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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHO DA LUA / Shannon Drake
FILHO DA LUA / Shannon Drake

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Todo pesadelo começa como um sonho...
Na cripta de uma antiga igreja nos arredores de Paris, um grupo de arqueólogos encontra uma tumba secular e acredita ser aquilo a descoberta do século. Mas algo dá errado. As forças do mal são liberadas e só existe uma pessoa capaz de detê-las... De repente, Tara Adair vê sua visita a Paris transformar-se em algo sinistro. Ao ouvir os gritos assustadores vindos da tumba, ela sabe que precisa fugir... Fugir de um desconhecido misterioso e sensual e de um lendário predador que vaga pela noite... Na luxuosa propriedade onde Tara busca refúgio, o misterioso homem reaparece, prometendo protegê-la de um mal nunca antes visto. E Tara terá de confiar nele, porque o inimigo está à espreita, e não descansará enquanto não se apossar dela, de corpo e alma...

 

 

 

 

 

 


As trincheiras Alemanha Setembro de 1944
Uma bomba explodiu a menos de três metros da trincheira. Apesar dos dias e noites passados naquele buraco infernal na terra, alguns homens ainda se assustaram e pularam ao ouvir o som.
Outros mal se moveram.
Eles defendiam o front havia quase uma semana, esperando por reforços. Mensagens repetidas informavam que a Força Aérea os resgataria, mas nenhum auxílio havia chegado. Alguns soldados estavam ressentidos, mas Brandon Ericson não respondia aos comentários amargurados. Não tinha dúvida de que a Força Aérea viria em seu socorro.
Uma espécie de instinto dava-lhe a certeza de que os paraquedistas tinham saltado do avião com boas intenções. No entanto, alguns ficaram presos nas árvores. Outros foram abatidos a tiros ou tinham sido capturados e eram mantidos em campos de prisioneiros. As dificuldades que enfrentavam não eram resultado de falta de estratégia ou coragem. Tudo se resumia à brutal determinação de um inimigo, que insistia em conquistar toda a Europa.
- Nossa! Essa foi perto! - murmurou Ted Myers, fazendo o sinal da cruz.
Ao lado dele, Jimmy Decker começou a tremer. O que começara como um leve tremor transformou-se em um forte espasmo. Jimmy caiu de bruços, chocando-se contra a parede de terra que os protegia, depois foi lançado para trás, e o movimento se repetiu diversas vezes.
- É melhor tirá-lo da linha de frente - o tenente falou em voz baixa. - Levem-no para a enfermaria.
- Não temos mais enfermaria, tenente - respondeu o sargento Walowski. - Ela foi destruída ontem à noite.
- Os médicos já improvisaram outro local, Myers. Tire Decker daqui - o tenente insistiu. Logo a noite cairia. Até lá, haveria mais fogo cruzado. Depois disso, o inimigo correria de volta a sua posição. Ele não precisava de ninguém desabando na linha. Defendiam aquela posição havia quase duas semanas, sob condições adversas, e o sucesso era decorrente, em grande parte, da incompetência dos atiradores inimigos.
Mas a resistência não seria mantida por muito tempo. O inimigo enviaria mais tropas todas as noites. Mesmo que matassem cinqüenta alemães para cada soldado aliado morto, acabariam caindo. A menos que os reforços chegassem depressa...
Um assobio sibilante cortou o ar.
- Cobertura! - o tenente ordenou.
Myers, que corria com Decker em estado de choque, abaixou-se e continuou correndo. Os homens na trincheira se encolheram.
A bomba não explodiu tão perto quanto a anterior.
- Mantenham-se abaixados! - avisou o tenente. A primeira explosão foi seguida por uma segunda, e por uma terceira. Na última, uma chuva de terra caiu sobre os homens já imundos, mas não houve gritos de dor, nada que indicasse morte entre o batalhão já tão reduzido.
- Eles virão com a escuridão. Lembre-se de que temos pouca munição - disse o tenente. - Esperem para atirar só quando eu ordenar.
- Jamais os veremos nessa sujeira - respondeu Lansky. Era uma espécie de veterano. Apesar de ter cinqüenta anos na época da eclosão da guerra, ele se alistara assim mesmo, dois dias depois de o filho ter sido morto na Itália.
- Todo tiro é importante - o tenente repetiu. Tinha menos da metade da idade de Lansky. Ele havia testemunhado a ação no fim da Primeira Guerra. Aprendera muito sobre cavar trincheiras, e sempre dava boas sugestões.
- Eles se aproximam - Lansky disse. - Eu sinto.
O tenente assentiu. Um momento depois, ficou comprovado que Lansky estava certo. Do meio da escuridão, da terra, e da fumaça, soldados apareceram. Sabendo que podiam ser vistos, eles emitiram gritos estranhos, como antigos guerreiros. A batalha era algo que nunca mudava, pensou o tenente. Mudavam apenas a época, o local, o motivo. Talvez os homens precisassem gritar, correr ao encontro das balas. Um grito de guerra devia ser o último aviso de um homem para o céu, ou o inferno.
- Fogo! - gritou o tenente.
A terra pareceu se abrir com o estrondo das armas. A coluna de soldados que corria na direção deles se desfez. Os sinistros gritos de guerra transformaram-se em urros de dor enquanto homens caíam e morriam. Entretanto, no ponto em que a linha se desfizera, mais homens surgiam correndo, e o grito de guerra parecia subir ao céu escuro.
- Fogo! - o tenente repetiu.
Uma nova rajada explodiu na noite, e mais homens caíram. Mas, como soldados fantasmas, o inimigo continuava se aproximando, novos soldados preenchendo os espaços deixados pelos amigos mortos. A linha se aproximava cada vez mais, e os inimigos também atiravam.
- Fogo!
Outro estrondo. Havia tanta pólvora e fumaça no ar que era impossível ver alguma coisa. Eles ouviram gritos e souberam que mais homens haviam caído, e outros estavam ainda mais próximos.
Um soldado surgiu se atirando no interior da trincheira, a arma apontada para Lansky. O tenente atacou o inimigo com o cabo do fuzil, acertando-o várias vezes na cabeça e na nuca. O homem caiu antes de conseguir atirar, mas outros se aproximavam.
- Atirem a esmo! - o tenente gritou.
Um soldado inimigo foi alvejado e caiu na trincheira.
Lansky empurrou o homem morto para o lado e continuou atirando.
Então, um estridente urro cortou a noite. Não era o grito de guerra do inimigo. Sinistro, sobrenatural, o som lembrava os condenados que sofriam no fundo do inferno. Foi tão assustador, tão profundo, tão inesperado, que, por um momento, nenhum dos lados atirou.
O silêncio era tão fantasmagórico quanto o grito que os paralisara.
MacCoy, o garoto de Boston, falou em voz baixa.
- Que todos os santos nos abençoem e nos protejam!
E o inferno se abriu. Os tiros recomeçaram, acompanhados por gritos de guerra e dor, pelo som das balas cortando a escuridão.
Então... O trovão. O estrondo. Como se a cavalaria se aproximasse...
Os gritos vinham dos soldados alemães, mas ninguém podia ver nada no meio de tanta fumaça, pólvora e terra.
- Senhor abençoado! - Lansky gritou, e foi como uma prece e uma maldição, porque um soldado alemão surgiu da névoa coberto de sangue, caindo sobre eles. Os olhos buscaram o homem caído.
E foi quando as criaturas surgiram.
Lobos. Mas não eram lobos. Alguns eram prateados, outros negros ou de um tom acastanhado. Tinham a forma e a estrutura de cães selvagens, mas eram maiores, e os olhos eram... diferentes. Os olhos viam e sabiam tudo o que se passava quando eles saltaram, quase como se flutuassem no ar, sobre os soldados protegidos pela trincheira. O ataque foi inesperado.
- Fogo! Fogo! - o tenente gritava.
Armas explodiram, animais caíam, homens morriam, as trincheiras se tornaram um poço de sangue, uniformes alemães, americanos, vestes ensangüentadas, rasgadas, destruídas além de qualquer chance de reconhecimento.
- Fogo! Fogo! Fogo! - continuava gritando o tenente. Os soldados obedeciam.
Ao lado do tenente, o corpo de Lansky foi sacudido por um tranco. Ele o viu cair diante da trincheira, ao mesmo tempo em que outro membro apavorado e ensangüentado do exército alemão também caía, os olhos abertos para a morte.
- Lansky! - chamou, arrastando-se no chão de terra, determinado a levar o parceiro de volta à relativa segurança da trincheira. Balas passavam bem perto de sua cabeça. Ele foi atingido. Não sabia o que o atingira. Sentia um peso esmagador sobre as costas. Depois o ardor na nuca. Uma bala, uma baioneta, uma faca... não sabia o que era. Sentia apenas o ardor. Nem mesmo era dor de verdade...
Tinha sido atingido. Por fogo? Por um dos lobos furiosos? Mas estava respirando. E ainda rastejava no solo.
Lansky estava bem ali, na sua frente. Precisava levá-lo de volta. O suor penetrava em seus olhos. Não era suor. Sangue. Sua visão estava turva. Recusava-se a morrer na lama; recusava-se a perder a luta daquela maneira. Ele se arrastava, sentindo que a névoa encobria-lhe sua visão cada vez mais, uma névoa que brotava de dentro dele. Olhou para Lansky e viu a mão de seu compatriota. Estendendo um braço, agarrou-o e começou a puxá-lo.
Quando conseguiu ver o corpo, o tenente gritou de pavor. Lansky não tinha mais cabeça.
Apesar do horror, seu grito se calou. Os pulmões queimavam. Todo o corpo parecia estar em chamas, mas, segundos depois, o fogo dava lugar a um frio estranho.
Frio. Muito frio. A morte era fria.
Estava morrendo. O sangue que penetrava em seus olhos era o dele. Jorrava de suas veias pelo corte feito na nuca. A pouca luz que restava se apagava aos poucos. Havia apenas um som. Ele não podia mais ouvir os gritos de seus homens, nem os tiros dos rifles. O tempo parou, o frio aumentou, os sons se afastaram...
De repente veio a quietude. Não acreditava que tinha perdido a consciência e que ainda não havia morrido.
Ainda... Mas o tempo tinha passado. Voado como a luz, escoado numa corrente ininterrupta e intensa...
A quietude permanecia.
Então, ele percebeu um som e um movimento.
Passos. Tentou se virar. Sentiu alguma coisa no chão em contato com a lateral do corpo. Ouviu um idioma que não compreendia. Piscou. Sua visão estava reduzida a uma estreita fresta cercada por uma névoa vermelha e negra.
Sim, havia algo a seu lado. Piscou de novo, tentando se manter consciente, mas sabendo que perderia a batalha a qualquer momento.
Ah, lá estava, uma bota... Uma bota preta plantada no lodo encharcado de sangue. Preta e com um ponto brilhante, apesar da lama que a envolvia.
Quando já fechava os olhos, reconheceu a insígnia cintilante na bota. Uma suástica.
O pensamento foi registrado. Não houve mais nada. O mundo mergulhou numa espessa névoa vermelha. Depois foi só a escuridão.



Capítulo I


- Ele mudou desde que o viu pela última vez. Não sei explicar, mas mudou. - Ann movia a mão enquanto falava, criando um desenho com a fumaça do cigarro.
Tara olhou para a prima com ar confuso. Estava exausta. Havia atravessado o Atlântico sem cochilar, apesar do voo noturno. Tudo que queria era chegar ao castelo do avô nos arredores de Paris. Mas, quando a pegara no aeroporto, Ann insistira em parar para o desjejum antes de levá-la para casa.
Agora, Ann tentava explicar que o avô estava senil.
- Ann, se vovô está doente, talvez ele devesse voltar aos Estados Unidos...
- Por que sempre acha que há algo melhor nos Estados Unidos?
- Não foi isso que eu disse. Lamento se me expressei mal. Mas, se está dizendo que ele perdeu a lucidez...
- Não é isso... - Ann suspirou.
- O que é, então? Acha que está senil?
- Sim, vovô diz que não sabe quantos anos tem. Insisti em repetir que era mais velho que a maioria dos companheiros da Resistência, e Deus, a Segunda Guerra acabou em 1945! Sim, ele está velho. Tem problemas respiratórios, como disse ao telefone, mas saiu do hospital há alguns dias. Quando não está na cama, fica trancado na biblioteca e fala muito sobre alguma coisa que chama de a Aliança.
- Talvez esteja revivendo os anos de guerra.
Ann parecia perturbada e cansada. Em geral, ela não era assim. Tara sempre havia considerado a prima uma das mulheres mais belas e pragmáticas que conhecia. Seus olhos eram azuis e penetrantes. O cabelo era escuro, a pele, clara e macia, o corpo, esbelto e a personalidade, vibrante.
Em algumas fases da vida, Tara havia odiado as visitas da prima francesa. Amigos do colégio e da faculdade ficavam deslumbrados quando Ann aparecia. No entanto, aqueles velhos tempos pareciam distantes. Quando Tara se formara na faculdade, decidiu passar um verão na França. Naquela época, sua avó havia morrido e o avô tinha retornado a Paris, instalando-se na antiga propriedade da família, onde Ann havia crescido. Os pais de Ann eram aposentados e passavam a maior parte do tempo na pequena casa de praia na Costa do Sol.
Chamar a propriedade do avô de castelo era algo um pouco presunçoso, mas o lugar era conhecido como Le Petit Château DeVant desde que fora reformado no século dezoito. E, embora um pouco dilapidado, o pequeno castelo, ou petit château, como diziam os franceses, ainda conservava seu charme. Era uma construção de dois andares, com um imenso salão, uma magnífica biblioteca e belas suítes com balcões e sacadas que se abriam sobre um pátio e mais adiante um jardim. O galpão das carruagens ainda abrigava um pequeno veículo de tração animal e Daniel, um cavalo muito velho e que já não fazia outra coisa a não ser comer e dormir.
Ann apagou o cigarro e inclinou-se em direção a ela.
- Não é a guerra. Talvez o que vovô sempre escreveu tenha afetado sua mente. Quem sabe ele tenha lido muitas obras de ficção. Ele está perturbado, imagina ter desertado... ou alguma coisa assim. Fala sobre a guerra, diz que a dura realidade dos combates o fez esquecer o que era, quem era. Insisti em que ter ido para a América o transformou, mas que ele deveria saber, porque aquilo também estava lá.
- O que também estava lá? - perguntou Tara.
- Não sei. Algumas vezes vovô fica agitado, como se tivesse falado demais. Quem sabe você consiga entendê-lo melhor do que eu. Pedi licença no trabalho quando ele adoeceu, mas preciso voltar, ou perderei o emprego. Não ganho muito, mas amo o que faço.
Tara se sentiu culpada por ter demorado tanto para ir à França. Contudo, também tinha suas obrigações. Ela e Ann haviam trilhado caminhos distintos, mas, por alguma estranha razão, acabaram trabalhando em projetos similares. Ann era editora de uma empresa que comprava e traduzia romances ingleses e americanos. Tara era ilustradora, com grande experiência na criação de projetos gráficos e capas de livros.
- Mas pode fazer boa parte do seu trabalho em casa, não? - Tara indagou.
Ann riu.
- Tenho de levar trabalho para casa sempre, porque durante o dia os telefones e as reuniões me ocupam o tempo todo.
- Entendo. Bem, agora estou aqui. - Ela bocejou. - Ah, estou muito cansada.
- Está dizendo que não vamos sair hoje à noite? Nenhum bar, nenhuma festa? Conheço alguns rapazes bem interessantes. Você disse pelo telefone que havia rompido com o corretor da bolsa de valores.
- Sim, rompemos, mas você ainda tem seu grande amor, não?
- Para dizer a verdade, também rompemos - Ann confessou. - E não foi um rompimento muito amigável. Como sabe, Will é gerente comercial da editora. Há uma semana, quando concluíamos um projeto, saí para pegar um lanche para nós enquanto ele discutia os últimos detalhes com o diretor de arte e as modelos contratadas para fazer as capas dos romances. Esqueci meu casaco e voltei para pegá-lo. A reunião havia acabado. Willem estava na sala com uma das modelos. E eles estavam em uma posição bem comprometedora. Saí sem dizer nada, e imaginei que, na manhã seguinte, ele não ousaria me procurar.
- E ele a procurou?
- Sim. Telefonou na mesma noite e rompemos.
- Deve ser complicado. Ainda trabalham juntos?
- Sim, e não. Will não trabalha no mesmo prédio que eu, mas em outra unidade da editora.
- Vocês romperam assim? Não voltaram a se falar?
- Bem, deixei claro que, se ele pisasse em minha sala, eu o rasgaria ao meio com meu abridor de cartas. E estava falando sério. Mas e você e seu corretor de ações?
- Não ia dar certo - Tara respondeu, dando de ombros.
- Não? Você havia comentado que ele era bonito, educado, charmoso, e sexy! O que aconteceu? O príncipe virou sapo?
- Não.
- Então, como pode dispensar alguém bonito, com bom salário e que não é um artista miserável, nem toca uma música ridícula em um bar cheio de fumaça...
- De fato, não há nada de errado com Jacob. Ele queria que morássemos juntos, desejava comprar alianças, mas... Eu não quis. Não ia dar certo. Ainda tenho algo a fazer que não sei bem o que é.
Jacob havia entendido a razão de sua viagem a Paris, não a cobrara por isso, mas Tara tinha um estranho pressentimento de que depois daquela viagem nunca mais seria a mesma. Era como se houvesse esperado por aquilo a vida toda.
E... ainda tinha o sonho. Claro que planejava ir a Paris, mas em outra ocasião. Apesar disso, certa noite, ela fora dormir e...
Estivera em Paris. Em sonho, mas estivera em Paris. Naquele estranho episódio, observara a cidade do alto durante o pouso do avião. Apreciara a paisagem que amava, a Catedral de Notre-Dame, a Torre Eiffel. Vira-se com Ann sentada no café, dirigindo para o vilarejo. E depois... uma névoa descera, e ela estava caminhando. Caminhava pelo bosque na área rural em torno da cidade, concentrada em seu destino. E durante a caminhada sentira medo. Muito medo.
Temera as sombras que cercavam o lugar, sombras que se retorciam e se moviam formando espectros sinistros que pareciam sussurrar seu nome. Não sabia se os sussurros eram palavras incentivando-a a prosseguir, ou se eram avisos para que se afastasse. De qualquer forma, precisava chegar ao château o mais depressa possível, e aquela necessidade tinha alguma coisa a ver com seu avô.
Cada passo aumentava o medo, mas reforçava também a determinação. No meio de árvores frondosas e dos arbustos que circundavam a área, podia ver a estrutura antiga à frente. Ela parecia brilhar com uma estranha luminosidade, como a da Lua penetrando num manto de névoa e nuvens.
Mentalmente, Tara repetia a palavra socorro muitas vezes, embora não soubesse a quem pedia ajuda. Ainda assim, acreditava, precisava acreditar, que ele estava ali para ajudá-la.
Ao acordar daquele misterioso sonho, Tara havia concluído que ele nada mais fora do que um reflexo de suas preocupações com o avô. Ela o adorava e sabia que precisava ir visitá-lo por causa da doença. Seria egoísmo não embarcar no primeiro voo disponível para Paris. Ao mesmo tempo, apesar de toda a sua lógica, ela tinha a sensação de que um ciclo se encerrava em sua vida, e que outro apenas começava. Seu destino estava prestes a se realizar.
Bastou tal percepção para se lembrar de Jacob. Gostava dele. Era um rapaz divertido, sensual, um companheiro fiel e apaixonado, com quem poderia partilhar sua vida e suas paixões. Entretanto, sempre que pensava nisso era como se uma vozinha soprasse em seu ouvido que a vida lhe reservara outro destino. E que esse destino estava em Paris.
Delírio, sim. Insanidade, talvez. Por outro lado, era a atitude correta a tomar e por isso tinha pegado o primeiro voo que conseguira e agora estava na cidade luz: a bela Paris.
- Quem sabe eu deva ir com você a Nova York e conhecer Jacob - Ann gracejou, tirando-a de seus devaneios.
- Por que não? Jacob é uma pessoa ótima, eu apenas não estava apaixonada por ele. Mas nunca vi homem melhor. - Tara olhou para a prima. Ann era muito prática e cética. Jamais poderia explicar o que sentia a ela. Que dirá falar sobre sonhos e impressões!
Ann estava balançando a cabeça com ar confuso.
- Que coisa. Você encontrou alguém franco, honesto e leal, mas não está apaixonada.
- Gosto de Jacob, mas não o suficiente.
Ann ficou em silêncio por alguns minutos, observando-a, depois encolheu os ombros.
- Ah, olhe bem para nós duas! Sem sombra de dúvida, devemos sair hoje à noite. Vamos a um bar. Sei que não é o melhor lugar para conhecer o homem ideal, mas o trabalho também não é. E eu não faço mais nada além de trabalhar, então...
- É claro que vamos sair, mas não hoje. Estou exausta.
- Amanhã, então. Levarei você ao château e poderá ouvir pessoalmente o que vovô tem a dizer. Aproveite para conversar com ele hoje à tarde, enquanto eu estiver no trabalho.
- Talvez você e Willem se acertem.
- Claro, sempre tenho meu abridor de cartas comigo - Ann brincou, enquanto chamava o garçom para pedir a conta.
Pouco depois, elas estavam passando pela porta, a caminho da rua, quando Ann segurou o braço de Tara e, com voz tensa, exclamou:
- Depressa. Corra!
- Por quê?
- Willem.
- Willem? Onde?
Tara tentou se virar, ansiosa para ver o rapaz com quem a prima estava tão envolvida, mas Ann a arrastava pela calçada. Ainda assim, conseguiu vê-lo por um instante. Ele era alto e loiro, e vestia um terno elegante. Uma mecha do cabelo caiu sobre os óculos de sol quando ele parou para acender um cigarro e olhou em torno de si, escolhendo uma mesa no café de onde elas haviam acabado de sair.
- Não olhe! Vamos embora.
- Você ainda trabalha com ele. Podia me apresentar. Assim eu teria mais material para avaliar seu caráter.
- Ele não tem caráter, portanto não há nada o que avaliar. Vamos.
Tara olhou para trás mais uma vez.
Willem se sentara a uma mesa na calçada, e logo outro homem se juntou a ele. O recém-chegado também era alto e loiro e usava óculos escuros.
Tara tentou se afastar e foi assolada por uma estranha sensação, como se alguém a observasse... ou perseguisse. Um arrepio a percorreu e a adrenalina jorrou em todas as suas células.
Ela olhou para trás.
Os dois homens haviam desaparecido.
Tara parou onde estava.
- Ele encontrou alguém - disse.
- Claro, Will é responsável pela área comercial da editora. Está sempre encontrando alguém! - Ann protestou. - E eu preciso levar você para casa e voltar ao trabalho. Por favor, vamos!
Tara concordou. Estava cansada. Amava a Europa, mas odiava o longo voo sobre o Atlântico.
Momentos depois, estavam no carro a caminho do castelo do avô.
- Ele tem uma aparência interessante.
- Não quero mais falar sobre isso. Tenho mais em que pensar. Não vou ficar me preocupando com um mentiroso traidor. Vovô, por exemplo... Bem, logo estaremos em casa. Você vai entender quando puder vê-lo.
- Mas ele está bem de saúde?
- Não está bem, mas está melhor. Já se recuperou da pneumonia. Uma coisa que me intriga é que ele tem estado muito preocupado com uma escavação arqueológica que está sendo feita no nosso vilarejo. Parece que estão desenterrando as criptas do velho cemitério da igreja em ruínas. A primeira coisa que vovô faz quando acorda é olhar o jornal. Ele já me pediu para ver o que estão fazendo. Vive debruçado sobre aqueles antigos livros e fica todo agitado. Quer ir lá, no local da escavação, mas os médicos o proibiram.
- E você o levou?
- Não. Não vou alimentar fantasias. Disse a ele que as criptas não são acessíveis a visitantes.
- E isso é verdade?
- Era. Eles estavam preocupados com a integridade da estrutura subterrânea. Não sei qual é a situação agora. Li algumas matérias no jornal quando começaram o trabalho, mas quase não há mais notícias. - Olhou para Tara e sorriu com expressão culpada. - Tudo bem, acho que podem ter aberto o local aos visitantes. Não sei bem por quê. Somos só um pequeno vilarejo na periferia de uma grande capital. Um professor envolvido no projeto tem certeza de que vai fazer uma importante descoberta histórica, mas ele não parece contagiar os colegas com seu entusiasmo. E muitas pessoas vão a Paris para ver arte e beleza. Os que têm um gosto mais mórbido podem rastejar pelas catacumbas subterrâneas e ver um monte de ossos.
- Talvez vovô tenha se interessado só porque as ruínas estão no nosso vilarejo. Ele cresceu aqui, sempre viveu na região. Talvez sinta uma certa ligação entre a família e essa escavação, não sei...
- Já perguntei isso a ele. Vovô ficou chocado e se apressou em dizer que ninguém na nossa família jamais teve nenhuma relação com o local. De qualquer maneira, a decisão é sua. Se quiser ir visitar a cripta úmida e empoeirada, fique à vontade.
- Ora, você não disse que não devíamos alimentar as fantasias do vovô?
Ann encolheu os ombros.
- Ainda penso da mesma maneira. Mas preciso trabalhar e cuidar do velho château. Quase não tenho ajuda. E não me refiro a você, seus pais, seu irmão, ou meus pais. Estou falando de cuidados diários, coisas como manter os banheiros limpos, arrumar a sala, manter o telhado no lugar, cortar a grama... Temos apenas Katia para arrumar a casa e Roland cuidando da parte externa. Debbie, a antiga ajudante de vovô nos Estados Unidos, escreveu dizendo que quer vir para cá cuidar de Jacques, mas ela precisa de um tempo para se organizar. Como vê, não tenho tido muitas oportunidades para visitar ruínas. Estou muito feliz por ter vindo, Tara. Sei que você quer aproveitar para criar alguns trabalhos de arte, em vez de fazer apenas capas e ilustrações que paguem as contas. Talvez encontre inspiração na cripta. Quem sabe eles até permitam que você monte um cavalete por perto. Pode ser, não é? O que me interessa é cuidar do vovô. Ele sempre foi um homem lúcido, um escritor talentoso e produtivo... Não quero perder esse homem que sempre amamos e conhecemos.
- Também o amo. Ele sempre foi magnífico, maior do que a vida. Herdei dele o amor pela arte, e você aprendeu com ele boa parte do que usa em seu trabalho de editora. Ele é muito importante, e o amor que tem por nos e maior que o mundo.
- Sim, mas é você quem adora as histórias e os contos fantásticos. Sou lógica e objetiva demais para ele. Sendo assim, tente conversar com o velho Jacques. Veja se consegue entender o que está acontecendo.
- Estou aqui para fazer tudo o que for necessário.

Do outro lado do Atlântico, Jade DeVeau acordou assustada, tentando identificar o que a despertara.
Ainda estava escuro lá fora. Era aquela hora típica em que a noite começava a se despedir, mas que o dia ainda não chegara de fato. Por um momento, ela continuou deitada e tensa, tentando determinar o que havia despertado seu instinto de sobrevivência. Não havia nada.
Ela se virou devagar, tentando enxergar na escuridão. O luar penetrava pela janela da bela casa. Lucian estava sentado na cadeira de balanço ao lado da janela, observando tudo com olhos atentos.
Não era estranho que ele estivesse ali. Jade havia modificado seu ciclo natural de sono para fazê-lo coincidir com o de Lucian, e ele também havia aprendido a se deitar e descansar na escuridão da noite. Ainda assim, em muitas noites ela acordava e o via ali. Algumas vezes, ele ha, usando uma luz direta sobre as páginas para não incomoda-la. Outras, ficava sentado, balançando-se e apreciando a Lua. Na maior parte do tempo, relaxava como uma coruja silenciosa, mas quando ficava inquieto, descia para trabalhar ou assistir a um filme antigo.
Esta noite, porém, havia algo diferente.
Jade se sentou e pegou o robe aos pés da cama, ainda com medo, embora não soubesse por quê. Sabia que Lucian já havia percebido que estava acordada; pois ele era capaz de sentir seu mais leve movimento.
Ele se virou e, mesmo na escuridão da noite, foi possível ver o sorriso constrangido.
- Desculpe se a acordei.
- Não foi você. Acordei sozinha.
Ele a puxou para que se sentasse sobre seus joelhos. Jade afagou-lhe os cabelos, pensando se não seria pecado amar tanto alguém.
- O que foi? - ela perguntou num sussurro.
- Não sei... Mas não tenha medo. Seja o que for, está longe. Muito longe. E é isso que me incomoda. Posso sentir alguma coisa, mas não sei o que é.
Um choro fino os interrompeu.
- O bebê - disse Jade, correndo para a porta e para o quarto no fim do corredor. Sabia que Lucian a seguia, embora não ouvisse seus passos.
Ela acendeu a luz e se aproximou do berço onde Aidan, seis meses, dormia. Naquele momento, ele estava acordado e alerta, os tufos loiros em pé no alto da cabeça, as faces vermelhas, os punhos fechados se agitando no ar, as lágrimas correndo dos olhos.
Jade o pegou nos braços.
- Meu menininho, tudo bem, mamãe está aqui...
Os soluços perderam força, mas recomeçaram segundos depois.
Lucian aproximou-se, pegou o filho nos braços, e falou com ele em francês num tom baixo, calmo.
Aidan, olhou para o pai, respirou fundo e adormeceu em seguida.
Jade o devolveu ao berço, depois olhou para Lucian.
- Eu devia me ressentir contra sua habilidade de acalmá-lo com tanta facilidade.
Lucian a beijou na testa e voltaram para o quarto de mãos dadas.
Ao lado da cama, Jade despiu o robe e logo sentiu as mãos dele em seu corpo. Era como estar em brasa e derreter aos poucos.
Como se nada mais importasse.
Luz ou escuridão, dia ou noite, podia sempre sentir os olhos dele passeando por seu corpo, penetrando nele...
E no final, sempre se espantava por ainda poder sentir tamanha paixão, como se o mundo explodisse em ouro e, às vezes, depois do clímax abrasador, o brilho se perdesse na escuridão.
Tempos depois, exausta, ela dormiu em paz.
Mas ele ficou acordado, e quando teve certeza de que Jade dormia, levantou-se, fechou as cortinas e desceu até o porão.
Ele mantinha um computador lá. Pensando em mandar um e-mail, aproximou-se da escrivaninha.
Mas mudou de idéia. Sempre se sentia confortável no frescor escuro da parte mais baixa da casa. Assim, ele fechou os olhos e se recolheu no fundo da própria mente.

- Tara!
Jacques DeVant podia estar envelhecendo, sua saúde não era das melhores, mas ele ainda tinha força para abraçar a neta e apertá-la contra o peito.
- Vovô, parece ótimo! Mas precisa tomar cuidado. Precisa descansar. Não pode andar por aí desperdiçando energia.
- Eu estou muito bem, e sou muito cuidadoso com minha saúde. Pretendo viver até... Ah, você sabe! Até ficar bem mais velho!
- Claro, você nem parece ter mais de sessenta...
Ele sorriu, aceitando o elogio.
Tara se sentou sobre a mesa, espiando o livro antigo que ele estivera lendo, e decidiu ir direto ao ponto.
- O que está tramando, vovô? Ann está preocupada porque o senhor pediu para ela ver o que está acontecendo naquela escavação no vilarejo.
- Preciso saber o que está acontecendo lá, e Ann não entende que... Bem, preciso saber o que estão procurando. E o que encontraram.
- Uma pilha de ossos velhos, se estão cavando o cemitério de uma igreja em ruínas.
- Tenho de descobrir o que eles estão desenterrando. Preciso das plantas da cripta e também desejo saber se o professor tem outros estudiosos trabalhando no projeto, e quem está envolvido. Creio que o trabalho deve ser interrompido. E, se não tiver todas as informações, não vou poder fazer nada. Tara, você tem de ir até lá! Quero que seja meus ouvidos e meus olhos, mas tenha cuidado. O mais triste é que minha própria neta acha que estou perdendo o juízo. Se eu não tomar cuidado, outros podem querer me trancafiar num manicômio. Não posso permitir que isso aconteça.
- Vovô, o senhor é um intelectual. Um autor muito conhecido.
- Um autor de ficção. De histórias fantásticas.
- Com mensagens incríveis.
- Ficção. Eles vão pensar que toda a ficção que criei ao longo da vida invadiu minha mente, e que fiquei maluco.
- Não entendo...
Ele não parecia ouvi-la. Olhava para a velha lareira onde o fogo ardia e as chamas dançavam, provocando colunas de fumaça de tons variados.
- Vovô...
- Você precisa ir à igreja.
- Irei amanhã - ela disse. - Prometo.
- Amanhã pode ser tarde demais. Talvez hoje seja tarde demais, e eu ainda não ouvi notícia de nada terrível acontecendo.
- Que coisa terrível pode acontecer na cripta de uma velha igreja? Tem medo de que haja lá algo de grande valor, e que alguém esteja atrás disso? Os homens envolvidos na escavação estão em perigo? Há alguma coisa que você realmente saiba?
Jacques a encarou e balançou a cabeça.
- Você não entenderia. Mas precisa descobrir o que está acontecendo. Por mim.
- Já disse que irei, vovô. O senhor me conhece, sabe que não consigo dormir no avião, por isso estou exausta. Irei amanhã.
- Hoje. Katia fará um café bem forte para nós.
- Não entende, não é? Estou esgotada. Não dormi muito nos últimos dias.
- Então, mais um dia não vai importar.
- Ei, devia estar preocupado com minha saúde e meu bem-estar.
- Estou preocupado. Mas você irá hoje à tarde e trará toda informação que puder colher naquela escavação.
- Talvez não seja permitido...
Ele suspirou impaciente.
- Esse assunto é sério.
- Ah, é? Bem, não sei nem o que quer que eu faça! Se pudesse ser mais claro, se eu conseguisse entender, tudo seria mais simples. O que acha que está acontecendo e que precisa deter? Ann disse que você tem falado sobre alguma coisa chamada Aliança...
- Sim, a Aliança. Eu faço parte da Aliança, e não restam muitos de nós, não que possam entender o chamado. Claro que há outros. Mas talvez eles ainda não saibam. Existem aqueles que eu até poderei encontrar, mas antes devo parar a escavação!
- O que é a Aliança? Um grupo de guerra? Um grupo de escritores?
- A Aliança... Não temos tempo para conversa. Sim, talvez se possa dizer que somos um grupo de guerra. Agora, por favor, não podemos ficar parados. Você precisa fazer isso por mim. Se não, terei de ir eu mesmo. Se eu estiver certo sobre o que eles podem encontrar... quem podem encontrar... Você precisará ir lá.
- Se sabe de alguma coisa, deve avisar a polícia.
- A polícia não entenderia. Eles me prenderiam. Por favor, se me ama, Tara, vai me ajudar agora. Preciso de você. - Havia um desespero tão grande na voz frágil que a fez questionar seriamente seu estado mental. - A polícia não pode ajudar. Não agora. Não somos ameaçados por um ladrão ou assassino comum.
- Qual é o perigo, então?
- O Mal. E da pior espécie que você pode imaginar. Estou implorando, faça o que estou pedindo.
Tara se assustou com as palavras do avô. Queria abrir a boca, protestar contra o que ele dizia, mas não podia.
Sentia arrepios. E frio. Um frio que parecia congelar seu sangue, carne e ossos.
- Vai fazer isso por mim? Hoje?
- Sim. E claro que vou.

A escuridão na cripta era sufocante. Havia muitas lâmpadas especiais na câmara no fundo da terra, mas os cantos permaneciam nas sombras; sombras sinistras que se moviam numa dança macabra, dando vida a anjos, gárgulas, e outras figuras que pareciam sobressair naquele estranho cenário.
- Cavem com cuidado! - avisou o professor Dubois. Com cuidado, como, se eles mal enxergavam?
- Cuidado, cuidado! - Dubois repetia.
O homem estava nervoso. Por outro lado, para Jean-Luc, Dubois parecia estar sempre à beira de um ataque de nervos, como se as explorações na cripta fossem determinantes para o mundo, como se suas descobertas pudessem alterar a forma do globo.
No fundo da terra, na área das ruínas da velha Igreja de St. Michel, os operários estavam cansados. Jean-Luc Beauvoir olhou para o professor e mordeu o lábio para manter o silêncio. Ele e o americano, Brent Malone, trabalhavam havia horas, removendo a matéria orgânica apodrecida por séculos e séculos do entorno dos caixões.
O professor Dubois esperava fazer uma incrível descoberta arqueológica. Estava certo de que desenterraria não só os mortos, mas tesouros que lhe dariam reconhecimento mundial, honras e prêmios, e, claro, a fortuna a ser amealhada com a venda do livro que ele planejava escrever. O professor nem dava importância ao fato de muitos estudiosos o considerarem um lunático, ou acreditarem que ele havia obtido permissão para aquela escavação com suborno, ou fazendo generosas doações para a atual St. Michel. Pouco dinheiro restara para a contratação da equipe especializada em arqueologia que Dubois pretendia formar, por isso o professor passava o tempo todo gritando ordens para os dois escavadores que havia conseguido contratar, forçando-os a trabalhar duro enquanto a tarde se transformava em noite.
O americano parecia capaz de silenciar o professor com um único olhar, mas Dubois voltava a gritar instantes depois.
A St. Michel que agora existia no pequeno vilarejo nos arredores de Paris datava do século dezesseis; a cripta em que eles trabalhavam era ainda anterior à igreja. O trabalho era delicado, mas eles haviam delimitado a área e permitiam que turistas pagassem alguns francos para assistir ao processo de escavação. Assim, como se não bastasse a agitação e os gritos do professor, também eram interrompidos pelas perguntas curiosas dos visitantes. Os americanos ele ignorava com facilidade, fingindo desconhecer o idioma. Os franceses eram mais irritantes, porque o professor parava para falar com eles.
Jean-Luc olhou para Brent e fez uma careta indicando a jovem que conversava com o professor. Não era apenas uma moça bonita, mas charmosa, com voz modulada e evidente conhecimento da região e da igreja. Ela era americana, a julgar pelo sotaque. Apesar do conhecimento revelado por suas perguntas, também era simpática.
E nada disso passou despercebido ao professor. O velho arqueólogo era de natureza lasciva; seria capaz de segurar a jovem sobre os ombros para oferecer a ela uma visão melhor da escavação, e assim poder pôr as mãos em sua carne firme e macia.
Brent nem notou o olhar de Jean-Luc. Estava distraído, sem perceber a presença da jovem que conversava com o professor. Ele estudava a área na qual trabalhavam, e que se conectava ao subterrâneo da nova igreja por um emaranhado de túneis e câmaras, muitos dos quais ocupados pelos ossos dos nobres mortos. Aquela área, um pouco distante das novas fundações, era diferente em estilo e decoração. Arcos góticos criavam tanto o apoio quanto o estilo arquitetônico, mas as paredes e criptas eram decoradas com uma estranha combinação de traços e figuras. Grandes cruzes em vários metais cercavam as sepulturas, mas havia também uma coleção de demônios e gárgulas.
No local em que agora cavavam, tinham acabado de encontrar uma obstrução.
Brent por fim virou-se para Jean-Luc com uma expressão que dizia que não deveriam revelar ao professor em que ponto haviam chegado.
Jean-Luc riu. Aquele americano era astuto. O cadáver que se preparavam para exumar podia estar coberto de jóias e adornado em ouro. Melhor mesmo deixar que o professor se divertisse com sua lascívia. Eles cuidariam do tesouro.
Contudo, de repente, Brent franziu a testa e Jean-Luc ficou intrigado. O que ele estaria planejando?
A bela visitante prolongava a conversa com o professor, mas o tempo todo observava Brent e seu trabalho na cripta. Por que não? Jean-Luc encolheu os ombros. Ela era jovem, bonita e sensual. Os longos cabelos claros emolduravam um rosto de olhos astutos e amendoados. Já o professor era enrugado como uma ameixa e desgrenhado como um pequinês eletrocutado.
Brent, por sua vez, era alto, musculoso e dono de uma fluidez de movimentos que parecia criar uma dança erótica cada vez que manejava uma daquelas ferramentas. Seus traços sugeriam idade entre os trinta e trinta e cinco anos, e os olhos tinham aquela estranha coloração esverdeada com raias douradas. Os cabelos eram castanhos e longos e estavam quase sempre presos por uma tira de couro.
Devia ser uma imagem tentadora para uma mulher jovem e cheia de vigor. O mundo nunca mudava. As mulheres podiam se casar com homens inteligentes e ricos, mas, para o prazer, sempre procuravam aqueles com força física e porte atlético. Apesar disso, o americano ainda não havia prestado atenção à beleza da jovem. Ele fingia cavar mais fundo agora, mas não revelava o tesouro que havia encontrado.
Jean-Luc parou, tentando descobrir se era o americano ou a tumba que despertava o interesse da jovem.
- Professor - Brent falou por fim, com evidente impaciência.
- O que é? - Dubois quis saber. Ele olhou para o relógio.
- É tarde. Temos de parar agora e recomeçar amanhã cedo.
- Não é tão tarde. Não devemos parar. Tenho estudado os velhos registros. Estamos perto da sepultura.
- Se está mesmo tão perto do que procura, vai querer contar com a presença de especialistas para remover as últimas camadas de terra, e a esta hora não vai encontrar os profissionais de que necessita. No estágio em que estamos, não temos nada que possa atrair ladrões durante a noite. Se recomeçarmos o trabalho amanhã cedo, terá tempo suficiente para fazer justiça a sua descoberta. São quase sete horas. Já passamos muito do nosso horário. A igreja está fechada. É melhor acompanharmos essa jovem até a saída e encerrarmos por hoje.
- Oh, fiquei mais tempo do que devia! - exclamou a visitante. - É tudo tão fascinante! Peço que me desculpem.
- Desculpar? De jeito nenhum, minha querida - Dubois respondeu, atraindo ainda mais a atenção de Jean-Luc. Ela vestia jeans e suéter de lã. Roupas simples, mas perfeitas para envolver as formas que tanto provocavam o interesse do professor. Os longos cabelos loiros estavam presos num rabo de cavalo que realçava a harmonia dos traços. Os olhos pareciam azuis, da cor do mar da costa francesa.
- Quer que eu acompanhe a visitante? - Brent perguntou com tom rude, olhando para a moça com uma expressão fria. - Ela precisa sair.
- Sim, é claro, deve ser acompanhada até a saída em segurança, mas você precisa terminar seu trabalho. Eu acompanho a jovem. - Dubois sorriu para ela. - Podemos ir, minha querida?
- Por favor, não se incomode. Posso sair sozinha. Porém, estou muito intrigada. Importa-se se eu voltar?
- Por favor, venha quando quiser, senhorita...
- Marceau. Genevieve Marceau, professor. E obrigada por sua gentileza.
- Um nome francês. Mas você é americana.
- De descendência francesa. E conheço bem essas câmaras...
- Mesmo assim, não deve sair sozinha. O piso é escorregadio e mesmo no subterrâneo a escuridão se intensifica com a chegada da noite.
- Realmente, não precisa se incomodar comigo. Até outro dia, professor. Muito obrigada.
Ela apertou a mão do professor, que relutou em soltá-la. Depois, virou-se e começou a se afastar apressada, como se temesse ser seguida pelo velho.
Só quando a viu desaparecer no fim do corredor escuro, Dubois olhou para os ajudantes com ar sério.
- Certifiquem-se de que a tumba esteja segura antes de sair. Fechem tudo.
- É claro.
O professor olhou para o relógio.
- Tem razão, é tarde. Preciso dar alguns telefonemas... encontrar as pessoas certas. E você, Jean-Luc, mantenha suas mãos pesadas longe do trabalho a partir de agora. Você cava como um agricultor. O que temos aqui é algo importante e delicado.
Sem dizer mais nada, o professor se virou e saiu da tumba.
Tão logo ficaram sozinhos, Brent olhou para Jean-Luc.
- Tenho de abrir esta sepultura hoje à noite.
- Sim, é claro. Fizemos todo o trabalho. O professor ficará com tudo; para ele, não somos mais do que músculos. Mas o que vamos fazer? Se roubarmos a tumba, seremos descobertos. O governo vai interferir.
- Não, não, preste atenção! Vamos abrir a sepultura com cuidado e depois voltaremos a fechá-la.
- Depois de roubá-la, é claro.
- Haverá uma recompensa, algo que possa pegar. Mas não vamos roubar a tumba.
- Então...
- Já disse. Haverá uma recompensa para você, e Dubois jamais saberá. Certo? Ajude-me com o resto da terra. Depressa.
Foi fácil remover a terra, mas o sarcófago era coberto por uma pesada lápide de pedra.
- Não vamos conseguir tirar isso daí - Jean-Luc resmungou.
- Segure na lateral.
Os dois homens tentaram remover a lápide, ambos usando toda a força de seus músculos. A pedra se moveu um milímetro, e Brent gritou que deviam ser cuidadosos para não derrubá-la e quebrá-la.
A pedra se moveu. Agora podiam ver o caixão.
Era preto. E estava coberto e cercado por cruzes. Brent começou imediatamente a removê-las. Jean-Luc o ajudou.
- Há uma inscrição estranha no caixão. Veja, é estranho! Não consigo entender o significado completamente, mas as palavras falam do Mal, embora o caixão esteja cercado e coberto por símbolos do Senhor! Sacrebleau! Que coisa estranha!
Brent empunhava um pé de cabra.
- Duvido que funcione. Parece que o caixão foi velado com algum material selante... ou soldado, talvez.
- Vou abrir essa coisa.
Brent encaixou a extremidade do pé de cabra no caixão. O rangido da madeira causou em Jean-Luc um estranho arrepio de medo. O silêncio que se seguiu era profundo e completo.
Tão profundo, de fato, que ambos se surpreenderam ao ouvir um som furtivo... um farfalhar vindo da saída da câmara. Uma das lâmpadas portáteis se apagou de repente; da arandela ao lado deles ecoou um estalo surdo, e toda a área ficou escura. Ainda assim, ouviam alguma coisa... passos abafados, cuidadosos, cada vez mais próximos.
- E a mulher, com certeza - Brent disse, antes de resmungar um palavrão. - Vou me livrar dela. Não toque em nada enquanto eu estiver longe, Jean-Luc, se não quiser morrer. Estou falando sério!
- É claro que não! Nunca! Juro que não vou tocar em nada - Jean-Luc respondeu enquanto se benzia. Mas, ao ver o americano desaparecer silencioso nas sombras a sua volta, ele sentiu o agudo pressentimento que atormentava sua alma. Brent queria roubar a tumba sem ser pego. E, pior, desejava ficar com as riquezas contidas naquele caixão só para ele.
O selante da tampa começou a ser rompido; era surpreendente que o americano houvesse conseguido com tanta facilidade.
Jean-Luc olhou para a escuridão que envolvia a saída da tumba. Brent ainda não voltara. Ele contornou o caixão, aproximando-se do local em que o parceiro havia estado. Incapaz de resistir, tentou erguer a tampa, e mais uma vez ouviu o ranger assustador da madeira e das dobradiças antigas. Ele se preparou para a horrenda visão de um corpo sem vida ou de um esqueleto. Porém, sufocou um grito ao olhar o interior do caixão. Não havia o cheiro característico de podre ou umidade, nenhum odor típico de séculos de morte. Não havia ossos ou roupas deterioradas. O que ele via eram...
Olhos. Olhos abertos, negros como a noite. Olhando diretamente para ele. Como se o cadáver nunca houvesse morrido, mas estivesse dormindo.
E então o cadáver se moveu.
Jean-Luc gritou, um grito que poderia despertar os mortos não só de Paris, mas de toda a França...
Escuridão e luz criaram uma sinistra composição de sombras quando as lamparinas balançaram. O negro da sepultura, a luz da lamparina oscilando...
Sangue. O vermelho invadiu a tumba.

* * *
Tara nunca ouvira nada como aquele grito desesperado. A forte e repentina luminosidade que o acompanhou a fez visualizar gárgulas, anjos e demônios.
O som parecia se erguer do reino dos mortos.
As paredes da cripta pareciam estar mais próximas, envolvendo-a de forma ameaçadora.
E lá, um pouco mais adiante, paralisado pelo grito agudo, estava o homem musculoso que vira na tumba.
Ele a tinha seguido. A maneira como os olhos dele brilhavam naquele breve segundo de terror e perplexidade a deixou sobressaltada.
Estava parado no corredor onde as tumbas haviam sido dispostas umas sobre as outras. Não podia ver-lhe o rosto na escuridão quase completa, mas sentia o olhar perscrutador que lhe dirigia.
Alguns segundos se passaram, e, nesse ínterim, Tara sentiu a tensão do desconhecido como um vento muito antigo soprando da profundeza das catacumbas em que se encontrava.
Entretanto, ele não se aproximou. Em vez disso, virou-se onde estava e correu na direção do grito de dor, como se pudesse apagar o fogo que brotava do inferno.
Num lampejo de bom-senso, ela também se virou e correu. Correu como se fugisse do inferno. Correu por câmaras e espaços estreitos que haviam sido o lar dos mortos e dos seres das sombras por séculos e séculos.
Finalmente, avistou a escada da nova igreja e subiu correndo, quase sem perceber os pés tocando os degraus. Emergiu da cripta, correu pelo piso de mármore e se atirou contra as portas de madeira maciça que a levariam de volta à sanidade da noite francesa.
Mas as portas estavam trancadas.
Brent se sentia rasgado ao meio. Naquele ínfimo intervalo de tempo entre ouvir o grito e olhar para a mulher no corredor, milhares de pensamentos passaram por sua mente.
Não devia ter deixado Jean-Luc sozinho com o caixão.
Mas sabia que a mulher havia permanecido na tumba e que precisava tirá-la de lá, apesar de não ter certeza se as histórias sobre a cripta eram verdadeiras. Aceitara o trabalho de escavador por mera precaução, por causa de uma lenda que havia circulado muitos anos antes, contada por jovens reunidos em torno de uma fogueira, numa fria noite de inverno.
Mesmo assim...
Devia ter tentado conhecer Jean-Luc um pouco melhor, pensou. O grito que ouvira indicava que seu colega francês havia sido um tolo que abrira o caixão e que... a lenda era verdadeira.
Jean-Luc já pagara o preço da ganância.
Ao se dar conta disso, Brent correu o mais rápido que pôde ao local da escavação, mas era tarde demais. Sim, tarde demais para Jean-Luc. Porém, esperava que não fosse tarde demais para... outras pessoas.
Mas um lado dele não tinha dúvidas de que seria.
As luzes e holofotes que iluminavam a câmara haviam se apagado, caído, quebrado. Apenas umas poucas estavam tombadas, mas ainda acesas, e lançavam a luminosidade tênue num confronto direto, porém inútil, com as sombras reinantes.
Brent não se perdoava por ter saído dali.
Na escuridão quase completa, movia-se com cuidado, atento a todo e qualquer movimento, mesmo sabendo que não era importante. Não havia vida na tumba.
Até os ratos tinham fugido.
Sua visão era excelente naquele jogo de escuridão e sombras. Não era difícil para ele encontrar o caminho entre pinhas de terra e pedras em torno das crateras da escavação.
Ele localizou o buraco no chão. Tão cuidadosamente aberto. A tumba de centenas de anos.
No fundo, o caixão vazio. Jean-Luc jazia ao lado dele. Brent se abaixou, tocando o ombro do homem, tentando virá-lo e encontrar algum sinal de vida em seu pulso.
A cabeça pendeu para um lado quando ele moveu o corpo, totalmente desligada do pescoço. Jean-Luc lembrava uma boneca de pano sacudida por uma criança furiosa.
Brent notou as manchas no chão. Veias e artérias haviam sido completamente cortadas, mas não tinha grandes poças de sangue.
Ele se levantou e fechou os olhos. Nenhum som. A cripta estava vazia. De repente...
Um som abafado acima dele.
Brent fechou os olhos para ouvir melhor. Muito, muito acima dele. Dali, das profundezas da terra, ouvia apenas um ruído fraco, quase um sopro de vento. Era aquela mulher que visitara a tumba que gritava. A cripta estava vazia.
O ocupante do caixão se fora, e, apesar dos anos de confinamento, devia estar testando o novo mundo agora. Explorando com cuidado, sob a proteção da noite, das sombras.
Uma noite que seria longa. Porém... Olhou para o que restava de Jean-Luc. A criatura se banqueteara. Teria a longa noite e as primeiras horas do dia para encontrá-la antes que ela voltasse a sentir sede.
Não havia mais nada a fazer ali... exceto cuidar para não ser preso.
Virou-se e percorreu com incrível velocidade os corredores por onde havia andado pouco antes. Movia-se em silêncio.
Ao notar a bolsa caída junto à parede, Brent parou. Era uma minúscula bolsa a tiracolo e, por certo, pertencia à mulher que estivera na cripta. Ele abaixou-se para examinar o conteúdo da bolsa. A visitante daquela tarde havia dito que seu nome era Genevieve Marceau, mas era mentira. Segundo os documentos que encontrara, o nome verdadeiro era Tara Adair.
Brent estudou os pertences que havia na bolsa. Depois guardou tudo nos bolsos laterais da calça cargo que usava.
Ela nem havia percebido que a perdera.
Ou não se incomodou com isso?
Pelo visto, a mulher estava desesperada para escapar. Naturalmente. E quem não tentaria fugir depois de ouvir o terror extremado no grito de Jean-Luc?
Mas que, diabos, ela estaria fazendo ali? O que sabia? E, mais importante, quem era, e por que fora até as ruínas daquela maneira, interrogando o professor Dubois, escondendo-se após dizer que partiria?
Seu nome nada significava para ele. Adair... Não conhecia nenhum Adair.
E a tal Tara dissera ter ascendência francesa.
No entanto...
Parou, sabendo que a mulher ainda gritava e batia nas portas da igreja lá em cima.
Havia um celular em sua bolsa.
E ela já devia ter percebido que não dispunha mais do aparelho.
Rapidamente, Brent abriu a bolsa mais uma vez, estudando a agenda do telefone e memorizando o último número discado.
Ela chegara de Nova York naquela manhã. Falava francês muito bem, apesar das hesitações e do forte sotaque.
Mais uma vez, examinou o conteúdo da bolsa e encontrou um tíquete de bagagem. Nele havia um endereço da Cidade de Nova York e outro no vilarejo, ali mesmo onde estavam, perto de Paris.
Ele parou para pensar.
Tinha a impressão de que conhecia aquele endereço de muito tempo atrás, mas...
Precisava encontrá-la, de um jeito ou de outro... Tinha de caçá-la. Detê-la.
E, acima de tudo, precisava descobrir o que ela procurava na cripta.

O homem chegou ao café pouco depois do anoitecer.
Vestido casualmente, mas dentro dos rigores da moda, sentou-se e oscilou entre o distanciamento e os sorrisos charmosos que dirigia à garçonete. Não era o tipo que estimulava conversa casual, mas não se opunha a falar com estranhos quando a ocasião permitia. Às vezes, oferecia aquele sorriso estonteante, e, se estivesse bem-humorado, falava sobre o clima, viagens ou sobre a beleza do país no outono.
Com a chegada da noite e da escuridão, sentia uma estranha inquietação, uma espécie de tensão crescendo dentro de si.
Naquela noite, como em muitas, apenas esperava.
Havia esperado antes, esperaria sempre que fosse necessário.
Bebia café puro, como muitos americanos, mas seu francês não tinha sotaque.
- Mais um café, monsieur? - ofereceu a garçonete. Ele a estudou por um instante. Jovem, esguia, bela e sorridente. Retribuiu o sorriso, notando que a atitude a lisonjeava.
- Claro... Yvette, não é? É o que está escrito no seu crachá.
- Sim, meu nome é Yvette.
Ah, os jovens! Tão facilmente atraídos pelos belos e poderosos! Cansado da constante vigília, ele se sentiu tentado a brincar um pouco.
- Yvette... Esse sempre foi um dos meus nomes favoritos. Pode se sentar um minuto?
Hesitante, a moça olhou em volta, nervosa e ansiosa com a eventual reação do chefe se a pegasse flertando com um cliente. Mas o magnetismo do desconhecido era forte, maior que o medo.
E Yvette se sentou.
- Até que horas trabalha?
- Meia-noite, monsieur.
- Ah, sim? E quantos anos tem?
- Quase vinte e um.
- Que maravilha!
Ela mantinha as mãos sobre a mesa, pronta para se levantar e correr, caso o chefe aparecesse.
O desconhecido tocou-lhe os dedos e se aproximou, criando uma atmosfera provocante, mas sutil, algo que os outros clientes do café nem perceberiam.
- E qual é o seu nome, monsieur? - quis saber.
Ele flexionou o dedo indicador no ar, convidando-a a se aproximar.
Era para ser uma brincadeira, mas, de repente, tudo mudou. Ele sentiu uma corrente elétrica percorrer seu corpo e se levantou de um salto, deixando Yvette perplexa.
Praguejando, ele olhou em torno de si. Alguma coisa dera errado. Muito errado. Preocupado, jogou alguns francos sobre a mesa, tocou o queixo da bela garçonete e murmurou um obrigado apressado, prometendo vê-la mais tarde. Sabia, mesmo naquele momento de apreensão, que precisava fazer amizades naquele lugar que ficava bem na frente da igreja...

* * *
0 mais alto dos ajudantes do professor, aquele que estivera perto de Tara na hora em que o grito agoniado espalhara-se pela cripta surgiu de repente atrás dela.
Ela não tinha escutado seus passos na escada, e só percebeu sua presença ao ouvi-lo dizer:
- Se ficar mais longe, posso tentar arrombar.
Ela gritou, abrindo espaço para deixá-lo se aproximar. O olhar daquele homem era perscrutador.
- Temos de sair daqui por esta porta. Alguém no café do outro lado da rua já deveria ter ouvido seus gritos, mas podem estar tocando música alta, o que abafa o som.
Tara se mantinha afastada, tensa, como se cada célula do corpo sintonizasse a freqüência do perigo.
As luzes deixadas acesas na igreja eram fracas, porém havia mais luminosidade ali do que na câmara subterrânea e podia ver bem melhor o homem ao seu lado. Ele era alto, mais de um metro e oitenta e cinco, e embora parecesse musculoso e forte, não era um grandalhão grotesco ou desajeitado. Havia algo de diferente nele. Um certo mistério no olhar e poder em seus movimentos. As emoções que ela experimentava eram conflitantes. Queria correr, fugir, afastar-se. Mas também queria chegar mais perto, desfrutar a proteção que o estranho parecia disposto a oferecer.
Lembrou-se do grito que ouvira e, de repente, percebeu que o encarava. Por quê? Vira aquele homem trabalhando na cripta e nem dera muita atenção a sua aparência. Neste instante, porém, lutava contra o estranho ímpeto de confiar nele.
Alheio aos sentimentos que despertava, ele se moveu.
Tara o encarou assustada, ao vê-lo investir com um ombro contra a porta.
Os olhos sagazes a fitaram mais uma vez.
Para a surpresa dela, a porta tremeu sob o ataque, como se pudesse, de fato, ceder. Se não tivesse perdido o celular...
- Meu... telefone ficou lá embaixo.
- Seu telefone?
- Na minha bolsa. Um celular. Derrubei a bolsa quando corri.
- Quer voltar lá para pegá-la?
Tara sentiu o sangue gelar nas veias ao ouvir a sugestão.
- O que aconteceu lá embaixo?
- Por que você não me diz? - ele devolveu a pergunta.
Sensações estranhas voltaram a dominá-la. Medo, apreensão.
Queria correr. Não queria dizer a verdade a um estranho. Era ridícula! Não revelaria que prometera descobrir tudo e contar ao avô, porque ele acreditava fazer parte de uma certa "Aliança". Não diria que fora instruída a descobrir os segredos e mistérios da escavação.
Medo do que não entendia, da escuridão do grito, daquele homem...
Todavia, ele estava ali, tentando ajudá-la a escapar. E tinha algo em sua aparência...
Traços clássicos tornados mais interessantes pelo conjunto rústico. O despojamento e praticidade dos americanos com um toque de sofisticação dos europeus. Algo nele parecia inspirar confiança... e a impelia a se aproximar, apesar de o bom-senso exigir cautela.
Ele usava uma camisa de brim com as mangas arregaçadas, evidenciando o tórax másculo.
- O que aconteceu lá embaixo? - Tara perguntou, aproximando-se até estar a poucos centímetros dele.
Ele não respondeu, mas voltou a bater com um ombro na porta. Para surpresa de Tara, dessa vez houve um estalo um ruído de madeira se partindo. A porta cedeu.
- Preciso ir à polícia - ele disse. - Talvez você deva ir...
- Preciso saber o que aconteceu!
- Que, diabo, acha que aconteceu? - ele disparou, impaciente. - Jean-Luc está morto!
Tara recuou dois passos, e ele suspirou.
- E claro que não fui eu. Estava correndo atrás de você quando nós dois ouvimos o grito.
- Então...
- Alguém estava lá, é óbvio. Isso é uma escavação. Alguém devia saber que havia... alguma coisa na tumba. 0 caixão está vazio. Não sei o que havia nele, porque Jean-Luc o abriu enquanto eu ia atrás de você. Agora Jean-Luc está morto, e eu vou à polícia. Vem comigo, ou vai para casa? Pretende contar à polícia por que estava escondida em uma escavação arqueológica? Espere! Não responda agora. Não quero ficar aqui nem mais um minuto. Pode ficar, se quiser, mas eu vou sair. - Ele empurrou a porta, abrindo um grande buraco na madeira.
Tara passou pela abertura e tentou forçar a mente aturdida a funcionar.
Morto. Um homem estava morto. Bem, sabia disso. Sabia desde que ouvira o grito. E, é claro, uma coisa era verdadeira. Aquele homem não havia matado o colega francês. Ele estava mesmo no corredor, tentando alcançá-la, quando ambos ouviram o grito. Ela era uma americana bisbilhotando um sítio arqueológico de onde devia ter saído muito tempo antes.
Teria que explicar... o que nem ela mesma entendia.
- Um homem está morto - Tara murmurou. - Não posso fugir.
- Sim, Jean-Luc está morto, e não há nada que possamos fazer - ele declarou. - Estava onde não deveria estar. Confie em mim, vou à polícia para relatar o ocorrido, e acho que você pode ficar fora dessa confusão.
Era noite. O velho Citroen de seu avô estava no estacionamento ao lado do café. Havia pessoas na rua. Ela ouvia música, risadas.
Precisava ir ver Jacques. Ele poderia procurar a polícia.
O americano se preparava para falar, quando ficou repentinamente quieto, tenso, como se tivesse visto ou ouvido alguma coisa.
Mas não havia nada ali.
Era como se houvesse sentido alguma coisa. Fumaça no ar, uma ameaça de incêndio devastador...
- Vá para casa - ele disse, tenso. - Se não gostar do que ler nos jornais, poderá ir à polícia amanhã. Conte a eles o que viu. - E, sem esperar pela resposta, virou-se e desceu a escada da igreja para a calçada.
Tara o seguiu apressada.
- É bom que descubram quem fez isso.
Ele assentiu, deixando-a passar por ele e seguir em frente.
- Tara? - chamou-a
Confusa, parou e se virou para encará-lo.
- Tenha cuidado. Entre no carro imediatamente. Tranque as portas e vá direto para casa. Não pare por nada. Para ninguém. Não permita que nenhum estranho entre em sua casa. Não saia sozinha à noite. Está entendendo?
- Por quê?
- Há um assassino à solta. E é possível que ele a tenha visto.
O americano desceu a rua a caminho da delegacia, e Tara respirou aliviada ao lembrar que havia guardado as chaves do carro no bolso da calça, ou as teria perdido com a bolsa. A bolsa! A polícia saberia que ela estivera na cripta. Encontrariam sua bolsa caída lá dentro, em algum lugar.
Tara!
Ele a chamara por seu verdadeiro nome. Como podia saber disso se havia se apresentado ao professor com um nome inventado?
Era assustador.
Precisava ir à polícia.
Virou-se e seu coração quase parou quando o viu na esquina, olhando para ela.
Olhando? Ou observando, como uma estranha sentinela?
Não havia o que fazer. No dia seguinte saberia se ele, de fato, tinha ido à polícia. Se não, contaria tudo o que vira e ouvira. E poderia descrevê-lo.
No entanto, por alguma estranha razão, uma voz instintiva se ergueu dentro dela. Não! Faça o que ele disse!
Tremendo, Tara entrou no carro e partiu em direção ao château.
Precisava conversar com o avô.
A polícia não poderia fazer muita coisa naquele caso.

Brent Malone estava sentado diante da mesa do inspetor Henri Javet, respondendo a todas as perguntas com absoluta honestidade.
Ele não emitia opiniões ou impressões sobre o bizarro assassinato.
Admirava o detetive e a velocidade com que o homem trabalhava. Em poucos minutos, oficiais da polícia haviam isolado a tumba, tomando cuidado para não comprometer evidências que pudessem ser descobertas por peritos e detetives. Depois disso, o questionamento havia começado.
Não era difícil dizer a verdade. Ele e Jean-Luc estavam encerrando um dia de trabalho. Temiam que um turista pudesse estar ainda no local. Quando ele fora procurar o invasor, ouvira os gritos. O invasor havia deixado o local.
O professor Dubois havia saído pela rota de escavação, e depois de encontrar o corpo de Jean-Luc, ele entrara em pânico e correra para a igreja, cuja porta arrombara.
Javet, um homem com olhos escuros e cabelos lisos e negros, além de um porte físico que sugeria muitas horas de academia, estava perplexo por saber que Brent conseguira arrombar a porta.
- Adrenalina - disse o americano. - É constrangedor admitir, mas... não pensei em mais nada senão em sair dali.
- Tem certeza de que o professor Dubois havia partido? - Javet insistiu.
- Acredito que sim. Não posso ter certeza. Jean-Luc e eu estávamos trabalhando para encerrar o expediente. Então, ouvi um barulho e soube que havia alguém na igreja. Pensei que poderia ser uma criança, ou um turista. Talvez até alguém corajoso o bastante para querer passar a noite na cripta. O mundo está cheio de gente maluca. Eu não havia percorrido nem metade do corredor, quando ouvi os gritos. Mas não posso dar nenhuma idéia de horário ou tempo. Lá embaixo, é difícil saber. Quando saí, já era noite na rua. Posso ter percorrido os corredores por alguns minutos... ou mais.
- E voltou correndo? - Javet insistiu, embora já houvessem falado sobre aquilo antes.
- Ele gritou. Minha primeira reação foi correr para ajudar. Então o encontrei, e soube que não podia ajudar. Decidi que precisava sair dali e procurar a polícia.
- Está trabalhando na França... em situação legal?
Brent apresentou sua documentação.
- Esse é seu endereço atual? - Javet quis saber.
- Sim.
- Não pretende deixar o país?
- Não tenho nenhuma intenção de partir.
- Pode ficar desempregado por um tempo.
- Sim, eu sei. Não será problema.
- Não?
- Minha família tem algum dinheiro... e eu invisto no mercado de ações e no mercado imobiliário em meu país.
- Mas estava fazendo trabalho braçal numa escavação subterrânea.
- Sou um apaixonado pela arqueologia, inspetor. Fiquei tão fascinado com a história da escavação, que decidi aceitar qualquer trabalho para participar do projeto.
- Entendo. Mas o homem que foi morto trabalhava para pôr comida na mesa.
- Entendo que sou suspeito.
- Você estava lá. De fato, era a única pessoa que estava lá, exceto pelo suposto invasor que você perseguia quando ocorreu o assassinato. O que mais pode nos dizer sobre ele... ou ela?
- Praticamente nada. Não tive chance de encontrar a pessoa. Talvez tenham conseguido sair. Quando ouvi os gritos, voltei ao local da escavação, e encontrei Jean-Luc. Toquei nele para ver se ainda respirava, mas não toquei em mais nada, e saí de lá o mais depressa possível.
- Seu parceiro está morto, e um morto é um morto. Mas a aparência dele... Um assassinato horrível, e tudo por um caixão vazio.
Brent evitou consultar o relógio. Sabia que muitas horas haviam se passado. Horas das quais ele precisava.
- Devo reter seu passaporte - anunciou Javet.
- É claro.
- Vamos rever todas as informações mais uma vez.
- De novo?
- Sim, desde o início.
Ele havia esperado em vão. Observara quando os dois saíram pela porta quebrada da igreja. E vira quando a polícia chegara revirando tudo.
Durante algum tempo, continuou ali, tentando entender o que tinha se passado. Então, ouviu os oficiais conversando e soube de tudo. No mesmo instante, ficou a postos para levar sua missão a cabo.
Sombras eram fáceis de encontrar nas ruas escuras do vilarejo. Perto da estação de trem, então, elas eram ainda mais numerosas. E foi ali que ele esperou, tenso e atento, usando todos os seus sentidos. Porém, todos aqueles cuidados e apreensão não se mostraram necessários.
O desconhecido chegou no trem vindo de Paris, todo uniformizado.
Ele começou a segui-lo, e, quando ficaram sozinhos numa rua onde as sombras eram muitas, decidiu abordá-lo.
- Monsieur!
O homem uniformizado, seguro de seu posto e de suas habilidades, virou-se, impaciente.
- Sim, onde você está? O que deseja?
Ele saiu das sombras e se aproximou do oficial.
- Tenho informações para o senhor - anunciou.
Uma nuvem encobriu a Lua no céu e os dois foram engolidos pelas sombras.
Brent olhou para o relógio, amaldiçoando o homem que, incansável, revia cada detalhe do que fora dito.
- Espero que esteja ciente de que, como era a única pessoa no local do crime, eu poderia detê-lo por suspeita de assassinato - Javet anunciou.
- Se tivesse matado o homem, não teria vindo até aqui para contar o que sei.
- Em geral, tenho uma espécie de sexto sentido para certas coisas, Malone. E sinto que está me dizendo a verdade. Mas o vilarejo, e talvez toda a Paris... Bem, haverá um grande alarde. A opinião pública exigirá que alguém seja preso. Muitos acharão que você deveria ser preso em flagrante.
- Vai me prender?
- Não neste momento. Tudo que disse soou verdadeiro quando fomos à cripta. O perito afirma que você deve ter vindo direto para cá depois de achar o corpo. Não poderia ter escondido um tesouro ou um corpo em decomposição em tão pouco tempo. Por enquanto... Não, você não vai ser preso.
- Ah.
- E o que significa isso?
- Presumo que irá me observar.
- Sim - Javet hesitou por um momento, como se considerasse as próximas palavras. - Há uma certa inquietação no centro da cidade.
- Mesmo? Houve outros assassinatos por aqui?
- Não deve haver relação entre os casos, mas... recebemos notificações de pessoas desaparecidas... Bem, você sabe, as pessoas podem desaparecer porque querem desaparecer.
- Mas também podem sumir porque alguma coisa foi feita com elas. Quantas pessoas desapareceram?
- Cinco... nos meus arquivos. Entre elas uma turista britânica, uma jovem de vinte e cinco anos. - Abriu uma gaveta na mesa e tirou dela uma pasta, estudando seu conteúdo. - Um homem, quatro mulheres, todos jovem. Duas eram prostitutas. O homem e as outras duas mulheres eram turistas. Os três turistas possuíam passes para trem, o que significa que podem estar viajando pela Europa. Quanto às prostitutas... bem, trabalhavam nas ruas mais pobres da cidade.
- Uma prostituta assassinada por um cliente ou maníaco pode ser encontrada em um beco ou em algum lugar assim, não acha?
- Não encontramos nenhum corpo nos becos da cidade, e como disse antes, os outros podem estar em qualquer lugar da Europa. Sabe como é... Jovens esquecem de ligar para casa, e as mães ficam aflitas. Então, pegamos as fotos e espalhamos pela área metropolitana.
- Não vi nada nos jornais.
- Porque só deve ler a primeira página. Foi publicado.
- Talvez devesse publicar mais vezes.
- Paris é a Cidade Luz. Precisamos do turismo. Procuramos sempre evitar o pânico e agir de maneira responsável.
- Deve saber que prevenir as pessoas pode ser igualmente responsável.
- Talvez deva ir embora antes que eu decida prendê-lo.
- Não vai me prender, porque acredita que os desaparecimentos podem ter relação com esse assassinato. Sabe que eu não matei Jean-Luc, por isso deduz que há um assassino solto por aí. Ele pode pensar que vi alguma coisa e, portanto, se eu estiver solto, posso servir de isca para atrair o verdadeiro culpado.
- Talvez. - Javet continuava olhando para Brent como se pudesse ler alguma coisa em sua expressão.
Brent sustentava-lhe o olhar.
- Bem, pode ir - o inspetor disse por fim. - Desde que não vá muito longe, é claro.
- Claro, senhor - Brent respondeu enquanto se levantava. Sabia que seria seguido. Ouvira a ordem que Javet dera, em francês, a um de seus oficiais, embora ele houvesse apenas sussurrado.
Ele saiu da delegacia, acendeu um cigarro, e parou. Havia alguma coisa... Uma sensação estranha.
Sentira a mesma coisa antes, ao sair da igreja, quando insistira para que Tara Adair entrasse no carro e partisse.
Agora, por um momento, a sensação era ainda mais forte.
Ele olhou para trás e franziu a testa. A delegacia de repente, parecia envolta em sombras. Pensou na conversa que tivera com Javet.
Não fazia sentido.
Havia algo de errado ali.
Ele voltou à delegacia.
- Preciso falar com Javet de novo - Brent disse ao sargento na recepção.
- O inspetor acabou de sair.
A sensação persistia, mas não havia nada que pudesse fazer ali. Assim, saiu da delegacia e foi se sentar em uma das mesas na calçada do café. Após pedir uma bebida, simulou passar o tempo, mas estava atento à área isolada na entrada da escavação e da nova Igreja de St. Michel, cuja porta havia arrombado.
Depois de perguntar ao garçom sobre o banheiro do café, ele se levantou como se pretendesse usá-lo, mas caminhou até os fundos do estabelecimento e saiu por uma porta de serviço. Ninguém o seguiu.
Seu carro estava na rua ao lado, mas preferiu seguir a pé para outro bar. Lá usou um telefone público, embora tivesse o celular no bolso.
A voz profunda atendeu quase imediatamente.
- Alô?
- Preciso de você.
- Eu sei. Senti alguma coisa. Foi hoje. Esta noite.
- Deveria saber, mas... falhei.
- Ninguém tem culpa de nada. Se vamos culpar alguém, esse alguém sou eu.
- Uma pessoa foi morta. Ficarei atento.
- Tenho passagens reservadas. Vai nos encontrar em Orly?
- Não. Estive na polícia. Explico tudo quando você Chegar.
- Combinado.
- Amanhã, então. Farei o que puder hoje à noite, mas a cidade é grande. - Ele desligou, saiu do bar, e se certificou de que não era seguido. Nada. Nada na rua, nada no ar.
Nem mesmo um sinal sutil da direção a seguir. Mas precisava se mover.
Cinco desaparecimentos. Cinco notificações oficiais. Paris era uma cidade pela qual pessoas iam e vinham o tempo todo.
Podia haver mais. Muito mais.
E agora, aquela jovem na cripta. Se tivesse sido vista, se soubessem que ela nem sequer começara a suspeitar...
Brent considerou pegar o carro, mas mudou de idéia.
Precisava proteger a bela e curiosa Tara. Afinal, havia bons motivos para se preocupar com ela.
A noite seria longa. Tinha de tomar providências para que os que corriam maior perigo estivessem seguros. Depois, as horas de escuridão se estenderiam.
E havia coisas que teriam de esperar pelo amanhecer.
Determinado, deixou o centro do vilarejo e seguiu pela estrada escura que levava à área rural, olhando para o céu, procurando a Lua. A Lua minguante...
Cada vez mais, compreendia os motivos que tinham levado Tara à cripta. Havia muita coisa que ela não sabia, mas que... precisava saber.
Vira o endereço dela na bolsa.
Eles ainda não tinham começado a agir; mas a sensação de perigo era latente.
Brent começou a correr.
Em segundos, foi tragado pela escuridão.

Tara parou o carro na frente do château e correu para o seu interior, notando que Ann não havia retornado do trabalho. O avô não estava na biblioteca, e ela subiu a escada para o quarto dele.
A chegada repentina da neta despertou Jacques, e ele a encarou com grandes olhos azuis.
Tara jamais havia sido desrespeitosa com o avô, nem era essa sua intenção agora, mas as palavras jorravam de seus lábios sem que pudesse contê-las.
- Em que, diabo, de encrenca você me meteu, vovô?
Jacques DeVant ficou tenso.
- O que aconteceu?
- Um assassinato.
- O quê? Quem foi assassinado? Onde?
Tara respirou fundo.
- Fui à igreja. Alguns turistas visitavam a escavação, e eu flertei com aquele ridículo professor Dubois e descobri que ele tinha certeza de que estava prestes a encontrar o caixão de alguém da nobreza, uma mulher que viveu durante o reinado do Rei Sol. Ela foi amante do rei, mas a igreja ordenou seu sepultamento em solo profano por causa de suas práticas maléficas. Fiquei lá tanto tempo quanto pude, mas tive de sair, porque o dia de trabalho chegava ao fim e o local seria fechado. Então me escondi, pensando em voltar sem ser vista e ouvir a conversa dos operários. Um deles foi atrás de mim. Ele havia me encontrado quando ouvimos um grito horrível, um som que eu nunca ouvi antes. O sujeito que me seguiu correu para ver o que estava acontecendo. Enquanto eu esmurrava a porta da igreja, esse mesmo operário apareceu de repente atrás de mim e a arrombou.
- Você ouviu um grito... mas como sabe que houve um assassinato?
- O operário me contou que o colega dele havia sido assassinado, e por isso ele ia à polícia.
- Mas ele não tentou convencê-la a ir também?
- Não. Disse que eu deveria vir para casa.
- Não acha que ele mesmo pode ter assassinado o colega?
- Não, como acabei de dizer, ele estava comigo quando o sujeito gritou.
- E ele insistiu para você não ir à polícia?
- Sim, e parecia pensar que me fazia um grande favor me impedindo de acompanhá-lo. Agora estou pensando que fui uma idiota. Devia ter ido e contado o que sei.
- O que poderia ter dito? O que sabe? Ouviu um grito, só isso. Por que não toma uma dose de conhaque e se acalma?
- Onde está Ann?
- Trabalhando até tarde. Graças a Deus.
- Por que diz isso?
- Ela acha que estou ficando maluco. Ficaria furiosa se soubesse que você me ouviu e se expôs ao perigo.
- Então me colocou em perigo?
- Não tive essa intenção. Mas... pelo menos você esteve na cripta, e não foi à polícia.
- Espere um minuto. Como uma cidadã decente...
- Você é cidadã americana. Não francesa.
- Como cidadã americana do mundo...
- Não poderia ter feito nada.
- Ainda acho que deveria dar meia-volta e falar com eles.
- Não! - Jacques reagiu com desespero, o rosto pálido.
- Mas, vovô...
- O sujeito que a incentivou a deixar o local estava mesmo lhe fazendo um grande favor. É preciso manter seu nome fora de qualquer investigação. Alguém entrou no local da escavação e assassinou um trabalhador. Isso pode ser muito perigoso. Se seu nome for associado ao caso, você correrá perigo.
- Vovô, precisa me explicar o que está acontecendo. O professor acreditava que havia uma nobre enterrada lá. Ela foi sepultada com uma grande fortuna? O que levaria alguém a cometer homicídio por causa de um cadáver?
- Tome seu conhaque.
Como ainda tremesse, Tara aceitou a sugestão, engolindo o conteúdo de um pequeno copo sem parar para respirar. Uma onda de calor a inundou. Ela se serviu de uma segunda dose e se sentou na beirada da cama.
- Quero saber...
- Tara, quem era o sujeito que a convenceu a deixar o local?
- Um dos escavadores.
- Velho, jovem? Francês, inglês, italiano?
- Americano. Devia ter uns... Não sei, de trinta a trinta e cinco anos.
- E como ele era?
- Empoeirado.
- Tara...
- Alto, forte, musculoso... Arrebentou uma porta de madeira maciça para nos deixar sair da igreja. Cabelos castanhos, olhos verdes com reflexos dourados...
- Cabelo curto?
Ela negou com um movimento de cabeça.
- Acho que na altura dos ombros. Estava preso.
- Ah, bem, cabelo cresce, muda...
- O que está dizendo? Vovô, estou falando sério. Precisa me dizer o que está acontecendo!
Ele a encarou.
- O Mal está nas ruínas da velha igreja, querida.
- Vovô, é serio...
- Sei que é, e ainda bem que você está segura - ele continuou, como se falasse para si mesmo. - Nunca imaginei que chegassem tão longe. Não a teria enviado se não acreditasse que ainda tínhamos tempo para... para interromper tudo isso. Agora sei que fui tolo. Porém, é difícil não me envolver, e somos tão poucos agora... Porque o mundo mudou, você sabe. Mas isso não importa. Abra a gaveta de cima da minha cômoda.
- Não enquanto não me disser o que está acontecendo. Ele apertou o peito de repente.
- Vovô!
- A gaveta...
- Não! Vou ligar para a emergência agora!
- Não! Isso é só cansaço, Tara. Não vou ter um infarto. Mas, imploro, faça o que estou dizendo.
- Não pense que vai escapar.
- Abra a gaveta.
Ela abriu. As coisas de seu avô eram organizadas e arrumadas.
- Abra a pequena caixa marrom.
Tara obedeceu. Havia um pequeno crucifixo nela. Um belo crucifixo. Ouro dezoito quilates, grande, de desenho elaborado.
- Coloque no pescoço.
- Já estou usando um pingente.
- Por favor, use-a. Estou pedindo. Por mim.
Mesmo confusa, trocou a corrente que usava pelo crucifixo. Quando voltou para perto do avô, assustou-se com a força da mão dele agarrando a sua.
- Sente-se. Tara se sentou.
- O que vou dizer deve ficar entre nós, por favor. Precisa jurar que não vai discutir esse assunto com ninguém nem falar de mim com outras pessoas, por mais que pense que estou maluco.
- Nunca pensei que estivesse maluco...
- Então, você é a única. Mas jure, jure sobre a cruz que não vai falar disso com ninguém, mesmo que não acredite em mim.
- Prometo, não vou repetir nada disso.
- Acredito que eles desenterraram um vampiro.
- O quê?
- Eles existem, você sabe.
- Não, não sei. Há pessoas doentes no mundo, isso eu sei. Existem aqueles que pensam ser vampiros, e há pessoas que acreditam que cachorros e deuses falam com eles, ordenando que saiam e façam coisas horríveis. Mas vampiros não existem.
- Sabia que não acreditaria em mim. E tenho muito medo de que, com o tempo, você acredite.
- Quero acreditar em você, ou pelo menos encontrar uma explicação lógica para o que está pensando, para o que está acreditando que aconteceu. Porque sei que não é maluco, e sempre foi o homem mais brilhante que já conheci.
- Escute, Tara, o Mal existe no mundo!
- Receio que não haja mais pessoas inocentes e ingênuas a ponto de desconhecerem esse fato. O próprio homem pode carregar em si um mal maior do que...
- Sim, sim, infelizmente é verdade. Só que isso vai além do que você chama de mal.
- Não acredito em fantasmas, espíritos ou vampiros.
- Tudo bem, sei que estou pedindo demais de você. Ainda assim, precisa me prometer que vai prestar atenção ao que vou lhe pedir.
- E o que vai me pedir?
- Use o crucifixo. Nunca o tire do pescoço. E não deixe entrar em sua casa ninguém que você não conheça. Fique atenta. Seja rude. Não faça novas amizades enquanto estiver aqui. Pense nas coisas que ouviu e viu nas lendas, nos filmes, nos livros, mas não conte com todas elas. Não. Isso pode mudar de um dia para o outro. Pode haver entre eles os que adoram alho, embora a maioria deteste. Água-benta forte entre os que representam o Mal, mas não todos, um crucifixo... O crucifixo é um símbolo. Da mesma forma, não significa nada contra aqueles que não são o Mal, mas é tudo contra os que são. Está ouvindo? É muito importante. Você deve manter as janelas fechadas, e não deve convidar ninguém a entrar. Isso é muito importante. Não convide ninguém a entrar.
- Vovô, por favor, tentarei fazer o que me pede, mas precisa admitir que está falando como um maluco.
- E você precisa me ouvir. Ainda acho que há coisas que devem ser feitas, ela deve ser detida. Há outros na Aliança, mas já faz tanto tempo que... Muitas vezes eu me considerei um maluco solitário na Europa. Cheguei a pensar que havia imaginado tudo no Velho Mundo. E depois veio a guerra... e mais guerras. Sempre as guerras. E é então que você vê o mal do homem, e às vezes descobre a bondade da Aliança. O problema é que eles estão por aí, ela está solta, e você precisa me ouvir.
Quanto mais o avô falava, mais tudo aquilo lhe parecia maluco. Contudo, Tara reconhecia que o avô poderia estar certo, pelo menos em relação a um ponto: se um assassino brutal havia matado um pobre trabalhador para ter acesso a um caixão, nele deveria ter algo de incrível valor. E para não ser pego, o assassino bem podia fazer dela um alvo.
- Deus! - exclamou, de repente.
- O quê?
- Minha bolsa! Ficou na cripta!
- Talvez não.
- Deve estar.
- O jovem pode tê-la encontrado.
- Ele não a tinha quando saímos da igreja.
- Talvez você não tenha notado. Não tenha medo. Se a bolsa estivesse na cripta, o telefone já teria tocado, porque a polícia a teria encontrado e ligado para você. Vamos esperar que a bolsa tenha sido tirada de lá. Se não, terá de dizer que a perdeu quando foi visitar a escavação. Não pode revelar que sabe alguma coisa sobre o assassinato.
- É errado não revelar o que sei. Se eu puder ajudar...
- Não pode!
Naquele instante, Tara ouviu o barulho do carro de Ann e se aproximou da janela para olhar o pátio.
- Não deve dizer nada a Ann sobre o que discutimos aqui. Ela não vai acreditar. É linda, amorosa, inteligente... e incrédula! Receio...
Ao vê-lo hesitar, ela indagou:
- Do que tem medo?
- Talvez de não poder protegê-la do perigo. Precisará cuidar dela também. Não se arrisque, mas fique atenta aos passos de sua prima. Ann só se atém aos fatos, ao que os olhos podem ver, e isso não vai nos ajudar agora.
- E o que vai nos ajudar, exatamente?
- Preciso pensar... pensar... Se a velha Aliança ainda existisse! Ficamos fracos com o tempo, com os horrores dos tempos atuais. Os homens lutam outras batalhas, e esquecem... É fácil esquecer, porque poucos acreditam, e se acreditassem, o que aconteceria seria assustador.
- Ann está subindo.
- Não diga nada a ela.
- Como assim, não dizer nada? Ann me disse hoje de manhã que você pediu a ela para ir à igreja!
- Diga que você foi. Só isso.
Ann entrou no quarto como uma rajada de vento, e ela falava tão depressa que Tara nem teve tempo de abrir a boca.
- Vocês ouviram? Houve um assassinato na igreja. Uma coisa horrível! Alguém invadiu o local, roubou alguma coisa de dentro de um caixão, inclusive o cadáver, e assassinou um dos operários. Horrível. O homem foi decapitado.
- Nós ouvimos - declarou Jacques.
- Tara, você esteve lá hoje?
- Sim.
- Fico arrepiada só em pensar nisso! Meu Deus, você deve ter visto o homem que foi morto, Tara! Eles trabalhavam quando você esteve lá?
- Sim, devo ter visto. Mas os trabalhadores me ignoraram. Conversei apenas com o professor que comandava a escavação.
- Dubois - Ann disse, revirando os olhos.
- Você o conhece?
- Já o conheci, sim. É um fanático de olhos arregalados e mãos bobas. Bem, agora alguém vai fazer aquele lunático parar. E vão interromper as escavações, o que vai deixar você muito satisfeito, certo, vovô?
- Isso tudo já chegou ao noticiário - murmurou Jacques.
- Ah, sim, é claro. Um trabalhador encontrou o outro morto e foi à polícia. O noticiário local não falou isso, mas o outro operário deve estar sob suspeita. Eram só ele e o morto no local.
- Talvez...
- Talvez, vovô?
- Eu me pergunto se Dubois realmente deixou o local. Já falaram com ele desde que tudo aconteceu?
- De acordo com o que ouvi, ele foi chamado e estava muito chocado quando se apresentou às autoridades. E, é claro, ficou muito desanimado, mas não por causa do trabalhador morto, e sim pelo fato de que os trabalhos serão interrompidos na escavação. E você, Tara? Tem certeza de que está bem? Meu Deus, estava na cena do crime... Isso é horrível. Vou trazer Eleanora para dormir na entrada do château esta noite. Horrível! Um assassinato brutal, e tão perto de nós!
- Há um alarme na propriedade - Jacques lembrou.
- Eu sei, vovô. Mas isso... mexe com os nervos.
- Concordo, Ann.
- Você parece exausto, vovô.
- Estou bem. Mas vou dormir agora. Ann, mesmo não sendo covarde, traga o cachorro para dentro e certifique-se de que o alarme está ligado. Como eu dizia a Tara, não devemos convidar estranhos para entrar nesta casa.
- É claro que não. Agora vamos deixar você dormir.
Ela o beijou, e Tara também.
Jacques encarou as netas, e havia em seus olhos uma súplica determinada.
- Bonne nuit, vovô.
- Se acontecer alguma coisa, me chamem. Estou falando sério. Posso estar velho, mas minha pontaria ainda é muito boa.
- É claro, vovô - disse Ann.
As duas saíram, e Ann fechou a porta com cuidado.
- Tara, precisa entender que ele se cansa com facilidade.
- Acabei de chegar, e não fiquei mais de cinco minutos com ele.
- Bem, deve ter sido essa notícia inquietante, então. Vou descer para pegar Eleanora e trazê-la para dentro. Ela é uma cadela leal, doce, mas pode nos proteger, se for necessário. E depois, acho que vou tomar um banho, um drinque... e cama!
- Também vou dormir. Estou exausta!
No quarto, Tara se sentou no pé da cama. Estava atordoada, perplexa... O trabalhador havia sido decapitado. E estava lá no momento do crime. Inquieta, levantou-se, tentando superar o medo, e foi abrir as portas da sacada para sentir a brisa da noite.
Não havia estrelas no céu. Apenas a Lua minguante iluminava o gramado diante do château. O frio do outono que se aproximava parecia mais intenso agora.
De súbito, um som chamou sua atenção.
Tara sentiu um arrepio percorrê-la. O medo voltou a envolver seu coração.
Um cão.
Eleanora?
Olhou para baixo e viu o animal. O uivo se repetiu, prolongado e profundo. Era um animal enorme, e o som que ele emitia lembrava criaturas selvagens invocando os poderes da noite.
Não era Eleanora. Era um lobo, e ele era quase tão grande quanto um cavalo.
Mas não havia lobos naquela região. Lobos na área metropolitana de Paris?
O animal uivou pela terceira vez.
Ela recuou e parou na porta, longe da varanda, fechando os olhos e desejando que o som não rasgasse sua alma, que não despertasse aquela sensação de perigo, aquela horrível premonição.
O uivo cessou. O animal desapareceu.
Tara entrou no quarto e fechou a porta. Depois desceu a escada correndo.
A porta não estava trancada.
Ann deveria estar lá fora, ainda cuidando de levar Eleanora para dentro. O velho Daniel relinchava no estábulo, o que era incomum. Alguma coisa perturbava o cavalo.
Ela hesitou, com medo de sair.
Mas... Ann devia estar lá fora.
Isso era ridículo. O château era a sua casa!
Tara saiu.
A porta se fechou atrás dela.
Tara correu para o estábulo e acendeu as luzes. Daniel estava em sua baia, acordado e com os olhos bem abertos. O pobre cavalo tentava recuar, olhando para algum ponto além da porta do estábulo, mas não havia ninguém lá.
Ela acalmou o animal e depois de alguns minutos saiu do galpão. Ainda não vira nem sinal de Ann. Talvez ela houvesse entrado. Alarmada, correu para o castelo, mas encontrou a porta trancada. Desesperada, bateu e gritou:
- Ei, estou aqui fora!
Katia a recebeu vestindo pijama, o rosto assustado emoldurado pelos cabelos em desalinho.
- O que aconteceu?
Tara se sentiu tola. Não havia acontecido nada.
- Pensei que Ann estivesse aqui fora, mas...
- Ela estava, mas já foi dormir.
- É claro. É o que vou fazer, também. Desculpe se a acordei, Katia.
- Não tem problema. Bonne nuit - disse, trancando a porta, acionando o alarme e voltando para o quarto próximo à cozinha.
Tara tomou uma ducha quente, pensando em relaxar e lavar o medo de sua alma. A diferença de fuso horário exercia um terrível efeito sobre ela. Estava exausta, mas alerta, incapaz de dormir.
Talvez devesse desfazer as malas.
Começou a pendurar roupas, e aproveitou para desembalar parte das telas e tintas que trouxera consigo. O cavalete que o avô lhe comprara havia anos ainda estava no quarto, e ela aproveitou para montar uma tela e separar pincéis e algumas cores de aquarela. Não sabia nem o que pretendia fazer, mas começou a pincelar a tela em branco, tentando reproduzir as cores da noite. Havia também matizes de cinza, branco e preto espalhados a esmo.
A certa altura, Tara decidiu que precisava dormir. Não sabia o que estava fazendo.
Entretanto, mesmo após ter se deitado, não conseguia adormecer.
Um homem havia sido morto. Sim, alguém fora brutalmente assassinado. E sua bolsa ficara na tumba.
Só esperava que sua bolsa tivesse sido encontrada pelo americano que a ajudara a fugir, não pela polícia, ou pior, pelo assassino.

Paris havia mudado.
Sim, vira o mundo mudar antes, mas não daquela maneira tão drástica.
Odiava o campo, sempre odiara. Por outro lado, amava as luzes e o movimento da cidade, mas era forçada a reconhecer que, além das máquinas que se moviam pelas ruas, o campo havia crescido. Havia muita gente ali. E lojas. Tinha muitas mesas nas calçadas, e pessoas bebendo, comendo. Algumas delas...
Seminuas. Uh-lá-lá! O vestuário hoje em dia!
Adorava aquela mudança.
Havia frescor e liberdade em todos os lugares a sua volta. Inebriante. Mas queria a cidade, e logo ela percebeu que só precisava acenar para um dos carros amarelos para ter transporte e se afastar da pequena igreja no vilarejo. E quanto mais se afastava, melhor, mais forte se sentia.
O motorista parecia se divertir com seu traje, mas logo ele notou que as jóias eram reais. Ao perceber que destoava da maioria das pessoas, ela o convenceu de que ia a um baile de máscaras.
O rapaz era jovem e atraente. Era fácil fazê-lo falar sobre o que acontecia na cidade, no mundo.
Foi chocante ouvir sobre a revolução. Deplorável. Haviam decapitado um rei! Era simplesmente incrível. É claro, o motorista tinha ficado desconfiado, estranhando que houvesse algum lugar no mundo onde se pudesse ignorar notícias tão notórias sobre a história da França.
Quando ele reduziu a velocidade, ela se debruçou entre os bancos daquela coisa chamada táxi, e tocou-lhe o rosto, dizendo o quanto o achava delicioso.
Ele sorriu.
Diante daquilo, ela decidiu não matá-lo, mas roubou todo o seu dinheiro.
Paris havia mudado.
As lojas eram incríveis.
Ela passou horas experimentando roupas, dizendo às lojistas que estava em Paris para um baile de máscaras, mas acabara descobrindo na última hora que o tema da festa havia sido alterado. E como comprava coisas para aquela noite...
Foi inquietante descobrir que não tinha dinheiro suficiente para tudo o que desejava comprar. Antes de perder o controle, porém, soube que agora existia uma coisa chamada "plástico", que podia ser usada como dinheiro em forma de um cartão. E, é claro, na hora decisiva ela conseguiu convencer a jovem de que já pagara por todos os pacotes que ela fizera. Com um pouco de sua astúcia secular, conseguiu vários pedaços de plástico que tanto facilitavam o prazer de comprar. A balconista era ingênua, curvilínea, suculenta...
Não esqueceria o nome da loja.
O comportamento dos jovens na rua era intolerável. Eles a encaravam sem nenhum respeito por sua posição, sem perceber que encará-la daquela maneira podia ser letal. Por outro lado, reis tinham sido mortos, e não se sabia quem governava, ou quais eram as leis desses tempos.
Às vezes, ela correspondia a um olhar, e fitava as pessoas de um jeito que causava constrangimento e medo.
Então, voltava a se divertir.
Com alguns francos no bolso, parou para beber vinho em um local com mesas na calçada, e leu as manchetes de um jornal deixado por outro cliente. Que mundo! Mas precisava conter o impulso de celebrar.
Dessa vez não cometeria erros. Resguardaria sua força e construiria mais poder diariamente. Enviaria mensagens, usaria o mundo dos sonhos, e convocaria aqueles que deviam estar próximos dela.
O motorista de outro táxi a levou ao palácio, estranhando que alguém quisesse ir lá àquela hora da noite. Mais tarde, ele não lembraria que não havia recebido pela corrida. Teria pesadelos, se retorceria na cama, mas não lembraria nada sobre a estranha passageira.
Ela entrou no palácio estranhando as mudanças. Não estava interessada nos guardas de segurança, porque já se alimentara do operário que a libertara, mas precisava evitá-los. Por isso andava em silêncio, estudando as obras de arte. Agora eram muitas, mais do que no passado. O que haviam feito com tanta beleza? Sempre amara aquele lugar, e se sentia bem ali.
Durante o dia as lojas do complexo deviam atrair uma multidão de visitantes, mas à noite os inúmeros corredores e cômodos serviam de refúgio. Era uma boa base de onde observar o novo mundo. Pelo menos esta noite.
No entanto, era perigoso prolongar sua estadia. Aquele era um de seus antigos refúgios, e ainda poderia haver os que se lembravam.
Sim, ainda havia quem se lembrava dela. Se não, por que tanta determinação em despertá-la? Dessa vez seria mais cuidadosa. Permaneceria atenta aos perigos, e talvez pudesse eliminá-los.
Mas esta noite...
O palácio.
As coisas que haviam feito!
Precisava ver tudo. Depois, descansaria quando chegasse a luz do dia. E, descansada, teria muitas noites pela frente...

Ann entrou na cozinha pronta para ir trabalhar.
Katia assobiava enquanto preparava uma bandeja de café da manhã para Jacques. Roland já trabalhava nos jardins.
Tara se serviu de uma xícara de café e seguiu a prima até o carro.
- Então, acha que devemos sair hoje à noite? - Ann perguntou.
- Não sei. Devemos?
- Estou precisando sair um pouco.
- Certo. Vamos sair.
- É claro. Além do mais, acho que esse sujeito estava atrás dos tesouros na cripta. Quero dizer, ele não estava por aí aterrorizando mulheres, ou coisa parecida.
- É claro. Não temos por que pensar que alguém que roubou uma tumba pode estar atrás de nós.
A menos que o assassino houvesse encontrado sua bolsa, não é?, Tara pensou com uma ponta de ironia.
- Não sei...
- Vamos sair - disse Ann. - Vou convidar alguns amigos do trabalho. Estaremos mais seguras em um grupo grande.
- É claro. Falando em segurança, eu... vi um lobo ontem à noite.
- Tara, não há lobos aqui! Deve ter visto um cachorro.
- Bem, então era um cachorro enorme.
- Há muitos por aqui. E você estava cansada, abalada com a história do assassinato... Escute, ligo mais tarde para falar sobre os planos para a noite.
- Certo.
Como Jacques estava dormindo, Tara pensou em aproveitar para ir ao vilarejo e confirmar que as pessoas ainda eram normais. Queria ver a igreja, descobrir o que a polícia estava fazendo. E tinha de ir informar aos policiais que havia perdido sua bolsa na cripta durante uma visita.
Felizmente deixara algum dinheiro nas malas, ou teria de pedir um empréstimo a Roland ou Katia para uma xícara de café.
Pouco depois, ela estacionou quase no mesmo local do dia anterior. De uma mesa na calçada do café, pôde ver que uma grande extensão da área ainda permanecia isolada. A porta da igreja fora emendada com madeira nova e diferente da antiga, e estava aberta como de costume, embora ela duvidasse de que houvesse acesso à escavação no subsolo.
Simulando casualidade, Tara pegou um jornal, pediu um café au lait, e pôs os óculos escuros, fingindo não prestar muita atenção à igreja, embora todos a sua volta comentassem sobre o assassinato. Seus olhos estavam fixos na porta remendada quando alguma coisa aterrissou sobre a mesa, fazendo tremer a xícara de café. Ela se assustou, quase gritou, e ergueu os olhos para ver o americano que a salvara na noite anterior.
Uma onda de calor a invadiu.
O objeto jogado sobre a mesa era sua bolsa.
Ele puxou uma cadeira enquanto perguntava:
- Posso me sentar?
E se sentou antes que Tara respondesse.
- Onde encontrou isso? Pensei que ia procurar a polícia!
- E fui. Peguei a bolsa quando saía da escavação, mas esqueci de entregá-la ontem.
O garçom se aproximou, e ele pediu:
- Café au lait, s'il vous plait.
- Não me lembro de ter dito que você podia ficar.
- E ainda especulam por que temos essa reputação de sermos rudes! - Ele riu. - Ontem à noite, livrei-a de um enorme problema e de uma grande perda de tempo.
Arrisquei a vida para resgatar sua bolsa, e você nem agradece!
- Fui instruída a não falar com estranhos. Há um assassino à solta.
- Sim, mas você sabe que não sou eu. Embora eu ainda seja suspeito para todos os outros. É isso. Para defender você, acabei me metendo numa terrível confusão.
- Não precisava me defender.
- Ah, não? Bem, todos aqui sabem que Jean-Luc e eu trabalhávamos para Dubois. Por outro lado, ninguém desconfia de que você tenha estado na cripta no momento do assassinato, ou que tenha mais que um interesse casual na escavação.
- E não tenho.
- Não mesmo? Então, por que estava escondida lá embaixo, depois de ter dito que sabia sair sozinha?
- Para ser franca, não sei nada sobre a escavação.
- Nada?
- Acabei de chegar de Nova York.
- E teve um interesse casual no que estava acontecendo. Depois de um voo longo, e de ficar quase sem dormir, seu interesse casual a levou à escavação.
- Não preciso dar explicações. Nem sei seu nome! E nem quero saber.
- Pegue um jornal qualquer e verá meu nome nele. Mas, como já estamos aqui, não precisa se dar o trabalho. Meu nome é Brent Malone.
- E deve saber qual é o meu, porque vasculhou minha bolsa.
- É difícil devolver alguma coisa sem saber a quem ela pertence.
- Já devolveu.
Brent ignorou o significado do comentário.
- Tara Adair. E você nos deu um nome diferente. Francês, se não me engano. Fingiu ter parentes franceses.
- E tenho - ela respondeu, irritada.
- Acredito em você. Afinal, qual é seu interesse na cripta?
- Quando digo que não sei quase nada sobre a escavação, não estou mentindo.
Ele a encarou em silêncio, os lábios distendidos num meio sorriso.
Tara respirou fundo.
- Por que não me conta sobre as criptas e a tumba e o que há de tão importante nelas?
- A cripta é amaldiçoada, como deve saber.
- Sim, eu sei.
- Há outra Igreja St. Michel agora. A primeira foi demolida, e a igreja nova foi erguida a cerca de cinqüenta metros da anterior. Os corredores estiveram bloqueados por séculos. Então, recentemente, houve um trabalho qualquer no porão da nova igreja, e ocorreu um vazamento de água que danificou uma das paredes. Enquanto a nova igreja era reformada, um dos velhos corredores para a antiga cripta foi encontrado. O professor Dubois vinha atormentando os padres há anos, querendo descer às ruínas. Quando se viu diante da oportunidade, ele não hesitou em anunciar aos bons cavalheiros da igreja que tinha dinheiro, e que uma boa parte da verba seria destinada à igreja se tivesse o controle total da escavação. Dubois tem a reputação de estudioso brilhante e também tem muitos trabalhos em História. Quer outro café? Vou pedir para mim.
- O quê? Ah, sim, sim... Obrigada.
Brent sorriu. Tudo nele parecia excepcional. Se o houvesse conhecido em outro momento, em outras circunstâncias...
Ele pediu o café, e logo o garçom retornou com as duas xícaras. Brent Malone se debruçou sobre a mesa e continuou com seu relato.
- Dizem que a cripta é um local de repouso de amaldiçoados e demônios.
- Bobagem! - Tara riu. - Presumo que a velha igreja tenha perdido sua importância quando a nova foi construída, só isso.
- Não me refiro a pessoas de má índole ou de caráter duvidoso. Estou falando de criaturas abomináveis, e de homens e mulheres que despertaram o ódio do rei. O local foi fechado há anos, mas sempre houve uma passagem permitindo a entrada. O corredor era conhecido por reis e por seus lordes mais poderosos, e também pela alta hierarquia da igreja. E quando alguém tinha de ser sepultado, alguém realmente mau, o corpo era levado para lá em segredo - ao amanhecer, não na calada da noite, já que os poderes profanos são sempre maiores na escuridão - e selado em seu túmulo.
- Todos nós ouvimos histórias assim. Os faraós do antigo Egito acreditavam que as vestes e as riquezas com que eram sepultados dariam a eles a vida eterna, que seus corpos preservados se levantariam um dia.
- Múmias? Isso é outra história. Não acredita no Mal, ou nos poderes das trevas, srta. Adair?
- No Mal? Ah, meu Deus, sim! O mundo está cheio dele. Mas há tantos homens e mulheres maus por aí, que não precisamos ir procurá-los em velhas histórias e lendas. - Jacques devia conversar com este homem. Depois de ouvi-lo, não teria de se preocupar com a própria saúde mental!
Pensar nisso despertou nela uma estranha tensão. Não queria Brent Malone perto de seu avô. Entretanto, ao mesmo tempo, continuava se sentindo atraída. Era como se...
Como se houvesse esperado a vida toda para conhecê-lo.
- Não é lenda, srta. Adair. É a história da cripta.
- Está me dizendo que o homem que foi morto abriu um caixão enquanto você estava ausente do local, e que abriu também uma espécie de caixa de Pandora? Quer dizer que aquele caixão continha mais que os restos de um herege? Havia nele o próprio mal? É isso?
- Eu não disse nada disso. Repito, acabei de contar apenas parte da história da cripta sob a igreja. Deve saber que há muitos séculos havia aqueles que acreditavam nos poderes da bruxaria e em homens e mulheres que faziam pactos com demônios. O que aconteceu em Salém foi trágico, mas é pequeno comparado às execuções na Europa, onde havia dias em que milhares pereciam por suas práticas.
- Agora está falando como se fosse ridículo acreditar em bruxas ou criaturas sobrenaturais, ou no mal enterrado nas ruínas de uma velha igreja.
- O que quero dizer, srta. Adair, é que há séculos muitas pessoas acreditavam na existência do Mal em muitas formas. Milhares de inocentes morreram por medo, ganância, política, e religião. Mas o medo sempre foi muito real. E se alguém era muito temido e considerado mau, e não fazia parte da igreja, essa pessoa era enterrada em solo profano. Tais sepultamentos aconteciam cercados por ritos e símbolos físicos para impedir que se levantassem, ou que voltassem a praticar algum mal. A história nos revelou monstros bem reais, homens como Hitler, por exemplo, gente com tamanho desprezo pela vida humana que podiam ser considerados a encarnação do Mal. Pode ter havido muitos outros - não grandes líderes, mas gente da nobreza. A condessa Bathory... Ninguém sabe quantos jovens inocentes ela matou para satisfazer sua sede de sangue e sua busca pela eterna juventude. Ela é só uma dentre um batalhão de criaturas cruéis, perversas. E... - Hesitou e se inclinou na direção dela, baixando o tom de voz. - Estou avisando. Fique longe da igreja. Jamais revele que estava lá no momento do assassinato. Nunca tire do pescoço essa cruz que está usando. Não confie em ninguém. Nunca saia sozinha à noite. Temo por você.
- Teme por mim? E eu? Devo ter medo de você? Ele tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos.
- Srta. Adair, garanto que não há motivo algum para sentir medo de mim.
Não? Estava hipnotizada! O breve contato parecia ter atingido o âmago de sua alma!
Tinha mais do que bons motivos para estar apavorada.
Precisava se levantar, dizer a ele que ficasse longe, longe dela e de seu avô. Mas nem mencionara Jacques, não precisava temer que ele soubesse alguma coisa sobre um homem idoso vivendo em um château.
Tara não conseguia se mover. Os olhos estavam fixos nos dele.
Mas ele não parecia ter a mesma dificuldade.
Brent se levantou de repente.
- Com licença, meus amigos estão chegando. Voltaremos a nos ver em breve - e dizendo isso ele se afastou.
Tara o viu cumprimentar um casal, um homem muito alto e uma mulher jovem, loira e elegante. Os dois usavam roupas casuais, jeans e jaqueta, a da mulher, de jeans, a do homem, de couro. Paris era cheia de gente atraente e moderna. Tinha a sensação de que a intenção do casal era se misturar à multidão.
Os três se afastaram caminhando pela rua.
Eles já estavam longe quando Tara percebeu que ainda não havia se movido. E que ainda sentia o toque daquelas mãos poderosas.



Capítulo II


Havia uma nova liberdade no sono. E nos sonhos. Quando dormia, podia voar. Podia pairar sobre a escuridão, voar na névoa, cortar as sombras. Concentração era essencial, e estava satisfeita com o lugar que escolhera, porque se sentia segura, capaz de se concentrar em sua missão.
Uma onda de alegria a invadiu quando sentiu outra presença ao seu lado. Precisava ser cuidadosa. Mas sentia uma intensa euforia e um sussurro no vento quando o cortou voando no mundo de escuridão.
É você? A escuridão falava com ela, e ela respondeu sentindo-se gloriosa e cheia de poder.
Sim! Voltei.
Eu sei. Queria estar com você. Agora, você deve vir a mim.
O mundo mudou.
O mundo sempre muda.
Há grande perigo. Eu sinto.
Sim. Venha para mim. Devemos ficar juntos. Podemos começar um novo mundo outra vez.
Eu irei, é claro.
Há outros. Você precisa ficar atenta.
Ah, mas sou poderosa. Como você!
Sim, mas deve permanecer alerta, há outros... e outros que mudaram. Que temem, que ordenam que desistamos do poder que podemos usar.
São covardes.
São fortes. E há os da Aliança...
Então devem ser mortos, e depressa. Não tenho medo. Sempre fui a mais forte.
Ah, meu amor, esqueceu que eu consegui sua liberdade. Sabemos por onde começar a criar um mundo no qual poderemos viver, realizar, amar... e ter segurança. Tracei planos cuidadosos. Teremos conosco aqueles que não se acovardam diante dos mais fracos que nós. Venha para mim, e vou lhe mostrar o que a vida pode ser. Mas tenha cuidado. Vai rir ainda mais quando descobrir o que fiz neste mundo!

Tara voltou ao castelo e encontrou o avô trabalhando na biblioteca.
Ele estudava um livro grande e antigo aberto sobre a mesa e ergueu os olhos ao ouvi-la entrar.
Tara deixou a bolsa sobre a mesa, e ele arqueou a sobrancelha.
- O operário da escavação me devolveu a bolsa naquele café na frente da igreja, no vilarejo.
- Ah, que bom. E está tudo aí? Não falta nenhum documento?
- Nada. Passaporte, identidade, dinheiro, cartões de crédito... Tudo como estava antes.
- Que bom.
- Mas ele sabe meu nome.
- E você sabe como ele se chama?
- Sim. Brent Malone. Jacques olhou para o livro.
- Você o conhece, vovô?
- Não, acho que não.
- Estranho. Ele também falou sobre o Mal enterrado na cripta.
Jacques suspirou e a convidou a sentar-se, deixando os óculos de leitura sobre o livro.
- Da próxima vez que encontrar esse homem, convide-o a vir aqui.
- Duvido que o encontre de novo.
- Ah, mas eu sei que vai encontrá-lo. Conhece o Rei Sol? Na América, deve ter aprendido na escola a história de Washington, Lincoln, Roosevelt, Kennedy... Na França, todas as crianças aprendem a história do Rei Sol.
Ela o encarou sem alterar a expressão do rosto.
- Conheço a história do Rei Sol. Luiz XIV. O monarca francês que reinou por mais tempo. Ele subiu ao trono ainda criança, e na juventude teve seu poder e sua política determinados em boa parte pelo cardeal Richelieu.
- Quando envelheceu, ele decidiu que, depois de uma vida cheia de amantes, seria leal à esposa. A pobrezinha morreu no ano seguinte. O rei se casou de novo. Comenta-se que foi um homem de tremendo vigor sexual.
- Os livros de História não contêm essas informações.
- O que quero dizer é que ele se tornou conhecido, antes de sua tardia dedicação à rainha, por manter dúzias de amantes. Era um homem decente com os filhos, todos reconhecidos e tornados legítimos, muitos deles casados com princesas, príncipes, e outros membros da nobreza.
- Bem, pelo menos nisso ele foi decente, eu acho.
- Com relação às amantes, foram muitas. Naturalmente, a mais recente sempre tinha mais poder sobre ele, recebia homenagens... e ficava, de certa forma, acima da lei.
- Compreendo.
- Houve um tempo em que a amante da vez era uma mulher conhecida como condessa Louisa de Montcrasset. Ela era muito bonita, e tinha poder incomum sobre o rei. Era filha de um nobre francês, mas não havia crescido em Paris. Os registros dizem apenas que foi educada no Oriente. Um dia ela apareceu na corte e, como filha de seu pai, foi recebida com as devidas honras. Em semanas havia usurpado o lugar de outras favoritas do rei, e conseguia chamar a atenção dele, mesmo quando havia grandes questões de Estado a ser decididas. Tara sorriu.
- O Rei Sol se apaixonou.
- Bem, Louisa de Montcrasset tinha muito poder sobre o rei.
- A jovem beldade que apareceu repentinamente do Oriente. A filha do nobre - lembrou Tara.
- Na época, algumas pessoas duvidavam de que ela fosse quem dizia ser.
- E atacaram seu relacionamento com o rei, claro.
- O pai dela havia deixado o país. Era um militar que viajava muito, e quando não estava lutando em nome do rei, agia como uma espécie de diplomata. Não era visto havia anos. Conta a história que o homem era um belo francês de cabelos e olhos escuros e rosto aristocrático.
- Então, o que havia de tão incomum na beleza da filha. Tudo bem, a genética pode ser estranha... Eu, por exemplo, não sou parecida com você ou com Ann, mas...
- Ela era dona de um rosto exótico. Tinha "olhos de gato", como contam os relatos.
- Talvez fosse uma mulher que sabia usar seus encantos para conseguir o que queria. Imoral, possivelmente. Não acha que ela pode ter sido odiada por isso? Os que escreveram sua história podem ter tentado pintá-la como alguém má, demoníaca...
- Foram poucos os que a desprezavam e escreveram sobre ela.
- Por quê?
- Porque quase todos morreram.
- Ah, sim?
- O século dezessete, minha querida, era um tempo em que se temia a bruxaria. Suspeitava-se de que ela havia entrado para uma seita, feito um pacto com o diabo, e que obtinha sua beleza por meio de sacrifícios humanos.
- Nós dois sabemos que esse Mal que cospe fogo e faz pactos com as pessoas, não existe.
- E nós dois sabemos que, mesmo assim, apesar de centenas de inocentes terem sido sacrificados por suspeita de bruxaria, havia muitos que se uniam a seitas e acreditavam poder invocar o poder das trevas. Na França daquela época, como em muitos outros lugares da Europa, muitos eram executados por bruxaria. Mas não era a suspeita daqueles que a cercavam que a tornava uma entidade tão assustadora. Eu acabei de dizer. Pessoas morriam. Logo depois da chegada dessa mulher na corte, dúzias de pessoas começaram a... desaparecer. De início pareciam cansados, distraídos, depois caíam de cama. Alguns morriam no leito, fracos demais para reagir. E havia outros que...
- Sim?
- Simplesmente desapareciam. Foi um tempo de estranhos assassinatos em Paris.
- Estranhos assassinatos?
- As pessoas, às vezes, eram encontradas mortas nas ruas.
- Pessoas matam pessoas desde o início dos tempos.
- Mas aquelas eram encontradas em situações grotescas.
- Como assim?
- Todas eram decapitadas.
Tara sentiu um estranho arrepio. O operário na cripta havia sido decapitado.
- A França é famosa por inúmeras decapitações, vovô. A guilhotina, a revolução...
- A guilhotina foi inventada para ser uma ferramenta de misericórdia. Infelizmente, ela tornava a execução tão rápida, que os rebeldes a adotaram. Mas isso é outra história. Não está prestando atenção à questão principal.
- E qual é ela, vovô?
- Depois de muitas tentativas, foi comprovado um caso em que o mal exercido pela condessa de Montcrasset era tão evidente, que o rei foi forçado a reconhecer que sua amante era uma assassina. Ela foi encontrada se banhando no sangue de suas vítimas. A criada que a encontrou começou a gritar; autoridades da Igreja, há muito atentos aos passos da mulher, chegaram correndo empunhando cruzes e espargindo água-benta. Ela foi presa... com a criada que havia dado o alarme morta em seus braços. Foi condenada pelo rei e enviada à prisão para esperar pela execução. Homens comprometidos com o bem e acompanhados por membros da Igreja conseguiram invadir a prisão, e chegaram a tempo de descobrir que ela havia seduzido o carcereiro para conseguir fugir. O homem estava morto, caído diante da cela. Eles a deteram, estrangularam, e depois, quando acreditavam que estava morta, a trancafiaram em um caixão cercada por todos os ritos e símbolos apropriados para mantê-la sepultada para sempre.
Tara lembrou com grande desconforto da conversa que tivera com o professor Dubois na cripta. Ele havia dito que a história a ser descoberta naquele sítio era de inestimável valor, que nobres marcados pela maledicência estavam ali enterrados entre imensuráveis riquezas. O caixão era selado de forma a preservar roupas, sapatos e jóias, e todos os outros objetos de valor em condições de fornecer aos historiados incríveis informações.
Dubois falara entusiasmado sobre a importância histórica da nobre ali enterrada, mas não dissera seu nome.
- Vovô, se essa mulher era amante do rei, e se foi enterrada com sua riqueza, faz ainda mais sentido que um criminoso tenha se disposto a matar para roubar o corpo. Ela pode ter sido sepultada com uma fortuna em jóias. É horrível, mas fácil de perceber como um ladrão vulgar pode ter estudado a escavação e invadido o local depois do horário de trabalho. A polícia, por certo, vai encontrar o assassino.
- Não, não vai.
- Por que não?
- Porque o assassino é Louisa de Montcrasset.

- Caminhei a noite toda - Brent disse com ar cansado. - Vasculhei cada beco, cada café, bar, restaurante, e prostíbulo da área. Tentei o Louvre, mas... - Fez uma pausa e olhou para Lucian. - Não sou tão bom quanto você para passar por guardas. Enfim, procurei pelas ruas de Paris até hoje cedo. Depois tomei banho e fui devolver a bolsa da garota americana.
- Aquela com quem estava tomando café.
- Sim.
- Você a manteve fora do seu depoimento à polícia e das notícias nos jornais?
- Sim, sim, até aqui consegui protegê-la. Ela é tão suspeita quanto um agente da CIA.
- Um agente de beleza impressionante - comentou Jade, sorrindo.
- Tem razão - Brent concordou. - E acho que ela sabe alguma coisa, embora negue. Estou decidido a descobrir mais sobre essa garota. Ela está hospedada no Château DeVant.
- Estranha coincidência - Lucian resmungou intrigado.
- Sim, foi o que pensei - respondeu Brent. - Ela é neta do velho Jacques.
- Então, talvez tenhamos mais ajuda do que esperávamos - Lucian especulou.
- Por que ela é parente de Jacques DeVant? - Jade perguntou. - Ainda acho que tudo isso é meio confuso.
- Logo encontraremos uma explicação - Lucian opinou, olhando para Brent. - Havia um corpo na igreja, mas não foram relatados outros assassinatos?
- Não. Porém, ainda estamos no meio da primeira manhã.
- Então, ela está escondida - murmurou Lucian.
- Sim, é o que eu penso - concordou Brent.
- E é nesse momento que ela oferece mais perigo.
- Sim, tem razão. Mas você sabe muito mais do que eu sobre o passado.
- O problema não é o passado, e sim o presente. Os inimigos se amotinam aqui há muito mais tempo do que eu imaginava.
- Cinco desaparecimentos foram relatados nas últimas semanas.
- Mas não foi encontrado nenhum corpo...
- Ainda não.
Estavam reunidos em torno da mesa da sala de jantar da casa que Brent tinha alugado havia quase seis meses. Jade se levantou de repente.
- Precisamos descansar. É importante.
Lucian balançou a cabeça.
- Cada vez que ela descansa, reúne mais poder.
- Mas você vai trabalhar melhor quando também estiver descansado, Lucian - argumentou Brent. - E, como acaba de dizer, há mais nisso tudo do que sabemos até agora.
Lucian deixou escapar um longo suspiro.
- Tem razão. Descansar é uma necessidade. Mesmo assim, vamos ter de nos mover depressa.
- Muito depressa. E há coisas que eu posso fazer a partir de agora.
- Brent, você também passou a noite acordado - lembrou Jade. - Também precisa descansar.
- Um pouco, talvez, mas não preciso de muitas horas de sono. E há coisas que tenho de resolver hoje. Por exemplo, tenho de ver o que o inspetor Javet está fazendo.
- Esqueceu-se de que também tem poderes enquanto dorme.
- Jade, receio que a maior parte dos meus poderes venha de fontes mais mundanas. Bibliotecas, por exemplo.
- Não pode passar horas a fio sem dormir. Acabará esgotado. Por que não descansam, vocês dois, enquanto eu faço uma breve exploração?
Os dois homens a encararam intrigados. Ela sorriu.
- Dormi no avião. Por favor, descansem. Verei o que consigo descobrir. Posso ir à biblioteca, ler os jornais das semanas anteriores, e descobrir mais sobre as pessoas desaparecidas. Enquanto isso, vocês dois precisam descansar.
- Não sei se vou conseguir dormir - Brent confessou, tenso. - O que aconteceu é minha culpa. Eu desconfiava, mas não sabia. E se não houvesse ido até onde fui, Jean-Luc não teria conseguido abrir o caixão. E agora... Bem, agora me preocupo com toda a Paris. Estou muito apreensivo com aquela garota. Ela corre um sério perigo, mais do que pode imaginar. Especialmente por ser neta de Jacques DeVant.
- Você estava lá, Brent, quando não tive a intuição - atalhou Lucian.
- E de pouco adiantou ter estado lá.
- Talvez tenha adiantado mais do que você pode imaginar.
- DeVant sabia. Por isso enviou a neta.
- Ele está velho e doente, mas mantém a mente ativa e forte.
- Mas não suspeitou do que ia acontecer, ou não teria mandado a neta. E ela tem uma prima. Ann DeVant. Nenhuma das duas parece entender o que está acontecendo, de fato. As duas estão em grande perigo.
- O problema das garotas pode ser resolvido com facilidade - sugeriu Jade. - Vamos ao Château DeVant o quanto antes.
- É claro. É isso o que temos de fazer. Precisamos ir ao château e nos tornar amigos dos DeVant. Mas é preciso ter cuidado, Jade - Lucian concluiu.
- Eu sei o que estou fazendo.
- Não sei se vou conseguir descansar - Brent confessou. - Tara estava na cripta. Ela não queria que eu fosse sozinho à polícia. Acabará procurando as autoridades, eu sinto. A polícia pode representar um perigo. Ou não. Ninguém sabe o que está solto por aí neste momento. Mas se a encontrarem antes de nós...
- Não vão. Ainda não. Não durante o dia. E embora Tara possa ir à polícia em algum momento, creio que Jacques a deterá - ponderou Lucian.
- Se quer ajudá-la, Brent, terá de ser determinado e forte - disse Jade. - Há uma maneira pela qual você pode dormir e ainda protegê-la.
- Ah, sim? Como?
- Dormindo com ela.

Tinha sido um dia difícil, e já eram duas da tarde quando Ann conseguiu ir ao café para comer alguma coisa. Enquanto pegava a carteira do bolso para pagar pelo café com croissant, um homem parou a seu lado e pegou a xícara sobre o balcão.
- Ah, merci.
- De rien.
O sotaque acentuado a intrigou, e ela olhou para o desconhecido.
Ele era alto, loiro, e tinha um sorriso encantador.
- Você parecia precisar de ajuda - falou em inglês. - Fala inglês, não?
- Sim, muito bem. Mais uma vez, obrigada. Muito obrigada.
- Venha, junte-se a mim - ele a convidou. - Aquela é minha mesa. Não há outras vazias.
Ann pagou pelo lanche e desistiu de levar o café e o croissant para o escritório. Aproveitaria ao máximo seus quinze minutos de intervalo.
- Obrigada.
Ele segurou a cadeira para que ela se sentasse.
- Meu nome é Ann DeVant. Obrigada por ter me ajudado e por dividir sua mesa.
- Rick Beaudreaux. É um prazer, mademoiselle. Quero dizer, é mademoiselle, não?
- Sim, sou solteira. Apesar do nome francês, suponho que seja um visitante em Paris.
- Sou de Nova Orleans.
- Ah...
- Por favor, fique à vontade - disse, apontando para o croissant no prato sobre a mesa. - Também sou solteiro.
- Está de férias?
- De certa forma. Digamos que estou no meio de um tratamento. Um processo de cura.
- Ah, sim?
- Estou na Europa há algum tempo. Meu francês devia ser melhor. Sofri um acidente, um incêndio, e ainda estou me recuperando. Paris me pareceu o lugar ideal para esse momento. Vim... procurar algumas pessoas. Mas agora... Bem, começo a pensar que tinha mesmo de vir por outras razões.
- Lisonjeiro - ela respondeu, forçando um tom seco à voz. Era francesa! Aquele homem não podia esperar seduzi-la como se fosse uma menina ingênua!
- Não é adulação. Você é linda.
- Muito obrigada. Bem, agora tenho de ir. Foi um prazer conhecê-lo.
- Vem aqui todos os dias? - ele perguntou, segurando sua mão.
- Nem sempre. Mas, às vezes, saio à noite. Como hoje, por exemplo. Vou sair com minha prima. Ela é americana. Acho que vamos ao La Guerre.
Ann se soltou e saiu apressada.
Apesar da tentação, não olhou para trás. Sentia o rosto queimar.
Em pensar que se julgava sofisticada!
Bem, Rick sabia onde poderia encontrá-la. Se estivesse interessado, apareceria.
No escritório, Ann estava imersa no trabalho quando sentiu a presença de alguém à porta. Era Willem. Alto e elegante no terno de grife. Parecia estar ali havia algum tempo. Estranho como as coisas mudam. Num passado recente, teria sentido a presença dele no primeiro segundo. Agora...
Graças a Deus pelo americano! Ele havia trazido de volta sua autoconfiança.
- Precisa de alguma coisa? - perguntou em tom indiferente.
- Perdão.
- Lamento, mas não posso ajudá-lo.
- Ann, amo você. Não sei por que agi daquela maneira. Acho que estava com medo da profundidade dos meus sentimentos por você, ou ressentido por não me apresentar a sua família, por não me envolver na sua vida. Tentei aceitar sua maneira de ser, de se relacionar, mas desde que nos separamos... Ann, quero me casar com você.
Havia uma semana as palavras a teriam levado ao céu, mas agora...
- Willem, não sei... Preciso pensar. Conversamos mais tarde, está bem?
- Quando?
- Não sei.
- Hoje à noite?
- Não, hoje já tenho planos com minha prima.
- Sua prima americana? Ainda não a conheço.
- Em alguns dias, está bem?
Ele saiu sem responder. Ann conteve o impulso de ir atrás dele. Não! Esta noite sairia com Tara. E talvez voltasse a encontrar o belo americano. Precisava se conhecer melhor, saber o que sentia, e finalmente... Vingar-se de Willem pelo que ele fizera.

Dubois estava furioso.
A polícia era irritante, em especial o inspetor Javet. Era a terceira vez que o interrogava! Desta vez, Javet fora procurá-lo em casa. Dubois havia feito de um tudo para reabrir a escavação, argumentando que aquilo era história, uma descoberta que seria muito maior do que a perda de uma vida humana, mas fora inútil. E lamentável, porque sua explosão o colocara numa posição delicada. Tentara convencer o inspetor de que o americano, Brent Malone, era mais suspeito de que ele, mas também tinha sido inútil.
Malone já havia contado tudo que sabia.
- Professor Dubois, creio que pode nos ajudar com um conhecimento que nem sabe possuir. Gostaríamos de ver todas as suas anotações relativas à escavação. Queremos saber sobre toda e qualquer pessoa que possa ter procurado para obter ajuda ou financiamento, alguém a quem possa ter sugerido que a escavação poderia gerar grandes lucros.
- Minhas anotações? Inspetor, doei um valor significativo à Igreja de St. Michel para ter o direito de controlar a escavação. E meu trabalho... não, não, lamento, mas não pode ter minhas anotações. Meu trabalho é particular, quase como a tela de um artista. Ninguém pode vê-lo antes de estar finalizado.
- Estamos curiosos com relação a essa generosa doação, professor. Sempre pensei que os professores ganhassem pouco.
- Eu economizo. Vivo de maneira simples, como pode ver.
- A casa é encantadora.
- A casa é velha e está caindo aos pedaços - Dubois irritou-se.
- Bem, ainda acho que pode nos ajudar, professor. Se pensar em alguma coisa, por favor, ligue para mim.
Javet não teve dificuldades para encontrar a saída, porque Dubois não o convidara a passar do hall de entrada. Sozinho, o professor se apoiou no batente, sentindo o coração bater muito depressa e as mãos frias, suadas.
Javet era um idiota. Mas traria problemas.
Como Brent. Mas Brent era um problema fácil de resolver. Só precisava dizer a palavra.
Sentindo-se melhor ao pensar nisso, ele foi até a cozinha e se serviu de uma generosa dose de vodca. Porém, quando parou diante da janela, sentiu o coração tomado novamente pelo desânimo. Boca e garganta estavam secas, apesar da vodca. Ele terminou a dose de um único gole antes de se virar.
Sabia que não estava sozinho.
O visitante estava parado na porta da cozinha, olhando para ele com desprezo.
- Você estragou tudo, Dubois. Estragou tudo... e vai pagar por isso.
O copo caiu no chão quando o visitante deu um passo na direção do professor.

* * *
Finalmente, Jacques dormia.
Tara temia que o avô estivesse mesmo perdendo a sanidade.
Conseguira convencê-lo de que pensaria em tudo o que ele dissera, e o fizera entender que poderia descobrir o que a polícia estava fazendo sem revelar que estivera no local na hora do assassinato.
Agora, na varanda do quarto, ela tentava decidir se devia ou não contar a Ann sobre o incidente, mas sabia que não poderia trair Jacques. Se a polícia ao menos encontrasse logo o assassino! Isso o tranqüilizaria.
Ann havia telefonado para sugerir que fossem ao La Guerre, um bar perto da igreja. Como ela teria de trabalhar até tarde, iria ao château apenas para apanhá-la. Não desceria do carro, e não teria de saber sobre o que tinha acontecido durante o dia. Por enquanto, não precisava dizer nada a Ann.

Dormir...
Dormir significava sonhar, e os sonhos quase sempre se transformavam em pesadelos.
Pesadelos sobre o passado.
Parecia quase sentir a dor outra vez. A agonia que o castigava por dentro e por fora.
Lembrava do homem falando, dos médicos, das agulhas... Da impotência... da fúria.
O médico no comando o prendia à cama cada vez que começava seus experimentos. Doutor ou general Andreson, como ele gostava de ser chamado. Às vezes, quando ouvia o tenente gemendo de dor e praguejando aflito, ele se aproximava, tocava sua cabeça e murmurava:
- Pode me amaldiçoar, se quiser. E pode usar o nome que achar melhor, porque tenho muitos. Amaldiçoe-me, porque suas palavras são música aos meus ouvidos. Sua força é incrível. Já devia estar morto, mas sobrevive. Não é curioso? Fascinante!
Andreson era um mestre da tortura e da dor. E enquanto vivesse, o tenente não o esqueceria.
Mas também lembrava o dr. Weiss, o homem que permanecia quieto, com as mãos às costas, observando tudo o que acontecia. Jamais esqueceria como ele permanecia quando os outros iam embora. As compressas frias sobre sua testa, os analgésicos enfiados sob sua língua...
Sabia que o dr. Weiss roubava os comprimidos, arriscando a própria vida para ajudá-lo. Quando tentava agradecer, ele corava e dizia:
- Nem todos somos membros. Há homens bons entre nós. Mas temos medo, e o medo é a maior arma da Terra.
- Se eu sobreviver, jamais esquecerei...
- Você vai sobreviver, infelizmente.
- Infelizmente?
- Não entende o que aconteceu, não é?
- Estávamos na trincheira, atirando, tentando evitar o fogo inimigo, e, de repente, foi como se todos os lobos da Europa entrassem na guerra.
- Pobre rapaz... Eles querem conhecer sua força. Querem usar você, saber como sobreviveu, se vai continuar vivo, e como. Mas eu sei.
- Sabe... o quê?
O dr. Weiss não parecia ouvi-lo.
- Logo terei de encontrar um jeito de sair daqui. É necessário. Eles vão perceber sua força, vão sentir medo, e vão destruir você. Preciso pensar...
- Não faça nenhuma tolice por mim. Seu país precisará de homens como o senhor quando isso acabar.
- Só peço... peço... Oro para que não seja você aquele que vai me matar.
Então ele acordou assustado, com o corpo coberto pelo suor.
Dormir, descansar. Sonhos, pesadelos. Por Deus, não!

Naquela noite, o La Guerre estava lotado.
O bizarro assassinato era assunto em todas as rodas, mas ninguém parecia muito preocupado. Uma banda já tocava quando Ann e Tara chegaram. Todas as mesas estavam ocupadas, e elas foram se sentar em bancos junto ao balcão.
Com uma taça de vinho nas mãos, Ann ainda falava animada sobre todos os eventos do dia, quando uma voz máscula e profunda soou ao lado de Tara.
- Olá.
Ela se virou e quase perdeu o fôlego. Brent Malone estava parado a seu lado, segurando uma garrafa de cerveja, sorrindo como se fossem grandes amigos.
- Ah... olá.
- Tara? - Ann chamou, intrigada.
- Ah, Brent, esta é minha prima francesa. Ann DeVant. Ann, este é Brent Malone.
- É um prazer. Não sabia que minha prima tinha amigos nesta região.
- Nós nos conhecemos recentemente, mas em circunstâncias tão... - Ele sorriu e balançou a cabeça. - Bem, o fato é que sinto que nos conhecemos há séculos.
- Não mencionou o sr. Malone - Ann disse a Tara em tom crítico.
- Brent - ele a corrigiu. - Estou com alguns amigos. Não gostariam de se juntar a nós?
- Ah, acho que não podemos - respondeu Tara.
- Adoraríamos - disse Ann.
- Mas não vamos demorar - Tara acrescentou.
-Tive um dia difícil. Não estou com a menor pressa para encerrar uma noite relaxante e divertida, Tara, querida.
- Então, venham comigo.
Ann se levantou depressa. Tara a segurou pela camisa.
- Não confio nele - cochichou.
- Ótimo. Não se deve confiar em homem nenhum, mesmo - Ann respondeu, sussurrando.
Brent e os companheiros haviam conseguido encontrar uma mesa vazia, e logo as duas primas eram apresentadas ao grupo.
- Tara Adair, Ann DeVant, estes são Lucian e Jade DeVeau. Lucian, Jade, Tara e Ann.
O casal era o mesmo que Tara vira Brent seguir depois de terem tomado café juntos. A mulher era linda, com grandes olhos azuis e longos cabelos castanho-dourados. Ela exibia um sorriso largo que parecia sincero, e não dava indícios de se opor à presença das amigas de Brent. Devia ser casada com o homem alto e charmoso, pois tinham o mesmo sobrenome.
Foi ele quem começou a conversa depois de todos terem se sentado.
- Então, Ann, você mora aqui?
- Sim, trabalho em Paris, mas moro no vilarejo. Temos um velho... Bem, não é exatamente um castelo no sentido exato da palavra, mas é uma antiga propriedade de família, um típico château francês.
Tara estava irritada. Não queria que aquelas pessoas soubessem onde moravam.
- Precisam ir nos visitar - Ann estava convidando.
Tara a chutou sob a mesa.
Ann gritou. Brent sabia o que havia acontecido, ou não estaria rindo com aquele ar debochado. Tinha certeza de que ele as levara para a mesa justamente com a intenção de ser convidado para ir ao château. Agora, eles tinham o convite que queriam.
- Um château, que encantador - disse Jade. Lucian chamou um garçom, e Tara estranhou a perfeição de seu francês.
- São franceses? - perguntou.
- Não. Sou de Nova Orleans - Jade respondeu.
- E você, Lucian? - Tara insistiu.
- Ele gosta de se considerar um cidadão do mundo - foi Brent quem respondeu pelo amigo.
- Não sou francês, mas já morei aqui - revelou Lucian.
- Há algum tempo me instalei nos Estados Unidos.
- E você?
Brent sorriu para Tara, como se soubesse que aquela era a pergunta que ela quisera fazer desde o começo.
- Sou da Virgínia.
- Fala-se muito francês em Nova Orleans, é claro - Lucian começou a dizer, tentando tornar a conversa casual. - É fácil praticar o idioma.
- Entendo. Mas na Virgínia?
- Sou um estudioso de línguas - Brent explicou.
- Meu francês deveria ser melhor - Jade reclamou.
- Mas em Nova Orleans não se pode adquirir a pureza da pronúncia de Lucian. Lá existe um sotaque distinto, uma espécie de pronúncia cantada, musical.
- Você conhece o idioma, sabe se expressar e entender o que é dito. É o bastante - Ann opinou.
Tara notou que a prima conversava animada, mas observava o fundo da.sala. Ela tentou encontrar o que podia ser tão interessante, mas, com o movimento aumentando, a área em torno do balcão era um emaranhado de rostos e fumaça, de cigarro.
Era irritante estar tão perto de Brent. Sem se mover, sem tocá-la, ele conseguia despertar nela a vontade de chegar mais perto e se aninhar nos braços fortes, como se sentisse frio. E não estava frio.
- Tara!
A voz de Ann a assustou.
- O que é?
- Vou dançar com meu novo amigo aqui. Brent acabou de convidá-la para dançar, também.
- Ah... sinto muito, mas acho que vou ter de recusar.
Lucian e a esposa já caminhavam para a pista. Ann seguia o rapaz que fora chamá-la para dançar.
- Tara? - Brent mantinha a mão estendida em sua direção.
- Tem certeza? - ela murmurou, apavorada. - Estou preocupada com minha prima...
- Eu sei.
- Sabe?
- Você é como um livro aberto.
- Então, também deve saber que não confio em você. Quero que nos deixe em paz.
- Sua prima parece feliz.
- Mas não devia estar. Há algo... alguma coisa estranha em você.
- Estranha?
- Não tenho outra palavra para descrever a sensação.
- Estranha? Puxa, estou... devastado.
- Não, não está. Você mal me conhece. Está exagerando. É um mentiroso.
- Não menti para você, e não acredito que pense essas coisas horríveis sobre mim. Além disso, não pode dizer que mal nos conhecemos. Você é sempre tão fria?
- Só quando conheço um homem enquanto outro é assassinado.
- Juro que não sou estranho. Mas, vejamos... Naquele momento em que esteve distraída, estava pensando que um dos meus amigos pode ter matado Jean-Luc enquanto eu a perseguia na tumba?
Tara o encarou perplexa. Era como se tivesse lido seus pensamentos.
- Sinta-se à vontade para verificar os passaportes e as passagens aéreas dos dois - ele continuou. - Meus amigos chegaram depois do assassinato.
- Ah, sim? E as autoridades vão me dar essa informação?
- Tenho certeza de que pode encontrar um jeito de saber a que horas e de onde eles chegaram.
- Ótimo. Vou falar com a polícia.
- Não diga ao inspetor que esteve lá.
- Não entendo você. Eu poderia depor e inocentá-lo completamente!
Ele a encarou, adotando uma expressão muito séria.
- Não deixe que seu nome seja envolvido no que aconteceu. Sei que não confia em mim, mas estou lhe dizendo... Não confio em Dubois. E nós dois sabemos que há um assassino à solta por aí.
- Conhece meu avô, ou sabe alguma cosia sobre ele, não é? Conhece sua reputação como escritor, e sabe que ele o ajudará a difundir essa história de mal libertado e demônios surgindo das trevas. Esqueça! Como acabou de dizer, há um assassino por aí.
- Tara, seja esse assassino humano ou sobrenatural, o perigo permanece se permitir que seu nome seja envolvido na investigação.
- Seu nome está envolvido, e aqui está você, se divertindo com seus amigos.
- Preciso ver seu avô.
- Não quero você perto dele.
- Não me interessa o que você quer ou não.
- Jacques é velho, está doente, não vou permitir que o prejudique.
- Nunca faria mal a seu avô. Pelo contrário: eu o defenderia com minha vida.
- Não precisa se incomodar. Ann e eu cuidamos de protegê-lo.
- E se descobrir que precisa de ajuda?
- Nesse caso, irei à polícia.
- E se, apenas se, o que ele e eu dizemos for verdade, pelo menos em parte? Ir à polícia pode ser uma medida inútil. Não sabe o que está enfrentando.
- E você sabe?
- Caso tenha esquecido, eu encontrei o corpo de Jean-Luc.
- Tudo bem. Se eu precisar de ajuda, ligo para você. Está feliz agora?
- Você não tem o número do meu telefone.
- Ah, é...
Sem hesitar, Brent anotou o número em um guardanapo de papel.
- Aqui está, caso tenha de me procurar.
Tara suspirou impaciente, mas guardou o guardanapo na bolsa.
- Por que não quer dançar comigo?
- Acho que já fui bem clara. Não confio em você. E não gosto de você.
- Mentira. É desconfiada, mas eu a intrigo, e acho que gosta de mim mais do que desejaria.
- Quanta segurança!
- Talvez. Mas não acho que seja exagerada.
- Vejamos... Conheci você em uma cripta, no mesmo instante em que um homem era assassinado.
- Exatamente. E sabe que não matei aquele homem.
- Mas sabe alguma coisa sobre o assunto.
- O suficiente para dizer que vai se expor ao perigo, se não conseguir confiar em mim.
- Não me deu motivos para confiar.
- Por que não dá uma chance a você mesma? Não pode estar pensando que eu a prejudicaria. Além disso, o que eu poderia fazer no meio de uma pista de dança lotada? Vamos, não seja anti-social! Arrisque-se um pouco! Dance comigo.
Brent se levantou e segurou a mão dela. Não havia força ou violência no contato, mas Tara sentia que não tinha escolha.

Aquele momento entre dormir... e a onda de força ao despertar... podia ser o mais maravilhoso.
E foi quando ela o escutou.
Meu amor...
As palavras, tão suaves no início, ganharam intensidade. Um sonho, imaginação, saudade, desejo...
Posso sentir você. Fale comigo. Onde está?
Ela queria responder. Queria com todas as fibras de seu ser. O fato de ele estar perto... de ter permanecido, de estar em algum lugar... Uma onda de euforia a invadiu, e sua resposta surgiu sem esforço ou necessidade de pensar.
Mas ela a sufocou.
Havia outra coisa ali. Alguém. Outra entidade.
E quando respondeu, foi com grande cuidado, já amargurada, tomada por uma nova onda de ódio e determinação. Uma vez... havia muito tempo, ela inalou o cheiro doce de terra antiga. Sentiu a força da nova vida, o novo sangue correndo em suas veias. Sentira o calor da vida real, sólido, pulsante.
Eu vou encontrá-la...
O nome dela novamente.
Silêncio.
Sim, vamos nos encontrar,
Ela se fechou e ainda assim...
A sensação de perigo continuava ali.
Havia muitos em volta dele. Muitos que o perseguiam. Era inquietante, porque podia sentir que havia mais do que a força e os poderes que conhecia.
Ela se levantou. Era noite agora. A escuridão descera sobre a Terra.
Era seu tempo de reinar sobre o mundo.
Ora, bem, não precisava reinar sobre o mundo.
Apenas sobre Paris.

Ann se divertia muito.
Na pista, Tara decidiu que a prima estava certa. Deveria ter visto um cachorro na noite anterior e pensara ser um lobo, pois Paris e toda a região metropolitana estavam repletas de lobos... De uma espécie muito diferente...
E todos pareciam estar ali, naquele bar.
Brent era um deles. O corpo musculoso em contato com o dela era pura tentação, e cada movimento da mão em suas costas era uma experiência de inesquecível sensualidade.
As pessoas na pista faziam uma divertida coreografia, com os homens interrompendo a dança de outros casais para trocar de parceiras. Tara se viu dançando com vários rapazes, todos muito simpáticos e divertidos, entre eles o rapaz de bigode fino com quem havia dançado pouco antes e que mandara sua acompanhante para a fila. A música terminou, e ele agora caminhava em sua direção.
Mas Lucian o deteve, dizendo algumas palavras breves em seu ouvido.
Brent parou e franziu a testa. Os dois conversaram por alguns minutos, depois ele retomou os passos em sua direção.
- Receio que os outros tenham de ir embora.
- Não vai com eles?
- Eu os encontrarei mais tarde.
Tara ainda desconfiava de Brent, mas era inútil negar a atração que sentia por ele. Uma atração como jamais havia sentido antes. Teria sido esplêndido conhecê-lo em outra circunstância. Em uma ilha deserta, por exemplo. Uma ilha tropical, onde as roupas fossem mínimas, e ela pudesse tocar seu peito nu e sentir os músculos contra os quais fora apertada naquela noite.
Assustada com a intensidade de seus sentimentos, recuou um passo. Às vezes, pensava ser a única pessoa equilibrada em um mundo de malucos. Tinha amigas que conheciam homens em bares e iam para a cama com eles sem nem sequer saber como se chamavam. Para ela, porém, intimidade sempre levara tempo. Tivera apenas três relacionamentos importantes na vida.
- Não precisa ficar por nossa causa. - Ouviu-se dizendo. - Podemos ir para casa sozinhas e em segurança. Onde está Ann? - Olhando em torno de si, encontrou a prima no bar, ao lado de um homem alto e de cabelos claros.
Ann o abraçava e beijava nas duas faces, num cumprimento tipicamente francês.
O homem a tomou nos braços e enterrou o rosto em seus cabelos.
Os dois se afastaram. Ann o deixou e correu na direção dela, certamente para se despedir dos DeVeau.
Ann trocou os costumeiros beijos no rosto com o casal, repetindo o convite para irem ao château.
Lucian e Jade acenaram para Tara e sorriram. Ela retribuiu com um sorriso forçado, depois se virou para Brent.
- Pode ir com eles.
- Mas não me incomodo de acompanhá-las até em casa. - Brent olhou para a pista de dança e riu. - Tem muitos lobos à solta...
- E como posso saber que você não é o pior da matilha?
- Não pode.
Ann se aproximou, impedindo Tara de responder.
- Seus amigos são ótimos - ela disse.
O rapaz com quem estivera até então se aproximou e segurou sua mão, falando num francês rápido e levando-a de volta à pista de dança.
Tara olhou para Brent, depois voltou à mesa.
Ele a seguiu.
- O que é agora?
- Pode ler meus pensamentos - ela o desafiou.
- Na verdade, acho que está desconfiada, especulando que tipo de assunto pode ter tirado meus amigos de um bar no meio da noite.
- E?...
- Eles tinham coisas para fazer.
- Ah, sim?
- Compromissos.
- É claro.
Tara se virou na cadeira, tentando entender por que voltara à mesa. Não podia ver Ann dali.
- Se quer observar sua prima, vamos ter de dançar outra vez.
- Não preciso observá-la - mentiu.
- Está preocupada com ela.
- Talvez - admitiu, com um suspiro resignado. - Ann não é do tipo desconfiada. Fico pensando... Ela não devia confiar tanto nas pessoas daqui. E o pior é que não acredita no Mal, nem em coisas que vagam pela noite...
- Pensei que fosse lógica demais para acreditar no que não pode ver.
- Sim, sou, mas também sou muito desconfiada.
Brent olhou para a pista, e foi como se o tempo parasse. Ele não se levantou de início, mas estava tenso, como se ladrões armados invadissem o local.
- Temos de tirar sua prima daqui - falou, pondo-se em pé.
- O quê?
- Você ouviu. Temos de tirá-la daqui.
- Por quê? - Tara perguntou, assustada.
- Por favor, confie em mim, nem que seja só desta vez.
Ela não sabia que poder ou força conferia sinceridade àquele olhar, mas o fato é que se levantou e, confiando nele, preparou-se para deixar o bar.
Confiando nele...
Só uma vez.
Eles correram juntos à pista de dança, abrindo caminho até Ann. Enquanto Tara falava com a prima, Brent estudava todos na pista.
- Tão cedo? Precisamos ir agora? - Ann gritou. - É a melhor noite que tenho em séculos! Ah, não se preocupe, não vou levar a sério nenhum desses lobos. Estou me divertindo, Tara. Tudo bem, talvez tenha um lobo que eu esteja levando a sério. Vingança. Ah, como é doce! Brent pode levar você para casa, prima, irei mais tarde. Daqui a uma hora, talvez duas...
- De jeito nenhum! Não vou deixar você sozinha.
- Tara, saio sozinha o tempo todo! Você não mora aqui, lembra?
- Precisamos ir - Brent insistiu em voz baixa, olhando nos olhos de Ann.
Ela encolheu os ombros.
- É claro. Se você diz. Vamos pagar a conta e...
- Lucian deixou a conta paga antes de sair. Vamos. Agora.
Perplexa com a repentina aceitação da prima, Tara entrelaçou o braço no de Ann e a conduziu para a porta, notando que Brent ainda olhava para o balcão do bar, tenso.
- O sujeito loiro era muito agradável - Ann comentou, caminhando para o carro.
Brent seguia logo atrás delas.
- Que sujeito?
- Aquele rapaz alto, musculoso, de traços esculpidos... Diferente. O americano que conheci hoje, Tara.
- Por que não me apresentou a ele?
- Eu mal o conheço! Não sabia que ele viria. Esperava que viesse, mas não tinha certeza. E acho que Willem também estava lá. Acho que o vi em uma mesa de canto.
Tara olhou para Brent, que caminhava atrás delas.
- Onde está seu carro?
- No estacionamento. Como o seu.
O estacionamento do La Guerre era próximo do bar, mas, uma vez na rua, longe da música e das luzes brilhantes, tudo parecia muito escuro e deserto. As poucas lâmpadas criavam sombras sinistras na escuridão.
Brent parou. Ele ouvia alguma coisa e observava as sombras.
Tara olhou em volta. Sentia um medo estranho crescendo dentro dela, uma espécie de tensão que lhe paralisava os músculos.
As sombras se moviam.
Uma brisa gelada soprou na noite silenciosa.
- Vá logo - Brent disse em voz baixa.
- O que é? - Tara perguntou. Sentia o arrepio, o frio do pavor... Terror.
Ela tentou se controlar, apegar-se ao costumeiro bom-senso, à lógica da realidade concreta. Brent insistiu:
- Vá, por favor, e depressa. Estarei logo atrás, só para ter certeza de que tudo vai bem.
- Allons-y! - Ann pediu, agarrando o braço da prima. Sem saber que tipo de força a impelia, Tara agarrou a mão da prima e começou a correr. Podiam ver o carro de Ann no estacionamento. Tara não olhava para trás.
Apenas corria. Temia que, como a esposa de Ló, pudesse virar uma estátua de sal. Ou ver alguma coisa que não queria ver. Algo que poderia continuar negando, desde que não se virasse...
Então, viu as sombras em movimento. Ouviu o barulho atrás dela. Pés macios se movendo com velocidade espantosa.
Acima, a escuridão se estendia como um grande par de asas macabras.
Ouviu alguma coisa.
Um grito.
Não. O vento, só isso.
Ann girava as chaves entre os dedos, tentando encontrar a chave do carro no molho.
- O alarme! - Tara gritou.
Ann a encarou por um instante, estranhando a própria estupidez. Como havia esquecido que podia destravar o carro com o alarme? Acionou o mecanismo. As duas entraram no carro e bateram as portas.
E as duas gritaram quando alguma coisa se chocou contra o teto do automóvel.
Elas trocaram um olhar apavorado.
- Vai, vai, vai! - Tara repetia, aflita.
Tremendo, Ann inseriu a chave na ignição. O motor rugiu.
Houve outro baque. Ann pisou no acelerador e arrancou. Elas ouviram o som de alguma coisa caindo do teto do carro para o chão...
De novo, Ann pisou fundo no acelerador e entrou na estrada.
Tara olhou para trás. Não havia nada. Só o luminoso do La Guerre piscando na noite e prometendo diversão.
As sombras eram apenas isso, sombras.
Não havia ninguém na rua. Nem mesmo Brent Malone.
- O que foi aquilo? O que estava em cima do carro? - Ann perguntou.
- Nada. Não há nada lá atrás.
- Impossível!
- Estou dizendo... Ann, o que está fazendo?
Sua prima havia brecado e manobrava o carro no meio da rua.
- Eu tenho de ver. Não sei por que entrei em pânico. Mas eu ouvi... E se atropelei alguém? Alguma coisa? E se machuquei um cachorro?
- Não há nada lá!
Mas Ann estava determinada, e já se aproximava novamente do bar. Diante do prédio ela parou, rindo e apoiando a cabeça no volante.
- Ann, qual é o seu problema? Vamos sair daqui!
- Por quê? Não há nada aqui. Fizemos papel de idiota com medo da escuridão e das sombras. - Ela massageou a nuca e parou de rir de repente. - Não me sinto muito bem. Não é bom beber vinho, fumar, e sair correndo.
- Ann, dirija.
As sombras pareciam se mover novamente. E a lâmpada sob a qual haviam parado de repente explodiu.
Era como se um manto de escuridão as cercasse de repente.
- Dirija! - Tara insistiu.
Ann não hesitou. Ela pisou no acelerador, e, desta vez, só parou quando chegaram ao château, ultrapassando sinais vermelhos e atravessando cruzamentos numa verdadeira corrida suicida.
Já em casa, ela parou o carro e ficou quieta por um instante.
- Será que ficamos malucas? Deixamos aquela maluquice do vovô nos contagiar?
- Não sei. Ah, não, espere, eu sei. Tem um assassino frio à solta pela cidade. É natural que estejamos nervosas. Venha, vamos entrar.
Ann a encarou e assentiu solenemente.
Então, quando desceram do carro e começaram a correr para a entrada, viram que a porta estava aberta.
- Mas o quê...? - Ann murmurou.
Tara viu Katia bloqueando a entrada. E mesmo no château, onde sempre havia luzes e claridade, as sombras pareciam mais densas.
Tara sentiu a brisa outra vez. Fria, penetrante. O Mal.
- Já disse que ele está dormindo!
Katia falava em francês, mas seu tom era determinado.
- Não posso deixá-lo entrar...
Tara viu o que não havia percebido antes. Uma mulher parada na entrada, perto da parede externa e emoldurada pela trepadeira de folhas largas. As sombras das varandas suspensas a encobriam.
- Por outro lado... - Katia parecia ter mudado de idéia.
A brisa.
Mais uma vez, o sopro gelado tentava paralisá-la.
Ann não se movia.
A mulher estava quase do lado de dentro da casa. Por alguma estranha razão, Tara soube que tinha de impedir sua entrada. Ela correu até a porta, colocando-se diante da desconhecida.
Por um momento, também ficou sem fala e sem ação. E, bom Deus, não sabia por quê.
A mulher estava bem-vestida e era dona de uma beleza impressionante. Os cabelos eram negros e brilhantes, os olhos, verdes como esmeraldas, e seu tailleur tinha o corte perfeito das grandes grifes. A saia era curta, e os sapatos tinham salto alto e fino.
Ela estendeu a mão para Tara, que aceitou o cumprimento numa resposta automática.
- Olá, sou do departamento de serviço social do hospital. Estou apenas verificando se tudo tem corrido bem com seu avô. É algo que fazemos com todos os pacientes, especialmente com os idosos. Queremos ter certeza de que estão melhorando no ambiente doméstico.
Como Katia, Tara se sentia tentada a convidá-la a entrar. O sorriso da visitante era tão sincero...
Ainda assim... sua mão era como um bloco de gelo. E, ao mesmo tempo, queimava.
- Lamento, mas é muito tarde para visitar meu avô - ela disse. - Ele está dormindo. Se quer vê-lo, venha durante o dia.
Num lampejo, mas só por uma fração de segundo, por certo um produto da imaginação de Tara, o rosto da mulher desapareceu. O sorriso agradável e hipnótico sumiu no ar, deixando em seu lugar uma fúria tão intensa, um ódio tão profundo, que Tara recuou um passo.
E então...
Ela sorriu de novo, os olhos fixos em Ann, que se aproximava delas.
- Lamento que seja tão tarde. Não havia percebido o horário. Não imaginam como trabalhamos duro no hospital. É horrível. Bem, não é muito que tenho para fazer aqui. Talvez, se me convidarem para entrar, posso dar uma olhada no seu avô e ter certeza de que ele dorme em um ambiente limpo, seguro, e favorável à sua recuperação.
- Talvez... - Ann começou, caindo no mesmo encantamento.
Mas a mulher, de repente, ergueu os ombros. Era como se, de repente, ela sentisse algo no ar.
- Não se incomodem, não é tão importante. Volto outra hora.
De súbito, ela começou a descer a escada.
- Mas... - Ann protestou.
A mulher se virou.
- Já disse que não é importante.
Por um segundo, Tara divisou a máscara de ódio outra vez. Contudo, nada havia mudado. A mulher sorria. E seu tom de voz era doce.
Ah, sim, ela voltaria.
De repente, Katia recuperou os movimentos e ficou agitada.
- Vamos, vamos! Não sei por que abri a porta! De repente a noite ficou gelada, estranha... apesar dos dias quentes. Para dentro, vamos! Há um maníaco à solta por aí. A polícia ainda não fez nada.
Elas entraram e Katia trancou a porta. O ambiente interno era quente e confortável. Havia um fogo ardendo na lareira da sala.
- Meninas, querem chocolate quente?
Tara respirou fundo. Não era só a temperatura que diferia no interior da casa. Tudo ali era distinto. Era... Normal. Ann parecia sentir a mesma coisa.
- Chocolate - ela repetiu. - Ótima idéia. Mas, se não se importam, vou levar o meu para o quarto. De repente me sinto exausta. E você tem razão, Katia. Espero que a polícia encontre logo o tal assassino. Isso tudo é ridículo. Nós duas vivemos momentos de terror esta noite. Odeio essa sensação de insegurança. É tolice, eu sei, mas...
- Tolice? - Tara a interrompeu de repente. Olhou para Kátia. - Há quanto tempo aquela mulher estava parada na porta? Quero dizer, isso é absurdo! Que tipo de assistente social visita um paciente idoso a esta hora da noite?
- Ela disse que não havia percebido que horas eram - Kátia lembrou.
- Não acredito nisso.
- Bem, ela já foi. Acabou - declarou Katia, dirigindo-se à cozinha.
Tara a seguiu, enquanto Ann ia deixar a bolsa sobre um sofá.
- Katia! A mulher disse que vai voltar.
- Durante o dia, eu sei.
- Não importa. Seja quando for, independentemente do horário, você não pode deixá-la entrar!
- Por que não?
- Não sei. Mas, por alguma razão, não confio nela. Não acredito que seja quem diz ser.
- Mesmo? Mas temos muitas assistentes sociais por aqui e...
- Vou telefonar para o hospital amanhã mesmo.
Kátia já aquecia o leite para o chocolate.
- Por que acha que ela foi embora tão de repente, Tara? Tive a impressão de que Ann ia deixá-la entrar, e então... Não sei. Achei estranha a maneira como ela desistiu de repente.
- Como ela foi embora?
- Como assim?
- Kátia, como ela chegou aqui, e como foi embora?
- Suponho que estivesse de carro.
- Entramos pela frente da propriedade, e não me lembro de ter visto nenhum carro.
- Mas devia haver um - Katia insistiu.
- Teríamos notado um carro diferente na entrada do château.
- Estamos todas nervosas. Ela não pode ter vindo a pé! - Katia se irritou. - Talvez tenha deixado o carro lá fora, na estrada.
- E, talvez...
Katia deu a Tara uma xícara de chocolate, e colocou a outra em uma bandeja para levar para Ann. Elas a encontraram na sala, olhando para o fogo. Parecia esgotada. Estranho... No bar, ela se mostrara cheia de energia, Agora, era como uma lâmpada que se apagava.
- Obrigada, Katia. Acho que vou subir.
- Ann, você viu algum carro quando entramos?
- Um carro? - Ela olhou para Tara com a testa franzida. - Não. Acho que não... Mas estava nervosa, abalada...
- Eu também, mas aquela mulher que esteve aqui... Bem, ela só pode ter vindo de carro.
- Deve ter deixado o automóvel lá fora.
- Onde mais? - Katia comentou satisfeita.
- É, onde mais? - Tara murmurou.
- Vou me deitar - disse Ann.
- Boa-noite.
Ann subiu a escada.
Tara ficou olhando para o fogo e bebendo seu chocolate.
A bebida quente, as chamas... a casa. Tudo que a cercava tinha calor, vida, como sempre.
De repente, virou-se e caminhou até a porta da frente. Após um segundo de hesitação, ela a abriu, temendo descobrir que a mulher ainda estava ali, olhando para ela com a expressão de ódio que vira por um instante.
Ou imaginara ter visto.
Mas não havia ninguém.
Fechou e trancou-a.
- A casa toda foi trancada? - perguntou a Katia.
- É claro que sim! Roland e eu fechamos tudo assim que a noite cai, como sempre.
- É claro. Bem, obrigada e... bonne nuit - Tara se despediu já a caminho da escada. Parou no quarto do avô para espiá-lo. As cortinas estavam abertas, e as portas da varanda haviam sido apenas encostadas, permitindo a entrada de um pouco de ar fresco.
Tara as fechou e trancou antes de seguir para seu quarto.
Como Ann, estava exausta, embora não exibisse a mesma palidez.
Ela se sentou na cama e tirou os sapatos. Antes de continuar, fez uma breve pausa. A sensação de inquietação a invadia outra vez.
De repente, era de suma importância ter certeza de que o quarto estava trancado, como o restante da casa. Foi com alívio que afastou as cortinas e encontrou a porta que levava ao balcão trancada.
Então, olhou pela vidraça para a noite escura. E lá, sob estranha luminosidade da Lua minguante, viu o lobo outra vez.
O animal permanecia ereto, imóvel como uma rígida sentinela, um guardião da noite... um filho da Lua ou uma criatura do portal de Hades.
Talvez tivesse três cabeças, como os cães demoníacos da lenda.
Não. Podia ver claramente o contorno da silhueta do lobo. Era grande, forte...
- Aquilo não é um cachorro! - murmurou.
Um uivo cortou o ar frio da noite outonal.
Profundo, penetrante.
Um uivo para a Lua, para o céu... ou para o próprio inferno.
Ele seria filho da Lua ou do Mal?
Tara começou a tremer.
Fechando as cortinas, correu para a cama.

Não havia nenhum lobo na estrada. Não havia nada!
Nada além das sombras da noite.
Os pesadelos estavam de volta, piores do que antes.
As horas de observação. As injeções que faziam queimar seus membros, arrancando dele gritos de agonia e dor, as correntes que o prendiam à cama.
Às vezes, o dr. Weiss e seus medicamentos para pôr fim à agonia.
Ouvia as conversas, e aos poucos começava a entender o que acontecia ali.
Por muito tempo, o tirano estivera em posição de vantagem, mas agora tudo mudava.
No meio da agonia havia conforto.
Um dia o mundo saberia que havia existido heróis e heroínas entre as fileiras do inimigo, gente que se opusera ao regime e lutara contra ele, colocando em risco a própria vida. Acreditava nesses heróis e na bondade em seus corações, porque havia conhecido Weiss.
A luta era terrível, mas a onda que se levantava contra o Mal ganhava força e colecionava vitórias. Weiss o mantinha informado. Os povos do mundo venciam a batalha e enfrentavam o Mal.
Não saberia determinar quanto tempo havia passado ali. Podiam ter sido anos. A dor transforma um momento em eternidade.
Mas algo mudara. E certa noite, quando todos haviam se retirado, Weiss sentou-se a seu lado e falou sobre a queda do regime, sobre a intenção dos comandantes que, tomados pelo medo, planejavam dizimar o campo.
- Preciso tirar você daqui... Mas você ainda não sabe nada. Não sabe no que se transformou, o que deve fazer, como deve ser feito. Eles virão buscá-lo. Querem que desapareça, por isso o transformarão em cinzas, e assim nada haverá para saber ou especular.
- Não se preocupe comigo. Proteja-se, meu amigo - disse o tenente ao bom médico. - Seu povo vai precisar de homens como você.
- Meu povo... Ninguém jamais vai acreditar que fiz o que pude no meio de toda essa loucura!
- Se o que diz é verdade, se a guerra está perdida, haverá julgamentos. Você será julgado, e os sobreviventes falarão em seu favor.
O médico chorava.
- Não fiz o suficiente. Como os outros, tive medo por mim.
De repente, os dois se assustaram quando a porta foi aberta com violência.
Andreson, entrou seguido por quatro guardas. Todos estavam tensos, assustados, e, como de costume, armados. Naquele dia havia uma estranha e diferente aura em torno deles. Era visível como os olhos se agitavam com nervosismo.
- Weiss! - Andreson chamou em tom frio. - Bem, sempre soube que você era um traidor! Sempre soube. Não que seja importante. Você não fez nada que eu não tenha permitido. Mas chegou a hora da mudança, e, na verdade, nunca tive a intenção de permitir que sobrevivesse à guerra.
Naquele instante, Weiss encontrou uma enorme coragem dentro de si. Ele se levantou, exibindo grande dignidade.
- Não, não fui, nem sou um traidor. Não traí meu país. Nunca traí meu Deus. E nunca esperei sobreviver à guerra.
Andreson se virou para os homens que o seguiam.
- Matem-no - ordenou. - Devagar. Atirem num lugar em que ele vai sentir mais dor antes de morrer.
O tenente não soube o que despertava dentro dele, mas naquele instante sentiu algo que jamais experimentara.
Adrenalina.
Fúria.
De repente, a raiva era tão grande que ele conseguiu arrebentar as correntes que o mantinham prisioneiro. E nem precisou se esforçar.
Simplesmente, quebrou-as e se libertou.
Andreson gritou para os homens atirarem depressa.
O tenente foi atingido e caiu para trás.
Mas nada daquilo surtia o efeito esperado.
Apesar de baleado, ele se movia com uma velocidade compatível com sua nova força. Balas eram disparadas, sim, e ele as sentia rasgando sua carne, mas nada podia detê-lo. Então, se aproximou de Andreson. O homem que o torturara dia após dia, que o humilhara, ameaçara e tentara matar o bom dr. Weiss.
Ele o alcançou.
Até aí, as lembranças eram claras.
Depois, só lembrava de Andreson estendido diante dele em uma poça de sangue, como se houvesse sido enrolado em arame farpado. E os outros gritavam alguma coisa, palavras em outro idioma, coisas que ele não conseguia entender. Tentavam matá-lo com suas balas, e apontavam também para Weiss. A única coisa que sabia era que precisava detê-los, e percebia que, de maneira espantosa, ainda era capaz de se mover enquanto as balas ricocheteavam nas paredes.
Os dois primeiros... Ele os agarrou pelo pescoço. Depois de bater um contra o outro, soltou-os. Havia mais dois, pálidos como folhas de papel, mas ainda tentando matá-lo.
Como Andreson, eles caíram no chão e foram dilacerados.
E o som das balas perfurando paredes, cama, vidraças, madeira... O estrondo se calou.
O silêncio era completo.
Alguém o tocava.
Weiss.
- Precisamos sair daqui. Agora! Você está sangrando. Está... Ainda pode me ouvir? Entende o que eu falo? Pode me reconhecer? Venha, vou levá-lo para um local seguro.
Sabia que estava ferido. Quase morto. Fora atingido por muitas balas. Weiss o puxava... de um jeito estranho. Ele engatinhava pelo chão coberto de sangue.
Weiss levou-o para fora do edifício, para trás dele, para a cerca de arame farpado cintilando na noite escura.
Havia uma abertura na cerca.
Ele sabia para que a abertura fora feita. Era por ali que os corpos dos mortos eram deixados do lado de fora para serem levados e queimados.
- Guardas...
Homens começaram a gritar e correr na direção deles. Então, para espanto do tenente, os gritos se tornaram aflitos, desesperados, e os homens recuaram. Tiros foram disparados, mas o pânico os impedia de acertar o alvo. Eles correram.
O tenente não entendia por quê. O que causava tamanho terror nos guardas?
- Vamos, vamos, vamos! - Weiss o incentivava.
Ele olhou para trás. Prisioneiros, magros e emaciados como esqueletos, quase incapazes de se manter em pé, os encaravam.
- Não podemos deixá-los - o tenente murmurou. Mas o que poderiam fazer ele e o velho médico também ferido?
- Nós voltaremos - disse Weiss. - Voltaremos em algumas horas, quando a Lua estiver cheia.
O tenente teria rido, se pudesse. Via o rastro de sangue que deixavam na terra. Em algumas horas, ambos estariam mortos.
Mas isso foi antes de chegarem ao rio, de ele ver seu reflexo na água.

Louisa estava exausta e furiosa. Seus planos haviam fracassado, e ela tivera de correr como um coelho assustado.
Mas buscaria sua vingança, que seria lenta, deliciosa. Precisava lembrar que, para lidar com um poder similar, devia ter os números a seu lado. No entanto, não havia imaginado que naquela noite enfrentaria tal risco.
O perigo seria confrontado e eliminado. Quanto aos moradores do Château DeVant... aquelas mulheres...
Elas também conheceriam o sofrimento.
Onde estaria Claremont? Fechou os olhos, tentando se concentrar. Porém, sentindo a presença do perigo, mais uma vez fechou a mente.
Ela caminhava pelas ruas sentindo que o amanhecer se aproximava. A raiva se misturava à fome. Uma fome desesperada. Sentia uma presença próxima. Uma presa...
Um homem barbado, imundo, apoiado à parede de um beco, ao lado de um saco de papel contendo uma garrafa de bebida. Ele não estava dormindo, mas também não estava acordado. E cantava em voz baixa.
Ela se aproximou. O homem piscou e parou de cantar. Ela se aproximou um pouco mais.
O mau cheiro dele era insuportável. Suas roupas estavam imundas. O cabelo e a barba também guardavam suor, poeira, e sujeira. Não tinha importância. Pensando bem, estaria fazendo um favor à humanidade livrando as ruas daquela imundície.
Mas, quando ela se aproximou...
- Não.
Não, ele era simplesmente imundo. O cheiro era quase repugnante.
Apesar da fúria e da intensidade da fome, Louisa seguiu em frente.
O homem voltou a cantar. Mais tarde, nem se lembraria do medo que havia sentido por breves instantes.
Louisa se concentrou novamente. A escuridão ainda a cercava, e se tornou parte dela. Então... na sua frente, rindo, conversando, passando uma garrafa de vinho de mão em mão, ela viu dois homens e uma mulher...
A fome crescia. Mas, dessa vez, optou pela elegância em vez da fúria. Seria mais prazeroso.
Assim, passou pelo grupo caminhando com passos rápidos, e então, quando estava alguns passos diante deles, apressada como se tivesse para onde ir, ela ouviu:
- Ah, mademoiselle! Bonsoir!
- Pieter! - a mulher o censurou. - Deixe-a em paz!
Louisa se virou para estudar o grupo. Não era exatamente la creme de la creme da sociedade. A mulher vestia uma saia curta demais, uma blusa de decote excessivamente baixo, e seus seios quase saltavam para fora da blusa. E havia algo em como ela se movia. Os seios fartos e o quadril largo sugeriam que logo seria gorda demais para ser atraente. Jamais seria uma cortesã rica e poderosa.
E os homens... Rústicos, também. Já haviam passado dos primeiros anos da juventude, mas ainda não eram velhos. Contudo eles tinham aquele ar de quem busca prazeres ilícitos. Ainda bebiam e vagavam pelas ruas àquela hora da madrugada.
Não eram do tipo que escolheria, se pudesse escolher...
Mas eles ao menos haviam tomado banho na última década.
- Marie, não seja ciumenta! Quanto mais, melhor - disse o segundo homem.
Louisa se deixou alcançar pelo primeiro homem, Pieter.
- Mademoiselle... Não quero incomodá-la, mas está sozinha na rua, e há um assassino à solta na cidade. Por que não bebe um pouco de vinho conosco? Não tenha medo. Só quero protegê-la.
Ela aceitou a garrafa e bebeu um gole generoso, notando o brilho malicioso nos olhos do homem.
- Há um hotel perto daqui. Talvez queira passar algumas horas agradáveis conosco enquanto esperamos pelo amanhecer. Então, não vai mais ter de correr perigo sozinha pelas ruas escuras.
Ela bebeu mais um gole de vinho.
- Meu nome é Pieter. Meu amigo é Jorge, e nossa companheira é Marie.
Louisa os cumprimentou com um movimento de cabeça.
- Eu conheço outro lugar aonde podemos ir... - disse ela, com voz rouca.

Brent acordou assustado, mas sem saber ao certo onde estava.
Praguejando mentalmente, percebeu onde havia adormecido.
Furioso, levantou-se limpando a poeira das roupas, ao mesmo tempo em que se perguntava o que mais poderia ter feito.
A luz da manhã ainda não havia surgido.
Que bela sentinela era! Dormira quando deveria vigiar!
Olhou para o château através da escuridão.
Tudo parecia bem, e, quando fechou os olhos, tudo o que sentiu foi a quietude da noite. Mas alguma coisa tinha de ser feita para impedir o Mal de avançar.
O Château DeVant era a chave para resolver o problema.

Louisa, veja o que você fez! Que sujeira!, ele a recriminou. Depois dos planos que tracei; depois de tudo o que fiz!
No início, ela apenas rira. Erguera-se em toda sua glória, deslizara as mãos pelos seios e pelo ventre, deliciando-se com o maravilhoso manto vermelho que criara. Triunfante e feliz.
Você me encontrou, enfim. Eu o senti tão forte, e agora... Venha, querido. Não deixei muito, mas pode saborear o que ainda resta. Eu teria deixado mais... podia ter reservado a garota. Não era muito, mas...
As palavras sedutoras e provocantes não significavam nada. Nada!
Ele entrara no salão impaciente, ignorando a riqueza da beleza e do prazer que ela oferecia.
Pensei que fosse mais sensata!
Sentindo-se ofendida, Louisa ergueu-se em toda a sua altivez e nobreza.
Esqueceu com quem está falando?
E você esqueceu a quem deve sua vida!
Então...
Nada além de impaciência, irritação. Havia muita sujeira para limpar. E poucos em quem podiam confiar. Havia perigo na cidade, extremo perigo, e ele esperava ir muito mais longe antes de serem descobertos, e por causa de seu descuido, muitos já sabiam.
E o que fariam? O que podiam fazer? Era o que ela queria saber.
Depois de tudo que havia ocorrido no passado, Louisa deveria saber. Tinham de ir, não havia tempo; talvez houvesse ainda algumas poucas coisas que pudesse fazer...
E havia os criados, é claro. Mas não eram mais como antes. Ela tinha de entender que tudo mudara.
De qualquer maneira, ele se dispôs a fazer tudo o que sentia que tinha de ser feito.
Eles deixaram o local. Estavam seguros.
O temperamento de Louisa estava contido.
Fizera grandes planos. Precisavam ser cautelosos, porque havia aqueles que tentariam impedi-la de retornar de forma magnífica.

A luz da manhã brilhava gloriosa, e Jacques DeVant estava acordado. Sentia-se forte.
Acordara muito cedo, depois de ter sido incomodado por pesadelos. A vida o ensinara a ser competente e rápido em todas as funções naturais, e ele tomou banho, fez a barba, e se vestiu em poucos minutos, logo descia para a biblioteca.
Lá, foi removendo da prateleira livros e mais livros, e percebeu, considerando-se um idiota, que não havia imaginado o escopo do que estava acontecendo.
Cercado por livros, abria cada volume em várias páginas diferentes, e, depois de um tempo ligou o computador.
Ah, que maravilhosa invenção!
Os livros traziam o passado. O computador, o presente.
Podia ser um velho, e muitos de seus contemporâneos preferiam nem lidar com aquelas máquinas complexas, mas ele havia aprendido tudo o que podia sobre muitos programas, e sobre a internet. Era capaz de quebrar vários códigos, entrar em diversos registros de instituições que asseguravam aos clientes total segurança de seus dados.
Jacques procurou todos os registros que acessava, fez várias anotações. Sabia que estava certo. Sabia o que havia acontecido, o que estava acontecendo. Podia ver tudo agora: como, onde, quando, por quê...
Só não via quem.
Precisava de ajuda. Estava velho. A Aliança enfraquecera, o mundo não era mais o mesmo. A nova geração não acreditava. Porque não sabia...
Reclinou-se na cadeira e, por um momento, fechou os olhos. Quando os abriu, um sorriso distendeu seus lábios.
Fazia sentido!
Ah, sim. Não estava tão velho... Ainda não era inteiramente inútil.



Capítulo III


O mundo sempre parecia diferente sob a luz da manhã. Depois de o sol se erguer no horizonte, o medo da noite tinha evaporado, e Tara voltou a acreditar que aquela história de vampiros e do Mal à solta pela cidade era pura loucura. Precisava entender o que acontecia. E o melhor caminho, neste momento, era aquele que a levava à polícia.
Ann já havia saído para a editora e Jacques estava trabalhando na biblioteca, possivelmente em um novo livro. Tara repetiu a Katia que não deveria deixar a mulher da noite anterior entrar, caso ela aparecesse. Depois, foi à biblioteca para dar bom-dia ao avô.
- Vai sair? Precisamos conversar - Jacques falou.
- Vou ao vilarejo, vovô, mas não devo demorar. Podemos conversar hoje à tarde.
- À tarde? Sim, está bem. Tome cuidado e não demore.
- Prometo. - Ela riu, sem revelar que pretendia ir à polícia. Sabia que Jacques tentaria dissuadi-la.
Tara acenou para Katia a caminho da porta, mas parou assustada ao abri-la. Brent Malone estava ali.
- Brent?
- Bom-dia, Tara.
Ela saiu sem convidá-lo a entrar, mas deixou a porta entreaberta, caso precisasse fugir.
- O que aconteceu ontem à noite?
- Ah, havia uns encrenqueiros no bar... - Brent encolheu os ombros.
- E você cuidou deles?
- De certa forma, sim.
- Por que tivemos de sair correndo? E por que parecia que...?
- Sim?
- Ah, não sei. Tive a impressão de que atropelamos alguém. Ou de que alguém saltou sobre o carro.
- Você viu algo?
- Não. Voltamos, e também não vimos mais você.
- Sou rápido.
- É claro. Bem, não posso conversar agora.
- Tudo bem, não vim para falar com você.
Ela parou. Não? Será que ele queria ver Ann? Odiava admitir, mas a possibilidade era desanimadora!
- Minha prima não está em casa. Ela trabalha, lembra?
- Também não vim para ver Ann.
- Então?...
- Preciso falar com Jacques.
- Ah, não! Não vai aborrecer meu avô. De jeito nenhum.
- Ele ficará mais aborrecido se não puder falar comigo.
- De novo essa história de vampiros? Daqui a pouco vai me dizer que é um deles. E, se for, só vai poder entrar se for convidado, então...
- Não sou vampiro. E mesmo que fosse... Bem, Ann nos convidou ontem à noite. E isso não importa. Preciso falar com Jacques, e posso garantir que seu avô também quer me ver.
- Não vou deixá-lo entrar e...
- Tara!
Ela se assustou ao ouvir alguém gritar seu nome de dentro do château. Quando se virou, viu o avô parado à porta.
- Tara, não precisa ser rude. Convide o sr. Malone para entrar, por favor.
- Vovô, não sei se deve se agitar tanto...
- Sr. Malone, entre, por favor. É muito bem-vindo em minha casa.
Brent estendeu um braço, indicando que Tara deveria precedê-lo. Ela balançou a cabeça, inconformada, apesar da curiosidade.
- Tenho assuntos a resolver no vilarejo - disse.
Brent parecia pronto para argumentar, mas Jacques insistiu:
- Minha neta faz questão de resolver os próprios assuntos, sr. Malone. E como estamos no meio da manhã, creio que não precisamos impedi-la de ir.
- E claro, senhor. Bem, conversaremos só nós dois, então.
- Tara logo estará de volta.
- Sim, voltarei em breve - ela afirmou, irritada. Desde que o vira pela primeira vez, seu mundo parecia ter virado de pernas para o ar. E nada mais louco do que o desejo de me atirar nos braços de um desconhecido misterioso, pensou, ainda mais furiosa. - Até logo, sr. Malone, suponho que não estará mais aqui quando eu voltar. - Sem mais uma palavra, virou-se e caminhou para o carro.
Brent Malone entrou no château.
Tara sentiu um arrepio percorrê-la, num presságio silencioso de que aquela história macabra estava apenas começando.
- Meu Deus! - Jacques exclamou olhando para Brent.
- Imagino que já soubesse que eu estava aqui -, comentou Brent, em tom calmo.
- Achei que poderia estar, mas devem existir outros, não?
- Sim, existem. Mais do que podemos imaginar.
- Os anos foram generosos com você, Malone.
- Talvez, mas têm sido muito longos. Anos de espera. E você, meu amigo, também está muito bem.
- Sim, estou.
- E a saúde?
- Sou mais forte do que pareço.
- Há outros como você? - Brent indagou.
- E possível, mas o tempo, a correria do novo mundo... Deve saber que me mudei para a América. Escrevi livros.
- Sim, eu sei. Livros muito bons. Ficção científica, realismo fantástico, suspense, mistério... Tudo com uma mensagem humanista.
- Já leu meu trabalho?
- Tive muito tempo para me ocupar de várias coisas.
Não era exatamente o elogio que Jacques esperava ouvir.
- Não houve muito contato depois do... do fim. Escrever foi a forma que encontrei de manter minha conexão com tudo o que vi e vivi.
- Então... não há ninguém da velha guarda por aí?
- Receio que não. Porém... não posso afirmar com certeza. A Aliança ainda pode ser forte. Mas a ameaça terminou.
- Não, ela nunca acabou. Apenas se escondeu e ficou à espreita, esperando.
- Não temos o mesmo talento que os de sua espécie com relação à comunicação. Mas você... Você estava lá.
- Sim, mas eu trabalhava com hipóteses, pressentimentos... E há mais do que já vimos. Acredito que a situação na cripta foi planejada, e que temos de encontrar o autor desse plano.
- Venha comigo à biblioteca. Eu lhe direi tudo o que sei.

Tara estava sentada diante do inspetor Javet, o responsável pela investigação do assassinato na cripta.
Ele falava em inglês.
- Disse que tem informações sobre o assassinato na cripta, srta. Adair?
- Informações? Não, não. Lamento, mas deve ter havido algum engano. Vim porque estou preocupada com tudo o que aconteceu.
- Mademoiselle, todos estão preocupados com o que aconteceu na cripta. Se veio em busca de respostas, lamento, mas perdeu seu tempo. Estou trabalhando neste caso em tempo integral. Trouxemos um profissional de Paris, e todas as evidências técnicas estão sendo colhidas e estudadas. Já esteve nas ruínas?
- Sim, estive.
- Há quanto tempo está no país?
- Alguns dias. Tenho família aqui.
- Sim, no Château DeVant. Já me disse que está hospedada lá.
- Jacques DeVant é meu avô.
- Ah, o velho Jacques. Ele a mandou à cripta?
- Não! - Tara mentiu, esperando não ter se traído com a excessiva rapidez da reação. - Quero dizer, eu sempre me interessei pela história desta região. Sou americana, como sabe. Gostamos de voltar às raízes, esse tipo de coisa.
- Sim, é claro - Javet respondeu.
- Bem, lamento ter vindo atrapalhar sua investigação. A verdade é que minha prima vive dirigindo sozinha até Paris e confesso que estou preocupada. Ficaria mais tranqüila se soubesse que a polícia já tem suspeitos.
- Nós temos suspeitos, sim. Não vamos descansar enquanto esse assassino não for preso. Mas isso é tudo o que posso dizer. Satisfeita?
- Ficaria mais seja tivessem prendido o criminoso.
- É claro. Eu também poderia ficar, não fosse por esta sensação de que há algo que não me contou.
- Gostaria de poder dizer mais. Minha prima e eu saímos ontem à noite, e quando nos preparávamos para voltar para casa, tive a impressão de que alguém... de que alguém nos seguia. Foi como se houvesse alguém à espreita que pretendia nos atacar.
- Onde estavam?
- Saindo do La Guerre.
- E por que se sentiu prestes a ser atacada?
- Havia sombras...
- Ah, sim, sombras. Uma rua escura, o medo... Mais alguma coisa além de sombras?
- Chegamos a pensar que havíamos atropelado alguma coisa... ou alguém.
- Bem, ninguém informou sobre corpos encontrados na rua hoje cedo.
- Não, eu sei. Nós voltamos e... não havia nada na rua.
Javet a encarava.
Tara sabia que estava mais vermelha do que antes. Não podia revelar que não estavam sozinhas, porque ele ia querer saber quem era o rapaz que as acompanhava, e então se veria envolvida nos eventos da cripta. Fora tolice ir à polícia.
- Sinto muito. Não devia ter vindo incomodá-lo e tomar seu tempo. Acho que queria ouvir algo que pudesse me tranqüilizar. Precisava saber que a polícia está... fazendo alguma coisa.
- Claro isso porque a senhorita pensa que somos pobres policiais da província, sem conhecimento ou capacidade para solucionar um crime tão terrível, e que tudo o que fazemos é multar motoristas que ultrapassam o sinal vermelho.
- Não, não, eu...
- Como já disse, trouxemos um excelente profissional de Paris, um homem acostumado a esse tipo de trabalho. Estamos em um vilarejo na periferia de uma grande cidade, mas essas coisas acontecem até mesmo aqui.
- É claro. Nunca duvidei de sua seriedade ou competência. Soube que interrogou o homem que denunciou o crime, um dos operários da escavação. Ele é suspeito?
Javet parecia desconfortável.
- Ele já foi interrogado e tem sido... observado.
- Mas não está preso.
- Ainda não.
- Mas pode ser? Logo?
- Não acreditamos que ele tenha cometido o crime, srta. Adair, embora eu não possa revelar mais detalhes. Ele recebeu instruções para não deixar a área, e sabemos que não vai sair daqui, porque estamos rastreando seus passos.
- E o professor Dubois?
- Dubois? Já falamos com ele, mademoiselle. Ele telefona todos os dias. Sua preocupação não é com o homem que morreu, mas com a retomada das escavações.
- Isso não quer dizer...
- Testemunhas viram o professor saindo da cripta. E outras testemunhas o viram chegar em casa. Estamos seguindo todas as pistas, mas não podemos divulgá-las, ou jamais pegaremos o culpado. Tenha certeza de que estamos investigando.
- É claro. - Ela se levantou. - Mais uma vez, lamento ter tomado seu tempo.
- Foi um prazer recebê-la. Por favor, volte para tomar um café. Se quiser, posso informá-la sobre os desdobramentos da investigação quando eu não estiver de plantão.
- Ah, sim...
- Vou acompanhá-la até a porta. A propósito, mademoiselle, se sua extrema preocupação com o sr. Malone está relacionada ao fato de terem se conhecido, sugiro que tome cuidado.
- O quê?
- Já disse que ele está sob observação, srta. Adair. Você o conheceu na cripta, enquanto ele trabalhava, ou o viu pela primeira vez no café na frente da igreja?
- Eu o conheci quando ele trabalhava, é claro. E só conversamos no dia seguinte, quando ele se sentou comigo na mesa do café. - Estava bem próxima da verdade, e sua voz soava tranqüila, natural. - E, é claro, como conheci o homem e li o nome dele no jornal relacionado à descoberta do corpo, fiquei preocupada.
- Srta. Adair, deveria ter mencionado esse fato desde o início.
- Perdão, mas não estou acostumada a investigações policiais e julguei não ser relevante.
- Entendo. E já que fomos francos até aqui, talvez eu deva informá-la de que o interesse de seu avô pela tumba também é muito suspeito.
- Meu avô?
- Nossos registros indicam que Jacques DeVant sempre teve um grande interesse na tumba antes de sua abertura, e o depoimento do professor Dubois confirma essa informação.
- Meu avô não tem boa saúde, inspetor. Ele não poderia ter causado mal...
- Ele é um homem de posses, srta. Adair. E foi muito taxativo quanto à necessidade de ninguém mexer nas sepulturas sob a igreja. Jacques escreveu muitas cartas de protesto para a Igreja, o governo, e até para a delegacia.
- Meu avô é um estudioso, um amante da História, e também é muito religioso. Tem fortes convicções, reconheço, mas não é violento!
Javet a estudou por um momento.
- Seu avô se tornou conhecido como um herói da Resistência, srta. Adair. Posso afirmar que ele conheceu grande violência.
- Ele foi um soldado na guerra. Todos os homens são chamados a cumprir seu dever em algum momento.
- Só estou explicando que seu avô odiava a idéia da escavação, e sei que ele é suficientemente rico para exercer influência sobre outras pessoas.
- Meu avô nunca contrataria um assassino. Pode trazer todos os peritos de Paris e do mundo, e nunca encontrará nada que possa sugerir o contrário!
- É claro. Ah, falando em peritos... - Javet sorriu para um homem que se aproximava da porta da delegacia. - Srta. Adair, esse é o inspetor Trusseau, da polícia científica de Paris. Inspetor, a srta. Adair é uma jovem americana visitando parentes franceses no nosso vilarejo. Os DeVant.
- Mademoiselle...
- Como vai, inspetor?
- Muito bem, obrigado. É muito oportuno que tenhamos nos conhecido agora.
- Mesmo? Por quê?
- Bem, pretendo visitar seu avô.
- Por quê?
- Porque ele é um famoso estudioso, é claro. Espero que possa me dar alguns bons insights sobre esse crime.
- Já disse a ela que Jacques DeVant pode se tornar mais um suspeito - explicou Javet.
- E eu já respondi que suspeitar do meu avô é, no mínimo, insanidade.
- Então, irei visitá-lo apenas em busca de ajuda.
- O inspetor Javet sugeriu que meu avô pode ter contratado alguém para matar o trabalhador na cripta e sumir com o corpo encontrado no caixão.
- Isso não é verdade - Javet protestou, irritado. - Só quis provar que todas as pistas são seguidas.
- Javet, por que não volta ao seu posto? Eu acompanho a srta. Adair até o carro - sugeriu Trusseau.
- Não se incomode, posso ir sozinha. E nem sei se vou direto para casa, então...
- Nesse caso, desejo que tenha um excelente dia, mademoiselle. Sei que voltaremos a nos encontrar.
- Quando vai interrogar meu avô?
- Francamente, não há necessidade de tanta hostilidade! Ouvi falar muito sobre seu avô. Não quero perder a chance de conhecê-lo. E, quando for visitá-lo, espero que esteja lá, e que me convide a entrar e participe da conversa.
- Meu avô está muito doente.
- Lamento saber disso. Não tomaremos muito de seu tempo.
- Quando ele repousa, não permitimos que ninguém o incomode. Ninguém.
- Compreendo. Bonjour, mademoiselle. Foi um prazer.
Sozinha na rua, Tara decidiu que sua visita à polícia só havia servido para causar ainda mais medo e inquietação.
A polícia investigava seu avô! E sabiam que ela conhecia Malone.
De repente, odiava aquele americano enxerido. Por causa dele, agora todos em sua família corriam perigo!
Se a polícia fosse falar com Jacques, e ele relatasse aquela teoria maluca sobre vampiros e demônios, por certo acabaria internado como louco.
Tinha de encontrar um jeito de proteger Jacques. Estava apavorada, perdida, confusa...
Olhou para o café diante da igreja, pensando que uma xícara de café au lait poderia ajudá-la a pensar. Como afastaria Malone e os outros de sua família?
Ainda estava ali, parada, quando sentiu a porta da delegacia ser aberta e alguém sair do edifício atrás dela. Virou-se, pronta para sair do caminho e pedir desculpas, mas parou tomada por um repentino e intenso frio.
Não havia ninguém ali.
O medo fechou suas garras geladas sobre ela.
E por que seria diferente? Tinha todos os motivos do mundo para ter medo, ou melhor, para ficar apavorada com tudo o que estava acontecendo.
Brent Malone era o responsável pelo medo que se instalara em sua casa, em sua vida.
De repente, Tara decidiu que não precisava do café nem de tempo para pensar.
Precisava voltar ao château.
Brent Malone estava lá. Sozinho com seu avô.
Não deveria ter saído.

Ann olhou para a pilha de manuscritos sobre a mesa e suspirou. Estava exausta! Não fora dormir tão tarde na noite anterior. Na verdade, antes de sair do bar, tinha se sentido tão cheia de vigor que teria sido capaz de virar a noite dançando e rindo! Mas agora...
Ela riu. Por que sentira tanto medo ao sair do La Guerre? Sombras! Que tolice. O medo afetara seu raciocínio, e tivera a impressão de ter atropelado alguém... alguma coisa...
E pensar que abandonara Rick Beaudreaux no bar! Não que estivesse apaixonada, mas ele a ajudava a permanecer longe de Willem. Havia atração, a conversa era interessante...
E uma forte eletricidade cada vez que ele a tocava. Não sabia quanto tempo o americano ficaria em Paris, nem se ele tinha emprego, se era maduro... Mas não se importava com isso. Queria vê-lo outra vez. Desejava ficar um tempo com ele. Não precisava mais de vinho, jantares ou dança. Só queria uma noite a dois e então...
Então, nada. Passaria um tempo agradável com um homem interessante, Willem saberia de tudo... Mas estava cansada. Muito cansada.
- Ann?
Assustada, ela levantou a cabeça. O homem de seus sonhos estava ali, parado na porta. Bem-vestido, alto, perfumado... Ela respirou fundo.
- Monsieur Beaudreaux, que surpresa!
- Peço desculpas, não queria assustá-la.
- Como... conseguiu chegar aqui? Sem ser anunciado?
- Disse à recepcionista que queria surpreendê-la leva-la para almoçar. Mas acho que não foi uma boa idéia
- Não, não, é muito bom que tenha vindo. Não estava pensando em sair para almoçar. Tenho muito trabalho não estou em um dos meus dias mais produtivos, mas...
- Um intervalo pode ajudar.
Ela se levantou. Para o diabo com o trabalho. Em algumas semanas chegava a trabalhar até setenta horas naquela redação. Merecia um descanso.
- Você deve ter razão. Aonde vamos? - Pegou a bolsa e a jaqueta.
- Aonde você quiser.
Um discreto quarto de hotel, Ann pensou. Mas não disse nada.
Beaudreaux sorriu, como se pudesse ler seus pensamentos, segurou-a pelo braço e a eletricidade a invadiu Eles caminharam até o elevador e desceram com outras pessoas que também saíam para almoçar. Na rua perguntou:
- Então, aonde gostaria de ir?
- Qualquer lugar... com...
- Com o quê?
Ann pretendia dizer qualquer lugar que sirva uma boa salada e pão quente, mas o que disse foi:
- Qualquer lugar com uma cama.

Tara encontrou o avô e Brent Malone na biblioteca do chateau.
Brent estava em pé, atrás de Jacques, observando as anotações que ele fazia em um mapa aberto sobre a mesa.
- O que estão fazendo? - quis saber.
- Estudando um mapa de Paris e suas redondezas - respondeu Brent.
- Você tem de ir embora.
- Tara! - Jacques a censurou.
- Meu avô esteve muito doente há pouco tempo. Se ficar cansado, ele pode ter uma recaída e...
- Tara! - Jacques repetiu.
- Talvez eu deva ir mesmo - Brent falou em voz baixa.
- Já disse a ela o que está acontecendo - Jacques protestou com firmeza.
- Sim, mas Tara não acredita.
- Se veio aqui para reforçar a crença de meu avô em vampiros e outras tolices, não é bem-vindo.
- Viu? Ela não acredita - Brent repetiu.
- Mesmo assim, eles existem, e minha neta não deve interromper o nosso trabalho.
Malone olhou para Tara e encolheu os ombros.
- Bem, você decide: ou participa e ajuda... ou sai e nos deixa trabalhar.
- Está me dizendo que acredita, de fato, em vampiros? Em criaturas demoníacas que se levantam dos mortos?
- Nem todos são demoníacos - Jacques a corrigiu.
- Mas Louisa de Montcrasset é muito mais do que apenas demoníaca - acrescentou Brent.
Furiosa, Tara saiu e bateu a porta para não ceder ao impulso de agarrar Brent pelos cabelos e jogá-lo na rua. Ao se virar no corredor, ela quase tropeçou em Eleanora. A cadela não tentou entrar na biblioteca, não se moveu, nem latiu. Permanecia quieta e alerta, como um cão-de-guarda antigo.
- Venha, Eleanora, vamos sair daqui.
O animal não se moveu.
- Até a cachorra ficou maluca!
Tara subiu a escada pensando em encontrar um pouco de paz em seu quarto. Tinha feito tudo errado. Chegara em casa nervosa e explodira, em vez de explicar de forma racional que mortos não se levantavam para matar os vivos. Pessoas gananciosas cometem assassinatos. E alguns loucos, doentes, psicóticos... Deveria ter concordado com Brent e ficado para ouvir a conversa.
Deitada na cama, sentiu um odor peculiar. Réstias de alho emolduravam a porta da varanda.
Isso está indo longe demais!
Furiosa, Tara se levantou e voltou à biblioteca.
Eleanora continuava parada diante da porta, mas, desta vez, ela rosnou ao vê-la.
- Eleanora, sou eu!
Era inútil. A cadela guardava a porta e rosnava, impedindo-a de entrar.
- Ei?! Que maluquice é essa?
A porta se abriu. Brent olhou para ela, depois para o animal, cuja cabeça afagou por um instante.
- É Tara. Ela quer entrar. Tudo bem.
Eleanora se afastou, deitando-se perto da parede para cochilar.
- Decidiu se juntar a nós? - Brent perguntou.
- Decidi torcer seu pescoço! Que diabo esteve fazendo no meu quarto? Por que há réstias de alho na porta da varanda?
- Eu não estive no seu quarto.
- O que estão cochichando? - Jacques perguntou. Ela passou por Brent e parou diante da escrivaninha do avô.
- Alguém pôs réstias de alho em torno da porta da varanda do meu quarto.
- Sim, é claro.
- Foi você?
- Não, foi Katia.
- Ah, que maravilha! Então, Katia acredita em vampiros!
- Katia sabe que o mundo abriga muitas entidades e seres, nem todos sempre visíveis a olho nu.
- Vovô, um homem foi brutalmente assassinado, em uma tumba que você não queria ver aberta e numa escavação que você tentou impedir! Sabe que a polícia suspeita de que tenha contratado alguém para matar aquele operário?
- Javet?
- Sim, Javet e o inspetor vindo de Paris. E ele disse que talvez venha conversar com você.
- Então, você foi à polícia - Jacques deduziu, entre furioso e desapontado.
- A polícia investiga assassinatos.
- E desaparecimentos, também - completou Brent. - Sete pessoas desapareceram nas últimas semanas, de acordo com queixas registradas na delegacia central de Paris.
- Desaparecidos? Quem? E o que esses desaparecimentos em Paris têm a ver com um assassinato brutal aqui no vilarejo? Jean-Luc não desapareceu. Foi decapitado.
- Paula Denton, estudante britânica, falou com a família pela última vez há mais de duas semanas, e disse a eles que naquela noite deixaria Paris a caminho de casa. Depois, com boletim registrado há cerca de dez dias, John Bryner, americano, deveria ter se apresentado na escola, em Nice, mas nunca apareceu. Jillian Grives, prostituta parisiense, não é vista há nove dias. Barbara Niemes, outra prostituta, desaparecida há quase uma semana. A lista continua, e deve haver outros nomes que ainda não foram divulgados. Deus sabe quantos desaparecidos não têm família para registrar queixa.
- Estudantes desapareceram. Jovens estudantes de passagem pela Europa. E prostitutas...
- Ah, e essas pessoas não merecem sua preocupação, Tara?
- Não foi isso que eu disse! É claro que são seres humanos e merecem minha preocupação e a de todos os outros. Mas estudantes andam pela Europa o tempo todo, e prostitutas...
- Prostitutas usam drogas e sempre voltam ao fornecedor - completou Jacques.
Ela olhou para os dois homens.
- Tudo bem, já entendi. Acreditam que todos tenham desaparecido por causa dos vampiros.
Nenhum dos dois disse nada.
- Vampiros bebem sangue! Não consomem todo o corpo da vítima! Se vampiros houvessem atacado esses infelizes, os corpos vazios e secos já teriam sido encontrados! A família os teria sepultado, depois, quando eles se levantassem de suas sepulturas, haveria mais vampiros, todos brotando das paredes como baratas.
- Sim, vampiros bebem sangue - confirmou Brent. - E sobrevivem. Por isso não deixam corpos jogados por aí. Demarcam seu território de ação, não gostam de competição, por isso evitam criar outros membros para a raça. Na verdade, seguem uma espécie de código de conduta.
- Um código de conduta? Um livro de normas? O Estatuto do Vampiro? Desculpe, ainda não li essa obra-prima.
- Não é um livro, e você não poderia ler, se fosse. Mas existe uma sociedade antiga, e há regras e leis segundo as quais as criaturas vivem. Sempre foi assim.
- Sei. E você desenterrou a tal condessa, e agora ela é uma vampira.
- Ela já era vampira antes de ser desenterrada. Mas, sim, agora está solta.
- Brent, você já conhecia meu avô antes de vir aqui hoje, não é?
- Sim.
- Entendo. Foi você quem encheu a cabeça dele de bobagens e o convenceu a protestar contra a escavação, agora a polícia o considera suspeito de um assassinato. Você o convenceu de que ele integra uma aliança qualquer, e conseguiu envolver um homem idoso e doente em um maluco.
- Não sou nenhum velho maluco, Tara! - empertigou-se Jacques DeVant.
- Não sei qual é o seu jogo, Brent. Talvez seja escritor também. Ou uma espécie de crítico que pretende arruinar a reputação de Jacques, ou construir a sua reputação massacrando a dele. Bem, seja qual for o jogo, acabou. Voltarei à delegacia agora mesmo e contarei tudo o que sei.
- Não posso permitir que faça isso, Tara - Brent respondeu, sem se alterar.
- E como pretende me impedir? Vai me matar? Talvez pense que é um deles?
- Não.
- Ah, graças a Deus! Ainda não vi uma dessas criaturas, então!
- Sim, já viu.
- Eu vi?
- Sim, a condessa Louisa de Montcrasset esteve aqui, na porta do château, e você deve sentir mais do que admite, porque não a deixou entrar.
Tara queria protestar, dizer que jamais deixaria uma desconhecida entrar na casa de seu avô àquela hora da, noite, mas algo a incomodou.
Um arrepio. As garras gélidas do medo...
Temia que, no fundo, estivesse enlouquecendo como eles. Porque, por alguma estranha razão, estava quase acreditando naquela insanidade.
- Você sabe que estou certo - Brent insistiu.
- Tara, escute - disse Jacques. - Tentei conversar com você sobre isso, fazê-la entender.
- Eu... Eu... Não! Não vou acreditar nesse absurdo. E você, Malone, quero que saia desta casa! Jacques, como pode permitir que esse homem brinque com sua sanidade mental dessa maneira?
- Tara...
- Não quero mais saber disso!
Sem mais uma palavra, ela se virou e saiu da biblioteca.
Ann estava deitada, de olhos fechados e satisfeita como não se sentia desde... nunca! Era como morrer e ir para o céu.
Haviam escolhido um dos mais encantadores hotéis de Paris, apesar de ela ter saído da editora apenas para a hora do almoço.
Suspirando, ela se virou para se aninhar no peito musculoso coberto por finos pelos dourados. Estava intrigada com a grande quantidade de cicatrizes espalhadas pelo corpo dele.
- O acidente? - murmurou.
- Sim.
- Sinto muito, mas fico feliz que você tenha vindo a Paris.
Rick sorriu e a abraçou.
- Foi há muito tempo.
- O que aconteceu?
- Um incêndio. Vejamos... eu havia saído com amigos. Eles escaparam, mas eu fiquei preso.
- Eles o abandonaram?
- Foi uma situação estranha. E não importa. Já passou.
- Deve ter sofrido horríveis queimaduras.
- Como disse, não importa. Prefiro saber mais sobre você.
- Não há muito para contar. Você sabe onde trabalho, o que faço.
- Sim, mas... e sua vida pessoal? Existe... alguém?
- Não. Moro com minha família.
- O que não exclui a possibilidade de ter um relacionamento sério. Uma mulher como você deve ter alguém, um amante em algum lugar.
Só então ela se deu conta de que não havia pensado em Willem uma única vez.
Rick afagou-lhe os cabelos.
- Existe alguém? Porque eu não tenho ninguém.
- Agora não - Ann respondeu com um sorriso confiante.
- E aquele homem com quem estava saindo?
- Willem. Ele é gerente comercial da editora.
- Assustador, confesso. Você o vê todos os dias.
- Não, só nas reuniões... e não tem importância. Acabou.
- Espero que sim. Farei tudo o que puder para mantê-lo longe de você.
- É mesmo? Mal posso esperar para ver que armas pretende usar...

Havia outros sinais de que a casa estava longe de ser um lugar normal. A caminho da porta da frente, Tara notou um pequeno cesto sobre o consolo de madeira no hall, que em geral ficava cheio de flores, mas agora estava ocupado por numerosos frascos pequeninos. Curiosa, parou para estudar um deles.
Água-benta de Notre-Dame!
Irritada, devolveu o frasco ao cesto e saiu. No galpão que fazia às vezes de estábulo, ela encontrou a baia de Daniel vazia, porque ele havia sido levado ao pasto para se exercitar. Ainda estava lá quando sentiu uma presença na porta.
Era Brent. A sensação era intensa, como naquele dia na cripta.
- Vou à polícia - ela anunciou sem se virar. - Contarei que estava na cripta e que o vi lá. Vou deixar claro que você não é o assassino, mas também direi que é um homem assustador e perigoso, que você induziu meu avô a mergulhar nesta... loucura.
Brent não respondeu.
Tara se virou e viu que ele estava muito próximo.
- Escute, você é perigoso. Acha que tem algum poder de hipnose, persuasão, e que as pessoas vão acreditar nessas bobagens que diz? Pois saiba que nem todos nós somos tão fáceis.
Ele continuava se aproximando.
Tara notou um rastelo sobre a pilha de feno, a sua esquerda. Ao vê-lo dar mais um passo, saltou e agarrou a ferramenta, empunhando-a como uma arma.
Brent parou e sorriu.
- Não vai me assustar com isso.
- Saia daqui. Afaste-se do meu avô.
- Não posso, Tara.
Ele continuava se aproximando. Mesmo armada, Tara recuou.
- Você é maluco. Precisa de ajuda.
- Estou dizendo a verdade, e você sabe disso.
- Sobre a existência de vampiros?
- Sabe que estou dizendo a verdade, porque estava lá. Ouviu o grito na tumba. E quando deixou o La Guerre, soube que alguém a seguia. Sabia que havia perigo nas sombras. Algo que você não podia ver, mas podia sentir. E quando chegou em casa, e aquela mulher estava na porta, sentiu que havia algo de errado. Por isso a impediu de entrar.
- Saia daqui.
Brent estendeu a mão.
- Desista e me dê isso.
- Não!
- Você é muito parecida com seu avô. É teimosa, voluntariosa, mas vai me dar o rastelo.
- Ah, não é tão poderoso quanto imagina.
- Posso até não ser, mas vai me dar o que pedi.
Não era essa a intenção dela, mas quando o viu dar um passo, em vez de recuar e se preparar para atacar, Tara descobriu que os membros não atendiam ao comando de seu cérebro. As mãos tremiam, os braços se moviam, contra a sua vontade, e ela entregou a arma improvisada.
Brent a agarrou pelo cabo e, por um instante, Tara pensou que seria atacada, mas ele jogou o rastelo longe.
Foi então que ela divisou aquele estranho brilho de fogo nos olhos verdes com imensas raias douradas que se erguiam como labaredas de fogo. Que mistérios haveria naquele olhar quase hipnótico?
Queria gritar, mas o som estava congelado em sua garganta.

O trabalho havia sido esquecido.
Rick Beaudreaux estava deitado ao lado de Ann DeVant, apoiado sobre um cotovelo, observando-a com grande atenção.
Tão linda! E tão facilmente dele.
Ann DeVant. Uma mulher muito importante. E tão... perfeita.
O tempo voara. Minutos se transformaram em horas. No entanto...
Ainda havia tempo antes do anoitecer. Ela precisava se levantar e voltar ao trabalho. Logo a noite cairia. Primeiro o crepúsculo, depois a escuridão.
Rick se inclinou para sussurrar:
- Odeio dizer isso, mas é tarde. Desejo participar muito mais de sua vida, mas não quero que perca o emprego por minha causa.
Ann suspirou e se virou, passando os braços em torno do pescoço forte.
- Eu sei. Em geral, sou uma pessoa prática, mas odeio a idéia de me afastar de você.
Ele sorriu.
- Prometo que estarei sempre por perto. Na verdade, você vai até se surpreender. Não conseguirá se livrar de mim com facilidade.
Quando se inclinou mais para beijá-la, Rick afastou os cabelos que encobriam parte do rosto delicado. Ali, na lateral do pescoço, ocultas pela cortina de cabelos sedosos, havia duas pequenas marcas.
Eram apenas pontos... Quase invisíveis a olho nu.
Ele as estudou por um momento.
Depois a apertou entre os braços.

Naquela tarde, Yvette Miret deixou o trabalho no café pouco depois das seis horas.
E às seis e meia estava mais do que pronta para ir para casa.
Paul, seu namorado de infância, aparecera às três da tarde. Tinham combinado ir a um show na cidade naquela noite. Entretanto, Yvette desistira do show, porque Paul era um cretino que brigara com ela por causa de um ciúme insano. Depois de vê-la conversando com os jovens turistas britânicos que estavam no café, Paul armara uma cena de ciúme diante de todos e ainda gritara que ela iria se arrepender por tê-lo trocado por estranhos.
Agora, depois do que tinha acontecido, Yvette lamentava a decisão de não ter ido trabalhar de carro naquele dia, pois teria de caminhar de volta para casa, e a distância era considerável.
Resignada, apesar do frio, começou a andar.
A escuridão chegara depressa demais! O vento era gelado. Os sapatos que usara tinham salto médio, perfeitos para ir ao show, mas impróprios para o calçamento irregular das ruas, o que a fez torcer o tornozelo duas vezes.
Tudo culpa de Paul,
Então... na escuridão viu o brilho de faróis surgindo na estrada. Sabia que, depois de um dia como o que tivera, seria tolice imaginar que alguém iria parar para lhe oferecer carona.
Mas...
O carro parou ao lado dela.
Yvette hesitou, lembrando do horrível assassinato cometido na escavação da igreja. Por outro lado, o que isso tinha a ver com uma escavação arqueológica em uma cripta? Ela se aproximou do carro e olhou pela janela do passageiro, que havia sido aberta.
Seu coração disparou.
- Olá - ele disse. - O que faz aqui sozinha, no frio e nessa escuridão?
- Rompi com meu namorado - Yvette respondeu com um suspiro teatral, tomada por uma intensa excitação. O dia não estava perdido, afinal.
- Sinto muito. Quer uma carona?
Ela abriu a porta e entrou no carro, um modelo novo e caríssimo.
- Obrigada.
O motorista voltou à estrada antes de responder:
- E um prazer. Seu namorado... Que tipo de idiota a deixaria voltar sozinha para casa?
- Ah, o rompimento era inevitável. Não queríamos as mesmas coisas da vida.
- Pobrezinha...
- Minha casa fica a pouco mais de um quilômetro daqui, à esquerda.
- Certo. E você vai para casa para chorar no travesseiro?
- Já disse que foi melhor terminar, não?
- E, disse.
Naquele instante, passaram pela saída que ela havia indicado.
- Perdeu a entrada.
- Sim, eu sei. Foi de propósito. Decidi levá-la para tomar uma taça de vinho e para experimentar um pouco de alegria.

Javet estudava os relatórios da perícia. Não havia muito a acrescentar. Todo o sangue encontrado no local pertencia à vítima. E não havia muito sangue. Esse era o primeiro mistério.
Dubois teria de ser interrogado outra vez, e talvez fosse hora de deter o colega de Jean-Luc.
- Inspetor?
Ele levantou a cabeça para encarar Tillette, um de seus melhores oficiais.
- Sim?
- Um corpo foi encontrado perto do rio Eau Gallie. Uma mulher. A perícia foi chamada, mas...
- O que é, Tillette? Qual é o problema?
- A vítima foi decapitada.

Tara sentiu os braços em torno de seu corpo, o calor que a envolvia, a segurança... Era ridículo. Um minuto antes chegara a pensar que ele a mataria, e agora se sentia protegida porque ele a abraçava?
- Você me usou para se aproximar do meu avô - ela o acusou.
- Eu teria me aproximado de Jacques de qualquer maneira. Já nos conhecíamos antes de tudo isso.
- Você conhecia Jacques? Desde quando?
- Há muito tempo. Seu avô é um membro da velha Aliança.
- O que é essa Aliança?
- Uma organização muito antiga.
- Ah, é claro. São como maçons... com a diferença que acreditam em vampiros.
- Não, são guardiães.
- Guardiães de quê?
- Da humanidade, do sagrado direito à vida, da paz. Do Bem sobre o Mal. Seja qual for a terminologia, esse é o papel da Aliança.
- E quando ela foi formada?
- Há menções à Aliança, embora obscuras, em textos da Idade Média.
- Ah, é claro. E você também faz parte dessa Aliança?
- Não exatamente.
- Então, qual é o seu papel aqui?
- Ouvi rumores sobre a escavação e a igreja, e conhecia lendas e relatos sobre Louisa de Montcrasset. Estudei a história francesa com afinco. Aceitei o trabalho com Dubois para ter certeza de que estaria presente quando o caixão fosse aberto.
- Mas, em vez disso, estava correndo atrás de mim.
- É verdade.
- Não precisa se sentir obrigado a me proteger só porque eu estava lá no momento do assassinato, ou por causa de meu avô.
- Mas eu me sinto.
- Sei cuidar de mim mesma.
- Não, não sabe. Ainda não. Quanto ao fato de eu estar sempre perto de você... Bem, isso não tem nada a ver com o seu avô. Existe algo maior que a vida e a morte entre nós, você não sente?
Sim, Tara sentia, muito mais do que gostaria e, embora não respondesse com palavras, seu corpo ávido pelas carícias de Brent responderam por ela.
A escuridão caía depressa lá fora. As sombras se aproximavam.
Tara estremeceu, sentindo a vibração no ar. Quando percebeu o que acontecia, já se deixava despir e afagar com intimidade, e retribuía as carícias com avidez assustadora. Ela nem saberia dizer quando ou como cada peça de roupa havia sido tirada, mas existia um rastro no chão do estábulo, conduzindo às pilhas de feno. Brent era tudo o que havia imaginado e muito mais. Cada movimento do corpo atlético era vibrante, o contato daquelas mãos despertava nela um fogo incontrolável e a necessidade de ir além, de provar, de sentir, de tocar.
Aquele era um encontro destinado a se prolongar por toda a eternidade. Algo que tinham esperado desde o princípio dos tempos.
Brent era um amante perfeito.
A boca a explorava com expertise. Sutil, sedutora, agressiva na medida certa. Havia momentos de grande intensidade quando Tara tinha consciência apenas do prazer, e outros quando pensava ter perdido de vez a razão. E, nos breves instantes de sanidade, ela compreendia que tinha algo mais profundo naquele encontro de corpos e almas.
O despertar da própria loucura, porque no fundo, em algum recanto secreto e oculto de sua mente, temia acreditar... não só em Brent, como também no amor.
À certa altura, porém, o prazer baniu todos os pensamentos racionais. Tara sentia-se queimar por dentro, um ardor intenso, envolvente. Tremia e arfava, ansiando por tê-lo dentro de si.
Mãos vigorosas a acariciavam, preparando-a para recebê-lo em seu corpo.
Por fim, Brent a preencheu com toda a extensão de sua masculinidade, num misto paradoxal de força e gentileza, movendo-se com ela de maneira a fazer crescer o desejo. Ao chegarem ao auge do prazer, todas as fibras e células de seus corpos vibraram na mesma sintonia. Foi como se a noite participasse do encontro; sombras explodiram em luz, a escuridão desapareceu, a umidade se fragmentou em centenas de cristais cintilantes.
Saciado o desejo, a razão retornou aos poucos. Estavam nos braços um do outro, nus, suados, satisfeitos...
E não havia como voltar atrás.
- Está escuro - Brent murmurou, beijando-lhe a testa. - Tenho de ir.

* * *
Ann passou pelo escritório, apesar do horário. Henriette já tinha ido embora, e ela corria o risco de enfrentar uma severa punição por ter perdido a reunião daquela tarde. Mas não estava preocupada. Fazia muitas horas extra todas as semanas. Levava trabalho para casa todas as noites, sem exceção. Era competente, e desafiaria qualquer um que dissesse o contrário.
O diretor de arte apareceu na porta de sua sala.
- Perdeu a reunião - ele disse.
- Eu sei. Sinto muito.
- Tudo bem. Decidimos aceitar sua sugestão para a capa daquele novo romance americano. Sem problemas.
- Obrigada. Espero que me desculpem pela reunião.
- Deve ter sido a primeira que você perdeu. Não é tão importante.
- Obrigada.
- Bem, até amanhã.
Ele se foi. Ann abriu a primeira gaveta da escrivaninha, procurando um elástico para prender as folhas do manuscrito que pretendia levar para casa para ler.
- Onde você se meteu?
Assustada, ela olhou para a porta e viu Willem.
- Não é de sua conta.
- Claro que é!
- Ah, você acha? E por quê?
- Porque... porque te amo. E porque há um assassino solto pelas ruas de Paris.
Ann prendeu o manuscrito com o elástico.
- Você não me ama. Não tanto quanto ama a si mesmo. Está apenas contrariado, porque tenho outros interesses na vida. Quanto ao assassino, ele está mais interessado em roubar tesouros e caixões. Agora, se me der licença, vou para casa.
- Espere! Você precisa esperar. Ela suspirou, impaciente.
- Por que, Willem?
- Não se deixe enganar, Ann. Vivemos um momento de grande perigo em Paris.
- Willem, perigoso é gostar de você. Quer saber de uma coisa? Amei você, amei muito... mas acabou.
- Ann, estou implorando para me perdoar por um momento de tolice que não significou nada para mim. Nada! A garota estava pedindo ajuda...
- É claro. Sei que muitas outras vão precisar de sua ajuda no futuro. Pode me dar licença agora? Quero ir para casa.
Ele se afastou, porém, quando Ann passava pela porta, dedos firmes a seguraram pelo braço.
- Willem...
- Ann, você é uma tola. Não percebe que é minha, e que em breve provarei o que estou dizendo.
Distraída, ela tocou o próprio pescoço, afastando os cabelos que a irritavam.
- Solte-me.
Willem aproximou o rosto do dela.
- Você vai ver. Você é minha.
- Boa-noite, Willem.
Quando saiu do escritório, Ann sentia medo. Sabia que ele continuava no mesmo lugar, observando-a. Apressada, passou pela recepção e fechou a porta. No elevador, pressionou o botão do painel e olhou para trás, sentindo mais medo do que desejava admitir.
Ela se encostou à parede do fundo do elevador. A porta demorava a se fechar.
Apertou novamente o botão para descer ao térreo. Ainda estava tocando o botão, quando Willem entrou.
Ela recuou. A porta se fechou.
- Então, Ann... Cá estamos nós. Sozinhos.

* * *
Havia coisas que ele podia quase tocar no momento do crepúsculo, entre o sono e a vigília, quando o dia abria espaço para a noite, e a luminosidade dava lugar à escuridão.
Coisas que ele podia ver, mesmo se tivessem acontecido em outro tempo e lugar.
Imagens, visões...
Naquela noite, a visão lhe mostrara a encarnação do Mal caminhando sozinha na rua, consciente, mas faminta.
Sim, tinha visto Louisa... os dois homens e a mulher caminhando pela rua.
Seguira-os até a velha casa, observara o que ela fizera para prepará-la, os truques de sedução, a antecipação do prazer...
A sede.
A provocação...
E depois o momento em que se preparava para matar... outra vez.
As imagens daquela visão do passado desapareceram, substituídas por outra impressão.
Um chamado, um aviso. Palavras que chegavam até por outros canais da mente.
Eles a tocaram, a pegaram.
Quem?
Ann. Ann DeVant. Mas eu vou segui-los.

Tara encontrou o avô jantando na biblioteca. Ann ainda não estava em casa, mas havia ligado avisando que se atrasaria. Assim, ela decidiu jantar com o avô e aproveitar a atmosfera íntima para conversar.
- Ainda acho que tudo isso é maluquice - começou a dizer.
- Talvez seja maluquice, mas é real.
- Real? Então, há um vampiro à solta em Paris?
- Não. Há vampiros à solta em Paris - corrigiu-a.
- Pensei que Louisa de Montcrasset fosse a vampira.
- Ela é, mas estamos certos de que não foi coincidência ter sido desenterrada após tantos anos.
- Vocês estão certos? Você e Brent Malone?
- Sim, e há outros do lado do bem.
- Claro. Os amigos dele, por exemplo?
Jacques assentiu, como se estivesse aliviado por ela compreender a situação.
- Vovô, acredito que coisas estranhas estão acontecendo. E Brent tem algo que... que nos induz a confiar nele mais do que seria normal. Mas ainda não entendo a ligação entre vocês. Não estiveram juntos em Paris antes de se preocupar com a escavação, estiveram?
- Não.
- Mas já o conhecia antes.
- Sim.
- E quando o conheceu?
- Alguns anos atrás, aqui mesmo, na França.
- Como, se há alguns anos você vivia nos Estados Unidos?
- A França sempre foi meu lar. Sempre visitei meu país.
- Mesmo tantos anos antes?
- Brent pode ser um pouco mais velho do que parece, querida.
- Como se conheceram?
- Isso não importa. O que interessa é que o conheço há anos e sei que vampiros existem. A última vez que tivemos problemas de verdade com eles foi na guerra. Naquela época havia muitas pessoas na Europa que sabiam disso, e outras tantas que integravam a Aliança. Mas a guerra acabou, o mundo mudou, novas guerras surgiram, armas foram inventadas, e com tanta tecnologia as pessoas esqueceram. Eu esqueci. E os que conheci... aqueles que sabiam... Bem, esses já se foram. Mas haverá uma nova geração. Os tempos mudam, as coisas mudam, as pessoas mudam. Até os mortos que nunca morrem mudam.
- Vovô...
- Tenho de ajudá-los. Eles têm sentidos muito aguçados, é claro. Mas há muitas ruínas nessa área. Muitas construções abandonadas que a natureza retomou. A Aliança sempre esteve por perto, acompanhando tudo. Houve um tempo em que nenhum poder das trevas merecia confiança. Mas, como eu disse, o mundo muda. E a qualidade sagrada da vida, da existência de tudo que pulsa, ressurgiu em meio à confusão do mundo atual. Ela resiste, apesar da insanidade e do fanatismo de alguns que são apenas humanos... e do Mal. Você estava certa quando disse que há humanos piores do que demônios. Mas isso não significa que os poderes das trevas não estejam por aí, e que não sejam cruéis, brutais.
- Continuo sem entender.
- O que importa é que aceite que estamos em perigo. Ninguém pode ser convidado a entrar nesta casa. Katia tem conhecimento da existência do Mal. Ela não faz perguntas; apenas guarda a casa onde vive. Vamos continuar com a investigação e tomar muito cuidado.
- Mas a polícia suspeita do senhor.
- Pois que venham me interrogar, se quiserem. Sou inocente. Eles deviam prender Dubois, isso sim. Aposto que ele tem mais culpa nesta história do que reconhece, embora não seja o assassino. Dubois trabalha para os vampiros. Subornado, ele os serve acreditando nas promessas de riqueza. O homem é um idiota.
- Vovô...
Tara parou ao ouvir as batidas à porta. Era Ann, mais pálida e esgotada do que antes, mas sorridente.
- Cheguei. Vou subir e me deitar. Estou exausta.
- Não vai jantar? - Tara perguntou.
- Não, não, almocei muito bem. Não estou com fome. Apenas... cansada. Que dia! Conto tudo amanhã, está bem? Ah, Tara, acho que você tem feno no cabelo...
- Ah... Estive com Daniel - ela respondeu, constrangida, levando a mão à cabeça para remover os sinais da transgressão.
- Sei... Bom, vou me deitar. Amo vocês. - E, ao concluir a frase, soprou beijos na direção dos dois.
Um grunhido soou além da porta.
- Eleanora! Sou eu, Ann!
Tara olhou para o avô.
Jacques havia depositado o garfo sobre o prato. A mão dele, apoiada sobre a mesa, tremia.
- Vovô?
- Tudo bem, tudo bem... Mas acho que preciso ir me deitar.
- É claro.
- Chame Roland, por favor.
- Agora mesmo.

Meia hora mais tarde, quando Roland desceu a escada, depois de ajudar Jacques a se deitar, ele tranqüilizou Tara dizendo que seu avô estava bem, apenas cansado depois de um longo dia.
Tara decidiu dar boa-noite a Jacques. Antes, porém, parou no quarto de Ann com o mesmo propósito. Depois de bater e não obter nenhuma resposta, abriu a porta. O quarto estava escuro. Sua prima já estava deitada.
Tara entrou sem fazer barulho.
As portas que davam para o balcão estavam abertas. As réstias de alho haviam sido deixadas em um canto, aparentemente removidas por mãos impacientes.
Tara hesitou, tentando enxergar o rosto da prima na escuridão. Ann dormia profundamente.
Ela fechou as portas e recolocou o alho no lugar de origem. Depois saiu na ponta dos pés.
Foi ao quarto do avô e o encontrou na cama. Como Ann, Jacques também parecia dormir. Tara o beijou na testa, verificou as portas, as réstias de alho, e saiu.
Estava cansada, mas inquieta, e a mente se movia com incrível velocidade. Ela decidiu pintar.
Imagens perturbadoras brotavam de seus dedos para a tela.
Imagens...
Um cemitério, lápides tombadas, túmulos abertos. Ela parou. Outro esboço. Um lobo enorme, os olhos verdes com raias douradas brilhando ao luar...
Um morcego voando em círculos como se temesse o lobo.
- O morcego tem medo do filho da Lua! - exclamou baixinho, observando o enorme lobo que tinha algo que lhe era muito familiar.
Na seqüência do desenho, as sombras cobriram uma rua conhecida, o caminho por onde ela e Ann haviam passado na noite em que foram ao La Guerre.
Outro desenho.
O rosto de um homem...
Tara franziu a testa. Havia desenhado alguém que conhecia, mas não conseguia associar a imagem ao nome. Só sabia que o conhecia...

Lucian parou o carro.
- É aqui - ele disse. Brent olhava pela janela do passageiro.
- A área parece ter vários prédios abandonados.
- Aquela placa. Eu a vi antes. Vi claramente.
- Vamos lá. Mostre o caminho. Eles se aproximaram da casa afastada da rua. CONDAMNÉ.
A placa caída anunciava que o imóvel fora condenado. Os dois passaram pela placa.
- Chegamos tarde demais.
Estavam no hall de entrada. Antes de ser condenado, o lugar devia ter sido esplêndido. O fogo na lareira agora era só um punhado de cinzas e brasas que se apagavam. No sofá, manchas de sangue seco indicavam que estavam na pista certa.
Lucian examinava as gavetas da escrivaninha em outro cômodo e, movido por uma força que não conseguia compreender, Brent se aproximou do amigo. Não sabia ao certo o que estava procurando, mas seus passos o levavam na direção das pesadas cortinas de veludo.
De repente, um grito de raiva ecoou no silêncio sombrio da casa.
A criatura, nua, descabelada, de olhos arregalados e presas à mostra, surgiu de trás das cortinas como um sopro do inferno.
A criatura investia contra Lucian.
Sem hesitar, Brent segurou o punhal que levava na manga do casaco. A figura suja e grotesca, que um dia havia sido humana, movia-se como um relâmpago. Ainda assim, ele era mais rápido. A velocidade aperfeiçoada com os anos de luta contra o Mal.
Lucian se virou.
O vampiro estava bem perto dele, pronto para mordê-lo, quando Brent o atacou pelas costas. A coisa não estava morta. Atingido pela madeira afiada, gritava e se retorcia de maneira frenética.
Ágil, Brent o prendeu ao chão com a estaca, e se abaixou, evitando os dentes. Então agarrou os cabelos e puxou com força.
A cabeça se soltou.
Não havia sangue.
Lucian se abaixou para analisar o corpo.
- Que precisão! - disse ao amigo. - Obrigado, mas eu podia ter cuidado disso.
- Não se deve destruir irmãos de raça.
- Essa era uma das velhas regras. O mundo mudou, e as regras também mudaram.
- Não creio que haja outros por aqui.
- Não. Eles nos queriam aqui. Este era só o escolhido para o sacrifício, mais nada.
- É estranho... Ele tinha os traços distorcidos pela loucura, mas há algo de familiar neste homem.
- Espero que não tenha sido um amigo! - Lucian murmurou. - Não creio que este lugar seja uma armadilha, mas sinto que este pobre infeliz foi deixado aqui para nos atrair. Deve haver alguém por trás disso, alguém com poder e experiência.
- Pense nos seus inimigos. Devem ser muitos!
- Centenas - Lucian respondeu, amargurado. - E você?
- Só me lembro de um, e foi há muito tempo. Ele já está morto. Mas você está certo, não há mais nada aqui.
- Então, vamos em frente.

Ann sentia calor. De repente, o quarto parecia abafado, dominado por um cheiro horrível.
Ela se sentou e olhou em volta. O maldito alho estava de novo na porta do balcão. E as portas haviam sido fechadas.
Impaciente, ela se levantou e foi abri-las, removendo as réstias e sentindo que o alho parecia ter espinhos que rasgavam sua pele. Jogou-o longe e saiu para ir respirar na varanda.
Ann.
Seu nome era como uma carícia.
Ann...
Sim!
Havia dedos no vento. Dedos que a tocavam e acariciavam, que a seduziam e provocavam. Ann...
Sim, sim...
Venha! Venha para mim...
Sim, sim, é claro...

* * *
Os oficiais Surrat e Martine passavam de carro pela rua quando viram a dupla.
- Georges! - Martine chamou o parceiro. - Veja! Dois homens! - Michel Martine parou a viatura ao lado dos homens que andavam pela calçada.
- É ele? - perguntou Georges Surrat.
Martine havia trabalhado em Paris por alguns anos antes de ser transferido para o vilarejo. Surrat era jovem, um aprendiz do oficial experiente.
- Sim, é ele. Brent Malone. O operário americano. Javet o quer. Cuidado, ele pode ser perigoso. Lembra-se do corpo na cripta?
Georges assentiu, sacando a arma e descendo do carro com o parceiro.
- Brent Malone! - Michel Martine falou. - Você está preso.
Os dois homens pararam. Eles trocaram um olhar curioso antes de se virarem para os oficiais.
- Qual é a acusação? - indagou Malone.
Martine se sentia estranhamente nervoso. Nenhum dos dois parecia armado, mas ambos usavam casacos longos, até os tornozelos. E eram altos e fortes.
- Assassinato - disse Georges, detestando a voz trêmula.
- Javet sabe que não matei ninguém - Malone protestou.
- Temos uma ordem de prisão contra você, Malone. Se é inocente, talvez possa provar sua inocência na prisão.
- Cavalheiros, sinto muito, mas não posso permitir que me prendam esta noite.
Martine levantou a arma, apontando-a para o peito de Malone.
- Monsieur, está preso pelo assassinato de...
De repente ele descobriu que não conseguia mais falar.
Estava olhando além de Malone, para o outro homem. Zonzo, baixou a arma certo de que ia desmaiar.
Martine cambaleou e caiu sobre a viatura policial.
- Michel! - Georges chamou, apavorado.
- O que é?
- Não enxergo!
- Acalme-se. Feche os olhos, respire fundo.
Ele já havia feito tudo isso, mas, ao piscar, sentiu um grande alívio por constatar que recuperava a visão.
Visão...
Não havia nada para ver. A rua estava deserta.
Em torno deles, apenas sombras.
O frio da noite se tornara mais intenso.
- Entre no carro! - Ele ordenou a Georges.
Mais tarde, de volta à área iluminada e ruidosa da praça principal, ele se sentia tolo.
- Não vimos nada hoje à noite, entendeu? - disse ao parceiro apavorado.
Georges olhava para a estrada.
- Entendi, senhor. Não vimos nada!

O mais estranho naquele grito era que sabia que estava dormindo, que tinha entrado em um domínio do reino dos pesadelos, e que nada ali era real.
Mas era como se fosse.
Tara se sentia mover da escuridão para a luz, mas a luz nunca se tornava radiante. A escuridão, ela acreditava, deveria ser o caminho mais seguro para o sono. E se sonhasse, poderia caminhar por estradas e campos, pelas ruas de Nova York, por lugares conhecidos onde fazia coisas corriqueiras, como tentar capturar a atmosfera exata que queria eternizar em uma tela. A escuridão era o sono profundo, tranqüilo, um lugar seguro e sereno.
Mas não era a luz do sol. Não era a luz do dia, nem mesmo a luminosidade conhecida de uma lâmpada ou de um luminoso de néon.
Era diferente. Luz amarela e tênue, luz que distorcia e desfigurava. E havia uma brisa leve. A brisa tinha um elemento gelado. Não como o do vento de inverno. Era um frio que parecia tocar como dedos longos e finos, e que alcançava o coração, talvez a alma.
Ela caminhava da segurança da escuridão para a luz desconhecida e maléfica. Não queria ir, até tentou voltar. Mas sabia que era necessário seguir em frente. Era imperativo ver os horrores no reino do macabro; e Tara só sabia que precisava seguir em frente.
Por muito tempo, caminhou consciente do frio. Moveu-se com cautela, observando cada passo dos pés descalços. Era como se não houvesse nada sob eles. Sentia a seda da camisola tocando-lhe o corpo, os cabelos dançando ao vento, as mechas afagando-lhe o rosto. Porém, seus dedos estavam frios, as mãos, crispadas pela tensão, e ela era capaz de notar cada sensação a sua volta. Cores... Muitas cores...
E a casa...
A luz vinha de uma casa na floresta. Agora havia chão firme sob seus pés. Terra, grama, pedras... um caminho. Uma trilha estreita, quase dominada pelo mato, que conduzia à porta.
Os pés doíam, mas ela seguia em frente. Pisar nas pedras era desconfortável e, num dado momento, gritou de dor. Então, foi como se estivesse parada a alguma distância da casa, olhando para a velha e pesada porta.
Antes de perceber que tinha dado um passo, estava diante da porta.
A maçaneta era fria em sua mão. De bronze. Redonda. Mais que fria. Era gelada.
Em câmara lenta, viu a porta se mover. Era como se tremesse para o lado de dentro, depois para o de fora, como se a casa respirasse.
Sussurrasse...
Entre, por favor... estávamos esperando por você.
A voz da sanidade se impôs em sua mente com um esforço considerável.
Não, não, não! E isso que eles querem que faça! Não entre, não entre!
Ela calou essa primeira voz, porque havia outra.
Preciso entrar. Tenho de entrar e descobrir o que há atrás desta porta. Preciso entrar por Jacques. Preciso entrar, porque... a verdade está dentro desta casa... em algum lugar. Eu posso entrar. Posso, porque é só um sonho.
Assim, segurou a maçaneta, girou-a e empurrou a porta, que se abriu com um rangido assustador, um som como o de unhas raspando um quadro negro. E então...
Velas. Oh, Deus! Velas acesas em todos os lugares. Pequenas imitações do fogo que ardia furioso na lareira. O calor era intenso, mas a brisa gélida a seguia, e ele se sentia queimar e congelar ao mesmo tempo. As chamas dançavam, criando sombras gigantescas nas paredes.
Gárgulas e imagens grotescas emolduravam a lareira, o corrimão da escada, a extremidade do salão, a arcada que delimitava a passagem para um corredor escuro.
Ela se viu caminhando para aquele corredor. E parou para olhar para cima, para o arco. Uma imagem de uma criatura com chifres parecia escapar dos limites inertes da pedra em que fora entalhada, ganhando vida. Ela sibilava e cuspia enquanto Tara continuava seu caminho. Mais sons pareciam brotar da lareira. Rangidos, gargalhadas, gemidos...
De repente restou apenas um sussurro, um som que poderia ser o gemido do vento, ou a dança do fogo... Mas não era.
Não era.
Ela olhou para baixo. O piso de madeira havia sido coberto por passadeiras em tons de vermelho, preto e cinza. Cenas de batalhas eram retratadas na tapeçaria. Exércitos violentos derrotavam seus inimigos, esquartejando-os num suplício de vida e morte. Enquanto caminhava, Tara via os personagens sob seus pés ganhar vida. As vítimas gritavam e se debatiam.
Poças de sangue se formavam sob seus pés.
Ela olhou para a frente. A passadeira era um truque para criar medo. Precisava olhar para a frente, sempre para a frente. A noite era apenas uma ilusão.
Mesmo assim...
Havia aquela gargalhada sinistra erguendo-se acima dos gemidos, mais profunda que os sussurros. Ela se tornou um pulsar, uma cadência... como um coração batendo.
O corredor a chamava.
Ela caminhava.
Portas rangiam e se abriam à medida que ela passava. A primeira estava encostada. Não queria olhar para o interior do aposento, mas era preciso. Se não olhasse, não faria sentido ter ido até ali.
Precisava olhar. Tinha de saber. A resposta para suas dúvidas estava ali, em algum lugar.
Tara empurrou a porta.
E viu...
Havia corpos... partes humanas... troncos... cabeças... membros espalhados por todos os lados. Enquanto ficava ali parada, aqueles restos humanos se uniam numa formação sustentada por tendões ou ligamentos invisíveis. E então, uma das cabeças rolou para se conectar a um pescoço, e os lábios se moveram num rosto cinza, cheio de ossos, assexuado. Quero o que é meu! Quero o que é meu!
Os olhos da criatura se voltaram, de repente, para Tara. Seus lábios começaram a se mover. A língua era inchada e negra, e à medida que se movia, sangue escorria pelo queixo. Ah, Tara, você veio! Não acha que estou certa? Ele precisa devolver minhas pernas. Nunca fui gorda, e não vou ficar com seus joelhos gorduchos, se os meus estão bem ali... Onde estão meus braços? Preciso dos meus braços. Para melhor abraçá-la, minha querida, para melhor apertá-la contra mim. Preciso das minhas mãos para tocá-la. Para afagar seu pescoço.
Aquele ser repugnante estava quase completo. Membros dançavam e se retorciam em ângulos estranhos pela sala, buscando completar o corpo. E os olhos... os olhos ainda estavam nela, os lábios ainda se moviam sussurrando seu nome.
Quase, Tara, quase... Oh, Tara, Tara, estou próximo, tão perto que você pode sentir meu hálito em sua pele, no seu delicado pescoço...
Apavorada, Tara se virou para voltar ao salão com a lareira, mas havia algo ali. Algo enorme, escuro, alado, com garras, e mais maléfico do que tudo o que tinha testemunhado até então. Sabia que precisava fugir, pois fora a sombra, não a luz, que a atraíra até ali.
A grande sombra alada começou a sussurrar.
Oh, sim, minha querida, você está presa. A mente antiga é vítima do excesso de autoconfiança, e você veio. Veio, quando não devia ter vindo. Deixou aquele lugar onde deveria ter ficado, um guardião, uma sentinela. E agora você também vai perder, sabe? Vou pegar aqueles que você ama, vou pegá-los agora, e no final você também virá até mim...
Ela começou a gritar. Gritos altos e histéricos. Tinha de fechar os olhos para se defender da escuridão, reconhecer que tudo era um sonho, só um sonho, e que podia acordar. Tinha de acordar, tinha de acordar...
- Tara!
Sentiu a dor nos braços. Uma dor intensa, real. Seus olhos se abriram. Estava em seu quarto.
Tara piscou. Diante dela, o rosto de Brent Malone era iluminado pelos olhos que brilhavam com a mesma intensidade do fogo na lareira da casa do Mal. Ele a segurava pelos braços, apertando-a com força. E ela gritava, ainda gritava, tentando escapar, lutar, fugir, qualquer coisa.
- Tara, pare!
A suavidade da voz devolveu a ela um pouco da racionalidade.
O grito desesperado deu vez ao silêncio.
Um pesadelo. Tudo não passava de um pesadelo, por certo, resultado de toda aquela conversa sobre vampiros e a tal Aliança.
- Foi só um sonho... - murmurou, confusa. - Só um sonho... - Mas ainda tremia. De olhos fechados, deixou-se abraçar e apoiou a cabeça no peito largo por um instante, mas só por um instante. - O que está fazendo aqui? Como entrou no meu quarto?
- Não importa. Precisa me falar sobre o pesadelo.
- Não! Quero saber como entrou aqui!
- Eu bati à porta. Katia me deixou entrar.
- Não acredito! - Só então percebeu que Roland, Katia, e seu avô estavam parados na porta, pálidos e assustados, olhando para ela. - Oh, eu... sinto muito! Sinto muito! Acordei todos vocês, e... foi só um sonho.
Jacques aproximou-se da cama. Parecia ainda mais pálido e frágil.
- Fale-nos sobre o sonho, Tara.
- Eu estava numa casa. Acho que era na floresta. Não queria entrar, mas senti que era necessário. Havia um fogo na lareira, e gárgulas que ganhavam vida. Tinha um corredor, e eu sabia que precisava seguir por ele. Uma porta se abriu... Vi partes de um corpo naquele cômodo. Mas não eram partes, porque tinham vida e se uniam, e os lábios se moviam naquela cabeça em decomposição. A criatura falava comigo, e eu tinha medo do que aconteceria se ela terminasse de se completar. Então, voltei ao corredor, mas a sombra estava lá, e ela começou a rir e me dizer que eu estava presa, e a sombra dizia que...
Calou-se, olhando para Brent Malone, seu avô, Katia e Roland.
- Onde está Ann?
Brent a encarou por um minuto. Depois se levantou e correu para fora do quarto.
Tara também se levantou e correu atrás dele.
Brent já estava na porta do quarto de Ann. Tara olhou para cima de seu ombro, para dentro do aposento.
Ann não estava na cama. As portas da varanda estavam abertas.
A brisa soprava... Tão gelada quanto aquela que havia soprado o medo para dentro de seu sonho.

Um jovem magro, com os cabelos desalinhados e as roupas amassadas, entrou na delegacia aos berros.
- Preciso ver o inspetor! - ele insistia.
- Antes, precisa me dizer qual é o assunto - disse o sargento na recepção.
- Ela sumiu. Desapareceu. Esperei a noite toda na frente da casa dela para dizer que seria seu amigo de qualquer jeito, mas ela não voltou. Sumiu!
- Devagar, por favor.
Javet abriu a porta de sua sala.
- Tudo bem, Clavet - falou ao sargento antes de se dirigir ao rapaz transtornado. - Sou Henri Javet, o inspetor no comando aqui. Seu nome, rapaz?
- Paul Beaubois. Meu pai é fazendeiro aqui no vilarejo. E eu... há anos sou amigo de Yvette Miret.
- A garçonete do café? - Sempre tivera a sensação de que a jovem ia terminar mal.
Javet pensou depressa.
- Bem, Yvette pode ter dormido em algum lugar. Não voltou para casa, e você está preocupado, mas...
- Tivemos uma briga horrível. Eu estava muito zangado, então fui a Paris sem ela, e depois... Não sei. Tive um estranho pressentimento. Os pais de Yvette já morreram; ela mora com uma tia idosa que não se importa nada com o que possa ter acontecido. A mulher me recebeu com impaciência, dizendo que Yvette não tinha voltado para casa e que... Bem, que a sobrinha podia encontrar homens de verdade com muito para oferecer.
- E depois?
- Passei a noite toda sentado na porta da casa. Yvette não voltou.
- Talvez seja um pouco cedo para dar a jovem por desaparecida.
- Mas, monsieur, temo que...
A porta da delegacia se abriu com um estrondo. François Vaille entrou como um furacão. Ele encarou Paul, e Javet teve a impressão de que havia seguido o rapaz até ali.
- Minha garçonete não apareceu para trabalhar. Esse sujeito esteve no café ontem e brigou com ela, gritou, xingou... e prometeu que ela ia se arrepender.
- François, acalme-se - pediu Javet. - Vamos dar um passo de cada vez. A jovem não apareceu para trabalhar, mas o rapaz aqui afirma que ela também não voltou para casa ontem à noite. Ele veio registrar o desaparecimento.
O dono do café atacou Paul.
Javet interferiu a tempo de contê-lo.
- François!
- Ele veio denunciar o desaparecimento, porque sabe que Yvette realmente desapareceu! Ele devia ser preso em flagrante!
- François, todo mundo sabe que Yvette tem muitos amigos.
- Mas gosta do trabalho. Ela sempre teve muitos amigos, mas nunca deixou de abrir o café.
- Vamos começar a procurá-la agora mesmo. Não é o que manda o regulamento, mas, nas circunstâncias atuais, podemos tentar mais uma coisa. - Hesitou antes de revelar: - Encontramos um corpo na beira do rio. Vou mandar um oficial acompanhá-los ao necrotério para ver se conseguem identificar a moça.
- Oh, Deus! - Paul exclamou, escondendo o rosto entre as mãos.
- Um corpo! Tenho de ir também? E o meu café? Vou ter prejuízo. Yvette não está lá para servir as mesas da calçada.
- Sua preocupação com uma funcionária é admirável - disse Javet. - Lamento, mas a identificação é mais importante. Sargento Clavet, peça a um dos guardas para levar esses cidadãos ao necrotério, o mais depressa possível.

- Meu Deus! O que é isso? Uma festa no meio da noite e ninguém me convidou? - Ann ironizou, ao retornar do balcão onde estivera se refrescando.
- Você está gelada! - Jacques exclamou ao tocar-lhe o rosto. - Volte para a cama!
- Eu voltarei, assim que Katia e Roland o levarem para a cama, também.
Jacques assentiu, mas não sem antes olhar para Brent e vê-lo mover a cabeça em sentido afirmativo.
Katia e Roland saíram com Jacques, e Ann fechou a porta do quarto, virando-se em seguida para olhar para Tara e Brent.
- O que estão fazendo? - disparou, furiosa. - Nunca trouxe ninguém para dormir no château! E um desrespeito para com o nosso avô! Se querem...
- Ann, Brent não dormiu aqui.
- Não...?
- Não - ele mesmo respondeu. - Cheguei há pouco. E você, o que fazia no balcão no meio da noite?
- É o balcão do meu quarto.
- Mas as portas deviam estar fechadas.
- Eu as mantenho abertas sempre, quase todas as noites. E hoje... A mistura de calor e mau cheiro por causa da associação de alho e portas fechadas era insuportável! O que está acontecendo, afinal? Vovô está perdendo a razão. Se isso continuar, receio que... ele tenha mesmo de procurar cuidados especializados.
- Jacques está muito bem.
- É claro. Nossa casa está cheia de alho, e nosso avô está muito bem. Estou exausta! Durmo, durmo, e ainda me sinto... - Ela bocejou. - Escutem, isso foi divertido, mas... ainda tenho meia hora de sono antes de sair da cama para ir trabalhar. Vai embora agora, Brent?
- Ele vai ficar para o café.
- Café... é claro. Bem, façam como quiserem. Preciso ir trabalhar bem cedo.
- O que pode ser tão importante?
Ann franziu a testa, como se tentasse lembrar.
- Ah, sim, o romance americano. Preciso decidir se vamos comprá-lo, e que tipo de oferta faremos à autora. E eu ainda nem li o livro!
- Ele está aqui? Posso ler para você.
- Você não é editora, Tara. É ilustradora.
- Eu sei ler também, não sei?
- Bem, talvez... Não, não, preciso trabalhar.
- Telefone avisando que chegará mais tarde - Brent sugeriu.
- Não posso. Não depois de... Ontem fiz uma hora de almoço muito longa.
- Ann, você precisa descansar. Tara pode ler o livro e dizer se é bom ou não. Se puder dormir um pouco mais, durma.
Para surpresa de Tara, Ann concordou.
- Sim, vou dormir, se puder. Estou muito cansada. Boa-noite...
Com os dois ainda no quarto, ela voltou para a cama, puxou as cobertas até os ombros, e fechou os olhos. Foi como se adormecesse instantaneamente.
Brent se aproximou da cama e olhou para Ann. Ele tocou seu cabelo, afastando-o do rosto e do pescoço como se estivesse em busca de algo muito importante.
Um suspiro abafado escapou de seus lábios. Em seguida, fechou as portas do balcão e devolveu as réstias de alho ao devido lugar.
- Vamos deixá-la dormir agora - disse a Tara.
Do lado de fora do quarto, Tara perguntou sem rodeios: - O que aconteceu?
- Ela dormiu. Não viu?
- Brent, não acredito que ela tenha ouvido seus conselhos.
- Você não acredita em nada, por mais que todos os sinais estejam diante de seus olhos.
- Sinais?
- Tara, está chegando o momento em que não acreditar será muito perigoso. Seu sonho, por exemplo...
- Foi só um pesadelo.
- Um pesadelo, ou um aviso?
- Um aviso... relacionado a Ann? Ela estava bem. Estava no balcão, lembra? Sentiu calor e...
- Calor? Ela estava gelada!
- E bom se sentir fresca depois de sentir calor.
- Você a trouxe para dentro, Tara! Você a chamou bem em tempo!
- Em tempo de quê?
Desanimado, Brent não respondeu. Ele se virou e começou a caminhar para a escada, mas foi interceptado por Katia, que saía do quarto de Jacques. A criada o abordou e disse algumas palavras num francês rápido que Tara não conseguiu entender.
Todavia, Brent respondeu, e Katia sorriu satisfeita. Eles desceram a escada juntos.
Todos confiavam nele. Ela havia confiado nele. Se não gostasse tanto de Brent, não sentiria aquele forte impulso de se aproximar, conhecê-lo melhor, mantê-lo por perto...
Mas algo não se encaixava em tudo aquilo. Brent havia confirmado a existência de vampiros e da Aliança. Seu avô demonstrava conhecê-lo bem, e não demonstrara surpresa por vê-lo em sua casa no meio da noite, ou por tê-lo encontrado no quarto da neta.
Confusa, Tara deu meia-volta e entrou no quarto do avô.
Ele estava de olhos fechados, mas sentiu sua presença e disse:
- Ann está em perigo. Todos nós estamos. Tara... - Ergueu as mãos e segurou a dela com força. - Só você poderá nos ajudar. Terá de ser forte, porque não sou mais o homem que fui um dia, e por mais que tenhamos proteção, estamos em perigo. É minha culpa, é claro. Se um dia tive grande orgulho do que sou, hoje tenho medo.
- Jacques, não sei do que está falando.
- Precisa confiar nos seus sentidos, na sua intuição.
- Então, me ajude a entender um pouco mais. Quando conheceu Brent Malone?
Jacques fechou os olhos.
- Há muito tempo.
- Quando?
Ele havia dormido, ou fingia dormir.
Tara saiu do quarto. Desceu a escada, certa de que Brent ainda estava no château. Pretendia confrontá-lo.
Ele estava lá, na sala, olhando para o jornal, que acabara de ser entregue com os primeiros raios de luz da manhã.
- Outro corpo foi encontrado - ele disse.
Furioso, Brent jogou o jornal no chão e saiu, batendo a porta.

Paul e François estavam em pé, lado a lado, olhando para uma tela. Eles haviam sido informados de que não veriam um corpo; apenas as roupas e jóias encontradas com a mulher. Um carrinho foi empurrado para a frente de uma câmara em algum lugar do necrotério.
Paul olhou para a tela, piscou, olhou de novo.
Seus joelhos tremeram, e ele se sentiu fraco.
Em seguida, caiu no chão, chorando. A seu lado, François xingava.
Imagens do passado giravam em sua mente, envoltas num campo de névoa.
Aquele dia, há muito tempo, estava fraco. Durante um longo período a comida fora escassa. E, mesmo sem alimento, tinha sido forçado a trabalhar duro.
Agora, estavam todos juntos no campo de concentração. Os prisioneiros étnicos e religiosos, os dissidentes, os prisioneiros políticos, e todos aqueles que o regime considerava seres menos dignos.
Foi então que viu Andreson.
E Andreson o viu.
Era como se soubessem desde o início que se reconheceriam.
Mas Andreson escondera seu poder, considerando as circunstâncias.
Ele estivera certo de que Andreson providenciaria sua imediata execução, mas, de forma surpreendente, não foi bem o que aconteceu. Em vez disso, Andreson decidira quebrantar-lhe o espírito.
De qualquer forma, no final, ele o mataria. Numa noite qualquer o faria desaparecer, como tantos outros.
Andreson apreciava torturas sutis, tanto quanto apreciava as perseguições físicas. Ele gostava de imaginar que o homem que tanto odiava ia para a cama todas as noites tomado pela incerteza, sem saber o que o esperava quando o sol se escondesse.
No início, como prisioneiro tentou convencer os outros de que estavam diante de um monstro pior do que imaginavam, mas ninguém o escutara. E Andreson fora se tornando mais e mais poderoso.
Houve também uma manhã em que tinha escapado a caminho do brutal trabalho na estrada, um tempo em que havia chegado tão perto de Andreson que quase conseguiu fazer o que era necessário.
Andreson, porém, comandava um tipo diferente de mal, um exército de homens escolhidos pela falta de humanidade. E ele fora detido. Depois, viera o tempo de solidão.
As noites acordado...
A espera.
Perto do fim, Andreson começara a temer pelo próprio futuro. Não que temesse a morte, mas sabia que estava prestes a perder tudo o que conquistara, como força e poder.
E então notou quando Andreson deixara de ter prazer com a tortura sutil. E soube, é claro, que o fim se aproximava. A única dúvida era quem viria primeiro: americanos, ou russos?
Deveria haver outros lugares como aquele onde a aproximação da Aliança fazia homens maldosos desertar e fugir, deixando os prisioneiros livres.
Mas não ali.
Não naquele campo de concentração.
Multidões eram levadas às câmaras. Prisioneiros trabalhavam dia e noite cavando valas. Os crematórios funcionavam sem parar.
E seu tempo estava chegando. Sabia que integraria o grupo do dia seguinte.
Mas, antes do amanhecer, um rumor se ergueu no campo. Tinha ocorrido uma fuga do prédio do hospital, onde os experimentos eram realizados.
Havia um rumor de que guardas treinados e armados eram mortos. E comentava-se que Andreson fora ferido.
E naquela noite mesmo formou-se um grupo de homens encarcerados por raça ou crença religiosa, lutadores da Resistência, e até alguns chamados "loucos". Eles enfrentaram os guardas, sacrificando a própria vida para dar aos outros uma chance de fugir.
Estavam reunidos na escuridão, discutindo planos e armas, quando os primeiros tiros soaram.
Guardas gritavam e disparavam. Alguns berravam, como se a própria terra os tragasse dolorosamente.
A porta se abriu com um estrondo.
O interior do lugar era escuro, mas havia focos de luz ofuscante do lado de fora. E tudo que ele podia ver era uma silhueta na soleira. Uma silhueta inacreditável. Ele gritou.
Mas, no instante seguinte, um homem se movia pelo aposento cortando correntes e libertando prisioneiros.
Alguém gritou anunciando que tinham mais armas tiradas dos guardas mortos.
Ele saiu para a noite de turbulência. O lugar havia sido tomado pela loucura.
Guardas... mutilados cobriam o campo. Os que ainda tentavam reagir eram dominados pelos prisioneiros armados.
Ele encontrou em seu interior uma nova força. Assim, lembrando-se de tudo o que aprendera nas ruas no que parecia ter sido outra vida, correu de prédio em prédio.
E foi no prédio do hospital que teve uma grande surpresa.
Encostado à parede, abaixado para não ser visto, sentiu a mão pesada sobre seu ombro. Era como uma garra de ferro, e ele quase gritou.
Mas, antes de atirar...
Ele soube.

Paul estava tão aliviado que chorou.
As roupas e as jóias não eram de Yvette! Não era dela o corpo tão desfigurado que não podia ser mostrado.
Monsieur François também estava aliviado, mas não parava de lamentar o dinheiro que estava perdendo no café.
Os policiais foram mais bondosos. Ajudaram Paul a se levantar, garantindo que fariam todos os testes de DNA para ter certeza de que aquela não era Yvette.
Contudo, Paul já sabia. Aquelas coisas não eram dela, então...
Não era Yvette.
O policial os levou de volta à delegacia no vilarejo. François correu para abrir o café, e Paul, fraco e cansado, sentou-se na calçada diante da delegacia, sem saber o que fazer.
Estava sentado ali, fraco e trêmulo, quando percebeu que alguém havia parado diante dele. Um homem alto e forte que, devagar, abaixou-se até poder encará-lo.
- Paul?
Ele assentiu, desconfiado.
- Olá, Paul. Sou um amigo. Quero ajudá-lo, e também preciso da sua ajuda. Nós dois queremos encontrar Yvette, certo?
Contendo um soluço, Paul assentiu outra vez.
- Venha comigo, meu rapaz.
E Paul se levantou, surpreso por ter força para ficar em pé.
Vira aquele homem antes. E estava desesperado para encontrar Yvette. Não havia onde buscar socorro, então... Paul acreditou.



Capítulo IV


Tara decidiu tomar um banho e se vestir, e quando foi lavar os pés, notou que os tinha sujos de terra e grama. Contendo uma onda de pânico, pensou que havia uma explicação lógica e para o fato. Era certo que não tinha saído de casa. O resto... O resto tinha sido um pesadelo. Um sonho ruim no qual procurava alguma coisa, sentia medo... e contava com a ajuda de alguém.
Alguém que não estivera lá, como não estava agora.
Mordeu o lábio. Estava apaixonada por um desconhecido que conhecera em uma cripta, e acreditava que estivera esperando por este momento desde sempre, esperando por isso e...
Por Brent.
Depois do café, e de ouvir Katia dizer que não vira Brent naquela manhã, decidiu ir procurá-lo lá fora.
Eleanora estava na varanda, guardando a porta do château. Desta vez o animal foi amável e dócil, como de costume, mas não abandonou seu posto.
Brent, porém, não estava lá fora. Não havia nenhum carro diferente na entrada, e o jornal continuava onde ele o deixara, sobre a mesa do jardim.
Tara o pegou e começou a ler sobre o corpo decapitado encontrado pelos investigadores. O artigo informava que a polícia procurava Brent Malone para interrogá-lo.
Onde ele poderia estar?
Jacques e Ann ainda dormiam. Tara decidiu que precisava fazer alguma coisa. Era importante encontrar Brent antes que a polícia o localizasse e prendesse.
Depois de mais uma xícara de café e de instruir Katia sobre a segurança do château, Tara abriu a porta para sair e se surpreendeu ao deparar com o inspetor Javet do lado de fora.
- Srta. Adair, bonjour.
- Bom-dia, monsieur. Em que posso ajudá-lo?
- Gostaria de falar com seu avô.
- Lamento, mas ele ainda está dormindo. A noite não foi das mais fáceis.
- Não? Por quê?
- Porque ele é um homem idoso, esteve doente, e às vezes tem dificuldades, inspetor. Espero que compreenda.
- É claro. De qualquer maneira, não entendo por que se coloca na defensiva desta maneira, srta. Adair. Só quero conversar com Jacques.
- Deveria conversar com o professor Dubois.
- Sim, é o que pretendo fazer, assim que ele aparecer.
- Dubois desapareceu?
- Sim, srta. Adair. Acha que o encontraremos decapitado também?
- Não tenho idéia, inspetor.
- É claro que não. Bem, se me convidar a entrar, talvez possa me oferecer um café enquanto espero seu avô acordar.
- Sinto muito, mas estou de saída.
- Posso tomar medidas legais para interrogar Jacques.
- Faça isso. Tenho de sair e não vou deixar ninguém esperando por meu avô enquanto estiver fora.
- Compreendo. Mas devia confiar em mim. Não quero prejudicar Jacques.
- Não confio em ninguém, inspetor.
- Espero que isso seja verdade. Seria terrível descobrir que sua saída tem algo a ver com o sr. Malone.
- Inspetor Javet, vou sair porque tenho assuntos pessoais a resolver.
- Sabe, srta. Adair, também queria muito confiar em Malone. Um homem inteligente, educado, de boa aparência... Seu francês é excelente! Mas, apesar de todas as técnicas que já empregamos, não conseguimos encontrar indícios de nenhuma outra presença na tumba no momento da morte de Jean-Luc. Agora... tanta gente desaparecendo, outro corpo encontrado decapitado... Receio que o sr. Malone esteja mais encrencado.
- Mal conheço o sr. Malone.
- Devia me contar tudo o que está acontecendo aqui. Sua recusa em me receber só vai tornar as coisas mais difíceis para Jacques.
- Não tem nenhuma prova contra meu avô, inspetor. Ele não fez nada.
Tara saiu e fechou a porta, ainda encarando o inspetor.
- Só quero ajudar - insistiu Javet.
- Então, encontre o verdadeiro assassino.
- É difícil, porque não posso interrogar testemunhas-chave do caso.
- Lamento...
Tara olhou por cima do ombro de Javet e teve a impressão de que o panorama mudava. Não fosse pelas fantásticas teorias que a atormentavam, pensaria apenas que o sol se havia escondido atrás de uma nuvem.
No entanto, de repente, começava a acreditar em tudo o que ouvira nos últimos dias, em forças sobrenaturais assediando o Château DeVant.
- Pode me dar licença? - falou e desceu a escada da varanda a caminho do galpão que funcionava como estábulo.
Não havia nada de incomum no galpão. Javet a seguira.
- O que foi? - ele perguntou.
- Nada. Apenas sombras encobrindo o sol. Mas ainda sentia aquele desconforto.

* * *
Dormir... Ah, como era maravilhoso dormir e sonhar...
Ann... Ann, você sabe que é minha.
Sua mente repudiava as palavras pronunciadas em tom áspero e autoritário.
Você é minha, e vai me deixar entrar. Vai abrir as portas para mim, e eu estarei com você. Porque é isso que quer...
Não...
Sombras invadiram seu sonho. Grandes asas pairavam sobre ela, envolvendo, cercando...
O calor era sufocante. Ela se contorcia e debatia, sabendo que estava cercada.
Não...

Paul seguia o desconhecido e falava sobre Yvette, tentando defender seu comportamento reprovável.
Yvette não era ruim. Era ambiciosa, imatura... Só queria ter as oportunidades que a vida lhe havia negado. Queria voar, sair do vilarejo, mas não tinha asas para isso, então...
Então, voava agarrada à barra da calça de outros homens.
- Prometo que vamos encontrá-la.
Eles seguiam em frente no carro do desconhecido. Estavam longe do vilarejo. Paul crescera naquela região, mas não conhecia a área que percorriam.
Finalmente, pararam.
- Paul, precisamos saber de tudo o que há para saber sobre sua Yvette e seus... amigos.
Na porta, ele sentiu uma estranha hesitação. Mas entrou. E conheceu aqueles que o esperavam.

Tara sentou-se no café, pediu uma xícara de café au lait, e fingiu ler o jornal, tentando observar tudo o que acontecia a sua volta. Quando pediu a segunda xícara, o garçom derramou um pouco do líquido quente. O rapaz se desculpou constrangido, e depois de responder que não havia acontecido nada, Tara decidiu tentar conversar com ele.
- Notei que parece um pouco distante hoje.
- Ah, acho que... São essas coisas que estão acontecendo por aqui. Uma das nossas colegas está desaparecida. O dono do café foi ao necrotério da cidade para tentar identificar um corpo, mas não era Yvette. Isso tudo nos deixa nervosos. Não temos esse tipo de problema por aqui há... séculos!
- É claro. Mas você disse que isso não acontece aqui há séculos? Então, já aconteceu antes?
- Bem, há muitas lendas por aqui. Nos dias do Rei Sol, acontecia de tudo. Nunca fui muito bom em História, por isso não sei dizer quais eventos aconteciam, mas deve saber que o corpo que foi roubado da cripta era de Louisa de Montcrasset, amante do rei. Ela praticava grandes atrocidades sob a proteção do rei, que, apaixonado, não acreditava em nada do que se dizia contra a amante. Dizem que ela raptava jovens, homens e mulheres, e os usava em estranhos ritos. Banhava-se em sangue, bebia sangue, vivia no sangue, porque acreditava que isso a manteria bela para sempre. Também teve outro amante poderoso, além do rei.
- Eu ouvi a lenda de Louisa de Montcrasset, mas não sabia que ela teve outro amante, além do rei.
- Não vai encontrar nada disso nos livros de história. É uma lenda local, mas nós sabemos que a lenda é real.
- Ah, é... Bem, preciso ir. Pode me trazer a conta, por favor?
Tara estava deixando os francos sobre a mesa, quando sentiu uma presença próxima e ergueu a cabeça.
- Srta. Adair, certo? Era o inspetor Trusseau.
- Como vai, inspetor? - ela perguntou, enquanto se levantava.
- Bem, obrigado. E a senhorita?
- Muito bem.
- Soube que em breve iremos visitá-la em sua casa...
- Sim, o inspetor Javet quer conversar com meu avô.
- Ele está convencido de que seu avô sabe alguma coisa sobre o que aconteceu na cripta.
- É claro. E agora vocês pensam que meu avô também pode ter decapitado um corpo?
- Srta. Adair, tenho lido os trabalhos de seu avô há anos, e não acredito que ele seja culpado de nada. Não penso como Javet. Além do mais, sei que monsieur DeVant é um homem idoso. Vou providenciar para que o interrogatório não seja duro.
- Obrigada, inspetor.
- Então, vai permitir que eu acompanhe Javet?
- Certamente.
- Nesse caso, até breve.
- Au revoir. Preciso ir.
Tara correu para o carro e pegou o celular, discando enquanto dirigia. Ninguém atendia...

Louisa tinha um sono agitado.
- O que é, meu amor? - ele perguntou.
Havia coisas que ele precisava fazer durante o dia, mas sempre voltava para ela.
Louisa se sentiu confortada em seus braços.
- É... este lugar.
- O lugar é seguro - ele garantiu.
- Sim, mas quero viver outras coisas no mundo, em Paris!
- Com o tempo.
- Tempo? Esquece quem sou?
- E você esquece que o mundo é grande, perigoso.
- Tenho o poder de comandar o mundo a minha volta.
- Paciência. Precisamos dominar e destruir aqueles que estão contra nós.
- Já devia ter acabado com eles há muito tempo.
- Louisa, não foi possível. Eu não podia causar uma agitação dessa natureza antes de você ser despertada. Há muitas forças hoje em dia, forças que você não entende.
- Mais fortes do que um rei?
- A população hoje é muito maior do que você conheceu.
- Maior... e estúpida.
- Muitos são ignorantes, mas não estúpidos.
- Estou com fome.
- Logo poderá se banquetear dos nossos inimigos, e terá a força que deseja, e a liberdade que tanto quer ter.
- Estou com fome!
- Vou procurar uma presa.
- Disse que traria alimento antes.
- O momento não era oportuno.
- Não, você que não conseguiu atrair a presa. Ou então... está mais interessado na garota do que finge estar.
- Não há, nem jamais houve, ninguém além de você. Vivi anos de sofrimento, odiando o que você fez, quem era.
- Ora, você nunca sofreu, mon cher. Sempre tirou proveito dos prazeres que encontrava em seu caminho.
- Enquanto esperava - ele confirmou sem nenhum pudor.
Ela o enlaçou e falou em seu ouvido:
- Esta noite. Quero a mulher aqui hoje à noite. E quero isso concluído. Se não puder trazê-la, eu mesma me encarregarei disso.
- Eu a trarei! - ele prometeu.
O desejo os consumiu, ardente, mais poderoso do que o fogo que crepitava na lareira.

- Precisa nos contar tudo o que sabe - o homem disse a Paul.
Ele o levara a um apartamento e dera a ele vinho e comida, que Paul não conseguira comer por estar nervoso demais.
- Havia muitos homens no café, e eu não podia passar o dia lá, tomando conta dela. A vida de um fazendeiro não é fácil. Havia os policiais, os estudantes... Mas Yvette raramente aceitava seus convites. Preferia homens com... com...
- Dinheiro?
- Sim, os que podiam comprar presentes para ela.
- Então, viu alguém no café que parecia ser assim?
- Você esteve no café. Era um trabalhador, mas parece ter dinheiro!
- Ela não saiu comigo.
Paul franziu a testa.
- Houve... outro homem. Eu o vi. Era alto, loiro, musculoso... não sei o que ele faz. Talvez o tenha visto na delegacia. Mas todos foram à polícia perguntar o que seria feito, porque todos estão apavorados. Eu estou... Acho que preciso ir embora.
- Não, Paul. Você fica.
Paul sentia muito medo.

- Vovô, pelo amor de Deus, entenda! - Tara insistia aflita. - A polícia está providenciando um mandado. Temos de sair daqui! Se eles vierem, e você falar sobre os vampiros, o Mal...
- Não se preocupe, Tara. Ninguém vai me trancar num manicômio, porque não vou dizer nada disso à polícia. Apenas deixarei claro que não tenho nada a ver com a morte do operário na cripta. E como não tenho mesmo, não poderão fazer nada contra mim.
- Vovô, por favor. Vamos passar alguns dias em um hotel. Será mais seguro e...
- Não. Meus livros estão aqui. Estamos seguros aqui.
- A polícia não tem medo de alho!
- Eu sei e alguns vampiros até gostam dele, mas só os italianos - Jacques disse, sorrindo. - Qual é o problema? Não sabe mais rir de uma piada?
- Rir, vovô? Como quer que eu ria de uma história macabra dessas?
- Tenho um verdadeiro arsenal neste château. Estacas, crucifixos, água-benta...
- Bem, se vampiros italianos gostam de alho, talvez os hindus, os muçulmanos, e os judeus não se incomodem com a água-benta!
- Ah, enfim um pouco de senso de humor!
- Vovô, é sério! A polícia virá.
- Que venha. E você, mocinha, precisa descansar. Está abatida, pálida... Horrível!
- Não há nada errado comigo.
- Está exausta. Ann ainda dorme.
- Ann está dormindo?
- Sim. E como eu estou bem, você deveria aproveitar para descansar.
- Vou ver se Ann está bem. E vocês dois - olhou para Jacques e Katia -, escutem bem o que vou dizer: se a polícia chegar, quero ser chamada antes de alguém abrir a porta. Fui clara?
- Muito - disse Jacques. - Agora, vou retomar meu trabalho, e você vai subir e descansar. E importante se manter alerta e atenta, e para isso você tem que dormir.
- Vou ver como Ann está.
Ann dormia profundamente. As portas estavam fechadas e cercadas por réstias de alho.
Frustrada, Tara foi para o próprio quarto.
O cavalete ainda estava lá com todos os esboços, inclusive o rosto de um homem que passara a conhecer muito bem. Mas não pintaria agora. Jacques tinha razão; estava exausta, e precisava recuperar a energia antes de Javet e Trusseau chegarem com o mandado.
Assim, Tara estendeu-se na cama e, antes que percebesse, já adormecia.
Estava lá, de novo...
No lugar entre as árvores da floresta. Desta vez era seguida. Podia ouvir o som de outros passos além dos seus. Porém, quando parava e olhava para trás, só havia sombras. Sombras como asas abertas e sussurrantes. Sombras que mudavam sempre.
Continuava caminhando. Outra vez, o som de passos. Ela parou, mas não olhou para trás. O perigo estava ali. Podia senti-lo como um sopro quente em sua nuca.
Um aviso.
Correu para a porta da casa, e estava quase lá quando ouviu o sussurro tomando forma.
Você está chegando. Eu disse que a traria. Venha, sim, aproxime-se da porta, venha para mim, estou esperando...
A sombra se tornava mais longa, mais larga. Em segundos, seria envolvida por ela.
Acorde! Acorde! Tara tentava sair daquele sonho.
Não havia gritado; não se movera. Seus olhos estavam abertos, mas sem foco. Ela piscou e se sentou.
Ann.
Tara correu para o quarto da prima. Deveria estar ficando maluca. Ann dormia. Ela mesma verificara as portas fechadas e o alho.
Então, entrou no quarto.
Foi recebida por uma rajada de vento gelado, vinda das portas do balcão, totalmente abertas.
O alho havia sido jogado em um canto do quarto.
Ann estava dormindo em sua cama.
E havia um homem com ela.
Alto, loiro.
Debruçado sobre a prima, tocando-lhe o rosto...
A boca se aproximava de seu pescoço.
- Não! - Tara gritou.
Ele se ergueu e olhou em sua direção.
Ela o conhecia. Já o vira antes.
Tara correu para o outro lado do quarto, empunhando a cruz entalhada que Jacques pusera em seu pescoço. Ela a brandia como se fosse uma arma, mas a mantinha na corrente.
Movida por um impulso, Tara se atirou contra a forma ameaçadora. Era como bater contra uma parede de aço. Suas mãos apertavam a cruz.
Dedos agarraram os dela com força brutal, e o homem começou a resmungar palavrões.
- Vou matar você! - ela gritou, desesperada. E estava falando sério!
Sentia dentro dela uma força incrível, um poder que se levantava, e acreditava que poderia realmente matá-lo... porque era necessário. Enterraria o crucifixo em seus olhos, e depois...
- Tara!
Ouviu o próprio nome como se viesse do nada, uma voz em sua mente, uma voz distante que a chamava cada vez mais alto. Mas ela continuava lutando.
- Tara!
Era Brent. Era como se ele estivesse longe, muito longe. Como se, talvez, a ouvisse em algum lugar distante, como se sentisse que ela estava em sérias dificuldades.
Mas ele não estava longe. Estava ali, na porta do quarto.
- Brent! Graças a Deus, me ajude!
Ele entrou no quarto. Graças a Deus! Brent a ajudaria. Não teria que matar aquele monstro gigantesco e forte sozinha.
- Tara!
A voz autoritária soou bem próxima. Ele a segurou.
Arrancou-a do pescoço do homem alto e loiro, segurando-a entre os braços.
- Não! - Tara gritava.
Não conseguia enxergar, porque sombras explodiam diante de seus olhos. Não conseguia respirar, porque só ouvia o trovejar do coração batendo dentro do peito, cada vez mais devagar...
- Tara...
A voz foi como um sussurro mortal em sua nuca.
E ela soube.

Paul foi levado para um maravilhoso quarto de hotel e deixado com tudo que podia querer. Havia café, vinho, frutas, queijo, pão.
Os homens haviam saído. A mulher ficara. Estava no outro cômodo, olhando para a tela de um computador. Ela era muito bonita, gentil, e de vez em quando ia espiá-lo.
Paul ficava cada vez mais inquieto. Com o passar do tempo, sem ter o que fazer, ele se deitou no sofá, ligou a tevê, dormiu...
E sonhou. Sonhou com Yvette caminhando em sua direção, com um sorriso promissor, os alhos transbordando paixão e desejo.
Ah, Paul, aí está você. Que discussão boba nós tivemos. Preciso de você agora, sabe? Sei que tenho sido má, mas você me perdoou muitas vezes. É você que eu quero. E quero você agora, Paul... Agora...
Foi um sonho incrível. Ela vestia algo diáfano e transparente que deixava ver partes de seu corpo. E quanto mais se aproximava, mais ele sentia que Yvette estava com problemas em algum lugar, que buscava sua ajuda. Yvette, amo você, vou salvá-la, vou... Ela se aproximava, é ele tinha certeza de que era Yvette. Yvette, sim, mas ela estava diferente. Às vezes, havia lampejos de alguma outra coisa, e ele pensava: Esse não é o rosto de Yvette, mas... Paul, preciso de você. Onde você está?
Menino tolo, chegue mais perto. Preciso de você. Abra os braços para mim, Paul, me ajude, salve-me, deixe-me amar você, me peça para amá-lo. Estou bem perto, e com medo Pode me perdoar, Paul, pode me receber de braços abertos?
Estou com frio, Paul, muito frio...
Então, sim, meu amor, venha, e eu a aquecerei.
Venha me buscar. Não posso ir além disso. Venha, Paul, por favor. Preciso dos seus braços em torno do meu corpo agora. Preciso do seu calor.
Ela estava muito perto. Paul sabia que dormia e tinha um sonho maravilhoso. Via uma parte etérea dele mesmo se levantar para ir recebê-la. Ela estava lá, emoldurada numa luminosidade pálida, ainda envolta pelo tecido diáfano.
Venha, Paul...
Yvette, sua adorada Yvette. Ela estava perdida, com medo, e fora procurá-lo por saber que encontraria proteção e segurança em seus braços. Mas não era mais Yvette. Um lampejo, imagens rápidas que o confundiam... O rosto às vezes parecia ser de outra pessoa...
Só que era real. Podia ver a veia pulsando em seu pescoço, a umidade em seus lábios.
Ela estava com frio. Os seios eram fartos, os mamilos estavam rígidos, salientes.
Paul estendeu a mão com a intenção de tocá-la.
Como ela podia ser tão real num sonho? E como podia estar sentindo o chão sob os pés, se dormia no sofá? Sim, era um sonho. A varanda ficava suspensa no ar, mas Yvette estava ali..
Estendeu a mão.
Tocou-lhe a carne.
E tremeu, porque podia senti-la. Podia abraçá-la, sentir seu cheiro, seu sabor, desfrutar a amante experiente.
Yvette, oh, Deus, Yvette...
Paul...
As cortinas dançaram ao vento, cercando-os, envolvendo-os. Os dedos trêmulos a tocaram. Ele começou a puxá-la para dentro do quarto.
- Paul!
Era a mulher. Seu grito era estridente, ansioso.
Ele se virou tomado por uma raiva repentina. Yvette estava ali, nua e ardente, e ela os interrompia. Seu sonho se desmancharia, sua linda amante desapareceria.
- Paul, volte! Depressa!
- Tarde demais! - Yvette respondeu por ele. Paul se virou para encará-la.
- Entre, entre, Yvette! Venha para os meus braços! Foi então que ouviu um riso gutural... e viu o rosto dela.
Apavorado, começou a gritar.

- Um deles... bem, aqui, esta área - Jacques explicou a Lucian. Estudavam um mapa aberto sobre a mesa, e havia vários locais marcados com um "X". - É difícil lembrar todos os locais exatos... foi uma ocupação, é claro, e boa parte da cidade sobreviveu, mas aqui, no campo, muitos lugares foram abandonados depois da guerra... entregues ao tempo. E muitos homens não voltaram. Famílias inteiras partiram. O château sobreviveu, sim, e aqui está a casa dos Dupré, que ainda é como era... há um novo empreendimento neste ponto, mas nos limites da floresta... Sim, aqui. Houve uma luta feroz, e muito se perdeu. Se eu tivesse acompanhado o fim mais de perto... Mas estava doente. Quando tudo acabou, eu estava no hospital, em coma. Conheci minha esposa, mudei para a América. Houve anos durante os quais não pude voltar, e com a doença, houve períodos em que cheguei a pensar que tudo na minha vida, a guerra, o campo, tudo havia sido um pesadelo. E agora...
Lucian tocou-lhe o ombro.
- Está lembrando de tudo quando é realmente importante lembrar - ele disse.
- Não, não. Há mais mortos agora. Muitas mortes. Eu não estava pronto quando deveria estar. A velha Aliança...
- A velha Aliança desapareceu anos antes de seu tempo, Jacques. Você tem se saído muito bem. Escute, já estivemos aqui, aqui, e aqui. E você tem razão, é um desses lugares por aqui. Sei quando há uma perturbação. E há momentos em que preciso mais do que concentração, e posso sentir exatamente onde alguém está... Posso ler pensamentos, trazê-los para mim. Mas Louisa não está sozinha... e nem é o verdadeiro perigo. Ela está com alguém que sabe que continuo vivo, alerta. Alguém muito antigo e poderoso, e juntos eles conseguem erguer um bloqueio muito eficiente. Tenho conseguido seguir Louisa, mas sempre chego no lugar depois que ela já saiu. Ela se ergueu da tumba insegura e percorreu seus velhos caminhos. O mundo mudou, mas ela foi aos locais que conhecia do passado. Primeiro o Louvre, eu acho, depois Versalhes. Estava sozinha, mas não por muito tempo. Esteve aqui... e aqui - disse, apontando para o mapa. - Agora sei que o covil deles fica nesta área. Juntos, Louisa e seu mentor terão uma força tremenda.
- Em pensar que houve um tempo em que...
- Um tempo em que não teríamos estado do mesmo lado. Eu sei. E houve um tempo de disputas entre os meus, batalhas que me antecederam, e quando minha raça era regida apenas por velhas regras, tão fascinados pelo próprio poder que nos colocavam em perigo. Mas esse era o velho mundo, e agora vivemos no novo mundo, e a sobrevivência se tornou ainda mais difícil. A guerra é aberta, e os lados foram estabelecidos. E assim, DeVant, estamos juntos nisso, como estivemos juntos quando nos conhecemos.
- Tudo isso é muito estranho.
- O mundo é estranho para quem vive nele por tempo suficiente.
- A Lua cheia se aproxima - Jacques lembrou.
- Sim, e isso nos dá algumas vantagens.
- Já é quase noite.
- É noite. Outra vez.
Ele franziu a testa, tenso.
- O que é? - Jacques perguntou, ansioso.
- Há algo errado.
- Aqui?
- Não, há algo muito errado... com minha esposa. - Ele se virou e caminhou para a porta. - Diga a Brent... Não, esqueça. Brent saberá. Fique atento, não saia de casa, não deixe ninguém entrar...
- Eu sei de tudo isso.
Mas não tinha importância. Lucian havia partido. Estivera ali, e agora havia desaparecido. Jacques nem sabia como. Ele deu um longo suspiro.
E foi então que os gritos começaram a ecoar pelo château.

- Tara, acalme-se, pare!
A energia com que era sacudida a fez interromper a luta. Ela olhou para Brent com ar furioso, arfante.
- É Rick. Rick Beaudreaux - ele disse. Como se isso significasse alguma coisa para ela.
- Minha prima...
- Ele é um de nós, Tara!
Ela olhou para o outro homem. Ele ainda respirava com dificuldade, olhando para ela, limpando os ferimentos que ela causara em seu rosto. Mas Rick sorriu.
- Lamento que não tenhamos nos conhecido antes. Lamento mesmo. Mas. você não acreditava... Não queria acreditar. E alguém precisava vigiar sua prima. E foi impressionante quando a conheci... Juro, eu a protegeria com minha própria vida. Quero dizer, com a vida que tenho. E é o que tenho feito.
- Então... - Tara estava pálida, aturdida. - Por que ela não acorda? - Ela dorme como se... como se estivesse morta!
- Alguém mais esteve com ela - disse Brent.
- Alguém... quem?
Rick deu um passo na direção da cama. Tara correu e se colocou entre ele e a prima.
- Não toque nela! Não se atreva a tocar nela!
Rick parou, ignorou as mãos de Tara em seus braços, afagou os cabelos de Ann, empurrando-os para trás.
- Vê as marcas, Tara? Isso deve ter começado há algum tempo. Começou devagar, com cuidado... Mas alguém conseguiu chegar perto de Ann.
Tara viu as marcas no pescoço delicado. Pequeninas, mas visíveis. Era um pesadelo!
- Então Ann está... morta? Nós a perdemos?
- Não necessariamente - disse Brent.
- Temos de impedir que eles se aproximem dela outra vez - Rick Beaudreaux falou, olhando para Brent.
- Continue. Tara já viu muitas coisas, já ouviu outras tantas, mas ainda duvida...
Tara fechou as portas da varanda e devolveu as réstias de alho ao lugar de antes. Depois, voltou para perto da prima lutando contra as lágrimas.
- Ela está doente, não está?
- Se não acordar logo, vai precisar de uma transfusão em um hospital - declarou Brent. - E temos de mantê-la em segurança... aqui. Longe das forças que a dominaram, e que agora a controlam.
- Os vampiros têm diferentes maneiras de matar - disse Rick. - Eles se banqueteiam... e depois destroem o que resta.
- Decapitando as vítimas? - Tara arriscou.
- Exato - confirmou Brent.
- E quanto àquela história da estaca no coração?
- É boa, mas decapitá-los também é melhor. É a única forma de ter certeza.
- Não entendo. Como conseguiu chegar aqui?
- Ann me deixou entrar.
- Ann está dormindo!
- Ela me deixou entrar... enquanto dormia.
- Não entendo...
- Tara, Rick é um vampiro.
Ela cambaleou como se tudo escurecesse de repente. Era um sonho, mas desta vez não conseguiria acordar.
- Então, temos que destruí-lo, certo? - perguntou.
- Mundo real chamando - Brent disparou impaciente. - Há forças ocultas por aí, Tara! Sempre houve, sempre haverá. Existem os que defendem o Mal e os que lutam pela vida, pela paz universal, por tudo que é bom. O vampirismo é como uma doença, uma enfermidade muito antiga, sem cura, mas que pode ser controlada. Mas para alguns, a alma verdadeira permanece, mesmo após terem se transformado em vampiro. Assim, os que eram propensos à violência e à busca pelo poder se sentirão da mesma maneira, mas os bons continuarão lutando pelo que é bom. Da mesma forma que nascemos com a liberdade de escolher paz ou guerra, perdão ou vingança, também é assim na transformação provocada pelo vampirismo.
Tara o encarava boquiaberta.
- Eu era policial - Rick contou.
- Um... policial?
- Em Nova Orleans?
- Quando? - Tara murmurou.
- Não faz muito tempo.
- Não foi trazido de volta ao mundo depois de ter dormido por séculos em uma sepultura úmida e escura?
- Não. Sou um vampiro muito jovem. Diferente de Lucian.
Tara olhou para Brent.
- Então... seu amigo Lucian é um vampiro? E antigo?
- Muito velho.
- Quando ele foi tirado da sepultura?
Brent sorriu.
- Nunca.
- Ah, é claro... Ele nasceu vampiro.
- Não, mas foi transformado em um tempo em que o mundo vivia em guerra, e tem sido como é... desde então.
- E a esposa dele? Jade?
- Não - Rick respondeu.
- Mas...
- Ela não é "transformada".
- Isso não pode ser real - Tara gemeu.
- Mas é - Brent insistiu. - Pense na história, nas lendas que sempre existiram.
- Você também é um vampiro? Mentiu para mim quando eu perguntei antes?
- Não, eu não sou um vampiro. Sou...
- Não! Não me diga que faz parte da Aliança do meu avô! Isso é loucura! Uma mulher que saiu da tumba! Uma dama antiga que não foi completamente destruída, porque a amava e não quis decapitá-la, e agora ela está... está... Agora ela foi retirada de sua sepultura, e a polícia não sabe o que está enfrentando... Exceto Rick, que era policial em Nova Orleans e... Esperem! Há outros vampiros por aqui? Um batalhão que veio ao vilarejo com a intenção de deter essa... condessa vampira?
- Acho que ainda não entendeu - Brent tentou outra vez. - Louisa não está sozinha. Foi muito poderosa em sua última vida, porque teve o rei a seus pés, mas ela não o matou, precisava dele para manter a vida que levava. Mas a Aliança de seu avô já existia, e o rei foi forçado a agir, embora com moderação. A Aliança exigiu que Louisa fosse contida com o uso dos materiais adequados, chumbo, bronze, prata, cobre e ouro. Mas ela foi trazida de volta, porque alguém decidiu que precisava voltar. Há outra força em ação, uma força mais antiga e poderosa, e ainda não conseguimos descobrir quem é, o que é e onde está instalada.
Eram loucos. Todos eles. Malucos.
Tara precisava ficar sozinha.
Sem dizer nada, saiu do quarto de Ann e foi para o quarto dela, fechando a porta ao entrar. Os dois homens a seguiram.
- Tara, não pode fugir disso - Brent explicou. - Precisa me ouvir. Estou me esforçando muito para ser claro, porque tenho de fazê-la entender que tem de fazer tudo o que eu disser. Quero que saiba quem sou, e por que...
De repente, ele parou. Seus olhos estavam fixos do outro lado do quarto.
Tara se virou, mas não viu nada. Apenas a cama, os móveis, as portas do balcão, o alho em torno delas. Sua mala em um canto, o cavalete com o último esboço...
Rick também parecia intrigado com a reação de Brent.
- O que é agora? - ela perguntou.
- O desenho.
- Aquele desenho no cavalete? As sombras no prédio? O lobo? O... homem?
- O homem.
- Aquele é só o inspetor Trusseau, o perito da polícia científica de Paris.
- Tara!
Ela se assustou ao ouvir a voz feminina chamar seu nome.
Era Ann. Sua prima estava em pé. Pálida, ainda de camisola, e se segurava no batente da porta.
- Ann!
- Não é o inspetor Trusseau - Ann a interrompeu impaciente. - Você nunca presta atenção quando eu falo? Apontei este homem quando fomos ao café. Esse é Willem.
- Willem?
- Sim, Willem!
- Não - Brent protestou com voz rouca, os punhos cerrados e os olhos fixos no desenho. - Esse homem não é Trusseau, não é Willem... É Andreson - ele concluiu, quase cuspindo o nome com desprezo e abominação.
Sem dizer mais nada, virou-se e correu para a porta. Tara o seguiu, segurando-o pelo braço.
- Brent, espere! Do que está falando?
Ele se livrou da mão como se fosse um inseto desagradável.
- Não posso esperar. Explico tudo mais tarde. Seu avô... está acontecendo alguma coisa. Agora!
Lucian encontrou Jade caída no chão do quarto de hotel, bem perto da porta da varanda. Porta aberta. Ela recobrou a consciência e o viu.
- Oh, Lucian! Eu fracassei! Não fui capaz de proteger Paul!
- Shhh... O que importa é que está bem. Sabia que alguma coisa estava errada! Pude sentir... e quase morri de preocupação. - Lucian se abaixou e a amparou nos braços, carregando-a para o sofá. - O que aconteceu? Não consigo penetrar na mente daquelas abominações. Eles sabem que estou por perto, e usam toda a força que têm para me bloquear.
- Eu vinha espiá-lo toda hora. Paul parecia estar bem, apesar de inquieto. Ele parecia entender... Oh, foi tão triste, Paul! Ele ama aquela menina!
- Sim, eu sei. O que aconteceu, Jade?
- Ele assistia à televisão. Eu estava no computador, pesquisando a área em torno do Château DeVant e da igreja do vilarejo. Houve muita destruição por lá no início da ocupação. Eu queria encontrar as ruínas, mas sempre vinha dar uma olhada em Paul. Ele adormeceu. Alguns minutos depois, fiquei inquieta e voltei aqui. Lucian, nunca vi nada parecido com aquilo. Havia alguém... alguma coisa... Mas o rosto mudava o tempo todo. Não conheci a jovem do café, mas sei que era ela, porque Paul estendia os braços e caminhava na direção daquela... coisa. Gritei, ordenei que parasse, e então... Tive a impressão de que não era mais a jovem. Depois... era ela novamente... Não sei quem estava lá. Corri para a janela com a água-benta, acabei tropeçando no tapete, mas consegui espargir a criatura. Consegui enfurecê-la... mas não a detive. De repente, tudo ficou preto, uma sombra enorme cobriu todas as coisas, algo como uma asa imensa, e fui empurrada pelo movimento daquela asa. Fiquei tonta... e soube que Paul tinha sido levado. Depois você chegou.
- Eles estão mudando de forma - Lucian concluiu.
- Não era Yvette, a jovem do café. Era Louisa... ou quem a trouxe de volta, quem a está guiando, cuidando dela. Deve ser alguém muito velho, alguém que já conheci, alguém que sabe que forças usar contra mim e contra os outros que o deteriam.
- O amante - Jade deduziu.
-A criatura com quem ela se encontrava quando o rei percebeu que estava fascinado por um monstro?
- Sim.
- Mas... ele foi destruído pela Aliança, com a bênção do Rei Sol.
- Talvez não. Sabe quem ele era, não sabe?
- Eu o conheci, mas o mundo era diferente.
Jade sabia que, naqueles tempos, as regras antigas eram seguidas. E raramente eles destruíam alguém da própria raça.
- Ele pode ter sobrevivido - ela comentou.
- Sim, é possível. Devia ter sido morto, desmembrado, decapitado, e atirado no rio. Foi a ordem do rei. Mas... - Lucian afastou os cabelos da esposa para lhe examinar o pescoço.
- Não fui mordida.
- Mas já foi antes, e não me contou.
- Porque não teria me importado de fazer parte do seu mundo. Tenho medo da vida, dos anos que vão passar para mim.
Lucian a beijou na testa. O mundo era um lugar estranho. Vida e morte ainda eram coisas separadas. Ele chegara a um ponto, depois de tantos séculos, em que sabia qual era o seu papel.
Mas...
Não sabia se o fim traria a condenação eterna. E não se arriscaria a legar tal destino a alguém que amava acima de tudo. Jade se tornara mais que sua esposa e amante.
Ela era a sua alma.
- Precisamos ir ao Château DeVant - Lucian lembrou.
- Espere! Imprimi várias coisas para Jacques. Lucian esperou enquanto ela ia buscar os papéis.
- Podemos ir, agora.
- Jade, se não quiser ir...
- Ele tem as respostas. Sei que Jacques vai encontrar a solução quando puder estudar todas as possibilidades.
- Estranho...
- O quê?
- Sinto que é a neta dele quem tem as respostas. Ela ainda não percebeu que pode acabar com tudo isso, mas as respostas estão nas mãos dela, em seus sonhos...

Louisa olhava para o fogo na lareira do salão, porém se virou ao sentir sua presença. Ela sorria.
- O que você fez? Onde esteve? - ele perguntou.
- Ah, fui providenciar o jantar, só isso.
- Onde?
- Ah... trouxe um rapaz. E o tirei de baixo do nariz dos nossos inimigos.
- Que inimigos? De onde o tirou?
- Das garras da esposa de Lucian DeVeau.
Por um momento, o coração dele disparou.
- E a mulher?
- A esposa de Lucian? O que tem ela?
- Não a trouxe para cá?
- Não.
- Mas se a tivéssemos...
- E você? - ela o interrompeu, irritada. - Fez o que devia fazer? Onde está a jovem DeVant?
- Ela virá. O velho precisa morrer, e é a outra neta que mais me interessa.
- Ah, sim? Então, por que ainda não fez nada? Não vejo o velho ou a outra neta por aqui!
- Se não houvesse criado tanta confusão com sua volta, eu já teria cuidado de tudo.
Louisa sorriu, abrindo os braços para mostrar o lar que ele havia criado para ambos.
- Olhe em volta. Desde que cheguei... bem... estamos protegidos. Seguros. E cada dia nossa força cresce. Não pode trazê-los para cá... enquanto eles passam dias e noites procurando por nós! Não se preocupe, meu amor. Há muito poder aqui. Eu trouxe o poder. Sendo assim, não precisa mais me orientar. Eu o orientarei.
- Idiota! Esqueceu tudo?
- Não preciso lembrar.
- Você esteve sepultada! Selada! Enquanto eu... o sofrimento, a cura... foi uma tortura.
- E quanto aos anos depois da cura, meu bem? Demorou para ir me desenterrar.
- Foi quase impossível. Esses anos todos não significaram nada. Apenas pratiquei para os anos da mudança. Aprendi como e quando usar o poder. Sempre esperando por você.
Ela sorriu.
- Ah, eu me sinto tão bem... Nosso pequeno exército me serve quando e como eu mando. E agora, quando a noite chegar, haverá muito para fazer, mais tempo juntos...
Ele se inclinou para beijá-la. Louisa se afastou.
- Foi amante dela - ela o acusou em tom doce. Ele estava impaciente.
- Eu precisava conhecê-la.
- Gostou dela. Sentiu prazer.
- Senti prazer, é verdade. Mas foi só isso. Estava esperando por você.
- Ela morre no segundo em que se aproximar de você.
- Não; ela é uma isca para a outra.
- Cuidarei da segunda garota - Louisa prometeu. - Eu... Sozinha. Acha que nunca agi à luz do dia? Acha que sou tão fraca que não posso seguir seus passos de vez em quando? Acreditou que eu não poderia vê-lo fingindo ser quem não é, criando um personagem... ardendo por ela?
- Ciúme não cabe aqui.
- Nem a luxúria.
- Louisa, eu planejei tudo, eu me esgueirei por aqueles lugares tentando libertar você, ansiando por sua companhia, sonhando reinar e governar a seu lado, em nosso mundo secreto. Um mundo perigoso, que agora deve ser dissolvido... antes de seguirmos em frente. Vamos acabar com eles. E depois... sempre adorei o Caribe no inverno.
- O Caribe?
- As ilhas, meu bem. Brisa suave, tempo quente. E... nada de Aliança. Chegou a hora. Logo os idiotas vão descobrir que não sou um inspetor de Paris. Só não descobriram ainda, porque não encontraram o verdadeiro Trusseau.
- Nem vão encontrar! - ela riu.
- Não acha que é hora de atacarmos?
- Talvez... - ele respondeu.
- Talvez?
- Sim, sim... se é isso que quer. Quando as sombras da noite caírem sobre o mundo.
Ela sorriu. E aceitou o beijo. A paixão que os consumiu foi tão intensa quanto o fogo na lareira.
- E o outro? - Louisa perguntou. - O forasteiro?
- Ele faz parte disso. - Havia uma repentina tensão em seus traços. - Sempre nos perseguindo, atrapalhando sua volta ao mundo... Ele é o inimigo, e é parte da razão pela qual os DeVant precisam morrer tão rapidamente.
- Você o conhecia, não? Já se encontraram antes.
- Sim, e ele devia ter morrido. Como o velho devia ter morrido. Mas morrerão agora. Eu vou me certificar disso. Eles vão morrer agora.
- Não sei nada sobre esse homem. Sei apenas que ele me impediu de entrar na casa dos DeVant.
- Ele terá uma morte horrível pelo que fez.
- Horrível - Louisa repetiu, lembrando o encontro que tivera com esse homem.
- Sei o que ele é. E sei como matar os de sua raça. E desta vez, estou preparado. Ele vai morrer.
Brent chegou à entrada do château instantes antes de Tara.
Ela o seguia, mas de repente o viu desaparecer.
Então, ao deparar com Jacques e o inspetor Javet na porta, compreendeu que ele tentava se proteger.
- Mas o que significa isto? - Tara perguntou indignada, tocando o ombro do avô.
- Tenho todos os documentos necessários, srta. Adair. E não vim sozinho. Trago seis policiais comigo. Agora vai ter de me deixar entrar.
- Não, não vai entrar. Foi enganado, inspetor, e não é aqui que deve procurar o culpado. Seu homem de Paris não é quem diz ser. Se quer respostas, vá procurá-lo.
- Do que está falando?
- Ele se apresentou como inspetor Trusseau, mas trabalha na editora com minha prima. Aquele homem é um monstro.
- Um monstro - Javet repetiu balançando a cabeça. Depois, ele olhou para Jacques. - Vai ter de começar a falar, DeVant.
- Javet, se eu lhe contar o que sei, não vai acreditar. Não sabia nada sobre esse inspetor Trusseau, mas se minha neta diz que ele não é quem afirma ser, então, ele não é.
- Bobagem! Ele tem todos os documentos. Se estivesse escondido no vilarejo, eu o teria visto.
- A editora fica em Paris - Tara insistiu. - E ele é um impostor.
- Um monstro e impostor?
- Está enfrentando monstros - disse Jacques. - Monstros... assassinos.
- Você sabia sobre isso, sobre essa... praga que nos assola! Sabia que aconteceria o assassinato na cripta antes de tudo acontecer - Javet acusou furioso.
- Eu imaginava, mas não podia dizer, pois você não acreditaria.
- Lamento, Jacques, mas tenho autoridade e um mandado para prendê-lo. A menos, é claro, que saiba me dizer onde está o americano. Se o entregar...
- O quê? - Tara reagiu incrédula.
- Seu avô está preso. Muita gente está morrendo ou desaparecendo. E não posso perder tempo com histórias fantásticas e contos de fadas. Você vai comigo para a delegacia, Jacques.
- Não, ele não vai - disse Tara.
- Usarei a força, se for necessário. Outro corpo decapitado foi encontrado, e há mais desaparecidos na capital. Isso tem que parar. Jacques, você está preso. Na delegacia nós conversaremos melhor.
- Não! - ouviu-se a voz grave de Brent, vinda de um ponto do lado de fora.
Tara não sabia como ele fizera aquilo, mas, de repente, Brent estava ali, encarando Javet.
- Pode me levar. Sou eu que você quer, Javet. Deixe-o em paz.
- Eu sabia! Jacques, pode dormir na sua cama. Já tenho aqui homem que eu procurava.
- Ótimo! Eu confesso o assassinato. E todos os outros que você quiser solucionar. Mas deixe Jacques em paz.
- Malone não é culpado de nenhum assassinato! - Jacques reagiu, indignado.
- Acalme-se, DeVant - Brent pediu. - Javet, estou me entregando. Pode me levar. Jacques está doente. Se morrer na sua delegacia...
- Brent não pode ir. Eu vou.
- Ei, eu decido quem quero prender! - impacientou-se Javet.
Tara estava apavorada. O que aconteceria se Brent fosse detido? Ficaria sozinha com aquelas coisas horríveis, com um estranho que fora apresentado como um vampiro, que dormia com sua prima, e com a prima que agora estava pálida e exausta.
Mas enquanto estava ali tremendo, sem saber o que fazer ou dizer, Brent a fitou. E havia nos olhos dele aquele fogo dourado, e toda a força e confiança de que ela precisava.
- Vai dar tudo certo - Brent disse com firmeza.
Quando os policiais se preparavam para colocá-lo dentro de uma das viaturas, Tara correu atrás deles, parou diante de Brent e sussurrou:
- Acredito em você. Não entendo o que está acontecendo, mas acredito e quero que saiba que amo você. E vou fazer tudo que puder para tirá-lo de lá. Depressa.
Ele sorriu.
- Vocês não estão sozinhos. Rick está atento. Não se preocupe. Lucian virá rapidamente. E eu vou sair de lá. Prometo. Ah... E também amo você.
Os policiais partiram levando Brent Malone. Tara voltou para o château e seguiu o avô até a biblioteca, cercando-o de cuidados.
Por que Javet havia escolhido um momento de escuridão para ir ao château?
Estava com medo, mas não podia demonstrar.
Enquanto Katia servia uma dose de conhaque a Jacques, Tara foi ver se Ann estava bem. Ela estava deitada, e o americano alto e loiro estava sentado ao seu lado, as mãos unidas como se rezasse.
- Tudo bem? - Tara murmurou. Ele a encarou.
- Tudo, mas Ann não deve ficar sozinha, nem por um segundo.
- A polícia levou Brent.
- Eu sei. Vi o que estava acontecendo, mas não podia... Não ousei sair de perto de Ann. Ele vai ficar bem, você sabe.
- Mas... Brent não é um vampiro.
- Não... não é.
- O que posso fazer?
- Nada. Ele vai ficar bem. Resolverá tudo sozinho, ou com a ajuda de Lucian.
- Lucian não está aqui.
- Mas vai voltar.
- E se...
- Ele é um ser antigo. Muito antigo. E pode pressentir problemas. Ele pode penetrar nas mentes... Vai saber o que aconteceu a Brent. Confie em mim.
Ela descobriu que confiava.
- O que vamos fazer agora, Rick?
- Esperar. Cuide de seu avô. Eu cuido de Ann.
Tara estava descendo a escada quando ouviu as batidas à porta. Apreensiva, espiou pelo olho-mágico, inspirando profundamente para calar a lógica e a razão, que ainda tentavam se impor apesar de todas as evidências.
Então abriu a porta, e Lucian e Jade entraram.
- Eles partiram há muito tempo? - Lucian perguntou, indicando que não era preciso explicar o que havia acontecido.
- Há poucos minutos.
- Jade vai ficar aqui. Eu preciso sair. Escute, é muito importante que sejam cuidadosos. Todas as janelas e portas devem estar trancadas. Não saiam. Entendeu?
- Sim.
- Rick está aqui - Jade comentou.
- Está, e ele deve ficar - Lucian respondeu. - Tem muita coragem e é determinado, mas também é jovem e... inexperiente. Mas tudo vai ficar bem. Volto com Brent. Enquanto não voltamos, fiquem juntos e dentro do château. E Tara... acho que você pode encontrar o que estamos procurando.
- O quê?
- Jade vai explicar tudo. Voltarei logo.
Jade acompanhou o marido até a porta e retornou depois de trancá-la.
- Bem... - ela começou constrangida. - O que temos de fazer é encontrar o covil do Mal...
- Covil?
- Lucian pode sentir... localizar... Bem, é evidente que eles o estão bloqueando. Sabemos apenas que eles se escondem em alguma ruína cercada por densa vegetação. Conhece algum lugar assim?
- Vários.
- Então, vamos à biblioteca estudar os mapas com seu avô.
Jacques a recebeu com um sorriso e com os habituais beijos nas faces.
- Como está, minha querida?
- Aborrecida, mas inteira - Jade sorriu. - Perdi uma das nossas testemunhas.
- Nós vamos recuperá-lo.
- Do que estão falando? - Tara perguntou.
Jade resumiu o que havia acontecido no hotel, quem estivera guardando, e por quê. E como havia falhado.
- Talvez ainda possamos salvá-lo - disse Jacques.
- Talvez - Jade concordou.
- Agora que minha neta se juntou a nós, tenho certeza de que vamos encontrar a verdade.
- Vovô, como pode ter tanta certeza de que serei útil?
- Porque é você.
- Sou eu... o quê?
- E você, Tara. Você é jovem, enquanto eu estou velho e frágil, e é alguém da família... como deve ser quando se acrescenta uma nova força à Aliança.
- Vovô, eu ainda nem sei se acredito em tudo isso!
Ele encolheu os ombros e piscou para Jade.
- Tara, dê uma olhada nos mapas. O que você acha? Quero ouvir sua opinião. O que lembra dos tempos em que era criança e corria e cavalgava pelos campos?
Ela se debruçou sobre a mesa e apontou uma área do mapa.
- Aqui fica o que chamávamos de Pedra Gigante. Não é gigante... mas nós éramos pequenas. Aqui e ali são ruínas.
- Já estivemos lá - lembrou Jade. - O porão desmoronou.
Tara a encarou.
- Pesquisei tudo na internet. Encontrei os proprietários, a data em que o imóvel foi condenado, e as plantas originais.
- É claro. Muito lógico. - Ela olhou para o mapa. Aqui... Isto... Se me lembro bem, aqui fica a velha casa dos Dupré. Não era possível chegar perto dela a cavalo, porque a vegetação na frente era densa e a grama, alta. - Fechou os olhos e respirou fundo, sentindo de repente um vento gelado.
A casa dos Dupré!
Memórias da infância se associaram às imagens confusas de seus sonhos. As sombras eram como asas que a derrubaram... e só havia estado lá com a luz do dia na infância. Eram proibidas de ficar fora depois do anoitecer, especialmente no campo e com os cavalos.
Ela abriu a boca para começar a explicar a associação entre passado e sonhos, mas não teve chance. Do lado de fora, com a violência da explosão de uma bomba, barulhos começaram a sacudir a noite.
Eleanora uivava como se tivesse uma matilha de lobos na garganta.
O estábulo parecia implodir, tal a violência com que Daniel coiceava a parede de sua baia.
- Mas o quê...? - Tara sussurrou.
Katia entrou correndo na biblioteca, as mãos retorcendo o avental.
- Eu disse não, mas ele me ignorou! Roland pegou a arma e correu atrás dele. Ele está lá fora, eu sei que está... eu vi! O que vamos fazer, Jacques? O que vamos fazer? Roland saiu!
Tara correu até a empregada.
- Katia, acalme-se por favor! O que você viu? Enquanto falava, Tara viu alguma coisa...
Algo que não podia descrever. Foi como se a biblioteca escurecesse. A lâmpada piscou, oscilou, e ficou mais fraca. Como se grandes asas se movessem sobre a casa...
- Katia, por favor, o que você viu? Katia se afastou dela.
- O Mal! Eu vi o Mal! - Ela agarrou Tara pelos ombros. - É o Mal, Tara! E você deve poder sentir, porque eu sinto... É como se o Mal houvesse entrado nesta casa!
A lâmpada piscou.
Na lareira, as chamas se tornaram mais altas. E depois se apagaram.
A eletricidade instável oscilou mais uma vez... e depois a lâmpada também se apagou. Estavam na escuridão. Um grito lancinante soou no pátio lá fora. Eleanora voltou a uivar e latir. E, de repente, tudo mergulhou no silêncio.

* * *
Brent Malone foi levado para uma sala sem janelas. Uma das paredes era um espelho, e Brent sabia que, do outro lado, oficiais acompanhavam o interrogatório. Javet estava sentado diante dele. Ele ofereceu café e cigarros, Brent aceitou os dois, e o interrogatório começou.
- Fale sobre a noite do assassinato. Pode começar antes disso, se quiser, mas acho que tudo vai ficar mais fácil se começar falando da morte de Jean-Luc. Deve ter algum cúmplice, ou não conseguiria ocultar o conteúdo do caixão desenterrado.
- O conteúdo do caixão desapareceu por conta própria... depois de matar Jean-Luc.
- Um cadáver de centenas de anos? Saiu do caixão e matou seu colega? Malone, francamente... Você admitiu ter matado Jean-Luc. Está aqui para confessar.
- Estou contando o que sei.
Javet se levantou furioso.
- Isso é bobagem! Muito bem, Malone. Vai passar a noite na cela, pensando nessa história toda. Amanhã, se não tiver nenhuma informação útil para me dar, se insistir nessas coisas ridícula que acaba de me dizer, vou ter de ir buscar o velho.
Naquela noite, Brent era o único prisioneiro na pequena delegacia. Sozinho, ele se sentou na cama dura por um instante, esperando que Javet se retirasse ao final do expediente.
Não podia ficar. Não tinha os poderes de Lucian, mas temia que o tempo estivesse se esgotando.
Ele fechou os olhos.
Um momento depois, um som terrível explodiu na cela. Os dois guardas de plantão no corredor trocaram um olhar perplexo. Armados, eles foram ao corredor onde ficavam as quatro celas contíguas.
- Ele desapareceu! - gritou Deauville, um dos guardas.
- Não... Não, tem alguma coisa lá dentro - respondeu d'Artoine.
- Onde?
- Na cama.
Deauville abriu a porta. Os dois entraram cautelosos, as armas prontas para disparar. Deauville olhou para o local indicado por d'Artoine. Ele não viu nada, mas...
Olhos. Dourados. Brilhantes. Letais. Como os olhos de um... demônio.
Ele engoliu em seco.
- O que é isso? - sussurrou.
- Um... cachorro? - arriscou d'Artoine.
- Aquilo não é um cachorro.
- É um lobo.
- Onde está o prisioneiro?
- Fugiu?
- O que vamos fazer?
- Atirar?
Enquanto eles debatiam, a criatura de repente ganhou vida. Tudo que d'Artoine conseguiu ver antes de ser atingido e desarmado pelo que parecia ser um lobo foi que ele era grande e poderoso.
Apavorado, o policial gritou, certo de que seria morto.
O peso desapareceu de cima dele.
Deauville foi o primeiro a se recuperar.
- Chega! Ele saiu!
Os dois se levantaram e correram para a porta da delegacia. Outros policiais se reuniam ali, olhando em todas as direções. Eles ainda discutiam o que havia acontecido, que tipo de criatura era aquela, quando um homem entrou no prédio.
Trusseau. O policial de Paris.
- O que está acontecendo aqui?
Deauville havia acompanhado Javet em seu mandado de prisão a DeVant. De repente, ele lembrou do que a neta de Jacques havia dito sobre Trusseau ser um impostor.
Não era impossível.
- Estamos procurando um animal que invadiu a delegacia - ele disse a Trusseau, incerto.
- Ah... Um animal.
- Sim, está por aqui, em algum lugar. Tome cuidado. Precisa de uma arma, inspetor Trusseau. É esse seu nome, certo?
- Bem, é assim que me chamam. - Ele parecia se divertir com a pergunta. - Eu tenho minha arma. Onde está o animal?
- Aqui... em algum lugar.
Trusseau sacou uma pistola de prata de um modelo que Deauville nunca vira, e se encostou à parede.
Houve uma repentina explosão de... alguma coisa.
Alguma coisa enorme que se movia com a velocidade da luz. A criatura saltou por cima deles e correu para a porta do prédio.
Trusseau disparou.
Mas a porta já havia sido derrubada.
A criatura estava na rua...
Deixando uma trilha de sangue.
Trusseau sorriu para os guardas.
- Não se preocupem. Vou caçar a besta.
Deauville decidiu que descobriria a verdade. Ele continuava lembrando a expressão da garota americana. Magra, alta, indignada, tão articulada em sua defesa do avô.
Alguma coisa estava errada ali.
- Não se incomode, senhor. Nós mesmos podemos ir atrás do animal. Talvez ainda não saiba, mas foi acusado de ser um impostor, senhor. Vou lhe pedir que fique aqui enquanto telefonamos para a sede da polícia em Paris.
Trusseau sorriu.
Depois, ergueu a arma e a apontou para Deauville.
- Senhor, o que...? - d'Artoine começou.
A bala disparada por Trusseau explodiu na noite.
Tara ainda procurava os fósforos no mantel da lareira, quando Jade DeVeau acendeu uma lanterna.
- Roland - Katia choramingou.
- Não se preocupe; vou atrás dele - disse Tara.
- Eu tenho mais experiência - Jade interferiu. - Eu vou. Você é importante demais aqui dentro, Tara. Vou procurar Roland.
- E Eleanora - acrescentou Tara. - Mas não pode sair sozinha.
- Não sejam ridículas! - A voz masculina de Rick Beaudreaux assustou todos que estavam na sala. - Eu vou. Tara, suba e fique com Ann. Jade, fique aqui com Jacques e Katia. E nem pensem em discutir comigo. Não podemos perder tempo.
Todos entraram em ação imediatamente, seguindo as instruções de Rick.
Tara parou no armário do corredor para pegar a lanterna que sempre mantinham ali. De posse do instrumento, continuou até a porta do quarto de Ann, e foi tomada pelo medo ao ver a luz na fresta sob a porta. Ela entrou e percebeu que as portas do balcão estavam abertas. A luz da Lua penetrava no aposento. O ar era gelado. A cama de Ann estava vazia.
- Ann! - gritou, correndo até o balcão. Não havia ninguém ali.
Ann tinha desaparecido.
Havia um bilhete sobre a cama. Ao lado de várias gotas de sangue.
O bilhete dizia:
Ela tem, talvez, dez minutos de vida. A menos que seja salva, é claro.
Pela nova Aliança.
O sangue é tão doce... Talvez eu não possa esperar tanto.

Mancando, ele rangia os dentes e praguejava, esperando ter forças ao menos para ver o fim daquela noite.
Pelo menos o vira novamente. Não sabia que Andreson estava por trás do mal que se espalhava no vilarejo, mas Andreson sabia que ele estava ali. E andava preparado com a arma certa.
A única arma...
Ele se escondeu num beco, sentindo que as sombras se intensificavam. Se Andreson o encontrasse naquela situação...
- Que, diabo, aconteceu com você?
Lucian estava ali, ajoelhado a seu lado.
- Andreson está aqui. Mais ousado do que nunca. Entrou na delegacia e atirou contra mim.
- Deve ter feito alguma coisa para provocar essa reação. Está sangrando como um porco!
- Ele me acertou com uma bala de prata!
- Está ficando lento, meu amigo.
- Tire essa coisa de mim!
Lucian tirou um canivete do bolso, abriu a lâmina, e a enterrou na carne de Brent, que quase gritou de dor.
- Achei!
- Sem nenhuma delicadeza!
- Queria se livrar dela, não?
- Sim, eu queria.
Lucian olhou em volta.
- Ele não está mais aqui.
Brent se levantou.
- Precisamos voltar ao château.
- Você não vai poder fazer muito coisa.
- Disse que ele não está mais aqui... Andreson conhece muitos truques. Rick não poderá detê-lo. Vamos, depressa!
- Tem certeza de que pode ir depressa?
- Não. Vá na frente. Eu alcanço você. Não quero que eles fiquem sozinhos no château.
- Sabe de alguma coisa que eu não sei?
- Senti... uma repentina escuridão... Lucian já havia partido.
Brent rangeu os dentes, ressentido contra a falta de força em um momento tão crucial. Finalmente, fechou os olhos e começou a se mover, percorrendo ruas desertas e evitando as áreas patrulhadas, até ultrapassar a praça, alcançar o limite do vilarejo, e sentir a luz do luar na pele, fortalecendo-o.
Afinal, era um filho da Lua e precisava que ela o alimentasse com sua energia secular para vencer seus inimigos.
Então, ele começou a correr.

Depois de anunciar o desaparecimento de Ann e sua intenção de ir atrás dela, Tara contou ao avô sobre o desenho que fizera, sobre como Brent reconhecera o rosto do rapaz que estivera envolvido com Ann, e o fato de que conhecia Trusseau como um inspetor de Paris.
- Andreson! - Jacques exclamou, mais pálido do que já havia ficado ao ouvir a notícia do desaparecimento da neta.
- Andreson... quem é Andreson?
- Um monstro. Ele era chefe dos experimentos médicos quando eu estive no campo de concentração durante a guerra. Ali, havia sempre muito sangue e dor. Não existiu comandante mais cruel. No final, a crueldade o levou à morte. Quero dizer, eu acreditei que ele havia morrido.
- A guerra... Jacques, como Brent pode conhecer esse homem?
- Brent Malone era o experimento favorito de Andreson. Nada o divertia mais do que tentar solucionar o enigma da sua sobrevivência, e do que ele havia se tornado.
Tara se sentia tonta. Brent havia mentido para ela. Não podia ser. Ele não era um vampiro. Mas, se não era... como podia ter vivido na época da guerra?
- Vovô, por favor, quero respostas rápidas. Brent não pode ter vivido nos tempos da guerra. Ele seria muito velho. E ele já me disse que não é um vampiro.
- Ele não é.
- Então...?
- Brent é um lobisomem.
- Meu Deus!

Ann DeVant estava deitada no sofá, os olhos abertos, mas sem foco. Louisa olhava para ela com ódio.
Queria atacar imediatamente, enterrar os dentes no pescoço da garota, sugar até a última gota de sangue de seu corpo.
Ela se afastou da jovem.
Gerard dissera que ela precisava viver, e estava certo. Ela era a isca para atrair a outra, e agora Tara DeVant viria, é claro. Tinha certeza de que Gerard já havia acabado com o lobo. E Lucian estava ocupado procurando o corpo do amigo...
Tudo fora bem planejado. A única tortura era... esperar. E odiar a garota, é claro.
O ciúme a consumia. Quando chegasse a hora, mataria a mulher diante de Gerard. Queria mostrar que ela não valia nada, que podia ser esvaziada, usada... e descartada como refugo.
Louisa pressentiu a chegada dele. Sombras negras e abrangentes que reconhecia antes de ser tocada por elas.
- Você o matou?
- Sim - Gerard respondeu, mas havia uma hesitação.
- Você o matou?
- E claro, eu o acertei com uma bala de prata.
- E viu o corpo?
- Não, não vi.
- Então...
- Ele está morto! Não entende? Eu o acertei com uma bala de prata!
- Pelo que sei, ele estragou tudo quando você devia ter estado lá para me receber à beira do caixão. Conseguiu um emprego com Dubois e ficou espreitando, esperando. Ele chamou Lucian, encontrou Jacques DeVant e reuniu informações. Foi ele que criou todos os problemas que enfrentamos até agora. E você não viu o corpo?
- Não importa, já disse. Eu o acertei com uma bala de prata.
- Esperava que tivesse mais interesse em determinação em assegurar essa morte. Depois do que me contou que ele fez com você...
- Dez anos se passaram antes de os ferimentos começarem a cicatrizar. Ele me dilacerou. Voltou para libertar os prisioneiros, e quando se viram livres, eles me atacaram e esfaquearam, atiraram contra mim e me penduraram em ganchos como um pedaço de carne. DeVant também sabia que eu devia ser decapitado, e teria cuidado pessoalmente disso, não fosse pelo início dos incêndios, quando ele teve de fugir. E fugiu como Weiss, aquele traidor! Nunca encontrei aquele verme covarde. Ele nunca foi processado. Os prisioneiros o defenderam! Ele foi para a América, onde viveu bem, com saúde e conforto, até os noventa e nove anos. Sim, eu odeio e desprezo Brent Malone! Devia ter acabado com ele quando o encontrei enterrado no campo de batalha, mas ele foi o único a suportar o ataque dos lobos. E havia muito mais deles naquele tempo. Atacavam aliados e alemães, sem distinção de uniforme. Deixavam campos devastados como nenhuma outra bomba ou matança podia conseguir. Mas Brent estava vivo. E eu soube que ele era um deles. Eu queria saber como ele conseguia... o que o tornava mais forte, o que o fazia diferente. O que o fazia sofrer, sentir dor... Mas ele está morto. Sei que o atingi. E...
Louisa se sentou à beirada do sofá, ao lado de Ann, e deslizou um dedo por seu braço.
- Deixe-me matá-la... agora. E fique para assistir. Podemos dividi-la, mas devo confessar que senti o sabor de seu sangue quando me transformei e adotei sua forma para atraí-la até a varanda. Delicioso. E ainda estou com fome. Mas se quiser...
Ele a pôs em pé.
- Agora não - disse. - Esta é nossa chance de pegá-los, um a um. Tara DeVant virá. E terá de vir sozinha... Os outros vão tardar a chegar. Deixou o bilhete, como eu instruí...
- É claro. Então, não há razão para mantê-la viva.
- Há muitas razões. Ela pode ter talento de verdade. Um instinto ainda mais aguçado que o do velho. Ela é jovem...
- E não tem a menor idéia de seus poderes. Não sabe o que fazer.
- Mas pode sentir se a prima for morta, e então não virá.
- Eu acho que ela já está a caminho.
- Temos todo tipo de criaturas das quais você pode tirar sua nutrição... ou com quem pode se divertir. Deixe-a quieta... por enquanto.
- Muito bem. Mas quando Tara chegar, eu vou lidar com ela. Você vai esperar pela chegada de Lucian...
- E se ela não for tão fácil quanto você acredita que é?
- Meu amor, temos um pequeno exército para recebê-la quando ela chegar. Ela vai estar meio morta quando eles terminarem. Eu só darei o golpe final.

Jacques explicou como havia conhecido Brent Malone, e como Brent, sob os cuidados do doutor Weiss, tinha sobrevivido, e como retornara ao campo de concentração para destruí-lo antes que outros prisioneiros fossem executados. Em troca, ele e Weiss haviam cuidado de Malone.
Ensinaram a ele tudo sobre a Aliança.
Tara ouvira com atenção. Depois, olhou para o relógio.
- Isso não importa. Eles vão matar Ann.
- Eu sei que Lucian vai chegar. A qualquer minuto.
- Então, quando ele chegar, você deve mandá-lo atrás de mim. E sabe para onde. Mas eu não posso esperar.
Katia estava sentada em uma poltrona, apertando as mãos e se balançando para a frente e para trás, como se estivesse catatônica. Jade já tinha reunido tudo que Jacques havia dito que era necessário, e estava pronta. Sua fé seria sempre sua maior proteção, Jacques dissera. A fé e o crucifixo de ouro. A menos que tivesse galões de água-benta, poderia somente chamuscá-los, mas nunca derrotá-los. Estava armada com uma estaca que Jacques ganhara do pai ainda menino, e uma arma mais nova por garantia. Ela também levava a espada do avô, dos tempos do exército. Entendera que cabeças teriam de ser removidas, ou que cadáveres deveriam ser queimados além de qualquer chance de reconhecimento.
Ela seguiu dirigindo pela estrada até onde sua coragem permitiu, depois continuou pela floresta.
E foi como voltar ao sonho...
Escuridão, incrível escuridão. Sombras quebradas apenas pela luz da Lua, uma luminosidade que desaparecia constantemente, como se as nuvens conspirassem com os vampiros.
Sentia a grama molhada nos tornozelos, o ar frio, mas não era o frescor natural da brisa. Era algo mais.
A cada passo o medo aumentava. Sabia que a casa estava bem a sua frente. Sabia que caminhava na direção do Mal, apesar da vontade de correr e fugir.
Uma súplica silenciosa escapou de seu peito.
Ajude-me, por favor, venha me ajudar...
Agora Tara sabia. Sabia demais. Sabia o que havia nas sombras, sabia a quem pedia ajuda.
Mas ele estava preso. Deixara-se prender para que seu avô não fosse preso. Ela havia percebido, tarde demais. Formaram um laço. Salvaram a vida um do outro. Ensinaram um ao outro, aprenderam a viver pelo outro.
Brent dissera que tudo ia ficar bem...
Mas não estava ali!
E ela caminhava...
E caminhava sozinha...
O estranho canto de um pássaro ecoou na noite.
Não era uma ave. Era a brisa ganhando força, soando mais alto.
A brisa repetindo seu nome.
Tara... Tara... Tara...
A escuridão se tornava mais intensa.
Havia passos atrás dela. Furtivos. Ela caminhava, parava, se virava... E não tinha nada, ninguém, só as sombras que se moviam.
Frio. Ela segurava a estaca com força, tanto que os dedos doíam. Era cada vez mais difícil andar, seguir adiante. Havia escuridão à frente, e depois a luz, e depois sombras, asas encobrindo a iluminação, e risadas, e seu nome...
Perto. Estava perto da casa.
O sonho. O pesadelo. Oh, Deus, ela o estava vivendo...
Ela quase parou, pronta para cair no chão, cobrir a cabeça com as mãos, e gritar e clamar pela luz.
Mas Ann estava ali.
E por isso ela continuava seguindo as pegadas...
De seu sonho.
Ela chegou à casa.
A brisa sussurrou seu nome novamente.
Tara, Tara, Tara... Entre...
Estávamos esperando por você.

* * *
A casa era como ela a vira no sonho. Mobília antiga, pinturas de cenas e atos depravados, execuções, orgias... pinturas em cores tão vivas quanto o fogo que ardia na lareira.
Sons estranhos chegavam aos seus ouvidos, e Tara olhou em volta. Sabia que devia seguir pelo corredor.
Podia ver a escuridão, e a luz.
E sabia que porta devia abrir primeiro.
A mão tremeu na maçaneta. A sensação do metal frio era real. Mas tudo no sonho sempre fora real. Só que agora era diferente, e por um momento ela sentiu o pânico paralisante. Queria fugir, gritar, chorar!
Mas, se fugisse agora, eles a perseguiriam. Mesmo que escapasse, teria fracassado, e sua prima morreria.
Ou pior.
Ela girou a maçaneta. O rangido da porta era alto, enervante.
Recuou depressa, certa de que algo a atacaria, que as partes do corpo começariam a se juntar para persegui-la. Mas, quando abriu a porta, ela não viu nada. Até que uma mulher se levantou da cama.
Jovem. Não era Louisa. Tara nunca a vira antes.
Ela estava nua, e olhava para Tara como se sua atitude fosse natural. Lânguida, ajeitou os cabelos e começou a caminhar em sua direção, sorrindo com lascívia.
- Olá... Vamos brincar? Adoro brincar...
Passo a passo, ela se aproximava. Tara a esperava atenta, tensa, tentando descobrir se era uma prisioneira, alguém precisando de ajuda, ou se...
A jovem abriu a boca, e um sibilo soou na sala.
Ela tinha presas... dentes pontiagudos.
Tara rezou para não falhar.
Ela enterrou a estaca no peito da garota, mordendo o lábio e quase se dobrando ao meio para ter a força necessária. Depois, empunhou a espada e desviou os olhos ao desferir o primeiro golpe.
A cabeça ainda não havia sido cortada.
Mais um golpe, outro... Um rangido, um uivo... E a cabeça rolou para longe do corpo.
Tremendo, Tara olhou para o resultado de seu esforço. Havia pouco sangue. O que esperava? Que o corpo se transformasse em uma pilha de cinzas e desaparecesse levado por uma brisa repentina? Nada acontecia. As partes continuavam ali.
Ela engoliu em seco e se abaixou para arrancar a estaca do peito da mulher. Foi preciso aplicar grande força, mas a arma se soltou com um som repugnante.
Tara, Tara, Tara...
Ouviu seu nome sendo chamado. O tom era suave, sedutor, leve. Sabia que havia realizado muito pouco, porque aquela garota era só um soldado descartável.
Tara voltou ao corredor lutando contra o pânico. Louisa e seu consorte, cujo nome verdadeiro ela desconhecia, já sabiam de sua presença. Era preciso tomar cuidado.
Enquanto caminhava, sentiu uma presença próxima. Tara se virou de repente, mas não viu nada. A sensação persistia. Ergueu o rosto. E lá, colado no teto, havia um rapaz de cabelos encaracolados e sorriso transtornado.
Ele caiu sobre ela como uma aranha descendo pela teia sobre a vítima, e foi recebido pela ponta da estaca de madeira. O golpe os atirou ao chão, mas Tara estava preparada. Enquanto o jovem se debatia e contorcia como um brinquedo, cuja pilha enfraquecia, ela o empurrou para o lado e se levantou, já com a espada na mão. Desta vez só precisou de dois golpes para cortar a cabeça, e o corpo mudou de cor ao ser separado dos outros membros, adquirindo um tom acinzentado que foi se intensificando, até tudo se tornar um monte de cinzas.
Apoiada à parede, Tara combateu a histeria que já começava a provocar lágrimas em seus olhos.
Os sussurros... Podia ouvi-los de novo. Sibilos, assobios fracos... Como se milhares de vozes cochichassem bem perto de seus ouvidos. Ela resgatou a estaca do meio das cinzas no chão.
Uma força invisível a atraía para o fim do corredor.
Havia portas dos dois lados, mas ela não se detinha. A última porta com aquela luminosidade dourada escapando pelas frestas... Era lá que devia estar.
Os dedos seguraram a maçaneta. Ela se forçou a girá-la.
A luz provinha de uma enorme lareira onde ardia um fogo alto, abrasador. E diante da lareira havia uma mulher. A mesma que estivera no château.
Ela era elegante e vestia um traje negro e justo com mangas amplas, transparentes. Seus cabelos eram longos, lisos e negros, a pele era muito alva, os lábios vermelhos como sangue. E parecia satisfeita com a chegada de Tara, porque sorria.
- Seja bem-vinda, ma chère! Quero que saiba que é realmente bem-vinda aqui, embora me tenha expulsado de sua casa. A Aliança nunca foi famosa por seus atos diplomáticos. Mas... não importa. Agora você está aqui. Não é assim, mês amis!
Tara estava tão atenta à criatura, que não notou as outras presenças na sala.
Pessoas... ou criaturas... Um jovem casal abraçado contra uma parede, ambos anêmicos, fracos. Um sujeito barbado em trajes vitorianos, sentado em uma poltrona à esquerda da lareira. Duas mulheres, uma sobre a outra, deitadas em uma cama, onde um homem afagava com lascívia os cabelos de uma jovem loira.
- Crianças, minhas queridas crianças, vejam quem chegou! A mais nova integrante da Aliança! - Louisa se afastava da lareira enquanto falava, caminhando na direção de Tara. - Ela não parece ser o que é! Onde estão os músculos? E esse ar indefeso, angelical... Linda! E o que ela faz na vida? É artista. Artista! O que vai fazer, querida? Pretende nos matar com um pincel?
- Onde está minha prima Ann?
- Logo você a verá. Mas antes...
As mulheres se levantaram da cama, e, em uma fração de segundo, estavam sobre Tara.
A estaca de nada serviria contra duas atacantes. Tara agarrou a espada do avô e a girou desenhando um arco no ar, acertando as duas ao mesmo tempo. Feridas no peito, elas caíram para trás, embora estivessem vivas.
O homem de barba se levantou, e também caminhava para Tara. Ela o esperava com a espada preparada e o coração disparado. Conseguira vencer os inimigos um a um, metódica, primeiro a estaca, depois a espada. Mas agora era atacada por todos os lados.
E os braços doíam. Não tinha músculos apropriados para tanto esforço. Tinha de ignorar a dor, ou não sobreviveria. Ela atacou determinada, tentando atingi-lo no estômago, mas a lâmina encontrou um osso. O homem riu, ainda mais furioso, e continuou avançando. Tara girou a espada, tentando causar o maior dano possível.
Braços a envolveram. O homem que estivera afagando os cabelos da loira se levantara, e ela não o vira. Os dedos agarravam seu pulso e apertavam, e ela não conseguiu segurar a espada. Ao deixá-la cair, Tara levou a mão ao bolso interno do casaco, de onde tirou a estaca. Ela atacou movendo o braço para trás, usando toda a força que ainda lhe restava; o sibilo sugeria fúria e dor; o homem caiu. Mas, diante dela, outro inimigo já pegava sua espada.
- Sim, sim! Desarme-a, Guillermo. E não choramingue tanto! Você vai sobreviver. Agora pegue a estaca. Ela deve estar desarmada quando for encontrar a prima.
A sala se tornou palco de sombras. Um som estrondoso de muitas asas batendo encheu o ar, como se uma horda de gigantescas criaturas aladas descesse sobre ela. Estavam em todos os lugares, à sua volta. Puxavam seu cabelo, tocavam seu corpo, sopravam aquela brisa gelada.
Ela via sombras, rostos, mãos, asas, tocando, agarrando, E se agarrava à estaca como se dela dependesse sua vida. Mas dedos espremiam os dela, e finalmente a arma foi arrancada de sua mão.
Perdera as duas principais defesas.
O som das asas se afastou. Estava sozinha, com o casaco rasgado e as mãos vazias.
Louisa se aproximava.
- Bem... vou provar seu sangue, e depois a levarei para ver sua prima. E você vai poder olhar... nós vamos olhar enquanto ela encontra o fim. Enquanto é consumida, é claro. Deliciosa, sua prima. E suspeito de que você é ainda melhor.
Tara encarou a mulher com uma coragem que não imaginava possuir.
Ela sorria, confiante de seu poder. E se aproximava...
Tara pensava depressa. Quando Louisa parou diante dela, as mãos já sobre seus ombros para mantê-la imóvel enquanto os dentes buscavam seu pescoço, sacou uma de suas últimas armas.
Uma pistola de pintura carregada com água-benta.
Ela apontou para o rosto de Louisa. E disparou.
Louisa gritou, e o grito foi como milhares de uivos e guinchos cortando o ar. As mãos cobriam seu rosto e ela gritava, furiosa e com dor.
- Matem-na, matem-na!
O som de asas retornou. Uma cacofonia ensurdecedora. Cercada, Tara começou a girar em torno de si mesma, atirando em todas as direções.
Era uma medida paliativa. Perderia... As sombras se aproximavam. Gritos ecoavam. Mãos a agarravam, braços a envolviam...
E de repente, o primeiro deles foi puxado para longe. Ela ouviu um estrondo e viu um corpo ser arremessado contra a parede. Houve um segundo baque...
Uma cabeça rolou separada do corpo. Ela se virou, ainda empunhando a pistola.
- Não aponte para mim! - alguém gritou.
Ela se virou de novo, tremendo. Não estava mais sozinha.
Lucian chegara.
A cabeça no chão era do homem barbado; Lucian se preparava para cortar mais uma, a de uma mulher, e ela correu a resgatar sua espada. Armada, Tara procurou pela estaca. Uma mulher passou voando por cima dela. Uma criatura a perseguia. Era como um zumbi.
De repente tudo era silêncio, exceto por um ser que ainda gemia no chão. Lucian tomou a espada de Tara e, com um único golpe certeiro, cortou a cabeça do homem, silenciando-o.
- Louisa escapou - ele disse. - Conseguiu escapar. Vamos achá-la.
Lucian DeVeau percorria o corredor.
Tara o seguia atordoada. Num dado momento, uma porta se abriu e uma mulher velha, de olhos arregalados e cabelos brancos, saltou sobre ela. Lucian voltou para conter a criatura e impedir que as presas perfurassem o pescoço de Tara.
- Precisa estar preparada para essas coisas - ele disse.
Os dois continuaram andando. Uma segunda porta se abriu. Ela se virou empunhando a estaca, pronta para defender-se. Dessa vez o atacante era um homem alto, gigantesco, com longos cabelos loiros.
Lucian segurou seu braço.
- Esse é Ragnor, Tara. Ele está do nosso lado. Encontrou alguma coisa, Ragnor?
- Três novatos. Soldados sem importância.
- E claro. Vamos ao que interessa, então.
O trio percorria o corredor dominado pelas sombras.
- Eles têm... um centro nervoso? - Tara perguntou aflita. - Quero dizer... essas pessoas... ou coisas... são os sentinelas que defendem a fortaleza?
Tara e Lucian continuavam a percorrer a casa e ele aproveitou para contar sobre Brent.
- Brent está ferido? - Tara sentiu o coração dar um salto no peito.
- Sim, um ferimento com bala de prata.
- E mesmo assim está a caminho? Quem o atingiu?
- Gerard. Willem... ou Trusseau, como você o conhece.
- Então ele sabe... quem é Brent.
- Ah, sim, sabe! Todos nós nos conhecemos bem.
Eles retornaram ao grande salão, onde o fogo ardia com maior intensidade, iluminando toda a área. Dessa vez, Tara viu Trusseau... ou Gerard, como Lucian o chamava.
Ele estava ao lado da lareira. Empunhava um rifle e sorriu ao vê-los entrar.
- Ora, Lucian, finalmente está aqui! O grande "rei" da espécie perdeu a agilidade? Ah, e vejo que traz companhia! A jovem e bela caçadora de vampiros.. Só isso? Onde estão seus exércitos? Bem, sempre fui subestimado. Ou esperava encontrar seu amigo, o sr. Malone, acompanhado de mais alguns do seu grupo? Lamento, mas suponho que ele e os de sua raça estejam à beira da extinção. Os fazendeiros não gostam de lobos perto de seus carneiros. Matar lobisomens é fácil: uma bala de prata, e está acabado. Já os vampiros... Ah, Lucian, seu pequeno batalhão é uma piada! Além do mais, não pode matar os de sua espécie. E a regra...
- Você quebrou as regras primeiro. Eu também posso ignorá-las, agora. Estamos em um novo mundo. Com novas regras.
- Nem tanto. Nomes, rostos, centros de poder... Tudo pode mudar. Mas o ser humano ainda é ganancioso, ávido pelo poder. Há sempre nichos onde os meus podem prosperar.
- Prosperar? Depois da guerra vocês ficaram devastados!
- Sim, eu me lembro. Na verdade, lamento que Malone não tenha ficado apenas ferido. Queria muito vê-lo chegar aqui mancando, porque então eu o faria sofrer e morrer lentamente! Mas temos a mocinha. A herdeira do velho. Ele e Malone se uniram no final da guerra, se uniram contra mim... Eu ainda quero vingança!
- Não vai falar oportunidade para lutar contra eles, Gerard. Porém, não esqueça que o fabuloso poder de Malone só existe graças a você. Você e seus experimentos cruéis. Ele já sofreu todo tipo de tortura em suas mãos. No seu lugar, eu estaria torcendo para morrer antes de Malone chegar.
- E acha que você vai me matar?
De repente, uma figura surgiu do fundo do sofá, de costas para a porta. Era a elegante Louisa. Seu rosto e pescoço estavam cobertos por bolhas horríveis, resultado da queimadura provocada pela água-benta.
- Todos vocês vão morrer aqui esta noite - ela disse. - Se deve haver uma realeza entre nós, creio que somos mais adequados ao posto. Você criou uma paródia do que somos, Lucian! Somos grandes aves predadoras, mas você quer nos fazer agir como carneiros mansos!
- Tudo que queria era garantir nossa sobrevivência e a paz no mundo. Seus excessos, Gerard, acarretaram séculos de morte para você e Louisa no passado, e provocaram a execução de centenas de inocentes.
- Queríamos governar sobre os fracos, e saciar nossa sede de sangue com aqueles que você chama de inocentes - Gerard declarou com frieza.
- Ah, sim, os fracos! - Louisa exclamou. Ela se abaixou e levantou Ann do sofá. Sorriu para Tara - Presa fácil... Ela caiu aos pés de Gerard... ou Willem... assim que ele a abordou. A neta do velho Jacques! Bem, ela já pode morrer, agora... Está cansada, fraca... esgotada.
Tara reagiu de maneira surpreendente até para ela mesma:
- Ann é fraca? É isso que está dizendo? Estranho... - Ela deu um passo à frente. - Pelo que sei, Willem ficou louco por ela, e apesar de todo o seu poder, não conseguiu convencer Ann a convidá-lo a entrar no château. Ela resistiu quando descobriu que ele não era um homem que desejava ter em sua vida.
Louisa olhou para Gerard com fúria.
Tara soube que havia conseguido o que queria.
Rápida, ela atacou, determinada a salvar a prima. Mas Louisa se virou em tempo, jogando-a no chão com um simples olhar.
- Bem, chegou a hora de acabar com esta patética criatura - Tara gritou e atacou de novo, descobrindo uma força que nunca imaginara ter.
Lucian também entrou em ação enquanto Tara aproveitava para amparar a prima.
- Ann, por favor, acorde! Você precisa lutar, resistir!
- Tire-a daqui! - Lucian gritou. - Agora!
Tara percebeu que a sala era invadida por criaturas horríveis.
Gerard e Louisa chamavam reforços.
O momento das gentilezas chegara ao fim. Tara sacudiu Ann com força.
- Fique em pé e ande!
Ela arrastou a prima para a porta, e juntas saíram da casa.
De repente, ouviu-se um som agudo. Um uivo que se repetia e era levado pelo vento.
A terra começou a tremer.
Gerard correu atrás delas e agarrou Tara.
E então, do meio das árvores da floresta, eles apareceram. Parecia haver uma centena deles. Lobos enormes, todos cor de prata, ou talvez nem fossem lobos, porque se moviam com a velocidade da luz.
Os lobos pareciam chegar em ondas. Uma onda de uivos, pelos, e dentes, e morte...
Gerard apontou o rifle para eles.
Movida por um impulso Tara empurrou a arma para cima.
A bala cortou o ar.
Os primeiros lobos os alcançaram. Eram maiores do que Gerard.
Tara se soltou e correu, tentando proteger Ann da alcatéia raivosa que poderia pisoteá-la. Mas, embora ouvisse os uivos, o som de dentes rasgando roupas e carne, quebrando ossos, nada se aproximava delas.
Gerard gritava. Depois foi Louisa.
De repente, tudo mergulhou no silêncio.
Havia acabado.
Tara levantou a cabeça. Não havia lobos ali. Apenas um homem.
Um homem em pé sob um céu sem nuvens. Um homem iluminado pela luz prateada do luar, alto e imponente, olhando para alguma coisa caída na grama.
O corpo dos inimigos.
- Brent?
Ele se virou e caminhou em sua direção. Estava mancando.
Tara se levantou e correu para os braços amados.
Ainda estavam abraçados, quando a noite foi sacudida pelo estrondo de uma explosão. Línguas de fogo pareciam lamber o céu.
- A casa na floresta... - ele disse em voz baixa. - Acabou.
- Lucian.... - Tara sussurrou.
- Está do lado de fora.
- Mas como?
- Eu saberia se não estivesse. Venha, vamos levar Ann para casa. Ela precisa de cuidados.
Ela assentiu. Apesar do fogo que tentava incendiar o céu, o mundo parecia normal outra vez.
Estavam sentadas à mesa do mesmo café na Champs-Elysées onde haviam ido na primeira manhã, quando Tara chegara a Paris.
Eram três: Ann, Tara e Jade DeVeau.
Jade havia contado toda a história sobre como Brent fora atacado e aprisionado por Gerard, ou Andreson, na época da guerra. Fascinado pelo poder superior de Brent, Andreson o submetera a experimentos médicos que o tornaram ainda mais forte. E assim, ele havia criado o ser que o destruiria.
O dr. Weiss, um homem bom e generoso, e Jacques DeVant, um prisioneiro político, levaram Brent até Maggie Montgomery, uma mulher que vivia em Paris, amiga de Lucian, que tinha o poder da cura. Maggie o salvara da agonia e da loucura, embora não pudesse desfazer a transformação, e assim Brent ingressara na Aliança.
Tudo acabara bem mais uma vez. Ainda havia muitas histórias a serem contadas, e elas não cabiam em uma única conversa. Por isso, Tara sabia que voltaria a encontrar Jade muitas vezes.
Tara não teve tempo de fazer mais perguntas, porque, naquele instante, os homens, que haviam ido ao escritório da companhia aérea perto dali, retornaram.
- Tudo certo - disse Lucian. - Mas tenho medo de partir agora.
Rick olhou para Ann.
- Tem certeza de que vem conosco?
- Certeza absoluta - ela respondeu.
- Então, chegou a hora do adeus - Lucian anunciou. Todos se despediram com abraços e beijos.
E era estranho, porque Tara passaria mais algumas semanas na França, enquanto Ann iria aos Estados
Unidos, em férias com Rick.
A promessa era de um reencontro em breve.
Então, o grupo partiu.
Restavam apenas Tara e Brent na mesa do café. Ele pediu um café e sorriu.
- Então...?
- Um lobisomem?
- Receio que sim. Se quiser, posso sair de sua vida e...
- Não se atreva!
- Tem certeza de que entendeu tudo sobre mim? Ando pelo mundo há muito tempo, e tive outras, é verdade... Mas nunca senti o que sinto por você. Acho que o destino a levou à cripta naquele dia...
- Bem, se foi o destino, devemos aceitar que fomos feitos para viver juntos. Agora que decidimos o mais difícil... Onde vamos comemorar? - ela brincou.
- No Ritz...
- Estadia breve ou prolongada?
- Prolongada, é claro!
- Sua vida nunca mais será normal. Sabe disso, não?
- O que é normal? Quem sabe o que vai viver no dia seguinte?
- O Ritz, então?
- Definitivamente!
Brent pagou a conta, e eles se afastaram pela calçada, de mãos dadas.
Horas mais tarde, eles bebiam champanhe e conversavam na cama larga e cheia de travesseiros macios.
- Então... acha mesmo que sou extraordinário?
- Agora não tenho mais nenhuma dúvida disso! Você é extraordinário, um verdadeiro filho da Lua!
A noite caiu.
A Lua iluminava Paris. As portas da varanda do quarto do elegante hotel estavam entreabertas, e eles voltaram a se amar, porque sabiam que estavam predestinados desde o princípio dos tempos.

 

 

                                                   Shannon Drake         

 

 

 

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