dois copos. A porta do quarto estava ligeiramente aberta, deixando perpassar uma ténue luz.

O estômago de Daemon contraiu-se e acolheu com prazer o frio familiar que começava a gelar-lhe as veias. — Solicitastes a minha presença, Senhora Benedict.

O sorriso de Leiand escapou. — Um... sim... bem... pareceis cansado. Quer dizer, mantivemos-vos tão ocupado estes últimos dias e, bem... talvez devêsseis recolher-vos para o vosso quarto e dormir uma boa noite de sono. Sim. Pareceis realmente cansado. Por que não ides para o vosso quarto? Ireis para o vosso quarto, não é verdade? Quer dizer...

Daemon sorriu.

Leiand olhou de relance para a porta do quarto e empalideceu. — É que... Sinto-me um pouco indisposta esta noite. Não me apetece mesmo jogar às cartas.

— Nem eu. — Daemon pegou na garrafa de vinho e no saca-rolhas.

— Não necessitais de fazer isso. Daemon semicerrou os olhos, examinando-a. Leiand colocou-se precipitadamente atrás de uma cadeira. Pousou a garrafa e o saca-rolhas e enfiou as mãos nos bolsos. — Tendes razão, Senhora. Estou realmente cansado. Com a vossa amável permissão, retirar-me-ei agora. — Mas não para o seu quarto. Ainda não. Leiand sorriu debilmente, mantendo-se atrás da cadeira. Daemon saiu do quarto, caminhou pelo corredor abaixo, virou a esquina e parou. Contou até dez e deu dois passos para trás.

Philip estava à porta de Leiand, petrificado pelo surgimento de Daemon no final do corredor. Ficaram a olhar um para o outro durante oito batidas de coração até Daemon acenar com a cabeça num cumprimento cortês, desaparecendo da vista. Parou e escutou. Após uma longa pausa, a porta de Leiand abriu-se silenciosamente, fechou-se e trancaram-na.

Daemon sorriu. Então esse era o jogo deles. Era uma pena que não tivesse começado mais cedo. Tê-lo-iam poupado àquelas horas intermináveis a jogar às cartas com Leiand. Ainda assim, nunca se tinha oposto à utilização dos conhecimentos que reunia sobre as pessoas que servia, sendo que esta era a margem de manobra silenciosa de que necessitava para manter Philip fora do seu caminho. Ah, seria um magnífico parceiro silencioso neste jogo. Tinha sempre sido um parceiro magnífico, compreensivo e sempre tão prestável - a não ser que alguém o enfurecesse. Nesse caso... Bem. por alguma razão lhe chamavam o Sádico.

Sentiu-se extremamente lisonjeado por ela não levantar os olhos quando entrou na biblioteca e trancou a porta. Estava sentada de pernas cruzadas no sofá, absorta no livro colocado no colo, a mão direita a afofar o cabelo enquanto lia.

Daemon contornou a mobüia, o sorriso mais caloroso a cada passo. Quando chegou ao sofá, fez uma vénia formal. — Senhora Benedict.

— Angelline — respondeu Jaenelle, distraidamente.

Daemon nada disse. Tinha descoberto que, ao manter a voz calma e neutra quando Jaenelle estava distraída com algo, falava habitualmente sem ponderar nas palavras, respondendo com uma honestidade simples e brutal que o deixava sempre com a sensação de que o chão estava a rachar-se por baixo dos pés.

— A feiticeira segue a linhagem matriarcal — disse Jaenelle, virando uma página. — Além disso, o Tio Bobby não é o meu pai.

— Então quem é o vosso pai?

— Philip. Mas ele não me reconhece. — Jaenelle virou outra página. — Também é o pai de Wilhelmina, mas estava numa teia de sonhos quando a fecundou por isso, não sabe.

Daemon sentou-se no sofá, tão perto que o braço de Jaenelle roçou-lhe o flanco. — Como sabeis que ele é o pai de Wilhelmina?

— A Adria disse-me. — Virou mais uma página.

— Quem é a Adria?

— A mãe de Wilhelmina. Foi ela que me disse.

Daemon pesou as palavras seguintes com muito cuidado. — Tinha compreendido que a mãe de Wilhelmina tinha morrido quando a vossa irmã era ainda uma bebé.

— Sim, é verdade.

O que significava que Adria era uma demónia-morta.

— Era uma Viúva Negra mas foi quebrada imediatamente antes de concluir o treino — Jaenelle prosseguiu. — No entanto, já sabia tecer uma teia de sonhos e não queria que fosse Bobby a fecundá-la.

Daemon respirou profundamente. Ao exalar, o ar saiu aos tropeções. Com um esforço, pôs de lado o que Jaenelle lhe tinha acabado de revelar. Não estava aqui para falar de Adria. — Como foi a vossa aula hoje de manhã?

Jaenelle ficou imóvel.

Daemon fechou os olhos por um momento. Tinha medo do que ela pudesse dizer se respondesse, mas tinha mais medo do que poderia acontecer se não o fizesse. Se agora o afastasse...

— Correu bem — disse, hesitando.

— Aprendestes alguma coisa interessante? — Daemon pousou o braço nas costas do sofá, tentando parecer descontraído e ocioso. Por dentro, sentia-se como se tivesse engolido pedaços de vidro. — A minha própria educação foi, infelizmente, irregular. Invejo-vos por terdes um mentor tão erudito.

Jaenelle fechou o livro e olhou fixamente em frente.

Daemon engoliu com dificuldade mas prosseguiu. — Por que razão não tendes as vossas lições aqui? É usual que o tutor venha até onde estão os alunos e não o contrário. — Não a podia iludir e sabia-o.

— Não lhe é possível vir aqui — disse Jaenelle calmamente. — Não pode vir aqui. Não pode descobrir que... — Jaenelle cerrou os lábios.

— Por que razão não pode vir aqui? — Mantém-na a falar, mantém-na a falar. Se ela o afastasse agora, poderia afastá-lo para sempre.

— A sua alma pertence à noite.

Foi necessário empregar todo o autocontrole de Daemon para se manter sentado, parecer descontraído e levemente interessado. Jaenelle fez uma pausa. — E acho que não iria aprovar.

— Quereis dizer que Philip não aprovaria que ele te ensinasse?

— Não. Ele não aprovaria Philip. — Abanou a cabeça. — Não aprovaria de todo.

Nem eu, minha Senhora. Nem eu. Ao pensar sobre o pouco que sabia sobre Guardiões e sobre as histórias que tinha ouvido ou lido sobre o Senhor Supremo do Inferno, reparou em Jaenelle a engolir e sentiu um aperto na sua própria garganta. Guardiões. Os mortos vivos. Bebiam... — Não vos magoa, pois não? — perguntou bruscamente, arrependendo-se de imediato.

Jaenelle retorceu-se para o encarar, os olhos com um toque de raiva gélida.

Daemon recuou de imediato, tentando encontrar uma forma de suavizar o que tinha acabado de dizer. — Quer dizer... repreende-vos se não aprenderdes a lição correctamente? Como a Graff?

A raiva abandonou os seus olhos mas manteve-se circunspecta. — Não, não me repreende. — Reposicionou-se, sentando-se sobre os calcanhares. — Bem, a maior parte das vezes, não o faz. Só uma vez, na verdade, mas só porque eu os assustei e foi, na verdade, culpa do Prothvar pois pedi-lhe para me ensinar e ele não o fez e só se ria e disse que eu não conseguia mas eu sabia que conseguia por isso fi-lo para ele ver que eu conseguia mas ele não sabia que eu conseguia por isso assustou-se e zangaram-se e foi por isso que mi repreendida. Mas foi, na verdade, culpa do Prothvar. — Os olhos de Jaenelle suplicavam para que Daemon ficasse do seu lado.

Daemon sentiu-se desorientado pela explicação, agarrando-se à única coisa que conseguiu extrair. — Quem é Prothvar?

— O neto de Andulvar. Daemon estava a ficar com dores de cabeça. Tinha passado demasiadas noites a discutir acaloradamente, mas de forma amigável, com Lucivar sobre quem era o Príncipe dos Senhores da Guerra mais poderoso da história dos Sangue para não saber quem era Andulvar. Mãe Noite, pensou ao mesmo tempo que esfregava sub-repticiamente a têmpora dorida, quantos mortos conheceria ela? — Concordo — disse decididamente. — Acho que Prothvar estava errado.

Jaenelle pestanejou. Sorriu rasgadamente. — É também o que eu penso.

— Torceu o nariz. — O Prothvar acha que não. Ainda hoje.

Daemon encolheu os ombros. — É eyrieno. Os eyrienos são teimosos. Jaenelle deu umas risadinhas, aconchegando-se a Daemon que, lentamente, baixou o braço até a sua mão acariciar delicadamente o ombro de Jaenelle, e suspirou, satisfeito.

Tinha de fazer as pazes com o Sacerdote. Não se afastaria, mas não queria ver Jaenelle no meio daquele tipo de rivalidade. De resto, o Senhor Supremo era apenas um rival, não um inimigo. Jaenelle poderia também precisar dele.

— O vosso mentor é chamado de Sacerdote, não é? — perguntou Daemon com uma voz letárgica e sedosa.

Jaenelle ficou tensa mas não se afastou. Por fim acenou afirmativamente com a cabeça.

— Quando voltardes a estar com ele, podeis enviar-lhe os meus cumprimentos?

A cabeça de Jaenelle saltou de forma tão rápida que os dentes de Daemon se fecharam com um estalido, falhando a língua por pouco. — Conheceis o Sacerdote?

— Privámos por um breve período... há muito tempo — disse Daemon ao mesmo tempo que os seus dedos ficavam emaranhados no cabelo de Jaenelle.

Jaenelle aninhou-se ainda mais, escondendo um enorme bocejo com as mãos. — Lembrar-me-ei — prometeu, sonolenta.

Daemon beijou-lhe o alto da cabeça, pô-la de pé relutantemente, colocou o livro na prateleira e conduziu-a para fora da biblioteca. Indicou-lhe o caminho para as escadas que a levariam para o quarto no piso acima. — Ide para a cama - e dormi. — Esforçou-se por parecer severo, mas mesmo para os seus ouvidos soou-lhe ternamente exasperado.

— As vezes, parecei-vos com ele — resmungou Jaenelle. Subiu as escadas e desapareceu.

Daemon fechou os olhos. Mentiroso. Mentiroso melífluo educado na corte. Não queria aplanar a rivalidade. Não tinha sido essa a razão para ter enviado a mensagem. Queria - a posteriori e somente por um minuto - forçar Saetan a reconhecer o filho.

Mas com que mensagem retribuiria o Sacerdote, se se desse a esse trabalho?

 

Greer estava de pé, em frente às duas mulheres que estavam sentadas à lareira, as mãos folgadamente entrelaçadas atrás das costas. Era o servo de maior confiança da Sacerdotisa Suprema de Hayll, o seu assassino favorito, aquele que tratava dos pormenores indiscretos e confusos. Esta missão era uma recompensa requintada pela sua lealdade.

— Compreendes o que tens de fazer?

Greer virou-se ligeiramente em direcção àquela a quem chamavam Sacerdotisa das Trevas. Até esta noite, nunca tinha compreendido a razão pela qual a sua poderosa Sacerdotisa se sentia forçada a fazer cedências perante esta conselheira misteriosa. Agora compreendia. À sua volta pairava o odor a cemitério e a sua profunda malevolência atemorizava-o ao mesmo tempo que o excitava. Também estava ciente de que o “vinho” que bebia provinha de uma vinha de uma espécie diferente.

— Compreendo e sinto-me honrado por me terdes escolhido para esta missão. — Embora Dorothea tivesse determinado a quem incumbir a missão, depressa se tornou notório que a missão provinha de outrem. Era algo de que se recordaria no futuro.

— Não se mostrará relutante por seres tu a explicar-lhe os termos do acordo? — inquiriu Dorothea, olhando de soslaio para o braço direito de Greer. — A sua aversão por ti é intensa.

Greer olhou para Dorothea de forma bajuladora, centrando depois a sua atenção completamente na Sacerdotisa das Trevas. Ora bem. Nem mesmo a escolha da pessoa tinha sido realizada pela Sacerdotisa Suprema de Hayll. — Mais razões para escutar - em particular não estando eu muito agradado em oferecer condições tão generosas. Além disso, se optar por mentir sobre o que sabe, posso detectá-lo muito melhor do que um dos embaixadores que... — colocou a mão esquerda sobre o peito como expressão da sua sinceridade — embora mais qualificados para as missões habituais ficam, lamentavelmente, relutantes em lidar com Sadi, excepto das formas mais rotineiras.

— Não tens medo de Sadi? — questionou a Sacerdotisa das Trevas. A voz ameninada da Sacerdotisa incomodava Greer pois não se coadunava com o rosto deliberadamente coberto e com a sua atitude de alguém que era uma força negra e poderosa. Não importa. Hoje tinha, por fim, percebido quem realmente controlava Hayll. — Não tenho medo de Sadi — disse, sorrindo, — e proporcionar-me-á um imenso prazer vê-lo sujar as mãos com o sangue de uma criança. — Imenso prazer.

— Muito bem. Quando podes partir?

— Amanhã. Farei com que a viagem pareça informal para que passe despercebida. Durante a minha estadia por lá, aproveitarei para dar uma vista de olhos naquela vilazinha pitoresca. Quem sabe o que poderei encontrar de valor para as Senhoras?

— Kartane está em Beldon Mor — disse Dorothea ao encher de novo o copo. — Sem dúvida que poderá poupar-te muito trabalho preliminar. Contacta-o durante o tempo que lá estiveres.

Greer sorriu novamente de forma bajuladora, fez uma vénia a ambas e saiu.

— Não me pareces satisfeita com a escolha, Irmã, — disse Hekatah ao esvaziar o copo e levantar-se para sair.

Dorothea encolheu os ombros. — Foi a vossa escolha. Lembrai-vos disso, se correr mal. — Não levantou a cabeça quando Hekatah levantou as mãos e afastou o capuz do rosto.

— Olha para mim — silvou Hekatah. — Lembra-te do que sou.

Dorothea tinha sempre ficado pasmada pelo facto dos demónios-mortos não terem uma aparência diferente dos vivos. A única distinção era o vago odor a carne a entrar em decomposição. — Nunca me esqueço do que sois — disse Dorothea, sorrindo. Os olhos de Hekatah lançavam faíscas de raiva, mas Dorothea não desviou o olhar. — E vós deveis lembrar-vos a quem o Sadi pertence e de que é devido à minha generosidade e à minha influência sobre Prythian que o vosso joguinho de vingança está a tornar-se possível. Hekatah voltou a colocar o capuz sobre o rosto e fez um movimento súbito com a mão. A porta abriu-se com um estrondo, ficando o manipulo de bronze embutido na parede de pedra. Outro silvo de raiva e tinha partido.

Dorothea voltou a encher o copo de vinho. Tinha reparado na ligeira expressão de desprezo, a alteração nos olhos de Greer após ter visto a Sacerdotisa das Trevas. Mas o que era ela, em todo o caso? Um saco de ossos que não sabiam transformar-se em pó. Uma sanguessuga. Uma harpiazita intriguista que ainda estava a tentar voltar para um homem que não queria saber de Terreille. Não queria mesmo saber. Não estava certa se haveria de acreditar nesta história sobre uma criança pela qual o Sacerdote estava perdido de amores, não estava certa da diferença que faria se assim fosse. Deixá-lo possuir o seu brinquedo. Tinha lançado jovens suficientes ao covil da Sacerdotisa das Trevas. Agora a carcaça andante queria que prescindisse da utilização de Sadi por cem anos e, em sinal de gratidão pela boa vontade de Dorothea em efectuar tal compromisso, estava a tentar manejar o seu melhor servo, a torná-lo desleal.

Muito bem. Deixai que Greer rastejasse. Chegaria o dia em que se aperceberia do erro que cometera - e pagaria por ele.

Greer estava sentado numa cabine de um canto escuro, bebendo a segunda caneca de cerveja e observando os rostos gastos e cansados dos homens nas outras mesas. Podia ter ido a uma taberna onde o jantar seria melhor e a cerveja não deixasse na boca um gosto a água de lavar loiça, mas teria de sorrir e adular os aristocratas dos Sangue que enchiam tais lugares. Neste sítio, visto terem medo dele, podia escolher a mesa, era-lhe atribuída a melhor peça de carne e tinha privacidade.

Esvaziou a caneca e levantou um dedo para a empregada que se apressou a voltar a enchê-la, esquivando-se a mãos errantes ao passar entre as mesas. Greer sorriu. Também isto, neste sítio, podia ter no momento em que pedisse.

Quando verificou que todos estavam absortos, ergueu a mão direita e colocou-a sobre a mesa. Até hoje não sabia a razão pela qual Sadi lhe tinha feito aquilo, o que é que tinha provocado o Sádico até um tal grau de destruição calculada. Estava sentado tranquilamente numa taberna não muito diferente desta, a explorar o luxo de uma prostituta quando Sadi se dirigiu à sua mesa e esticou a mão direita. Uma vez que Sadi nada tinha dito, uma vez que apenas ali estava aquele rosto inexpressivo e entediado a olhá-lo de cima, Greer estendeu a sua própria mão direita, julgando que Sadi tinha vindo implorar algum favor. No momento em que a mão de Sadi se fechou sobre a sua, tudo mudou. Num momento era apenas um aperto de mão firme, para logo a seguir sentir os ossos a serem esmagados, os dedos a estalar, sentindo-se aprisionado num torno mental, não podendo sequer dar-se ao luxo de desmaiar como forma de fuga. Quando, por fim, o torno o soltou...

O primeiro pensamento foi o de se dirigir rapidamente a uma Curandeira, o de chegar a alguém que pudesse remodelar a massa mole que tinha sido uma ferramenta preciosa. Mas alguém já tinha procedido a uma cura. Alguém tinha moldado suavemente a mão numa garra distorcida e sarado os ossos o suficiente para que uma Curandeira tivesse de voltar a partir-lhe os ossos para conseguir endireitar a mão e até Greer sabia que o melhor que uma segunda cura poderia fazer era tornar a forma um pouco melhor. Nunca mais poderia transformar aquela garra distorcida numa mão que pudesse ser utilizada.

Sadi tinha procedido à cura, ciente do resultado. Sadi, que nunca tinha deixado de o cumprimentar cortesmente, escarnecedoramente, odiosamente sempre que estavam os dois de serviço na corte de Dorothea. Sadi, que ia agora chacinar uma criança pela ilusão de liberdade.

Greer esvaziou a caneca uma última vez e atirou algumas moedas para cima da mesa. Dentro de uma hora, partia uma Carruagem da Teia em direcção a oeste. Queria ter esperado, queria parecer informal mas, na verdade, mal podia esperar para apresentar a proposta.

 

                       CAPÍTULO 9

Saetan estava sentado numa cadeira confortável naquela que se tinha tornado conhecida como sala da “família no Paço em Kaeleer, com as pernas cruzadas, os dedos arqueados e pousados no queixo. Observava Jaenelle a tecer alegremente fitas de cores claras através de uma fina lâmina de madeira.

As aulas já não eram privadas e Saetan melindrava-se por passar tão pouco tempo sozinho com Jaenelle, porém, ela era uma bola viva de luz encantada que atraía os machos da família; ele próprio, que compreendia tão bem o que provocava essa atracção, não conseguia encontrar as forças para os afastar.

Hoje, Prothvar e Mephis jogavam xadrez descontraidamente, enquanto Andulvar descansava numa cadeira com os olhos semicerrados. Jaenelle estava sentada no chão à frente da cadeira de Saetan, com varas de cores claras, cartas de um baralho e fitas espalhadas à sua volta.

As lições estavam a melhorar, pensou Saetan friamente ao mesmo tempo que observava Jaenelle a tecer outra fita através da madeira. Só tinha de se lembrar de começar pelo fim e andar para trás até ao início.

A aula de hoje era, supostamente, sobre como passar um objecto físico através de outro. A ideia era que, logo que uma feiticeira aprendesse a passar um objecto por outro, poderia, eventualmente, aprender como passar matéria viva através de matéria morta, conseguindo desta forma passar através de uma porta ou de uma parede. De qualquer modo, era essa a ideia.

Tinha explicado de todas as maneiras de que se lembrou, tinha demonstrado uma e outra vez. Simplesmente, ela não percebia. Finalmente, após uma hora de frustração, tinha dito bruscamente:

— Se quisesses passar o braço através daquela madeira, o que farias?

Jaenelle ficou quieta por um breve momento, enfiou o braço através da madeira e agitou os dedos do outro lado. — Assim?

Andulvar tinha murmurado entre dentes algo que parecia:

— Mãe Noite. — Mephis e Prothvar tinham derrubado a mesa de jogos, espalhando as peças de xadrez pelo chão. Os olhos de Saetan vitrificaram-se ao estudar os dedos que se agitavam. — Assim — disse, por fim, engasgando-se.

Retroceder relativamente ao que ela já sabia deixava-o nauseado - nunca se tinha esquecido do jovem Senhor da Guerra que tinha uma atitude demasiado arrogante em relação às lições e que tinha entrado em pânico a meio da passagem - mas tinha apenas demorado alguns minutos a converter carne e madeira em fitas e madeira, e tinha sido tão agradável observar a faísca nos olhos de Jaenelle, quase ouvindo um estalido quando juntava as peças e percebia.

Pois agora estava alegremente a tecer fitas através de um pedaço de madeira sólida com uma facilidade que faria inveja a qualquer tecedeira.

— Ah, já me esquecia — disse Jaenelle ao pegar noutra fita. — O Príncipe pediu-me para te enviar cumprimentos.

Os olhos de Andulvar abriram-se de repente e, de imediato, voltaram a fechar-se. A mão de Mephis ficou paralisada sobre a peça que ia mover. A cabeça de Prothvar virou-se repentinamente para logo voltar à posição inicial. Saetan, sentado à frente de Jaenelle, foi o único que não demonstrou qualquer reacção.

— O Príncipe? — perguntou languidamente.

— Hum-hm. Agora vive connosco um Príncipe Hayiliano dos Senhores da Guerra. É uma espécie de companheiro de jogos da Leiand e da Alexandra. — Parou de tecer, franzindo o sobrolho. — Acho que ele não gosta muito. Não parece feliz quando está com elas. Mas não se importa de jogar comigo e com a Wilhelmina.

— E ele joga ao quê contigo e com a Wilhelmina? — perguntou Saetan suavemente. Reparou no olhar penetrante de Andulvar mas ignorou-o. Daemon não estava apenas em Beldon Mor, estava dentro da maldita casa!

Jaenelle animou-se. — A muitas coisas. Damos passeios e ele monta muito bem e sabe montes de histórias e toca piano com a Wilhelmina e lê para nós e não é como a maioria dos adultos que acham que os nossos jogos são ridículos. — Pegou em duas fitas e entrançou-as através da madeira.

— É como tu, de muitas maneiras. — Inclinou a cabeça e examinou o rosto de Saetan. — Parece-se contigo de alguma forma.

O sangue de Saetan rugiu-lhe nos ouvidos. Baixou as mãos e premiu uma contra o estômago. — E que forma é essa, criança-feiticeira?

— Oh, a forma como os teus olhos ficam com aquele olhar esquisito, às vezes, como se tivesses uma dor de barriga e quisesses rir mas sabes que iria doer. — Olhou para a mão, agora cerrada, com que premia o estômago.

— Há algo de errado com a tua barriguinha?

— Ainda não.

Andulvar encontrou um súbito interesse no tecto. Prothvar e Mephis tinham os olhos colados nas costas de Jaenelle. Saetan rangeu os dentes.

— Ele é mesmo muito simpático, Saetan — afirmou Jaenelle, intrigada pelas estranhas correntes emocionais. — Um dia, quando estava a chover, jogou ao peixinho connosco durante horas a fio.

— Peixinho? — perguntou com a voz estrangulada.

Jaenelle embutiu a Rainha de Copas na madeira. — É um jogo de cartas. As regras são um pouco complicadas e o Príncipe estava sempre a esquecer algumas delas e por isso perdia.

— Ai sim? — Saetan mordeu a bochecha. Era difícil acreditar que Daemon achasse as regras complicadas”, fosse de que jogo fosse.

— Hum-hm. Não queria que se sentisse mal, por isso... bem, eu estava a dar e ajudei-o a ganhar um jogo.

O tecto por cima de Andulvar era extremamente interessante. Mephis começou a tossir. Prothvar achou fascinante o tecido das cortinas.

Saetan pigarreou e empurrou o punho ainda mais para o estômago. — O... O Príncipe disse alguma coisa?

Jaenelle torceu o nariz. — Disse que teria muito gosto em me ensinar póquer se não tivesse de apostar contra mim. O que queria ele dizer, Saetan?

Mephis e Prothvar voltaram-se repentinamente para o tabuleiro e deram uma cabeçada. Andulvar começou a tremer e agarrou-se aos braços da cadeira, como se fossem os responsáveis por o manter em terra firme.

Saetan sentiu que se não começasse a rir as suas entranhas seriam desfeitas pela pressão. — Acho... que quis dizer... que teria gostado... de ter ganhado por si próprio.

Jaenelle ponderou nesta frase e abanou a cabeça. — Não, acho que não foi isso que ele quis dizer.

Ouviu-se um eh eh eh abafado, enquanto Prothvar se debatia desesperadamente para conter o riso, mas o som funcionou como gatilho e os quatro explodiram, impotentes.

Saetan sentia que o seu corpo era feito de gelatina. Deslizou da cadeira, aterrou no chão com um ruído surdo, tombou para o lado e uivou.

Jaenelle olhava para eles, sorrindo, como se tivesse vontade de se juntar se alguém lhe explicasse a piada. Passado um minuto, levantou-se, compôs o vestido com o orgulho e a dignidade de uma jovem Rainha, passou por cima das pernas de Saetan e dirigiu-se à porta.

Saetan parou de imediato. Apoiando-se num cotovelo, disse:

— Criança-feiticeira? Onde vais? — Os outros três homens aguardaram, em silêncio, uma resposta.

Jaenelle virou-se e olhou para Saetan. — Vou à casa de banho e, a seguir, vou ver se a D. Beale tem alguma coisa que se coma. — Caminhou para a porta, obstinada. A última coisa que lhes chegou ao ouvido antes de Jaenelle fechar a porta foi:

— Machos.

Por mais um momento, reinou o silêncio para depois o riso se precipitar, continuando até nenhum deles conseguir aguentar mais.

— Ainda bem que estou morto — disse Andulvar ao mesmo tempo que limpava as lágrimas.

Saetan, deitado de costas, inclinou a cabeça para olhar para o amigo. — Porquê?

— De outra forma, ela matar-me-ia!

— Ah, Andulvar, mas que gloriosa forma de morrer. Andulvar recompôs-se. — O que é que vais fazer agora? Fez o possível para te informar do seu paradeiro. Um desafio?

Saetan levantou-se devagar, ajeitou a roupa e alisou o cabelo. — Achas que ele é assim tão negligente?

— Provavelmente, é assim tão arrogante.

Saetan reflectiu e abanou a cabeça. — Não, não creio que seja arrogância, mas é um desafio. — Virou-se de frente para Andulvar. — Dirigido a mim. Pode acreditar nas minhas intenções tão pouco como eu acredito nas dele. Talvez precisemos os dois de confiar... um pouco.

— Então o que irás fazer?

Saetan suspirou. — Enviar-lhe também os meus cumprimentos.

 

Ao olhar pelas janelas da embaixada para a cidade chamada Beldon Mor, Greer ouviu a porta abrir-se e fechar-se silenciosamente. Sondou a sala que se encontrava atrás de si, na expectativa de detectar um embaixador que lhe viesse dar um aperto de mão e informá-lo de que a reunião tinha sido adiada. Em vez disso, sentiu apenas um leve arrepio de frio. Os tolos que aqui serviam tinham boas ajudas de custo. O mínimo que podiam fazer era aquecer as divisões. Provavelmente o hipócrita tinha entrado e, ao vê-lo, tinha saído à pressa, sem uma palavra.

Com um ar escarnecedor, Greer voltou as costas às janelas e deu um passo involuntário para trás.

Daemon Sadi encontrava-se junto à porta fechada, as mãos nos bolsos das calças, o rosto com a já familiar máscara gélida e entediada. — Senhor Greer — disse num trauteio melífluo.

— Sadi — respondeu Greer, com desdém. — A Sacerdotisa Suprema enviou-me para te fazer uma oferta.

— Oh? — Exclamou Daemon, erguendo uma sobrancelha. — Desde quando a Dorothea envia o seu preferido como mensageiro?

— A ideia não partiu de mim — disse Greer bruscamente, mudando de imediato de estratégia. — Sigo ordens, tal como tu. Por favor. — Gesticulou com a mão esquerda indicando duas cadeiras. — Pelo menos vamos pôr-nos confortáveis.

Greer retesou-se quando Sadi deslizou por ele e se instalou graciosamente numa das cadeiras. A maneira como o homem se movia mexia-lhe com os nervos. Havia algo de felino, algo que não era somente humano naquele movimento. Greer sentou-se na outra cadeira, com a luz do sol atrás para poder observar com facilidade o rosto de Sadi.

— Tenho uma oferta a fazer-te — repetiu Greer. — Não é do meu agrado ser o portador.

— Assim dissestes.

Greer cerrou os lábios. Não havia sequer uma faísca de interesse no rosto do bastardo. — A oferta é a seguinte: cem anos sem servir numa corte, viver onde quiseres e fazer o que te apetecer, passar o tempo na sociedade que te agradar. — Greer fez uma pausa para criar um efeito dramático. — E a oferta inclui as mesmas condições para o mestiço eyrieno. Perdão - o teu irmão.

— O eyrieno foi Anelado pela Sacerdotisa Suprema de Askavi. A Dorothea não pode decidir o que fazer com ele.

Era mentira, como bem sabia Sadi, mas Greer estava incomodado por não existirem perguntas, nem alterações subtis na voz ou na expressão. Teria a situação sofrido alterações? Não teria já qualquer interesse por Yaslana?

— É uma oferta generosa — disse Greer, lutando para controlar o desejo de atacar violentamente, forçando Sadi a reagir.

— Inenarrável.

A mão esquerda de Greer agarrou a cadeira. Respirou profundamente. Ele tinha pretendido acicatá-lo.

— E quais são as condições deste oferta generosa? — perguntou Sadi com um sorriso selvagem.

Greer arrepiou-se. Malditos sejam aqueles idiotas. Quando terminasse, ficariam a saber como aquecer uma divisão! Tinha de apresentar esta oferta de forma correcta e era difícil pensar com a sala tão gelada. — Uma boa amiga da Sacerdotisa Suprema descobriu que o seu consorte tem andado a entreter-se com uma jovem feiticeira, de facto, está obcecado por ela. Ela gostaria de fazer algo para acabar com tal actividade, contudo, devido a sensibilidades políticas, não poderá fazer o que quer que seja por si própria.

— Mmm. Julgava que se ela queria que o consorte fosse discretamente enterrado, vós estaríeis mais apto a tratar disso do que eu.

— Não é o consorte que quer ver enterrado. — Fogo do Inferno, estava mesmo frio!

— Ah. Compreendo. — Sadi cruzou as pernas e juntou os dedos de ambas as mãos, pousando as longas unhas no queixo. — Todavia, a minha capacidade de viajar está rigorosamente limitada pêlos desejos da Rainha que agora sirvo. Uma excursão inexplicada não seria fácil.

— E não seria necessária. É por isso que a oferta te está a ser apresentada.

Oh?

— A amiga da Sacerdotisa Suprema tem razões para crer que a sua arqui-inimiga se encontra nesta mesma cidade. — Os pés de Greer estavam dormentes. Queria esfregar as mãos para as aquecer, mas Sadi parecia não se dar conta do frio, pelo que não poderia mostrar qualquer sinal de fraqueza.

Sadi franziu o sobrolho, a primeira alteração no rosto desde o início da conversa. — E que idade tem esta arqui-inimiga? Como é o seu aspecto?

— É difícil dizer com rigor. Sabes como é difícil avaliar estas raças de vida curta. Jovem, pelo menos de aparência. Cabelo louro. Essa é a única característica precisa. Provavelmente possui uma aura estranha...

Sadi deu uma gargalhada, produzindo um som enervante. Parecia extremamente divertido, mas existia algo esquisito no brilho do seu olhar.

— Meu caro Senhor Greer, estais a falar de metade das mulheres que vivem neste pedaço de rocha. Aura estranha? Comparada com o quê? A excentricidade nervosa é aqui uma epidemia da pré-adolescência. Não encontrareis uma única família aristocrata em toda a maldita ilha que não tenha pelo menos uma filha com uma “aura estranha! O que esperais que faça? Acercar-me de cada uma delas enquanto a acompanhante observa e perguntar-lhes se estão a comer um hayiliano de uma das Cem Famílias?

— Deu outra gargalhada.

Greer rangeu os dentes. — Estás então a recusar a oferta?

— Não, Greer, estou simplesmente a dizer-vos que, sem informações mais detalhadas, o consorte da amiga irá continuar a brincar com o seu blinquedo durante muito tempo. Por isso, a menos que me possais dizer mais do que isso, nem sequer vale a pena o esforço. — Sadi levantou-se e puxou as mangas do casaco sobre os punhos. — Contudo, a oferta dá que pensar, e, se tropeçar nalguma rapariga loura com um certo gosto por hayilianos, observá-la-ei com muita atenção. Agora, se não vos importais, já estou atrasado para um compromisso num costureiro, onde reclamam as minhas opiniões de bom gosto. — Fez uma vénia escarnecedora e saiu.

Greer contou até dez antes de saltar da cadeira e caminhar aos tropeções devido aos pés dormentes. Agarrou no manípulo da porta, tão gelado que quase se colou à sua pele. Conseguiu, por fim, abrir a porta e sair para o corredor - amparando-se contra a parede. O corredor parecia um forno.

Daemon olhava fixamente para o canteiro de sangues-de-feiticeira no recanto. Sem conseguir dormir, tinha ido dar um passeio, acabando por vir parar a este local. O ar nocturno estava fresco e tinha-se esquecido do sobretudo, mas sabia bem ser entorpecido por um frio que não vinha do seu interior.

Dorothea procurava Jaenelle. Pouco importava se a procurava pelas suas próprias razões ou seguindo ordens de terceiros. Desde sempre que Dorothea tentava destruir as jovens e fortes feiticeiras que poderiam vir, um dia, a competir pelo seu poder. Logo que descobrisse quem e o que era Jaenelle, faria uso de todas as armas ao seu dispor para destruir a rapariga.

Greer andava a farejar informações, o que significava que Dorothea não tinha a certeza se Jaenelle vivia em Beldon Mor. Contudo, não tinha razões para crer que a visita de Greer seria breve e, caso permanecesse por aqui algum tempo, mais tarde ou mais cedo iria ouvir alguém falar sobre a filha loura e excêntrica de Leiand Benedict. E depois?

Ensinaste-a a matar. Sacerdote? Poderás ensinar-lhe tal coisa? É tão sábia na sua inocência, tão inocente, na sua sabedoria.

Deveria ter matado Greer em vez de simplesmente lhe incapacitar a mão que tinha aberto a garganta de Titian. Mas a altura não era a melhor e, mesmo não tendo qualquer prova, Dorothea teria suspeitado dele. Um lapso que não poderia ainda corrigir sem atrair demasiado a atenção para esta casa. Não havia um sítio onde pudesse esconder Jaenelle que fosse suficientemente seguro, dada a sua tendência para vaguear, e ainda não estava disposto a cedê-la ao Sacerdote, mesmo que tivesse de ir e manter-se longe. Ainda não.

Daemon abanou a cabeça. A noite avançava e desde que tinha chegado ao recanto que sabia o que tinha de fazer. Se a oferta tivesse sido feita unicamente a ele, não haveria qualquer dúvida quanto à sua resposta. Mas não tinha sido feita unicamente a Daemon. Respirou profundamente e enviou um fio masculino pela Ébano Acinzentada.

"Bastardinho? Bastardinho, estás a ouvir-me?”

Surgiu, de repente, a consciência de alguém a acordar de imediato de um sono leve. "Bastardolas?” Uma agitação, uma concentração. “Bastardolas, o que..."

“0uve. Não temos muito tempo. Hoje, o Greer apresentou-me uma proposta.”

“Greer7 Uma cautela gélida. “Porquê?”

"Uma amiga da Dorothea quer que lhe façam um favor.” Daemon engoliu com dificuldade e cerrou os olhos. “Cem anos sem prestar serviço numa corte... para nós os dois... se eu assassinar uma criança."

As palavras que se seguiram deslizaram na mente de Daemon, peçonhentamente adocicadas. “Qualquer criança? Ou uma em particular?”

Daemon baixou os olhos. A mão direita friccionava a cicatriz do pulso esquerdo. “Uma criança muito especial. Uma criança extraordinária.”

“E a tua resposta qual foi?"

“Já te disse. A proposta não foi só dirigida a m.. .”

0nde estás?"

“Chaillot."

Um silvo enfurecido. "Ouve-me, seu grandessíssimo filho da puta. Se aceitares essa proposta por minha causa, a primeira coisa que farei será matar-te."

A primeira coisa que farei é deixar que o faças. Daemon caiu de joelhos, tremendo de alívio. "Obrigado.”

0 quê?" As ondas de fúria que fluíam pelo fio cessaram.

"Obrigado. Eu... tinha esperanças... de que essa fosse a tua resposta, mas tinha de te perguntar." Daemon respirou fundo. “Há mais outra coisa que deves...”

"A cabra acordou. Não há tempo. Toma conta dela, Bastardolas. Nem que para isso tenhas de sangrar todos os outros até à última gota, mas toma conta dela."

Lucivar desapareceu.

Daemon pôs-se em pé, lentamente. Tinha corrido um risco enorme ao contactar Lucivar. Se fossem apanhados a comunicar, o chicote seria o menor dos castigos. Não estava preocupado consigo próprio. Estava demasiado longe de Hayll para ser detectado por Dorothea através do anel principal de controlo e estava confiante na sua capacidade de se esgueirar a Alexandra, que possuía o anel secundário de controlo. Mas Zuultah não era Alexandra e Lucivar nem sempre era cauteloso.

Tem cuidado, Bastardinho, pensou Daemon, caminhando devagar de regresso a casa. Tem cuidado. Dentro de poucos anos, Jaenelle atingiria a maioridade. E nessa altura serviriam o tipo de Rainha com que sempre sonharam.

Poderia ter seguido o fio masculino Ébano Acinzentado de novo até Lucivar para descobrir se Zuultah teria detectado a comunicação, mas não o fez pois não queria saber se, de facto, Zuultah estaria a usar o Anel. Não queria saber que Lucivar estava a sofrer.

Daemon olhou para cima em direcção às janelas da ala das crianças. Nem um vislumbre de luz. Queria deslizar pelas escadas acima, esgueirar-se para aquela pequena cama e enroscar-se nela, confortado por saber que Jaenelle estava viva e em segurança. Porque, se Lucivar estivesse em sofrimento...

Daemon entrou em casa e dirigiu-se ao seu quarto. Despiu-se rapidamente e meteu-se na cama. O quarto estava repleto de sombras e, à medida que o céu se aclarava com o despontar do dia, Daemon continuava a pensar no que o Sol estaria a testemunhar em Pruul.

 

Surreal desabotoou o casaco enquanto ziguezagueava por um caminho nos jardins públicos dos Angelline, uma parte da propriedade que Alexandra Angelline tinha cedido para utilização pública. Os jardins eram um dos poucos sítios ainda existentes em Beldon Mor onde se podia caminhar sobre a relva ou sentar debaixo de uma árvore, e parecia que todos os aristocratas dos Sangue estavam aqui concentrados, desfrutando de um dos derradeiros dias quentes de Outono.

Há vinte anos atrás, quando Surreal tinha vindo à cidade emprestar a sua reputação a Deje na abertura da casa da Lua Vermelha, abundavam relva e árvores. Actualmente, Beldon Mor não era mais do que uma versão mais recente e mais limpa de Draega, graças aos embaixadores hayilianos, hábeis na prostituição do concelho e em sugar a força dos Sangue.

Mais do que os plebeus da cada raça, os Sangue tinham necessidade de permanecer em contacto com a terra. Sem esse contacto, era fácil esquecer que, de acordo com as lendas mais antigas, tinham sido criados para serem vigilantes. Era muito fácil deixarem-se enredar nos próprios egos.

Surreal caminhava pêlos trilhos do jardim, divertida com a reacção à sua presença. Os jovens rapazes que se pavoneavam observavam-na com um interesse deliberado; os jovens que acompanhavam as Senhoras que estavam a cortejar olhavam para ela de relance, corando, ao mesmo tempo que as suas acompanhantes os puxavam precipitadamente numa direcção diferente; os homens que estavam numa aparição pública obrigatória ao lado das respectivas esposas olhavam-na fixamente, enquanto as esposas olhavam de Surreal para os rostos pálidos e trombudos dos maridos e novamente para Surreal. Ignorou-os a todos, para alívio profundo dos seus clientes. Bem, quase todos. Na verdade, sorriu de forma bastante sugestiva a um Senhor da Guerra que tinha tratado rudemente uma jovem prostituta havia algumas noites e agitou os dedos na sua direcção em sinal de cumprimento antes de se ir embora rapidamente, rindo-se discretamente e desejando poder ouvir a fanfarronice da explicação.

Mas chegava de diversão. Era altura de pôr as mãos na massa.

Surreal continuou às voltas, aproximando-se cada vez mais da vedação em ferro forjado que separava os jardins privados dos públicos. Sob a blusa usava a Jóia Cinzenta embutida numa estrutura em ouro que era a réplica exacta da Jóia Verde de Titian. Desde que tinha entrado nos jardins que estava a sondar com a Cinzenta, esperando não obter uma resposta vacilante, o que significaria que Philip estaria nas redondezas - e não era Philip que procurava.

Ao aproximar-se da vedação, enviou o sinal privado que Daemon lhe tinha ensinado há tantos anos atrás, o sinal que lhe transmitia que Surreal precisava dele. Depois, afastou-se, continuando a explorar os trilhos mais estreitos que se encontravam ali perto.

Talvez não estivesse na casa. Talvez estivesse, mas não pudesse ausentar-se. Talvez não respondesse ao sinal. Não se tinha atrevido a usá-lo desde aquela noite em que o pressionou a mostrar-lhe o Prostituto de Hayll.

Sentiu a presença de Daemon antes mesmo de o ver, aproximando-se por um trilho por detrás dela. Voltando para trás, caminhou na sua direcção, parando aqui e ali para admirar uma flor que tinha desabrochado tardiamente. O trilho era uma ramificação, sendo menor a probabilidade de alguém os ver, mas, ainda assim, Surreal não queria ninguém a fazer perguntas. Ao passar por ele, fingiu tropeçar e torcer o pé.

— Maldição - disse, ao mesmo tempo que Daemon a segurou pelo braço para a amparar. — Fica aí um minuto, ficas, docinho? — Pousou uma mão no ombro de Daemon, encostou-se a ele e pôs-se a mexer no sapato. — Anda alguém à tua procura. — Sentiu que estava tenso e reparou no pequeno círculo de geada à volta dos pés dele.

— Ah? Porquê?

Ainda às voltas com o sapato, Surreal não conseguia ver-lhe o rosto mas sabia que nada mais haveria a não ser uma expressão entediada e ligeiramente gasta, apesar do frio melífluo na voz.

— Ela julga que estás interessado numa criança aqui, que é, assim parece, de grande importância para ela, uma criança que Dorothea quer afastar do seu caminho. Se fosse a ti, tinha cuidado. Não me contratou para um serviço, o que não quer dizer que não esteja a entrevistar outros que estejam dispostos a tentar. — Pôs o pé no chão e rodou o tornozelo como se o tivesse a testar.

— Sabes quem é ela?

Surreal franziu o sobrolho e abanou a cabeça, ainda examinando o sapato. — Uma feiticeira que está no Altar de Cassandra. Não é possível perceber há quanto tempo ali está. Algumas das divisões estão arranjadas. E é isso. Já fiquei em sítios piores.

Daemon manteve a cabeça virada para o outro lado. — Agradeço-te por me teres avisado. Agora, se me dás lie...

— Príncipe? Príncipe, tendes de vir ver.

Surreal virou-se na direcção da voz da rapariga. Tinha o som da seda, pensou, ao mesmo tempo que a rapariga magra e de cabelo loiro apareceu saltitando e parou à frente deles, com um sorriso caloroso e uns olhos - olhos que pareciam mudar de cor consoante a maneira como a luz do sol penetrava através das folhas - repletos de boa disposição e curiosidade.

— Olá — disse a rapariga, examinando o rosto de Surreal.

— Senhora — respondeu Surreal, tentando soar reverente e digna, mas ao ouvir o suspiro desesperado de Sadi ficou com vontade de se rir.

— Devíamos regressar — disse Daemon, colocando-se ao lado da rapariga, tentando virá-la em direcção aos jardins privados.

Surreal estava quase a escapulir-se quando ouviu Daemon dizer: — Senhora. — O tom de lisonja e de súplica na sua voz imobilizou-a. Nunca o tinha ouvido falar daquela forma. Olhou para a rapariga que tinha cravado os pés no chão e se recusava a ser virada.

— Jaenelle — disse, um pouco em desespero.

Jaenelle ignorou-o, continuando a estudar o rosto e o peito de Surreal.

Foi então que Surreal se apercebeu que a Jóia Cinzenta tinha saído para fora da blusa quando se dobrou para examinar o sapato. Olhou para Daemon, perguntando, em silêncio, o que deveria fazer.

Quando Daemon apertou delicadamente o ombro de Jaenelle para lhe captar a atenção, a rapariga disse:

— És a Surreal? — Como Surreal não respondeu, Jaenelle virou a cabeça para trás para olhar para Daemon. — Ela é a Surreal?

O rosto de Daemon expunha um olhar circunspecto e encurralado. Respirou fundo, expirando lentamente. — Sim, é a Surreal.

Jaenelle entrelaçou as mãos à sua frente e sorriu cheia de felicidade a Surreal. — Tenho uma mensagem para ti.

Surreal pestanejou, completamente perplexa. — Uma mensagem?

— Senhora, transmiti-lhe então a mensagem. Temos de ir. — Disse Daemon, tentando colocar alguma firmeza na voz.

Jaenelle olhou para Daemon com má cara, obviamente intrigada pela falta de cortesia, mas obedeceu. — Titian manda-te muitas saudades.

As pernas de Surreal cederam no preciso momento em que Daemon a amparou. — É esta a tua ideia de uma brincadeira? — murmurou ferozmente, escondendo o rosto no peito de Daemon.

— Que as Trevas me ajudem, Surreal, não é uma brincadeira. Surreal ergueu a cabeça para olhar para ele. O medo era também uma das coisas que nunca tinha ouvido naquela voz. Retemperou-se, afastandose de Daemon. — Titian morreu — disse com firmeza. Jaenelle pareceu ainda mais intrigada. — Sim, eu sei.

— Como é que conheceis Titian? — perguntou Daemon serenamente, embora a sua voz vibrasse de tensão. Estremeceu e Surreal sabia que nada tinha a ver com a leve brisa fresca que se tinha levantado.

— É a Rainha das Harpias. Disse-me que o nome da filha era Surreal e disse-me como ela era e também me disse que o engaste da Jóia poderia assemelhar-se ao brasão da família. Os Dea al Mon normalmente usam engastes de prata, mas o ouro fica-te bem. — Jaenelle olhou para os dois. Estava ainda satisfeita por ter conseguido entregar a mensagem, mas as reacções daqueles dois não faziam sentido.

Surreal queria desatar a correr, queria fugir, queria agarrar-se a esta criança que não estranhava agir como uma ponte entre os vivos e os mortos. Tentou pronunciar algo, o que quer que fosse, mas apenas conseguiu produzir um som indistinto, por isso olhou para Daemon em busca de auxílio, apercebendo-se que, também a ele, o chão parecia ter fugido debaixo dos pés.

Por fim, despertou, passou um braço à volta dos ombros de Jaenelle e encaminhou-a em direcção aos jardins privados.

— Esperem — chamou Surreal. Oscilou, mas manteve-se em pé. Os seus olhos encheram-se de lágrimas que lhe embargaram a voz. — Se voltardes a ver Titian, transmiti-lhe também as minhas saudades.

O sorriso que conseguiu vislumbrar pela mancha provocada pelas lágrimas era dócil e compreensivo. — Está bem, Surreal. Não me esquecerei.

E desapareceram.

Surreal caminhou aos tropeções até uma árvore, abraçando-a, com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto abaixo. Dea al Mon. O nome de família? O povo do qual Titian descendia? Não sabia, mas era mais do que alguma vez tinha sabido. Sentiu-se dilacerada por dentro, no entanto, pela primeira vez desde que tinha entrado naquele quarto e visto Titian morta, não se sentia sozinha.

 

Ao abrir o armário onde guardava os copos de vinho, Cassandra sentiu a presença masculina das trevas à porta da cozinha, o odor inequívoco da Negra. Sem se virar, estendeu a mão para alcançar um copo e disse:

— Esperava-te mais tarde.

— Estou surpreendido por sequer me esperardes.

Falhou o copo. Somente um odor psíquico de macho poderia ser confundido com o de Saetan. Tentando ganhar tempo para fazer desaparecer a Jóia Negra e invocar a Negra, retirou dois copos do armário e colocou-os no balcão, antes de se virar.

Estava encostado à ombreira da porta com as mãos nos bolsos das calças.

Ah, Saetan, vê a tua descendência. O coração de Cassandra batia a um ritmo estranho enquanto admirava o seu corpo e o rosto quase demasiadamente belo. Se tivesse existido o mais pequeno vestígio de sedução no ar, o seu velho pulso estaria desenfreado. Contudo, nada mais havia do que um frio de rachar e um olhar nos seus olhos com os quais Cassandra não conseguia estabelecer contacto.

Pensa, mulher, pensa. Era uma Guardiã, fazia parte dos mortos vivos, mas ele não sabia. Se ele lhe danificasse o corpo, poderia efectuar de imediato a transição para demónio e continuar a lutar. Duvidava de que possuísse os conhecimentos e a capacidade de a destruir por completo. Negra contra Negra. Poderia aguentar-se contra ele.

Olhou de relance para os olhos de Daemon e soube, com uma certeza impressionante, que não era verdade. Tinha vindo matar e sabia exactamente quem e o que ela era.

— Estou desapontado convosco, Cassandra. As lendas pintam-vos de forma diferente — disse Daemon suavemente, a voz carregada de malevolência.

— Sou uma Sacerdotisa que serve este Altar — disse, esforçando-se por manter a voz firme. — Estás enganado se julgas...

Daemon riu-se com delicadeza. Cassandra recuou perante aquele som, ficando encostada ao balcão.

— Achais que não consigo diferenciar uma Sacerdotisa de uma Rainha? E as Jóias, minha cara, mostram quem sois.

Inclinou ligeiramente a cabeça em reconhecimento. — Pois sou Cassandra. O que queres. Príncipe?

Deixou a porta, dirigindo-se a ela. — Mais precisamente. Senhora — Colocou uma intensidade sórdida na palavra — o que quereis vós?

— Não percebo. — O treino exigia que não cedesse. O instinto gritava para que fugisse.

Continuou a caminhar em direcção a Cassandra, sorrindo, ao mesmo tempo que ela se deslocava à volta da mesa, para que ficasse entre os dois. Era um sorrido de sedutor, afável e quase dócil, tirando o facto de ser esculpido em gelo. — Por quem esperais? — Retirou as mãos dos bolsos.

Cassandra olhou de soslaio para as mãos de Daemon. O alívio momentâneo por não ver um anel na sua mão direita foi abafado pela percepção do tamanho das unhas de Daemon. Mãe Noite, tal pai, tal filho! Continuou a andar lentamente à volta da mesa. Se conseguisse alcançar a porta...

Daemon mudou de direcção, bloqueando a saída. — Quem?

— Um amigo.

Abanou a cabeça, com uma tristeza trocista.

Cassandra parou. — És servido de um copo de vinho? — Era perigoso, perigoso, perigoso.

— Não. — Fez uma pausa e examinou as unhas da mão direita. — Achas que não consigo criar uma sepultura suficientemente funda para vos enterrar? — A sua voz era melíflua, um cântico, quase letárgico. Terrível. E familiar. Outra voz profunda com uma cadência ligeiramente diferente, mas a raiva entoada era igual. — Para vossa informação, no caso de terdes posto essa hipótese, sei que não conseguis cavar uma suficientemente funda para mim.

Cassandra levantou o queixo e olhou-o nos olhos. Utilizou a paosa para colocar um feitiço fortalecedor nas unhas, tornando-as tão fortes e afiadas como punhais. — Talvez não, mas vou tentar.

Daemon ergueu uma sobrancelha. — Porquê?perguntou com extrema delicadeza.

Cassandra perdeu a calma. — Porque és perigoso e cruel. És o fantoche de Hekatah e o bichinho de estimação de Dorothea e foste enviado para destruir uma feiticeira extraordinária. Não o permitirei. Podes mandar-me para a cova de vez, mas também provarás um pouco.

Atirou-se a ele, a mão arqueada e preparada, a Jóia Negra em chamas. Daemon agarrou-a pêlos pulsos, mantendo-a à distância com uma facilidade que a fez gritar. Atingiu os escudos Negros das barreiras interiores de Cassandra com tal força que ela teve de se esforçar para as manter intactas, mas não o conseguiria manter de fora por muito tempo. Estava a esgotar-lhe as Jóias e nem tinha ainda feito uso das dele. Quando a Negra de Cassandra estivesse esgotada, não haveria forma de impedir que lhe estilhaçasse a mente.

Tentou livrar-se dele, tentou eliminar o perigo físico imediato para que se pudesse concentrar em proteger a mente. Foi então que se imobilizou ao sentir o dente de serpente encostado ao pulso. Acreditava que o veneno não seria mortal para um Guardião, mas se injectasse uma descarga completa, paralisá-la-ia o tempo suficiente para a destroçar sem impedimentos.

Levantou os olhos, olhando-o com um ar de desafio, os dentes cerrados, preparada para lutar até ao fim. Foi o olhar no rosto, a alteração nos olhos que a detiveram. Podia ver circunspecção. E esperança?

— Não gostais de Dorothea — disse Daemon vagarosamente, como se estivesse a decifrar um problema complexo.

— E gosto ainda menos de Hekatah — afirmou com brusquidão.

— Hekatah. — Daemon largou-a, praguejando baixinho ao caminhar de um lado para o outro. — Hekatah ainda existe? Como vós?

Cassandra fungou. — Não como eu. Eu sou Guardiã. Ela é uma demónia.

— Peço perdão — disse friamente, deambulando pela divisão.

— Estás a dizer que não foste enviado a este sítio para matar a rapariga?

— Cassandra friccionou os pulsos magoados.

Daemon parou. — Aceito um pouco de vinho, se a oferta ainda se mantiver.

Cassandra foi buscar os copos, uma garrafa de vinho tinto e o decantador de yarbarah. Servindo um copo de cada, ofereceu-lhe o vinho.

Daemon testou-o, cheirou-o e bebeu um pequeno gole. Levantou-se uma sobrancelha. — Tendes um excelente gosto para vinho, Senhora.

Cassandra encolheu os ombros. — Não é o meu gosto. Foi um presente. — Vendo que Daemon nada acrescentava, inquiriu: — É para isso que aqui estás?

— Talvez — disse lentamente, reflectindo. Depois, sorriu friamente.

— Julgava que tinha sido enviado para aqui por ter sido um pouco maçador nos últimos tempos e não existir outra corte que me aceitasse ou outra Rainha que Dorothea estivesse disposta a sacrificar para atenuar as minhas emoções. — Bebeu o vinho, saboreando. — Todavia, se aquilo em que acreditais for verídico - e os acontecimentos mais recentes parecem suportar essa convicção -, cometeu um erro muito grave. — Riu-se suavemente, porém, o som que emitiu continha uma tal brutalidade que arrepiou Cassandra.

— Por que razão é um erro? Caso te tenha oferecido algo de valor em...

— Como a minha liberdade? — A circunspecção regressou ao seu olhar.

— Como um século sem ter de me ajoelhar e servir?

Cassandra cerrou os lábios. Estava a ir na direcção errada e se ele se voltasse novamente contra ela, não iria compadecer-se uma segunda vez. — A rapariga é tudo para nós, Príncipe, e nada significa para ti.

— Nada? — Sorriu amargamente. — Achais realmente que alguém como eu, tendo vivido como vivi, sendo o que sou, seria capaz de destruir a única pessoa pela qual esperou toda a vida? Credes que sou assim tão estúpido que não reconheça o que ela é, no que ela se irá tornar? Ela é mágica, Cassandra. Uma singela flor a desabrochar num deserto infindável.

Cassandra olhou pasmada para Daemon. — Estás apaixonado por ela.

— Uma raiva repentina inundou-a com o pensamento que se seguiu. — É uma criança.

— Esse facto não me escapou — disse, friamente, voltando a encher o copo. — Quem é o “nós”?

— O quê?

— Dissestes que a “rapariga significa tudo para nós”. Quem?

— Para mim... — Cassandra hesitou e respirou fundo. — E para o Sacerdote.

Na expressão de Daemon misturavam-se alívio e sofrimento. Humedeceu os lábios. — Ele... ele pensa que eu lhe quero fazer mal? — Abanou a cabeça. — Não interessa. Pensei o mesmo sobre ele.

Cassandra bufou, encolerizada. — Como pudeste... — Deteve-se. Se tinham assim julgado em relação a Daemon, por que razão não poderia ele julgar o mesmo em relação a eles? Sentou-se à mesa da cozinha. Daemon hesitou, mas acabou por se sentar no lado oposto. — Ouve-me — disse Cassandra seriamente, — eu percebo a amargura que sentes em relação a ele, mas isso nem sequer é metade da amargura que ele próprio sente. Nunca te quis abandonar, mas não teve outra alternativa. Não interessa o que possas pensar sobre ele devido à maneira como tiveste de viver, mas uma coisa é verdade: ele adora-a. Com todo o seu ser, com todas as gotas do seu sangue, ele adora-a.

Daemon brincava com o copo de vinho. — Não é um pouco velho para ela?

— Eu diria experiente — respondeu Cassandra mordazmente. — Ela irá tornar-se numa Rainha poderosa e deve ter a seu lado um Administrador mais velho e mais experiente.

Daemon olhou-a de relance, divertido. — Administrador?

— Claro. — Examinou-o. — Ambicionas usar o anel de Administrador?

Daemon abanou a cabeça. Os seus lábios crisparam-se. — Não, não tenho qualquer ambição em usar o anel de Administrador.

Ora, ainda bem. — Cassandra arregalou os olhos. Agora que o gelo tinha passado, agora que estava mais descontraído... — És mesmo tal e qual o teu pai — disse friamente, surpreendendo-se com o imediato riso caloroso. Semicerrou os olhos. — Pensavas... isso é perverso!

— Ai é? — Os olhos dourados de Daemon acariciaram-na com uma vivacidade inquietante. — Talvez seja.

Cassandra sorriu. Sem a raiva e a insensibilidade, era realmente um homem encantador. — O que é que ela pensa em relação a ti?

— Como é que, em nome do Inferno, hei-de eu saber? — resmungou. Os seus olhos semicerraram-se quando Cassandra se riu dele.

— Leva a tua paciência até ao limite? Enfurece-te ao ponto de quereres gritar? Faz-te sentir como se não pudesses saber se o próximo passo te levará a tocar terra firme ou te fará cair num abismo sem fundo?

Olhou para ela, interessado. — Sentis-vos dessa forma?

— Oh, não — disse Cassandra de ânimo leve. — Contudo, eu não sou macho.

Daemon resmoneou.

— Esse som é-me familiar. — Era divertido implicar com Daemon pois, apesar da força que tinha, não a assustava da mesma forma que Saetan. — Tu e o Sacerdote poderão ter mais em comum do que pensas no que a Jaenelle diz respeito.

Daemon riu-se e Cassandra percebeu que fora a ideia de Saetan ficar tão desnorteado quanto ele que o divertira, que o consolava, que o ligava a eles.

Daemon terminou o vinho e levantou-se. — Estou... feliz... por vos ter conhecido, Cassandra. Espero que não seja a última vez.

Cassandra deu-lhe o braço e caminhou com Daemon até à porta exterior do Santuário. — Serás sempre bem-vindo, Príncipe.

Daemon levou a mão de Cassandra aos lábios e beijou-a delicadamente.

Observou-o até desaparecer, para depois regressar à cozinha e lavar os copos.

Restava a delicada questão de explicar este encontro ao pai de Daemon.

 

Há coisas que o corpo nunca esquece, pensou Saetan ironicamente, enquanto Cassandra se aconchegava junto a ele, com a mão a desenhar pequenos círculos inquietos ao longo do seu peito. Até esta noite, tinha recusado, de forma educada, ficar com ela, desconfiado de que ela poderia querer mais dele do que estava disposto a dar-lhe - ou do que era capaz. Contudo, também ela era uma Guardiã, e esse tipo de amor já não fazia parte da sua vida. Existiam, apesar de tudo, algumas penalizações na semivida. Ainda assim, era agradável sentir a pele em contacto com a pele, acariciar as curvas de um corpo feminino. Se ao menos Cassandra fosse directa ao assunto e parasse de fazer aqueles malditos círculos; lembrava-se muito bem o que significavam.

Agarrou-lhe a mão, mantendo-a junto ao seu peito. — E então? — Ao virar a cabeça para lhe beijar o cabelo, sentiu Cassandra a franzir o sobrolho. Cerrou os lábios, aborrecido. Teria ela esquecido como era fácil para ele ler o corpo de uma mulher, detectar os mais subtis estados de espírito? Iria ela negar o que lhe tinha sido gritado no preciso momento em que entrou na cozinha?

— E então? — Cassandra beijou-lhe o peito, levemente, provocando-o.

Saetan respirou fundo. A sua paciência tinha-se esgotado. — Quando é que me vais contar o que se passou esta tarde?

Ficou tensa. — O que aconteceu esta tarde?

Cerrou os dentes. — As paredes recordam-se, Cassandra. Também sou uma Viúva Negra. Queres que extraia das paredes o que aconteceu ou vais contar-me tu própria?

— Na verdade, não há muito...

— Não há muito! — Saetan praguejou ao afastar-se dela, encostando-se à cabeceira da cama. — Os séculos baralharam-te a cabeça, mulher?

— Não...

Saetan olhou-a nos olhos. — Tens medo de mim — disse amarguradamente. — Nunca te magoei, nunca te toquei enfurecido, raramente te levantei a voz. Amei-te, servi-te adequadamente e fiz uso da minha força para manter o voto que te fiz ao longo de todos aqueles anos de desolação. E tens medo de mim. Desde o dia que regressei com a Negra, que tens medo de mim. — Recostou a cabeça e fixou o tecto. — Tens medo de mim e, ainda assim, tens o descaramento de levar o meu filho a uma fúria assassina e tentar ignorá-lo como se nada tivesse acontecido. O que não consigo compreender é como é que este sítio ainda se encontra de pé, qual a razão pela qual não estou à procura dos teus restos mortais ou porque é que ele não estava na entrada à minha espera. Contaste-lhe sobre mim? Servi como trunfo levando-o a hesitar o tempo suficiente para que tentasses serená-lo?

— Não foi assim que aconteceu! — Cassandra puxou os lençóis.

— Então como foi? — A sua voz parecia neutra devido ao esforço que fazia para manter a calma.

— Ele veio aqui pois julgava que eu... nós queríamos fazer mal a Jaenelle.

Saetan abanou a cabeça. — Talvez tu, não eu. Ele já sabia sobre mim. — Desviou o olhar. Não queria ver a confusão que Cassandra sentia, não queria considerar o que poderia acontecer se a ténue ligação entre ele e Daemon fosse destruída.

— Saetan... ouve-me. — Cassandra estendeu-lhe a mão. Hesitou um momento antes de estender o braço e permitir que ela se encostasse ao seu ombro. Escutou-a, sem interrupções, enquanto ela descrevia o encontro com Daemon, suspeitando que ela tinha aparado algumas pontas, que lhe tinha servido o osso completamente descarnado.

— Tiveste muita sorte — disse, quando Cassandra terminou.

— Bem, eu sei que usa a Negra.

Saetan bufou e abanou a cabeça. — Existe uma amplitude de forças em cada Jóia. Sabes isso tão bem como eu.

— Ele não foi devidamente treinado.

— Não confundas competência com requinte. Pode não concretizar tudo o que quer com delicadeza, mas isso não significa que não o consiga fazer.

Cassandra remexeu-se, irritada por Saetan não ter ficado satisfeito com a descrição do encontro. Havia ainda toda aquela carne que não lhe tinha servido.

— Parece que o receias — disse, mal-humorada.

— E receio.

Cassandra resfolegou.

Subitamente, Saetan pareceu cansado. Cansado de Cassandra, cansado de Hekatah, cansado de todas as feiticeiras que tinha conhecido e que, independentemente do que sentiam ou não sentiam por ele como homem, contemplavam as suas Jóias e viam ali o potencial para atingirem os seus fins. Somente aquela com os olhos cor de safira o via como Saetan. Apenas Saetan.

— Porquê? — perguntou Cassandra, observando o rosto de Saetan atentamente.

Saetan fechou os olhos. Tão cansado. E havia outro homem, um homem bem mais desesperado, que tinha vivido apenas dezassete séculos, mas que estava igualmente cansado. — Porque é mais forte do que eu, Cassandra. E não se deve somente ao facto de estar vivo. É mais forte do que eu era no meu auge e é... mais implacável.

Cassandra mordeu o lábio. — Ele tem conhecimento de Jaenelle. Fiquei com a impressão de que sabe onde ela se encontra.

Saetan soltou uma gargalhada aguda. — Oh, suponho que sim. Com certeza não será necessário andar muito desde o quarto de Daemon ao de Jaenelle.

— O quê?

Encontra-se a servir a família dela, Cassandra. Vivem na mesma casa. — Inclinou-se para Cassandra, segurando-lhe o queixo entre os dedos. — Agora já começas a perceber? Sabe sobre mim porque a Jaenelle lhe contou, não tendo consciência, tenho a certeza, que o faria trepar as paredes. E eu sei sobre ele porque o próprio me enviou uma mensagem, através de Jaenelle. Uma mensagem educada, avisando-me, basicamente, para me manter afastado do seu território.

— Não pretende ser Administrador da corte.

Saetan riu-se, verdadeiramente divertido. — Claro que não, não pensei que pretendesse. Está no seu auge, viril, vivo e bem treinado em termos de sedução. Aquele corpo de doze anos deve estar a enlouquecê-lo.

Cassandra hesitou. — Daemon pensava que pretendias ser Consorte de Jaenelle.

Saetan olhou-a de lado. — O que lhe disseste?

— Que ela precisava de um Administrador mais velho e mais experiente.

— Foi simpático da tua parte.

Cassandra suspirou. — Ainda estás zangado por ter falado com ele.

— Não, não estou. Só queria... — Tê-lo visto, falado com ele, sentir a força da sua mão, ouvir o som da sua voz. Ter a oportunidade de nos avaliarmos honestamente. Somos forçados a confiar um no outro porque Jaenelle nos está a pedir, porque ela confia.

Acariciou o cabelo de Cassandra. — Promete-me que te acautelarás. Hekatah está à procura de Jaenelle. Se Dorothea estiver a apoiar o empreendimento, ele saberá bem onde detectar o perigo proveniente desse lado. Se ele nos virá ou não solicitar ajuda, irá depender se confia ou não em nós. Eu quero ganhar essa confiança, Cassandra, e não é só por causa de Jaenelle. Deves-me isso.

 

                           CAPÍTULO 10

Porque é que faz tantas perguntas incómodas? Pensou Daemon, cerrando os dentes e olhando para a frente, ao caminharem pelo jardim. Quase que sentia a falta de Wilhelmina, que estava de cama, constipada. Pelo menos na presença da irmã, Jaenelle não lhe colocava questões que o faziam corar.

— Não ides responder, pois não? — questionou Jaenelle após um minuto de silêncio de ranger de dentes.

— Não.

— Não sabeis a resposta?

— Se eu sei ou não a resposta, não interessa. Não é algo que um homem discuta com uma menina.

— Mas sabeis a resposta. Daemon resmoneou.

— Se fosse mais velha, dir-me-íeis? — Insistiu Jaenelle. Parecia ainda haver uma saída. — Sim, se fôsseis mais velha.

— De que idade?

— O quê?

— Que idade teria de ter?

— Dezanove — disse rapidamente, começando a descontrair. Sabia-se lá que tipo de perguntas poderia fazer daqui a sete anos, mas, pelo menos, não tinha de responder a esta.

— Dezanove?

O estômago de Daemon rodopiou. Apressou o passo. A forma satisfeita como tinha proferido aquele número fê-lo sentir-se claramente incomodado.

— O Sacerdote disse que não me iria responder até eu ter vinte e cinco anos — disse Jaenelle alegremente, — mas tu irás dizer-me seis anos antes.

Daemon parou de repente. Os seus olhos semicerraram-se ao olhar para o rosto feliz e de nariz arrebitado e para os límpidos olhos cor de safira. — Perguntastes ao Sacerdote?

Jaenelle pareceu ligeiramente incomodada, o que fez com que Daemon se sentisse ligeiramente melhor. — Bem... sim.

Daemon imaginou Saetan a tentar lidar com a mesma pergunta e lutou contra o impulso de se rir. Pigarreou, tentando parecer severo. — Fazeis-me sempre as mesmas perguntas que fazeis a ele?

— Depende se obtenho ou não uma resposta.

Daemon cerrou os dentes para evitar deixar sair uma maravilhosa e significativa resposta. — Compreendo — disse com uma voz estrangulada. Recomeçou a andar.

Jaenelle saltitou à sua frente e examinou algumas folhas. — Por vezes, faço a mesma pergunta a muitas pessoas.

A cabeça de Daemon começou a doer. — E o que fazeis se não obtiverdes a mesma resposta?

— Pondero sobre o assunto.

— Mãe Noite — murmurou.

Jaenelle juntou algumas folhas e fez má cara. — Algumas perguntas só posso voltar a fazê-las quando tiver cem anos. Não acho que seja justo, pois não?

Acho!

— Quer dizer — prosseguiu, — como é que vou aprender o que quer que seja se ninguém me disser?

— Existem questões que não deveriam ser colocadas até a pessoa ser suficientemente madura para apreciar as respostas.

Jaenelle deitou a língua de fora. Ele respondeu da mesma forma.

— Lá porque sois um pouco mais velho do que eu, não quer dizer que sejais mandão — queixou-se.

Daemon olhou por cima do ombro para verificar se estava mais alguém por perto. Não estava, o que significava que se estava a referir a ele. Quando é que tinha deixado de ser idoso para passar a ser um pouco mais velho... e mandão?

Fedelha insolente. Exasperante, impossível... como é que o Sacerdote conseguia aguentar? Como...

Daemon sorriu o melhor que sabia, o que se revelou difícil pois os dentes encontravam-se ainda cerrados. — Ides encontrar-vos hoje com o Sacerdote?

Jaenelle franziu o sobrolho, desconfiada. — Sim.

— Entregais-lhe uma mensagem?

Os olhos de Jaenelle semicerraram-se. — Está bem — disse prudentemente.

— Vinde, tenho papel no meu quarto.

Enquanto Jaenelle aguardava à porta do quarto, Daemon redigiu a questão e selou o sobrescrito. Jaenelle observou-o, encolheu os ombros e enfiou-o no bolso do casaco. Despediram-se então, indo Daemon acompanhar Alexandra nas suas visitas matutinas e ela para as suas aulas.

Saetan levantou os olhos do livro. — Não era suposto estares com Andulvar? — perguntou quando Jaenelle entrou de rompante no seu gabinete. Saetan e Andulvar tinham decidido que, sob o pretexto de estudar armas eyrienas, Andulvar ensinar-lhe-ia autodefesa física enquanto Saetan se concentraria nas armas da Arte.

— Sim, mas queria entregar-te isto primeiro. — Entregou-lhe um simples sobrescrito branco. — Prothvar vai dar apoio na aula?

— Julgo que sim — respondeu Saetan, examinando o sobrescrito. Jaenelle torceu o nariz. — Os rapazes são brutos, não são? Empurra-te porque tem medo de ti, criança-feiticeira. — Sim, acho que são. Vai lá então.

Deu-lhe um forte abraço. — Vejo-te a seguir? Beijou-a na face. — Tenta lá sair sem me vires ver. Sorriu de orelha a orelha e saiu de rompante. Saetan virou e tornou a virar o sobrescrito antes de, finalmente, abrir cuidadosamente a dobra. Retirou a única folha de papel, leu-a, voltou a lê-la... e começou a rir.

Quando Jaenelle regressou e depois de pilhar as sanduíches e os bolinhos de avelã que a aguardavam, Saetan entregou-lhe o sobrescrito, selado novamente com cera preta. Enfiou-o no bolso, não mostrando curiosidade, por delicadeza, relativamente a esta troca de correspondência entre Saetan e Daemon.

Depois de Jaenelle se ter ido embora, sentou-se na sua cadeira, com um sorriso a rondar-lhe os lábios, perguntando-se o que faria o seu belo e jovem Príncipe com a resposta que lhe tinha enviado.

Daemon estava a ajudar Alexandra a vestir a capa, quando Jaenelle apareceu de repente no corredor. Tinha passado o dia a oscilar entre a curiosidade e a preocupação, lamentando a reacção impulsiva que o fez enviar aquela mensagem. Neste momento, Daemon e Alexandra estavam de saída para o teatro, não sendo nem a altura nem o sítio certos para questionar Jaenelle sobre a mensagem.

— Estás maravilhosa, Alexandra — exprimiu Jaenelle, admirando o elegante vestido.

Alexandra sorriu mas franziu ligeiramente o sobrolho. Irritava-a o facto de Jaenelle insistir em dirigir-se a toda a gente pelo primeiro nome. Excepto a ele. — Obrigada, minha querida — disse, um pouco rigidamente. — Não devias estar já na cama?

— Só queria dar as boas-noites — disse Jaenelle educadamente, mas Daemon reparou na pequena alteração no seu rosto, a tristeza sob a máscara de criança. Reparou também que não lhe dirigiu a palavra.

Estavam a dirigir-se à porta quando Daemon sentiu algo no bolso do casaco. Enfiando os dedos no bolso, sentiu o sobrescrito e um aperto na garganta.

Passou o serão a tocar furtivamente no sobrescrito, desejando encontrar uma desculpa para ficar sozinho por um minuto para o poder tirar para fora. Anos de autocontrole e de disciplina fizeram-se valer e foi só quando deixou Alexandra a ser embalada por um sono satisfeito e se encontrou sozinho no seu próprio quarto que se permitiu olhar para o sobrescrito.

Olhou fixamente para a cera preta. O Sacerdote tinha lido a mensagem. Humedeceu os lábios, respirou fundo e quebrou o selo.

A caligrafia era robusta, clara e masculina com um floreado arcaico. Leu a resposta, voltou a lê-la... e riu-se.

Daemon tinha escrito: "O que fazeis quando ela vos põe uma questão à qual um homem nunca deveria responder a uma criança?"

Saetan respondeu: "Fico na esperança de que tenhas a amabilidade de responder por mim. Contudo, se te encontrares encurralado, recomenda que ela me consulte. Já me habituei ao choque."

Daemon sorriu de orelha a orelha, abanou a cabeça e escondeu a nota entre os seus papéis pessoais. Nessa noite, bem como nas noites que se seguiram, adormeceu a sorrir.

 

Com o sobrolho franzido, Daemon encontrava-se debaixo do ácer, na alcova. Tinha visto Jaenelle entrar aqui há alguns minutos atrás, podia senti-la por perto mas não a conseguia encontrar. Onde...

Um ramo agitou-se sobre a sua cabeça. Daemon olhou para cima e engoliu em seco para evitar que o coração saltasse pela boca. Voltou a engolir - em seco - para reprimir a reprimenda que lhe estava a empolar a garganta, num esforço para se libertar. Toda aquela deglutição tinha-lhe provocado uma dor de cabeça. Quando as suas narinas se dilataram, respirando com dificuldade e o seu fôlego lançou baforadas brancas no ar frio, Jaenelle soltou a sua gargalhada argentina e aveludada.

— Os dragões fazem isso, mesmo não estando frio — disse jovialmente, olhando para baixo no ramo mais baixo, uns bons dois metros e meio acima da cabeça de Daemon. Estava de cócoras no ramo, com os braços à volta dos joelhos e nenhuma forma discernível de se segurar, caso se desequilibrasse.

Daemon não estava interessado em dragões e o seu coração já não estava a tentar saltar para fora do corpo - tentava, agora, rastejar para o estômago e esconder-se.

— Importais-vos de descer daí, Senhora? — disse, surpreendido pelo tom descontraído da sua voz. — As alturas deixam-me um pouco nauseado.

— A sério? — As sobrancelhas de Jaenelle ergueram-se de espanto. Encolheu os ombros, levantou-se e saltou.

Daemon saltou para a frente com o objectivo de a apanhar, mas recuou a tempo, pelo que foi contemplado com um espasmo de protesto de um músculo das costas. Ficou a olhar, de olhos arregalados, enquanto Jaenelle flutuava para o chão, de forma tão graciosa quanto as folhas que dançavam à sua volta, pousando, por fim, na relva alguns centímetros à frente de Daemon.

Daemon endireitou-se, retraiu-se em virtude de um novo espasmo do músculo e olhou para a árvore. Mantém-te calmo. Se gritares com ela, não irá responder a qualquer pergunta.

Respirou fundo, expirando uma baforada de vapor.Como subistes para ali?

Sorriu-lhe de forma duvidosa, mas como se estivesse a entrar no jogo.

— Da mesma forma que desci.

Daemon sorriu e sentou-se no banco em ferro forjado que circundava a árvore. — Mãe Noite — murmurou, encostando a cabeça à árvore e fechando os olhos.

O silêncio prolongou-se durante algum tempo. Sabia que Jaenelle o observava, afofando o cabelo e tentando decifrar o seu aparentemente estranho comportamento.

— Não sabeis pairar no ar. Príncipe? — perguntou Jaenelle, hesitante, como se estivesse a tentar não o ofender.

Daemon abriu ligeiramente os olhos. Conseguia ver-lhe os joelhos – e os pés. Sentou-se devagar e estudou os pés assentes firmemente em nada.

— Parece que faltei a essa lição — disse friamente. — Podeis ensinar-me? Jaenelle hesitou, mostrando-se tímida, de súbito.

— Por favor? — Odiou o anseio presente na voz. Odiava sentir-se tão vulnerável. Tinha começado a elaborar uma desculpa, mas aquele tom na voz de Daemon interrompeu-a, fê-la olhá-lo com atenção. Daemon não tinha ideia do que Jaenelle viu no seu rosto. Sentiu-se simplesmente em bruto, despido e impotente perante o olhar fixo daqueles olhos cor de safira.

Jaenelle sorriu com timidez. — Posso tentar. — Hesitou. — Nunca experimentei ensinar um adulto.

— Os adultos são como as crianças, mas mais crescidos — disse Daemon animadamente, pondo-se em pé de um salto.

Jaenelle suspirou, sendo a sua expressão de um divertimento sofrido.

— Aqui para cima — disse ao subir para o banco em ferro. Daemon subiu, colocando-se a seu lado.

— Conseguis sentir o banco debaixo dos vossos pés? Claro que conseguia. Estava um dia frio deixando adivinhar neve pela manhã e podia sentir o frio do banco de ferro penetrando pêlos sapatos. — Sim.

— Tendes mesmo de sentir o banco.

— Senhora — disse Daemon, secamente, — sinto mesmo o banco.

Jaenelle franziu o nariz. — Ora bem, o que tendes de fazer é prolongar o banco ao longo de todo o recanto. Dais um passo — avançou um pé e parecia que estava realmente a pisar algo sólido — e continuais a sentir o banco. Assim. — Passou o outro pé para a frente, ficando a pairar no ar, exactamente à altura do banco. Olhou para Daemon por cima do ombro.

Daemon respirou fundo, expirando uma baforada de vapor. — Está bem. — Imaginou o banco a prolongar-se à sua frente, colocou um pé à frente, no ar e tombou para a frente visto nada haver por baixo. O pé bateu de chapa no chão duro, sacudindo-o do tornozelo aos ouvidos.

Levou o outro pé ao chão e testou o tornozelo cuidadosamente. Ficaria um pouco dorido, mas estava inteiro. Manteve as costas ligeiramente voltadas para ela, rangendo os dentes, aguardando a risadinha insolente que tinha ouvido em tantas outras cortes sempre que o tinham levado a fazer figuras ridículas. Estava furioso por ter falhado, furioso pelo desespero súbito que sentia por temer que Jaenelle julgasse que era um companheiro inadequado.

Tinha-se esquecido que Jaenelle era Jaenelle.

— Desculpai, Daemon — pronunciou uma voz trémula e sussurrante por detrás de Daemon. — Desculpai. Magoastes-vos?

— Só no meu orgulho — disse Daemon ao virar-se, os lábios ajustados num sorriso pesaroso. — Senhora? — Em seguida, alarmado, — Senhora! Jaenelle, não, querida, não choreis. — Puxou-a para os seus braços enquanto os ombros de Jaenelle estremeciam devido ao esforço de não emitir qualquer som. — Não choreis — trauteou Daemon, acariciando-lhe o cabelo.

— Não choreis, por favor. Não estou magoado. Sinceramente, não estou.

— Uma vez que a cabeça de Jaenelle estava enterrada no seu peito, permitiu-se um sorriso angustiado ao beijar-lhe o cabelo. — Devo ser demasiado crescido para aprender magia.

— Não, não sois — disse Jaenelle, afastando-se dele e limpando as lágrimas do rosto com as costas das mãos. — Só que até agora nunca tinha tentado explicar isto a alguém.

— Ora, aí tendes — disse Daemon, com uma animação exagerada.

— Se nunca demonstrastes a ninguém...

— Oh, demonstrei a muitos dos meus outros amigos — disse Jaenelle, bruscamente. — Só que nunca tentei explicar.

Daemon estava intrigado. — Como é que lhes demonstrastes?

De imediato, sentiu que se afastava dele. Não de forma física - nem se tinha mexido - mas interiormente.

Jaenelle olhou para Daemon de relance, nervosa, antes de se esconder por detrás do véu de cabelo. — Eu... toquei-os... para que percebessem.

A brasa nas suas entranhas, que o aquecia desde a primeira vez que a tinha visto, flamejou por um breve momento e voltou a diminuir de intensidade. Tocá-la, mente com mente, penetrar sob as sombras... Nunca se teria atrevido a sugerir, nunca se teria atrevido a fazer-lhe a primeira proposta até que ela fosse muito, muito mais velha. Mas agora. Ligar-se a ela, mesmo que por breves instantes, para lá da primeira barreira interior - ah, tocar Jaenelle.

Daemon ficou com água na boca.

Existia o risco, claro. Mesmo que fosse Jaenelle a iniciar o toque, poderia ser demasiado cedo. Ele era o que era e, mesmo na primeira barreira, estava presente o redemoinho de raiva e de astúcia de predador que constituía o Príncipe dos Senhores da Guerra chamado Daemon Sadi. E era macho, adulto. Também isso seria evidente.

Daemon respirou fundo. — Se tiverdes medo de me magoar pelo toque, eu...

— Não — disse prontamente. Fechou os olhos e Daemon podia sentir o seu sofrimento. — É que eu sou... diferente... e algumas pessoas, quando os toquei... — A sua voz perdeu-se e Daemon compreendeu.

Wilhelmina. Wilhelmina, que amava a irmã e tinha ficado feliz por a ter de volta, tinha, por alguma razão, rejeitado o toque tão pessoal.

— Lá porque algumas pessoas acharem que sois diferente...

— Não, Daemon — disse Jaenelle suavemente, olhando para Daemon com aqueles olhos vetustos, melancólicos e perturbados. — Todos sabem que sou diferente. Só que para alguns não tem importância - e para outros tem uma enorme importância. — Uma lágrima escorreu-lhe pela face. — Por que é que sou diferente?

Daemon desviou o olhar. Ah, criança. Como poderia ele explicar-lhe que era os sonhos tornados realidade? Que, para alguns, fazia com que o sangue nas veias cantasse? Que era o tipo de magia que os Sangue já não viam há tanto, tanto tempo? — O que diz o Sacerdote?

Jaenelle fungou. — Diz que crescer é uma tarefa difícil.

Daemon sorriu compreensivamente. — É pois.

— Diz que todos os seres vivos lutam para sair do casulo ou da concha para que se tornem naquilo a que estão destinados. Diz que dançar pela glória da Feiticeira é celebrar a vida. Diz que é bom sermos todos diferentes senão o Inferno seria um sítio horrivelmente desinteressante.

Daemon riu-se, mas não iria deixar que o distraísse. — Ensinai-me. — Tinha sido uma ordem arrogante, suavizada apenas pela maneira dócil com que foi proferida.

Ali estava ela. Imediatamente. Mas de um modo que nunca tinha sentido antes. Sentiu-a a detectar a confusão, sentiu que chorava de desespero pela reacção obtida.

— Esperai — disse Daemon rispidamente, erguendo uma mão. — Esperai.

Jaenelle estava ainda ligada a ele. Sentiu o batimento rápido do coração de Jaenelle, a respiração nervosa. Cautelosamente, explorou.

Jaenelle não tinha ultrapassado a primeira barreira, onde os pensamentos e as sensações eram analisados e, ainda assim, era mais do que a simples ligação interior para comunicação utilizada pêlos Sangue. E estava para além da vigilância física que normalmente fazia na cama. Era a partilha da experiência física. Sentiu o cabelo a roçar-lhe o rosto, como se fosse o dele, sentiu a textura do vestido junto à pele.

Ah, as potencialidades deste tipo de ligação durante...

— Muito bem — disse, passado um momento. — Acho que já me ambientei. E agora? — Sentiu o rosto a arder enquanto Jaenelle o observava circunspectamente.

Por fim, disse: — Agora caminhamos no ar.

Era estranha a sensação de que as pernas eram, em simultâneo, compridas e curtas, e teve que tentar algumas vezes para subir novamente para o banco. Divertido, abanou a cabeça face à expressão perplexa de Jaenelle. Naturalmente, se todos os outros amigos fossem crianças, seriam, provavelmente, todos de idades próximas, bem como de tamanhos aproximados. E do mesmo género? Afastou este pensamento antes de ter tempo de sentir ciúmes.

Depois disso, tinha sido extraordinariamente simples e Daemon deleitou-se. Aprendeu sentindo os movimentos de Jaenelle. Era semelhante a fazer um objecto flutuar no ar, mas o procedimento era feito a si próprio. Treinaram caminhar a direito desfilando à volta do recanto. A seguir para cima e para baixo. Simular subir escadas demorou mais tempo a apanhar o jeito, pois Daemon pretendia uma distância que fosse mais compatível com as suas próprias pernas e passou o tempo a tropeçar em nada.

Foi então que a ligação desapareceu e Daemon ficou a pairar no ar, sozinho, com Jaenelle a observá-lo, os olhos reluzentes de orgulho e deleite. Quando Daemon desceu até ao chão com um floreio gracioso, Jaenelle bateu as palmas, encantada.

Daemon abriu os braços. Jaenelle deslizou na sua direcção e envolveu-lhe o pescoço com os braços. Ele abraçou-a com força, o rosto mergulhado no cabelo de Jaenelle. — Obrigado — disse com a voz rouca. — Obrigado.

— De nada, Daemon. — A sua voz era uma carícia adorável e sensual.

A abraçá-la tão junto a ele, com os lábios tão próximos do pescoço de Jaenelle, não queria largá-la, mas a cautela venceu o desejo.

Não a afastou. Agarrou-a pêlos ombros, delicadamente, e recuou. — É melhor regressarmos antes que alguém venha procurar-nos.

O brilho de felicidade de Jaenelle esmoreceu. Deixou-se cair no chão, despreocupadamente. — Pois é. — Olhou para o canteiro de sangues-de-feiticeira. — Pois é. — Caminhou para o exterior do recanto, sem esperar por Daemon.

Daemon aguardou um minuto. É melhor não entrarmos juntos. É melhor não ser tão óbvio. Para segurança de Jaenelle, tinha de ser cauteloso.

Olhou de soslaio para o canteiro de sangues-de-feiticeira e saiu rapidamente do recanto. Ao deslizar pêlos caminhos do jardim, o rosto voltou a ostentar a máscara de frieza familiar, com a felicidade que tinha sentido há minutos a afiar a lâmina do seu temperamento, ficando tão aguçada que poderia até fazer o ar sangrar.

Se cantardes a melodia certa, dir-vos-ão os nomes dos que já morreram.

Tudo tem um preço.

Independentemente do preço, independentemente do que tivesse de fazer, certificar-se-ia de que uma daquelas plantas não seria para ela.

 

Daemon vestiu a camisola de lã de um vermelho vivo e compôs o colarinho da camisa aos quadrados dourados e brancos. Satisfeito, examinou o seu próprio reflexo. Os seus olhos pareciam manteiga derretida pela boa disposição, o rosto subtilmente alterado pelo sorriso rasgado e descontraído de rapazolas. A alteração no seu próprio aspecto deixou-o surpreendido, mas, passado um momento, abanou a cabeça e penteou-se.

A diferença devia-se a Jaenelle e às formas incalculáveis que tinha de o preocupar, intrigar, fascinar, encolerizar e encantar. Mais ainda, agora, estando esse período tão distante no tempo, ela estava a proporcionar-lhe - ao Sádico entediado e exausto - uma infância. Jaenelle coloria os dias de magia e de encantamento e Daemon via agora, como se fossem novidade, todas as coisas às quais tinha deixado de prestar atenção.

Sorriu perante o seu próprio reflexo. Sentia-se como uma criança de doze anos. Não, doze não. Pelo menos uns experientes catorze anos. Ainda suficientemente jovem para brincar com uma rapariga como amigo, porém, já com idade para imaginar o dia em que lhe roubaria o primeiro beijo.

Daemon enfiou o casaco, dirigiu-se à cozinha, furtou um par de maçãs da fruteira, piscou o olho à Cozinheira e abandonou-se a uma manhã passada com Jaenelle.

O jardim estava debaixo de vários centímetros de neve seca que soltava vapor à volta das suas pernas. Seguiu as pegadas mais pequenas que pareciam caminhar, saltitar, saltar ao pé-coxinho e pular ao longo do caminho. Ao chegar à curva que o afastava da visão de quem quer que olhasse pelas janelas do piso mais alto da casa, as pegadas desapareceram.

Daemon verificou de imediato todas as árvores circundantes e soltou um suspiro ruidoso de alívio por não a encontrar em nenhuma delas. Teria ela retrocedido usando as próprias pegadas, esperando que Daemon passasse por ela?

Com um grande sorriso, juntou alguma neve nas mãos com luvas, mas estava demasiado mole, pelo que não era possível juntá-la. Ao endireitar-se, foi atingido no pescoço por algo mole. Uivou ao sentir o montinho de neve a descer pelas costas abaixo.

Daemon girou nos calcanhares, semicerrando os olhos ao mesmo tempo que os lábios se contraíam. Jaenelle estava a poucos metros dele, com o rosto a brilhar de malandrice e diversão, e o braço levantado para mandar a segunda bola de neve. Daemon pôs as mãos na anca. Jaenelle baixou o braço, olhando-o por entre as pestanas, tentando ficar séria enquanto aguardava a reprimenda.

E Daemon repreendeu-a. — É desleal — disse com a sua voz mais severa, — iniciar uma luta de bolas de neve quando apenas um dos combatentes consegue fazê-las. — Aguardou, adorando o brilho nos olhos de Jaenelle. — Então?

Mesmo sem ler os pensamentos subjacentes, podia perceber que o seu toque estava repleto de riso. Daemon curvou-se, apanhou alguma neve e aprendeu a fazer bolas de neve a partir de neve demasiado mole para juntar. Também isto se assemelhava a uma lição básica de Arte - criar uma bola de luz encantada - porém requeria um conhecimento mais subtil e mais intrínseco de Arte que Daemon não sabia que alguém pudesse ter.

— Foi o Sacerdote que vos ensinou isto? — perguntou ao levantar-se, encantado com a bola de neve perfeita que segurava nas mãos.

Jaenelle olhou-o chocada. E depois deu uma gargalhada. — Nãoooo. — Levantou o braço rapidamente, atingindo-o no peito com uma bola de neve.

Os minutos seguintes foram de guerra total, crivando-se mutuamente de bolas de neve, tão rapidamente quanto as conseguiam produzir.

Quando terminaram, Daemon estava salpicado de montinhos brancos. Inclinou-se, apoiando as mãos nos joelhos. — Cedo-vos o campo, Senhora

— disse, ofegante.

— É o melhor que podeis fazer — respondeu mordazmente. Daemon ergueu a cabeça, franzindo o sobrolho. Jaenelle torceu o nariz e correu em direcção ao recanto. Daemon deu um salto atrás dela, correu alguns passos, parou e olhou para trás. As únicas pegadas eram as suas. Agachou-se, examinando a neve. Quer dizer, não era bem assim. Podiam vislumbrar-se umas simples marcas na neve que se dirigiam ao caminho do recanto. Daemon riu-se e pôs-se de pé. — Bruxinha esperta. — Levantou um pé, colocou-o sobre a neve, concentrando-se até sentir que estava a pisar chão firme. Posicionou o outro pé. Passo, passo, passo. Olhou para trás e sorriu rasgadamente por não ver pegadas. Correu, então, para o recanto.

Jaenelle debatia-se para empurrar a parte de baixo de um boneco de neve para o centro do recanto. Ostentando ainda o largo sorriso, Daemon ajudou-a a empurrar. Começou depois a trabalhar na parte do meio enquanto Jaenelle criava uma bola para a cabeça. Trabalharam num silêncio de camaradagem, Daemon preenchendo os espaços vazios enquanto Jaenelle pairava no ar e moldava a cabeça.

Jaenelle recuou, observou o que ambos tinham elaborado e começou a rir-se. Daemon recuou, olhou para o boneco e começou a tossir e a gemer e a rir-se. Embora rudemente moldado, não havia dúvidas em relação ao rosto sobre o corpo grosseiramente rechonchudo.

— Sabeis — mal conseguia falar, — se algum dos guardas vir isto e se chegar aos ouvidos da Graff... vamos ter sérios problemas.

Jaenelle olhou-o de esguelha, falseando de malandrice e Daemon não se importou com os problemas que pudessem surgir.

Tirou as maçãs do bolso e ofereceu uma a Jaenelle, que lhe deu uma dentada, mastigou pensativamente e suspirou. — Não durará muito, sabeis — disse, pesarosamente.

Daemon olhou para ela, perplexo. — Nunca duram. — Olhou para o sol que começava a espreitar por detrás das nuvens. — Acho que esta neve não irá durar. Parece que está a aquecer.

Jaenelle abanou a cabeça e deu outra dentada na maçã. — Não — disse, engolindo. — Desaparecerá antes de derreter. Não consigo mante-la muito tempo. — Franziu o sobrolho e afofou o cabelo ao mesmo tempo que observava a Graff de neve. — Falta algo. Algo que ainda não sei e que poderia aguentá-la mais tempo...

Que o consigas sequer fazer já está para além do que a maioria alcança, Senhora.

— .. .que poderia tecer...

Daemon arrepiou-se. Atirou o caroço da maçã para os arbustos para que os pássaros o encontrassem. — Nem penseis nisso — disse, sem se preocupar se a sua voz parecesse severa.

Jaenelle olhou para ele, surpreendida.

— Nem penseis em fazer experiências com a tecelagem de sonhos sem a orientação de alguém que o saiba fazer correctamente. — Colocou mãos nos ombros de Jaenelle, apertando ligeiramente. — Tecer uma teia de sonhos pode ser muito perigoso. As Viúvas Negras só aprendem a fazê-lo na segunda fase do treino visto ser tão fácil deixarem-se enredar na teia. — Manteve-a à distância do comprimento dos braços, perscrutando-lhe o rosto. — Prometei-me, por favor, que não tentareis fazê-lo sozinha. Que ireis ser ensinada por quem de melhor existir nesta área. — Porque eu não aguentaria se existisse apenas uma carapaça vazia e de olhar inexpressivo para amar, sabendo eu que estarias perdida algures fora do meu alcance, sem retorno.

As mãos de Daemon apertaram um pouco mais os ombros de Jaenelle. A sua expressão pensativa assustou-o.

— Sim — disse Jaenelle, por fim. — Claro que tendes razão. Se vou aprender, tenho de pedir a quem nasceu com esse dom que me ensine. — Examinou a Graffde neve. — Vedes? Já está a desfazer-se.

A neve começava a perder a forma, a escorrer para um monte esponjoso no centro do recanto.

Juntos, caminharam pelo ar até ao caminho principal do jardim. Descendo até à neve, Jaenelle caminhou com dificuldade, afastando-se da casa alguns metros, voltou-se e caminhou penosamente de volta, pontapeando a neve, deixando um rasto bastante perceptível. Daemon olhou para trás para o caminho sem marcas e ponderou nas consequências se os outros descobrissem que Jaenelle podia movimentar-se sem deixar rasto, desceu até ao chão e arrastou-se atrás dela, de volta à casa.

 

Daemon entrou de rompante no quarto, bateu com a porta, despiu-se, tomou um duche e voltou ao quarto.

Cabra. Cabra estúpida e berrante. Com se atrevia? Como se atrevia7. As palavras de Leiand causticavam-no. Hoje à noite, vamos receber, só algumas das minhas amigas. Servir-nos-ás, claro, por isso espero que te vistas em conformidade.

O frio arrebatava-o, incrustando-se com uma calma glacial. Respirou fundo e sorriu.

Se a cabra queria uma noite de prostituição, ele dar-lhe-ia um prostituo.

Levantando uma mão, Daemon invocou dois baús pessoais. Para onde quer que viajasse, os baús que continham as suas roupas e haveres "pessoais" eram sempre colocados à vista e os respectivos conteúdos podiam ser examinados por qualquer Rainha ou Administrador que optasse por vasculhar as suas coisas. Aqueles eram os únicos que nunca dava a conhecer. Os baús pessoais continham os artigos que eram, de algum modo, de grande valor para Daemon.

Um desses baús estava meio vazio e continha recordações pessoais, um testemunho da parcimónia que era a sua vida. Continha também os estojos forrados a veludo e fechados à chave que continham as suas Jóias – a Vermelha de Direito por Progenitura e a fria e gloriosa Negra. O outro baú continha vários conjuntos aos quais se referia sarcasticamente como "roupas de prostituto" - roupas de uma dúzia de culturas diferentes, concebidos para excitar os sentidos femininos.

Abriu o baú dos fatos e examinou o conteúdo. Sim, aquele iria servir perfeitamente.

Retirou um par de calças pretas de cabedal, sendo o cabedal tão suave e o corte tão perfeito que se ajustavam como uma segunda pele. Vestiu-as, arranjando a protuberância à frente da forma que lhe era mais favorável. A seguir vieram as botas pretas de cabedal, de cano e tacão altos. A camisa em seda branca, perfeitamente talhada, formava um V oblíquo do decote à cintura, onde era abotoada por dois botões em madrepérola, com mangas ondulantes e punhos justos. De seguida, retirou os boiões de maquilhagem e, com uma deliberação gélida e cruel, aplicou uma cor subtil nas bochechas, pálpebras e lábios. Estava feito com tanta perícia que o fazia parecer andrógino, se bem que mais selvaticamente macho, uma mistura inquietante. Arrumando os boiões de maquilhagem no baú, retirou uma pequena argola em ouro do respectivo estojo e enfiou-a na orelha. Penteou-se, usando Arte para que ficasse com um estilo descontraidamente desalinhado. Por último, um chapéu de feltro preto com uma faixa preta em cabedal e uma grande pluma branca. Em frente ao espelho de corpo inteiro, colocou cuidadosamente o chapéu e examinou o próprio reflexo.

Sorrindo em antecipação da reacção de Leiand ao seu traje, Daemon ouviu uma batida rápida na porta antes de esta se abrir para logo se fechar.

Viu-a pelo espelho. Por um breve momento, a vergonha ameaçou estilhaçar a crosta gelada de raiva, mas conseguiu sustê-la. Ela era, apesar de tudo, uma fêmea. O sorriso cruel e sensual de Daemon floresceu ao voltar-se.

Jaenelle olhou-o pasmada, de olhos arregalados e boca aberta. Daemon nada disse, nada fez. Aguardou, simplesmente, pela vistoria, pelas palavras condenatórias.

Olhou para os pés e os olhos viajaram lentamente para cima. A respiração de Daemon ficou suspensa quando o olhar chegou às ancas. Daemon aguardou pela especulação tão familiar sobre o que estaria entre aquelas pernas ou pelo rápido e envergonhado olhar de relance que recuava depois de passar apressadamente. Jaenelle não pareceu reparar. A sua vistoria não sofreu alterações de velocidade ao examinar a camisa, o brinco, o rosto e, por fim, o chapéu. Logo depois, recomeçou no chapéu e fez o percurso inverso.

Daemon aguardou.

Jaenelle abriu a boca, fechou-a e, por fim, disse timidamente:

— Achais que, quando crescer, poderei usar uma roupa como essa? Daemon mordeu a bochecha. Não sabia se havia de rir ou chorar. Para ganhar tempo, baixou a cabeça para olhar para si próprio. — Bem — disse reflectindo com calma, — a camisa teria de ser um tanto ou quanto alterada para se ajustar a um corpo feminino, mas não vejo qualquer impedimento. Jaenelle irradiou alegria. — Daemon, o chapéu é maravilhoso. Levou um momento a admiti-lo, mas sentiu-se ofendido. Ali estava à frente dela, em exposição, por assim dizer, e o que mais a fascinou foi o chapéu.

Sabes bem como magoar o ego de um homem, não sabes, pequenina? — Pensou friamente ao dizer:

— Quereis experimentá-lo?

Jaenelle saltou para o espelho, roçando em Daemon ao passar. O calor repentino, o sobressalto de prazer, o desejo intenso de a agarrar junto a si surpreenderam-no o suficiente para que se desviasse, deixando-a passar. Com as mãos trémulas, colocou-lhe o chapéu na cabeça, para logo de seguida a ouvir rir visto que o chapéu estava caído na ponta do nariz de Jaenelle, deixando apenas entrever o queixo.

— Tereis de crescer para que vos sirva. Senhora — disse calorosamente. Mediante a Arte, posicionou o chapéu sobre a cabeça de Jaenelle, bloqueando-o no ar.

Arrependeu-se de imediato.

Jaenelle iria tornar-se deslumbrante, percebeu ao olhar pasmado para o rosto que olhava para o reflexo dele, cravando as unhas nas palmas das mãos.

Naquele momento visualizou o rosto de Jaenelle dentro de alguns anos, quando as feições pontiagudas se harmonizassem. As sobrancelhas e as pestanas. Eram de um dourado enfarruscado ou de um negro coberto de ouro? Os olhos, que já não se escondiam por detrás da máscara infantil, atraíam-no para uma estrada tão obscura que não sabia existir, uma estrada que queria desesperadamente seguir.

Pela primeira vez na vida, Daemon sentiu um rebuliço sôfrego entre as pernas. Fechou os olhos, cerrou os dentes e enterrou as unhas ainda mais fundo nas palmas das mãos.

Não, implorou em silêncio. Agora não. Não queria, não podia reagir ainda. Ninguém podia saber que conseguia reagir. Seria a perdição de ambos, se alguém sentisse aquela resposta física pelo Anel. Por favor, por favor, por favor.

— Daemon?

Daemon abriu os olhos. Jaenelle, a criança, observava-o, a testa franzida de preocupação. Sorriu de forma insegura ao abrir as mãos lentamente, pegando no chapéu.

— Os convidados de Leiand devem estar a chegar a qualquer momento e eu ainda tenho de me vestir por isso, por isso, toca a andar.

Havia algo de estranho na forma como olhava para ele, mas não conseguia perceber o quê. Depois de Jaenelle sair, Daemon afundou-se na cama, olhando fixamente para o baú aberto. Passado um minuto, despiu a camisa, as calças e descalçou as botas, devolvendo-os, bem como o chapéu, ao baú. Fez desaparecer ambos os baús privados, certificando-se de que estavam seguramente guardados, antes de vestir um traje de cerimónia.

O rosto maquilhado e o brinco teriam de chegar para Leiand. As roupas naquele baú só seriam usadas para o prazer de uma única mulher.

 

Daemon acordou de imediato. Havia algo de errado, algo que tinha feito estremecer os seus nervos. Deixou-se estar deitado de costas, ouvindo a chuva forte e gélida a bater nas janelas. Sentindo arrepios, jogou os cobertores para trás, pegou no roupão e abriu as cortinas para olhar para fora.

Somente chuva. Contudo...

Respirando fundo e de forma regular, iniciou uma descida lenta em direcção ao abismo, experimentando cada categoria das Jóias, aguardando o estremecimento correspondente nos próprios nervos.

Acima da Vermelha, nada. A Vermelha, nada. A Cinzenta, a Ébano Acinzentada. Nada. Chegou ao nível da Negra e os seus nervos foram inundados de dor ao mesmo tempo que uma lamentação sinistra lhe encheu a mente, um hino fúnebre repleto de ira, dor e pesar. A voz que entoava o hino era pura e robusta - e familiar.

Daemon fechou os olhos, encostando a cabeça ao vidro, ao mesmo tempo que ascendia à Vermelha. Ninguém aqui conseguiria ouvi-lo. Ninguém mais saberia.

Desde o momento em que a conhecera que sabia que era a Feiticeira – e a Feiticeira usava as Jóias Negras. Sabia-o, mas tinha conseguido iludir-se a si próprio, acreditando que ela usaria a Negra quando atingisse o seu pleno desenvolvimento, não agora. Ao longo da extensa história dos Sangue, só uma mão cheia de feiticeiras tinha usado a Negra, que lhes tinha sido atribuída após a Dádiva às Trevas. Ninguém, em tempo algum, tinha usado a Negra como Direito por Progenitura.

Tinha sido um ludíbrio disparatado, especialmente quando os indícios estavam mesmo à sua frente. Ela conseguia fazer coisas que os restantes Sangue nunca tinham sequer sonhado conseguir. Tinha procurado o Senhor Supremo do Inferno para que fosse seu mentor. Existiam facetas em Jaenelle que eram assombrosas e terríveis.

Negra de Direito por Progenitura. Usava a Negra de Direito por Progenitura. Doces Trevas, o que seria dela quando procedesse à Dádiva?

Daemon abriu os olhos e vislumbrou uma pequena silhueta branca a movimentar-se lentamente pelo trilho do jardim. Abriu a janela e ficou instantaneamente encharcado pela chuva fria, mas nem reparou. Assobiou uma vez, suavemente, rapidamente, enviando o assobio por um fio auditivo dirigido à silhueta.

Virou-se na sua direcção, conformada, e caminhou para a janela.

Daemon inclinou-se para a frente enquanto Jaenelle flutuava na sua direcção, agarrou-a por baixo dos braços e puxou-a para dentro. Pousou-a no chão, fechou e trancou a porta, fechou as cortinas. Olhou então para ela e sentiu um aperto no coração.

Ali estava, a tremer, a pingar no tapete, os olhos vítreos e repletos de dor. A camisa de noite, os pés descalços e as mãos estavam enlameados.

Daemon pegou-lhe ao colo, levou-a para a casa de banho e encheu a banheira de água quente. Tinha estado todo o dia estranhamente sossegada e Daemon receava que estivesse a ficar doente. Neste momento, temia que estivesse em choque. Por baixo dos olhos tinha umas manchas escuras e parecia não reconhecer onde estava.

Debateu-se quando tentou tirar-lhe a camisa de noite pela cabeça. — Não — disse debilmente, tentando puxar a roupa para baixo.

— Eu sei como são as raparigas — disse Daemon com brusquidão ao despir-lhe a camisa de noite e erguê-la para a colocar na banheira. — Sentai-vos aí. — Apontou-lhe um dedo. Parou de tentar sair da banheira.

Daemon voltou ao quarto e pegou no conhaque e no copo que mantinha escondidos na última gaveta da mesinha de cabeceira. De volta à casa de banho, sentou-se na borda da banheira, serviu uma dose substancial e entregou-lhe o copo.

— Bebei isto. — Observou-a enquanto provava uma pequena quantidade, fazendo uma careta, levando então, ele próprio, a garrafa aos lábios e bebendo um trago generoso. — Bebei — disse furiosamente quando tentou devolver-lhe o copo.

— Não gosto. — Era a primeira vez que lhe parecia tão jovem e vulnerável. Queria gritar.

— O que... — Sabia. Subitamente, distintamente, sabia. A lama, o hino fúnebre, as mãos cortadas por terem escavado o chão rijo, a sujidade sob as unhas. Sabia.

Daemon bebeu outro longo trago de conhaque. — Quem?

— Rose — respondeu Jaenelle com uma voz cavernosa. — Matou a minha amiga Rose. — E uma luz selvagem incendiou-lhe os olhos e os lábios curvaram-se num tímido e amargo sorriso. — Abriu-lhe a garganta porque ela se recusou a lamber-lhe o chupa-chupa. — Os olhos de Jaenelle deslizaram para os genitais de Daemon antes de vaguearem para o seu rosto. — É isso que lhe chamais, Príncipe?

Daemon ficou com a garganta apertada. O sangue latejava dentro de si, latejava, rebentação enfurecida contra o rochedo. Era tão difícil, tão difícil respirar.

A voz sepulcral. A voz da meia-noite, cavernosa, vetusta, irada que continha um sussurro de loucura. Não a tinha imaginado, aquela outra vez. Não a tinha imaginado.

Negra de Direito por Progenitura.

Feiticeira.

Queria matá-lo por ser macho. A aceitação deste facto tornava mais fácil manter a calma.

— Chama-se pénis, Senhora. Não utilizo eufemismos. — Fez uma pausa. — Quem a assassinou?

Jaenelle bebericou o conhaque. — O tio Bobby — murmurou. Balançou-se para trás e para a frente ao mesmo tempo que lágrimas escorriam pelas suas faces. — O tio Bobby. Daemon tirou-lhe o copo das mãos e pô-lo de lado. Não importava se o iria matar, não interessava se o iria odiar por a tocar. Levantou-a da banheira e embalou-a nos braços, deixando-a chorar até as lágrimas se esgotarem.

Ao sentir que a respiração de Jaenelle se estava a normalizar e que o cansaço a estava a vencer, envolveu-a numa toalha, levou-a para o quarto dela, descobriu uma camisa de noite limpa e aconchegou-a na cama. Ficou a observá-la durante alguns minutos para se certificar de que estava a dormir antes de regressar ao seu próprio quarto.

Andou para trás e para a frente, ingerindo conhaque e sentindo que as paredes se fechavam sobre ele.

O tio Bobby. Rose. Chupa-chupa. Como é que ela sabia? Durante todo o dia já devia saber, esperando pela noite para que pudesse plantar o seu memento mor; vivo. Todo o dia, enquanto Robert Benedict tinha estado em casa, tão manifestamente.

Se cantardes a melodia certa, dir-vos-ão os nomes das que já morreram.

Rosnou baixinho. Os seus passos abrandaram ao ser invadido por uma raiva gélida.

Havia algo de errado neste local. Algo malévolo neste local. Chaillot tinha demasiados segredos. Além disso, Dorothea e Hekatah andavam à caça de Jaenelle e Greer encontrava-se ainda em Beldon Mor, a farejar.

Tersa tinha dito que o Sacerdote seria o seu melhor aliado ou o seu pior inimigo.

Em breve, teria de chegar a uma decisão, antes que fosse tarde de mais.

Por fim, exausto, despiu o roupão e deixou-se cair na cama. E sonhou com cálices de cristal estilhaçados.

 

                       CAPÍTULO 11

O único objecto na cela para além do balde de dejectos a transbordar, era uma pequena mesa sobre a qual estava um prato de comida e um jarro de água em esmalte.

Lucivar olhava o jarro fixamente, cerrando e abrindo os punhos. As correntes que lhe prendiam os tornozelos e os pulsos à parede tinham o comprimento suficiente para permitir que chegasse a uma das extremidades da mesa bem como à comida, mas não eram suficientemente compridas para que conseguisse estender a mão e cortar a garganta ao guarda que a trazia.

Precisava de comer. Desesperava por água. Estes fornos diminutos a que Zuultah chamava, em tom jocoso, de quartos de "esclarecimento" encontravam-se no Deserto de Arava, onde o sol era aniquilador. Ao meio-dia, o calor já era suficiente para que os seus desperdícios exalassem vapor.

Nos primeiros três dias de encarceramento, os guardas tinham trazido água e comida e esvaziavam o balde de dejectos. Nos primeiros dois dias, tinha comido o que lhe era trazido. No terceiro dia, a comida e a água estavam misturadas com safframate, um afrodisíaco violento que mantinha um homem com tesão e desejo suficientes para satisfazer toda uma assembleia numa das sua reuniões. Levaria também um homem à beira da loucura pois, embora possibilitasse que fosse um participante duradouro, não permitia o escape físico.

Tinha-o detectado antes de consumir o que quer que fosse. Um homem menos alerta não se teria apercebido, mas Lucivar já tinha experimentado safframate e não iria experimentá-lo novamente para diversão de Zuultah.

Lambeu os lábios gretados, olhando para o jarro de água, com a língua a espetar-se nas gretas, humedecendo-se com o próprio sangue.

A resposta, naquele terceiro dia, tinha sido atirar o prato e o jarro contra a parede. As ratazanas-víboras - enormes e venenosos roedores que tinham a capacidade de viver onde quer que fosse - precipitaram-se dos cantos sombrios e atacaram a comida. O resto do dia tinha sido passado a ver aqueles animais a acasalarem freneticamente ao ponto de se despedaçarem uns aos outros.

Nos dois dias que se seguiram, não apareceu ninguém. Não havia comida nem água. O balde dos dejectos ia-se enchendo. Nada mais havia a não ser as ratazanas e o calor.

Há uma hora, um guarda entrou com a comida e a água. Lucivar tinha-lhe rosnado, desfraldando as asas negras até as pontas tocarem nas paredes. O guarda fugiu apressadamente demonstrando menos dignidade do que as ratazanas.

Lucivar aproximou-se da mesa, com as pernas trémulas. Pegou no jarro e lambeu a condensação da parte de fora.

Não era de modo nenhum suficiente.

Olhou para o prato. O cheiro nauseabundo do balde guerreava com o cheiro da comida, mas o seu estômago contorcia-se de fome e, acima de tudo, precisava de água que estava ali tão perto. Muito perto.

Agarrando o jarro com as duas mãos para não o deixar cair, bebeu um gole de água.

O safframate percorreu-o, como gelo inflamável.

A boca de Lucivar contorceu-se num esgar. As gretas nos lábios rebentaram e sangraram.

Existia uma única razão para comer, para se submeter ao que o aguardava e não era para se manter vivo. Amava a vida intensamente, mas era eyrieno, um caçador, um guerreiro. O facto de ter crescido com a morte tinha atenuado o medo em relação à mesma e parte dele apreciava a ideia de se tornar um demónio.

Existia uma única razão. Uma razão de olhos cor de safira.

Lucivar ergueu o jarro novamente e bebeu.

 

Lucivar cerrou os dentes e fechou os olhos com força. Odiava estar de costas. Todos os machos eyrienos odiavam estar de costas, incapacitados do uso das asas. Era o gesto máximo de submissão. Mas atado como se encontrava ao "jogo da cama" nada podia fazer a não ser aguentar.

Enquanto uma das feiticeiras de Zuultah se movia em cima dele, absorta no seu próprio prazer, Lucivar rogou em silêncio as mais cruéis pragas de que se conseguia lembrar. As suas mãos estavam agarradas com força às barras metálicas da cabeceira da cama, tinha estado agarrado a elas com tanta força ao longo de toda a noite que o formato dos seus dedos estava já gravado nelas.

Uma e outra vez, uma após outra. Após cada uma delas, a dor aumentava. Odiava-as pela dor, pelo prazer que retiravam, pelo riso, pela comida e pela água com que o atormentavam, tentando levá-lo a implorar.

Era Lucivar Yaslana, um Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra. Não iria implorar. Não imploraria. Não.

Lucivar abriu os olhos para o silêncio. As cortinas da cama estavam corridas ao fundo e de um dos lados, não permitindo que visse o quarto. Tentou mudar de posição e aliviar os músculos entorpecidos, mas quando o prenderam estava esticado e não havia a mínima folga.

Humedeceu os lábios. Tinha tanta sede, estava tão cansado. Era tão fácil afastar-se da dor, das memórias.

Vozes de homem murmuravam no corredor. Movimento no quarto, encoberto pelas cortinas corridas. Por fim, Zuultah gritou:

— Tragam-no.

O quarto tinha uma tonalidade acinzentada, de um cinzento agradável e turvo no qual a luz dançava através de fragmentos de vidro e as vozes pareciam ser ouvidas debaixo de água.

Os guardas desprenderam-lhe as mãos e os pés, voltando a prender-lhe as mãos atrás das costas. Lucivar rosnou-lhes, mas soou vago e sem importância, sem qualquer importância.

Por um breve momento, ao ver a senhora de mármore, a visão de Lucivar desanuviou-se e a dor fez com que as suas pernas cedessem. Os guardas arrastaram-no até às correias em couro para as pernas, forçaram-no a ajoelhar-se e amarraram-no ao chão por detrás dos joelhos e nos tornozelos. Fizeram o cilindro de mármore rodar, com os respectivos orifícios esculpidos uniformemente, até ficar na posição correcta. Quando o assentaram num dos orifícios, colocaram-lhe uma correia em couro por baixo das nádegas para que se mantivesse naquela posição. A folga era suficiente para se movimentar para a frente mas não para se afastar.

O cinzento. O cinzento agradável e sinuoso.

— É tudo — disse Zuultah arrogantemente, acenando com a chibata aos guardas para que saíssem do quarto e trancando a porta.

O chão magoava-lhe os joelhos. Dor. Doce dor.

A chibata atingiu-lhe as nádegas. O sangue gotejou na correia em couro. Uma seda perfumada tocou-lhe levemente nos ombros e no rosto.

— Tens sede, Yasi? — Zuultah arrulhou, ao balançar-se na parte plana de cima da senhora de mármore. — Queres leitinho? — Abriu o manto e abriu as pernas, revelando o triângulo escuro de pêlos.

A vergasta acertou-lhe no ombro. — É esta a tua recompensa, Yasi. É este o teu prazer.

Laivos vermelhos no cinzento. Laivos vermelhos e um triângulo escuro.

— Mexe-te, bastardo. — A vergasta a fustigar, cortando na junção de uma das asas às costas.

Mexe-te, mexe-te, mexe-te em direcção ao cinzento. Lábios no molhado. Língua obediente. Mexe, mexe. Cada vez mais profundamente na dor, a humidade, as trevas, as trevas, a dor a rodopiar para a doçura, fragmentos de vidro, a rodopiar, a humidade, as trevas, as trevas com laivos de vermelho, a fome, a dor, dentes, prazer, dor, gemidos, gemidos, dentes, prazer, a aumentar, a ferver, dor, prazer, gemidos, fome, dentes, gemidos, dentes, gritos, gritos, gritos, vermelho, vermelho, vermelho doce e fogoso, a ferver, em torrente, em liberdade.

Lucivar balançou-se, confuso. Zuultah rolava pelo chão, a gritar, a gritar. Tentou lamber a humidade que sentia nos lábios mas estava algo a atrapalhá-lo. Virou a cabeça e cuspiu.

Durante muito tempo, enquanto os guardas batiam na porta trancada e Zuultah gritava, olhou espantado para a pequena coisa que os seus dentes tinham encontrado para apaziguar a fome. De início não percebeu do que se tratava. Quando o seu órgão flácido deslizou do orifício e Lucivar reconheceu o vermelho pelo que era, ergueu a cabeça e soltou uma gargalhada monstruosa e selvagem.

 

— Tens uma visita — disse Philip secamente, ao ajeitar pilhas de papéis em montinhos ordenados, algo que fazia quando estava irritado.

Daemon franziu o sobrolho. — Ah?

Philip olhou de relance na direcção de Daemon, recusando-se a olhá-lo.

— No salão dourado. Sê breve, se possível. Hoje tens uma agenda preenchida.

Daemon deslizou para o salão dourado. O odor psíquico acercou-se antes de tocar na porta. Colocou no rosto a máscara gélida, trancou o coração e abriu a porta.

— Senhor Kartane — disse com uma voz enfadada, ao fechar a porta, encostando-se a ela, as mãos nos bolsos das calças.

— Sadi. — Os olhos de Kartane estavam repletos de uma satisfação maliciosa. Ainda assim, recuou, nervosamente, um passo.

Daemon aguardou, observando Kartane a andar para trás e para a frente num dos lados do salão.

— Provavelmente não passou pela cabeça de ninguém dizer-te, por isso tomei a iniciativa de te trazer as notícias — disse Kartane.

— Sobre o quê?

— Yasi.

A antecipação nos olhos de Kartane fez com que o coração de Daemon disparasse e a sua boca secasse. Encolheu os ombros. — A última vez que ouvi algo a seu respeito, encontrava-se ao serviço da Rainha de PruuL Zuultah, não é?

— Pois parece que a serviu melhor do que alguma vez serviu alguém — disse Kartane, maliciosamente.

Vai directo ao assunto, cabrão.

Kartane continuou a andar de um lado para o outro. — A história é um pouco confusa, percebeis, mas parece que, sob a influência de uma dose substancial de safframate, o Yasi enlouqueceu e mordeu Zuultah. — Kartane soltou uma gargalhada aguda e nervosa.

Daemon suspirou. O mau génio de Lucivar no quarto era legendário. Nas melhores alturas, era imprevisível e violento. Sob a influência de safframate... — E então mordeu-a. Não foi a primeira.

Kartane riu-se novamente. Era quase uma risadinha histérica. — Bem, na verdade, rapar talvez seja uma palavra mais adequada. O que quer que Zuultah agora monte, não será para seu prazer.

Não, Lucivar, não. Pelas Trevas, não. — Mataram-no — disse Daemon, sem variações na voz.

— Não teve essa sorte. Zuultah bem que queria, quando caiu em si e percebeu por fim o que ele lhe tinha feito. Matou também dez dos seus melhores guardas quando tentaram dominá-lo. — Kartane limpou o suor nervoso da testa. — Prythian interveio logo que soube. Por alguma razão insana, ainda pensa que, eventualmente, o irá domar e fazê-lo procriar. Contudo, Zuultah não poderia deixá-lo impune, sem qualquer tipo de castigo. — Kartane aguardou mas Daemon não mordeu o isco. — Mandou-o para as minas de sal.

— Então, matou-o. — Daemon abriu a porta. — Tínheis razão — disse, com uma delicadeza extrema, virando-se para olhar Kartane, — mais ninguém se atreveria a contar-me.

Fechou a porta tão silenciosamente que toda a casa estremeceu.

Daemon tinha esgotado as lágrimas e sentia-se tão seco e vazio como o Deserto de Arava.

Lucivar era eyrieno. Nunca sobreviveria nas ilhas de sal de PruuL

Naqueles túneis, com o sal e o calor, sem espaço para abrir as asas, sem ar para secar o suor. Havia uma dúzia de bolores que poderiam infectar a pele membranosa e corroe-la. E sem asas... Um guerreiro eyrieno nada era sem as suas asas. Lucivar tinha dito em tempos que preferia perder os tomates às asas e falava a sério.

Oh, Lucivar, Lucivar, o seu irmão corajoso, arrogante, insensato. Se tivesse aceitado aquela oferta, Lucivar estaria neste momento a caçar em Askavi, a planar ao crepúsculo, em busca de presas. Mas não sabiam que chegaria a este ponto. O acto mais sensato de Lucivar seria acabar com tudo rapidamente, enquanto as suas forças ainda estavam intactas. Seria bem recebido no Reino das Trevas. Daemon tinha a certeza de que seria.

Ela não ficará impune, prometo-te. Não importa o tempo que levar, farei com que a dívida seja paga na totalidade.

Lucivar — sussurrou Daemon. — Lucivar.

— Têm todos andado à vossa procura.

Não a tinha ouvido chegar, o que não era surpresa. Não era surpreendente que ela ali estivesse, mesmo que tivesse trancado a porta da biblioteca.

Daemon virou-se no sofá. Estendeu uma mão, observando os pequenos dedos a enrolarem-se à volta dos seus. Aquele toque delicado, carregado de compreensão, era uma agonia.

— O que lhe aconteceu?

— A quem? — disse Daemon, lutando contra o profundo sofrimento.

— Lucivar — disse Jaenelle com uma paciência de Job. Daemon reconheceu aquele toque estranho e perturbante no rosto e na voz de Jaenelle - a Feiticeira a concentrar-se. Hesitou por um momento e, de seguida, tomou-a nos seus braços. Precisava abraçá-la, sentir o seu calor junto a si, precisava de se certificar de que o sacrifício valia a pena. Não se apercebeu como ou quando as lágrimas voltaram a cair.

— É meu amigo, meu irmão — sussurrou-lhe no ombro. — Está a morrer.

— Daemon. — Jaenelle afagou-lhe o cabelo suavemente. — Daemon, temos de o ajudar. Eu podia...

— Não! — Não me tentes com esperança. Não me tentes a arriscar dessa forma. — Não o podeis ajudar. Já nada o poderá ajudar.

Jaenelle tentou soltar-se para poder olhá-lo, mas Daemon não a largou. — Eu sei que lhe prometi que não vaguearia por Terreille, mas...

Daemon lambeu uma lágrima. — Conhecestes-lo? Ele viu-vos uma vez?

— Uma vez. — Fez uma pausa. — Daemon, talvez consiga...

— Não — Daemon gemeu encostado ao ombro de Jaenelle. — Lucivar não vos iria querer naquele sítio e, se vos acontecesse alguma coisa, ele nunca me perdoaria. Nunca.

A Feiticeira perguntou: — Tendes a certeza, Príncipe?

O Príncipe dos Senhores da Guerra respondeu: — Tenho a certeza, Senhora.

Passado um momento, Jaenelle começou a entoar um cântico de morte no Idioma Antigo, não o hino fúnebre que cantou para Rose, mas uma agradável canção de feiticeira, sobre o sofrimento profundo e o amor. A voz de Jaenelle entrelaçou-se em Daemon, celebrando e reconhecendo a sua dor e o seu pesar, tocando levemente nos poços profundos que teria mantido fechados.

Quando a voz de Jaenelle se extinguiu, Daemon enxugou as lágrimas do rosto. Deixou que Jaenelle o guiasse à cegas para o seu quarto, que o vigiasse enquanto lavava a cara e que o persuadisse a tomar um copo de conhaque. Jaenelle nada disse. Não precisava de dizer nada. O silêncio generoso e a compreensão presentes nos olhos dela eram suficientes.

Lucivar teria tido orgulho em servi-la, pensou Daemon ao pentear-se, preparando-se para enfrentar Alexandra e Philip. Teria tido orgulho nela. Daemon inspirou de tal forma que o seu corpo estremeceu e saiu para procurar Alexandra.

Tudo tem um preço.

 

                       CAPÍTULO 12

O Winsol aproximava-se a passos largos. O feriado mais importante no calendário dos Sangue era celebrado quando os dias de Inverno eram mais curtos, sendo a celebração das Trevas, a celebração da Feiticeira.

Daemon vagueava pêlos corredores vazios. Tinha sido concedido meio-dia de folga aos empregados que tinham deixado a casa vazia para fazerem compras ou iniciarem os preparativos para as festas. Alexandra, Leiand e Philip tinham-se ausentado nas suas saídas. Robert, como era habitual, não se encontrava em casa. Até Graff tinha saído, deixando as raparigas ao cuidado da Cozinheira. E ele... Bem, não tinha sido por bondade que o tinham deixado para trás. O seu temperamento tinha-se revelado demasiado impetuoso, a sua língua demasiado afiada da última vez que tinha acompanhado Alexandra a uma festa. Saíram precipitadamente depois de Daemon ter dito a uma jovem feiticeira afectada da aristocracia que o corte do seu vestido faria inveja a qualquer mulher de uma casa da Lua Vermelha, mas o mesmo não se podia dizer do que revelava.

Daemon subiu as escadas que conduziam à ala das crianças. O único alívio para a dor que sentia desde que Kartane lhe tinha trazido as notícias de Lucivar era estar com Jaenelle.

A porta da sala de música estava aberta. — Não, Wilhelmina, não é assim — disse Jaenelle no seu tom atormentado e divertido.

Daemon sorriu ao olhar para o interior da sala. Ao menos não era ele o único a fazê-la soar daquela forma.

As raparigas encontravam-se no centro da sala. Wilhelmina parecia um pouco mal-humorada enquanto Jaenelle parecia pacientemente exasperada. Olhou em direcção à porta e os seus olhos iluminaram-se.

Daemon reprimiu um suspiro. Também conhecia aquele olhar. Estava prestes a meter-se em sarilhos.

Jaenelle correu na sua direcção, agarrou-lhe o pulso e arrastou-o para a sala. — Vamos estar presentes num dos bailes do Winsol e tenho vindo a tentar ensinar a valsa a Wilhelmina mas não estou a explicar-me lá muito bem pois não sei bem como conduzir mas vós sabeis como conduzir pois os rapazes... Rapazes?

— ... conduzem, por isso podeis mostrar a Wilhelmina, não podeis? Como se tivesse escolha. Daemon olhou para Wilhelmina. Jaenelle afastou-se para um dos lados, os dedos entrelaçados, a sorrir na expectativa.

— Sim, os homens — disse secamente, enfatizando ligeiramente essa palavra, — realmente conduzem na dança.

Wilhelmina corou, percebendo de imediato a distinção.

Jaenelle pareceu ficar desconcertada. Encolheu os ombros. — Homens. Rapazes. Qual é a diferença? São todos machos.

Daemon olhou-a de forma calculista. Dentro de alguns anos poderia demonstrar-lhe a diferença. Sorriu a Wilhelmina e explicou pacientemente os passos. — Música, Senhora? — dirigiu-se a Jaenelle.

Jaenelle ergueu a mão. A esfera de música de cristal cintilou no suporte em bronze e a sala encheu-se de música solene.

Ao valsar com Wilhelmina, observou a sua expressão mudar de concentrada para descontraída para deleitada. O esforço ruborizou-lhe as bochechas e conferiu um brilho aos olhos azuis. Daemon sorriu-lhe calorosamente. A dança era a única actividade que gostava de partilhar com uma mulher, lamentando, por isso, que as danças de corte já não estivessem na moda.

Se quiseres levar uma mulher para a cama, fá-lo no quarto. Se a quiseres seduzir, fá-lo dançando.

Era difícil imaginar o Sacerdote a dizer tal coisa a um rapazinho, mas era como tantas outras coisas que vinha recordando ao longo dos anos naqueles momentos entre sonhar e estar acordado, e já não se questionava sobre a quem pertencia aquela voz que parecia sussurrar algures desde o seu interior, uma voz que sabia não ser a sua.

Quando a música terminou, Daemon largou Wilhelmina e fez-lhe uma vénia elegante e formal. Virou-se para Jaenelle. A estranha expressão nos seus olhos fez disparar o coração de Daemon. A crosta de civilização atrás da qual vivia, todas as regras e normas, estalaram sob aquele olhar contemplativo. O odor psíquico de Jaenelle distraiu-o. A sua mente aguçou-se, voltou-se para o interior, revelando a profunda consciência do seu próprio corpo, a maneira felina e graciosa como se deslocava.

A música recomeçou. Jaenelle levantou uma mão. Daemon levantou a mão oposta. Caminhando na direcção um do outro, as pontas dos dedos tocaram-se e a dança de corte começou.

Daemon não precisava de se concentrar nos passos. Eram naturais, sensuais, sedutores. A música acariciava-o, restringindo os sentidos ao jovem corpo que se movia com ele. As pontas dos dedos tocavam as pontas dos dedos, as mãos tocavam as mãos, nada mais. A Negra cantava em Daemon, desejando mais, desejando muito, muito mais, porém, agradava-lhe a provocação aos sentidos, a sensação de estar vivo, de ser macho.

Quando a música terminou uma vez mais, Jaenelle recuou, quebrando o encantamento. Saltitou até ao suporte em bronze, mudou a esfera de música e começou a dançar uma animada dança popular, mãos nas ancas e pés no ar.

Daemon e Wilhelmina aplaudiam quando a Cozinheira entrou, trazendo um tabuleiro. — Julguei que vos apeteceria umas sanduíches... — As suas palavras diluíram-se quando Daemon, com um sorriso resplandecente, lhe tirou o tabuleiro das mãos, colocando-o sobre uma mesa, e a conduziu até ao centro da sala. Fez uma vénia; com um sorriso de satisfação, a Cozinheira retribuiu. Arrebatou-a nos braços e valsejaram ao som de uma melodia de Chaillot que Daemon tinha já ouvido nalguns bailes. Rodopiando pela sala, Daemon sorria abertamente para as raparigas, que, por sua vez, rodopiavam à volta deles.

Foi então que a Cozinheira tropeçou e gemeu, com os olhos fixos na entrada.

— O que é que isto significa? — disse Graífchocada, ao entrar no quarto. Cravou a Cozinheira com um olhar gélido. — Ficaste encarregue de olhar pelas raparigas por umas breves horas e chego aqui para vos ver entretidos num tipo de diversão questionável. — Os seus olhos saltaram para o braço de Daemon, que se encontrava ainda à volta da cintura da Cozinheira. Fungou, maliciosamente satisfeita. — É provável, quando tal for comunicado, que a Senhora Angelline encontre alguém com talentos culinários.

— Não se passou nada, Graff.

Daemon sentiu calafrios perante a fúria aterradora na voz demasiado calma de Jaenelle.

Graff virou-se. — Ora isso é o que vamos ver, menina.

— Graíf. — Era um sussurro atroador e malévolo.

Daemon estremeceu. Todos os seus instintos de autodefesa gritavam-lhe para que invocasse a Negra e se escudasse.

Tinha sentido um estranho turbilhão quando Graff apareceu que o fez pensar que estava a ser arrastado para uma espiral. Nunca tinha sentido nada assim e não se tinha apercebido de que Jaenelle deslizava em direcção ao abismo. Neste momento, algo se erguia muito abaixo dele, algo que transportava uma ira extrema e muito, muito gélida. Graff virou-se lentamente, com os olhos arregalados e vazios.

— Não se passou nada, Graff— disse Jaenelle naquele sussurro gélido que chiava nos nervos de Daemon. — Eu e a Wilhelmina estávamos na sala de música a treinar uns passos de dança. A Cozinheira trouxe-nos sanduíches e estava de saída quando chegaste. Não viste o Príncipe uma vez que se encontrava no seu quarto. Compreendes?

As sobrancelhas de Graff juntaram-se. — Não, eu...

— Olha para baixo, Graff. Olha para baixo. Estás a ver? Graff choramingou.

— Se não te lembrares do que te disse, será isso que irás ver... para sempre. Compreendes?

— Compreendo — murmurou Graff enquanto saliva lhe escorria pelo queixo abaixo.

— Podes ir, Graff. Vai para o teu quarto.

Logo que ouviram uma porta a fechar-se ao longe no corredor, Daemon conduziu a Cozinheira a uma cadeira e ajudou-a a sentar-se. Jaenelle não disse mais nada, mas nos seus olhos estavam presentes dor e tristeza ao olhar para eles antes de se retirar para o quarto. Wilhelmina tinha-se urinado. Daemon limpou-a, limpou o chão, levou o tabuleiro de sanduíches de volta para a cozinha e serviu uma dose generosa de conhaque à Cozinheira.

— É uma criança estranha — disse a Cozinheira com cautela, após o segundo copo de conhaque, — mas nela existe mais bem do que mal.

Daemon respondeu-lhe de forma calma e previsível, permitindo que a Cozinheira encontrasse a sua própria justificação para o que tinha sentido naquela sala. Da mesma forma, Wilhelmina, embora envergonhada por Daemon ter assistido ao seu descuido, alterou o confronto para algo que fosse credível para si própria. Somente Daemon, sentado no seu quarto a olhar o vazio, estava relutante em libertar o medo e a reverência. Somente Daemon apreciava a beleza aterradora de poder tocar sem limitações. Somente Daemon sentia um desejo aguçado.

 

Daemon estava sentado à beira da cama, com um sorriso angustiado e suave a tocar-lhe os lábios. Mesmo com feitiços de conservação, as cores da fotografia começavam a desvanecer-se e estava gasta nas pontas. Ainda assim, nada poderia desvanecer a insinuação de um sorriso impertinente e o brilho sempre-a-arranjar-lenha-para-se-queimar nos olhos de Lucivar. Era a única fotografia que tinha de Lucivar, tirada há séculos quando Lucivar ainda possuía uma aura de esperança própria da juventude, antes de o passar do tempo e corte após corte terem transformado um rosto jovem e belo num rosto em tudo semelhante às montanhas de Askavi que amava - brutalmente belo, conservando um vestígio de sombra mesmo sob a mais intensa luz do sol.

Ouviu uma batida tímida na porta para, logo de seguida, Jaenelle entrar no quarto. — Olá — disse, incerta de como iria ser recebida.

Quando se aproximou, Daemon passou-lhe um braço à volta da cintura. Jaenelle colocou ambas as mãos nos ombros de Daemon, apoiando-se nele. A pele sob os seus olhos parecia magoada e tremia ligeiramente.

Daemon franziu o sobrolho. — Tendes frio? — Jaenelle abanou a cabeça e Daemon puxou-a ainda mais para si. Não existia um tipo de calor externo que fosse capaz de aquecer aquilo que a gelava, porém, após estar a abraçá-la por alguns momentos, Jaenelle parou de tremer.

Daemon perguntou-se a si próprio se Jaenelle teria contado a Saetan o episódio da sala de música. Voltou a olhar para ela e logo soube a resposta. Não tinha contado ao Sacerdote. Tinha andado a deambular durante três dias. Tinha-se fechado na sua própria angústia glacial, sozinha, perguntando-se a si própria se existiria algum ser vivo que não a temesse. Daemon tinha atingido a Negra ainda jovem, mas já completamente desenvolvido e preparado e, mesmo nessa altura, viver tão profundamente nas Trevas tinha sido inquietante. Para uma criança que não tinha conhecido mais nada, que tinha caminhado por estradas estranhas e solitárias desde o seu primeiro pensamento consciente, que tinha tentado tão arduamente tocar outras pessoas, reprimindo a sua própria essência... Mas não conseguia reprimi-la. Ao ser desafiada, iria sempre estilhaçar a ilusão, iria sempre revelar o que se encontrava sob a superfície.

Daemon examinou atentamente o rosto que, por sua vez, examinava a fotografia que ainda segurava. Inspirou quando finalmente percebeu. Ele usava a Negra; Jaenelle era a Negra. Mas nela, a Negra não era apenas trevas, poder selvático, era riso e travessuras e compaixão e cura... e bolas de neve.

Daemon beijou-lhe o cabelo e olhou para a fotografia. — Vós e Lucivar ter-se-iam dado bem. Estava sempre disposto a meter-se em sarilhos. — Foi recompensado com um vestígio de um sorriso.

Jaenelle examinou a fotografia. — Agora parece-se mais com o que é. — Semicerrou os olhos para, de seguida, lhe jogar um olhar acusador. — Esperai um momento. Dissestes que era vosso irmão.

— Era. — É. Seria eternamente.

— Mas é eyrieno.

— Tivemos mães diferentes.

Nos seus olhos surgiu um brilho estranho. — Mas o mesmo pai.Daemon observou-a a conciliar as peças do quebra-cabeças mental, testemunhou o momento em que as encaixou.

— Isso explica muito — murmurou, afofando o cabelo. — Não está morto, sabeis. A Ébano Acinzentada encontra-se ainda em Terreille.

Daemon pestanejou. — Como... — pronunciou atabalhoadamente. — Como é que sabeis?

— Dei uma olhadela. Não fui a nenhum lado — adicionou apressadamente. — Não quebrei a minha promessa.

— Então como... — Daemon abanou a cabeça. — Esquecei o que disse.

— Não tem nada a ver com tentar separar Opalas ou Vermelhas à distância para tentar encontrar uma pessoa em particular. — Jaenelle estava com aquele ar atormentado e divertido. — Daemon, o único que também usa a Ébano Acinzentada é Andulvar, que já não vive em Terreiüe. Quem mais poderá ser?

Daemon suspirou. Não compreendia, mas sentia-se aliviado por saber…— Dais-me uma cópia dessa fotografia?

— Porquê? — Jaenelle olhou-o de uma forma que o fez crispar-se. — Está bem.

— E uma vossa, também?

— Não tenho uma minha.

— Podemos tirar uma.

— Para qu.. .esquecei. Existe alguma razão para isto?

— Claro.

— Suponho que não me ireis dizer qual é?

Jaenelle levantou uma sobrancelha. Era uma imitação perfeita. Daemon reprimiu uma gargalhada. É para eu aprender, pensou friamente. — Está bem — disse, abanando a cabeça pesarosamente.

— Para breve?

— Sim, Senhora, para breve.

Jaenelle afastou-se saltitando, virou-se, deu-lhe um beijo de raspão na face e desapareceu.

Erguendo uma sobrancelha, Daemon fitou a porta fechada. Olhou para a fotografia. — Bastardinho estúpido — disse afectuosamente. — Ah, Lucivar, ter-te-ias divertido tanto com ela.

 

Saetan recostou-se na cadeira, juntando os dedos de ambas as mãos. Porquê?

— Porque gostaria de ter uma.

— Já disseste isso. Porquê?

Jaenelle entrelaçou os dedos, olhou para o tecto e disse, com um tom de voz afectado e autoritário. — Não é altura para perguntas.

Saetan engasgou-se. Quando conseguiu voltar a respirar, disse:

— Muito bem, criança-feiticeira. Terás uma fotografia.

— Duas?

Saetan olhou-a demorada e severamente. Jaenelle sorriu como se estivesse a entrar no jogo. Saetan suspirou. Havia uma verdade inabalável sobre Jaenelle: Às vezes era melhor não saber. — Duas.

Jaenelle puxou uma cadeira até à secretária em madeira escura. Apoiando os cotovelos na superfície reluzente, com o queixo nas mãos, disse solenemente:

— Queria comprar duas molduras, mas não sei onde.

— De que tipo?

Jaenelle arrebitou. — Bonitas, como as que abrem como um livro.

— Molduras articuladas?

Encolheu os ombros. — Uma que possa levar duas fotografias.

— Vou providenciá-las. Mais alguma coisa? Novamente o aspecto solene. — Eu própria quero comprá-las, mas não sei quanto custam.

— Criança-feiticeira, isso não é um problema...

Jaenelle meteu a mão no bolso, retirando algo. Colocando o punho mal fechado em cima da secretária, abriu a mão. — Achas que se vendesses isto, daria para comprar as molduras?

Saetan engoliu em seco, contudo, a sua mão estava firme ao pegar na pedra e levantá-la contra a luz. — Onde é que arranjaste isto, criança-feiticeira? — perguntou calmamente, num tom vago.

Jaenelle colocou as mãos no colo, concentrando o olhar na secretária.

— Bem... sabes... Estava com uma amiga e andávamos a passear por uma aldeia e umas rochas tinham caído na estrada e uma menina ficou com o pé preso debaixo de uma das rochas. — Encolheu os ombros. — Estava ferido. Quer dizer, o pé, devido à rocha e eu... curei-o e o pai da menina deu-me essa pedra em agradecimento. — Acrescentou apressadamente:

— Mas não disse que tinha de a guardar. — Hesitou. — Achas que chega para comprar duas molduras?

Saetan segurava na pedra entre o polegar e o indicador. — Ah, claro

— disse friamente. — Acho que é mais do que suficiente para aquilo que queres.

Jaenelle sorriu, intrigada.

Saetan debateu-se para manter a voz calma. — Diz-me, criança-feiticeira, tens recebido outras dádivas que tais de pais agradecidos?

— Hum-hm. A Draca é que as tem guardado pois eu não sabia o que lhes havia de fazer. — Animou-se. — Deu-me um quarto na Fortaleza, tal como tu me deste no Paço.

— Sim, ela disse-me que o ia fazer. — Sorriu perante o alívio óbvio de Jaenelle por Saetan não se sentir ofendido. — Até ao final da semana terei as fotografias e as molduras. É conveniente?

Jaenelle saltou à volta da secretária, estrangulou-o e beijou-lhe a face. — Obrigada, Saetan.

— Não tens nada que agradecer, criança-feiticeira. Vai lá. Jaenelle chocou com Mephis ao sair. — Olá, Mephis — disse, dirigindo-se aonde quer que fosse.

Até Mephis. Saetan sorriu perante a expressão perplexa e afectuosa no rosto do seu filho mais velho, sempre tão formal e sério.

— Anda cá ver isto — disse Saetan, — e diz-me o que pensas. Mephis ergueu o diamante contra a luz e assobiou baixinho. — Onde é que o obtiveste?

— Foi uma oferenda, a Jaenelle, de um pai agradecido. Mephis tacteou à procura da cadeira. Olhou estupefacto para o diamante, incrédulo. — Estás a brincar.

Saetan voltou a pegar no diamante, segurando entre o polegar e o indicador. — Não, Mephis, não estou a brincar. Ao que parece, uma menina ficou com o pé preso debaixo de uma rocha, ferindo-se. Jaenelle curou-a e o grato pai presenteou-a com isto. E, pêlos vistos, esta não é a primeira dádiva das que têm vindo a ser ofertadas a Jaenelle por tais serviços. — Examinou a grande e perfeita pedra preciosa.

— Mas... como? — balbuciou Mephis.

— É uma Curandeira inata. É instintivo.

— Sim, mas...

— Porém, a questão que permanece é, o que aconteceu realmente? — Os olhos dourados de Saetan semicerraram-se.

— O que é que queres dizer? — disse Mephis, intrigado.

— O quer quero dizer — disse Saetan, devagar, — é que da forma como Jaenelle contou a história parece que não foi nada de especial. Todavia, qual seria a gravidade de um ferimento provocado por uma rocha de que tamanho, que levaria a que, quando curado, um pai ficasse tão grato a ponto de se separar disto?

 

— Criança-feiticeira, uma vez que a lista dos teus amigos seria do teu tamanho, não é possível ofereceres a todos uma prenda de Winsol. Não estão a contar com isso. Não estás a contar com prendas de todos eles, pois não?

— Claro que não — respondeu Jaenelle calorosamente. Deixou-se cair na cadeira. — Mas são meus amigos, Saetan.

E tu és a melhor prenda que poderiam ter em cem vidas.

— Winsol é a celebração da Feiticeira, a comemoração dos Sangue em memória daquilo que somos. As prendas não são mais do que o acompanhamento da refeição principal.

Jaenelle olhou-o cepticamente - e com razão. Quantas vezes nos últimos dias tinha dado consigo a sonhar acordado sobre como seria celebrar o Winsol com Jaenelle? Estar na sua presença ao pôr-do-sol quando as prendas fossem abertas? Partilhar com ela um minúsculo cálice aquecido de rum misturado com sangue? Dançar, como os Sangue dançavam somente naquela época do ano, pela glória da Feiticeira? Sonhar acordado tinha um sabor agridoce. Ao percorrer os corredores do Paço em Kaeleer, observando os empregados a decorar as divisões, rindo e sussurrando segredos; ao elaborar, juntamente com Mephis, a lista de donativos para o pessoal e para todos os aldeões que serviam directa ou indirectamente o Paço; ao proceder como um Príncipe virtuoso em relação aos que o serviam, um pensamento assolava-o, uma e outra vez: Jaenelle passaria aquele dia especial com a família em Terreille, longe daqueles que eram realmente seus.

A única e diminuta gota de conforto era saber que estaria também com Daemon.

— O que devo fazer?

A pergunta de Jaenelle trouxe-o de volta ao presente. Passou os dedos levemente nos lábios. — Penso que deves seleccionar um ou dois dos teus amigos que, seja por que razão for, possam ser excluídos das celebrações e das festividades e presenteá-los. Um pequeno gesto para quem, de outra forma, nada teria, valerá muito mais do que mais uma prenda entre tantas outras.

Jaenelle afofou o cabelo e sorriu. — Sim — disse baixinho, — sei exactamente quem são os que mais precisam.

— Está decidido, então. — Um pacote embrulhado em papel ergueu-se do canto da secretária vindo pousar à frente de Jaenelle. — Como pediste.

Jaenelle sorriu abertamente ao pegar no pacote e desembrulhá-lo com cuidado. O suave brilho dos seus olhos dissolveu século após século de solidão. — Estás magnífico, Saetan.

Saetan sorriu ternamente. — Dou o meu melhor para servir, Senhora. — Mudou de posição na cadeira. — A propósito, a pedra que me deste para vender...

— Chegou? — perguntou Jaenelle, com ansiedade. — Se não...

— Foi mais do que suficiente, criança-feiticeira. — Recordando a expressão no rosto do joalheiro quando mostrou a pedra preciosa, era difícil não se rir face à preocupação de Jaenelle. — Na verdade, sobraram uns bons marcos em ouro. Tomei a liberdade de abrir uma conta em teu nome com o que sobrou. Assim sendo, sempre que quiseres comprar algo em Kaeleer, só tens de assinar, pedir ao dono da loja que envie a conta para mim aqui no Paço e eu deduzirei o valor da tua conta. De acordo?

O sorriso rasgado de Jaenelle fez com que Saetan desejasse ter mordido a língua. Só as Trevas sabiam o que lhe passaria pela cabeça comprar. Ah, ora bem. Iria revelar-se uma dor de cabeça tão grande para os comerciantes como para ele próprio - e achou a ideia tão engraçada que nem se importou.

— Julgo que se quiseres mesmo adquirir uma prenda insólita, podes sempre comprar dois punhados de terra com sal para os unicórnios — troçou.

Ficou atónito perante o repentino olhar perturbado de Jaenelle.

— Não — murmurou Jaenelle, empalidecendo. — Não, sal não. Ficou sentado durante bastante tempo após Jaenelle se ter ido embora, olhando para o vazio, perguntando-se o que teria o sal para a deixar tão transtornada.

 

Draca desviou-se para deixar entrar Saetan. — Qual é a vossa opinião?

Saetan assobiou baixinho. Como todas as divisões na Fortaleza, o espaçoso quarto tinha sido talhado na rocha viva. No entanto, ao contrário das outras divisões, incluindo os aposentos que em tempos tinham sido de Cassandra, as paredes deste quarto tinham sido trabalhadas e alisadas, ficando a brilhar como vidro preto rumado. O chão em madeira espreitava por entre enormes e espessos tapetes com padrões de cores vermelha e creme que com certeza teriam vindo de Dharo, o Território de Kaeleer célebre pêlos seus tecidos e tecelagens. Na cama em madeira escura com dossel poderiam dormir, confortavelmente, quatro pessoas. A restante mobília – mesas, mesinhas de cabeceira, estantes, aparador - era também em madeira escura. Havia também um quarto de vestir com guarda-fatos e aparadores em cedro, bem como uma casa de banho privada com uma banheira em mármore embutida - preta raiada de vermelho - uma espaçosa cabine de duche, dois lavatórios e uma sanita encaixada numa pequena divisão. Do outro lado do quarto encontrava-se uma porta que levava a uma sala de estar.

— É sumptuoso, Draca — disse Saetan, enquanto os seus olhos se deleitavam com os pormenores espalhados pelas mesas - os tesouros de uma rapariguinha. Passando com os dedos na tampa de uma caixa com um desenho intrincado elaborado em várias madeiras exóticas, abriu-a e abanou a cabeça, divertido e, ao mesmo tempo, pasmado. Com um dedo remexeu indolentemente os conteúdos da caixa, remexeu nas pequenas conchas que, com certeza, seriam originárias de praias extremamente distantes, remexeu nos diamantes, nos rubis, nas esmeraldas e nas safiras que não eram mais do que bonitas pedras para uma criança. Fechou a caixa e virou-se, franzindo o sobrolho com um ar divertido.

Draca levantou os ombros, sugerindo ligeiramente que os ia encolher.

— Fá-lo-íeiss de forma diferente?

— Não. — Olhou à volta. — Este quarto irá ser do seu agrado. É verdadeiramente um santuário negro, algo de que irá necessitar cada vez mais à medida que os anos forem passando.

— Nem todoss oss ssantuárioss ssão negross, Ssenhor Ssupremo. Oss apossentoss que lhe oferecesstess também lhe agradaram. — Pela primeira vez em todos os anos que a conhecia, Draca sorriu. — Devo desscrevê-loss? Já ouvi falar muito ssobre eless.

Saetan desviou o olhar, não querendo que Draca visse o quão satisfeito estava.

— Queria mosstrar-voss o presente de Winssol que tenho para ela. — Draca retirou-se para o quarto de vestir e regressou com um pedaço de tecido preto. Estendeu-o sobre a colcha de cetim da cama. — O que achaiss?

Saetan olhou embasbacado para o vestido comprido. Na sua garganta encontrava-se algo que não conseguia engolir e o quarto ficou repentinamente enevoado. Tocou na seda de aranha negra. — O seu primeiro luto de Viúva — disse com a voz rouca. — Deveria usá-lo nas festividades de Winsol. — Deixou que a seda escorregasse pêlos seus dedos ao voltar-se.

— Deveria estar connosco.

— Ssim, deveria esstar com a ssua família.

— Ela irá estar com a família dela — disse Saetan amargamente. Riu-se, mas o riso também era amargo. — Vai estar com a avó e a mãe... e o pai.

— Não — disse Draca suavemente. — Não com o pai. Agora, por fim, ela tem um pai.

Saetan respirou fundo. — Eu era o cabrão mais insensível que alguma vez caminhou sobre os Reinos. O que aconteceu?

— Apaixonasste-voss... pela filha da vossa alma. — Draca produziu um breve som que poderia passar por uma gargalhada. — E nunca fosstess assim tão inssenssível, Ssaetan, tão inssenssível como aparentáveiss.

— Poderias poupar o meu orgulho, concedendo-me as minhas ilusões.

— Com que objectivo? Ela permite que sejaiss inssenssível?

— Pelo menos, corrobora as minhas ilusões — disse Saetan, reconfortando-se no agradável argumento. — Porém — adicionou secamente,

— não me deixa com muito mais. — Suspirou, com uma expressão de divertimento angustiado. — Tenho de ir. Tenho de ir falar com uns comerciantes preocupados.

Draca acompanhou-o até à porta. — Há já muito tempo que não ceiebráveiss o Winssol. Esste ano, quando acenderem ass velass negrass, bebereiss o rum com ssangue e dançareiss pela glória da Feiticeira.

— Sim — disse baixinho, lembrando-se do vestido em seda de aranha, — este ano dançarei.

 

Saetan colocou a capa sobre os ombros. No chão do seu gabinete privado estavam seis caixas cheias de prendas embrulhadas em cores vivas que tinha comprado para as cildru dyathe. Uma vez que as crianças eram tão espantadiças perante adultos, era impossível saber quantas existiam na ilha. O melhor que podia fazer era encher uma caixa para cada grupo etário e deixar que Char distribuísse as prendas. Levava livros e brinquedos, jogos e quebra-cabeças, de tantos Territórios de Kaeleer quantos os que tinha acesso. Se este ano tinha sido excessivamente complacente era para preencher um vazio no coração, para compensar pelas prendas que queria dar a Jaenelle mas que não podia. Não poderia existir qualquer indício da sua existência em Beldon Mor, nem qualquer prenda que pudesse levantar dúvidas. O saber era a única coisa que lhe podia dar e que Jaenelle podia levar consigo para Terreille.

Fez desaparecer as caixas uma a uma, saiu do gabinete e apanhou o Vento Negro para a ilha das cildru dyathe.

Mesmo para o Inferno, era um lugar desolado composto de rochas, areia e campos áridos. Um lugar onde nem a flora nem a fauna autóctones do Inferno conseguiam desenvolver-se. Sempre se questionou sobre a razão que teria levado Char a escolher este local em vez de outro que não fosse tão agreste. E Jaenelle tinha, irreflectidamente, facultado a resposta: a ilha, na sua rudeza, na sua desolação inflexível, não continha enganos nem ilusões. Os venenos não eram disfarçados com uma cobertura de açúcar, a brutalidade não era disfarçada pela seda e pelas rendas. Não havia espaço para que a crueldade se ocultasse.

Não se apressou para chegar ao local rochoso que era o sítio mais perto de um abrigo que as crianças permitiam. Ao alcançar a curva final no caminho sinuoso e ao preparar-se mentalmente para os ver a fugir dele, ouviu uma risada - uma risada inocente e encantada. Aconchegou ainda mais a capa ao seu corpo, na esperança de se confundir com os rochedos e passar despercebido por um momento. Ouvi-los rir daquela forma... Saetan abrandou o passo ao contornar o último rochedo e arfou. No centro da sua zona aberta de assembleia estava uma planta de folha perene, sendo que a cor não tinha sido obscurecida pelo eterno crepúsculo do Inferno. Pêlos ramos, pequenos pontos de luz piscavam como um arco-íris de pirilampos numa dança jovial. Char e as outras crianças penduravam sincelos de gelo - sincelos verdadeiros - nos ramos. Pequenos sinos dourados e prateados tiniam ao tocarem nos ramos. Ouviam-se risos e sentia-se determinação, existia uma animação e um fulgor nos jovens rostos que Saetan nunca tinha presenciado.

E foi então que o viram e ficaram imóveis, minúsculos animais apanhados na luz. Noutra altura, teriam fugido, mas Char voltou-se nesse preciso momento, com os olhos brilhantes. Dirigiu-se a Saetan, estendendo as mãos num gesto antiquado de saudação.

— Senhor Supremo. — A voz de Char vibrava de orgulho. — Vinde ver a nossa árvore.

Saetan avançou devagar e colocou as mãos sobre as de Char. Observou a árvore. Uma lágrima solitária escorreu-lhe pela face, os lábios ficaram trémulos. — Ah, crianças — disse com a voz rouca, — é realmente uma árvore esplendorosa. E as decorações são maravilhosas.

Sorriram para Saetan, timidamente, a medo.

Sem pensar, Saetan colocou o braço à volta dos ombros de Char, dando-lhe um abraço apertado. O rapaz deu um safanão para trás, recompôs-se e, de seguida, pôs os braços de forma hesitante à volta de Saetan, retribuindo-lhe o abraço.

— Sabeis quem nos deu a árvore, não sabeis? — sussurrou Char.

— Sim, sei.

— Eu nunca... a maior parte de nós nunca...

— Eu sei, Char. — Saetan apertou o ombro de Char uma vez mais. Pigarreou. — Perdem o... brilho... face a isto, mas têm prendas para colocar junto à árvore.

Char passou a mão no rosto. — Ela disse que só ia durar os treze dias de Winsol, mas é o que sempre acontece, não é?

— Sim, é o que normalmente aguentam.

— Senhor Supremo. — Char hesitou. — Como?

Saetan sorriu ternamente para o rapaz. — Não sei. Ela é mágica. Sou apenas um Príncipe dos Senhores da Guerra. Não podes esperar que eu explique a magia.

Char retribuiu o sorriso, um sorriso de um homem para outro. Saetan invocou as seis caixas. — Deixo-as ao teu cuidado. — Com um dedo, afagou delicadamente a face causticada e enegrecida de Char. — Feliz Winsol, Senhor da Guerra. — Voltou-se e deslizou em direcção ao caminho. Ao contornar a primeira curva, ouviu-se um som de meia dúzia de vozes. O som repetiu-se, agora em coro.

— Feliz Winsol, Senhor Supremo.

Saetan reprimiu um soluço e apressou-se de volta ao Paço.

 

— Disseste-me para dar uma prenda de Winsol a quem pudesse não receber nenhum, por isso... bem... — Jaenelle passou os dedos nervosamente ao longo da borda da secretária em madeira negra de Saetan.

— Anda cá, criança-feiticeira — Saetan abraçou-a suavemente. Aproximando os lábios do ouvido de Jaenelle, sussurrou:

— Foi a mais bela amostra de magia que alguma vez vi. Estou tão orgulhoso de ti.

— A sério? — Jaenelle sussurrou também.

— A sério. — Segurou-a à distância dos braços para poder ver-lhe o rosto. — Partilharias o segredo? — perguntou, mantendo um tom de voz ligeiramente brincalhão. — Dirias a um velho Príncipe dos Senhores da Guerra como conseguiste?

Os olhos de Jaenelle fixaram a Jóia Vermelha de Direito por Progenitura de Saetan, que pendia da corrente em ouro. — Prometi ao Príncipe, percebes?

Percebo o quê? — perguntou calmamente, ao mesmo tempo que o seu estômago se revirava.

— Prometi-lhe que, se quisesse tecer sonhos, aprenderia de quem melhor me pudesse ensinar.

E não me procuraste? — Então quem te ensinou, criança-feiticeira? Humedeceu os lábios. — Os Aracnianos — disse baixinho. A sala ficou desfocada e rodopiou. Quando parou de girar, Saetan percebeu agradecido, que se encontrava ainda sentado na cadeira. — Aracna é um Território restrito — disse entre dentes.

Jaenelle franziu o sobrolho. — Eu sei. Da mesma forma que muitos outros lugares onde tenho amigos. Não se importam, Saetan. A sério.

Saetan largou-a e entrelaçou as mãos. Aracna. Tinha estado em Aracna Cuidado com a aranha dourada que tece uma teia entrelaçada. Não havia, na história dos Sangue, uma única Viúva Negra que tecesse teias de sonhos como os Aracnianos. A totalidade da costa da ilha estava repleta de teias entrelaçadas capazes de atrair para o seu interior mentes confiantes - e mesmo bem treinadas - deixando unicamente o invólucro de carne para que fosse devorado. Para Jaenelle passar despreocupadamente através daquelas defesas...

— A Rainha Aracniana — disse Saetan, lutando contra o impulso de gritar com ela, — quem incumbiu para te ensinar?

Jaenelle sorriu de forma preocupada. — Foi ela própria que me ensinou. Começámos pelas teias simples e lineares, a tecelagem do dia-a-dia. Depois... — Jaenelle encolheu os ombros.

Saetan pigarreou. — Só por curiosidade, de que tamanho é a Rainha Aracniana?

— Umm... o corpo dela é mais ou menos desse tamanho. — Jaenelle indicou o punho de Saetan.

A sala inclinou-se. Pouco se sabia sobre Aracna - o que era natural, uma vez que dos que aí se tinham aventurado poucos tinham regressado intactos - mas pelo menos uma coisa era sabida: quanto maior a aranha, mais poderosas e fatais eram as teias.

— O Príncipe sugeriu que fosses a Aracna? — inquiriu Saetan, tentando desesperadamente não dar a entender o rosnar na sua voz.

Jaenelle pestanejou e corou com graciosidade. — Não. Acho que não ficaria muito satisfeito se lhe contasse.

Saetan fechou os olhos. O que não tinha remédio, remediado estava.

— Tens presente a cortesia e o Protocolo quando as visitas, não tens?

— Sim, Senhor Supremo — disse Jaenelle, com uma voz duvidosamente submissa.

Saetan abriu ligeiramente os olhos. Os olhos cor de safira de Jaenelle brilhavam ao olhá-lo. Rosnou, vencido. Fogo do Inferno, se uma rapariga de doze anos o vencia com as suas estratégias, o que é que iria fazer, em nome das Trevas, quando ela fosse adulta?

— Saetan?

— Jaenelle.

Estendeu um embrulho colorido embora desajeitadamente embrulhado, com um laço ligeiramente retalhado. — Feliz Winsol, Saetan.

Com as mãos levemente trémulas, Saetan pegou no embrulho e colocou-o delicadamente sobre a secretária. — Criança-feiticeira, eu...

Jaenelle jogou-se ao seu pescoço e apertou-o. — A Draca disse que não havia mal em abrir o teu presente antes do Winsol visto que só o poderia usar na Fortaleza. Oh, Saetan, obrigada. Obrigada. É o vestido mais maravilhoso. E é preto. — Examinou o rosto de Saetan. — Não deveria ter-te dito que já o abri?

Saetan abraçou-a furiosamente. Também tu, Draca, também tu não és tão insensível como queres parecer. — Fico contente por ter sido do teu agrado, criança-feiticeira. Ora bem. — Virou-se para o embrulho.

— Não — disse Jaenelle enervadamente. — Tens de esperar pelo Winsol.

— Mas tu não esperaste — brincou docemente. — Além do mais, não estarás aqui no Winsol, por isso...

— Não, Saetan. Por favor?

Espicaçou-lhe a curiosidade o facto de Jaenelle lhe oferecer algo e não querer estar presente aquando da respectiva abertura. Contudo, o Winsol era amanhã e não queria que Jaenelle o deixasse magoada. Desviando habilmente a conversa para a pilha de comida que estava a ser preparada no Paço em Kaeleer e sugerindo abertamente que Helene e a D. Beale poderiam estar dispostas a repartir alguma dessa comida antes do dia de amanhã, deixou-a ir e recostou-se na cadeira, suspirando.

O embrulho atraía-o.

Saetan trancou o gabinete com a Negra antes de desembrulhar a prenda com todo o cuidado. O seu coração saltitou de forma estranha ao olhar pasmado para a parte de trás de uma das molduras articuladas que tinha adquirido para ela. Respirando fundo, abriu a moldura.

Do lado esquerdo estava uma cópia de uma fotografia de um jovem homem com a insinuação de um sorriso impertinente e com um brilho sempre-a-arranjar-lenha-para-se-queimar nos olhos. O rosto já se deveria ter modificado, endurecido, amadurecido. Ainda assim.

— Lucivar — murmurou, pestanejando para reprimir as lágrimas e abanando a cabeça. — Tinhas esse olhar aos cinco anos. Parece que existem coisas que o passar do tempo não consegue alterar. Onde estás agora, meu Príncipe eryrieno?

Dirigiu o olhar para a fotografia da direita e, de imediato, colocou a moldura na secretária, recostando-se na cadeira e tapando os olhos com as mãos. — Não admira — murmurou. — Por todas as Jóias e pelas Trevas, não admira. Se Lucivar era uma tarde de Verão, Daemon era a noite mais fria de Inverno. Retirando as mãos do rosto, Saetan obrigou-se a si próprio a olhar para a fotografia do seu homónimo, do seu verdadeiro herdeiro.

Era uma fotografia formal, com um fundo em veludo vermelho. À superfície, este seu filho não era um espelho - ultrapassava largamente as belas e esculpidas feições do pai - porém, sob a superfície, repousavam as trevas gélidas e reconhecíveis e uma desumanidade que Saetan sabia, instintivamente, ter sido aguçada por anos de crueldade.

— Dorothea, recriaste-me no meu pior. E apesar disso...

Saetan inclinou-se para a frente e examinou os olho;”, dourados, tão parecidos aos seus, olhos que o pareciam olhar de frente. Sorriu em agradecimento e de alívio. Nada modificaria o que Dorothea tinha infligido a Daemon, aquilo em que o tinha tornado, porém, naqueles olhos dourados estava presente uma expressão em torvelinho de resignação, divertimento, exasperação e deleite - uma cacofonia de emoções que lhe eram bastante familiares. Só podia significar uma coisa: Jaenelle tinha levado Daemon a ceder e tinha ido com ele para se certificar de que era feito a seu contento.

— Ora bem, homónimo — disse Saetan baixinho, posicionando a moldura no canto da secretária, — se aceitaste as rédeas que ela segura, ainda há esperança para ti.

 

Para Daemon, o Winsol era o dia mais amargo do ano, uma lembrança cruel do que tinha sido crescer na corte de Dorothea, do que lhe tinha sido exigido depois de a dança ter incendiado o sangue de Dorothea e de Hepsabah.

Sentiu um aperto no estômago. A pedra na qual afiava o seu já de si aguçado temperamento era o conhecimento de que a única feiticeira com a qual queria dançar, a única à qual se entregaria de bom grado e à qual faria todas as vontades, era demasiado jovem para ele - para qualquer homem.

Celebrava o Winsol porque era o que se esperava dele. Todos os anos enviava um cesto de acepipes a Surreal. Todos os anos enviava presentes a Manny e a Jo - e a Tersa, quando conseguia saber do seu paradeiro. Todos os anos surgiam as esperadas e dispendiosas prendas destinadas às feiticeiras que servia. Todos os anos, nada lhe era oferecido em retribuição, nem mesmo as palavras "obrigado".

Mas este ano era diferente. Este ano tinha sido apanhado por um furacão chamado Jaenelle Angelline - tão impossível de desviar como era detê-la -, tendo-se tornado um cúmplice em toda a espécie de esquemas que, ainda que inocentes, tinham sido empolgantes. Quando bateu o pé, recusando-se a participar numa das suas aventuras, tinha sido arrastado como um brinquedo que, de tão amado, já pouco enchimento lhe restava. Com as defesas completamente deitadas abaixo, o carácter atenuado e gasto pelo amor, a indiferença espezinhada pelas travessuras, tinha pensado por instantes solicitar ajuda ao Sacerdote até se aperceber, com um desânimo divertido, que o Senhor Supremo do Inferno não estaria provavelmente a sair-se melhor do que ele próprio.

Todavia, neste momento, ao pensar nos tipos de aventuras que Alexandra e Leiand e as respectivas amigas exigiriam de si, a frieza sussurrou-lhe novamente nas veias e o seu temperamento cortava a cada inalação.

Após uma refeição ligeira que afastaria a fome até ao enorme banquete da noite, reuniram-se na sala de visitas para a troca de prendas de Winsol. Corada devido ao trabalho estonteante na cozinha, a Cozinheira trouxe o tabuleiro com a taça em prata que continha o tradicional rum misturado com sangue aquecido. Serviram-se os pequenos cálices em prata para que fossem partilhados.

Robert partilhou o cálice com Leiand, que tentou não olhar para Philip. Philip partilhou o seu com Wilhelmina. Graff partilhou o seu, de forma zombeteira, com a Cozinheira. E Daemon, visto não ter oura opção, partilhou o seu cálice com Alexandra.

Jaenelle ficou sozinha, sem ninguém para partilhar o seu cálice.

Daemon ficou com o coração apertado. Recordava vários Winsois em que ele próprio era o que ficava sozinho, o proscrito, o indesejado. Teria ignorado a tradição de que só se podia partilhar um cálice, mas viu o brilho estranho e perturbante nos olhos de Jaenelle por um breve momento antes de ela levantar o cálice numa saudação e beber.

Houve um momento de silêncio nervoso antes de Wilhelmina intervir com um sorriso frágil para perguntar:

— Já podemos abrir as prendas?

Enquanto os cálices voltavam para o tabuleiro, Daemon colocou-se ao lado de Jaenelle. — Senhora...

— É adequado, não achais, que deva beber sozinha? — disse, num murmúrio de meia-noite. Os seus olhos estavam repletos de uma imensa dor. — Afinal, sou parente mas não da mesma casta.

És a minha Rainha, pensou furiosamente. O corpo doía-lhe. Era a sua Rainha. Mas com a família à volta, observando, nada podia dizer ou fazer para a ajudar.

Ao longo da hora que se seguiu, Jaenelle desempenhou o papel de criança levemente confundida, lisonjeando as prendas tão em desacordo com a sua maneira de ser que provocou em Daemon uma vontade de pintar as paredes com sangue. Mais ninguém reparou que Jaenelle lutava cada vez mais para tomar fôlego a cada prenda que desembrulhava até parecer que o papel colorido e os laços eram punhos que esmurravam o seu pequeno corpo. Quando Daemon abriu a prenda dela, que eram lenços de bolso, Jaenelle estremeceu e ficou pálida como a morte. Arquejando, pôs-se em pé de um pulo e saiu a correr da sala, ao mesmo tempo que Alexandra e Leiand gritavam rispidamente para que voltasse.

Sem se importar com o que pensariam, Daemon saiu da sala, percorrido por uma fúria gélida, e dirigiu-se à biblioteca. Jaenelle encontrava-se aí, ofegante, tentando debilmente abrir uma janela. Daemon trancou a porta, atravessou a sala em passos largos, girou raivosamente o fecho da janela e abriu-a com tanta força que as paredes tremeram.

Jaenelle inclinou-se sobre o parapeito estreito da janela, inspirando o ar de Inverno. — Custa tanto viver aqui, Daemon — choramingou quando Daemon a embalou nos braços. — Às vezes dói tanto.

— Chiu. — Afagou-lhe o cabelo. — Chiu.

Logo que a respiração de Jaenelle normalizou, Daemon fechou e trancou a janela. Encostou-se à parede, com uma das pernas esticada ao longo do parapeito, puxando-a, até estar junto a si. De seguida, colocou o outro pé sob a perna, segurando-a num triângulo firme.

Era uma loucura tê-la puxado para junto de si daquela forma. Era uma loucura tirar prazer ao sentir as mãos dela pousadas nas suas ancas. Era uma loucura não parar o lento desenrolar daquelas gavinhas psíquicas de sedução.

— Lamento não poder ter partilhado o cálice convosco.

— Não importa — murmurou Jaenelle.

— Importa para mim — retorquiu rispidamente, com a voz profunda e sedosa com um toque mais enrouquecido do que o habitual.

Os olhos de Jaenelle estavam a ficar baralhados e cinzento-azulados. Pez as gavinhas recuarem um pouco.

— Daemon — disse Jaenelle, hesitante. — A vossa prenda... Na garganta de Daemon deu-se um estrondo - o seu riso da cama, só que com fogo em vez de gelo, e os seus olhos ficaram de um tom dourado-escuro. — Foi tanto a vossa escolha como a caixa de tintas foi a minha. — Franziu o sobrolho. — Tinha pensado oferecer-vos uma sela que servisse tanto a ti como ao Dançarino Negro...

Jaenelle arregalou os olhos e deu uma gargalhada.

— ... mas não teria sido muito prático. — Um dedo com uma grande unha acariciava-lhe indolentemente o braço. Daemon sabia que devia afastar-se - agora - quando já a tinha animado, mas a dor de Jaenelle tinha retorcido algo dentro de si e não iria permitir que ela julgasse estar ali sozinha. Fê-lo pensar noutra coisa. — Jaenelle — disse com cautela ao olhar para o próprio dedo, — o Sacerdote... — Se Saetan não lhe tivesse dado qualquer presente de Winsol, o facto de estar a perguntar magoá-la-ia ainda mais?

— Oh, Daemon, é maravilhoso. Não o posso usar aqui, claro. Começou a destorcer-se. — Usar o quê?

— O meu vestido. — Contorceu-se no apertado triângulo, quase o fazendo atravessar a parede. — É até aos pés e é feito de seda de aranha e é preto, Daemon, preto.

Daemon concentrou-se na respiração. Quando se certificou de que o seu coração se tinha recordado do ritmo normal, enfiou a mão no bolso interior do casaco, retirando uma pequena caixa quadrada. — Assim sendo, julgo que isto será um acessório digno.

— O que é? — perguntou Jaenelle, pegando na caixa com hesitação.

— A vossa prenda de Winsol. A vossa verdadeira prenda de Winsol. Sorrindo timidamente, Jaenelle desembrulhou a caixa, abriu-a e arquejou.

Daemon sentiu um aperto na garganta. Não era uma prenda adequada para um homem como ele oferecer a uma rapariga, mas não se importava, não se importava com nada, excepto se lhe agradaria ou não.

— Oh, Daemon — murmurou Jaenelle. Tirou a pulseira em prata trabalhada da caixa e pô-la no pulso esquerdo. — Ficará perfeito com o meu vestido. — Levantou os braços para o abraçar e imobilizou-se.

Daemon observou as emoções a rodopiarem nos olhos de Jaenelle, demasiado rapidamente para as identificar. Em vez de o abraçar, baixou os braços, pousando-os nos ombros de Daemon, inclinou-se para a frente e beijou-o levemente nos lábios, uma menina-criança a testar o mar da feminilidade. As mãos de Daemon cerraram-se nos braços dela com a pressão suficiente para a manter junto a ele. Quando se afastou, Daemon vislumbrou-lhe nos olhos um sussurro da mulher em que se iria tornar.

Tendo visto isso, não poderia deixar que ficasse por ali.

Tomando-lhe o rosto nas mãos, Daemon inclinou-se para a frente e retribuiu o beijo. O seu beijo foi tão suave e com os lábios tão fechados como o dela tinha sido, porém não era inocente nem casto. Quando, por fim, se afastou, soube que estava a jogar um jogo perigoso.

Jaenelle balançou, apoiando-se com as mãos nas ancas de Daemon. Passou a língua pêlos lábios e olhou para ele com os olhos ligeiramente vítreos. — Todos... todos os rapazes beijam assim?

— Os rapazes não beijam assim. Senhora — disse baixinho, seriamente. — Nem a maior parte dos homens. Mas eu não sou como a maioria dos homens. — Recolheu lentamente as gavinhas de sedução. Tinha feito mais do que devia, esta noite; para além disto, iria magoá-la. Amanhã seria o companheiro que tinha sido ontem e anteontem. Mas ela recordaria aquele beijo e compará-lo-ia aos beijos de cada fraco rapaz de Chaillot.

Não importava quantos rapazes beijasse. Eram, afinal, rapazes. Mas a cama... Quando chegasse a altura, a cama seria dele.

Retirou-lhe a pulseira do pulso e voltou a colocá-la na caixa. — Fazei-la desaparecer — disse-lhe baixinho, ocupando-se ele próprio do laço e do papel. Depois de a caixa desaparecer, desenredou as pernas e levou-a de volta à sala de visitas e logo Graffse apressou a levar as raparigas para a cama.

Philip olhava furiosamente para Daemon. Robert sorria afectadamente. Leiand estava excitada e pálida. Foi o olhar ciumento e acusatório de Alexandra que desembainhou a sua fúria. Levantou-se para o confrontar, mas nesse preciso momento os convidados começaram a chegar para as festividades que se prolongariam por toda a noite.

Nessa noite, Daemon não esperou que Alexandra lhe "pedisse" que obsequiasse uma convidada. Seduziu todas as mulheres da casa - começando por Leiand - provocando-as até ao auge enquanto dançava com elas, observando-as a estremecer ao mesmo tempo que mordiam os lábios até sangrarem, esforçando-se para não gritar com tanta gente à volta. Ou escapulindo-se com uma das mulheres para uma pequena alcova e, após o primeiro beijo gélido e fogoso, ficando recostado a uma parede de forma pedante, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, enquanto o seu toque fantasma brincava impiedosamente com o corpo da mulher até ficar esparramada no chão, implorando a caricia de uma mão real - e, depois, o seu simples toque, o deslizar das unhas ao longo do interior da coxa, um toque breve na roupa interior, no sítio certo e ela ficaria saciada - e esfomeada.

Ainda assim, Daemon não tinha terminado.

Tinha evitado Alexandra, de forma deliberada, provocando-a com a manifesta sedução a todas as outras mulheres, frustrando-a para além do tolerável. Antes mesmo de a porta se fechar atrás do último convidado, arrebatou-a nos braços, subiu as escadas e trancou o quarto. Compensou-a por tudo. Mostrou-lhe o tipo de prazer que podia dar a uma mulher quando se encontrava inspirado. Mostrou-lhe a razão pela qual lhe chamavam o Sádico.

Quando entrou aos tropeções no seu quarto, já o sol ia alto, a primeira coisa em que reparou foi que a sua cama tinha sido mexida. Com um exame célere e irritado localizou o embrulho por baixo da almofada. Puxando a coberta cautelosamente e jogando a almofada para o lado, Daemon observou o embrulho desajeitadamente embrulhado e o bilhete dobrado enfiado debaixo do laço. Sorriu ternamente, deixando-se cair na cama, agradecido.

Ela deve tê-lo colocado ali logo que saiu do quarto.

O bilhete dizia: "Não pude dar-vos a prenda que queria pois os outros não iriam perceber. Feliz Winsol, Daemon. Com amor, Jaenelle."

Daemon desembrulhou a prenda e abriu a moldura articulada. O lado esquerdo estava vazio, aguardando a fotografia de Lucivar. À direita...

— É engraçado — disse Daemon baixinho para a fotografia. — Sempre julguei que tivesses um ar mais formal, mais... distante. Em todo o teu esplendor, com toda a Arte e o poder, não te importarias de te chegares à frente e deitar abaixo uma caneca de cerveja, pois não? Nunca me teria apercebido o quanto de ti está presente em Lucivar. Ou o quanto está presente em mim. Ah, Sacerdote. — Daemon fechou a moldura com delicadeza. — Feliz Winsol, Pai.

 

                             CAPÍTULO 13

— Deveríamos ter trazido os outros — disse Cassandra ao apertar o braço de Saetan.

Saetan pousou a sua mão na dela, apertando-a levemente. — Não pediu para ver os outros. Pediu para me ver.

— Não pediu — ripostou Cassandra. Olhou de relance para o Santuário e baixou a voz. — Não pediu, Senhor Supremo, exigiu ver-te.

— E aqui estou eu.

— Sim — disse com uma irritação subjacente, — aqui estás tu.

Às vezes é difícil lembrar-me por que razão te amei tanto por tanto tempo.

É meu filho, Cassandra. — Sorriu tristemente. — Estás ofendida pêlos seus modos por minha causa ou porque a tua vaidade se sentiu afligida pelo facto de não ter sido suficientemente adulador?

Cassandra retirou a mão de supetão do braço de Saetan. — É encantador quando quer — disse desagradavelmente. — E não tenho dúvidas de que não há nada a apontar aos seus modos na cama, uma vez que teve tanto tempo para aperfeiçoar... — As suas palavras perderam-se ao reparar no olhar glacial de Saetan.

— Se os seus modos deixam a desejar, Senhora, agradeço que te recordes de quem o treinou na corte.

Cassandra ergueu o queixo. — É a mim que me culpas, não é? — Não — disse Saetan, baixinho, amargamente. — Eu sabia o preço a pagar pelo que me tornei. A responsabilidade em relação a ele assenta unicamente em mim. Mas não permitirei a ninguém, a ninguém, que o condene pelo que se tornou devido a isso. — Saetan respirou profundamente, tentando dominar os nervos esgotados. — Por que é que não vais para o teu quarto? É melhor encontrar-me com ele a sós.

— Não — disse Cassandra rapidamente. — Ambos usamos a Preta. Junto poderemos...

— Não vim aqui para lutar com ele.

— Mas ele vem lutar contigo!

— Como podes saber?

— Não foi a ti que ele encostou à parede ao mesmo tempo que fazia as suas exigências.

— Dar-lhe-ei uma bofetada. Será suficiente para te apaziguar? — Saetan rosnou ao caminhar para as ruínas do Santuário, dirigindo-se à cozinha e a outro confronto.

A meio do caminho para a cozinha, Saetan abrandou o passo. Tinha mantido a promessa a Draca. No Winsol tinha dançado pela glória da Feiticeira. Graças ao sangue que Jaenelle continuava a insistir em lhe dar, já não necessitava de uma bengala nem coxeava, mas a dança tinha entorpecido a sua perna doente, tinha diminuído a circulação de fluidos. Lamentou que pudesse parecer velho ou enfermo no primeiro encontro com Daemon após tantos, tantos anos.

Quando Saetan se aproximou da porta da cozinha, sentiu a fúria a jorrar. Ora bem. Cassandra não tinha exagerado. Pelo menos, a raiva era ardente. Poderiam ainda conseguir falar.

Daemon vagueava pela cozinha com a graciosidade de uma pantera, as mãos nos bolsos das calças, o corpo envolto numa raiva fragilmente refreada. Ao lançar um olhar cortante em direcção à porta e ao avistar Saetan, não alterou o seu passo; girou, simplesmente, nos calcanhares, dirigindo-se directamente ao Senhor Supremo.

Aquela fotografia revelava apenas uma meia verdade, pensava Saetan ao observar Daemon a aproximar-se agilmente, aguardando para verificar se seria derramado sangue.

Daemon parou à distância de um braço, as narinas dilatadas, os olhos lancinantes, silencioso.

— Príncipe — disse Saetan calmamente. Observou Daemon a lutar para se controlar, a lutar contra a raiva abrasadora para conseguir retribuir o cumprimento.

— Senhor Supremo — disse Daemon com os dentes semicerrados. Aproximando-se lentamente da mesa, consciente de que Daemon observava todos os seus movimentos, Saetan despiu a capa, colocando-a numa cadeira. — Vamos tomar um copo de vinho e depois falaremos.

— Não quero vinho.

— Quero eu. — Saetan foi buscar o vinho e os copos. Sentando-se numa cadeira, abriu o vinho, serviu dois copos e aguardou.

Daemon avançou, colocando as mãos cautelosamente sobre a mesa. Dorothea estava cega se não viu o que Daemon era, pensava Saetan ao bebericar o vinho. Como esperava vê-las, Saetan não achou as longas unhas de Daemon tão desconcertantes como os dedos sem anéis. Se conseguia ser tão admirável sem usar uma Jóia que o ajudasse a concentrar a força...

Não admirava que Cassandra tivesse ficado aterrorizada. Jóias Negras ou não, não era adversária à altura para este seu filho.

— Sabeis onde ela está? — perguntou Daemon, esforçando-se para não gritar.

Saetan semicerrou os olhos. Medo. Toda aquela fúria estava a encobrir uma avalanche de medo. — Quem?

Daemon saltou da mesa, praguejando.

Ao ver que a torrente de expletivos não dava sinais de se acalmar, Saetan disse secamente: — Homónimo, tens a noção de que estás a tornar este sítio verdadeiramente inabitável?

— O quê? — Daemon girou sobre si próprio e saltou de volta para a mesa.

— Domina a tua raiva. Príncipe — disse Saetan calmamente. — Pediste que viesse e aqui estou. — Olhou por cima do ombro para a janela. — Porém, a madrugada está apenas a algumas horas e não te podes dar ao luxo de estar aqui depois dessa altura, não é verdade?

Quando Daemon se deixou cair numa cadeira à sua frente, Saetan ofereceu-lhe um copo de vinho. Daemon esvaziou-o. Saetan voltou a enchê-lo. Após voltar a encher o copo pela terceira vez, disse secamente:

— Da experiência que tenho posso garantir-te que ficar bêbedo não diminui o medo. Contudo, a agonia da ressaca pode fazer maravilhas ao discernimento de um homem.

Nos olhos de Daemon podia perceber-se um divertimento consternado.

— E isto sem rodeios, meu belo e jovem Príncipe, esta é obviamente a primeira vez que a nossa Senhora loura te fez borrar de medo.

Daemon franziu o sobrolho face à garrafa de vinho vazia, descobriu uma cheia no armário e voltou a encher ambos os copos. — Não é a primeira vez — resmungou.

Saetan soltou um riso abafado. — Mas é uma questão de níveis, não é?

Havia uma sugestão de afecto no sorriso relutante de Daemon. — É.

— E esta é uma má altura. Daemon fechou os olhos. — É.

Saetan suspirou. — Começa de início e veremos se conseguiremos desenredar esta confusão.

— Não está na propriedade da família.

— Estamos na época do Winsol. Poderá a família... — Saetan engasgou-se com a palavra — tê-la levado a visitar amigos?

Daemon abanou a cabeça. — Está lá algo, mas não é Jaenelle. Parece-se com ela, fala como ela, faz o jogo da filha obediente. — Daemon olhou para Saetan, com um olhar perturbado. — Mas o que faz de Jaenelle a Jaenelle, não está ali. — Riu-se desdenhosamente. — A família dela está bastante satisfeita por ela se estar a portar tão bem e por não os envergonhar quando as raparigas são apresentadas aos convidados. — Começou a brincar com o copo. — Temo que algo lhe tenha acontecido.

— É pouco provável. — Fascinado, Saetan observou a ira a dissipar-se do rosto de Daemon. Gostava do homem que via surgir.

— Como podeis ter a certeza? — perguntou Daemon esperançoso.

— Alguma vez vistes algo deste género?

— Exactamente desta forma, não.

— Então, como...

— O que estás a descrever, homónimo, é designado de sombra, contudo não existe ninguém em nenhum dos Reinos, incluindo eu próprio, que possua a Arte para criar uma sombra que seja tão real - à excepção de Jaenelle.

Daemon bebericou o vinho e matutou por uns momentos. — O que é, exactamente, uma sombra?

— Basicamente, uma sombra é uma ilusão, uma recriação da forma física de um objecto. — Saetan olhou de uma forma contundente para Daemon, que se encolheu um pouco na cadeira. — Sabe-se que algumas crianças criam uma sombra para que os outros julguem que estão a dormir nas suas camas quando, na verdade, estão a viver aventuras que, se fossem descobertas, as impediria de se sentar de maneira confortável durante uma semana. — Vislumbrou uma breve memória vacilante nos olhos de Daemon e o início de um sorriso sarcástico. — É uma sombra de primeiro grau e não tem movimento. Uma sombra de segundo grau pode movimentar-se, mas tem de ser manipulada como uma marioneta. Este tipo de sombra parece sólida mas não é possível tocá-la, não tem características tácteis. A sombra de terceiro grau, que é a mais robusta de que alguma vez tive conhecimento ser possível de se conseguir, tem características tácteis mas somente num sentido. Pode tocar mas não pode ser tocada. Todavia, também tem de ser manipulada.

Daemon ponderou bem sobre estas informações e abanou a cabeça.

— É mais do que isso.

— Sim, é muito, muito mais. É uma sombra criada com tanta habilidade que consegue agir independentemente nas rotinas habituais. Não creio que as conversas sejam estimulantes — Daemon bufou — o que significa que o criador poderá estar ocupado com algo completamente diferente.

— Como por exemplo?

— Ah — exclamou Saetan, voltando a encher os copos, — essa é a questão interessante.

Os olhos de Daemon chisparam de raiva mitigada. — Por que razão criaria uma?

— Como disse, essa é a questão interessante.

— Então é só isso? Aguardamos, simplesmente?

— Por agora. Mas quem a encontrar primeiro terá de ser bem ríspido Em dose dupla.

Nos lábios de Daemon surgiu, devagar, um sorriso. — Estais preocupado.

— Pois claro que estou preocupado — disse Saetan bruscamente. Visto que já não tinha de refrear a fúria de Daemon, sentiu que podia agora soltar a sua. — Quem é que sabe, em nome do Inferno, o que ela anda a inventar desta vez? — Deixou-se cair na cadeira, resmungando.

Daemon recostou-se e riu-se.

— Não estejas tão divertido, rapaz. Tu é que mereces um belo pontapé no rabo.

Daemon pestanejou. — Eu?

Saetan inclinou-se para a frente. — Tu. Da próxima vez que sugerires que obtenha uma instrução adequada antes de tentar fazer algo, é bom que te lembres, maldito sejas, de acrescentar que sou eu que lhe transmitirei os ensinamentos adequados.

— O que...

— Tecer sonhos. Lembras da tecelagem de sonhos, homónimo? Daemon empalideceu. — Lembro-me. Mas...

— Disseste-lhe que deveria ser ensinada pêlos melhores. Foi o que fez. — Então o que...

— Já ouviste falar de Aracna?

Daemon empalideceu ainda mais. — É uma lenda — murmurou.

— Quase tudo em Kaeleer é uma lenda, rapaz — ribombou Saetan. — E isso não a impediu de se encontrar com indivíduos muito interessantes.

Olharam-se furiosamente. Por fim Daemon disse com uma calma ameaçadora:

— Como vós?

Porra, este rapaz era divertido! Saetan respirou fundo e suspirou de forma dramática. — Já fui interessante — disse pesarosamente. — Era respeitado, até temido. O meu gabinete era um santuário privado no qual ninguém entrava de bom grado. Mas já perdi os dentes de leite há muito — Daemon olhou de relance, surpreendido, para a boca de Saetan — e agora vêm demónios bater-me à porta, alguns incomodados por ela não os ter ido visitar, outros por ela os ter ido visitar. A minha cozinheira encurrala-me aos cantos, querendo saber se a Senhora virá hoje para que possa preparar o seu empadão de carne preferido. E os comerciantes amontoam-se à entrada da minha casa, rastejando para conseguirem uma audiência, ficando aliviados na minha presença ao mesmo tempo que emaranham as mãos de desespero e despejam os seus rosários de desgraças.

Daemon, que estava cada vez mais divertido, franziu ligeiramente o sobrolho. — Os demónios e a cozinheira ainda percebo. Mas e os comerciantes?

Saetan suspirou novamente de forma teatral, mas os seus olhos brilhavam repletos de divertimento obscuro. — Abri-lhe uma conta em Kaeleer.

Daemon reteve a respiração. — Quereis dizer...

— Sim.

— Mãe Noite.

— Foi a expressão mais simpática que ouvi no que diz respeito a este assunto. — Apreciando o drama, Saetan prosseguiu: — E ainda vai piorar. Tens essa noção?

— Piorar? — disse Daemon, desconfiadamente. — Porque é que irá piorar?

— Ela só tem doze anos, meu homónimo.

— Bem sei — Daemon quase gemeu.

— Pensa bem nas confusões que terá a capacidade de armar quando tiver dezassete anos e a sua própria corte.

Daemon resmoneou mas o seu olhar arguto continha esperança. — Ela pode estabelecer a sua própria corte aos dezassete anos? E constituí-la?

Ah, homónimo. Saetan ficou parado por um momento, pensando numa forma delicada de explicar. — Nessa altura, a maior parte das posições pode ser atribuída. — O imediato rancor de Daemon deixou-o aturdido.

— É claro que pretendereis melhor para ela do que um prostituto que já serviu quase todas as Rainhas de Terreille — disse Daemon, enchendo uma vez mais o copo.

— Não foi isso que quis dizer — afirmou Saetan desesperado, pois qualquer explicação pareceria fraca.

— O que queríeis dizer, então? — perguntou Daemon, bruscamente.

— E se, aos dezassete anos, não estiver preparada para ter um consorte? — Saetan argumentou com suavidade. — E se levar mais alguns anos antes de estar preparada para a cama? Irás ficar num gabinete vazio, acomodando-te e familiarizando-te, enquanto homens de menor importância lhe despertam a curiosidade por serem estranhos? O tempo encerra uma grande magia, meu homónimo, se souberes as regras do jogo.

— Falais como se estivesse decidido — disse Daemon calmamente, com uma réstia do travo a azedume.

E está... no que me diz respeito.

O olhar desamparado e agradecido de Daemon era agonizante.

Mantiveram-se em silêncio, sociavelmente, durante alguns minutos. Foi então que Daemon disse:

— Qual a razão para me estardes constantemente a chamar homónimo?

— Porque assim és. — Saetan desviou o olhar, incomodado. — Nunca pretendi dar esse nome a nenhum dos meus filhos. Eu sabia o que era. Já seria difícil terem-me como pai. Porém, quando te peguei ao colo pela primeira vez, soube que mais nenhum nome se adequaria a ti. Por isso, chamei-te Saetan Daemon SaDiablo.

As lágrimas nos olhos de Daemon faziam-nos brilhar. — Então, chegastes mesmo a reconhecer a paternidade? A Manny disse que o registo dos Sangue em Hayll tinha sido alterado, mas fiquei na dúvida.

— Não sou responsável pelas mentiras de Dorothea, Príncipe — disse Saetan, amargurado. — Ou por o que o registo de Hayll apresenta ou não apresenta. Mas no registo que é mantido em Ebon Askavi tu - e Lucivar - têm o meu nome e são reconhecidos.

— Por isso chamáveis-me Daemon?

Saetan sabia que havia muito, muito mais que Daemon teria gostado de saber, mas estava agradecido pelo facto de o seu filho ter escolhido recuar, optando pela conversa mais ligeira nos poucos momentos que restavam.

— Não — disse Saetan, secamente, — eu nunca te chamei mais nada a não ser Saetan. A Manny e a Tersa — hesitou, perguntando-se se Daemon teria conhecimento de Tersa, mas não demonstrou qualquer surpresa, — é que te chamavam Daemon. Um dia, a Manny informou-me, quando lhe chamei a atenção para o erro, de que se eu pensava que ela iria pôr-se a gritar aquele nome à porta das traseiras para chamar um rapaz para jantar, teria de pensar melhor.

Daemon deu uma gargalhada. — Vá lá, a Manny é uma querida.

— Para ti. — Saetan soltou um riso abafado. — Pois eu sempre achei que ela queria simplesmente evitar que ambos respondêssemos ao chamamento.

— Teríeis respondido? — questionou Daemon, afectuosamente.

— Tendo em conta o tom de voz usado, não me atreveria a não o fazer.

Ambos riram à gargalhada.

A despedida foi incómoda. Saetan queria abraçá-lo, mas Daemon ficou tenso, quase espantadiço. Saetan perguntou-se se, após todos aqueles anos na corte de Dorothea, Daemon teria desenvolvido uma aversão ao toque.

E faltava Lucivar. Queria ter perguntado por Lucivar, mas a expressão perturbada de Daemon aquando da referência ao nome do irmão eliminou essa possibilidade. Uma vez que queria conhecer os filhos, teria de ter a paciência para permitir que se aproximassem quando se sentissem preparados.

 

Jaenelle voltou um dia e meio depois, tendo este tempo sido passado com os dentes cerrados.

Após uma tarde desgastante de visitas sociais com Alexandra, Daemon vagueava pêlos corredores, demasiado impaciente para se deitar e desfrutar de um descanso bem merecido, quando se deparou com as raparigas, de regresso de um passeio no jardim.

— Com certeza deves lembrar-te como foi divertido — disse Wilhelmina, ao mesmo tempo que Daemon se aproximava. Parecia desorientada. — Foi ainda ontem.

— Ai foi? — respondeu Jaenelle, distraída. — Ah, pois, já me lembro. Daemon fez-lhes uma vénia exagerada. — Senhoras. Wilhelmina deu umas risadinhas. Jaenelle ergueu a cabeça para encontrar o olhar de Daemon.

Não gostou do cansaço no rosto de Jaenelle, não gostou do aspecto envelhecido dos olhos, embora fossem dissimulados pelo azul-celeste, mas não desviou o olhar. — Senhora, posso dar-vos uma palavra?

— Como desejardes — disse Jaenelle, quase deixando sair um suspiro.

Aguardaram até Wilhelmina subir as escadas para a ala das crianças, dirigindo-se depois à biblioteca. Daemon trancou a porta. Antes mesmo de decidir o que iria dizer, Jaenelle protestou: — Não sejais rezingão, Príncipe.

Com os cabelos em pé, Daemon enfiou as mãos nos bolsos e caminhou sem pressas na direcção de Jaenelle. — Não disse nada.

Jaenelle despiu o casaco e tirou o chapéu, jogando-os para o sofá e deixando-se cair ao lado deles. — Hoje já ouvi uma descompostura.

Ora então o Sacerdote tinha-a encontrado primeiro. Melhor assim. Tudo o que Daemon queria era abraçá-la. Sentou-se a seu lado, desejando, perversamente, retirar o ferrão da reprimenda que ele próprio tinha querido aplicar. — A reprimenda foi muito má? — perguntou docemente.

Jaenelle olhou para Daemon com o semblante carregado. — Nem sequer me teria repreendido se não lhe tivésseis dito. Por que lhe fostes dizer?

— Estava assustado. Pensei que vos tinha acontecido algo de mal.

— Oh — exclamou Jaenelle, mitigada de imediato. — Mas esforcei-me tanto para criar aquela sombra para que ninguém se preocupasse, para que não existisse qualquer diferença. Mais ninguém reparou na diferença.

Repararam, minha Senhora. Ficaram gratos pela diferença. Divertia-o - um pouco - que ela estivesse mais preocupada pelo facto de a sua Arte não ter sido tão eficaz como pensava do que com a preocupação que tinha provocado. — Foi necessário recorrer à Negra para dar conta da diferença e até eu próprio só tive a certeza depois de se passar um dia inteiro.

— A sério? — Jaenelle animou-se.

— A sério. — Daemon tentou sorrir, mas não conseguiu fazê-lo plenamente. — Não achais que tenho direito a uma explicação?

Jaenelle escondeu a cara atrás do véu louro de cabelo. — Eu ia contar-vos. Prometi que vos contaria. E tinha de contar ao Sacerdote pois ele tem de tratar de umas coisas.

Daemon franziu o sobrolho. — Prometestes a quem?

— A Tersa.

Daemon contou até dez. — Como conheceis Tersa?

— Era a altura certa, Daemon — disse Jaenelle, ignorando a pergunta. Daemon voltou a contar até dez. — A Tersa é muito especial para mim.

— Eu sei — disse Jaenelle baixinho. — Mas agora já estais crescido, Daemon. Já não precisais dela. E estava na altura de deixar o Reino Distorcido... mas estava lá há tanto tempo, que não conseguia encontrar sozinha o caminho de volta.

O quarto estava gelado - não era o frio da raiva, o frio do medo. Daemon pegou nas mãos de Jaenelle, segurando-as entre as suas, retirando um diminuto conforto do calor emanado. Não queria compreender. Não queria, realmente, compreender. Mas compreendia. — Entrastes no Reino Distorcido, não é verdade? — disse, tentando desesperadamente manter a voz calma. — Caminhastes pelas estradas da loucura para a encontrar e guiá-la de regresso à sanidade - pelo menos até onde consiga chegar.

— Sim.

— Não pensastes... — a voz embargou-se devido ao esforço. — Não vos ocorreu que pudesse ser perigoso?

Jaenelle pareceu intrigada. — Perigoso? — Abanou a cabeça. — Não. É apenas uma forma diferente de ver, Daemon.

Daemon fechou os olhos. Não temeria nada? Nem mesmo a loucura?

— Além disso, já viajei até essa distância anteriormente, por isso sabia o caminho de regresso.

Daemon saboreou sangue no sítio onde os dentes tinham mordido a língua.

— Mas demorei algum tempo a encontrá-la e demorei algum tempo a convencê-la de que estava na altura de sair dali, de que não tinha necessidade de ficar sempre no interior das visões. — Jaenelle apertou ligeiramente as mãos de Daemon. — O Sacerdote vai comprar-lhe uma pequena casa numa aldeiazinha perto do Paço em Kaeleer. Ali, terá quem cuide dela e um jardim no qual trabalhar e Irmãs Viúvas Negras com quem conversar.

Daemon puxou-a para os seus braços e abraçou-a com força. — Conseguistes convencê-la a viver aí? — sussurrou-lhe no cabelo. — Irá realmente viver numa casa decente, com roupas decentes e comida saudável e pessoas que compreendem? — A cabeça de Jaenelle movia-se para baixo e para cima. Daemon suspirou. — Sendo assim, valeu a pena a inquietação. Cem vezes isso e ainda valeria a pena.

— Foi o que o Sacerdote disse - depois da reprimenda. Daemon sorriu encostado ao cabelo de Jaenelle. — Disse mais alguma coisa?

— Muitas coisas — resmungou Jaenelle. — Algo sobre sentar-se confortavelmente, mas eu não percebi e ele não quis repetir.

Daemon tossiu. Jaenelle ergueu a cabeça, olhando com desconfiança. Tentou manter uma expressão insípida. Jaenelle pareceu ainda mais desconfiada.

O som de passos no corredor fê-lo voltar-se, o corpo tenso, os olhos fixos na porta.

— É melhor irdes para junto da vossa irmã. — Entregou-lhe o casaco e o chapéu. Antes de abrir a porta, fez uma pausa. — Agradeço-vos. — Estava longe de ser suficiente, mas era o que se conseguia lembrar de dizer. Jaenelle acenou com a cabeça e deslizou porta fora.

 

Daemon tinha acabado de se pentear, pronto para mais um dia de actividades de Winsol, quando ouviu Jaenelle a bater levemente na porta, saltando para dentro do quarto. Não tinha a certeza relativamente à altura em que o seu quarto se tinha tornado território comum, mas já não era tão descontraído na forma de se vestir - e de se despir - como era antigamente.

Jaenelle saltitou a seu lado, com os olhos fixos no rosto. Daemon sorriu. — Tenho a vossa aprovação?

Levantou o braço, passou os dedos na face de Daemon e franziu o sobrolho. — O vosso rosto é macio.

Levantando uma sobrancelha, Daemon virou-se para o espelho para verificar o colarinho. — Os homens hayilianos não têm pêlos faciais. — Fez uma pausa. — Nem os dhemianos nem os eyrienos, já que falamos nisso. Jaenelle continuava de sobrolho franzido. — Não percebo. Daemon encolheu os ombros. — É uma questão de diferenças de raças. — Não. — Jaenelle abanou a cabeça. — Se não tendes de tirar os pêlos como o Philip, por que razão a Graff disse que serviríeis melhor se fôsseis rapado? Philip fá-lo soz...

O punho de Daemon atingiu o cimo da cómoda, lascando a madeira de uma ponta à outra. Agarrou as bordas, ao mesmo tempo que lutava para se controlar. A cabra. A cabra, a sugerir tal coisa!

— Quer dizer algo diferente, não é? — disse Jaenelle com a sua voz da meia-noite.

— Não é nada — rosnou Daemon entre dentes.

— O que é que significa, Daemon?

— Deixai estar, Jaenelle.

— Príncipe.

O punho de Daemon esmurrou novamente a cómoda. — Se iludes assim tanta curiosidade, perguntai ao vosso maldito mentor! — Virou-se, forçando-se a recuperar o controlo. Passado um momento, virou-se de novo, dizendo: — Jaenelle, perdoai-me.

Jaenelle já tinha ido embora.


 

Saetan e Andulvar estavam sentados à volta da secretária em madeira escura, bebendo yarbarah enquanto aguardavam por Jaenelle. Saetan tinha regressado ao gabinete privado por baixo do Paço para poder dispor de algum tempo em privado e de concentração com Jaenelle para as aulas, após descobrir que todos os empregados em Kaeleer pareciam dirigir-se ao seu gabinete público sob um ou outro pretexto, só para dizer olá a Jaenelle.

— Qual é o tema da lição de hoje? — perguntou Andulvar.

— Como é que hei-de saber? — ripostou Saetan secamente.

— És o responsável.

— Fico contente por alguém pensar assim.

Ah. — Andulvar voltou a encher o copo e aqueceu o vinho de sangue. — Ainda estás aborrecido por causa da Tersa?

Saetan examinou a taça de prata. — Aborrecido? Não. — Encostou a cabeça à parte de trás da cadeira. — Mas, Fogo do Inferno, Andulvar, tentar acompanhar estes saltos dela... a enormidade da força bruta que deve ser necessária para realizar algumas destas coisas. Quero que tenha uma infância. Quero que faça todas as tontices que as rapariguinhas fazem, seja lá o que for. Quero que seja jovem e despreocupada.

— Ela nunca terá uma infância normal, SaDiablo. Conhece-nos a nós, conhece as cildru dyathe, o Geoffrey e a Draca - e Lorn, o que quer que seja e onde quer que se encontre. Já conheceu mais de Kaeleer do que qualquer um em mil anos. Como podes esperar que tenha uma infância normal?

— Essas coisas sào normais, Andulvar — disse Saetan penosamente, ignorando a resmunguice de negação emitida por Andulvar. — Preferias nunca a ter conhecido? Não me faças essa carantonha; eu sei a resposta.

— Inclinou-se para a frente, pousando as mãos entrelaçadas na secretária.

— A questão é: uma criança brinca com os unicórnios em Sceval. Uma criança visita amigos em Scelt e Philan e Glacia e Dharo e Narkhava e Dea ai Mon - e no Inferno - e quem sabe em quantos outros lugares. Tenho ouvido as suas histórias, as aventuras inocentes não obstante arrasadoras de nervos, de jovens e fortes feiticeiras que estão a crescer e a aprender a sua Arte. Não importa onde se encontra quando está nestas andanças, é uma criança.

— E então qual é o problema?

— O único lugar que nunca refere, o único lugar que nunca consta destas suas aventuras, é Beldon Mor. Nada revela sobre a sua família.

Andulvar reflectiu sobre estas palavras. — SaDiablo, já és bastante ciumento. Queres mesmo saber que as pessoas que têm mais direitos sobre ela a adoram tanto como tu próprio? Estaria uma criança com a sensibilidade de Jaenelle relativamente aos estados de espírito dos outros disposta a contar-te?

— Ciumento? — Saetan silvou. — Crês que é o ciúme que me faz querer despedaçá-los?

Andulvar estudou o amigo antes de dizer cautelosamente: — Sim, creio.

Saetan afastou-se de rompante da secretária, começou a levantar-se da cadeira mas reconsiderou. — Não são ciúmes — disse, fechando os olhos.

— Medo. Fico sempre a matutar no que acontece depois de Jaenelle sair daqui. Fico a matutar nalgumas das coisas que ela me pede para lhe ensinar, perguntando-me por que razão uma criança quer saber sobre determinados assuntos, fico a matutar na razão pela qual, por vezes, me apercebo do desespero na sua voz ou, o que é pior, da raiva assustadora. — Olhou para Andulvar. — Sobrevivemos a infâncias brutais e mantivemo-nos fiéis aos Sangue porque é o que somos. Sangue. Contudo, ela... Oh, Andulvar, dentro de poucos anos realizará a Dádiva e quando isso acontecer, ficará fora de alcance. Se se sentir isolada de nós... Queres ver Jaenelle na sua plena e obscura glória a governar a partir do Reino Distorcido?

— Não — disse Andulvar baixinho, com um ligeiro tremor na voz. — Não, não quero ver a nossa fedelha no Reino Distorcido.

— Assim sendo... — ouviu-se uma leve batida na porta. Saetan e Andulvar trocaram um olhar. Andulvar pôs um semblante carregado enquanto Saetan passava para um ar de indiferença. — Entre.

Ambos ficaram tensos assim que Jaenelle entrou no gabinete, sendo a disposição dos seus ombros o aviso de que necessitavam.

— Senhor Supremo — disse, cumprimentando-o com um aceno próprio da realeza. — Príncipe Yaslana.

— Estamos um pouco formais, não estamos, fedelha? — disse Andulvar com uma rudeza bem-humorada.

Saetan cerrou os lábios, consternado. Pode-se confiar num eyrieno para levar a batalha para o descampado. O que o preocupou foi a falta de resposta por parte de jaenelle.

Dirigiu-se a Saetan, os olhos azul-safira a pregá-lo à cadeira. — Senhor Supremo, quero fazer uma pergunta e não quero ouvir que sou demasiado nova para saber a resposta.

Saetan viu que Andulvar ficou imóvel, reunindo energias caso viesse a ser necessário. — E qual é a pergunta, Senhora?

— O que significa ser rapado?

Andulvar abafou um arquejo. Saetan sentiu-se cair por um abismo infindável. Humedeceu os lábios e disse calmamente: — Significa remover os genitais de um homem.

Por um breve momento, o gabinete assemelhou-se ao céu pejado de relâmpagos. Saetan não se atreveu a desviar o olhar de Jaenelle, não se atreveu a perder o que quer que neles pudesse interpretar.

Fê-lo sentir-se mal.

A seguir ao rasgo de raiva, observou-a a considerar, a ponderar, a decidir. Apesar de saber o que Jaenelle iria dizer, Saetan temia ouvir aquelas palavras.

— Ensina-me.

— Espera lá, fedelha!

Jaenelle ergueu a mão. Nem o Príncipe Demónio se atreveria a desafiar aquela ordem impositiva para se manter em silêncio. — Senhor Supremo?

É assim que se deve sentir uma casca seca e envelhecida. — Existem duas formas — disse Saetan de forma inflexível. — A forma mais fácil exige perícia com a faca. Exige também o contacto físico. A outra forma é mais subtil mas exige que se tenha conhecimento da anatomia masculina para que seja eficaz. Qual delas preferes aprender?

— Ambas.

Saetan desviou o olhar. — Dás-me até amanhã para me preparar?

Jaenelle acenou afirmativamente com a cabeça. — Senhor Supremo. Príncipe Yaslana.

Ficaram a olhar para ela a ir-se embora. Durante algum tempo, nada disseram, nenhum desejando encontrar o olhar do outro.

Finalmente, Andulvar disse retesadamente: — Vais fazê-lo, não vais? Saetan recostou-se na cadeira e fechou os olhos, massajando as têmporas para aliviar uma dor de cabeça lancinante. — Sim, vou.

— Estás louco! — bramiu Andulvar, saltando da cadeira. — Só tem doze anos, Saetan. Como pode perceber o que significa para um homem ser rapado?

Saetan abriu lentamente os olhos. — Não viste os olhos de Jaenelle. Já tem consciência do que envolve o acto de rapar um homem. É por isso que quer saber como se faz.

— E quem irá ser a primeira vítima? — rosnou Andulvar. Saetan abanou a cabeça. — A questão, meu amigo, é saber qual a razão para a existência de uma vítima? E onde?

 

Quando Surreal se apercebeu que tipo de festa esta iria ser, por pouco não transmitiu ao acompanhante que queria ir-se embora, mas tinha-lhe arrancado a promessa de a levar a uma festa de Winsol nas circunstâncias mais distractivas - e convincentes - e não lhe queria dar uma desculpa para fugir com o rabo à seringa. Noutra altura, teria sido divertido observar a sua arrogância excitada tentando parecer indiferente em relação à mulher que o acompanhava, uma mulher cujo nome nunca seria pronunciado no seio de nenhuma família de boa reputação - pelo menos enquanto as mulheres estivessem por perto. Mas isto... Surreal ansiava invocar o punhal e enfiá-lo entre algumas costelas.

Era a festa das crianças, das raparigas. E os tios estavam presentes em força, praticamente a babarem-se enquanto devoram com os olhos as perspectivas futuras.

Pior ainda, Sadi estava presente, parecendo, como era habitual, entediado, embora o olhar letárgico e a forma indolente como se movia pelo salão a fizesse sentir apreensiva. Bebericando vinho espumante e acariciando o braço do acompanhante de uma forma que lhe incendiava as orelhas, observava Sadi, percebendo, por fim, que também ele mantinha alguém sob uma vigilância discreta mas contínua. O olhar de Surreal percorreu o salão, retendo os olhares de relance dos homens durante uma desconfortável batida de coração, passando por eles até chegar ao grupo de raparigas aglomeradas a um canto, segredando e dando risadinhas.

Excepto uma.

Por instantes, Surreal foi apanhada por aqueles olhos azul-safira desconfiados. Quando lhe foi permitido que desviasse o olhar, deparou-se com Sadi a observá-la.

— Preciso de apanhar ar — disse Surreal ao jovem Senhor da Guerra, escapulindo-se dele para procurar um terraço, uma janela aberta, qualquer coisa.

O terraço estava vazio. Surreal invocou um xaile, enrolando-o à volta dos ombros. Era um disparate estar ali fora, mas o fedor a lascívia nas divisões apinhadas de gente era insuportável.

— Surreal.

Surreal ficou tensa. Não o tinha ouvido aproximar-se, não tinha ouvido o mais débil som de sapatos na pedra. Continuou a olhar fixamente para o jardim que se encontrava na escuridão, não vendo nada, aguardando.

— Um cigarro? — perguntou Daemon, oferecendo o estojo dourado. Surreal retirou um cigarro e aguardou que Daemon criasse a pequena labareda de fogo encantado para o acender. Fumaram em silêncio durante alguns momentos.

— O teu acompanhante não sabe muito bem o que fazer consigo próprio este serão — disse Daemon, com um toque de diversão mordaz.

— É um idiota. — Surreal mandou o cigarro para o jardim. — Além disso, se soubesse o tipo de festa que era, não teria vindo.

— E que tipo de festa é?

Surreal produziu um resfolego pouco próprio para uma senhora. — Porque é que Briarwood é aqui tão apreciado? Que tipo de festa é que achas que vai ser?

A noite estava silenciosa e fria. Agora estava repleta de algo ainda mais silencioso - e ainda mais frio.

— O que sabes sobre Briarwood, Surreal? — Daemon trauteou. Surreal encolheu-se quando Daemon caminhou na sua direcção. — Nada mais do que toda a gente que trabalha numa casa da Lua Vermelha sabe — disse, defensivamente.

E o que é?

— Porquê? — disse rispidamente, ansiando pelo punhal mas não se atrevendo a invocá-lo. — Tornaste-te um tio, Sadi?

A voz de Daemon soava demasiado afável, demasiado letárgica. — E o que é um tio?

Tinha estado atenta os olhos de Daemon, paralisada pelo que viu neles, pelo que só deu conta da mão de Daemon a cerrar-se à volta do seu pulso quando já era demasiado tarde.

Ira. A ira era a única defesa.

— Um tio é um homem que gosta de brincar com rapariguinhas — disse com um veneno adocicado.

A expressão de Daemon não se alterou. — E o que é que isso tem a ver com Briarwood?

— Kartane ajudou a construir o local — ripostou. — Isso não responde à tua pergunta? — Puxou o pulso, soltando-se da mão de Daemon, um pouco surpreendida por ele a soltar ao invés de o ter partido. — Nenhuma casa da Lua Vermelha respeitável venderia uma rapariga tão jovem ou permitida que fosse... — Massajou o pulso. — As prostitutas de Chaillot chamam-lhe zona de ruptura. As raparigas emocionalmente instáveis” provenientes de boas famílias são, eventualmente, enviadas de volta para casa, para se casarem. As outras... As casas da Lua Vermelha de classe baixa estão atulhadas de raparigas demasiado velhas para proporcionarem diversão.

— Isso explica tanta coisa — murmurou Daemon, a tremer. — Explica mesmo muito.

Surreal pousou uma mão hesitante no braço de Daemon. — Sadi?

Tomou-a nos braços. Surreal debateu-se, apavorada por estar tão junto a ele sem forma de prever o que poderia vir a fazer. Os braços de Daemon apertaram-na ainda com mais força. — Surreal — sussurrou-lhe ao ouvido. — Deixa-me abraçar-te. Por favor. Só por um momento.

Surreal fez um esforço para se descontrair e quando o conseguiu, o aperto afrouxou um pouco, permitindo que conseguisse respirar. Apoiando a cabeça no ombro de Daemon, tentou raciocinar. Por que razão estaria tão perturbado devido a Briarwood? Não era o primeiro lugar que Kartane tinha ajudado a construir com esse propósito. Conheceria alguém que se encontrava em Briarwood? Ou que lá tivesse estado...

— Não. — Surreal abanou a cabeça furiosamente, querendo negar o que tinha visto mas não tinha compreendido naqueles olhos azul-safira desconfiados. — Não. — Afastou-se dele o suficiente para se agarrar às lapelas do casaco. — Aquela não. — Continuou a abanar a cabeça. — Ela não.

— Entre lá e cá desde os cinco anos — disse Daemon com a voz trémula.

— Não — gemeu Surreal, escondendo o rosto no peito de Daemon, agradecida pêlos braços que a envolviam. De repente, afastou-se dele com um empurrão, limpando as lágrimas das faces, os olhos de um verde dourado como lascas de pedra. — Tens de a tirar daqui. Tens de a manter afastada deles.

— Eu sei — disse Daemon, ajeitando o casaco. — Eu sei. Anda, acompanho-te para dentro de casa.

— Não percebes o que irão tentar fazer-lhe? O que... — Surreal passou as mãos pelo cabelo, não se apercebendo dos ganchos a cair, partindo-se no chão do terraço em pedra. — Não devem tê-la ainda sujeitado ao tratamento completo. Não age como se tivesse sido já quebrada. — Agarrou o braço de Daemon e tentou abaná-lo. Era como tentar abanar o edifício. — Tens de a afastar daqui. Ela é especial, Sadi. Ela...

— Chiu — disse Daemon, passando com os dedos nos lábios de Surreal. As mãos dele percorreram-lhe o cabelo, tentando ajeitá-lo de forma semelhante ao estilo que tinha anteriormente. — Acalma-te, Surreal.

— Como...

— Acalma-te.

Conhecia-o há bastante tempo para perceber uma ordem quando a ouvia. Calma. Sim. Os forasteiros não deveriam saber da pequena festa adicional que iria ter lugar.

Daemon encaminhou-a de volta ao salão principal, com a mão apoiada levemente no ombro de Surreal. — Diz ao teu acompanhante que estás com uma dor de cabeça. Demasiado calor, demasiado vinho espumante. Qualquer coisa.

— Não será difícil. — Da soleira da porta, Surreal sondou a multidão no salão de baile, à procura do jovem Senhor da Guerra. Em vez dele, viu um Senhor da Guerra hayiliano junto a um grupo de homens, discutindo calmamente um assunto qualquer, ao mesmo tempo que observavam algumas das raparigas que dançavam pela primeira vez, com pares escolhidos. — Quem é aquele? — perguntou, inclinando o queixo na direcção do hayiliano. A mão de Daemon premiu-lhe o ombro.

— Aquele, minha cara Surreal, é Kartane SaDiablo.

O punhal já estava na sua mão antes de Daemon ter terminado. Kartane! Finalmente via Kartane.

Surreal tentou andar para a frente, pretendendo deslizar através da multidão até se encontrar perto o suficiente para garantir que o mataria, mas não conseguiu livrar-se da garra firme de Daemon.

— Não, Surreal — disse Daemon baixinho.

— Tem de pagar por Titian — silvou através de dentes cerrados.

— Aqui não. Não em Beldon Mor.

— Tem de pagar, Sadi.

A dor no ombro agravou-se.

— Se o matares agora, Dorothea irá começar a indagar. Não quero que ninguém ande por aí a fazer mais perguntas. Compreendes?

Surreal fez o punhal desaparecer. Não era do seu agrado, mas compreendia. Contudo, isso não significava que não pudesse estudar a sua presa.

— Agora vai, Surreal.

— Acho que...

— Vai. — Uma vez mais, era uma ordem.

Surreal foi-se embora, ciente de que Daemon a observava. Não encontrou o seu acompanhante Senhor da Guerra. Provavelmente, nesta altura já estaria demasiado bêbedo para perceber com quem ia para a cama.

Chaillot tinha demasiados segredos, pensava Daemon ao observar a festa. E este em particular era um segredo maldoso e perverso.

Por que razão Saetan não tinha feito nada em relação a Briarwood? Por que tinha deixado Jaenelle correr tamanho perigo?

Daemon ficou paralisado. As palavras de Jaenelle, da primeira vez que mencionou o Sacerdote, rodopiaram-lhe na cabeça. Nàopode vir aqui. Não pode descobrir que...

Saetan não tinha conhecimento de Briarwood.

O que também explicava por que Cassandra nunca tinha vindo a Beldon Mor. Jaenelle tinha feito algo para os manter afastados, para evitar que Saetan descobrisse o que era Briarwood.

Porquê? Porquê? Julgaria que Saetan a ostracizaria por isso7 Ou temeria a vingança desferida por Saetan à sua família se descobrisse que tinham colocado intencionalmente uma criança naquele local?

Não. Alexandra não podia saber. Nem Philip nem Leiand. Robert?

Rose. Chupa-chupa. Tio Bobby.

Sim, Robert Benedict sabia sobre Briarwood e, intencionalmente, colocou a filha nesse local.

Tinha de falar com Alexandra. Se soubesse a verdade sobre Jaenelle e sobre Briarwood, ajudaria na protecção à neta. Lutava para manter o seu povo afastado do ardil de Hayll. Compreenderia e daria valor a uma Rainha que tivesse capacidade de se opor a Dorothea.

Daemon viu Alexandra junto a uma arcada com cortinas, à conversa com várias mulheres. Passou por elas, deu meia volta e estava prestes a surgir por detrás das cortinas quando ouviu Alexandra dizer: — A Feiticeira é unicamente um símbolo dos Sangue, um ideal que celebramos, um mito.

— Mas, outrora, a Feiticeira dominou de facto os Reinos, há muito tempo atrás — disse outra voz que Daemon não identificou. — Recordo-me de ouvir histórias sobre Cassandra, que era uma Rainha de Jóia Negra. Chamavam-lhe Feiticeira.

— Também me recordo de ouvir histórias — disse Alexandra. — Mas é isso mesmo que são: histórias que foram esbatidas pelo tempo e aligeiradas por noções românticas sobre uma mulher que, provavelmente, nem sequer existiu. Mas se existiu, acreditam realmente que, com tanto poder, era uma Rainha generosa e benévola? É pouco provável. Seria um monstro ainda maior do que Dorothea SaDiablo.

— Brrr — ouviu-se outra mulher encenando um calafrio teatral.

— Mas e se a Feiticeira surgisse realmente? — insistiu a primeira mulher.

As palavras proferidas de seguida por Alexandra golpearam-no. Golpearam-no uma e outra vez. — Nesse caso, esperaria, para o bem de todas nós, que alguém tivesse a coragem de a estrangular no berço.

Daemon voltou ao terraço, grato pelo ar gelado que engolia em seco para reprimir o grito de raiva e desespero. Por que razão se tinha tentado iludir pensando que ela ajudaria?

Porque não havia mais ninguém. Estava Anelado e poderia ser incapacitado. Levaria tempo, mas não assim tanto tempo. Mesmo que conseguisse libertar-se do Anel seria declarado potencialmente perigoso e não haveria sítio onde estivessem a salvo que fosse adequado a uma rapariga. A única forma era levar Jaenelle para junto de Saetan e convencê-la a não regressar.

Em primeiro lugar, tinha de a afastar dali.

A oportunidade chegou quando Jaenelle saiu do salão de baile, dirigindo-se pelo corredor para uma casa de banho. Encoberto por um escudo de visão, seguiu-a de perto, aguardando com impaciência à porta enquanto ela tratava das suas necessidades fisiológicas. Ao abrir a porta para sair, Daemon empurrou-a novamente para dentro, trancou a porta e deixou cair o escudo.

Jaenelle franziu o sobrolho, esforçando-se para achar graça.

Daemon ajoelhou-se à sua frente, segurando-lhe as mãos. — Ouvi-me, Jaenelle. Aqui estais em perigo, em grande perigo.

— Sempre estive aqui em perigo, Daemon — disse Jaenelle calmamente, com a sua voz de Feiticeira.

— Agora o perigo é maior. Não percebeis o que aqui se vai passar.

— Ai não? — a sua voz era como um trovão sussurrado.

— Jaenelle... — Daemon fechou os olhos, inclinando-se para a frente até a sua cabeça ficar encostada ao pequeno, demasiado magro e frágil peito. Sentiu o coração a bater. Fê-lo desesperar. Tudo faria para que aquele coração continuasse a bater. — Jaenelle, por favor. O Sacerdote... O Sacerdote permitiria que ficásseis com ele, não permitiria? Quer dizer, não teríeis de viver no Reino das Trevas. Encontraria outro lugar, como encontrou para a Tersa, não encontraria? Jaenelle... querida... já não podeis ficar aqui.

— Tenho de ficar, Daemon — disse Jaenelle docemente. Com os dedos, afagou a cabeça de Daemon, ficando emaranhados no cabelo.

— Porquê? — gritou Daemon. Levantou a cabeça, com os olhos a suplicarem. — Eu sei que vos preocupais com a vossa família...

— Família? — Jaenelle soltou uma pequena mas azeda gargalhada. — A minha família vive no Inferno, Príncipe.

— Assim sendo, por que não ides? Se achais que o Sacerdote não vos abrigará, ide, pelo menos, ter com Cassandra. Um Santuário oferece alguma protecção.

— Não.

— Porquê?

Jaenelle afastou-se de Daemon, perturbada. — Saetan pediu-me para viver com ele e eu prometi-lhe que o faria, mas ainda não posso.

Daemon recostou-se sobre os calcanhares. Era brutal e era chantagem, mas ela não lhe deixava outra alternativa. — Eu sei sobre Briarwood.

Jaenelle estremeceu. — Então sabeis porque é que não posso ir ainda. Daemon agarrou-a com força e abanou-a. — Não, não sei porquê. Se eu lhe contar...

Jaenelle olhou para ele com os olhos arregalados e aterrorizados. — Por favor não lhe conteis, Daemon — murmurou. — Por favor.

— Porquê? — perguntou bruscamente. — Não vos rejeitará pelo que já está feito. Achais mesmo que deixará de gostar de vós se descobrir?

— É possível.

Daemon inclinou-se para trás, aturdido. Uma vez que não fazia qualquer diferença para si próprio, exceptuando que queria protegê-la ainda mais, partia do princípio que Saetan sentiria de forma idêntica. Faria alguma diferença?

— Daemon — suplicou Jaenelle — se ele descobrir que estive... doente. .. se ele achar que não sirvo para me ensinar a Arte...

— O que é que quereis dizer com “doente”? — mas Daemon sabia. Um hospital para crianças "emocionalmente perturbadas". Uma criança que conta histórias sobre unicórnios e dragões, que visita amigos que mais ninguém vê visto que, onde quer que existam, não se encontram em Terreille. Uma criança cujo sentido de realidade tinha sido distorcido em Briarwood durante tantos anos que não sabia no que acreditar ou em quem confiar.

Daemon abraçou-a, acariciando-lhe o cabelo. Sentiu as lágrimas no pescoço e o seu coração sangrou. Tinha apenas doze anos. Apesar de toda a Arte, de toda a magia, de toda a força, tinha apenas doze anos. Acreditava em todas as mentiras que lhe contassem. Embora lutasse contra eles, embora tentasse duvidar das palavras que lhe tinham impingido ao longo de tantos anos, acreditava nas mentiras. E era porque acreditava que tinha ainda mais receio de perder o seu mentor e amigo do que perder a própria vida.

Beijou-lhe a face. — Se eu prometer não contar, prometeis que ireis – e não voltareis?

— Não posso — sussurrou Jaenelle.

— Porquê? — questionou Daemon, iradamente. Estava a perder a paciência. Estava a perder tempo precioso.

Jaenelle afastou-se e olhou para Daemon com aqueles olhos vetustos e perturbados. — Wilhelmina — disse com uma voz sem variações. — A Wilhelmina é forte, Daemon, mais do que ela julga, suficientemente forte para usar a Safira se não for quebrada. Tenho de a ajudar até realizar a Dádiva. Aí ficará mais forte do que a maioria dos homens daqui e não terão capacidade de a quebrar. E será nessa altura que irei viver com o Sacerdote.

Daemon desviou o olhar. Faltavam, no mínimo, quatro anos até Wilhelmina poder realizar a Dádiva. Jaenelle, se permanecesse em Beldon Mor, já estaria morta há muito nessa altura.

Uma batida repentina na porta sobressaltou-os. Uma mulher gritou:

— Está tudo bem aí, menina? Toca a despachar. As raparigas estão a escolher os pares para a dança.

Daemon levantou-se devagar. Sentia-se envelhecido, exausto. Mas se conseguisse mante-la a salvo até ao dia seguinte, Saetan poderia possuir armas mais persuasivas ao seu dispor. Envolvendo-se no escudo de visão, abriu a porta e saiu atrás de Jaenelle. A mulher, que aguardava impacientemente, agarrou o braço de Jaenelle com força, conduzindo-a de volta ao salão de baile.

Daemon passeou junto às paredes do salão, invisível e em silêncio. Fazer parar o coração de um homem era algo tão insignificante, penetrar e rasgar uma artéria. Haveria aqui algum homem que não fosse dispensável, incluindo ele próprio? Não, não quando o gelo lhe sussurrava nas veias, não quando a espada de dois gumes estava desembainhada. Deslizou por detrás do seu primo e ouviu Kartane dizer: — Aquela? É uma cabrinha pálida. A irmã é mais bonita.

Daemon sorriu. Ainda envolto no escudo de visão, estendeu a mão direita na direcção do ombro de Kartane. Por um momento, antes de a sua mão se cerrar num aperto malévolo, sentiu Kartane a encostar-se a si, desfrutando da carícia sensual e arrepiante das longas unhas. Daemon gostou de sentir o arrepio sensual transformar-se em calafrios de medo no momento em que as unhas de Daemon perfuraram o casaco e a camisa de Kartane.

— Primo — murmurou Daemon ao ouvido de Kartane. — Vinde comigo até ao terraço, primo.

— Afasta-te de mim — resmoneou Kartane, tentando livrar-se da mão de Daemon. — Estou a tratar de negócios.

Daemon continuou a sorrir. Que tolo o rapaz que tentava lançar-lhe poeira para os olhos quando sentia o cheiro do medo. — Primeiro tendes negócios a tratar comigo. — Girou lentamente, puxando Kartane.

— Bastardo — disse Kartane baixinho, caminhando em direcção ao terraço para não ser arrastado.

— Por nascimento e temperamento — concordou Daemon com uma indiferença afável.

Já no terraço, Daemon deixou cair o escudo de visão. Comparado ao frio inflamado que sentia dentro de si, o ar parecia brando. Enquanto aguardava que Kartane deixasse de olhar para o jardim e o encarasse, roçou distraidamente nos ramos de um pequeno arbusto plantado num vaso. Sorriu ao ver que foram, de imediato, cobertos por gelo. Continuou a tocar no arbusto até ficar completamente coberto. De seguida, encolhendo os ombros, tirou o estojo dourado do bolso, acendeu um cigarro e aguardou. Estava entre Kartane e a porta. O seu primo não se iria embora antes de ele o deixar.

A tremer violentamente, Kartane voltou-se.

— A cabrinha pálida? — trauteou Daemon enquanto o fumo do agarro lhe rodeava a cabeça.

— O que é que tem? — perguntou Kartane, nervoso.

— Mantende-vos afastado dela.

— Porquê? — perguntou Kartane sarcasticamente. — Quere-la?

— Sim.

Daemon observou Kartane a recuar aos tropeções e a apoiar-se ao gradeamento do terraço. Por fim, a verdade. Queria-a. Era já, de um modo que Kartane e a sua espécie nunca iriam compreender, o seu amante.

— Se quiseres experimentar, há outras mais bonitas — aliciou Kartane.

— O corpo é irrelevante — respondeu Daemon. — O meu desejo é mais profundo. — Deu um piparote no cigarro, vendo-o passar junto à face de Kartane antes de cair no jardim. — Mas primo, se alguma vez mencionardes o meu... deslize... ou a minha escolha...

A ameaça tácita ficou a pairar.

— Matar-me-ias? — Kartane riu-se, não acreditando. — Matar-me a mim7 O filho de Dorothea?

Daemon sorriu. — Matar o vosso corpo é o mínimo que vos infligiria. Lembrais-vos de Cornéiia? Quando chegou o momento, ficou grata pelo que fiz ao corpo. — Não demorou mais do que um momento para Daemon deslizar por baixo das barreiras interiores de Kartane e, com a delicadeza de um floco de neve, deixar cair na sua mente a memória do aspecto do quarto de Cornéiia na precisa altura em que Daemon o deixou. Aguardou pacientemente que Kartane deixasse de se sentir nauseado. — Agora...

Foi interrompido por um guincho de raiva e pelo som de vidros a estilhaçarem-se num dos quartos por cima do salão de baile.

Daemon balançou. Por que é que o chão - não era o chão - porque é que ele próprio estava a rodopiar desta forma, a rodopiar na direcção de algo que o fazia sentir calafrios?

Em espiral.

A última vez que tinha sentido algo assim foi quando...

Daemon correu através do salão de baile, pelo corredor fora e lançou-se escada acima. Hesitou ao ver Alexandra, Philip, Leiand e Robert junto a um grupo de pessoas do lado de fora de uma das portas, mas outro estrépito e um grito impeliram-no. Jogou-se a correr contra a porta e entrou de rompante na divisão.

A única luz no quarto provinha da porta aberta. As lâmpadas tinham sido estilhaçadas. Uma pequena cama de ferro, flagrante por não pertencer a uma sala de estar, estava retorcida ao ponto de ser praticamente irreconhecível. Debaixo dos seus pés podia sentir os vidros de jarras partidas.

Um grupo de homens, comprimidos uns contra os outros no centro da sala, olhava em estupefacção, todos pálidos como a morte, para algo que se encontrava no canto.

Daemon virou-se para esse canto do quarto.

Wilhelmina estava aninhada ao canto, a tremer e a choramingar. O seu vestido, parcialmente desapertado, tinha descaído, revelando um ombro roliço e jovem.

Jaenelle estava à frente da irmã, segurando na mão o gargalo de uma garrafa de vinho partida com um à-vontade que indicava uma longa convivência com uma faca. Os seus olhos azul-safira em chamas fixavam o grupo de homens.

Daemon moveu-se na direcção de Jaenelle, devagar, tendo cuidado para não se interpor na sua linha de visão. Parou à distância de um braço. Se investisse, poderia esventrá-lo. Não lhe ocorreu ter medo dela. A voz sombria que podia agora identificar, sussurrou-lhe das profundezas do seu próprio ser: Protocolo. Protocolo. Protocolo.

Jaenelle falou.

Daemon olhou de relance para os homens, para Philip e Alexandra e para os outros que estavam a infiltrar-se pela porta. Pareciam chocados face à destruição. Perguntou-se quantos deles teriam ficado chocados com o que, supostamente, se teria ali passado. Philip e Alexandra olhavam espantados para Jaenelle e percebeu que o que ouviam eram disparates ininteligíveis. Nem mesmo ele sabia o suficiente do Idioma Antigo para poder traduzir todas as belas e mortíferas palavras.

— Dr. Carvay? — disse Philip, mantendo o olhar fixo em Jaenelle.

Dr. Carvay, o director de Briarwood, saiu do grupo de homens, olhou de soslaio para Jaenelle e abanou a cabeça. — Temo que a criança se tenha descontrolado devido a toda a excitação — disse, solícito.

“Senhora" Daemon enviou os pensamentos por um fio Negro. Protocolo. "Senhora, não vos compreendem.”

Jaenelle parou de falar. Enquanto Philip e Alexandra conferenciavam com o Dr. Carvay, debateu-se para encontrar o idioma comum.

O Dr. Carvay caminhou na direcção de Jaenelle. — Jaenelle — disse, com uma voz demasiado tranquila que fez com que Daemon se virasse para o encarar de frente, — vinde com o Dr. Carvay, querida. Estais transtornada. Precisais dos vossos medicamentos.

— Não vos aproximeis dela — rugiu Daemon. Logo a seguir, sentiu o aperto doloroso entre as pernas. Olhou fixamente para Alexandra, que parecia assustada, mas decidida. Estava a usar o Anel contra ele. Agora, quando Jaenelle precisava de si, Alexandra ameaçava deixá-lo de joelhos. Cerrou os dentes face à dor e aguardou.

— Vinde, Jaenelle — disse novamente o Dr. Carvay.

— Não podem ter a minha irmã — disse Jaenelle, por fim, com a voz enrouquecida pela raiva. — Jamais.

Todos os homens que ali se encontravam estremeceram ao som da sua voz.

— Não queremos a vossa irmã. Queremos que fiqueis melh...

— Mandar-vos-ei para as entranhas do Inferno — proferiu Jaenelle, a voz a subir de tom com a raiva. — Dar-vos-ei de comer às Harpias que ajudaram a criar. Rapar-vos-ei se alguma vez tocarem na minha irmã. Raparvos-ei a todos!

— JAENELLE! — Alexandra avançou, com os olhos a relampejarem. — Desgraças a família com este comportamento. Larga isso. — Apontou para a garrafa partida.

Daemon observou, desolado, Jaenelle a baixar o braço e a deixar cair a garrafa, com a raiva e a confusão a digladiarem-se nos seus olhos.

Alexandra agarrou Jaenelle pelo ombro, conduzindo-a para fora do quarto. Quando Daemon se moveu para a seguir, Alexandra virou-se repentinamente e apontou-lhe um dedo. — Tu — disse rancorosamente, — fica com o Príncipe Alexander e encarreguem-se de Leiand e Wilhelmina.

Cabra, pensou Daemon. Estava a agir desta forma por ciúmes. Começou a argumentar com ela para que levasse ambas as raparigas para casa, mas uma outra vaga de dor através do Anel fê-lo reter a respiração. Argumentar só iria piorar as coisas.

Daemon ficou a ver Jaenelle a deixar o quarto, acompanhada por Alexandra, pelo Dr. Carvay e por Robert Benedict. Parecia tão frágil, tão vulnerável. Voltaria a falar-lhe assim que Wilhelmina estivesse em casa, levá-la-ia à força para o Altar de Cassandra se fosse necessário. Saetan deveria ter influência suficiente sobre ela para a manter afastada de Chaillot.

Saetan. Uma vez afastada de Beldon Mor, teria alguém para o ajudar a protegê-la.

Quando a dor provocada pelo Anel amainou o suficiente para conseguir andar, Philip já tinha erguido Wilhelmina e estava a ajeitar-lhe ineficazmente o vestido. Resmoneando baixinho, Daemon virou-a, colocou-lhe o vestido sobre os ombros e abotoou-o nas costas com destreza. Os seus olhos estavam vítreos, parecendo sedados e tremia, mais pelo medo do que pelo frio.

— Wilhelmina — disse Philip, segurando-lhe o braço. Wilhelmina gritou, agitando os braços e regressando aos tropeções para o canto.

Empurrando Philip para o lado, Daemon ficou à frente de Wilhelmina e estalou os dedos duas vezes. Quando os olhos de Wilhelmina se fixaram na sua mão, levantou-a lentamente até se encontrar ao nível do seu rosto. Depois, baixou a mão e estendeu-a para ela. — Vinde, Senhora Benedict — disse, com uma voz formal e respeitosa. — O Príncipe Alexander e eu acompanhar-vos-emos a casa. — Manteve a mão firme, dando-lhe tempo para decidir se a aceitaria ou não. Quando, por fim, se decidiu, atirou-se a ele, colocando o outro braço à volta da cintura de Daemon.

Finalmente, e apesar do olhar irritado de Philip, conseguiu desenvencilhar-se do abraço de Wilhelmina, levando-a ao colo para baixo, para a carruagem que os aguardava e para casa onde, Daemon esperava ardentemente, estaria alguém para tomar conta dela.

 

                     CAPÍTULO 14

Andando para trás e para a frente no seu quarto, Alexandra rodava, enervada, o anel de controlo secundário que usava na mão direita. Tinha feito o que tinha de ser feito. A rapariga estava manifestamente descontrolada. O Dr. Carvay disse que Jaenelle tinha provavelmente estado sob pressão excessiva por algum tempo, mas este incidente - ameaçar membros do conselho de Chaillot com uma garrafa partida e a falar de uma forma incompreensível!

Alexandra sabia de quem era a culpa. Não tinha querido acreditar nas insinuações de Robert, não tinha querido acreditar que o interesse de Sadi nas raparigas nada tinha de inocente, não tinha querido acreditar que ele pudesse de facto... com Jaenelle! Tendo em conta todas as perversidades de que Sadi era capaz, seria de admirar que Jaenelle tivesse confundido o propósito dos homens que tinham levado Wilhelmina para cima para que pudesse descansar um pouco, depois de abusar da sua primeira experiência com vinho espumante? Mas ameaçar o conselho, colocar todos em risco estando presente o Senhor Kartane, que, sem dúvida, enviaria o seu relato velozmente para Hayll! É evidente que a Sacerdotisa Suprema de Hayll ficaria satisfeitíssima por enviar auxílio adicional, até que Chaillot se tornasse um mero fantoche, com Dorothea a puxar os cordelinhos.

Sadi. Teria de mandá-lo de volta para...

Da porta do quarto de Alexandra ouviu-se o estalido da fechadura a trancar-se de novo. Rodopiou, com a mão direita levantada, porém, antes de conseguir usar o anel de controlo, já estava estatelada no chão, com uma das faces a arder devido ao estalo de uma mão fantasma.

Esforçando-se para se sentar, Alexandra olhou espantada para Daemon, que se encontrava descontraidamente encostado à porta.

— Minha cara — disse, com uma voz suave, repleta de raiva assassina, que a aterrorizou mais do que o berro mais violento, — se voltardes a usar o Anel contra num, decorarei as paredes com os vossos miolos.

— Se usar o Anel...

Daemon deu uma gargalhada. Era um som arrepiante - cavernoso, malévolo, gélido. — Eu sobrevivo à dor extrema. E vós? — Sorriu de forma brutal.

- Vamos testar? A vossa resistência contra a minha? A vossa capacidade de suportar o que farei ao vosso corpo - para não falar da mente - ao mesmo tempo que tentais impedir-me com esse patético pedaço de metal? — Caminhou na direcção de Alexandra. — A confiança das mulheres no Anel é tão imerecida. Não aprendestes isso com as histórias que correm sobre mim?

— O que queres? — Alexandra tentou fugir para trás, mas Daemon pisou-lhe o roupão, pregando-a ao chão.

— O que quis desde que aqui cheguei. O que sempre quis. E ides trazê-la de volta para mim. Hoje.

— Não sei a que...

— Voltastes a colocá-la naquele... lugar, não foi, Alexandra? Voltastes a colocá-la naquele pesadelo.

— Ela está doente! — protestou Alexandra. — Ela está...

— Ela não está doente — rosnou Daemon. — Nunca esteve doente. E vós sabeis disso. Agora vamos tirá-la de lá. — Sorriu. — Se não a fordes buscar, irei eu. Mas se tiver de o fazer, as ruas de Beldon Mor ficarão inundadas de sangue e vós, minha cara, sereis um dos cadáveres arrastados para os esgotos. Retirai-a de Briarwood, Alexandra. Depois disso, não tereis de vos incomodar mais com ela. Eu encarregar-me-ei dela.

— Encarregar-te-ás dela? — Alexandra disse, encolerizada. — Queres dizer, distorcê-la, usá-la para as tuas necessidades perversas. É por essa razão que passeias com ela pelas zonas mais distantes do jardim? Para a acariciares... — Alexandra sufocou, mas as palavras continuaram a sair. — Não admira que não consigas agir como um homem junto de uma mulher a sério. Tens de forçar crianças...

— Antes de começardes a acusar-me, tende em atenção a vossa própria casa, Senhora. — Daemon puxou-a para cima, segurando-lhe os pulsos atrás das costas com uma das mãos enquanto a com a outra lhe agarrava o cabelo, forçando a cabeça a erguer-se.

— Tirai-a de lá, Alexandra — disse, com demasiada suavidade. — Tirai-a de lá antes do sol nascer.

— Não posso! — gritou Alexandra. — O Dr. Carvay é o director de Briarwood. Terá de assinar os papéis da alta. Assim como o Robert.

— Fostes vós que lá a pôs.

— Com o Robert! Além disso, estava tão enlouquecida que teve de ser fortemente sedada, não devendo ser movida.

— Quanto tempo? — disse Daemon bruscamente, deixando-a cair ao chão.

— O quê? — Sentia-se débil e indefesa estando Daemon em pé, altaneiro.

— Quanto tempo levará a trazê-la de volta?

Tempo. Precisava de algum tempo. — Amanhã à tarde.

Passados longos momentos de silêncio, Alexandra atreveu-se a olhar para cima, mas, de imediato, desviou o olhar. Retraiu-se quando Daemon se acocorou a seu lado.

— Ouvi-me, Alexandra, ouvi-me com atenção. Se Jaenelle não estiver aqui, incólume, até amanhã à tarde, vós, minha cara, vivereis o tempo suficiente para vos arrependerdes de me trair.

Alexandra deixou-se cair no chão, cobrindo a cabeça com as mãos. Não conseguia parar de ver aquele olhar e ficaria louca se não parasse de ver aquele olhar. Mesmo depois de ouvi-lo a atravessar o quarto, depois de ouvir a porta a abrir-se e fechar-se silenciosamente, estava ainda demasiado assustada para se mover.

Estava tão escuro.

Alexandra acordou, abrindo os olhos devagar. Estava deitada de costas numa cama húmida, fria e rugosa.

Estava alguma coisa a fazer-lhe comichão na testa.

Ao levantar o braço para afastar o cabelo do rosto, bateu com a mão nalgum objecto sólido, alguns centímetros acima da cabeça.

Caiu terra, que se alojou no pescoço e nos ombros.

Com a outra mão tocou a cama - e encontrou terra.

Tentou esticar os braços, magoando-se - e encontrou terra.

Os dedos dos pés, quando esticou as pernas um pouco, tocaram em terra.

Não, pensou, esforçando-se para não entrar em pânico, é apenas um sonho. Um pesadelo. Não era possível que estivesse... enterrada. Não era possível.

Fechando os olhos para evitar que encontrasse terra, começou a explorar às cegas.

Era um rectângulo impecavelmente recortado. Uma sepultura bem feita. Se fosse uma sepultura, a terra por cima dela teria de estar solta. Quem quer que tivesse feito isto teria de ter cavado para a colocar ali.

Meio a soluçar, meio a arquejar, Alexandra enfiou os dedos na terra sobre o seu rosto. Ao encalhar com raízes de árvores, parou, estupefacta.

Não estava certo. Alguém teria de ter cavado à volta das raízes.

Desviou-se um pouco, tentou novamente enfiar as mãos na terra. Era sólida e não se movia.

Pensa, pensa. Uma feiticeira podia passar através de objectos sólidos.

Era perigoso, sem dúvida, mas conseguiria fazê-lo se não entrasse em pânico.

Alexandra esforçou-se para respirar devagar e regularmente, concentrando-se. Levantando uma mão, passou-a lentamente pela terra, subindo, subindo, devagar, devagar. Levantou a outra mão.

As suas mãos estavam a passar pela terra, para cima, em direcção à liberdade.

Alexandra deu uma gargalhada de alívio.

Foi então que as suas mãos tocaram nalguma coisa ainda mais sólida do que a terra.

Com os dedos, tocou, empurrou. Não sentiu nada, porém, existia algo ali.

Concentrando a energia na passagem, empurrou contra esse nada ao mesmo tempo que a Jóia Opala brilhava devido ao esforço, valendo-se das suas reservas, reunindo as forças. Enviou a força da Jóia para as mãos e empurrou.

Uma energia obscura, crepitante, avassaladora serpenteou-lhe pêlos dedos até aos braços. Alexandra tombou, virada ao contrário, batendo com a cabeça numa parede de terra.

Já não tinha forças. A Jóia pendurada ao seu pescoço estava vazia e escura. Se tivesse forçado aquela energia por mais um momento, a Jóia ter-se-ia partido e a sua mente ter-se-ia provavelmente estilhaçado com ela.

— Não — gemeu Alexandra. Bateu com as mãos no chão do seu caixão de terra. — Não. — Sentiu tonturas. O ar. O ar tinha acabado. Juntando as pernas debaixo de si o melhor que conseguiu, Alexandra saltou para cima, tentando libertar-se da terra.

— NÃO!

O queixo de Alexandra bateu no fundo da cama.

Ficou deitada de barriga para baixo, a arquejar e a tremer.

Um sonho. Tinha sido, afinal de contas, um sonho.

Uma gargalhada suave e gélida inundou-lhe a mente. “Não foi um sonho, minha cara." A voz de Daemon percorreu-lhe a mente, como um trovão senciente. “Uma amostra. Sou um coveiro muito bom, muito discreto. Tenho séculos de prática. Lembrai-vos, Alexandra. Se Jaenelle não regressar, incólume, até amanhã à tarde, ireis alimentar os vermes.”

E partiu.

Alexandra rolou, ficando deitada de costas. Era um truque, um sonho. ~Nao era possível.

Ergueu uma mão trémula, fechando os olhos perante a débil luz da vela.

Um sonho. Um sonho mau.

Alexandra apoiou-se num cotovelo - e olhou, atónita, para as mãos.

As unhas estavam partidas, as mãos cobertas de arranhões. A camisa de noite estava rasgada e suja de terra. Um calor repentino e húmido escorreu-lhe pelas pernas abaixo. Ficou a olhar durante um minuto para a poça que se espalhava, até perceber que se tinha urinado.

Passado quase uma hora, arrastou-se da cama, lavou-se e vestiu uma camisa de noite limpa. Aconchegou-se numa cadeira e enrolou uma colcha à sua volta, olhando fixamente pela janela e aguardando, desesperada, que a madrugada chegasse.

 

Kartane inseriu uma chave numa pequena porta encaixada e escondida por uma fila de arbustos. Os pais que vinham a Briarwood durante as horas da visita não tinham conhecimento daquela entrada - a não ser que o pai fosse também um membro seleccionado. Não tinham conhecimento destes corredores mal iluminados, com alcatifas grossas para abafar os sons. Não tinham conhecimento da sala de jogos ou da sala de estar ou dos pequenos cubículos à prova de som que continham unicamente uma cadeira, uma cama e outros elementos de diversão. Não tinham conhecimento das lágrimas e dos gritos e da dor. Não tinham conhecimento dos “medicamentos” especiais.

Não tinham conhecimento de muitíssimas coisas.

Kartane passeou pêlos corredores até ao “parque, sedento por algum tipo de diversão. Estava furioso com Sadi e com aquela cabrinha por terem estragado o jogo desta noite. Já era suficientemente difícil trazer raparigas. Oh, podiam comprar Sangue de classe baixa - a bebida certa durante o tipo de jogo adequado e a bonita rapariguinha tornava-se um marcador na mesa de jogos. Mas eram as aristocratas, as raparigas delicadamente educadas e com frágeis sensibilidades que eram mais divertidas - e as mais difíceis de obter. Normalmente, era necessário aliciar o pai para se conseguir chegar à rapariga... excepto durante o Winsol, quando era possível deitar, à socapa, um pouco de safframate no vinho espumante. E assim, a rapariga poderia ser quebrada e arranjada antes de ser trazida de volta aos ingénuos pais. No dia a seguir, quando a histeria se iniciasse, o Dr. Carvay só tinha de ligar acidentalmente, explicando aos pais perturbados a histeria de pré-adolescência que estava a infligir várias raparigas da aristocracia dos Sangue. A rapariga seria afectuosamente levada para uma estadia em Briarwood e, passados um mês ou dois - ou um ano ou dois - seria devolvida ao seio da família, que, eventualmente, lhe arranjaria um casamento e a rapariga passaria o resto da vida com aquele olhar ligeiramente esgazeado sem nunca entender a desilusão do marido, nunca mais se recordando como, em tempos, tinha sido uma bela companheira de jogos.

É claro que também eram internadas algumas raparigas verdadeiramente perturbadas. Aquela pega da Rose tinha sido uma delas. E a cabra pálida de Sadi.

Kartane sentiu um calafrio ao entrar no “parque”, o quarto vigiado no qual as raparigas seleccionadas para aquela noite aguardavam os tios, vestidas com camisas de noite rendadas. As raparigas pareciam não se aperceber do frio mas o vigilante estava com os ombros encolhidos e estava continuamente a esfregar as mãos para as aquecer. Por vezes era assim. Nem sempre, só às vezes.

O exame minucioso às raparigas foi interrompido quando Kartane encontrou um olhar azul-safira, esgazeado e fixo.

O vigilante seguiu o olhar de Kartane, estremeceu e desviou o olhar. — Encheram essa depois de a trazerem, mas passou-se algo esquisito. Deveria estar a ofegar e a roçar-se em tudo o que se aproximasse dela, mas só ficou muito quietinha. — Encolheu os ombros.

Não era nada de especial, pensou Kartane. O que haveria nela que interessava a Sadi? O que teria de tão especial que o levaria a arriscar a vingança de Dorothea?

Kartane ergueu o queixo na direcção de Jaenelle. — Quero-a no meu quarto dentro de dez minutos.

O vigilante retraiu-se mas acenou afirmativamente.

Enquanto aguardava, Kartane fortaleceu-se com conhaque. Estava curioso, era tudo. Se Daemon lhe tivesse ensinado as brincadeiras da cama, ela deveria conhecer alguns truques divertidos. Não que fosse realmente divertir-se com ela, depois de Sadi o ter ameaçado. As pessoas tinham o dom de desaparecer misteriosamente depois de estarem junto de Sadi. E o quarto de Cornelia...

O conhaque deu voltas no estômago de Kartane. Não, estava apenas curioso. Queria somente uns minutos a sós com ela para tentar perceber o interesse de Daemon e nada faria que levasse Sadi a perder a calma.

O ferrolho dos cubículos estava colocado bem alto na parede, quer no corredor quer no próprio quarto. Isto evitava que as rapariguinhas ansiosas escapassem nas alturas mais inconvenientes. Kartane entrou no quarto. No entanto, assim que entrou, não conseguia parar de tremer.

Jaenelle estava sentada na cama, olhando fixamente para a parede, como se fosse uma boneca que alguém tivesse tentado posicionar de uma maneira realista. Kartane sentou-se na cadeira. Passados alguns momentos em que a estudou, disse rispidamente:

— Olha para mim.

A cabeça de Jaenelle rodou devagar até que os seus olhos se fixaram no rosto de Kartane.

Kartane passou a língua pêlos lábios. — Pelo que sei, o Sadi é teu amigo - Não obteve resposta.

— Ensinou-te a seres uma linda menina?

Não obteve resposta.

Kartane franziu o sobrolho. Ter-lhe-iam dado algo mais do que safframatéÏ Já tinha tido as raparigas mais tímidas e mais perturbadas a rastejarem por ele acima, choramingando e suplicando, fazendo tudo o que ele quisesse quando se encontravam sob o efeito daquele afrodisíaco. Não deveria ser possível estar sentada na cama daquela forma. Não deveria conseguir estar quieta.

O olhar carregado de Kartane diluiu-se num sorriso. Tinha decidido não lhe tocar fisicamente, mas isso não significava que não lhe pudesse tocar de todo. Usava uma Jóia Vermelha. Ela não usava nada.

Enviou uma ligação exploratória à mente de Jaenelle, pretendendo forçar a abertura, no mínimo, da primeira barreira interior e descobrir o que Sadi achava tão intrigante. A primeira barreira abriu-se imediatamente antes de lhe tocar e encontrou...

Nada.

Nada a não ser uma bruma negra repleta de relâmpagos. Kartane tinha a sensação de estar à beira de um abismo profundo, sem saber se seria um passo para a frente ou um passo para trás que o faria mergulhar no abismo. Manteve-se ali, irresoluto, enquanto a bruma serpenteava à sua volta, deslizando pela ligação psíquica até à sua mente.

A bruma não estava vazia.

Bem abaixo dele, pressentiu algo obscuro, algo terrível e selvagem que se virava lentamente na sua direcção, atraído pela sua presença. Estava preso no covil de uma fera, cego e sem saber se o ataque viria de frente ou de trás. O que quer que fosse, estava a sair da bruma, movendo-se em espiral. Se pudesse vê-lo,...

Kartane quebrou a ligação. Tinha as mãos estendidas à sua frente, tentando manter à distância algo invisível. A camisa estava ensopada em suor. Respirando irregularmente, forçou-se a baixar as mãos.

Jaenelle sorriu.

Kartane saltou da cadeira e encostou-se à parede, demasiado assustado para se lembrar como se destrancava a porta.

— Es um de nós — disse Jaenelle com uma voz cavernosa e satisfeita. — É por isso que nos odeias. Es um de nós.

— Não sou! — Não poderia abrir a porta sem se virar de costas, mas não se atrevia a fazê-lo.

— Fazes-nos o que te fizeram a ti. Ela deixa-te ser a sua ferramenta. Ainda agora, embora a odeies tanto como a temes, serves Dorothea.

— NÃO!

— O sangue dela é o único que poderá saldar essa dívida. Mas a tua dívida é maior. São tantas aquelas a quem deves. No final, liquidarás a dívida a todas.

— O que és tu? — gritou Kartane.

Jaenelle olhou fixamente para Kartane durante um longo momento. — Sou o que sou — disse calmamente, com uma voz que cantava as Trevas.

A porta trancada abriu-se suavemente.

Kartane correu para o corredor.

A porta voltou a fechar-se.

Kartane encostou-se à parede, a tremer. Cabrinha malvada. Putinha de Sadi. O que quer que fosse, se se juntasse ao Sádico...

Kartane ajeitou a roupa e sorriu. Não se conspurcaria a ensinar aquela cabrinha o seu devido lugar. Mas Greer. Greer tinha achado a sua visita a Briarwood bastante satisfatória e tinha perguntado a Kartane se tinha reparado nalgumas raparigas estranhas. Esta deveria ser suficientemente estranha para o seu gosto.

 

Surreal ajoelhou-se ao lado de uma árvore na orla traseira do relvado coberto de neve de Briarwood. Tinha visto Kartane a desaparecer por detrás de uns arbustos, não voltando a aparecer, por isso tinha a certeza de que ali existia uma entrada secreta.

Surreal franziu o sobrolho. A ampla vastidão de relvado não oferecia qualquer protecção e se alguém circundasse o edifício em vez de sair daquela porta, poderia ser descoberta demasiado cedo. Â direita do relvado estava o que sobrou de uma grande horta de vegetais, mas também aí não havia protecção. Poderia usar um escudo de visão mas não era lá muito hábil em criar um e mante-lo ao mesmo tempo que se movia. Durante um momento, o vento nocturno soprou em rajadas e Surreal sentiu um arrepio de frio, apertando ainda mais o casaco junto ao corpo.

Sentiu alguma coisa a roçar suavemente no ombro.

Virando-se, sondou o jardim de arbustos por detrás de si. Não encontrou nada e olhou de relance para a árvore antes de voltar a concentrar a atenção na porta escondida.

A árvore tinha um ramo perfeito. Com todas estas meninas aqui trancadas, os tios poderiam, pelo menos, pendurar ali um baloiço.

O vento amainou. No ar calmo da noite, Surreal ouviu o estalido de uma porta a fechar e ficou tensa. O luar era suficiente para vislumbrar Kartane a encostar-se ao edifício por um momento antes de se afastar apressadamente.

Mais do que qualquer outra coisa, queria persegui-lo, dar com ele num canto sombrio e ficar a ver o sangue a jorrar-lhe da garganta. Sadi estava a ser pouco razoável. Ele...

O ar crepitou. O relvado e o edifício pareciam envoltos numa suave névoa. Surreal sentiu um estranho rodopio.

Sentiu algo a roçar no ombro.

Surreal olhou para cima, arregalou os olhos e pôs a mão sobre a boca.

A rapariga que balançava na corda atada ao ramo perfeito da árvore retribuía o olhar com as órbitas vazias. Tanto ela como a corda eram transparentes, fantasmagóricas, contudo, Surreal não duvidou da sua presença, não pôs em causa as manchas de sangue escurecido que escorriam pelas bochechas da rapariga, não duvidou das manchas escuras no vestido.

— Olá, Surreal — disse uma voz sussurrante da meia-noite. — Essa é a Marjane. Disse uma vez a um tio que não suportava vê-lo, por isso besuntaram-lhe os olhos com mel e penduraram-na aí. Não era para a matar, mas ela debateu-se tanto quando os corvos vieram e lhe bicaram os olhos, que o laço deslizou e a corda matou-a.

— Não... não a podeis tirar dali? — murmurou Surreal, não se sentindo preparada para se virar e enfrentar o que quer que estivesse atrás de si.

— Oh, o corpo já desapareceu há muitos e muitos anos. Marjane não passa de um fantasma, agora. Mesmo assim, quando estou aqui, ela ainda apresenta alguma força. As raparigas sentem-se seguras junto a esta árvore. Os tios não gostam de ser pontapeados.

Surreal virou-se e abafou um grito.

— Chiu — disse Jaenelle com um sorrido docemente selvagem. Estava tão transparente como Marjane e a camisa de noite rendada que vestia não se movia quando o vento soprava. Só os olhos azul-safira pareciam ter vida.

Surreal desviou o olhar. Sentia-se atraída por aqueles olhos e soube instintivamente que o que quer que fosse atraído para aqueles olhos nunca regressaria.

— Não te cabe a ti saldar a dívida, Surreal — proferiu Jaenelle com o seu sussurro da meia-noite. — Não é a ti que deve o seu sangue.

— Mas aquelas a quem ele deve não podem exigir o pagamento! — ciciou Surreal, mantendo a voz baixa.

Jaenelle riu-se. Era como ouvir o vento de Inverno a rir-se. — Achas que não? Há morte e há morte, Surreal.

— Está em dívida para comigo por Titian — insistiu Surreal.

— Está em dívida para com Titian por Titian. Quando chegar a altura, será a ela que irá pagar a dívida.

— Matou-a.

— Não, quebrou-a, fecundou-a. Um homem chamado Greer, o cão de caça de Dorothea, é que a matou.

Surreal limpou as lágrimas que lhe caíam pelas faces. — Estais morta, não estais? — disse penosamente.

— Não. O meu corpo ainda está ali. — Jaenelle indicou Briarwood e franziu a testa. — Deram-me um daqueles “medicamentos” especiais, o que supostamente faz com que as raparigas se portem bem, mas algo correu mal. Ainda estou ligada ao meu corpo. Não consigo quebrar a ligação e abandoná-lo, mas este lugar brumoso é muito agradável. Consegues ver a névoa, Surreal?

Surreal abanou a cabeça.

— Quando estou na névoa, consigo vê-los a todos. — Jaenelle sorriu e estendeu uma mão transparente. — Anda, Surreal. Deixa-me mostrar-te Briarwood.

Surreal levantou-se, sacudindo a neve dos joelhos. Jaenelle riu-se suavemente. Era o som mais inquietante e terrível que alguma vez ouvira.

— Briarwood é o veneno embelezado — disse Jaenelle baixinho. — Não existe cura para Briarwood. Cuidado com a aranha dourada que tece uma teia entrelaçada. — A mão de Jaenelle tocou no braço de Surreal, puxando-a para o jardim. — A Rose disse que eu devia construir uma armadilha, algo que seja despoletado de repente, se o meu sangue for derramado. Foi o que fiz. Se accionarem a armadilha... a morte é o que desejarão, mas esse desejo demorará a ser realizado.

— Estareis morta na mesma — disse Surreal com a voz rouca. Quando reparou nas sombras do jardim a ganharem forma, tentou parar, tentou virar-se e correr, mas as pernas não lhe obedeceram.

Jaenelle encolheu os ombros. — Já caminhei com as cildru dyathe. O Inferno não me assusta.

— Ê demasiado velha para ser uma de nós — disse uma voz que Surreal sabia que tinha vivido, em tempos, numa zona pobre de Beldon Mor.

Surreal virou-se. Há alguns minutos atrás, se visse um rapariga a caminhar na sua direcção com um vestido ensanguentado e a garganta cortada, teria sido um choque. Agora, era algo que a sua mente entorpecida catalogava simplesmente como fazendo parte de Briarwood.

— Esta é a Rose — disse Jaenelle a Surreal. — É demónia-morta.

— Não é assim tão mau — disse Rose, encolhendo os ombros. — À excepção de que agora só posso causar sarilhos depois do sol se pôr. — Riu-se. Era um som sinistro. — E quando faço cócegas a um chupa-chupa, eles sentem-se tão esquisitos.

Jaenelle deu um puxão na manga de Surreal. O seu sorriso era melosamente perverso. — Anda. Vou apresentar-te a alguns dos meus amigos.

Surreal seguiu Jaenelle até à horta, grata por Rose ter desaparecido.

As risadinhas de Jaenelle encerravam o eco da loucura. — Este é o canteiro das cenouras. É aqui que enterram as ruivas.

Duas raparigas ruivas estavam sentadas lado a lado, com os vestidos ensanguentados.

— Não têm mãos — disse Surreal, baixinho. Sentiu-se febril e ligeiramente zonza.

— A Myrol não se estava a comportar com um tio e ele magoou-a. A Rebecca bateu-lhe para que parasse de magoar Myrol e, quando ele começou a bater na Rebbeca, a Myrol começou a bater-lhe também. Jaenelle ficou em silêncio por um momento. — Ninguém tentou sequer parar a hemorragia. Tinham sido compradas a uma família pobre, percebes. Os pais não esperavam que regressassem, por isso não fazia qualquer diferença.

— Jaenelle gesticulou, abrangendo toda a horta, repleta de silhuetas indistintas. — Ninguém quis saber o que lhes aconteceu. “Fugiram” ou “desapareceram!

Caminharam até ao final da horta.

Surreal franziu a testa. — Porque é que algumas se distinguem tão nitidamente e outras parecem indistintas?

— Depende do tempo que aqui passaram, da força que tinham quando morreram. A Rose foi a única com força suficiente para se tornar cildru dyathe e que quis ficar. As outras cildru dyathe seguiram para o Reino das Trevas. O Char toma conta delas. Estas raparigas foram sempre fantasmas, demasiado fortes para passarem para a noite eterna mas não o suficiente para deixarem o sítio onde jazem os seus corpos. — Jaenelle acenou com a cabeça a uma rapariga ao fundo da horta. Aos olhos de Surreal, parecia mais vívida, mais "real" do que Jaenelle. — Esta é a Dannie — a voz de Jaenelle embargou-se de dor. — Uma noite, serviram a sua perna ao jantar.

Surreal correu para os arbustos que se encontravam mais próximos e vomitou. Quando se virou, a horta estava vazia. Uma leve brisa soprava sobre a neve, apagando as suas pegadas. Quando parou, restava apenas o edifício, o relvado vazio e a horta com os seus segredos.

 

Daemon Sadi observou o sol a nascer.

Durante toda a longa, longa noite, tinha estado a escutar os fios Negros de uma teia psíquica que tinha criado à volta de Beldon Mor para detectar qualquer agitação, qualquer indicação de que Jaenelle pudesse correr perigo. Sem usar as Jóias Negras para o ajudar, era com grande esforço que mantinha a teia em funcionamento, mas, qual aranha determinada, manteve-se no centro, ciente da mínima vibração ao longo de cada filamento.

Deixá-la em Briarwood tinha sido uma jogada hesitante. Não confiava em Alexandra, mas se Jaenelle tivesse sido drogada, em especial com uma substância como o safframate, era mais seguro que ela despertasse no mesmo ambiente. Tinha presenciado muitas jovens feiticeiras a escaparem-se para o Reino Distorcido quando as suas mentes não conseguiram entender a mudança de ambiente, não compreendendo que se encontravam a salvo. A ideia de Jaenelle perdida na loucura era insuportável, por isso só podia esperar que o sono sedado a tornasse uma presa desinteressante. Se assim não fosse...

Não havia razão para se manter entre os vivos sem Jaenelle, porém, se fosse de facto para o Reino das Trevas, prometeu a si próprio que não seria o único novo súbdito que se iria ajoelhar perante o Senhor Supremo.

Daemon despiu-se, tomou um duche, vestiu o equipamento de equitação e deslizou em silêncio para a cozinha. Pôs uma cafeteira ao lume para o café e preparou o pequeno-almoço. Quando Jaenelle regressasse teriam de sair depressa, não permitindo que Philip ou Alexandra tivessem oportunidade para apresentar obstáculos. Não haveria tempo para despedidas. Raras vezes tinha tempo para despedidas. Além disso, não tinham existido muitas pessoas na sua vida que lamentassem a sua partida. Mas aqui existia alguém que merecia saber que a Senhora partia para sempre.

Quando já tinha lavado a loiça do pequeno-almoço e já estava a beber a segunda chávena de café, a Cozinheira entrou aos tropeções na cozinha, afundando-se numa das cadeiras. Ao colocar-lhe uma chávena de café à frente, olhou tristemente para ele.

— Está novamente naquele hospital, não está? — A Cozinheira enxugou as lágrimas dos olhos.

Daemon sentou-se a seu lado. — Sim — disse calmamente. Pegou-lhe nas mãos, massajando-as delicadamente. — Mas não por muito tempo. Sairá hoje à tarde.

— Achais que sim? — Sorriu-lhe, com um sorriso trémulo e agradecido. — Nesse caso, vou...

— Não. — Daemon apertou-lhe as mãos. — Sairá de Briarwood, mas não regressará.

A Cozinheira retirou as mãos. Os lábios estremeceram. — Ides levá-la daqui, não ides?

Daemon tentou ser amável. — Há um sítio onde poderá viver, onde tomarão conta dela e onde estará segura.

— Aqui tomamos conta dela — a Cozinheira protestou rispidamente. Custava ver os seus olhos a encherem-se de lágrimas. — Mas não está segura. Se continuar assim, cederá à pressão ou morrerá. — Limpou-lhe as lágrimas das faces. — Prometo-te que estará num sítio seguro e ninguém a voltará a fechar a sete chaves.

A Cozinheira enxugou os olhos com o avental. — São boas pessoas, esta família que encontrastes para ela? Não irão... criticar... os seus estranhos modos?

— Não acham que os seus modos sejam estranhos. — Daemon bebeu um gole de café. Também esta era uma jogada. — Contudo, agradecia que não mencionasses esta conversa até partirmos. Existem aqui pessoas que lhe querem fazer mal, que fariam uso de todos os meios possíveis para nos deter se percebessem que a vou levar para longe do seu alcance.

A Cozinheira ponderou, acenou afirmativamente com a cabeça, fungou e levantou-se bruscamente. — Sendo assim, precisais de tomar o pequeno-almoço.

— Já tomei, obrigado. — Daemon colocou a chávena no balcão. Colocou as mãos nos ombros da Cozinheira, voltou-a para si e beijou-a levemente na boca. — És uma querida — disse, com a voz rouca. E saiu pela porta das traseiras, em direcção à cavalariça.

Apesar da hora matutina, a cavalariça estava num rebuliço. Ao entrar, os moços da cavalariça lançaram-lhe um olhar carrancudo. Guinness estava no centro do pátio, com uma garrafa enfiada debaixo do braço, rosnando ordens e praguejando baixinho. Quando viu Daemon, as suas carregadas sobrancelhas formaram uma linha feroz por cima dos olhos turvos.

— E o que é que o arrogante e presunçoso senhor quer a esta hora da manhã? — perguntou Guinness rudemente. Levou a garrafa aos lábios e deu um longo trago.

Sabiam, pensou Daemon ao tirar a garrafa de Guinness para beber. O que quer que Jaenelle trazia a este lugar já se estava a desvanecer e eles tinham consciência. Devolvendo a garrafa a Guinness, disse calmamente:

— Prepara o Dançarino Negro.

— Levastes algum pontapé na cabeça? — gritou Guinness, fulminando Daemon com o olhar. — Esse deitou abaixo metade deste estábulo aos coices, a noite passada, e tentou reduzir o Andrew a polpa. Não conseguireis fazer uma refrescante cavalgada a galope, se é isso que estais a pensar.

Daemon olhou por cima do ombro. Andrew estava encostado à porta da cocheira do Dançarino Negro, a tratar de uma perna. — Eu próprio lhe colocarei a sela. — Daemon passou pêlos moços de cavalariça, ignorando a resmunguice em voz baixa de Guinness.

Quando Daemon puxou o ferrolho para abrir a parte de cima da porta, Andrew estendeu uma mão trémula para o deter. — Quer matar qualquer coisa. — sussurrou Andrew.

Daemon olhou para aqueles olhos encovados no rosto pálido e assustado. — Também eu. — Abriu a porta.

O garanhão investiu contra a porta.

— Calma, Irmão, calma — disse Daemon com suavidade. — Temos de falar, tu e eu. — Daemon abriu a parte inferior da porta. O cavalo estremeceu. Daemon passou a mão pelo pescoço do Dançarino, lamentando ter lavado o odor de Jaenelle da pele quando o cavalo virou a cabeça para ele, em busca de conforto. Os movimentos de Daemon eram lentos. Depois de ter a sela colocada, Daemon levou-o até ao pátio e montou.

Dirigiram-se à árvore.

Daemon desmontou e encostou-se à árvore, com o olhar fixo na direcção da casa. O garanhão agitava o freio, lembrando-o de que não estava só.

— Queria despedir-me — disse Daemon baixinho. Pela primeira vez, conseguiu ver realmente a inteligência - e a solidão - nos olhos do cavalo. Em face disso, não conseguiu falar sem que a voz se embargasse, ao tentar explicar a razão pela qual Jaenelle nunca mais voltaria à árvore, não haveriam mais cavalgadas, nem carícias, nem conversas. Por um instante, algo sé encrespou na sua mente. Tinha a estranha sensação de que era a ele que lhe estavam a explicar e as suas palavras, ressoando de volta, dilaceravam-lhe o coração. Ficar novamente sozinho. Nunca mais poder ver aqueles braços estendidos para recebê-lo. Nunca mais ouvir aquela voz a pronunciar o seu nome. Nunca...

Daemon sobressaltou-se quando o Dançarino Negro deu um puxão às rédeas, libertando-se, e correu pelo caminho em direcção ao campo. Lágrimas de pesar ardiam nos olhos de Daemon. O cavalo poderia ter uma mente mais simples, mas o coração era grande.

Daemon caminhou para o campo, olhando o vazio por um longo momento antes de se encaminhar para o fosso na extremidade oposta.

Teria sido melhor não lhe ter dito? Deixá-lo esperar ao longo dos solitários dias e semanas e meses que se seguissem? Ou, pior ainda, prometer voltar para o levar e não poder cumprir essa promessa?

Não, Daemon pensou ao alcançar o fosso. Jaenelle era a Rainha do Dançarino. Merecia a verdade. Merecia o direito de poder fazer escolhas.

Daemon deslizou pela encosta do profundo e extenso fosso. O Dançarino jazia no fundo, contorcido e moribundo. Daemon sentou-se a seu lado, colocando a cabeça do cavalo delicadamente no seu colo. Acariciou-lhe o pescoço, murmurando palavras de pesar no Idioma Antigo.

Acabar de matá-lo. As forças do Dançarino estavam a esmorecer. Uma sonda minuciosa e cauterizante na mente do cavalo terminaria com tudo. Daemon respirou fundo... e não conseguiu fazê-lo.

Se o Inferno era o local onde os mortos dos Sangue caminhavam quando o corpo morria mas o Eu era ainda bastante poderoso para se desvanecer na noite eterna, será que os parentes que Jaenelle mencionou também iriam para esse local? Existiria uma manada de cavalos demónios-mortos a cavalgar numa paisagem desolada?

— Ah, Dançarino — murmurou Daemon, continuando a afagar o pescoço do cavalo. Uma ligação de mentes não iria resultar neste momento, mas...

Daemon olhou para o pulso. Sangue. De acordo com as lendas, os demónios-mortos conservavam as forças com sangue dos vivos. Era por isso que eram feitas ofertas em sangue quando alguém rogava ajuda ao Reino das Trevas.

Daemon moveu-se ligeiramente. Levantando a manga direita, colocou o pulso sobre a boca do Dançarino. Tomando alento para que o que oferecesse fosse o mais poderoso que tinha para dar, fez uma incisão numa veia com uma unha comprida e observou o sangue a jorrar para a boca do Dançarino. Daemon contou até quatro e, de seguida, pressionou a ferida com o polegar, sarando-a mediante a Arte.

Tudo o que agora podia fazer era aguardar com o seu Irmão quadrúpede.

Durante muito tempo, o Dançarino manteve o olhar vidrado e nada aconteceu. De repente, algo espicaçou Daemon, fez o chão deslocar-se e tremeluzir. Já não via o fosso nem sentia o frio e a humidade do chão coberto de neve. Â sua frente estava um enorme portão em ferro forjado. Para além deste, uma névoa repleta de relâmpagos. Enquanto olhava, o portão abriu-se devagar, com um silêncio arrepiante. Ouviu-se um som vago, abafado, mas que se aproximava do portão. Daemon viu o Dançarino a correr para o portão, de cabeça levantada, com a crina e a cauda a ondularem no ar. Logo a seguir, o cavalo perdeu-se na névoa e o portão fechou-se.

Daemon olhou para baixo, para os olhos fixos. Colocou a cabeça do cavalo suavemente no chão e trepou o fosso, caminhando penosamente de volta para a cavalariça.

Vieram todos a correr quando o viram entrar sozinho. Daemon olhou para Andrew e apenas para Andrew, quando conseguiu controlar a voz o suficiente para dizer:

— Está no fosso. — Sem se sentir confiante para acrescentar o que quer que fosse, Daemon virou-se bruscamente e regressou a casa.

 

— Compreendo as vossas dificuldades, Senhora Angelline, mas tendes de compreender que nem eu nem o embaixador dispomos da autoridade para retirar Sadi do serviço sem a autorização da Sacerdotisa Suprema.

— Greer apoiou-se na secretária, tentando parecer solidário. — Talvez se vos esforçásseis mais para o disciplinar — sugeriu.

— Não ouviste o que te disse? — proferiu Alexandra furiosamente.

— Ontem à noite ameaçou matar-me. Está incontrolável.

— O anel de controlo...

— Não funciona — disse Alexandra bruscamente.

Greer estudou o rosto de Alexandra. Estava pálida e tinha olheiras escuras. Sadi tinha-a aterrorizado bastante. Após tantos meses de sossego, quando Sadi estava quase demasiadamente obsequioso, o que teria ela feito para provocar esta explosão? — O anel de controlo funciona de facto, Senhora Angelline, se for usado de forma convincente e na altura certa. Nem mesmo ele consegue ignorar a dor de um Anel de Obediência.

— É por isso que morreram tantas das Rainha que serviu? — inquiriu Alexandra de forma contundente. Massajou as têmporas com as pontas dos dedos. — Não é só comigo. É perverso, depravado.

Ah? — Não deveríeis deixá-lo executar qualquer serviço que não for do vosso agrado, Senhora — disse Greer com uma austeridade sarcástica.

Alexandra arregalou-lhe os olhos. — E de que forma evitarei que execute serviços nas minhas netas que não sejam do meu agrado?

— Mas não passam de crianças — protestou Greer.

— Sim — Alexandra quase não conseguia falar, — crianças. — Havia uma irritação na sua voz que fez com que Greer lutasse para evitar um sorriso. — Com a mais velha porta-se bem, mas com a outra...

Com um semblante carregado como se fosse uma decisão difícil, Greer disse devagar:

— Enviarei uma mensagem à Sacerdotisa Suprema a solicitar que retire Sadi de Chaillot tão depressa quanto possível. É o melhor que posso fazer. — Levantou a mão sã para interromper o protesto de Alexandra.

— Todavia, compreendo o quão difícil deve ser para vós mante-lo na vossa propriedade, especialmente se, por acaso, vier a descobrir que viestes aqui. Assim sendo, irei buscá-lo esta tarde, acompanhado de uma escolta armada, e mantê-lo-ei na embaixada até recebermos a autorização da Sacerdotisa Suprema para o devolver a Hayll. — Estendeu a mão, com um sorriso. — Necessitarei, como é óbvio, do vosso anel de controlo para o incapacitar rapidamente e garantir a vossa segurança.

Greer susteve â respiração enquanto Alexandra hesitava. Por fim, retirou o anel de controlo secundário do dedo, deixando-o cair na mão de Greer. Greer acenou ao embaixador que tinha andado a rondar a porta. O homem apressou-se a acompanhar Alexandra à saída, murmurando mentiras tranquilizadoras.

Greer aguardou até a porta se fechar atrás deles antes de, atrapalhadamente, enfiar o anel no dedo mindinho. Estendeu a mão, admirando o círculo dourado.

Bastardo, pensou Greer alegremente, agora és meu, bastardo. Primeiro, Kartane, borrado de medo, veio convidar Greer para participar num “festa especial” em Briarwood e, agora, esta Rainha veio aqui lamuriar-se sobre o interesse de Sadi nas suas netas. E durante todo o tempo em que Greer tinha procurado a presa da Sacerdotisa das Trevas, o Sádico divertia-se com a rameirazita enquanto o mestiço transpirava e sangrava em Pruul. Se lhe contássemos acerca da oferta que tão zombeteiramente recusaste e se te prendêssemos entre dois postes e lhe entregássemos o chicote, quanta da tua pele restaria quando ele ficasse demasiado cansado para mais unia vergastada? E que pedaço da tua anatomia deixaria de existir quando terminasse?

Greer abanou-se mentalmente. Estas perspectivas tentadoras teriam de esperar. Estava aqui a oportunidade pela qual tinha esperado, a oportunidade para ferir Daemon até ao âmago e ainda agradar à Sacerdotisa das Trevas.

Alexandra era uma idiota por ter renunciado à única defesa contra o Sádico. Se tivesse usado o anel de controlo com a brutalidade que ele próprio tencionava usar, poderia ter levado Sadi a ajoelhar-se, esgotando-o o suficiente para reduzir a ameaça. E a ameaça tinha de ser reduzida.

Não queria que Daemon Sadi fosse a nenhum lado hoje à noite, independentemente das condições em que se encontrasse.

 

Daemon lançou um olhar rápido ao seu quarto. Os baús estavam prontos e tinha-os feito desaparecer para o acompanharem na viagem. Tinha--se esgueirado à ala das crianças e feito uma pequena mala para Jaenelle. Preocupava-o o facto de poder ter deixado para trás algo a que ela desse valor. O canto gelado no guarda-fatos continha, provavelmente, os seus bens mais pessoais, mas Daemon não teve tempo ou energia para tentar deslindar o bloqueio que ela ali tinha aplicado. Esperava que, uma vez a salvo longe de Beldon Mor, ele e Saetan pudessem recuperar esses bens.

Daemon abriu a porta, assustando a Cozinheira que estava com a mão levantada, como se estivesse prestes a bater.

— Chamam-vos ao pátio de entrada. — disse, aflita. Daemon semicerrou os olhos. Porquê mandar a Cozinheira trazer a mensagem? — Jaenelle regressou?

— Não sei. A Senhora Angelline saiu por um tempo esta manhã, mas, quando regressou, ela e a Senhora Benedict mantiveram-se na ala das crianças com a Menina Wilhelmina e a Graff. Acho que o Senhor Benedict não está em casa e o Príncipe Alexander esteve o dia todo fechado no gabinete do administrador.

Daemon abriu a mente deixando entrar os odores psíquicos que o rodeavam. Aflição. Medo. Era o que seria de esperar. Alívio? Os seus olhos dourados escureceram ao passar pela Cozinheira e deslizar para o pátio de entrada. Se Alexandra estava a fazer joguinhos...

Entrou no pátio principal e viu Greer com vinte homens hayilianos armados. No instante seguinte, a dor proveniente do Anel quase fez com que as suas pernas cedessem. Lutou para se manter de pé ao mesmo tempo que zurzia um olhar acutilante a Alexandra, que estava arredada a um canto com Leiand e Philip.

— Não, Sadi — disse Greer com a sua voz untuosa, — agora é a mim que respondes. Levantou a mão de forma a que a luz incidisse no anel de controlo em ouro.

— Cabra — disse Daemon baixinho, nunca desviando os olhos de Greer. — Fiz-vos uma promessa, Senhora Angelline e mantenho sempre as minhas promessas.

— Desta vez não — disse Greer. Fechou a mão e impulsionou-a para a frente. O anel de controlo brilhou.

Daemon cambaleou para trás, apoiando-se na parede, ao mesmo tempo que a dor proveniente do Anel aumentava.

— Desta vez não — repetiu Greer, caminhando na direcção de Daemon.

O frio. O doce frio.

Daemon contou até três, impeliu a mão direita para a frente na direcção de Greer e libertou uma grande faixa de energia negra. Philip, fazendo uso da Jóia Cinzenta, impeliu a mão para a frente ao mesmo tempo. As duas forças encontraram-se, fazendo explodir o lustre e incendiando a mobília. Três dos guardas caíram ao chão, contorcendo-se. Greer guinchou de raiva. Leiand e Alexandra gritaram. Philip continuava a canalizar a força através da Jóia Cinzenta, tentando quebrar o ataque de Daemon, mas a Negra infiltrou-se à volta da Cinzenta e, no sítio em que o fez, as paredes ficaram chamuscadas e rachadas.

Daemon retemperava forças encostado à parede. Greer continuava a canalizar potência para o Anel, intensificando a dor. Era preferível morrer a entregar-se a Greer, mas havia uma possibilidade - se conseguisse aí chegar intacto o suficiente para fazer o que tinha de ser feito.

Libertando uma enorme bola de fogo encantado, Daemon enviou um último impulso contra a Cinzenta, esperando que Philip respondesse ao ataque. Quando o fogo encantado atingiu o escudo Cinzento, explodiu numa parede de fogo.

Daemon usou a parede para o impulsionar e desatou a correr em direcção às traseiras da casa. A dor intensificou-se enquanto corria pêlos corredores para a cozinha. Já era demasiado tarde quando se apercebeu da jovem criada de joelhos e a poça de água cheia de sabão. Saltou, conseguindo evitar a rapariga, mas o seu pé aterrou na extremidade da poça, fazendo-o derrapar até bater com a anca na mesa da cozinha, arremessando-o para a frente.

A dor nas virilhas era agonizante.

Daemon cerrou os dentes, valendo-se da raiva pois não se atrevia a recorrer às Jóias. Ainda não.

Dois pares de braços agarraram-no pêlos ombros e pela cintura. Rosnando, tentou libertar-se, mas ao ouvir a Cozinheira dizer:

— Depressa, vá lá — , a sua cabeça desanuviou-se o suficiente para se aperceber de que ela e Wilhelmina estavam a tentar ajudá-lo. A jovem criada, tensa e pálida, correu à frente deles e abriu a porta.

— Estou bem — arfou Daemon ao segurar-se à porta. — Estou bem. Saiam daqui. Todas vós.

— Depressa — disse a Cozinheira. Deu-lhe um encontrão que quase o fez cair. Aos tropeções, virou-se ligeiramente para trás e a última coisa que viu antes da porta da cozinha se fechar foi a Cozinheira a agarrar no balde de água com sabão, derramando-a pelo chão cozinha.

Outra irrupção de dor vinda do Anel forçou-o a ajoelhar-se. Reprimiu um grito, levantou-se de supetão e cambaleou para a frente, lançando-se numa corrida em direcção à cavalariça e ao caminho que o levaria até ao descampado.

A dor. A dor.

Cada passo era uma facada nas virilhas de Daemon enquanto Greer continuava a canalizar a energia através do anel de controlo para o Anel de Obediência.

Daemon correu pelo caminho equestre, passando pela cavalariça, com a vaga ideia de ver Guinness e os moços da cavalariça a saírem em massa do pátio para formarem uma parede sólida e furiosa atrás de si. Correu pelo caminho coberto de neve, até que outra irrupção de dor com origem no Anel lhe retirou as pernas debaixo dele. Voou pelo ar, impulsionado pelo ímpeto que o lançou para a frente, antes de bater no chão com um baque que fez os ossos trepidarem.

Daemon tentou pôr-se de joelhos, chorando. Por detrás dele, ouviu-se um som débil, abafado. Virou a cabeça, tentando vislumbrar através das lágrimas de dor. Não havia nada ali, mas o som continuava a dirigir-se a ele, parando a seu lado. Daemon estendeu um braço para se equilibrar.

A mão bateu numa perna.

Não via nada mas podia sentir...

— Dançarino? — sussurrou Daemon ao mesmo tempo que a sua mão subia.

Um calor húmido bufou-lhe no rosto.

Cerrando os dentes, Daemon pôs-se em pé. Estava a ficar sem tempo. As suas mãos encontraram a garupa. Daemon impulsionou-se para a garupa do garanhão demónio, respirando com dificuldade ao passar a perna para o outro lado. Com a cabeça deitada sobre o pescoço do Dançarino e as mãos entrelaçadas na crina para se segurar, Daemon apertou os joelhos, instigando o Dançarino para a frente.

— Para a árvore, Irmão — Daemon gemeu. — Tão depressa quanto conseguires voar, leva-me até à árvore.

Daemon quase caiu quando o Dançarino se lançou para a frente, mas conseguiu segurar-se, sinistramente determinado em alcançar a única escapatória que restava.

Quando chegaram ao destino, Daemon deslizou da garupa do cavalo, lembrando-se a tempo do que Jaenelle lhe tinha ensinado sobre caminhar no ar. Por um momento, ficou deitado de lado, suspenso no ar, com os joelhos dobrados junto ao peito, lutando contra a dor e reunindo forças.

Bem abaixo desta árvore estava um rectângulo impecavelmente recortado e que se encontrava protegido por um escudo Negro que iria manter os outros à distância, tal como tinha mantido Alexandra lá dentro.

Daemon olhou para trás. Pêlos vistos, os demónios não deixavam pegadas. E ele, felizmente, não tinha deixado nenhum indício na neve. Tudo o que precisava agora era de alguns momentos em que não fosse interrompido para realizar a passagem.

Lutando para ter paciência, Daemon aguardou pela seguinte irrupção de dor do Anel. Uma vez mitigada, poderia escorregar para a terra. Atrás de si, podia ouvir gritos, sons de luta. Aguardou, sentindo as forças a deixarem-no ao mesmo tempo que o frio e a dor se infiltravam.

Quando finalmente se decidiu a não esperar mais, a dor voltou a atingi-lo. Contorceu-se e rebolou, tentando escapar-lhe. Desta vez, porém, não houve abrandamento. Greer estava a enviar um impulso contínuo através do anel de controlo para o Anel de Obediência.

Daemon rastejou pelo ar, até estar posicionado por cima do local adequado. O tempo tinha-se esgotado. Com os punhos cerrados com tanta força que as unhas perfuraram a pele, respirou profundamente, fechou os olhos e mergulhou na terra.

No momento em que sentiu o vazio em vez da terra, puxou os pés para a frente para que não ficassem presos no chão gelados, interrompendo a passagem. Sentiu as pernas das calças a prenderem-se na terra, sentiu a pele nos joelhos a rasgar-se ao romperem a última camada de terra. Caindo a direito, de costas, demorou um pouco a recuperar a respiração.

Só tinha um momento. Desapertou o cinto, abriu o fecho das calças e com a mão direita agarrou o seu órgão e o Anel de Obediência. Gritou quando os dedos tocaram, acidentalmente, nos testículos. Respirando irregularmente, manteve a mão firme e invocou as Jóias Negras.

Havia muito tempo que não sentia uma Jóia pendurada ao pescoço ou colocada no dedo. Pulsaram ao mesmo tempo que o batimento do seu coração, enquanto Daemon reunia a energia armazenada. Era arriscado. Sempre soube que seria arriscado. Mas estava algo em causa que era mais importante do que o corpo. Respirando fundo, Daemon voltou-se para o seu interior e mergulhou em direcção à Negra.

Era um mergulho suave e prolongado que ganhava velocidade em direcção às Trevas, cada vez mais depressa, precipitando-se em direcção à teia negra tremeluzente que era o seu próprio ser, ganhando velocidade ao libertar a raiva. Continuou o mergulho nas profundezas ao mesmo tempo que a teia parecia precipitar-se para cima, ao seu encontro. Não havia tempo para controlar a descida. Se falhasse numa curva e estilhaçasse a teia, o mínimo que aconteceria seria quebrar-se a si próprio, privando-se da capacidade de usar a Negra ou, possivelmente, até a Vermelha de Direito por Progenitura. Se não conseguisse travar a descida e continuasse a cair para o abismo, morreria ou enlouqueceria.

Daemon acelerou, atento ao momento em que poderia fazer a curva e extrair o máximo de si próprio. A uma grande distância, conseguia ainda sentir a agonia nos calcanhares e os tendões no pescoço que suportavam o corpo arqueado e torturado. Não obstante, continuou a mergulhar ainda mais fundo. No último momento, virou, junto à teia, extraiu todo o poder de reserva das suas Jóias Negras e precipitou-se para cima, uma onda gigante de raiva negra e gélida, uma seta negra a dirigir-se a grande velocidade para o centro de um círculo dourado.

Durante todo o percurso para cima, Daemon manteve a sua força bem segura e fina como a lâmina de um florete, mas no momento em que penetrou no centro do círculo, libertou toda a força Negra. Explodiu para o exterior, forçando o círculo a expandir-se até se quebrar devido à pressão.

Daemon abriu os olhos devagar. Tremia de cansaço, tiritava de frio. O mais pequeno movimento, até respirar, provocava-lhe uma dor atroz. Estendeu a mão esquerda para baixo e procurou o Anel de Obediência. Quando levantou as mãos até ao peito, cada uma delas segurava metade de um Anel.

Estava livre.

Visto que as Jóias Negras estavam completamente esgotadas, fê-las desaparecer e invocou a Vermelha de Direito por Progenitura para uma última tarefa.

Se Dorothea e Greer tivessem escapado ao estilhaçar do Anel, poderiam ainda usar um dos anéis de controlo para localizar os pedaços até este esconderijo.

Daemon fechou os olhos, concentrou-se num sítio que conhecia bem e fez desaparecer os dois pedaços do Anel de Obediência.

Num pequeno recanto, as duas metades do Anel pairaram no ar por um momento antes de caírem no canteiro coberto de neve de sangues-de-feiticeira.

O último pensamento consciente de Daemon foi o de invocar um cobertor, cobri-lo com um feitiço de aquecimento e enrolá-lo à volta do seu corpo, o melhor que conseguiu. A teia psíquica que tinha criado desaparecera. Não havia forma de saber se Jaenelle ainda estaria ilesa. Não podia fazer nada por ela neste momento. Não podia fazer mais nada por si próprio. Até que o corpo descansasse um pouco, não tinha forças para sair da sepultura.

 

Cassandra andava de um lado para o outro.

A bruma que circundava Beldon Mor impedia que os Guardiões e os demónios-mortos entrassem. Mas não impedia que saíssem de lá coisas.

Felizmente, estava a usar a Jóia Negra e não a Vermelha de Direito por Progenitura, quando foi atingida pelas ondas do abalo provocadas pela precipitação de Sadi em direcção às Trevas. Apesar de toda aquela protecção, o seu corpo tinha vibrado devido à intensidade do mergulho.

Enquanto se levantava do chão, perguntou-se a si própria quantos dos Sangue, sem treino suficiente para terem conhecimento de que se deve fluir com aquelas ondas psíquicas ao invés de se tentar escudar delas, teriam sido estilhaçados ou, no mínimo, quebrados, regressando à Jóia de Direito por Progenitura.

E Jaenelle? Ter-se-ia voltado contra ela? Estaria a lutar com ele para defender a vida?

Cassandra abanou a cabeça e continuou a andar. Não, ele amava a rapariga. Mas qual seria, então, a razão para a descida? Temia-o agora tanto quanto temia o pai dele, mas será que ele não tinha compreendido que ficaria a seu lado, lutaria com ele para proteger Jaenelle?

Descendo lentamente para a Negra, fechou os olhos e abriu a mente, enviando um feixe de sondagem em direcção a oeste num fio Negro. A sonda chocou contra a bruma, penetrando um pouco, por um breve momento, antes de se dissipar.

Já chegava.

Passou a hora seguinte a limpar o Altar, a polir os candelabros de quatro velas, retirando os fragmentos de velhas velas negras, substituindo-os por novas. Quando terminou, o Altar estava, uma vez mais, preparado para ser o que tinha sido outrora, o que não tinha sido durante séculos.

Um Portão.

Tomou banho em água morna e perfumada, lavou e penteou o cabelo. Vestiu um simples vestido preto de seda de aranha que se moldava ao seu corpo. A Jóia Negra no velho suporte preenchia o decote aberto do vestido. O anel com a Jóia Negra, no suporte ilusoriamente feminino, entrou com facilidade no dedo. As duas pulseiras em prata com lascas da Jóia Vermelha incrustadas no centro de uma ampulheta, serviram sobre as mangas justas do vestido. Por fim, os chinelos pretos, elaborados por artesões já esquecidos, que nunca revelavam uma passada.

Estava preparada. Fosse qual fosse a tempestade que a noite trouxesse, estava preparada.

Com uma expressão pensativa e atenta e um olhar distante nos olhos esmeralda, Cassandra acomodou-se, aguardando.

 

Enquanto os escravos eram trazidos das minas de sal de Pruul, Lucivar virou-se em direcção a oeste. A transpiração salgada fazia-lhe arder os novos cortes nas costas. As correntes pesadas agrilhoavam os pulsos à cintura, puxavam os já doridos braços. Ainda assim, manteve-se imóvel, respirando o ar puro de final de tarde, observando a última faixa de sol a desaparecer para lá do horizonte.

Tinha-se deixado levar pelas ondas negras que atingiram Pruul com a paixão de um amante, usando a força da Ébano-Acinzentada para fortalecer as ondas e mante-las a fluir em direcção a este durante um pouco mais de tempo. Lamentava apenas não poder juntar-se a Sadi no derramamento de sangue. Não que o Sádico necessitasse de ajuda. Não que fosse seguro estar na mesma cidade do que um homem enfurecido daquela forma.

Ao mesmo tempo que um guarda assustado brandiu o chicote aos escravos para os dirigir para as respectivas celas escuras e fedorentas, Lucivar sorriu e murmurou:

— Manda-os para o Inferno, Bastardolas. Manda-os a todos para o Inferno.

 

Philip Alexander estava sentado à secretária, com a cabeça apoiada nas mãos, olhando, espantado, para a Jóia Cinzenta estilhaçada.

Tinha levado - quanto - um minuto? Um simples minuto para provocar tanta destruição? Alguns guardas tinham sentido primeiro, uma sensação arrepiante, como tentar manter-se em pé face a um vento forte que não pára de aumentar. A seguir, Leiand. Logo depois, Alexandra. Tinha ficado intrigado, nesses instantes, sem perceber por que razão teriam elas ficado tão pálidas e imóveis, por que razão se esforçavam todos para ouvir algo. Quando se precipitou pela Cinzenta, com um movimento descendente, teve um momento, e apenas um momento, para perceber o que era, um momento para lançar os braços à volta de Leiand e de Alexandra, puxando-as para o chão, um momento para tentar criar um escudo Cinzento à volta dos três. Um momento.

Foi então que o seu mundo explodiu.

Tinha conseguido resistir menos de um minuto antes da explosão titânica de força Negra estilhaçar a Cinzenta e arrastá-lo como um pedaço de madeira flutuante apanhada numa onda antes de ser esmagada contra a areia. Sentiu que Alexandra tentava segurá-lo antes de ser, também ela, arrastada.

Um minuto.

Quando terminou, quando a cabeça se desanuviou...

Dos guardas hayilianos que tinham permanecido no pátio de entrada, à excepção de dois, todos estavam mortos ou as mentes tinham sido destruídas. Leiand e Alexandra, protegidas desde o primeiro impacto, estavam bem, embora abaladas. Philip tinha sido quebrado, regressando à Verde, a Jóia de Direito por Progenitura.

Ainda em estado de choque, os três deixaram o pátio de entrada, cambaleando. Encontraram Graffna ala das crianças, com o olhar vazio e fixo no tecto, o corpo contorcido e despedaçado, quase irreconhecível.

A maior parte dos empregados tinham escapados intactos à explosão psíquica, embora assustados. Encontraram-nos amontoados na cozinha onde a Cozinheira, com as mãos trémulas, enchia cálices com conhaque, de forma generosa.

Wilhelmina tinha-os assustado. Estava sentada, imóvel, na cadeira da cozinha, com as bochechas ruborizadas e os olhos a brilhar. Quando Philip lhe perguntou se estava bem, sorriu e disse:

— Disse para me deixar ir e foi o que fiz. Ela disse para me deixar ir. Naquele momento que antecipou a explosão do mundo, tinha ouvido uma voz feminina, jovem e imperiosa, que gritava:

— Deixem-se ir, deixem-se ir —, mas não tinha compreendido - e continuava sem compreender. O que era mais assustador era que Wilhelmina usava agora uma Jóia Safira. De alguma forma, no meio daquele caos, tinha realizado a Dádiva às Trevas, embora fosse muito nova para o fazer. Agora aquela rapariga inexperiente era mais forte do que qualquer um deles.

Pior ainda foi a traição de Guinness e dos moços da cavalariça, de Andrew, em particular. Tinham lutado contra os guardas hayilianos, atrasando-os. Se não tivessem interferido, Sadi poderia ter sido apanhado e Beldon Mor... Bem, tinha demitido Guinness e Andrew e os restantes que sobreviveram. Não havia razão alguma para manter os traidores, especialmente os traidores que disseram... que lhe chamaram... Que ficariam ao lado de Sadi contra a família dela!

Philip fechou os olhos e massajou as têmporas doridas. Quem imaginaria que um homem pudesse causar tamanha destruição num minuto? Metade dos Sangue em Beldon Mor estariam mortos, loucos ou quebrados.

Philip suspirou, soluçando. O corpo quase não tinha forças para usar a Verde, mas iria recuperar. Pelo menos para isso, iria recuperar.

Metade dos Sangue. Se Sadi tivesse atacado novamente...

Porém, quando a ondulação finalmente se dissipou, não havia sinal de Daemon Sadi.

E ninguém sabia o que tinha sido feito de Greer.

 

Surreal estava sentada, recostada à cabeceira da cama e a bebericar da garrafa de uísque que abraçava junto ao peito.

Deje e ela tinham passado as últimas horas a tratar das outras raparigas, sedando as que precisavam, deixando que as outras se embebedassem. Deje, com o rosto pálido devido à tensão, tinha agradecido que Surreal se ocupasse dos corpos. Felizmente, não eram muitos, visto que o dia a seguir às festas de Winsol era sempre fraco para as casas da Lua Vermelha. Ainda assim, teve de os envolver em cobertores antes do pessoal masculino, mais forte, entrar nos quartos e levá-los para fora.

Todos, incluindo ela própria, tresandavam a medo.

Afinal, ele era o Sádico.

Teria sido pior, disse para si própria enquanto continuava a beber o uísque. Teria sido muito, muito pior se Jaenelle não tivesse gritado aquele aviso para se deixarem ir. Engraçado. Todas as feiticeiras na casa de Deje que usavam Jóias ouviram aquele aviso e souberam, de forma instintiva, o que fazer. Os homens... Não tinha havido tempo para Jaenelle ser selectiva. Alguns ouviram, outros não. Era tudo o que se podia dizer. Os que não a ouviram estavam mortos.

O que teria acontecido para despoletar tamanha raiva? Que tipo de perigo teria provocado aquela eclosão?

Talvez a questão a colocar fosse: quem estaria em perigo?

Serenada pela sua própria raiva crescente, Surreal poisou a garrafa na mesinha de cabeceira e invocou um pequeno rectângulo em pele. Quando terminasse, dormiria um pouco. Era pouco provável que algo acontecesse antes do anoitecer. O Sádico tinha tratado disso, fosse ou não fosse essa a intenção.

Com o mais ligeiro dos sorrisos, Surreal cantarolou baixinho ao retirar a pedra de amolar da bolsa em couro, começando a afiar as facas.

 

Dorothea observava as chamas a dançar na lareira. A qualquer momento a Sacerdotisa das Trevas chegaria ao velho Santuário. Poderia, então, transmitir a mensagem à cabra e regressar a casa.

Quem imaginaria que pudesse quebrar um Anel de Obediência? Quem poderia imaginar, estando do outro lado do Reino, que estilhaçar o Anel pudesse...

Que afortunada tinha sido por ter começado a deixar cada uma das jovens feiticeiras da assembleia usar o anel de controlo principal por um dia, permitindo que experimentassem a sensação” de dominar um homem poderoso, mesmo estando tão distante que nada conseguiam sentir. Que desafortunada tinha sido a sua feiticeira preferida, o seu pequeno prémio que tanto potencial tinha demonstrado, por ter sido hoje a sua vez de o usar.

Uma vez que o corpo, apesar de esvaziado da própria feiticeira, ainda vivia, teria de o manter por perto durante algum tempo para que as outras não percebessem quão descartáveis todas eram. Um mês ou dois seria suficiente. A feiticeira seria, como é óbvio, enterrada com dignidade, com todas as honras adequadas às Jóias e à categoria social.

Dorothea estremeceu. Sadi andava por aí, algures, sem trela a segurá-Io. Poderiam usar o mestiço eyrieno como isco para o trazer de volta, mas Yasi estava muito bem enfiado nas minas de sal de Pruul e seria vergonhoso retirá-lo antes de estar suficientemente quebrado quer física quer espiritualmente. Além disso, neste momento duvidava de que mesmo o eyrieno fosse isco suficiente.

A porta da sala de estar abriu-se, deixando entrar uma silhueta encapuzada.

— Mandaste chamar-me, Irmã? — disse Hekatah, não tentando disfarçar a contrariedade na voz. Olhou sem rodeios para a mesinha, sem a garrafa de sangue aguardada. — Deve ser importante a ponto de te esqueceres de algo tão insignificante como uma bebida refrescante.

— Sim, é. — Saco de ossos. Parasita. Hayll inteiro está em perigo. Eu estou em perigo! Com cautela para não deixar que os pensamentos se tornassem evidentes, Dorothea estendeu uma nota, deslizando-a nos dedos.

— De Greer.

— Ah — disse Hekatah com uma excitação mal disfarçada. — Tem notícias?

— Melhor ainda — respondeu Dorothea, lentamente. — Diz que dêscobriu uma forma de tratar do vosso problemazinho.

Greer estava sentado na cama feita com lençóis brancos num dos quartos privados de Briarwood, embalando o que faltava da mão intacta.

Poderia ter sido pior. Se aquele fedelho coxo das cavalariças não o tivesse golpeado com a faca, cortando-lhe o dedo miudinho até ficar preso unicamente por um fio de pele, não teria tido tempo de retirar o anel de controlo secundário quando Sadi partiu o Anel de Obediência. No preciso momento em que sentiu a explosão da Negra, arrancou o dedo e lançou-o para longe. Um guarda, vendo algo a dirigir-se a si, agarrou-o instintivamente e a sua mão fechou-se, com o anel dentro.

Homem tolo. Homem tão, tão tolo.

Estando o Anel de Obediência partido e não havendo maneira de saber se Sadi tinha ficado ferido pelo esforço, Greer tinha corrido para Briarwood, onde seria tratado sem perguntas. Era também o único local que Sadi não atacaria às cegas. Aqui possuíam alguma vantagem - pelo menos durante mais algumas horas. Depois, partiria, dirigir-se-ia velozmente para Hayll para se dissipar entre os outros, rodeado pela corte de Dorothea. Briarwood e os seus clientes estariam ainda aqui para saciar a sede de Sadi por vingança.

Greer deitou-se na cama, deixando que os analgésicos o embalassem para um descanso bem precisado. Dentro de poucas horas, o problemazinho da Sacerdotisa das Trevas já não existiria e Sadi...

Deixai o bastardo gritar.

Saetan completou outra volta errática ao gabinete privado.

Olhou fixamente para o retraio de Cassandra.

Olhou fixamente para a teia entrelaçada que tinha terminado há pouco tempo, com o aviso de que poderia ter surgido demasiado tarde.

Abanou a cabeça devagar, negando o que a visão na teia entrelaçada lhe tinha mostrado.

Uma teia interior ainda intacta. Um cálice de cristal estilhaçado. E sangue. Tanto sangue.

Nunca invadira a privacidade de Jaenelle. Contrariamente ao seu bom senso e aos seus instintos, nunca invadiu a privacidade de Jaenelle. Mas agora...

— Não — disse com uma leve malevolência. — Não me irás tirar a minha Rainha. Não me irás tirar a minha filha.

Havia um único local por onde poderia penetrar na bruma. Apenas um sítio que poderia utilizar para aumentar a força para atravessar o Reino. Existia uma única feiticeira que tinha o conhecimento para o auxiliar.

Colocando a capa sobre os ombros, lançou um rápido olhar à porta, arrancando-a das dobradiças. Deslizando pêlos vastos corredores do Paço, gelando com a raiva as pedras em bruto, passou por Mephis e Prothvar, não vendo ninguém, não vendo mais nada a não ser aquela teia.

— Onde vais, SaDiablo? — interpelou Andulvar, caminhando a passos largos para o interceptar.

Saetan rosnou baixinho.

O Paço estremeceu.

Andulvar hesitou por um breve instante antes de se colocar com convicção no caminho do Senhor Supremo do Inferno.

— Yaslana. — A raiva tinha-se tornado calma e silenciosa. Era o que receavam nele.

— Vais dizer-me para onde te diriges ou terás de passar por mim — disse Andulvar calmamente. Somente um tique quase imperceptível no músculo do queixo o traiu.

Saetan sorriu, levantando a mão direita para uma carícia de amante. Lembrando-se a tempo de que este homem era seu amigo e também amava Jaenelle, embainhou o dente de serpente e a mão pressionou suavemente o ombro de Andulvar.

— Para Ebon Askavi — murmurou, apanhando o Vento Negro e desaparecendo.

 

                         CAPÍTULO 15

Surreal sonhava.

Ela e Titian caminhavam por uma floresta. Titian tentava avisá-la sobre algo, mas Surreal não a conseguia ouvir. A floresta, Titian, tudo o resto, estavam sobrepostas pelo bater retumbante e contínuo de um tambor.

Quando chegaram à orla da floresta, Surreal reparou numa árvore com um ramo perfeito, uma árvore que sangrava seiva de um vermelho-escuro. Titian passou pela árvore e dirigiu-se a um relvado coberto de flores altas e prateadas. Quando apanhava uma flor aqui e ali, a flor transforma- va-se numa faca, afiada e reluzente. Com um sorriso no rosto, ofereceu o ramo a Surreal.

O tambor rufava cada vez mais alto, com mais força.

Alguém gritava.

Titian continuou a caminhar em direcção a um grande rectângulo, repleto de névoa, apontando aqui e ali. De cada vez que apontava, a névoa afastava-se. Duas ruivas. Uma rapariga sem olhos. Uma rapariga com a garganta degolada cujos olhos fulminavam com uma fúria impotente. Uma rapariga com uma única perna.

Na extremidade oposta do rectângulo estava um montículo de terra recentemente escavada.

O tambor rufou mais depressa.

Alguém berrava, enfurecido e em sofrimento.

Surreal aproximou-se do montículo, atraída por algo que estava sobre a terra. Quando se aproximou, começaram a rebentar e a desabrochar sangues-de-feiticeira, formando uma coroa à volta de um cabelo dourado.

— Não! — gritou Surreal, saltando da cama. O rufar do coração batia contra as costelas. Os gritos dentro da sua cabeça não paravam.

 

— Vais ajudar-me — disse Saetan, virando-se para encarar Draca.

— A fazer o quê. Senhor Supremo? — perguntou Draca. Os seus olhos reptilíneos e fixos nada revelavam.

— A penetrar na bruma que rodeia Beldon Mor. — Os olhos dourados de Saetan fixaram-se nos de Draca, sugestionando-a para que cedesse. Draca examinou-o durante bastante tempo. — Exisste perigo?

— Creio que sim.

— Idess quebrar a ssua confiança.

— Prefiro que me odeie a perdê-la para todos nós — respondeu Saetan bruscamente.

Draca ponderou. — Nem a Negra pode alcançar uma disstância tão grande. Pelo menoss, não a Negra que usaiss, Ssenhor Ssupremo. A ajuda que posso oferecer irá apenass ajudar-voss a ver para além da bruma, ver mass não agir. Para agir, tereiss de voss ligar a outro, de homem para ho- mem.

Saetan humedeceu os lábios, respirou fundo. — Existe lá alguém que me poderá ajudar, que possivelmente me deixará usá-lo.

— Vinde — Draca conduziu-o pêlos corredores de Ebon Askavi em direcção a uma caixa de escadas que descia até ao fundo da montanha.

Quando aí chegaram, o som de passos apressados fez com que Saetan se virasse em desafio.

Geoffrey surgiu ao virar uma esquina, seguido de Andulvar, Prothvar e Mephis. Andulvar e Prothvar envergavam uniformes de combate. A fúria de Mephis radiava da Jóia Cinzenta.

Saetan lançou um olhar acutilante a cada um deles antes de fixar os olhos e a fúria em Andulvar. — Porque estás aqui, Yaslana? — Saetan inquiriu, com o seu trauteio suave e perigoso.

Andulvar cerrou os punhos. — Aquela teia no teu gabinete.

— Ah, então agora possuis a capacidade de ler as teias da Ampulheta?

— Poderia partir-te como um raminho seco!

— Primeiro terias de me apanhar.

Um sorriso irónico mostrou os dentes cerrados de Andulvar para, logo de seguida, desaparecer. — A fedelha está em apuros, não está? Foi isso que a teia te avisou.

— Não te diz respeito.

— Não te pertence apenas a ti, Senhor Supremo! — bramiu Andulvar. Saetan fechou os olhos. Doces Trevas, dai-me forças. — Não — concordou, deixando que Andulvar testemunhasse a sua dor, — não me pertence unicamente. Mas sou o único com força suficiente para fazer o que tem de ser feito e — levantou uma mão para parar os protestos, com os olhos sempre postos no rosto de Andulvar, — se alguém tem de se responsabilizar pelo que vai acontecer, se alguém vai ganhar o seu ódio, permitam que seja apenas um de nós para que os outros a possam continuar a estimar - e a servir.

— Saetan — disse Andulvar, com a voz roufenha. — Ah, Saetan. Não há nada que possamos fazer?

Saetan pestanejou de forma rápida. — Desejem-me felicidades.

— Vinde — disse Draca de forma premente. — Ass Trevass... temoss de nos apressar.

Saetan seguiu-a pela caixa de escadas até à porta trancada ao fundo. Retirando uma grande chave da manga, Draca abriu a porta, empurrando-a para se abrir.

No chão da enorme caverna estava gravada uma imensa teia revestida a prata. Ao centro, onde todas as linhas de orientação se encontravam, estava uma Jóia iridescente do tamanho da mão de Saetan, uma Jóia que combinava as cores de todas as outras Jóias. No final de cada linha de orientação em prata estava colocada uma lasca de Jóia iridescente do tamanho da unha do polegar.

Ao caminharem ao longo da orla da teia, as Jóias ficaram incandescentes. Um zunido lento surgiu da teia, crescendo em intensidade, até toda a caverna vibrar com o som.

— Draca, que lugar é este? — sussurrou Saetan.

— Não é lado nenhum e é todo o lado. — Draca apontou para os pés de Saetan. — Tendess de esstar desscalço. A pele deve tocar a teia. — Depois de Saetan descalçar os sapatos e as meias, Draca indicou uma linha de orientação. — Começai aqui. Caminhai devagar até ao centro, deixando que a teia voss atraia para ela. Quando atingirdess o centro, posicionai-voss por detráss da Jóia para que fiqueiss de frente para a linha de orientação maiss próxima de Beldon Mor.

— E a seguir?

Draca examinou Saetan, os seus pensamentos ocultos. — E o Ssangue cantará ao Ssangue. O vosso sangue, obsscurecido pela força, irá alimentar a teia. Dirigireiss a energia dessta oferta de forma a ser canalizada para a linha de orientação de que necessitaiss. Uma vez iniciado, não podeiss quebrar o contacto com a teia.

— E a seguir?

— E a sseguir vereiss aquilo que aqui viesstess ver.

Saetan bateu levemente na força de reserva das Jóias Negras e avançou para a linha de orientação. A energia da teia perfurou-lhe o calcanhar como uma agulha. Inspirou e começou a caminhar.

Cada passo dirigia a energia da teia para cima. Quando chegou ao centro, todo o seu corpo vibrava com o zunido. Mantendo um pé em contacto com a teia, Saetan posicionou-se por detrás da Jóia, com os olhos e a determinação concentrados naquela linha de orientação.

Estendeu a mão direita e abriu a veia.

O sangue silvou ao tocar na Jóia do centro da teia, formando uma bruma avermelhada. A bruma enrolou-se formando um fio perfeito e começou a mover-se lentamente ao longo da linha de orientação.

Gota a gota, o fio deslocou-se em direcção a Chaillot, em direcção a Beldon Mor.

Parou por um momento, à distância de um dedo da lasca da Jóia, bloqueado. De seguida, deslizou por cima, como uma videira vermelha a trepar por uma parede invisível, até que, a um palmo do chão, parou, fluindo de volta pela linha de ligação.

Tinha atravessado a bruma de Jaenelle. No instante em que o fio de sangue tocasse na lasca da Jóia, poderia começar a sondar Beldon Mor.

O fio tocou na lasca da Jóia.

Saetan arregalou os olhos. — Fogo do Inferno, o que...

— Não voss movaiss — a voz de Draca soava tão distante.

O que teria Daemon feito? Saetan pensou ao sentir o travo de raiva. Descendo para lá da cacofonia das Jóias menores, Saetan procurou pela Negra, a Negra demasiado plácida. Deveriam estar presentes três mentes ao alcance da sua capacidade exploratória. Detectou apenas uma, a que se encontrava mais afastada, a que estava no Altar das Trevas.

Mantendo o olhar fixo na lasca de Jóia, Saetan enviou um pensamento pelo fio, de homem para homem. “Homónimo?”

A resposta foi uma breve luz vacilante e irritada.

Saetan voltou a tentar, homem para mulher. “Criança-feiticeira?”

Durante uns instantes, nada.

Saetan ouviu Draca a arquejar quando uma luz tremeluziu à sua volta. Do canto do olho, viu todas as lascas das Jóias a começarem a brilhar, todos os feixes em prata da teia a resplandecerem com uma luz gélida e rubra. Algo se dirigia a toda a velocidade para Saetan. Não era um pensamento. Assemelhava-se mais a uma bola de sabão encasulada em bruma. Dirigia-se cada vez mais depressa em direcção à teia.

A luz repentina da Jóia a seus pés encandeou-o. Cobriu os olhos com o braço.

A bola atingiu a lasca da Jóia e rebentou e a caverna...

A caverna vibrou com o som de uma criança a gritar.

 

Os gritos pararam.

Surreal correu pelo relvado vazio de Briarwood em direcção à porta secreta. A Jóia Cinzenta ao pescoço resplandecia de raiva. Hoje não haveria uma fechadura em Beldon Mor que fosse suficientemente forte para a manter do lado de fora. Contudo, uma vez lá dentro, não fazia ideia de como encontrar aquela que procurava.

A algumas passadas da porta, alguém lhe gritou:

— Depressa! Por aqui. Depressa! — Rodando para a direita, viu Rose a gesticular freneticamente.

— São muito fortes — disse Rose, agarrando Surreal pelo braço. — Kartane e o Tio Bobby estão a deixar que ele extraia a força deles. O quarto está protegido por isso não consigo passar.

— Onde? — Surreal sentiu uma pontada na ilharga por ter estado a correr e o ar gélido da noite ardia-lhe nos pulmões. Isso enfurecia-a ainda mais.

Rose indicou a parede. — Consegues passar?

Surreal olhou para a parede fixamente, a sondar. Dor e confusão. Raiva e desespero. E coragem. — Porque é que não está a oferecer resistência?

— Muitos medicamentos. Está na zona enevoada e não consegue sair. — Rose puxou a manga de Surreal. — Ajuda-a, por favor. Não queremos que morra. Não queremos que se torne uma de nós!

Os lábios de Rose cerraram-se numa linha bem fechada e encolerizada. Surreal alcançou a faca embainhada junto à coxa direita, mas a mão deu a volta e puxou a faca que se encontrava embainhada do lado esquerdo.

A faca de Titian.

Um lento sorriso invadiu os lábios de Surreal. Não retirando os olhos da parede, estendeu a outra mão a Rose. — Vem comigo — disse, ao mesmo tempo que dava um passo para a frente, fundindo-se com a parede.

As paredes exteriores de Briarwood eram largas. Surreal não se apercebeu.

Desta vez... Desta vez iria inundar as paredes de sangue.

Ali estava o escudo, entrelaçado por uma força dupla. Tolos. Duas Vermelhas poderiam tê-la atrasado se tivessem consciência da sua presença. Mas Kartane e o Tio Bobby? Nunca. Nunca.

Surreal libertou uma pequena rajada de energia da Jóia Cinzenta. O escudo à volta do quarto estilhaçou-se.

Surreal saltou. Aterrando no pequeno quarto, rodopiou para encarar o homem na cama. Enquanto investia contra aquele corpo imóvel debaixo dele, levantou a cabeça, o rosto contorcido pelo ódio e pela lascívia.

Investindo, Surreal agarrou o homem pelo cabelo com uma mão e, com a faca de Titian, golpeou-lhe a garganta.

O sangue cantou ao mesmo tempo que as paredes brancas passavam a vermelhas.

Ainda puxando para cima e para trás, Surreal dirigiu a faca até ao coração do homem, erguendo-o da cama com a força da fúria.

O homem caiu no chão, com a faca de Titian ainda espetada no coração e as mãos mutiladas a tactear debilmente durante uma, duas batidas de coração.

Termina a matança.

Acocorando-se sobre o corpo imóvel, Surreal puxou a outra faca para a fazer penetrar no cérebro do homem, pretendendo usar o aço como condutor para a Cinzenta quebrar e destruir o que o invólucro ainda contivesse. Ao erguer o braço para o golpe final, o gemido baixinho de Rose fê-la olhar para a cama.

Entre as pernas de Jaenelle estava uma poça de sangue. Demasiado sangue.

Surreal inclinou-se sobre a cama. O seu estômago deu voltas.

Jaenelle olhava fixamente para o tecto, com os olhos impassíveis e inalteráveis quando Surreal lhes passou a mão à frente. O seu corpo era um aglomerado de nódoas negras; escorria sangue de um corte no lábio.

Surreal olhou de relance para o Senhor da Guerra e reparou nos arranhões no pescoço e ombros. Ora bem. Tinha lutado durante algum tempo.

Surreal procurou sentir-lhe o pulso que estava fraco e a enfraquecer.

Ouviu-se uma batida na porta trancada.

— Greer! — alguém gritou. — Greer, o que é que se passa?

— Porra! — A palavra saiu-lhe com a respiração ao mesmo tempo que trancava a porta com a Cinzenta. Retirando a faca de Titian do coração de Greer, Surreal hesitou por um instante, abanando, de seguida, a cabeça. Não dispunha do minuto que iria demorar. Cortou as cordas que prendiam os tornozelos e os pulsos de Jaenelle à cama, enrolou a rapariga no lençol ensanguentado, ergueu a trouxa aconchegando-a a si e escudando-se com a Cinzenta, bem como à sua preciosa carga, efectuou a passagem através das paredes.

Uma vez no exterior, Surreal desatou a correr. Logo que quebrassem o bloqueio Cinzento e encontrassem Greer, precipitar-se-iam no seu encalço. E, seguindo o odor a sangue, iriam detectá-la.

Só havia um sítio para ir e, uma vez aí, necessitaria de ajuda.

Reunindo toda a sua energia, Surreal enviou um chamamento pela Cinzenta.

Sadi!

Sem resposta. “Sadir

 

— NÃO!

O bramido de Saetan troou pela caverna, abafando o som de passos a correr pelas escadas abaixo.

— SaDiablo! — gritou Andulvar ao saltar para a caverna. — Ouvimos um grito. O que...

Saetan girou sobre si próprio, com os dentes cerrados e a trespassar Draca com os olhos repletos de raiva gélida. — E agora? — disse, demasiado suavemente.

— Iremos pêlos Ventos — disse Prothvar, puxando da faca.

— Não há tempo — refutou Mephis. — Será tarde demais.

— Draca — disse Geoffrey.

Draca não pestanejou nem vacilou perante o olhar fixo e vidrado de Saetan.

— Saetan — iniciou Andulvar. Draca fechou os olhos.

Uma voz inundou-lhes as mentes, um ribombar como se a própria Fortaleza suspirasse. Uma voz masculina.

— De homem para homem, Ssenhor Ssupremo. Agora é a única forma. O ssangue dela foi derramado. Sse morrer agora.. .”

— Caminhará entre as cildru dyathe.

Tanta mágoa naquela voz. “Os sonhos que se tornam reais não se tor- nam cildru dyathe. Senhor Supremo. Perder-se-á para nós.”

— Quem és tu para me dizeres isso? — rosnou Saetan.

— Lorn.”

O coração de Saetan parou por um instante.

Tendes a coragem. Senhor Supremo, para fazer o que tem de ser feito. O outro macho será o vosso instrumento.”

O ribombar suspirante extinguiu-se.

A caverna ficou em completo silêncio.

Virando-se cautelosamente, Saetan encarou novamente a linha de orientação envolta numa bruma avermelhada.

E o Sangue cantará ao Sangue.

Não penses. Sê um instrumento.

Tudo tem um preço.

Fechado na raiva gélida e serena, Saetan reuniu lentamente a energia na teia, a energia nas suas Jóias e a energia de si próprio até conseguir formar uma ligação masculina psíquica de três gumes. Com os olhos e a determinação concentrados na lasca da Jóia, enviou um único e troante chamamento.

“Sadi!”

 

“Sadi!” “Sadir

“Sadi!”

Daemon acordou bruscamente, com a cabeça a latejar, o coração a bater desmedidamente, o corpo a pulsar. Gemendo, massajou a testa com o punho, para a frente e para trás.

E recordou-se.

“Sadi, por favor.”

Daemon franziu o sobrolho. Até esse movimento provocava dores. “Surreal?”

Um arquejo soluçante. “Depressa. Para o Altar."

“Surreal, o que...”

"Ela está a sangrara

Não se recordou de ter realizado a passagem. Num momento estava apertado naquele rectângulo subterrâneo e no seguinte apoiava-se à árvore, com os olhos fechados, aguardando que o mundo parasse de girar. “Surreal, vai para o Altar. Já."

“Os tios virão atrás de nós.”

O Sádico cerrou os dentes e sorriu cruelmente. "Eles que venham.”

A ligação caiu. Surreal já caminhava nos Ventos para o Altar de Cassandra.

Daemon agarrou-se à árvore. O corpo não reagia. As Jóias Negras estavam ainda esgotadas e não lhe podiam valer. Como necessitava de forças, drenou avidamente a energia de reserva na Vermelha de Direito por Progenitura.

“Sadi!”

O poder encerrado naquela voz troante atingiu a força da Vermelha, absorvendo-a tão facilmente como um lago absorve uma selha de água.

Daemon pôs as mãos na cabeça e caiu de joelhos. Aquele poder comprimia como uma faixa de ferro dentro da sua cabeça, ameaçando esmagar as barreiras interiores. Rosnando, debateu-se com a ínfima força que lhe restava.

“ Daemon.”

Imediatamente antes da primeira barreira, era uma raiva gélida que o aguardava, mas agora reconhecia a voz.

"Sacerdote?” Daemon arquejou de alívio. “Pai, recuai um pouco. Não consigo... É demasiado forte.”

O poder recuou - um pouco.

“És o meu instrumento.”

"Não.”

A faixa psíquica apertou-se.

“Não sirvo mais ninguém a não ser a Feiticeira. Nem a vós, Sacerdote.” Daemon disse rispidamente.

A faixa afrouxou, transformou-se numa carícia. “Da mesma forma, também eu a sirvo, Príncipe. É por essa razão que necessito de ti. O seu sangue jorra.”

Daemon pôs-se em pé com dificuldade, respirou com dificuldade. “Eu sei. Está a ser levada para o Altar de Cassandra.” Tinha dores. Fogo do Inferno, que dores tinha.

“Deixa-me penetrar, homónimo. Não te magoarei.”

Daemon hesitou para, de seguida, abrir-se integralmente. Cerrou os dentes para não gritar quando a raiva gélida lhe varreu a sua mente. Começou a ver a dobrar. Sentiu a árvore nas costas. Sentiu também uma pedra fria por baixo de pés descalços.

A pedra desvaneceu-se, mas não na totalidade. Abriu e fechou a mão, num movimento lento. Teve a sensação de estar a usar uma luva por baixo da pele. Também essa sensação se desvaneceu, mas não completamente.

“Estais a controlar o meu corpo” disse Daemon, com um vestígio de ressentimento.

“Não estou a controlar. Unindo-nos desta forma, a minha força será um poço de onde poderás extrair força e eu poderei ver e compreender o que poderemos fazer para a ajudar."

Daemon deu um impulso para se desencostar da árvore. Balançou, mas outro par de pernas mantiveram-no estável. Respirando fundo, entrou no Vento Negro e precipitou-se para o Altar de Cassandra.

Daemon correu pelas ruínas dos quartos exteriores do Santuário. As passadas que ouvira há um momento, tinham parado. E agora uma parede Cinzenta e encolerizada bloqueava o corredor que levava ao labirinto das divisões interiores.

“ Surreal? — Daemon chamou baixinho.

Em resposta, ouviu um soluço. A parede Cinzenta tombou. Daemon correu na sua direcção. Surreal esperava-o, lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo.

— Não cheguei a tempo — chorou aos soluços ao mesmo tempo que Daemon lhe retirava dos braços trémulos a trouxa enrolada no lençol, segurando-a junto ao peito. — Não cheguei a tempo.

Daemon voltou pelo mesmo caminho de onde tinha vindo. — Cassandra deve ter um quarto algur...

“Vai para o Altar, homónimo.”

“Ela precisa...”

“O Altar.”

Daemon virou-se outra vez, correndo para o Altar localizado no centro do Santuário. Surreal correu à frente para abrir o portão perro em ferro forjado da sala onde se encontrava o Altar. Daemon entrou precipitadamente e colocou Jaenelle com todo o cuidado no Altar.

— Precisamos de luz — disse, a voz enrouquecida pelo desespero. De súbito, surgiu fogo encantado suspenso por cima deles. Cassandra estava por detrás do Altar. As Jóias Negras brilhavam. Os olhos cor de esmeralda trespassavam-no.

Daemon olhou para baixo e viu o sangue na sua camisa. “Coragem, homónimo.”

— Ora, ora — disse Cassandra calmamente, não deixando de fixar o rosto de Daemon, — estão ambos aqui.

Daemon acenou com a cabeça enquanto retirava agilmente o lençol.

Cassandra levou uma mão à boca, abafando um grito.

O sangue jorrava entre as pernas de Jaenelle. As mãos de Daemon ficaram escorregadias devido ao sangue enquanto os seus dedos repousavam na união das coxas de Jaenelle, tornando-se um canal para uma gavinha delicada de energia e para a diminuta Arte medicinal que sabia. Procurou, sondou.

As feiticeiras sangravam mais na Noite da Virgem do que qualquer outra mulher e as Feiticeiras de Jóia Negra eram as que mais sangravam. Pagavam a força que possuíam com momentos de fragilidade, momentos em que o equilíbrio de poder era transferido em benefício do macho, deixando-as vulneráveis.

Mas nem isso explicava todo este sangue.

A procurar, a sondar.

Um abalo gélido atingiu-o quando se deparou com a resposta. Seguiu-se uma raiva glacial.

— Usaram algo para a abrir. Os cabrões dilaceraram-na. — Deslizou as mãos pelo tronco, pêlos cortes e feridas. "Até que ponto dominais a Arte medicinal?” Perguntou bruscamente a Saetan.

Tenho conhecimentos profundos, mas um dom de cura menor do que o teu. Não é suficiente, Daemon.”

“Então quem tem?”

Os olhos inexpressivos de Jaenelle fixavam Daemon.

Daemon colocou as mãos em concha sobre o rosto da rapariga.

“ Não — disse Cassandra, circundando o Altar. — Deixa-me. Uma Irmã não representará uma ameaça.

Daemon odiou-a por ter dito aquilo. Odiou-a ainda mais pelo facto de, neste preciso momento, ser verdade.

“Deixa-la tentar, homónimo” disse Saetan, forçando Daemon a recuar.

Cassandra premiu os dedos nas têmporas de Jaenelle e olhou fixamente para os olhos impassíveis. Após um minuto, recuou e abraçou-se a si própria, como se necessitasse de ser reconfortada. Os seus lábios tremiam. — Está fora de alcance — disse, num murmúrio enrouquecido e derrotado.

Não significava nada. Jaenelle era mais forte do que todos eles. Podia descer ainda mais fundo. Não significava nada.

Não obstante, a visão de Tersa do cálice de cristal estilhaçado escarnecia-o. Tu sabes, dizia.. Tu sabes porque não responde.

Não — Daemon não conseguiu distinguir se a negação foi sua ou de Saetan.

Surreal avançou. O seu rosto estava empalidecido, mas os olhos verde-dourados faiscavam de determinação. — A rapariga chamada Rose disse que lhe tinham sido administrados demasiados medicamentos e que Jaenelle não conseguia sair da zona enevoada. Decerto uma mistura abjecta de safframate e de sedativos.

A voz de Saetan soou calma e firme. “Não consigo detectar uma ligação entre o seu corpo e o seu Eu. Ou é muito débil ou ela rompeu-a completamente. Se não a trouxermos de volta agora, iremos perdê-la.”

“Quereis dizer que eu a perderei” Daemon ripostou. “Se o corpo morrer, ainda a tereis, não é verdade?”

Pela ligação, sentiu a dor de um coração despedaçado.

“Não” sussurrou Saetan. “Foi-me dito por alguém sapiente que os sonhos tornados realidade não se tornam cildru dyathe.”

Daemon fechou os olhos e respirou profundamente. “Qual a profundidade do vosso poço. Sacerdote?”

“Não sei.”

“Então, vamos descobrir.” Daemon virou-se para Surreal. Vai lá para fora. Fica a vigiar. Aqueles grandes filhos da puta chegarão em breve. Empata-os, Surreal.”

Surreal olhou de relance para o Altar. — Mantê-los-ei lá fora até que me interpeles. — Deslizou pelo portão em ferro forjado e desapareceu no labirinto de corredores na penumbra.

“ Ide com Surreal — disse Daemon a Cassandra. — Isto é privado. Antes mesmo de poder protestar, Saetan disse:

“Ide, Senhora.”

Daemon aguardou até se certificar de que Cassandra tinha saído. De seguida, estendeu-se sobre o Altar e abraçou Jaenelle.

A energia de Saetan fluiu para Daemon, envolvendo-o.

“Mantém a descida a um ritmo regular” avisou Saetan.

Era tão fácil deslizar para aquele corpo abandonado, tão fácil escorregar naquele vazio até alcançar a profundidade da sua própria teia interior. Manteve-se ali, tentando sondar a profundidade.

Lá muito, muito, muito abaixo, o clarão de um relâmpago iluminou uma névoa negra que rodopiava.

“Jaenelle!” gritou Daemon. “Jaenelle!”

Não houve resposta.

Retesando a ligação para a tornar mais fina e mais extensa, Daemon passou suavemente pelo íntimo da sua teia interior.

“Daemon!” A preocupação de Saetan vibrou pela ligação. Um pouco mais fundo. Um pouco mais fundo. Sentia a pressão, mas continuava a repuxar a ligação. Para baixo para baixo para baixo. Planando pelo vazio, retesando a ligação entre si e Saetan, ficando cada vez mais fina.

“Daemon!" A voz de Saetan soava como um trovão roufenho e distante. "Estás demasiado fundo. Sobe, Daemon. Sobe.”

Um ínfimo tufo psíquico ergueu-se da névoa que ainda se encontrava lá muito abaixo, roçou nele e afastou-se, sobressaltado e intrigado.

“Jaenelle!" gritou Daemon. Não obtendo resposta, enviou um fio masculino. “Sentia-a, Sacerdote! Sentia-a!”

Em simultâneo sentiu um sofrimento atroz pela ligação e percebeu que estava a ser puxado para cima.

“Não!” bradou, debatendo-se contra o que o puxava para cima. “NÃO!”

A ligação rebentou.

Sem o vínculo à energia que Saetan canalizava, tomou-se um receptáculo vazio que a energia do abismo se apressou a encher. Era muito. Demasiado rápido. Demasiado forte.

Gritou ao sentir a mente a ser dilacerada, estraçalhada, estilhaçada.

Em estilhaços, caiu, gritando e desapareceu na névoa negra rasgada por relâmpagos.

Surreal deu os toques finais no feitiço que estava a tecer no corredor que levava às divisões interiores, considerando a ideia de empurrar Cassandra para ver o que aconteceria. Pessoalmente, não tinha nada contra a mulher, mas aquele ar trombudo e os olhares lancinantes que jogava continuamente em direcção à sala do Altar estavam a mexer-lhe com os nervos, já de si à flor da pele.

Recuou e passou as mãos no fundilho das calças. Invocando um cigarro negro, acendeu-o com uma pequena labareda de fogo encantado, deu uma fumada e ofereceu-o a Cassandra, que simplesmente abanou a cabeça e a fulminou com o olhar.

— O que estarão a fazer que tem de ser privado? — disse Cassandra pela décima vez nos últimos minutos.

— Deixai-os em paz, docinho — Surreal disse com brusquidão. — Aquele comentário convencido sobre ela confiar mais em vós do que nele era razão suficiente para vos mandar pela porta fora.

— É verdade — disse Cassandra, iradamente. — Uma Irmã...

— Irmã, uma merda. E não vos oiço a queixar do outro de quem senti uma lufada.

— Confio no Sacerdote.

Surreal deu umas bafarodas no cigarro. Então aquele era o Sacerdote. Não era um macho com o qual desejasse meter-se. Por outro lado, Sadi também não era um macho com o qual ela se quisesse meter.

Deitou fora o cigarro e fê-lo desaparecer. — Vinde, docinho. Vamos criar mais algumas surpresas para os ricos tios de Briarwood.

Cassandra fitou o corredor. — O que é?

— Um feitiço de morte. — Os olhos de Surreal cintilaram com crueldade. — O primeiro que caminhar por ali - o coração explodirá, depois os tomates e a matança terminará com um golpe da Cinzenta. O feitiço é sugado para o corpo para que ninguém consiga detectá-lo. Normalmente junto-lhe um feitiço de retardamento, mas agora queremos atingi-los de uma forma rápida e intensa.

Cassandra pareceu chocada. — Onde foi que aprendeste a criar algo assim?

Surreal abanou a cabeça e dirigiu-se a outro corredor para montar outra armadilha. Não era a altura indicada para dizer a Cassandra que Sadi lhe tinha ensinado aquele feitiçozito em particular. Especialmente porque desejava que o tivesse ensinado a Jaenelle.

Daemon abriu os olhos devagar.

Sabia que estava deitado de costas. Sabia que não se conseguia mover. Sabia, também, que estava nu. Porque é que estava nu?

A névoa rodopiava à sua volta, provocando-o, não lhe oferecendo pontos de referência. Não esperava encontrar nada que lhe fosse familiar, mas até a mente possuía pontos de referência. Contudo, esta era a mente de Jaenelle, não a sua, num local demasiado profundo para ser alcançado pêlos restantes Sangue.

Lembrou-se de ter sentido um vestígio de Jaenelle ao sondar o abismo, lembrou-se de mergulhar a pique, de cair. Estilhaçando-se.

Ur i movimento no nevoeiro. Ouviu um tinido baixinho, como vidro a tocar em vidro.

Virou a cabeça na direcção do som, sentindo que tinha de usar toda a força que possuía para o fazer.

“Não te mexas” disse uma voz melodiosa e lírica, que encerrava também cavernas e céus da meia-noite.

A névoa afastou-se um pouco, permitindo-lhe vê-la em pé, ao lado de lajes em pedra empilhadas, improvisando um altar.

O choque percorreu Daemon em pequenas ondas. Os fragmentos de cristal no altar retiniram em resposta.

“Não te mexas” disse Jaenelle, parecendo irritada ao colocar cuidadosamente mais um fragmento do cálice estilhaçado no respectivo lugar.

Era a voz de Jaenelle, mas...

Era de uma estatura mediana, era esguia e tinha a pele branca. A sua juba loura - não era exactamente cabelo nem exactamente pêlo - estava penteada para cima e para trás, deixando ver o rosto exótico, não ocultando as orelhas delicadamente pontiagudas. No centro da testa podia ver-se um pequeno chifre em espiral. Uma estreita faixa de pêlo louro percorria a coluna, terminando numa pequena cauda loura e branca de corça, que se movia sobre as nádegas desnudadas. As pernas eram humanas e bem proporcionadas, contudo, transformavam-se abaixo da barriga da perna. Ao invés de pés, possuía graciosos cascos de cavalo. As mãos humanas tinham garras recolhidas, como um gato. Ao mudar de posição para colocar outro fragmento, Daemon pôde ver os pequenos e arredondados seios, a curva feminina da cintura e das ancas, o triângulo dourado-escuro de pêlos entre as pernas.

Quem...?

Porém, já sabia. Antes mesmo de Jaenelle caminhar até ele e olhá-lo, antes mesmo de vislumbrar a inteligência selvática presente naqueles olhos cor de safira vetustos e perturbados, já sabia.

Terrível e bela. Humana e Outra. Dócil e violenta. Inocente e sagaz. “Sou a Feiticeira" disse, com uma ligeira palpitação desafiadora na voz. "Eu sei.” A voz de Daemon possuía uma vibração sedutora, um desejo ardente que não conseguia controlar ou disfarçar.

Olhou para ele com curiosidade, encolheu os ombros e regressou ao altar. "Estilhaçaste o cálice. É por isso que ainda não te podes mexer.”

Tentou erguer a cabeça mas desmaiou. Quando conseguiu voltar a ver nitidamente, Jaenelle já tinha quase todo o cálice reconstruído e Daemon apercebeu-se de que não era o mesmo que Tersa lhe tinha mostrado.

“Esse não é o teu cálice” gritou, feliz, tão aliviado que nem se preocupou por a ter sobressaltado ao ponto de ela cerrar os dentes e rosnar-lhe.

“Não, macho tonto e teimoso, é o teu.”

Fê-lo ficar um pouco mais circunspecto, mas a resposta que Jaenelle deu soava tanto a Jaenelle, a criança, que também não se importou.

Lentamente, apoiou-se num cotovelo. “Então o teu cálice não se estilhaçou.”

Escolheu outro pedaço, colocou-o no sítio. Os olhos encheram-se de desespero e a voz ficou demasiadamente calma. “Estilhaçou-se.”

Daemon deitou-se e fechou os olhos. Levou algum tempo a reunir a coragem para lhe perguntar:

“Consegues restaurá-lo?”

Não respondeu.

Logo a seguir, Daemon deixou-se ir. Minutos, anos, o que interessava? À frente dos seus olhos fechados, rodopiavam imagens. Corpos em carne e osso e sangue. Teias que delimitavam as fronteiras interiores. Cálices de cristal que continham as mentes. Jóias para poder. As imagens rodopiavam e alternavam-se, uma e outra vez. Quando, por fim, se imobilizaram, formaram o triângulo de quatro lados dos Sangue. Três lados - corpo, cálice e Jóias - encerravam o quarto lado, o Eu, o espírito que une os outros três.

As imagens voltaram a rodopiar, transformando-se em nevoeiro. Dentro de si, sentiu algo a colocar-se no devido lugar enquanto o nevoeiro ganhava a forma de um cálice de cristal, os pedaços estilhaçados cuidadosamente colocados. Uma névoa negra enchia as fendas entre cada pedaço, bem como os locais onde faltavam ínfimos estilhaços.

Sentiu-se debilitado e frágil.

Um dedo tocou-lhe no peito.

Uma fina camada de névoa negra revestiu o cálice, no interior e no exterior, formando um escudo delicado à sua volta.

O dedo voltou a tocá-lo. Com mais força.

Ignorou-o.

O toque que se seguiu tinha uma garra para fora.

Praguejando, levantou-se repentinamente, ficando apoiado nos cotovelos. Esqueceu-se do queria dizer pois Jaenelle encontrava-se escarranchada sobre as suas coxas e Daemon podia jurar que tinha visto pequenas faíscas de relâmpago na profundidade daqueles olhos cor de safira.

“Macho rabugento disse, tocando-lhe de novo no peito. “O cálice está de novo inteiro, mas ficou muito fragilizado. Ficará reforçado se o mantiveres protegido durante o tempo suficiente para convalescer. Tens de levar o corpo para um sítio seguro até o cálice sarar. “

“Não saio daqui sem ti.”

Abanou a cabeça. "A zona enevoada é demasiado obscura, demasiado profunda para ti. Não podes ficar.”

Daemon cerrou os dentes. “Não saio daqui sem ti.”

“Macho rabugento e teimoso! “

“Consigo ser tão rabugento e teimoso como tu.

Jaenelle fez-lhe uma careta.

Daemon respondeu de forma idêntica.

Jaenelle pestanejou, ofendida, e, de seguida, começou a rir-se.

Aquele riso argentino e aveludado provocou dor no coração de Daemon, fazendo-o estremecer.

Anteriormente, via a Feiticeira sob a criança Jaenelle. Neste momento, via Jaenelle sob a Feiticeira. Via agora a diferença - e a inexistência de diferenças.

Olhou para ele, com os olhos repletos de dócil tristeza. Tens de voltar, Daemon.”

"Também tu” disse, baixinho.

Abanou a cabeça. “0 corpo está moribundo."

“Podias curá-lo.”

Abanou a cabeça com mais veemência. “Deixa-lo morrer. Deixa que fiquem com o corpo. Não o quero. Este, agora, é o meu sítio. Posso vê-los a todos quando aqui estou. Todos os sonhos.”

“Que sonhos?”

“0s sonhos na Luz. Os sonhos nas Trevas e nas Sombras. Todos os sonhos.” Hesitou. Pareceu baralhada. “És um dos sonhos na^Luz. Um sonho bom.”

Daemon engoliu com dificuldade. Era assim que os via? Como sonhos? Ela era o mito vivo, os sonhos tornados realidade.

Tornados realidade.

“Não sou um sonho, Senhora. Sou real.”

Os olhos de Jaenelle reluziram. “0 que é real?” Perguntou. Vejo coisas belas, ouço-as, toco-lhes com a mão corpórea e dizem rapariga mal comportada por inventar histórias, essas coisas não são reais. Vejo coisas más, cruéis, trevas distorcidas que corrompem a terra, trevas que não são as Trevas e dizem rapariga mal comportada por inventar histórias, rapariga mal comportada por dizer mentiras. Os tios dizem que ninguém irá acreditar numa rapariga com problemas mentais, por isso riem-se e ferem o corpo para que eu me retire para a zona enevoada para ver os que são amáveis, os belos, deixando-lhes gelo que queima ao ser tocado.” Abraçou-se a si própria, balançando para trás e para a frente.” Não me querem. Não me querem. Não me amam.”

Daemon abraçou-a e apertou-a bem junto a si, balançando-se com ela enquanto as palavras continuavam a jorrar. Ouviu a solidão e a confusão. Ouviu os horrores de Briarwood. Ouviu excertos de histórias sobre amigas que pareciam reais mas não eram. Ouviu e compreendeu o que ela não compreendia, o que não conseguia compreender.

Se não restaurasse a mente estilhaçada, se não voltasse a estabelecer ligação com o corpo, se não voltasse a formar o triângulo de quatro lados, ficaria aqui encurralada, perdendo-se e enredando-se nos fragmentos de si própria, a ponto de nunca mais conseguir encontrar uma forma de alcançar o que mais amava.

“Não” disse carinhosamente quando, por fim, parou de falar, “não te querem. Não te amam, não te conseguem amar. Mas eu amo-te. O Sacerdote ama-te. Os belos e amáveis - eles amam-te. Esperámos tanto tempo por ti. Precisamos de ti junto de nós. Precisamos que caminhes entre nós.”

“Não quero o corpo” choramingou. “Dói.”

“Nem sempre, querida. Nem sempre. Sem o corpo, como irás ouvir o canto de um pássaro? Como irás sentir a chuva morna de Verão na pele? Como irás saborear os bolinhos de avelã? Como irás caminhar pela praia ao pôr-do-sol e sentir a areia e a rebentação debaixo dos teus... cascos?”

Sentiu que a sua disposição se aligeirava antes de ouvir a risadinha e a fúngadela. Ao levantar a cabeça para olhá-lo, as suas coxas deslocaram-se no preciso local onde estava sentada sobre Daemon.

As virilhas incendiaram-se e Daemon ficou excitado.

Jaenelle inclinou-se para trás e observou-o a avultar e a empinar.

Daemon pôde ver a inocência no rosto, a curiosidade de um gatinho. Viu uma silhueta feminina que, embora não completamente desenvolvida, também já não era uma criança.

Cerrou os dentes e praguejou em silêncio quando Jaenelle começou a afagá-lo levemente.

Acariciar. Observar a reacção como se nunca tivesse visto um homem a ficar excitado. Acariciar. Observar.

Queria tirá-la dali. Queria tirá-la de dma de si. Estava a matá-lo. Era maravilhoso.

Ao alcançar-lhe a mão para que parasse, Jaenelle disse, com uma voz calma e surpreendida:

“A tua masculinidade não tem espinhos.”

A raiva gelou-o. Os fragmentos do cálice retiniram ao libertar a fúria que aqui não tinha escoamento. Por um momento tentou acreditar com todas as suas forças que ela estaria a compará-lo a outra espécie de machos, mas conhecia demasiado bem os machos depravados que sentiam prazer em quebrar uma jovem e forte feiticeira na Noite da Virgem.

Mãe Noite! Não admirava que não quisesse voltar.

Jaenelle examinou-o, intrigada. “A masculinidade do corpo tem espinhos?”

Daemon engoliu a raiva. O Sádico transformou-a em seda mortífera. “Não" trauteou. “A minha masculinidade não tem espinhos.”

“Macio” disse Jaenelle ao afagar e explorar.

As mãos de Daemon sussurravam sobre as coxas e sobre as ancas de Jaenelle. "Poderia proporcionar-te prazer" trauteou suavemente.

"Prazer?" Os olhos iluminaram-se de curiosidade e de expectativa.

A confiança infantil apunhalou-o no coração.

Jaenelle deve ter-se apercebido de alguma mudança em Daemon. Antes de a conseguir impedir, Jaenelle explodiu, pontapeando-lhe a coxa quando saltou para longe dele. Fora do alcance de Daemon, abraçou-se a si própria e olhou furiosamente para ele.

"Queres acasalar com o corpo. Tal como os outros. Queres que eu a cure para que possas enfiar a tua masculinidade dentro dela.”

Daemon foi inundado de raiva. "Quem é elaï” Perguntou, com excessiva afabilidade.

“Jaenelle.”

"Tu és a Jaenelle.”

"SOU A FEITICEIRA!”

Estremeceu com o esforço que fez para não investir sobre ela. "Jaenelle é Feiticeira e a Feiticeira é Jaenelle.”

"Nunca me querem." Socou o peito com o punho. “Não a mim. Não me querem dentro do corpo. Querem acasalar com Jaenelle, não com a Feiticeira."

Daemon sentiu que Jaenelle se fragmentava cada vez mais. “Esta é a Feiticeira" gritou-lhe. "Era esta que vivia dentro do corpo. Queres acasalar com a Feiticeira?"

A fúria fê-lo disparar violentamente. “Não, não quero acasalar contigo. Quero fazer amor contigo.

O que quer que fosse responder, ficou por dizer. Ficou a olhar para ele, de olhos arregalados, como se fosse algo desconhecido. Deu um passo vacilante na direcção de Daemon.

Vai morder o isco ciciou o Sádico dentro de si. Vai morder o isco e caminhar para a bela armadilha.

Outro passo.

Seda mortífera, tão mortífera.

Outro.

Uma encantadora armadilha compôs-se de amor e mentiras... e de verdades.

“Esperei setecentos anos por ti” trauteou. "Por ti. “ Os lábios formaram um sorriso sedutor. “Nasci para ser teu amante.”

“Amante?”

Quase ao alcance.

Sem o corpo, as gavinhas de sedução não eram tão potentes, contudo, pôde observar a alteração nos olhos de Jaenelle quando a atingiram.

Ainda assim, pairava fora do seu alcance. “Então para que queres o corpo?”

“Porque esse corpo pode conter-me para que te possa proporcionar prazer” observou-a enquanto ponderava. "Aprecias o meu corpo?”

“É lindo” disse, com relutância, acrescentando apressadamente: “mas aqui tens a mesma aparência. E a Feiticeira não pode conter a tua masculinidade."

O Sádico estendeu a mão. “Vamos descobrir?"

Jaenelle pegou-lhe na mão e instalou-se graciosamente sobre Daemon, escarranchando as coxas. Depois olhou para ele, expectante.

Daemon sorria enquanto as suas mãos exploravam Jaenelle, relaxantes e excitantes. Quando os dedos tocaram na parte de baixo da cauda de corça, ela guinchou e saltou. Voltou a posicioná-la ainda mais junto a si, passou um braço à volta das coxas de Jaenelle para que não se movesse enquanto a outra mão deslizava pela juba loura, segurando-lhe a cabeça com a mão em concha. E foi então que a beijou. Um beijo suave. Um beijo abrasador. Jaenelle suspirou quando Daemon lhe acariciou os seios. Estremeceu quando lhe lambeu o ínfimo chifre em espiral.

Quando estava confiante de que tinha mordido o isco, sussurrou:

"Querida, tens razão. Este local é demasiado obscuro para mim. O cálice está muito frágil e estou... em sofrimento."

Olhou para ele com pesar, mas acenou afirmativamente com a cabeça.

"Espera" disse quando Jaenelle tentou retirar-se. “Podes subir comigo? Para a minha teia interior?” Lambeu-lhe a orelha. A sua voz transformou-se num ronronar palpitante. “Aí ainda estaríamos seguros."

Dominou a premência que sentia e aguardou pela resposta. Não havia forma de dizer quanto tempo se tinha passado no Altar, não havia forma de saber se os corpos deles ainda se encontrariam ali, não havia forma de saber se o dela ainda tinha vida, não havia forma de saber se aqueles monstros de Briarwood tinham chegado ao Santuário. Não havia forma de saber o que o seu corpo estaria a fazer.

Tentou afastar aqueles pensamentos. Agora não tinha ligação; o Sacerdote tinha. O que quer que estivesse a fazer, era problema de Saetan.

O ímpeto da subida apanhou-o de surpresa. Agarrou-a no preciso momento em que o envolveu com as pernas.

“Amante” disse, sorrindo para Daemon. E deu uma risadinha.

Daemon perguntou-se se, tendo errado toda a sua vida naquela estranha mescla de inocência e conhecimento descomunal, saberia qual o significado da palavra.

Não importa ciciou o Sádico. Mordeu o isco.

Subiram até se encontrarem bem acima, na Negra, confortavelmente acima da teia interior de Daemon.

“Sentes-te melhor?” perguntou timidamente.

“Muito melhor” respondeu, ajustando a sua boca à dela.

Beijou-a até sentir que estava descontraída e, de seguida, Daemon voltou a suspirar.

Depressa ciciou o Sádico.

Encostou a testa à dela e gritou quando o ínfimo chifre em espiral o picou.

Jaenelle deu umas risadinhas e beijou-lhe a testa. “Com beijinhos passa?”

Por uns instantes, foi inundado pela repulsa. Era a voz de uma criança. A voz de uma criança muito nova.

Olhou por cima do ombro de Jaenelle, tentando conciliar a silhueta feminina enrolada à sua volta com aquela voz e vislumbrou fragmentos de cristal estilhaçado que flutuavam pela Negra.

Pedaços dela. Pedaços e pedaços dela. Uma parte dela ainda estava intacta. Tinha de estar. A parte que continha o conhecimento da Arte. De que forma poderia tê-lo reunido, se assim não fosse? Mas se continuasse a deslizar para dentro e para fora daqueles fragmentos...

Como Tersa. Pior do que Tersa.

“Daemon?”

A voz da meia-noite, com uma intensidade implacável.

Lembra-te desta faceta dela avisou o Sádico. Ignora o resto.

Daemon sorriu-lhe. "Amante” disse, mordiscando-lhe o lábio inferior. Foi então que usou todos os truques que alguma vez aprendera para serenar o isco.

Mas não deixou que erguesse as ancas para o embainhar.

"Ainda está muito escuro” arquejou quando ela começou a lamuriar-se e a enredar-se. “Vamos até à Vermelha. É a minha de Direito por Progenitura.”

Jaenelle tentou livrar-se das gavinhas de sedução que Daemon tinha tecido à sua volta, contudo, tinha fiado bem a armadilha.

“Ali poderemos aceder a uma cama” aliciou.

Ela estremeceu. Choramingou. Nesse som, não existia prazer. Surgiu uma imagem. Uma cama suficientemente grande para o jogo. Uma cama com tiras de couro ligadas aos cantos para prender pulsos e tornozelos.

Daemon dissolveu a imagem, substituindo-a pela sua. Um quarto espaçoso com tapetes macios e espessos. Uma cama larga, com o dossel em escumilha e veludo. Lençóis de seda e cobertas fofas. Montes de almofadas. A única luz provinha de uma lareira que ardia lentamente e de dúzias de velas perfumadas.

Iludida pelo romance, suspirou e fundiu-se com Daemon. Manteve a imagem, provocando, tentando, enquanto subiam para a Vermelha..

Quando se instalaram entre a seda e as almofadas, Daemon tentou alcançar alguma ligação - ao seu corpo, ao Sacerdote, a qualquer coisa – e sufocou de frustração. Tão perto. Tão perto e não havia nada onde pudesse tocar para terminar com isto - à excepção da energia que Jaenelle tinha formado à volta do cálice para manter os fragmentos juntos.

Acariciando-a e relaxando-a, amando-a e mentindo-lhe, manteve-a concentrada no prazer ao mesmo tempo que sugava a energia que formava o revestimento no interior do cálice.

O revestimento encarquilhou-se. Os fragmentos do topo oscilaram mas mantiveram-se. Era suficiente.

Tentou alcançar Saetan. Deparou-se com uma fadiga extrema e uma fúria de morte.

Investiu primeiro. “Silêncio, Sacerdote.” Aguardou uns instantes, extraiu um pouco mais da energia que mantinha o cálice. “Utilizai o que possais para formar uma linha de orientação. E preparai-vos para uma liça. Levo-a de volta.”

De seguida, tentou alcançar o seu corpo. Estava ainda deitado no Altar, junto a Jaenelle. Fortaleceu a ligação o suficiente para que o corpo imitasse os seus movimentos.

Sorrindo, Daemon rolou lentamente para cima de Jaenelle. Com delicadeza, prendeu-lhe as mãos junto a cada um dos lados da cabeça.

Beijou-a, aninhou-se nela ao mesmo tempo que subiam mais e mais. Jaenelle roçava-se em Daemon. “Amante” gemeu. . “Em breve" mentiu. “Em breve.” A subir mais e mais.

Estava a breves momentos de regressar ao seu corpo quando Jaenelle arregalou os olhos, sentindo a armadilha à sua volta. “Não!” gritou.

Cerrando os dentes, Daemon atirou com os dois de volta aos respectivos corpos.

Os gritos de Jaenelle encheram a sala do Altar. O sangue jorrava entre as suas pernas.

— Cura o corpo, Jaenelle! — gritou Daemon, lutando para que ela mantivesse a ligação ao corpo enquanto Jaenelle tentava libertar-se dele. Cura-o!

O medo de Jaenelle esmagava-lhe a mente.

  • Mentiste-me. MENTISTE!"

“Teria dito o que quer que fosse, feito o que quer que fosse paia te ter de volta" bramiu, as unhas a cravarem-se para a segurar. "Cura-o.”

Deixa-me ir deixa-me ir deixa-me ir."

Os corpos lutaram. Os Eus lutaram. Enquanto se emaranhavam furiosamente, Daemon sentiu Saetan a passar a linha de orientação à volta da perna de Jaenelle.

Um piparote do poder que continha em si tê-lo-ia despedaçado, tê-la-ia libertado. Ao invés, implorou, suplicou.

“Daemon, por favor. És meu amigo. Por favor.” Magoava ouvi-la suplicar.

"Criança-feiticeira." A voz de Saetan, rouca e trémula. Jaenelle parou de lutar. "Saetan?”

“Não te queremos perder, criança-feiticeira.”

“Não me irão perder. Posso vê-los a todos na zona enevoada.”

As palavras de Saetan chegaram devagar, como se cada uma delas o ferisse. “Não, Jaenelle. Não nos verás na zona enevoada. Se não sarares o teu corpo, Daemon e eu seremos destruídos.”

A respiração de Daemon silvou ao passar entre os dentes. O Sádico não era o único que conseguia tecer uma armadilha mortal.

O pranto de Jaenelle inundou-lhes as mentes, inundou-lhes os ouvidos quando o corpo da criança fez eco do som.

Sentiu uma onda gigante de poder negro a subir rapidamente, vinda do abismo, sentiu-a a atingir o jovem corpo que segurava nos braços, sentiu-a a curar a carne dilacerada.

O corpo relaxou, ficou flácido.

Daemon ergueu uma mão trémula para lhe acariciar o cabelo louro.

— Estou doente — disse Jaenelle, com a voz abafada contra o peito de Daemon.

— Não, querida— corrigiu com doçura. — Estás ferida. É diferente. Mas vamos levar-te para um sítio seguro e...

O Santuário estremeceu quando alguém libertou uma Jóia escura. A voz zangada de um macho converteu-se num berro aterrorizado.

Jaenelle gritou. Daemon mergulhou no abismo um segundo a seguir a ela, alcançando-a na Vermelha, quando tentava abandonar o corpo.

Sugando o poder do cálice, não a largou.

Os fragmentos oscilaram.

“Não, Daemon” guinchou Jaenelle. “Não podes. Não podes.” De súbito, tombou contra o peito de Daemon. “Curei o corpo. Ainda está magoado, mas irá convalescer. Deixa-me ir. Por favor, deixa-me ir. Podes ficar com o corpo. Podes usá-lo.”

Daemon apertou-a contra o peito. Pousou o rosto na juba loura. “Não, querida. Ninguém irá usar o teu corpo a não ser tu mesma.” Fechou os olhos e apertou-a com força. “Ouve, minha Senhora Feiticeira. Menti-te e lamento. Lamento muito. Mas menti porque te amo. Espero que um dia possas compreender.”

Encostou-se a ele, nada dizendo.

“Ouve-me” disse Daemon suavemente. “Vamos levar o teu corpo daqui. Mantê-lo-emos a salvo. Existe algum ponto de referência na zona enevoada que possas encontrar a qualquer momento?”

Fatigada, acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

"Tens uma linha de orientação à volta da perna. Retira-a e ata-a a esse ponto de referência. Dessa forma, quando te sentires preparada, indicar-te-à o caminho de regresso.” Demorou um instante para verbalizar o que faltava. “Por favor, Jaenelle, por favor reconstrói o cálice. Procura os fragmentos e junta-os. Volta ao corpo quando o Sacerdote te comunicar que é seguro. Cresce e vive uma vida magnífica. Precisamos de ti, Senhora. Volta e vive entre aqueles que te amam, aqueles que te desejaram ardentemente.”

Largou-a.

Hesitou por um momento antes de saltar para longe dele. Quando estava a alguma distância, voltou-se.

Daemon engoliu com dificuldade. Tenta recordar que te amo. E se conseguires, por favor, perdoa-me.”

Sentiu que Jaenelle tocava levemente na sua mente, sentiu o seu poder negro a reconstruir o fino revestimento que o mantinha intacto.

Fechou os olhos cor de safira.

Observou-a a mudar de forma.

Quando abriu os olhos, Jaenelle estava à sua frente e, embora não fosse exactamente uma mulher, já não era uma criança. “Daemon” disse, com uma voz que era como uma carícia suave e suspirante.

Mergulhou no abismo e o coração de Daemon partiu-se.

Realizou a subida uma última voz e tombou para o seu corpo.

Ouviu vozes de machos zangados que vinham das divisões exteriores.

Ouviu gritos de dor. Ouviu pedras a explodir. Ouviu o chiar de energia a embater noutra energia.

Não se mexeu. Não tentou. Deitou a cabeça no peito de Jaenelle e chorou em silêncio, amargamente.

“Daemon” Saetan roçou a mente de Daemon e recuou. “Daemon, o que fizeste?”

“Deixei-a ir” disse Daemon a chorar. “Disse-lhe que lhe transmitiríeis quando fosse seguro regressar. Indiquei-lhe a linha de orientação. Deixei-a ir. Sacerdote. Doces Trevas, deixei-a ir.”

0 que fizeste a ti próprio?”

“Estilhacei o cálice. Menti-lhe. Seduzi-a para que confiasse em mim e menti-lhe.”

Um toque breve, delicado e hesitante. “Ela compreenderá, homónimo. Com o tempo, irá compreender.” Saetan desvaneceu-se, regressou. “Não consigo manter a ligação por mais tempo. Cassandra abrirá o portão e levar-te-á...”

Saetan desapareceu.

Daemon limpou o rosto à manga. Um pouco mais. Tinha de se aguentar mais um pouco. Contudo, sentia-se tão vazio, tão incrivelmente sozinho.

Os sons de luta aproximaram-se. Cada vez mais perto.

Cassandra entrou de rompante na sala. — Não temos mais tempo.

Daemon deslizou do Altar e sucumbiu.

Ignorando-o, Cassandra correu para o Altar e passou a mão sobre a cabeça de Jaenelle. — Não a trouxeste de volta.

A raiva de Cassandra rompia o frágil revestimento de energia que mantinha o cálice, deixando pontos fracos.

— O corpo está a convalescer — disse Daemon com a voz rouca. — Se o mantiverdes seguro, irá sarar. E...

Cassandra fez um gesto brusco e altivo. Daemon retraiu-se. A sala do Altar ficou desfocada. Os sons tornaram-se abafados. Debateu-se para conseguir focar. Debateu-se para se pôr de pé.

Quando, por fim, se conseguiu apoiar no Altar, o lençol ensanguentado estava no chão, Jaenelle estava embrulhada num cobertor limpo, as velas negras estavam acesas e a parede por detrás do Altar estava a transformar-se numa bruma.

— De quanto tempo precisais? — inquiriu Daemon. Cassandra segurou Jaenelle nos seus braços, cuidadosamente e olhou de relance para a bruma. — Não atravessas o Portão?

Queria ir com elas. Doces Trevas, como precisava de ir com elas. Mas Surreal continuaria a lutar até Daemon lhe dar um sinal ou seria destruída.

E, Lucivar.

Daemon abanou a cabeça. — Ide — murmurou, com lágrimas nos olhos. — Ide.

— Conta até dez — disse Cassandra. — Depois destrói as velas. Não conseguirão abrir o Portão sem elas. — Segurando Jaenelle firmemente, entrou na bruma e desapareceu.

Uma voz masculina gritou:

— Está ali uma luz!

Surreal entrou precipitadamente na sala do Altar. — Mandei-lhes uns quantos escudos para os atrasar, mas, a não ser algo que destrua este local, não se deterão.

…quatro, cinco, seis...

O Santuário abanou com a detonação da energia combinada de várias Jóias, contra um dos escudos.

— Sadi, onde...

Outra detonação de energia.

— Maldição — silvou Surreal, desembainhando a faca. As vozes encolerizadas aproximaram-se. ... oito, nove, dez.

Daemon tentou fazer desaparecer as velas negras. Nem esse poder lhe restava. — Faz desaparecer as velas, Surreal. Depressa. Surreal fez desaparecer as velas, agarrou Daemon pelo pulso e arrastou-o pela parede de pedra no momento em que os tios de Briarwood alcançaram o portão em ferro forjado da sala do Altar.

Não estava preparado para uma longa passagem por paredes de pedra e as tentativas de Surreal para o proteger não foram suficientes. Quando, por fim, saíram pela parede exterior, as roupas de Daemon estavam em farrapos e grande parte da pele tinha sido esfolada, estando agora em carne viva.

— Merda, Sadi — disse Surreal, segurando-o quando as pernas cederam. Fazendo uso da Arte para o manter direito, examinou-lhe o rosto.

— Está a salvo?

A salvo? Precisava desesperadamente de acreditar que estava a salvo, que iria regressar.

Começou a chorar.

Surreal abraçou-o. — Anda, Daemon. Vou levar-te para a casa de Deje. Jamais se lembrarão de te procurar numa casa da Lua Vermelha de Chaillot.

Antes que Daemon tivesse oportunidade de dizer o que quer que fosse, Surreal entrou na Teia Verde, levando-o com ela, primeiro dirigindo-se a Pruul, depois dando meia volta noutras Teias e, finalmente, dirigindo-se a Chaillot e à casa da Lua Vermelha de Deje.

Daemon agarrou-se bem a Surreal enquanto ela voava pêlos Ventos, demasiado enfraquecido para discutir, demasiado extenuado para se importar. Contudo, o seu coração... O seu coração agarrou-se ferozmente à carícia suave e suspirante de Jaenelle ao pronunciar o seu nome.

Tudo tem um preço.

 

 

                                                                         Anne Bishop

 

 

 

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